Kiju Sakai - o Antropologo Que Dedicou Sua Vida
Kiju Sakai - o Antropologo Que Dedicou Sua Vida
Kiju Sakai - o Antropologo Que Dedicou Sua Vida
2016
Kiju Sakai: o antroplogo japons que dedicou sua vida a estudar o Brasil na
primeira metade do sculo XX
Kiju Sakai: the Japanese anthropologist who dedicated his life to study Brazil in the
first half of the 20th century
Resumo: Kiju Sakai foi um antroplogo e arquelogo japons que veio ao Brasil em 1934. Ao longo de sua vida, ele escavou diversos
stios e formou uma importante coleo arqueolgica. At recentemente, essa coleo no estava institucionalizada e a biografia
de Sakai era desconhecida. O estudo apresenta a histria de constituio desta coleo, a partir da vida do antroplogo, e
trazer dados sobre a curadoria do material, seus desdobramentos e contribuies para a histria da Arqueologia brasileira
no incio do sculo XX e o papel dos amadores e de instituies como a Sociedade Archaeolgica Brasileira de Amadores
(SABA) e o Instituto Kurihara nas pesquisas desenvolvidas no estado de So Paulo. A Coleo Arqueolgica Kiju Sakai se
encontra hoje no Museu Histrico e Arqueolgico de Lins, no estado de So Paulo, e conta com os mais distintos tipos
de material arqueolgico, dentre os quais se destacam: cermicas Tupi e J; remanescentes humanos, provenientes de
sambaquis e de montculos funerrios Kaingang; artefatos lticos, lascados e polidos, de sambaquis; pontas feitas de ferro;
e medalhas do Servio Nacional de Proteo ao ndio. Alm do material arqueolgico, tambm se encontra no acervo a
documentao primria que Sakai produziu, incluindo mapas de disperso lingustica na Amrica do Sul escrito em japons,
dirios de campo e aquarelas representando os motivos presentes em cermica Tupi.
Abstract: Kiju Sakai was a Japanese anthropologist and archaeologist who came to Brazil in 1934. Throughout his life, he excavated
many sites and formed an important archaeological collection. Until recently, however, the collection was not officially
recognized and few academics knew of its existence. The very biography of Sakai is still largely unknown. The objectives of
this study are to present the academic community with the collection, to introduce Sakais biography, to bring information
about the curation of the material and its contribution to the history of the Brazilian Archaeology at the beginning of the
19th century as well as the role of the non-professional archaeologists and institutions such as th Sociedade Archaeolgica
Brasileira de Amadores and the Instituto Kurihara in the research developed in Sao Paulo State. The Archaeological
Collection Kiju Sakai is now in the newly built Museum of History and Archaeology of Lins, State of So Paulo. The
collection includes the most distinct types of archaeological material among which: ceramics of Tupi and J groups; human
skeletons from riverine shell middens and Kaingang burial mounds, flaked and polished stone artifacts, projectile points
made of iron and medals of the Servio Nacional de Proteo ao ndio (the National Bureau for the Protection of Native
Brazilians). In addition to the archaeological items, the collection also includes the primary documentation Sakai produced,
including maps of linguistic dispersion in South America written in Japanese, field diaries and watercolors representing the
motifs present in Tupi ceramics.
Keywords: History of Archaeology. Japanese imigration. Kurihara Institution. So Paulo. Burial sites.
HATTORI, Marcia Lika; STRAUSS, Andr. Kiju Sakai: o antroplogo japons que dedicou sua vida a estudar o Brasil na primeira metade
do sculo XX. Boletim do Museu Paraense Emlio Goeldi. Cincias Humanas, v. 11, n. 3, p. 715-726, set.-dez. 2016. DOI: http://dx.doi.
org/10.1590/1981.81222016000300010.
Autora para correspondncia: Marcia Lika Hattori. Museu de Arqueologia e Etnologia. Universidade de So Paulo. Av. Prof. Almeida Prado.
05508-900. So Paulo, SP, Brasil (marcia.hattori@gmail.com).
Recebido em 18/06/2015
Aprovado em 18/07/2016
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Kiju Sakai: o antroplogo japons que dedicou sua vida a estudar o Brasil na primeira metade do sculo XX
Em 2002, uma coleo arqueolgica doada Universidade incio no Japo, onde, ainda criana, j se interessava pelas
de So Paulo (USP) e fica sob guarda do Laboratrio de ligaes fonticas entre as palavras do japons moderno
Estudos Evolutivos Humanos (LEEH), do Instituto de e aquelas oriundas dos antigos habitantes da provncia de
Biocincias (IB) dessa Universidade. Tratava-se da coleo Hokkaido. No s a vocao de arquelogo j se fazia
de um antroplogo japons, que falecera em Ferraz de presente, como tambm a de etngrafo, que levava o
Vasconcelos, na regio da Grande So Paulo, cujo acervo jovem Sakai a passar horas em meio s aldeias do interior
estava guardado no asilo onde vivia. Parte desse material do Japo (por exemplo a aldeia de Shiraoi), com o intuito de
era exposto em estantes para os visitantes do local. Aps conhecer seu modus-vivendi, nas palavras do prprio Sakai.
conversas entre as instituies, a coleo transportada para J no Brasil, desperta seu interesse perceber, em
a USP sob responsabilidade dos professores Astolfo Gomes sua viagem pelo interior de So Paulo, que as localidades,
Arajo e Walter Alves Neves. Aquilo que inicialmente se animais e plantas tinham nomes indgenas. Junto com
pensava ser uma coleo com artefatos fortuitos, coletados outros imigrantes japoneses, ele passa a integrar diferentes
sem referncia, era o acervo de uma instituio cientfica grupos cientficos que pesquisavam em territrio brasileiro,
do incio do sculo XX, que estava sob responsabilidade ficando responsvel pelas reas de Antropologia e
de Kiju Sakai, coordenador dos trabalhos de Antropologia Arqueologia. Documentou diferentes modos de vida no
e Arqueologia, enquanto outros, como Goro Hashimoto, Vale do Ribeira e empreendeu expedies cientficas
estavam frente do inventrio de plantas brasileiras. aos sambaquis no sul do estado de So Paulo e aos stios
Este texto apresenta a histria da constituio relacionados a grupos Kaingang, no noroeste do estado.
dessa coleo, a partir da vida de Kiju Sakai, e traz dados Os locais escolhidos estavam sempre relacionados
sobre a curadoria do material, seus desdobramentos e aos ncleos de colonizao para onde eram levados os
contribuies para a histria da Arqueologia brasileira, no imigrantes japoneses (Figura 1). Um deles era o Ncleo
incio do sculo XX, e sobre o papel dos amadores nas das Alianas, no atual municpio de Mirandpolis (SP),
pesquisas desenvolvidas no estado de So Paulo. local onde, provvel, Sakai se fixou inicialmente. Digno
de nota que nenhum outro ncleo de colonizao
O ANTROPLOGO IMIGRANTE: KIJU SAKAI conseguiu reunir tantos intelectuais, incluindo militares,
Em maio de 1934, Kiju Sakai chegou ao Brasil, pas que,
imaginava ele, seria sua residncia permanente. Nascido no
Japo, sua histria confunde-se com a de muitos outros que
imigraram para o Brasil em busca de melhores condies de
vida. Seus pais eram de Toyama e instalaram-se em Hokkaido.
Sakai nasceu em Tomakomai, em 1910, mas, posteriormente,
transferiu seu registro civil para a vila de Hiroshima, na comarca
de Sapporo. Passou a infncia na cidade de Sapporo. Cursou
o ensino primrio na Escola Primria de Kita-Kuj e, aps
concluir os estudos na Escola Secundria de Sapporo I,
Figura 1. Mapa do estado de So Paulo com as localidades visitadas
fixou-se em Tquio. Ficou rfo enquanto cursava Cincias por Sakai. O ttulo do mapa : Estado de So Paulo. Colnia das
Comerciais no Instituto Meiji Gakuin, que abandonou sem Alianas. O mapa faz referncia colnia das Alianas e ao Vale do
Ribeira locais onde o antroplogo desenvolveu as pesquisas - e aos
concluir para ir estudar na Escola de Colonizao Ultramarina estados que fazem fronteira - Mato Grosso, Minas Gerais, Rio de
de Sapporo (Sakai, 1979). Sua jornada na Antropologia teve Janeiro e Paran. Fonte: Sakai ([s.d.]).
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Sakai (1981) cita tambm um convnio firmado com o Observatrio Astronmico Hanayama, de Kioto, Japo, para o intercmbio de
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sede do Instituto transferida do Ncleo das Alianas, Paulo (Figuras 4 a 6); e com os Kadiwu, no Mato Grosso,
noroeste de So Paulo, para a capital do estado, no este ltimo pesquisado por Osamu Sato.
bairro da Liberdade, onde o acervo ficava exposto. O Outra instituio, criada em 1937 com o objetivo
Instituto Kurihara , na dcada de 1930, junto com o de empreender pesquisas arqueolgicas, surge no seio
Museu Paulista (criado em 1894) e o Museu de Etnografia do Instituto Kurihara: a Sociedade Archaeologica Brasileira
(vinculado Faculdade de Filosofia), uma das poucas de Amadores (Wichers, 2012). Parte dos integrantes,
instituies que abrigam acervos arqueolgicos no como Shinichi Kamiya, participava tambm do Instituto
perodo (Wichers, 2012). Kurihara. importante destacar que os membros do
Os dados referentes s pesquisas arqueolgicas, grupo recm-criado ocupavam cargos de bastante
com base na documentao manuseada pelos presentes destaque, como o presidente da Sociedade, Kozo Itige,
autores, apontam que o Instituto Kurihara, sob cnsul-geral do Japo poca, e Carlos Yoshiyuki Kato,
coordenao de Kiju Sakai, empreendeu de maneira ligado ao Banco Amrica do Sul; Midori Kobayashi, um
contnua pesquisas de campo em ao menos seis educador protestante, responsvel pelo internato Seish
municpios do estado de So Paulo, escavou ao menos Gijuku; e Kiyoshi Zenpati Ando, jornalista de orientao
sete stios arqueolgicos e realizou etnografias em dois marxista. Shinichi Kamiya, que imigrou para o Brasil em
estados: com os guaranis, no litoral do estado de So 1926, fundador do Instituto Kurihara.2
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Figura 5. Estudo das representaes encontradas nos artefatos dos Figura 8. No Rio do Azeite, no Vale do Ribeira, retornando da aldeia
guaranis em Itariry. Fonte: Sakai (1940b). Guarani. Fonte: Sakai (1940b).
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do Alecrim, em 1936. As autoridades locais os consideravam o que fazer caso o Brasil e o Japo entrassem na guerra em
estrangeiros e chegaram a apreender trs esqueletos lados opostos, uma vez que ele era brasileiro e tambm
humanos em Pedro de Toledo (SP). Sob o nome de SABA, se sentia japons (Sakai, 1981).
eles conseguem a autorizao para escavaes, que se Em 1940, a SABA publica um relatrio denominado
seguiram, sistematicamente, por dois meses em 1937, Notas e informaes sobre objetos indgenas achados
mobilizando mais de 150 pessoas no sambaqui de Jipovura. em escavaes efetuadas em Jypubura, Alecrim e
O contexto da eminente guerra tambm ressaltado Fazenda Aliana, 1940 (Sakai, 1940a). Sistematizando os
por Sakai (1981). Durante os trabalhos de campo no dados apresentados por Sakai e relacionados durao
sambaqui de Jipovura, o arquelogo japons Ryuzo Torii faz das etapas de campo, realizao, stios arqueolgicos
uma apresentao sobre arqueologia para os moradores trabalhados, financiamento e equipe, temos, para as duas
dos ncleos de colonizao, a maior parte deles imigrantes instituies SABA e Instituto Kurihara , um verdadeiro
e descendentes de japoneses. Um dos moradores, filho de empreendimento em termos de pesquisas desenvolvidas
japoneses nascido no Brasil, perguntou ao arquelogo Torii no incio dos anos de 1930 (Quadro 1).
SABA
Kiju Sakai (individualmente) Naturais Kurihara. Naturais Kurihara.
28 de outubro de 1940
(Lins - SP)
Primeira etapa: 29 de
dezembro de 1936 -
Maro de 1938 (Tmulo
interrupo da polcia local
De 21 de abril de 1937 a 12 de A de Promisso - SP)
Durao
31 de dezembro de
junho de 1937 (praticamente dois
Segunda etapa: 19 a 23 de 1939 a 6 de janeiro
meses de campo) 12 de dezembro de 1938
junho de 1937 de 1940.
(Tmulo B de Promisso - SP)
Terceira etapa: um ano
1 de agosto de 1937 (Tmulo
de Guararapes - SP)
Sambaqui I - sete
Fazenda Ouro Branco, distrito
quilmetros da estao frrea
de Macuco, municpio de
de Pedro de Toledo (SP), na
Stios arqueolgicos
Rio do Peixe, Rio Brao do Colnia de Imigrao Katsura, Colnia japonesa Uetsuka, interior de Jabotatuba,
Meio e Rio Mariano administrada pela colnia de bairro de Bonsucesso, possivelmente
imigrao Ultramarina S. A. municpio de Promisso (SP) no municpio de
Sambaqui II - quatro
Itanham
quilmetros da Vila de Trs
Colnia de Jangada, municpio
Barras, subindo a margem do
de Guararapes (SP)
Rio do Peixe
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Quadro 1. (Concluso)
Pesquisa arqueolgica no Pesquisa arqueolgica nos
Pesquisa arqueolgica no Expedio ao
Sambaqui da Vila de Jipovura, tmulos de terra do interior
Sambaqui de Alecrim Rio Preto e Itariry
no municpio de Iguape (SP) de So Paulo
autorizao de pesquisa
Tmulo A de Promisso
(SP): Shinichi Kamiya e Kiju
Primeira etapa: Kozo Itige Sakai, do Instituto Kurihara, e
Goro Hashimoto,
176 pessoas, alm dos moradores da regio;
Equipe
A Kaigai Kogyo Kabushiki Kaisha, empresa de desenvolvimento industrial e rural de apoio aos imigrantes japoneses implantada em Registro,
4
em 1912, poca um bairro pertencente ao municpio de Iguape. A KKKK, como ficou conhecida, funcionava como beneficiadora de
arroz e como entreposto cooperativo. Em 1937, a empresa foi dissolvida e os seus bens vendidos a diversos proprietrios. O conjunto
formado por amplos galpes em tijolos aparentes, com arcadas nas elevaes principais, envolvendo janelas e portas. As coberturas
so em duas guas, apoiadas sobre estruturas de tesouras metlicas. Em 2000, o Governo Estadual iniciou a restaurao do edifcio que
atualmente abriga o Centro de Formao Continuada de Gestores da Secretaria de Estado da Educao e o Memorial da Imigrao
Japonesa. Fonte: http://www.cultura.sp.gov.br/portal/site/SEC/menuitem.bb3205c597b9e36c3664eb10e2308ca0/?vgnextoid=91b6ff
bae7ac1210VgnVCM1000002e03c80aRCRD&Id=f4031aa56faac010VgnVCM2000000301a8c0____
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A CONSTRUO DE UMA NARRATIVA: por Sakai, soma o total de 1916 fragmentos sseos
A CURADORIA DA COLEO relativos a, pelo menos, 30 sepultamentos humanos. Os
Toda a documentao que se encontrava no asilo em remanescentes arqueolgicos no esquelticos somam
Ferraz de Vasconcelos (SP) e que foi levada ao Laboratrio 6924 itens catalogados.
de Estudos Evolutivos Humanos (LEEH-IB-USP) fora
submetida a um tratamento de higienizao. A coleo
arqueolgica, composta por artefatos lticos, cermica,
artefatos sseos, fauna, remanescentes humanos, entre
outros itens, foi curada, catalogada, organizada, e seu
inventrio foi entregue ao Museu Histrico e Arqueolgico
de Lins (SP), depositrio da coleo. A partir da organizao
desse material, pudemos desdobrar a histria de Sakai
e construir uma narrativa sobre parte das pesquisas
arqueolgicas do incio do sculo XX.
Com seu retorno ao Brasil, bastante conhecido na
comunidade japonesa, Kiju Sakai acaba recebendo artefatos
encontrados por agricultores e, a partir do que recebe,
elabora relatrios com a apresentao de quem enviou as
peas, a localidade de onde foram retiradas e uma listagem
com numerao e descrio das peas recebidas (Figuras
9 a 13). A curadoria do acervo possibilitou entender que
a coleo composta por um conjunto relacionado s
pesquisas empreendidas por Sakai, a partir de instituies
como a SABA e o Instituto Kurihara, na dcada de 1930,
e outra parte, relacionada a um conjunto formado por
diversas doaes feitas por imigrantes japoneses e seus Figura 9. Cadernos de campo de Kiju Sakai. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
descendentes a Kiju Sakai. Essas doaes vm, em sua
maioria, de diferentes municpios do estado de So Paulo,
como Marlia, Mirandpolis, Lenis Paulistas, Vinhedo,
Registro, Analndia e Mogi das Cruzes. Dentre as peas
oriundas de outros estados, a maioria proveniente de
Guara, no Paran, ainda que material de Minas Gerais,
Mato Grosso do Sul e nove peas, cuja procedncia
indicada como Amaznia, tambm estejam presentes. O
predomnio de peas vindas do Paran, possivelmente,
indica a presena nesse estado de um outro pesquisador
japons, que, posteriormente, doou sua coleo a Sakai.
A curadoria dos remanescentes humanos, exumados Figura 10. Cermica Tupi pertencente coleo arqueolgica Kiju
durante as pesquisas arqueolgicas empreendidas Sakai. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
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Figura 11. Aquarelas pintadas por Sakai para documentar os fragmentos de cermica coletados. Fonte: Sakai, ([s. d.]).
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O material etnogrfico , majoritariamente, oriundo Arqueologia brasileira pouco abordado, que antecede a
do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, , possivelmente, institucionalizao da Arqueologia como cincia, somado
relacionado s pesquisas empreendidas por Osamu Sato. A a uma desconstruo da figura de Sakai como mero
seo da biblioteca do Instituto Kurihara com os livros sobre colecionador. Sua preocupao na divulgao das pesquisas
Arqueologia e Antropologia tambm ficou sob a guarda de que desenvolveu, seu retorno ao Brasil e encontro com
Kiju Sakai. Obras de Angyone Costa, Rudolf von Ihering, a coleo arqueolgica e a documentao relacionada
Estevo Pinto, Raymundo Panafort, Roquete Pinto, Teodoro nos mostram o pesquisador engajado (a seu tempo).
Sampaio, Hans Staden, Jean de Lery, Visconde de Taunay, Igualmente, os artefatos reunidos por Sakai, doados a
General Couto de Magalhes, Anbal Mattos, Benedito ele por diferentes imigrantes japoneses que encontravam
Calixto, Raymundo Lopes e Joo Barbosa Rodrigues essas peas no manejo com a terra, apontam tambm para
compunham o acervo de 119 livros que acompanhou a outra relao, que possibilita repensar o que valorizao
coleo arqueolgica. O restante da documentao e acervo do patrimnio, conforme salienta Bezerra (2011), quando
do Instituto Kurihara est, atualmente, em um centro de refletimos sobre a relao das populaes com os lugares
pesquisas na regio de Itaquera, no municpio de So Paulo. e coisas. O exemplo, apresentado por Alfonso e Hattori
Da documentao primria associada a Sakai constam (2012), sobre a construo do tori (templo japons) ao lado
131 textos, entre publicaes, cadernos de campo, jornais, do sepultamento Kaingang e a reverncia dos imigrantes
panfletos, pasta com desenhos das cermicas Kadiwu, japoneses aos indgenas ali sepultados, nos possibilita
relatrios, entre outros. repensar outras relaes de pertencimento.
Algumas questes permanecem abertas: por
CONSIDERAES FINAIS que havia o interesse do governo japons em financiar
As etapas de escavao realizadas nas colnias japonesas as pesquisas no territrio brasileiro? Seria apenas um
do Vale do Ribeira e do Noroeste Paulista, muito mais do elemento da estratgia colonialista? De alguma maneira,
que achados fortuitos, se delineavam como verdadeiras o dilogo entre as pesquisas (ao menos as arqueolgicas)
investigaes cientficas, com pesquisadores de do Brasil e do Japo certamente fora muito mais estreito
diferentes reas: Agronomia, Paleontologia, Astronomia no incio do sculo XX e foi profundamente afetado pela
e Arqueologia. Durante seu primeiro perodo no Segunda Guerra Mundial. Arquelogos como Ryujiro e
Brasil, Sakai dedicou-se s pesquisas de maneira quase Ryuzo Torii5, da Universidade de Sophia, estiveram no
sistemtica, nos anos de 1937, 1938, 1939, 1940 e 1941 Brasil e participaram de escavaes no Vale do Ribeira
(Sakai, 1940a, 1940b, 1979, 1981), quando viaja ao Japo. (SP), em dilogo com as instituies em parte financiadas
O contexto histrico, a Segunda Guerra Mundial e o pelo governo japons, o Instituto Kurihara e a Sociedade
envolvimento do Japo e do Brasil no conflito acabam por Archaeologica Brasileira de Amadores (SABA). Ichiro
interromper, de maneira decisiva, as pesquisas cientficas Yawata, da Universidade de Tquio, veio em outro
desenvolvidas pelos imigrantes japoneses. momento, no ano de 1954, para o primeiro Congresso
A curadoria do acervo Kiju Sakai possibilitou construir Internacional de Americanistas, realizado em So Paulo,
uma nova narrativa sobre um momento da histria da e explorou sambaquis no municpio de Cananeia, litoral
Ryuzo Torii (1870-1953) era antroplogo, etnlogo e arquelogo. considerado o pai da Antropologia no Japo. Desenvolveu
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pesquisas na China, Taiwan, Coreia, Rssia e na Amrica do Sul. Segundo pesquisadores, seus trabalhos de campo ascendem e decaem
paralelamente ao imperialismo japons.
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do estado. Segundo Sakai (1981), o arquelogo japons BARRETO, Cristiana. A construo de um passado pr-colonial:
uma breve histria da Arqueologia no Brasil. Revista USP, So
descreveu essa pesquisa em um artigo Correspondncia Paulo, n. 44, p. 32-51, dez.-fev. 1999-2000.
Arqueolgica, da Universidade de Nippon, sob o ttulo
BEZERRA, Mrcia. As moedas dos ndios: um estudo de
Notcias da Amrica do Sul (Yawata, 1955). caso sobre os significados do patrimnio arqueolgico para os
Por fim, fundamental salientar que a histria da moradores da Vila de Joanes, ilha de Maraj, Brasil. Boletim do
Museu Paraense Emlio Goeldi. Cincias Humanas, Belm, v. 6,
arqueologia no pas ainda trata esse perodo de atuao n. 1, p. 57-70, jan.-abr. 2011.
do antroplogo Kiju Sakai (perodo do entreguerras)
como poca dos amadores ou de poucas pesquisas HAAG, Carlos. A terra da cincia nascente: a contribuio nipnica
para a pesquisa brasileira. Revista Pesquisa FAPESP, n. 151, p.
arqueolgicas e de falta de recursos para manter a 86-89, set. 2008.
efervescncia da produo do sculo anterior (Barreto, NATURA. So Paulo: Instituto Kurihara da Cincia Natural
1999-2000). Retomar o histrico desses trabalhos, Brasileira, 1940-.
bem como realizar novas pesquisas com essa coleo, SAKAI, Kiju. Notas Arqueolgicas do Estado de So Paulo. So
certamente trar tona outros olhares para a histria da Paulo: Instituto Paulista de Arqueologia, 1981.
constituio da Arqueologia no Brasil. SAKAI, Kiju. Archaeological investigations in So Paulo, Brazil.
Anthropological papers of the Anthropological Society of Tokyo,
v. 87, n. 4, p. 25-52, 1979.
AGRADECIMENTOS
Nossos agradecimentos s pessoas que contriburam SAKAI, Kiju. Notas e informaes sobre objetos indgenas achados
em escavaes efetuadas em Jypubura, Alecrim e Fazenda
para a preservao deste acervo: Astolfo Arajo, Aliana. In: COLEO Arqueolgica Kiju Sakai: inventrio da
Walter Neves, Robson Rodrigues, Louise Alfonso, documentao. [S. l.]: SABA, 1940a. p. 1-40.
Camila Wichers, Tiago Hermenegildo, Camila Zanini, SAKAI, Kiju. Estudo das representaes encontradas nos artefatos
Francisco Pugliese, Rafael Santos, Marisa Afonso, Pedro dos guaranis em Itariry. Revista Natura, So Paulo, v. 1, n. 1, p.
99-114, 1940b. Expedio ao Rio Preto e Itariry.
Damin, Sara Herter, Michele Tizuka e Leticia Ribeiro. s
instituies LEEH-IB-USP, Fundao Arapor, Secretaria SAKAI, Kiju. Dirio de campo. In: COLEO Arqueolgica Kiju
Sakai [s. d.].
de Desenvolvimento Sustentvel de Lins (SP) e Centro de
Estudos Nipo-Brasileiros, na pessoa de Kenji Matsuzaka, SO PAULO (Estado). Sociedade Archaeologica Brasileira de
Amadores. Diario Oficial [do] Estado de So Paulo. So Paulo,
por todo o apoio. n. 57, p. 59, 13 mar. 1937.
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