A Adolescência - Contardo Calligaris
A Adolescência - Contardo Calligaris
A Adolescência - Contardo Calligaris
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CoNSELHO EDITORIAL FOLHA
Alcino Leite Neto
EXPLICA
Ana Luisa Astiz
Antonio Manuel Teixeira Mendes
Arthur Nestrovski
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A ADOLESCNCIA
CONTARDO CALLIGARIS
PUBLIFOLHA
2000 Publifolho - Diviso de Publicaes do Empresa Folho do Monh S.A.
2000 Contordo Colligoris
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicao pode ser reproduzida,
SUMRIO
arquivada ou transmitida de nenhuma forma ou por nenhum meio sem permisso expressa
e por escrito da Publifolha - Diviso de Publicaes da Empresa Folha da Manh S.A.
INTRODUO ................................. 7
Editor
Arthur Nestrovski
1. ELEMENTOS DE DEFINIO ............... . ... 11
Capa e projeto grfico
Silvia Ribeiro
Calligaris, Contardo
A adolescncia I Contardo Calligoris. -So Paulo :
Publifolho, 2000.- (Folha explica)
Bibliografia.
ISBN 85-7402-215-2
00-2129 CDD-155.5
1a reimpresso
PUBLIFOLHA
Diviso de Publicaes do Grupo Folha
1
hoje, eles se procuram e eventualmente se acham. Mas,
\ alm disso, eles precisam lutar com a adolescncia, que
I
'i uma criatura um pouco monstruosa, sustentada pela
cJ, imaginao de todos, adolescentes e pais. Um mito, in-
\\ ventado no comeo do scu.lo 20, que vingou sobretu-
do depois da Segunda Guerra Mundial. 1
J 1/ A adolescncia o prisma pelo qual os adultos
olham os adolescentes e pelo qual os prprios adoles-
centes se contemplam. Ela uma das formaes cul-
turais mais poderosas de nossa poca.
Objeto de inveja e de medo, ela d forma aos
sonhos de liberdade ou de evaso dos adultos e, ao
mesmo tempo, a seus pesadelos de violncia e desor-
dem.
Objeto de admirao e ojeriza, ela um pode-
roso argumento de marketing e, ao mesmo tempo, uma
m adolescente um pouco sem rumo, es- fonte de desconfiana e represso preventiva.
tranhando seu prprio comportamento, A Holden e aos pais pode-se responder, assim,
paradoxalmente desafiador e arrependido, que os jovens de hoje chegaram adolescncia numa
pra voc na rua e fala:"Estou s passando poca que alimenta uma espcie de culto desse tempo
por uma fase agora. Todo o mundo passa por fases, no da vida. E caberia, ento, tentar explicar como isso nos
?" Algum talvez reconhea sua voz. Holden, o afeta a todos.
heri do romance O Apanhador no Campo de Centeio,
de J.D. Salinger.
Aproveitando-se da situao, atrs e ao lado dele
se aglomeram pais e mes de adolescentes. Eles tam-
bm perguntam: "Ento, assim?Vai passar? s uma
fase?"
Resposta de bolso, caso Holden e os pais o pa-
rem na rua: "No. No apenas uma fase. Por isso,
nada garante que passe".
Nossos adolescentes amam, estudam, brigam, tra-
balham. Batalham com seus corpos, que se esticam e se
transformam. Lidam com as dificuldades de crescer no
1
C f. llibliografia, L
quadro complicado da fanlia moderna. Como se diz
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Elc111ottos de dcjillo 13
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cientes para encarar tanto um surubim de dois metros
transportado, de uma hora para outra,. a uma quanto um berimbau dos mais sofisticados, mas
sociedade totalmente diferente. Digamos que melhor esperar mais dez anos antes de vir fazer pro-
o avio no qual voc estava sobrevoando um priamente parte da tribo e, portanto, competir de igual
canto recndito da Amaznia teve uma dificuldade tc- para igual com os outros membros. Naturalmente, os
nica. O piloto conseguiu aterrissar, mas o aparelho est ancies acrescentaro que esse "pequeno" atraso in-
destrudo. No h como esperar socorro, nem como sair teiramente para seu bem. Eles amam voc e por isso
do fundo selvagem da floresta. Por sorte, uma tribo de querem que ainda pm um tempo voc seja protegido
ndios que nunca encontraram homens modernos, mas dos perigosssimos surubins que andam por a. Isso
que so relativamente bem-humorados, adota voc e seus sem falar dos berimba us ...
amigos. Ser necessrio, imaginemos, 12 anos para que Portanto, voc vai poder se preparar melhor ainda
vocs se entrosem com os usos e costumes de sua nova para o dia em que ser enfim reconhecido como mem-
tribo - desde a linguagem at o entendimento dos valo- bro da tribo. Que tudo isso, acrescentaro tambm os
res da sociedade em que aparentemente vocs vivero o ancies, no constitua fiustrao nenhuma, pois na ver-
resto de seus dias. dade a tribo inteira considera que voc tirou a sorte
Os 12 anos passaram. Voc agora fala corrente- grande e que os ditos dez anos sero os mais felizes de
mente a lngua, conhece as leis e regras de sua nova sua existncia. Voc - acrescentam eles - no ter as
tribo, na verdade se sente um deles. Entre as coisas que pesadas responsabilidades dos membros da tribo. Ao
voc aprendeu, est o fato evidente de que, nessa so- mesmo tempo, poder pescar e tocar berimbau von-
14 A ndolescnca
Elcmclltos de dcfiniio 15
tade- ser apenas como treino, de brincadeira, mas jus- que so cruciais para se fazer valer em nossa tribo:
tamente por isso sero atividades despreocupadas. necessrio ser desejvel e invejvel.
Agora, seriamente, como voc acha que encara- Enfim, esse aprendizado mnimo est solidamente
ria o anncio e a perspectiva desses dez anos de limbo? assimilado. Seus corpos, que se tornaram desejantes e
Logo agora que voc achava que seu berimbau ia se- desejveis, poderiam lhes permitir amar, copular ego-
duzir qualquer ouvido e sua destreza transfixar peixes zar, assim como se reproduzir. Suas foras poderiam
de olhos quase fechados ...
assumir qualquer tarefa de trabalho e comear a lev-
bem provvel que voc passasse por um le- los na direo de invejveis sucessos sociais. Ora, logo
que variado de sentimentos: raiva, ojeriza, desprezo nesse instante, lhes comunicado que no est bem
e enfim rebeldia. Se houvesse uma tribo ininga, se- na hora ainda.
ria o momento de considerar uma traio. No mni-
~ Em primeira aproximao, eis ento como co-
mo, voc voltaria a se agrupar com os companheiros
mear a definir um adolescente. 2 Inicialmente,
do avio, que talvez voc tivesse perdido de vista e algum
que agora estariam lidando com a imposio da mes-
1. que teve o tempo de assimilar os valores mais
ma moratria. Juntos, vocs acabariam constituindo
banais e mais bem compartilhados na comunidade (por
uma esRcie de tribo na tribo, outorgando-se mutu-
exemplo, no nosso caso: destaque pelo sucesso finan-
amente \o reconhecimento que a sociedade parece ceiro/social e amoroso/sexual);
temporanamente negar a voces to d os\,\'iT
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voces se a as-
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Tal contradio torna-se ainda mais enigmtica , 1O comeo da adolescncia facilmente observvel,
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para o adolescente na medida em que essa cultura !por se tratar da mudana fisiolgica produzida pela
parece idealizar a adolescncia como se fosse um puberdade. Trata-se, em outras palavras, de uma
tempo particularmente feliz. Como possvel? Se transformao substancial do corpo do jovem, que
o adolescente privado de autonomia, se afasta- adquire as funes e os atributos do corpo adulto.
1
do da realizao plena dos valores cruciais de nos- Querendo circunscrever a adolescncia no tempo,
sa cultura, como pode essa mesma cultura imaginar como idade da vida, chega-se facilmente a UlTl con-
que ele seja feliz? senso no que concerne ao seu comeo. Ele deci-
O adolescente poderia facilmente concluir que dido pela puberdade, ou seja, pelo amadurecimento
essa idealizao da poca da vida que ele est atra- dos rgos sexuais. Alguns diro que a adolescn-
vessando uma zombaria que agrava sua insatisfa- cia propriamente dita comea um ou dois anos
o. Ele certamente tem direito de se irritar com depois da puberdade, pois esse seria o tempo ne-
isso: dificil entender por que os adultos (que em cessrio para que, de alguma forma, o estorvo fisi-
princpio deveriam conhecer a adolescncia, por te- olgico se transformasse numa espcie de
rem~ passado por a em algum momento) achariam identidade adolescente consolidada. Outros diro,
graa nessa poca da vida ou a lembrariam com nos- ao contrrio, que a adolescncia co111ea antes da
talgia. Tentaremos explicar essa idealizao, sobre- puberdade, pois esta antecipada pela adoo pre-
tudo no Captulo 4. Mas, seja como for, o coce de comrortamentos e estilos de adolescentes
adolescente vive um paradoxo:lele frustrado pela mais velhos. ,Seja como for, a puberdade - ano a
moratria imposta, e, ao mesmo tempo, a idealizao mais, ano a menos - a marca que permite calcu-
social da adolescncia lhe ordena que seja feliz;: Se a lar o comeo da adolescncia.\
adolescncia um ideal para todos, ele s pode ter Quando a adolescncia comeou a ser instituda
a delicadeza de ser feliz ou, no mnimo, fazer baru- por nossa cultura e, logicamente, apareceram as com-
lhentamente de conta. plicaes sociais e subjetivas produzidas pela inveno
Em nossa cultura, a passagem para a vida adul- dessa moratria, pensou-se primeiro que a causa de
ta um verdadeiro enigma. A adolescncia no s toda dificuldade da adolescncia fosse a transforma-
uma moratria mal justificada, contradizendo valo- o fisiolgica da puberdade. A adolescncia, em SUJI1-f1,
res cruciais como o ideal de autonomia. Para o ado- seria uma manifestao de n;ud~~~j;-;~l;l~~~i~, um. -~
lescente, ela no s uma sofrida privao de processo raturaP
reconhecimento e independncia, misteriosamente
idealizada pelos adultos. tambm um tempo de
3
transio, cuja durao misteriosa. Cf. Bibliografia, I, em particular os comentrios obra de Stanley G. H ali.
ElciiiCIItos de defhiio 21
20 A adolcscllcia
um adulto.
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"o que eles esperam de mim?" 25
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r >edindo as novas formas de seu corpo, desejando e
.!;: derizando seus novos plos ou seios, o adolescente
adolescente se olha no espelho e se acha Q 1 ive a falta do olhar apaixonado que ele merecia quan-
diferente. Constata facilmente que perdeu 1 do criana e a falta de palavras que o admitam como
aquela graa infantil que, em nossa cultu- pa~ na sociedad~ d~s adultos. A ~nsegurana se torna
ra, parece garantir o amor incondicional assim o trao propno da adolescenoa.
dos adultos, sua proteo e solicitude imediatas. Essa ~Grande parte das dificuldades relacionais dos
segurana perdida deveria ser compensada por um adolescentes, tanto com os adultos quanto com seus
novo olhar dos mesmos adultos, que reconhecesse a coetneos, deriva dessa insegurana. Tanto uma timi-
imagem pbere como sendo a figura de outro adulto, dez apagada quanto o estardalhao manaco manifes-
seu par iminente. Ora, esse olhar falha: o adolescente tanl as mesmas questes, constantemente flor da pele,
perde (ou, para crescer, renuncia) a segurana do amor de quem se sente no mais adorado e ainda no reco-
que era garantido criana" sem ganhar em troca ou- nhecido: ser que sou amvel, desejvel, bonito, agra-
tra forma de reconhecimento que lhe pareceria, nessa dvel, visvel, invisvel, oportuno, inadequado etc.?
altura, devido.
Ao contrrio, a maturao, que, para ele, evi-
dente, invasiva e destrutiva do que fazia sua graa de
criana, recusada, suspensa, negada. Talvez haja INTERPRETAR OS ADULTOS
maturao, lhe dizem, mas ainda no maturidade.
Por conseqncia, ele no mais nada, nem criana O adolescente, portanto, se lana numa interrogao
amada, nem adulto reconhecido. que durar o tempo (indefinido) de sua adolescncia
26 A adolesclla "o q11c dcs cspera111 de IIJIIJI" 27
J
1
e queJconsiste
em se perguntar o que sera' que os a du I- risca suas indicaes e seus pedidos, mas descobrir qual
tos querem e esperam dele./Ou seja, qual seria o re- de t;1to o desejo deles, atrs do que dizem que que-
quisito para conquistar uma nova dose do amor dos rem. Em suma: de fato (e no s em suas recomenda-
adultos que ele estima ter perdido junto com a inffin- es pedaggicas), qual o ideal dos adultos, para que
cia. Qual seria o gesto necessrio para redirecionar o eu possa presente-los com isso e portanto ser por eles
olhar adulto, que parece ter-se desviado. Qual o atri- enfim amado e reconhecido como adulto?"
buto que garantiria, enfim, que ele fosse reconhecido ~Em geral, o ~)dolescente timo intrprete do
entre "os grandes". desejo dos adultos.IMas o prprio sucesso de suas in-
Infelizmente (pois sem isto tudo seria mais fcil), terpretaes produz fatalmente o desencontro entre
nessa tentativa o adolescente no pode se confinar a adultos e adolescentes. Pois se estabelece um fantsti-
uma simples adeso ao que os adultos parecem expli- co qiproqu: o adolescente acaba eventualmente
citamente esperar dele e desejar para ele. Pois os adul- atuando, realizando um ideal que mesmo algum de-
tos se contradizem. Parecem negar a bvia maturao sejo reprimido do adulto. Mas acontece que esse
de seu corpo e lhe pedir que continue criana; e ten- desejo no era reprimido pelo adulto por acaso. Se
tam mant-lo numa subordinao que contrasta com reprimiu, foi porque queria esquec-lo. Por conse-
os valores que eles mesmos lhe ensinaram. qncia, o adulto s pode negar a paternidade des-
Querem que ele seja autnomo e lhe recusam essa se desejo e se aproveitar da situao para reprimi-lo
autonomia. Querem que persiga o sucesso social e amo- ainda mais no adolescente.
roso e lhe pedem que postergue esses esforos para "se Um caso simples e crucial: a idealizao do que
preparar" melhor. legtimo que o adolescente se per- est1 fora da lei prpria cultura moderna. O indivi-
gunte:"Mas o que eles querem de mim, ento? Querem dualismo de nossa cultura preza acima de tudo a auto-
(segundo eles dizem) que eu aceite esta moratria, ou nomia e a independnci;l de cada sujeito. Por outro
preferem, na verdade, que eu desobedea e afirme minha lado, a convivncia social pede que se traguem doses
independncia, realizando assim seus ideais?" cav;1lares de conformismo. Para compensar essa exign-
Ser que os prprios adultos sabem? Aparente- cia, a idealizao do fora-da-lei, do bandido, tornou-se
mente no: a adolescncia assume assim a tarefa de parte integrante da cultura popular. Gngsteres, rouJ/JOys,
interpretar o desejo inconsciente (ou simplesmente malandros literrios, televisivos ou cinematogrficos se-
escondido, esquecido) dos adultos. guem entretendo nossos sonhos. Eventualmente (mas
O pensamento mais ou menos o seguinte: "Os no necessariamente) essa idealizao acompanhada
adultos querem coisas contraditrias. Eles pedem uma por algum tipo de justificativa moral. Por exemplo,
moratria de minha autonomia, mas o resultado de R.obin Hood est margem da lei, nns isso porque o
minha aceitao que eles no me amam mais como xerife de Nottingham um usurpador ilegtimo. Ou
uma criana, nem reconhecem como um par esta 'coi- seja, R.obin Hood se situa contra e acima da lei em
sa' na qual eu me transformei. Talvez, para ganhar seu nome de uma justia superior a ela. Mas essa artimanha
amor e seu reconhecimento, eu no deva ento seguir parece cada vez menos necessria: nas ltimas dcadas
28 A adolcscaca "o que eles esperam de IIIm?'' 29
Qustamente quando apareceu e vingou a adolescncia), 1. Uma cultura em que a autonomia e a indepen-
a marginalidade e a delinqncia so cada vez mais dncia so os valores centrais e mais exaltados s pode
glorificadas pela cultura popular. Prova de um sonho se transmitir por um duplo vnculo, ou seja, por uma
adulto bem presente e bem reprimido. consignao paradox~1l e contraditria. A virtude essen-
No difcil, portanto, ao adolescente interpre- cial que deve ser ensinada , com deito, a capacidade
tar o confi:lrmismo ou mesmo o "legalismo" dos adul- de desobedecer. Portanto, obedecer desobedecer. Mas
tos como sintomas de um desejo que sonha mesmo - complicao - quem desobedece estJ obedecendo.
com transgresses e infiacs e que (supc o adoles- Dificil tanto obedecer quanto seu contrJrio.
cente) preferiria portanto um filho malandro a um 2. Na sociedade pr-moderna, a diviso social era
"mauricinho babaca". relativamente pacfica, estabelecida. Hoje, a diviso so-
Para chegar a essa concluso, o adolescente no cial mvel e a posio de cada um depende, em prin-
precisa de muito esforo, pois a cultura popular um- cpio, do reconhecimento dos outros que se consegue
bm idealiza a prpria adolescncia rebelde. ou n:io. normal que ningum esteja satisfeito com
Esse um sonho ou uma nostalgia explcita dos sua situa:io e que cada um tente melhor~1-la. O adulto
mesmos ~?S qt!t'_J!l'Lk~lj<)l)t.:dincia c confi:lrmida- moderno transmite ao adolescente no um estado onde
de aos adolescentes e sempre lembram o que acotlte- ele poderia se instalar como se herdasse uma moradia,
ceu com C:hapeuzinho Vermelho por ter desobedecido mas uma aspirao. Mais do que isso: ele transmite a seu
~]me, mas que na verdade se extasiam com uma longa rebento a ambio de no repetir a vida e o status dos
srie de apologias da revolta dos jovens, desde jlii'Clltlldc adultos que o engendraram. Ou seja, de desrespeitar
'lhii!SI'iada at I<ids.~ suas origens, de no se confrmar, de se destacar.
Em suma, o adolescente levado inevitavelmente a 3. Apesar disso tudo, os adultos devem tambm
descobrir a nostalgia adulta de tr;msgresso, ou mJlhor, transmitir ao adolescente as regras da conformidade
de rcsistL'ncia is exigncias antilibcrtJrias do mundo. Ele social, ncccssJria para que ele no seja simplesmente
ouve, atrJs dos pedidos dos adultos, um "Faa o que cu inadaptado.lOra, essa transmisso inevitJvcl de princ-
desL:jo e no o que eu peo". E atua em conseqncia. pios morais c valores prezados pelo consenso social apa-
Essa intcrpreuo do desejo dos adultos pelo rece ao adolescente como prova da covardia, do
adolescente no s LKilitada ou induzida pela cultu- oportunismo e do fiacasso dos adultol Se eles prezam a
ra popular, que ofer~~A leitura de todos uma espcie exceo, porque se dobram a rogar a confrmidade? A
de repertrio ;;-;:;~{! dos ~~;]E(JS e dos ideais. Mesmo autoridade do adulto assim minacb, pois todos os va-
sem essa L1cilitH;o, ~1s propriedades bJsicas do desejo lores positivos parecem emanar da resignao ao fiacas-
moderno levariam o adolescente ~)s mesmas conclu- so, de um desejo fiustrado de rebeldia ou de unicidade.
ses de fimdo. Pelo seguinte caminho: Quanto mais o adulto tenta se constituir como autori-
dade moral, t~mto mais se qualifica como hipcrita,
porque a cultura (c ele junto com ela) promove cotno
1
(:t~ Hihliogr.di.l, li. ideal aquele que f1z exceo norma.
30 A adolescHCa
ser reconhecido ele parece ter que transgredir. Para ser ~ .1 ~ variadas quanto os sonhos e os desejos reprimidos
amado, para preencher as expectativas do desejo dos q dos adultos. Por isso elas parecem (e talvez sejam)
\
adultos, necessrio, paradoxalmente, no se confor-
mar ao que os mesmos adultos explicitamente pedem.
Transgredir tambm no nada fcil. No suficiente
l todas transgressoras. No mnimo, transgridem a von-
tade explcita dos adultos.
lo adolescente, na procura de reconhecimento,
atender s expectativas implcitas e faltar com as expl- culturalmente seduzido a se engajar por caminhos tor-
citas. Como j observamos, o adolescente se encontra tuosos onde, paradoxalmente, ele se m~rginaliza logo
entregu.e a problemas lgicos complicados. no momento em que viria se integrarJ'Pois o que lhe
. :r S~ o imperativo cultural dominante "Desobe- proposto tentar, ou melhor, forar, sua integrao
rdece!", "Prova tua autonomia!", ento desobedecer justamente se opondo :1s regras da comunidade.
34 A adolcscllcia "como co l/seguir que me reco11hcam cadmitam como adulto?'' 35
/ As mil e uma condutas que um adolescente pode Segundo, a adolescncia no s o conjunto das
/escolher para tentar obter o reconhecimento dos adul- vidas, dos adolescentes. tambm uma imagem ou
1 tos tm, portanto, uma coisa em comum, alm do ca- uma srie de imagens que muito pesa sobre a vida dos
) rter dificil, seno desesperado, do empreendimento. adolescentes. Eles transgridem para ser reconhecidos,
~ Trata-se do sentimento dos adultos de que a adoles- e os adultos/para reconhec-los, constroem vises da
) cncia uma espcie de patologia social ou, no me- adolescncia. Elas podem estar entre o sonho (afinal, o
/ lhor dos casos, um lugar onde as patologias psquicas e adolescente a atuao de desejos dos adultos), o pe-
''~5ociais seriam endmicas e epidmicas. sadelo (so desejos que estariam melhor esquecidos) e
O comportamento adolescente considerado no o espantalho (so desejos que talvez voltem para se
mnimo anormal, por parecer (e de fato ser) transgres- vingar de quem os reprimiu).
~
sivo, quando comparado ao padro adulto (o padro Essas vises- embora sempre extremas- so tam-
confesso dos adultos). bm as linhas segundo as quais de fato se organiza o
)J Os adolescentes so f:1cilmente considerados uma comportamento dos adolescentes em sua procura de
,~~ameaa ordem estabelecida e paz f:mliliar. reconhecimento. So ao mesmo tempo concrees da
'f;1" ~1dultos receiam as irrupes transgressivas que rebeldia extrema dos adolescentes e sonhos, pesadelos
os adolescentes podem escolher como maneiras de se ou espantalhos dos adultos. Por isso, so chaves de acesso
afirmar. Mas, sobretudo, os adultos sabem confusamente adolescncia. Destaco cinco: o adolescente gregrio,
que o que h de mais transgressor nos adolescentes a o delinqente, o toxicmano, o adolescente que se
realiza~o de um desejo do~~ adultos, que estes preten- enfeia e o adolescente barulhento.
diam reprimir e esquec~l;Se a adolescncia uma
patologia, ela ento w}b patologia dos desejos de
rebeldia reprimidos pelos adultos.' &J,c(..\"'lt.J \"c(
A vida real dos adolescentes'.(ct~rgi:ande maioria O ADOLESCENTE GREGRIO
deles) pode ter pouco a ver com as figuras dessa pato-
logiq. Mas elas so cruciais, por duas razes. Q_ac{olescente, descobrindo que a nova imagem pro-
' Primeiro, descrever e tentar explicar os com- jetad;l-por seu corpo no lhe vale "naturalmente" o
portamentos extremos dos adolescentes a melhor estatuto de adulto, acuado a agir.
maneira de situar os monstros que enfrenta tam- A primeira ao - em resposta falta do reco-
' o aoo I escente aparentemente " norma I'' - enl-
b em j nhecimento que ele esperava dos adultos - consiste
bora ele os enfrente de maneira mais bem-sucedida. em procurar novas condies sociais, em que sua ad-
Pais e adolescentes conseguem a cada dia negociar misso como cidado de pleno direito no dependa
acordos viveis. Mas, por isso mesmo, o drama da mais dos adultos e, portanto, no seja mais sujeita
adolescncia, com o qual conseguem lidar, apare- moratria. O adolescente transforma assim sua faixa
ce mais claramente quando sua violncia atropela etria num grupo social, ou ento num conglomera-
seus atores. do de grupos sociais dos quais os adultos so exclu-
36 A adolescnca "como consegur que me monhcam eadmtam COlHO adulto?'' 37
dos e em que os adolescentes podem mutuamente se as comunidades de estilo (dark, punk, rave, clubber etc.):
reconhecer como pares. o acesso aqui exige apenas a composio de uma
~Contrariamente s crianas, os adolescentes en1 imagem, um look que todos reconheam como tra-
geral consideraro que sua verdadeira comunidade no o COlllUnl.
a famlia\Isso no propriamente um efeito da fre- Outros grupos pedem que a senha que d aces-
qente desagregao dos ncleos miliares (esvazia- so comunidade seja uma marca duradoura- tatua-
mento das casas onde todos trabalham, ou separao gem, cicatriz- ou um tipo especfico de modificao
dos pais). o inverso\ a crise da famlia revela de fato corporal.
que os prprios adultos esto tomados por pruridos Outros, ainda, pedem uma espcie de pacto de
adolescentes, com nsia de rebeldias e liberdades\(en- sangue, como a participao numa responsabilidade
tre elas, a liberdade das responsabilidades de uma fa- coletiva indissolvel, sem retorno. Aqui o ato de rou-
mlia). Essas inquietaes juvenis no os aproximam bar, estuprar ou matar coletivamente produz uma cul-
dos adolescentes, os quais esperam deles algo que no pa commn, mn segredo comun1.
encontram em seus coetneos.( possvel que smjam O grupo adolescente- seja um estilo comparti-
novos modelos de famlia e estes pern1itam que adul- lhado ou propriamente uma gangue- aparece de qual-
tos e adolescentes convivam - e no s se abriguem quer jeito como uma patologia aos olhos dos adultos.
sobo mesmo tet<~?~At l, a verdadeira comunidade do Os gostos gregrios dos jovens so considerados anor-
adolescente composta por seus coetneos e, entre <mais e perigosos. O grupo adolescente vivido como
estes, pelo grupo restrito de pares com os quais com- o que sanciona a desagregao da famlia e quebra a
partilha as escolhas de estilo mais importantes. relao hierrquica entre geraes, visto que o adoles-
\Recusado como par pela comunidade dos adul- .. cente encontra em seus coetneos o reconhecimento
tos, indignado pela moratria que lhe imposta e que se esperava que pedisse aos adultos.
acuado pela indefinio dos requisitos para termin-la O adulto, sem se perguntar muito por que os
(a famosa e enigmtica maturidade), o adolescente se adolescentes so gregrios, demoniza o grupo adoles-
afasta dos adultos e cria, inventa e integra microsso- cente temido como uma espcie de tribo na tribo.
ciedades que vo desde o grupo de amigos at o gru- De fato, a prpria constituio do grupo adoles-
po d~ estilo, at a gangue) . cente , do ponto de vista dos adultos, uma transgres-
\Nesses grupos, ele procura a ausncia de mora- so. Os adolescentes se tornam gregrios porque lhes
tria ou, no mnimo, uma integrao mais rpida e negado o reconhecimento dos adultos - sendo isso
critrios de admisso claros, explcitos e praticveis ( o que eles mais querem. Por isso, inventam grupos em
diferena do que acontece com a famosa "maturida- que possam encontrar e trocar o que os adultos recu-
de" exigida pelos adultos)~ saram ou pediram que fosse deixado para mais tarde.
Os grupos adolescentes, sempre respondendo a Ora, os adultos consideram suspeito esse afas-
esses pr-requisitos, so, por assim dizer, de densida- tamento dos adolescentes. Com razo, pois o grupo
des diferentes. Alguns so informais e abertos, como adolescente surge justamente porque estes escolhe-
L
38 A adolcscuca
"como couscguir que me rccou!tcam cadmitmu co1uo adulto?'' 39
a criminalidade diminuiu drasticamente nas grandes ras". Melhor ainda: fazer grupo e com o grupo fazer
cidades an<ericanas, por exemplo, o nico nmero que besteiras. Enfim, se associar para transgredir.
resistiu foi o de adolescentes infratores e criminosos. Nessas condies, a delinqncia poderia ser uma
Em alguns momentos e lugares, eles at cresceram. slida vocao da adolescncia.
Alimenta-se assim o espantalho do adolescente dito . "Delinqncia" no uma palavra excessiva,
"predador" (como se fosse uma espcie diferente (embora de fato pouqussimos adolescentes se tornem
identificada por seu comportamento sanguinrio). :'.propriamente delinqentes. Mas existe uma parceria
Ora, custou certo tempo para que algum se desse de adolescncia e delinqncia, porque o adolescente,
conta do que est por trs dos nmeros (vai custar por no ser reconhecido dentro do pacto social, ten-
mais ainda para que esta verdade seja assimilada pelo tar ser reconhecido "fora" ou contra ele- ou, o que
pblico). A verdade que o nmero de crimes co- d na mesma, no pacto alternativo do grupo.
metidos por adolescentes provavelmente evolui segun- Ele constituir um novo pacto entre adolescen-
do uma curva bem parecida com a curva dos crimes tes, com claras regras de reconhecimento mtuo. Es-
dos adultos. Provavelmente - porque a grande maio- sas regras sempre estaro deliberadamente em ruptura,
ria das pesquisas no conta os crimes, mas os crimino- mais ou menos declarada, com o pacto social.
sos indiciados e condenados. A conseqncia dessa Dentro ou fora da prtica gregria, os jovens no
abordagem que a tribo mais gregria sempre parece desistiro de tentar suscitar a ateno e o reconheci-
mais criminosa. No dificil entender por qu: os mento dos adultos. O grupo que eles vierem a consti-
adolescentes cometem seus crimes em grupo (para se tuir seguir um modelo de ao que dever transgredir
reconhecerem mutuamente como membros do gru- o pacto social, j que continua viva a esperana de
po). claro, por conseguinte, que a cada crime vrios merecer, por essa transgresso, a ateno dos adultos. A
adolescentes criminosos podem ser inculpados e con- '-
transgresso tenta encenar o que os adolescentes acre-
denados. Isso no o caso dos adultos.
ditam ser um desejo recalcado dos adultos/H o pro-
A idia de que os adolescentes seriam o grupo jeto de entregar como presente para os adultos um
mais perigosamente criminoso no parece ter suporte comportamento, um gesto, do qual eles teriam sido
quantitativo. Os nmeros s nos dizem algo que de frustrados f, assini., de merecer uma medalha. Quanto
fato no surpreendente, luz de nossas considera- mais a interpretao do desejo dos adultos for certei-
es: ou seja, um adulto ou no mximo dois se eng;Uam ra,.mais esse projeto fracassar. Nesse caso, a transgres-
juntos no empreendimento de roubar um carro. O so adolescente presenteia os adultos c9m uma imagem
mesmo crime poder ser cometido por um bando de que justamente eles querem reprimir)O erro dos ado-
adolescentes que, uma vez o crime perpetrado, mal lescentes (erro em relao a sua prpria estratgia)
cabero todos no carro.
pensar que para os adultos possa ser agradvel encon-
Resumindo, o adolescente tem dois caminhos trar uma encenao de seu prprio recalque.
possveis e compatveis para obter algum reconheci- Paradoxo e dificuldade da relao entre geraes:
mento: fazer grupo e fazer estardalhao, ou "bestei-
os adolescentes transgridem - at gEefRtt.::.iJ\o--
: Biblioteca jos. de Alencar
42 A adolescnca
"como conseguir que me reco11heam eadmitam como adulto?" 43
para burlar a lei, no na esperana de escapar das con- No dificil enumerar os comportamentos mais
seqncias de seus atos, mas, ao contrrio, para excit- freqentes da delinqncia adolescente. Sua banalida-
la, para que a represso corra atrs deles e assim os de s demonstra a banalidade dos desejos que os ado-
reconhea como pares dos adultos, ou mrlhor, como lescentes conseguem descobrir atrs do silncio dos
as partes escuras e esquecidas dos adultosfEles imagi- adultos.
nam que, como delinqentes, sero amados por serem O furto - desde os pequenos roubos de mer-
portadores de sonhos recalcados.(Nessa condio, tor- cadoria nas lojas at o assalto e a colaborao em
na-se impossvel para os adultos escolher uma estrat- empreendimentos criminosos (extorso, trficos il-
gia correta entre tolerncia e represso. Por exemplo, citos etc.)- so a conduta mais bvia. Afinal, o ide-
um perigo deixar a porta aberta (como est aconte- al social do sucesso financeiro triunfante em nossa
cendo cada vez em mais pases) para que o tribunal sociedade, e o jovem mantido afastado dele pela
decida se jovens culpados de crimes graves devem ser moratria da adolescncia. Ele escolhe perseguir esse
perseguidos como menores ou como adultod vista sucesso por um caminho que dispensa a retrica
disso, como o jovem resistiria tentao de fazer algo explcita sobre o valor do esforo, do suor na testa e
que seja grave a ponto de forar o tribunal a julg-lo do trabalho (todos pretextos da moratria). Trata e s-
como adulto- que o que ele pede desde sempre? Se / ses valores morais como se fossem apenas ornamen-
for julgado e condenado como adulto, isso ser a de- tos corretivos, que permitem ao adulto tolerar sua
monstrao do fato de que os adultos s ouvem a lin- prpria avidez. O pensamento do jovem, por incons-
guagem do crime mais detestvel e de que essa ciente que seja, soar assim: "Vocs me dizem que
linguagem funciona:) para ficar rico, mas querem que eu fique aqui na
\Tolerar no uma opo, visto que o jovem atua espera suando para me preparar. Eu acho que essa
justamente para levantar a represso. A tolerncia s o preparao suada que vocs promovem e elogiam
.forar a atuar com mais violncia. apenas um jeito de vocs se consolarem de seus fra-
Os adolescentes, ento, transgridem e os adultos cassos e no encararem suas covardias. Eu vou com-
reprimem. Por um lado, se os adultos reprimem pre- petir pelos meios diretos que na verdade vocs
ventivamente, impondo regras ao comportamento gostariam de usar. Vou roubar, por exemplo".
adolescente, eles afirmam a no-maturidade dos ado- Outro exemplo a valorizao seja da fora fi-
lescentes. Em resposta, os adolescentes sero levados a sica, seja da provocao, da disponibilidade ao
procurar maneiras violentas de impor seu reconheci- enfrentamento (a capacidade de lutar e arriscar). O
n1ento. adolescente atua, encena o gosto de se afirmar sobre
Por outro lado, a represso punitiva s manifesta e contra os outros arriscando a pele, pardia do mes-
ao adolescente que seu gesto no foi entendido como tre antigo, qual o adulto renunciou faz tempo -
deveri, ou seja, como um pacote de presente cheio de preferindo negociaes e outros compromissos so-
ideais e desejos reprimidos dos adultos. O que tambm ciais menos perigosos. De novo o adolescente, lem-
levar o adolescente a aumentar a dose de rebeldia. brando pelo seu comportamento que a violncia pode
44 A adolescncia "Como conseguir que me reconheam eadmitam como adulto?" 45
"'
ser fonte de autoridade, no seduz o adulto. Ao con-
trrio, ele o constrange e o ameaa, apontando sua
O ADOLESCENTE TOXICMANO
covardia. Na relao com os adultos (no s sua
famlia), o adolescente, no conseguindo produzir res-
peito, prefere e consegue produzir medo. O medo
o equivalente fisico, real, do que o respeito seria sim-
bolicamente.
n A viso da adolescncia que parece ser mais preocu-
pante para os adultos a viso do adolescente toxic-
I, mano. ., Os adolescentes seriam mais sensveis do que
1 os adultos ao charme das drogas ilegais.
Entende-se como a delinqncia propriamente ~-------- Na verdade, no seria dificil argumentar que o
dita, organizada, pode vir a ser uma resposta mora- interesse dos adolescentes de hoje para as drogas a
tria. Ela freqentemente implica uma associao de atuao de um interesse para as drogas da gerao pre-
delinqentes que comporta todos os requisitos do gru- cedente. Os adolescentes de hoje so os descendentes
po de adolescentes. Satisfaz o ideal social de sucesso e de uma gerao que explicitamente ligou o uso das
riqueza pela apropriao imediata e real. E impe o drogas a todos os sonhos de liberao e revoluo (pes-
medo que o equivalente real do respeito. "Me disse- soal, sexual, social etc.) que ela agitou e subseqente-
ram que era crucial enriquecer, ter sucesso e poder. mente abandonou e recalcou.
No me deixaram competir - pediram para esperar. Desse ponto de vista, a relao adolescente com
Ento eles vo ver." as drogas seria hoje um captulo da rebeldia herdada
Do mesmo jeito, a promiscuidade mais arriscada pelos adolescentes, depois de largada por seus pais. Ela
pode ser uma resposta moratria sexual, que trans- seria a interpretao e atuao da grande esperana
gride a retrica explcita do pudor, do respeito, da que os adultos de hoje recalcaram, quando desistiram
vergonha. "Me dizem que para ser desejante e dese- de sua revolta e abraaram valores mais estabelecidos.
jvel e gozar com isso, mas me pedem para esperar, Mas a droga tem tambm outras razes de sedu-
para no me queimar cedo demais. Eles no querem zir o adolescente.
encarar suas covardias frente a seus prprios desejos. Sensvel "injustia" da moratria, o adoles-
Querem, falam, falam e nunca fazem o que querem. cente descobre que, em matria de drogas ditas le-
Eu vou lhes mostrar como se goza." No conseguin- gais (lcool e tabaco), h em princpio uma separao
do que seu corpo seja reconhecido como adulto (por- de pesos e medidas entre adultos e adolescentes. A
tanto desejvel), o adolescente pode escolher se impor interdio seletiva dessas drogas aos adolescentes
pela seduo mais brutal. O desejo do adulto seduzi- vivida como parte do processo de sua infantilizao,
do, tentado, - como o medo - outro equivalente uma vez que cigarro e lcool so liberados para os
fisico, real, de um reconhecimento que tarda. adultos.
A prostituio adolescente com clientes adultos O argumento que insiste sobre o perigo de l-
um bom exemplo de uma maneira de forar o reco- cool e tabaco para a sade pode produzir o efeito in-
, nhecimento, quase irnica:"Se este corpo no dese- verso ao esperado, pois nada prova que o adolescente
jvel, por que pagam para t-lo por um momento?" queira ser o objeto de uma proteo ou de um cuida-
'---
46 A adolcscnca "Co1no conseguir que me reconheam eadmitam COlHO adulto?" 47
do especial que, de novo, o infantilizaria. No entanto, O que prprio ao desejo moderno que, atrs
esse argumento deve ser levantado e defendido de cada objeto desejado, sempre h um desejo de algo
vigorosamente pelos pais. Sem isso, o adolescente po- mais, de uma qualidade diferente: uma vontade de re-
deria se sentir entregue a algo bem pior do que a conhecimento social - a qual nunca se esgota no ob-
infantilizao: o descaso de seus pais com sua vida. jeto~\Em outras palavras, o que desejado sempre
Ele tambm pode ser seduzido justamente pelo instrumental para afirmar e constituir nosso lugar so-
risco de vida que cigarro e bebida acarretam. Repre- cial.\Por mais que eu possa obter o objeto que eu
sentante quase oficial das fantasias inconfessveis dos quero, nem por isso ele me satisfar. A riqueza de nos-
adultos, o adolescente no vai poder ficar atrs, logo so mundo depende disto: de uma procura que deve se
num campo onde alguns adultos parecem dispostos a manter inesgotvel - nenhum objeto satisfazendo a
correr riscos para gozar um pouco. A tentao ser de sede de reconhecimento social que permanece atrs
desafiar os riscos fumando e bebendo at no poder de nossayoJ)Ji1fk de....poss.uirou cl~<:)l!Slu_nir.
mais. Ora- na fantasia dos adultos e talvez de fato-, a
As drogas que so proibidas para todos tm mais droga seria o objeto que promete e entrega uma satis-
charmes ainda. fao acabada, mesmo que apenas momentnea. Essa
Alm de serem proibidas (um charme em si), fantasia transforma a droga em senha de acesso a um
podem representar uma maneira de enriquecer pelo universo alternativo regrado por um pacto dife!-ente.
trfico, desmentindo a moratria. Nesse outro mundo, o que importa para todos o
Elas proporcionam tambm uma boa forma objeto, a droga, sua presena, no o status social que
gregria de reconhecimento recproco entre droga- ela instaura. Por isso a toxicomania talvez seja a trans-
dos, ou seja, so a ocasio da constituio de grupos I gresso mais preocupante, porque parece minar um
adolescentes coesos. i; pressuposto fundamental do pacto social vigente: a
H mais um aspecto que faz o sucesso da toxico- permanncia da insatisfao.
mania adolescente, ou no mnimo de seu espectro, que Por ser ou parecer umobjeto que satisfaz de vez,
perturba o sonho dos adultos. um bem em si, a droga uma ameaa muito especial.
O que os adultos receiam, na viso do adoles- -Ela quebra a regra moderna de funcionamento do
cente drogado, da maconha herona e ao crack? Fora ( desejo. O drogado pra de deslizar de um objeto a
os riscos para a sade e o perigo de encarar conse- ) outro, da roupa ao carro, ao parceiro bonito - todos
r.-qncias penais, h uma espcie de temor de que, no )metforas no caminho de um status social que nem a
\ baseado ou na pedra, o adolescente encontre um oh- , totalidade dos objetos poderia produzir. A droga -
' jeto que satisfaa seu desejo, mate sua procura, acabe diferena dos outros objetos - apagaria o desejo. A
com a insatis(<o. O medo, em suma, de que com a _preocupao de que o rapaz ou a moa que usam
droga o adolescente, de repente, seja feliz. Por que isso maconha parem de competir na escola, se deprimam,
angustia os adultos? Seria mesmo um problema para no saiam da cama etc. mais que justificada: ela ex-
os adolescentes? pressa o medo legtimo de que, pela droga, eles trans-
48 A adolescllca "Co111o COIJseguhque 111e rccouhea111 ead111ita111 COIIIO adulto?'' 49
gridam de vez as regras essenciais do funcionamento Na verdade, freqente que adolescentes passem
do desejo moderno. pela droga um tempo e parem de usar. tambm fre-
Mais do que nas outras formas da delinqncia, qente que isso acontea na cara dos adultos, os jovens
os adultos vem na droga uma perigosa porta de sada pedindo ajuda para voltar dessa viagem. H adolescen-
por onde os adolescentes escapariam moratria para tes que se drogam para ento precisar de algum tipo de
entrar de vez em outro mundo. reabilitao e pedir ajuda. uma estratgia parecida com
Os adolescentes concordam com essa preocu- a dos que naufragam de propsito na rota de um tran-
pao e s podem encontrar nela mais uma razo para satlntico, para - uma vez recolhidos - viajar de graa
se satisfazer na droga. Afinal, os adultos no param de na primeira classe. Ou seja, uma estratgia que fora o
mentir, para os outros e para eles mesmos, sobre o reconhecimento do adulto.
valor, o charme e o interesse dos objetos. Consomem /-,A reabilitao, trazer algum de volta da delin-
como se acreditassem mesmo que o desfile dos obje- qncia, da droga ou da prostituio, o contrrio da
, tos de consumo possa responder, satisfazer, a seus infantilizao: ela implica o reconhecimento de que
anseios e desejos. quem se perdeu esteve em perigo de verdade.
Precisamos acreditar que os objetos podem nos isso que almejam, todas as condutas extremas
fazer felizes. Deslizamos sem parar de um a outro, da adolescncia transgressora: convencer o outro de
sempre na espera de mais um que ser decisivo, final. que a vida do adolescente no nenhum limbo pre-
De fato, isso um faz-de-conta. No podemos re- paratrio, ela est acontecendo de verdade, como a
nunciar insatisfao que nos faz correr e que vita- vida adulta.
liza nosso mundo. Nenhum objeto pode nos satisf.ner,
pois o que queremos no so coisas e posses, mas -
atrs delas - reconhecimento ou status. E nada pode
extinguir nossa sede desses dois.
O ADOLESCENTE QUE SE ENFEIA
Ora, a droga , na srie dos objetos, uma espcie
de subverso. Drogando-se, o adolescente pode pen- Os adolescentes parecem contradizer, ou melhor, de-
sar estar atuando a seguinte verdade recalcada pelos safiar, os cnones estticos dos adultos. Segundo estes,
adultos: "H um objeto que nos satisfaria, mas ne- eles se enfeiam sistematicamente.
cessrio esquec-lo, pois a satist:1o seria fatal para Os grupos adolescentes inventam quase sempre
nosso sistenu social". um padro esttico interno, pelo qual os 1nembros se
A droga um objeto mortal. No s porque pode diferenciam e se reconhecem entre si. No raro que
matar o usurio, mas porque- to grave quanto isso - esse estilo constitua alguma espcie de agresso deli-
ela pode matar seu desejo. berada ao cnone dominante: afinal, o grupo (mesmo
De fato, no o caso de dramatizar essa viso do o grupo de estilo) outorga seu prprio reconhecimento
adolescente toxicmano. A grande maioria dos ado- interno. Desafiar a aprovao dos adultos sua pr-
lescentes apenas flerta com a droga. pria funo.
50 A ado/csc11cia
"como Wlls~sur que I/ICrcmhcr,mtc 11dmtaJJJ como tJdulto?'' 51
O resultado disso que cada grupo impe facil- os estilos adolescentes (seus produtos, seus apetrechos)
mente a seus membros uma conformidade de consu- so oferecidos e vendidos aos adultos, magnificando
mo bastante definida. Por isso mesmo, todos os grupos um mercado j interessante em si. Desde os anos 80,
se tornam tambm grupos de consumo facilmente surge uma verdadeira especialidade do marketing da
comercializveis. Os adolescentes, organizados em adolescncia. Sua relevncia est nas propores do
identidades que eles querem poder reconhecer sem mercado dos adolescentes: eles so numerosos e dis-
hesitao, se tornam consumidores ideais por serem pem de cada vez mais dinheiro. Mas interessa1n ao
um pblico-alvo perfeitamente definido.A adolescn- mercado tambm pela influncia que exercem sobre a
cia e suas variantes so assim um negcio excelente. deciso e a consolidao de modas, que transformam
O prprio marketing se encarrega de definir e crista- os modelos de consumo de muitos adultos.
lizar os grupos adolescentes, o mximo possvel. A adolescncia, por ser um ideal dos adultos, se
Os grupos, nascidos como amparo contra a mo- torna um fantstico argumento promocional.
ratria imposta pelos adultos, se constituem em ideais ( - At aqui pensvamos que havia uma revolta dos
.' para os adultos justamente por serem rebeldes. Ao jovens contra sua excluso da sociedade dos adultos. E
( mesmo tempo, esses grupos so culturalmente exalta- acrescentvamos que as form. as dessa revolta podiam
. dos pelo marketing, que tem todo interesse em coincidir com ideais adultos por duas razes: porque
apresent-los como coesos, catalogando os apetrechos
necessrios para seus membros, comercializando as ( o ideal cultural dominante , em nossa cultura, a insu-
bordinao e porque, ao se revoltar, os jovens ainda
senhas de reconhecimento e todos os traos do look .; estariam tentando agradar aos adultos, ou seja, realizar
suscetveis de circular no mercado. \algum sonho deles.
Esses lcloks que srgiram como "rebeldia" so J1 Agora podemos perguntar se a adolescncia no
ento propostos como ideais para aumentar a adeso (,surgiu justamente porque os adultos modernos preci-
de seus membros, ou seja, para seduzir os adolescentes \saram dela como ideal.
que chegam ao mercado dos grupos ou transitam de \
Ser que a adolescncia no foi provocada, im-
um grupo para outro. pondo a moratria e suscitando a rebeldia,justamente
Cada look propagandeado e idealizado por sua para que encenasse o sonho de idiossincrasia, de
comercializao. Cada grupo e a adolescncia em ge- unicidade, de liberdade individual e de desobedincia
ral se transformam numa espcie de .franchisin/ que que prprio de nossa cultura? Ser que a adolescncia
pode ser proposta idealizao e ao investimento de no veio a existir para o uso da contemplao preocu-
todo mundo, em qualquer faixa etria. pada, mas complacente, dos adultos?
Se a adolescncia encena um ideal cultural bsi- s vezes, essa suspeita deve atravessar o esprito
co, compreensvel que ela se transforme num estilo dos adolescentes.
que cool para todos. Vimos como e por qu- correndo atrs de um
Na idealizao comercial e para maior proveito reconhecimento que os adultos lhe negam e que ele
, lu-; empresrios da adolescncia, praticamente todos procura com seus pares- o adolescente constitui gru-
6o A adobtida
A adolcscllda coiiiO ideal wltllml 61
pos e conformismos. interessante notar que esses inveno moderna. Em princpio e com as devidas
grupos mudam com extrema rapidez. H uma cons- excees, em nossa cultura todos amamos, ou Ille-
tante inveno de novos estilos.,Como se o adoles- lhor, veneramos, as crianas incondicionalmente e ir-
cente tentasse correr mais rpido do que a comer- resistivelmente. No podemos deixar passar um
cializao, que quer descrev-lo para melhor mido perto de ns sem estender a mo para uma
idealiz-lo e vender seu estilo. Como se ele fugisse
carcia protetora na pequena testa. Quando, num caf
da assdua recuperao de sua rebeldia pelos adultos, ou restaurante, cruzamos o olhar de uma criana sen-
famintos de modelos estticos de juventude, liberda- tada em outra mesa, estamos dispostos a fazer .qual-
de e ;.ebeldia.
quer macaquice para extrair seu sorriso. Em outras
Se a adolescncia no existisse, os adultos mo-
palavras: qualquer adulto parece estar investido da
dernos a inventariam, tanto ela necessria ao bom
(liupla misso de proteger as crianas e torn-las feli-
desempenho psquico deles.
) zes. Mas por que essa seria uma propriedade exclusi-
~. va da modernidade?
Certo, os seres humanos nasce:m extraordinaria-
DA INVENO DA INFNCIA mente prematuros, e a espcie conta com cuidados
parentais assduos e permanentes para assegurar a so-
POCA DA ADOLESCNCIA
brevivncia dos rebentos. Sem uma dose brutal de amor
dos pais e esforos anexos, nossa espcie estaria presu-
Chegou a hora de perguntar em que medida e como mivelmente ameaada.!
essa moratria que produziu a adolescncia veio a
O amor pelas crianas nos parece portanto na-
ocorrer logo na modernidade tardia que ns habita-
tural, um efeito quase fisiolgico da prematurao dos
mos. Chegou a hora, em suma, de explicar por que c
pequenos humanos, necessrio na batalha da evolu-
como a adolescncia que nos interessa um fenme-
o das espcies. Sem amor e cuidados as crianas de-
no sobretudo dos ltimos 50 anos.
certo no sobreviveriam, mas nem por isso o amor c
Faz um sculo apenas que a adolescncia se tor- os cuidados foram sempre os mesmos.
nou um tema que justificasse um livro como este. At
Ao contrrio, como fi inicial e magistralmente
ento, certamente era possvel se preocupar com o devir
mostrado por Philippe Aris," pode-se dizer que a
dos jovens, tanto fisico quanto moral e econmico,
infncia uma inveno moderna. Entendendo aqui
mas "a adolescncia" no era uma entidade que enco-
por infncia no os primeiros anos da vida - que
rajasse um ttulo ou animasse a imprensa. No era um
sempre existiram, obviamente--, mas a prpria idia
[lto social reconhecido. Era uma f,1ixa etria, mas no
por isso um grupo social. Ainda menos um estado de
~de um tempo da vida bem distinto da idade adulta,
,miticamente feliz, protegido pelo amor dos pais c,
esprito e um ideal da cultura.
Para entender co1no isso aconteceu, necess- "'E..,..n
;:j - '"M
i !"~ ::
rio primeiro lembrar que a prpria infncia uma
' Ct~ Bibliografia, 111. 3iblioteca Jos de Alencat
62 A adolcscllca
A adolcscllca como ideal wltttml 63
Por isso, transmitir, ensinar, formar so, em nossa cultu- vamente, por definio. Pois seu lugar no mundo no
ra, atividades to problemticas, pois a ordem transmiti- pode nem deve ser mais definido do que sua aspirao
da (quer dizer, a tradio) de contradizer a tradio. - como se diz - de subir na vida, sua ambio, sua
Ora, quase todas as instituies do mundo tradi- inveja. Esse trao se revelou crucial para produzir uma
cional periclitaram ou sumiram com a modernidade. acelerao indita na produo de riqueza e de dife-
O indivduo s no se achou desprovido de comuni- rena social: o sujeito moderno quer mais (portanto,
dade porque uma sobreviveu e, de certa forma, adqui- produz e consome mais) porque deve querer sempre
riu importncia nova e central na vida de todos: a mais do que os outros.
famlia. A famlia moderna restrita ao essencial, nu- No h, no pode haver, objeto, faanha ou mes-
lear (ou seja, composta essencialmente pelo ncleo mo triunfo social que possa apagar essa insatisfao.
de pais e crianas), mas por isso mesmo mais intensa, Para o sujeito moderno, sua obra, seu trabalho de
pois idealmente organizada ao redor no de consan- escalador social permanecero sempre inacabados.
ginidades extensas, de obrigaes, deveres e contra- Talvez se compreenda melhor agora por que a
tos, mas da fora proclamada dos sentimentos ntimos. modernidade realizada produz uma paixo indita pelas
A famlia nuclear existe e resiste por ser fundada no crianas. Para seus pais e para os adultos em geral, elas
amor. Amor entre pai e me e amor entre estes e as so a consolao e a esperana. Graas a elas, os adul-
crianas que eles criam\ A famlia - instituio que tos estendem o sentido e a expectativa de suas vidas
portanto sobrevive e vinga na modernidade- a gran- para alm do limite estreito de sua sobrevivncia indi-
de porta-voz do duplo vnculo moderno: ela pede s vidual. Graas a elas, a insatisfao prpria do sujeito
crianas todo tipo de submisso e obedincia em nome moderno se torna suportvel, pois o fracasso - inevi-
do amor, mas tambm pede que, em nome do mesmo tvel numa corrida que desconhece faixa de chegada
amor, a criana se liberte da famlia e ultrapasse a con- - alimenta a espera de que as crianas faam reveza-
dio na qual se criou, para responder s expectativas mento conosco.
dos pais. Particularmente, para dar continuidade (imor- , A infncia preenche a funo cultural essencial
talidade) aos sonhos dos pais- sonhos frustrados antes ~e tornar a modernidade suportvel.
de mais nada pela mortalidade dos sonhadores\ Para isso, ela proporciona antes de mais nada um
Para entender melhor como se criam na moder- prazer esttico. ~ii-9 pQr acaso que j\ries descobriu a
nidade as condies sociais e psicolgicas da transformao que a modernidade produziu na ma-
sacralizao da infncia, ainda preciso acrescentar a e
neira de ver amar as crianas principalmente a partir
esse quadro sucinto outro trao bem especfico da da iconografia da infnciac(As crianas modernas so
modernidade ocidental: a insatisfao fundamental do um objeto de contemplao, de agrado e descanso para
sujeito. O homem moderno no insatisfeito aciden- nossos olhos. Crian1os, vestimos, arrumamos as crian-
talmente com o que lhe acontece, infeliz porque cho- as para comporem uma imagem perfeita e segura de
veu, a peste recrudesceu ou de novo a guerra vem por felicidade. No comeo da viso moderna da inffi11cia,
a. indispensvel que ele seja insatisfeito constituti- elas eram vestidas aqum da diferena sexual, seu '-de-
\
66 A adolescncia A adolescncia como deal cultural 67
sejo era negado por ser para elas uma possvel fonte de Por isso mesmo precisamos lutar para que nossos
inquietao. Ns precisamos ver as crianas ao abrigo anseios passem para elas nas melhores condies pos-
das imperfeies e das mgoas: completamente dife- sveis, ou seja, com a maior chance de serem satisfeitos
rentes de ns, por serem protegidas da corrida por elas no futuro.
insatisfatria ao sexo e ao dinheiro. Amparadas dane- 7- Paradoxalmente, as crianas devem ao mesmo tem-
cessidade, no desejantes, elas so sorridentes, amadas, ,-po ser felizes e se preparar ativamente para consegui-
encantadas: vivem e1n outro mundo. ',rem tudo o que ns no conseguimos. A transmisso
Essa imagem de felicidade, inocncia e paz que .dessa tarefa crucial, constitutiva da infncia moderna,
\ construmos como um prespio permanente no meio que portanto no s uma imagem esttica de felicida-
de nossas casas a perfeio que nunca alcanamos de, mas uma espcie de promessa.
"'nem alcanaremos, pois ser insatisfeitos para ns Por isso, a modernidade pode ser paradoxal-
definitrio. Por isso, a infncia, mais do que uma uto- mente hiperprotetora e violenta com suas crianas:
pia, nossa idade de ouro. ela venera, protege as que tm condio de ser por-
De certa forma, a infncia moderna o verda- tadoras da promessa, ou seja, mandatrias dos so-
deiro grande resto da sociedade tradicional na socie- nhos dos adultos. E pode brutalmente deixar cair,
dade moderna: as crianas so as nicas que gozam de abandonar, aquelas que por qualquer razo no tm
direitos s pelo fato de serem pequenas, ou seja, de ou parecem no ter condio de realizar um dia
terem nascido crianas. Uma infncia feliz a nica nossas esperanas (o nico corretivo a essa brutali-
coisa qual teramos direito de nascena. dade que sempre sobra algum gosto esttico de
Isso o que parece primeira vista. Mas o ver- ver crianas felizes).
me da modernidade est no encanto desse jardim re- Por isso tambm a modernidade sofre de con-
servado, onde artificialmente contemplaramos nossas tradies pedaggicas: como preparar as crianas para
crianas felizes. o futuro sem comprometer a imagem de sua felicida-
A infncia no oferece s um prazer esttico: a , de? Surge assim a utopia do aprender prazeroso, da
imagem da felicidade infantil tem tambm outra fun- aula que seria eficaz como um cursinho acelerado e
o. Essas crianas felizes so tambm encarregadas de divertida como um jogo de jardim da infncia. Essas
dar um sentido a nossa corrida social - garantindo contradies no ajudando, a preparao fica cada vez
que, embora incompleta, ela ser continuada. Elas so mais longa e laboriosa.
as herdeiras de nossos anseios, de nossa insatisfao Quanto mais a infncia se afasta de um simples
constitutiva. ! consolo esttico, quanto mais encarregada de prepa-
Portanto nos deleitamos na imagem de sua feli- )\rar o futuro, ou seja, de se preparar para alcanar um
r cidade, como se esta nos consolasse de nosso fracasso. '(impossvel) sucesso que faltou aos adultos, tanto mais
Ou, melhor ainda, como se demonstrasse nosso suces- ela se prolonga. Isso inevitavelmente fora a inveno
so: fracassamos ns, mas elas so felizes e seguiro sen- da adolescncia, que um derivado contemporneo
do, dando assim completude a nossas falhas. da infncia moderna.
68 A adolescnca A adolescnca como ideal cultural 69
..L
70 A adolescnca A adolescnca como ideal cultural 71
dos inflacionados do Quarto Mundo e mesmo assim importante quanto crisma, bar mitzvah ou equivalente.
eternos ganhadores da loteria. As maneiras em pblico eram, do mesmo jeito, inspi-
Talvez adoremos mais essa imagem do que a ima- radas pelos adultos. Chegando em casa da escola, os
gem das crianas que nos extasiava. Pois propriamen- jovens deviam trocar da roupa de rua para a roupa de
te uma imagem de ns mesmos gozando, felizes, sem casa (isso porque se presumia que uma "criana" se
impedimento ou quase. Gostamos tanto que uma pena sujasse, deitasse no cho etc.).
nos confinarmos na contemplao esttica ou no so- A vontade frustrada de poder ficar o dia inteiro de
nhoj Por que simplesmente no imit-los? Concreta- ( palet e n de gravata tem como paralelo hoje a gran-
mente no simples, pois quem vai nos dar a mesada? : de vontade dos adultos de poderem enfim se vestir como
Mas podemos, por exemplo, imitar seus estilos.'\ \ adolescentes nos domingos e mesmo nas sextas-feiras
(A adolescncia se torna assim um ideal dos adul- ) informais permitidas nos escritrios. A vontade de usar
tos~Ou seja, os adultos no se contentam mais com o I sapato amarrado at em casa corresponde hoje vonta-
consolo oferecido pela viso das criancinhas felizes. \ de adulta de usar tnis at quando no a hora de
Eles encontram nos adolescentes idealizados um pra- praticar nenhum esporte.
zer menos utpico e mais narcisista.{ Os ad<?lescentes Tambm os adolescentes dos anos 60 procura-
oferecem uma imagem plausvel, praticvel.\ vam no s parecer adultos, mas se aventurar em qua-
Idealizar os prazeres da adolescncia (que, contra- lidades de experincia adultas. Se possvel, mais adultas
riamente infncia, imitvel) uma maneira de que- do que a experincia dos adultos. Algumas ativida-
rer menos consolo com perspectivas futuras (o que a des adolescentes (desde as brincadeiras at a
infncia oferece) e mais satisfao imediatafQueremos masturbao) eram culpadas e vergonhosas, no tan-
ver os adolescentes felizes porque eles seriam apenas a to por serem proibidas, mas por serem infantis, ou
caricatura despreocupada de ns mesmosprortanto, atin- seja, prova de distncia da idade adulta, de falta da
gveis, a nosso alcance. maturidade que daria acesso ao reconhecimento so-
Essa idealizao no escapa aos prprios ado- cial e independncia.
lescentes. Talvez por isso os adolescentes dos anos 60 aca-
At a metade dos anos 60, claramente o ideal baram sendo uma gerao de indivduos politicamen-
(inclusive esttico) da maioria dos adolescentes era a . te engajados, para mitigar e esconder uma vontade de
idade adulta.~O que os adolescentes dessa poca mais \ folia atrs da seriedade da conscincia social. O ideal
queriam era ser aceitos e reconhecidos como adultos, :deles era a vida adulta. O desejo era no de se confor-
obter, em suma, pleno acesso tribo.\J.sso provavel- . mar aos adultos, mas de no se diferenciar deles por
mente no diferente do que querem os adolescentes ser infantis, adolescentes.
de hoje. Mas, justamente com esse fim, os de ento se . Atrs desses adolescentes, havia as crianas, que
esforavam em imitar os adultos(O aniversrio (12 ou ( eram aparentemente felizes num mundo de contos de
13 anos) em que as calas compridas eram autorizadas \fada e assim ficariam at descobrirem que o que im-
era esperado como se fosse mais importante ou to )portava era ser adulto. Elas eram idealizadas por todos,
72 A adolesc~Jca A adolescHca como deal cultural 73
(inas como um daguerretipo da felicidade de outros / A esttica da adolescncia atravessa assim todas as
j tempos. As crianas eram decorativas. O ideal eram os idades. E os continentes. Os adolescentes so os mes-
\ adultos, l na frente. mos no mundo inteiro ou, ao menos, no mundo oci-
- ___ Isso comeou a mudar bem naquela poca. Aos \ ' dental. Mesmas modas, mesmos estilos, mesmas msicas .
(poucos, os adolescentes se tornaram o ideal dos adul- . X. .~~Uma mesmice muito americana. De fato, a adolescn-
l tos. Logo, ao interpretar o desejo dos adultos e procu- ( <,JP) cia foi inventada e vingou nos Estados Unidos. No
1
Pequena bblogrrifa comentada 77
de gangues, a idia da adolescncia como opos1ao Depois da Segunda Guerra Mundial, a figura do
delinqente contra a cultura e o mundo adulto se ins- adolescente perdido e transgressor assume dignidade
talou desde ento. Cohen crucial na constituio do literria com The Catcher in the Rye de J.D. Salinger
pesadelo do adolescente delinqente. em 19 51 (O Apanha dor no Campo de Centeio. Rio de
Daniel Offer (com Melvin Sabshin e Judith Janeiro: Autor, 1999).
L. Offer), The Psychological World of the Teenager: a Desde essa poca, a vasta produo cultural que
Study of Normal Adolescent Boys. New York: Basic idealiza a adolescncia constantemente acompanha-
Books, 1969. da pelo tema narrativo do adulto insatisfeito, queren-
Em contraponto a Cohen, embora tarde demais do voltar a uma adolescncia idealizada, feita de
para corrigir seus efeitos de desconfiana, Daniel Offer liberdade e de crises salutares.
veio lembrar que os adolescentes reais so mais nor- Um dos maiores romances americanos do ps-
mais do que a "adolescncia".A produo de Offer se guerra Revolutionary Road, de Richard Yates (1961),
estende at os anos 80. em que a monotonia da vida suburbana se torna in-
Erik Erikson, Identidade,]uventude e Crise. Rio tolervel, por causa da urgncia de interromper a
de Janeiro: Guanabara Koogan, 1987 (original 1968). rotina adulta para poder (sonho adolescente) "se
Enfim, Erikson entende a crise da adolescn- achar". Querendo dispensar a leitura de Yates (que
cia como efeito dos nossos tempos. Para ele, a ra- no foi traduzido para o portugus), possvel re-
pidez das mudanas na modernidade torna correr ao filme American Beauty, de Sam Mendes
problemtica a transmisso de uma tradio de pais (1999), em que a personagem principal um her-
para filhos adolescentes. Estes devem portanto se deiro direto do heri de Yates.
constituir, se inventar, sem referncias estveis. Essa nostalgia adulta da adolescncia, que atra-
Erikson foi o primeiro a usar o termo "moratria" vessa a segunda metade do sculo, a fora atrs das
para falar da adolescncia. Tambm foi um dos ra- mos que nesse perodo desenham uma srie de re-
ros a perceber que a crise da adolescncia se tor- tratos ideais de adolescentes. O cinema, pretendendo
nava muito dificil de administrar,j que o mesmo apresentar ou explicar o que seria a adolescncia, ilus-
tipo de crise comeava a assolar os adultos mo- tra de fato os sonhos adultos sobre a adolescncia. Ele
dernos. nos conta qual adolescente os adultos gostariam de
voltar a ser, de ter sido ou de continuar sendo.
II. O segundo caminho o das produes cultu- A srie comea com Rebel Without a Cause
rais que instituem a adolescncia como ideal social. A Uuventude Transviada), de Nicholas Ray (1955), com
idealizao da adolescncia preparada pela idealizao James Dean no papel de um jovem sedento de uma
da infncia insubordinada. O exemplo mais famoso, vida mais intensa e verdadeira do que a intolervel
ainda do sculo 19, o Huckleberry Finn de Mark fraqueza pequeno-burguesa do pai. Em contraponto,
Twain (h vrias edies portuguesas disponveis de Pcnic (Frias de Amor), de Joshua Logan (1955), nos
As Aventuras de Huckleberry Finn). fala de uma menina, Kim Novak, que, na sua escolha
Pequena biblografa comentada 81
8o A adolescnca
Philippe Aries, Histria Social da Criana e da Fa-
amorosa, mais sincera do que a me interesseira. O
mlia. Rio de Janeiro: LTC, 1981 (original 1960).
esteretipo do adulto hipcrita que tudo sacrifica a
Philippe Aries, Homem Perante a Morte, 2 vol. Lis-
falsos valores pintado por adultos e para adultos.
boa: Europa-Amrica, s/ d.
Em suma, os adultos adoram se ver e julgar pelos
olhos do adolescente ideal que eles imaginam nos-
talgicamente.
Os filmes com Elvis Presley insistem no charme
inquietante do adolescente pouco recomendvel. O
heri de Jailhouse Rock (O Prisioneiro do Rock), de
Richard Thorpe (19 57), se torna cantor na cadeia;
verifiquem a cara dos pais da moa que se apaixona
por ele. TREM
::r L::~ I .
impossvel oferecer aqui uma filmografia da .>lDiioreca Jos de Akm-:flt
adolescncia.Apenas podemos indicar que, depois desse
comeo, ela poderia terminar com dois filmes. Kids,
-
de Leo Fitzpatrick (1995), seria exemplo do ideal de
transgresso e de gozo herico do adolescente. Do
outro lado, estaria American Pie, de Paul Weitz (1999),
como exemplo de uma viso da adolescncia engra-
ada e mais prxima da realidade. instrutivo consi-
derar que Kids fez sucesso com adolescentes e adultos.
American Pie seduziu apenas os adolescentes.
Sobre a constituio do ideal adolescente nos
Estados Unidos dos anos 50, vale conferir (no mni-
mo em sua segunda parte):
Luisa Passerini, A Juventude, Metfora da Mudana
Social. Dois Debates Sobre os Jovens: a Itlia Fascista e os
Estados Unidos da Dcada de 50, em: Histria dos Jovens,
vol. 12, "A poca Contempornea". So Paulo: Com-
panhia das Letras, 1996.