Jose Jorge Carvalho - Espetacularização e Canibalização PDF
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Espetacularizao
e canibalizao das culturas
populares na Amrica Latina
Jos Jorge de Carvalho1
Resumo
Este ensaio oferece um quadro terico para a compreenso de
dois processos estticos, polticos e econmicos que afetam as cul-
turas populares em praticamente todos os pases latino-america-
nos: a espetacularizao e a canibalizao. Esses dois processos
esto vinculados a uma mercantilizao das formas culturais tradi-
cionais, que so expropriadas dos seus circuitos comunitrios por
agentes externos a servio do turismo e do entretenimento. Pro-
ponho um modelo conceitual para articular as intervenes de
todos os agentes envolvidos nessa conjuntura: os artistas popu-
lares e suas associaes, os organismos do Estado, os pesquisa-
dores e intelectuais, a sociedade civil, os produtores culturais, a
indstria cultural, as empresas de turismo e as de publicidade. O
objetivo do ensaio estimular cada vez mais o protagonismo dos
mestres, mestras e artistas na preservao e nas dinmicas de
crescimento e transformao das culturas populares.
Abstract
This article offers a theoretical framework for the understanding
of two aesthetic, political, and economic processes which affect
popular cultures in practically all the countries of Latin America:
spectacularization and cannibalization. These two processes are
connected to a mercantilization of traditional cultural forms which
are expropriated of their communal circuits of performance by
external agents working for the tourism and entertainment in-
dustry. I put forward a conceptual model to understand the articu-
lation of the roles played by all the actors involved in this process:
popular artists and their groups, State organisms, researchers and
intellectuals, civil society, cultural producers, culture industry, tou-
rism and advertisement industry. The principal aim of the article is
to stimulate the growing protagonism of traditional artists in the
preservation, expansion, and transformation of popular cultures.
Introduo
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2 O tema deste documento suscitou uma entrevista longa concedida em Buenos Aires
Revista Marea, em que amplio e ilustro de modo distinto alguns dos pontos aqui
desenvolvidos (Carvalho 2007). Todavia, o presente ensaio uma verso bastante
revisada e ampliada do texto inicial.
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3 Para mim, a msica popular comercial constitui aquele universo de gneros musicais
que j nascem integrados indstria fonogrfica. Por sua vez, as expresses musi-
cais ligadas s culturas populares so criadas e preservadas pelos grupos e pelas
comunidades e, mesmo que sejam eventualmente difundidas tambm atravs da
gravao, no mantm uma dependncia orgnica com a indstria fonogrfica,
como o caso da msica popular comercial.
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Espetacularizao
Defino espetacularizao como a operao tpica da sociedade de
massas, em que um evento, em geral de carter ritual ou artstico, criado
para atender a uma necessidade expressiva especfica de um grupo e pre-
servado e transmitido atravs de um circuito prprio, transformado em
espetculo para consumo de outro grupo, desvinculado da comunidade
de origem. O termo espetculo, com sua raiz specs, de olhar, vem do latim
que significa, basicamente, tudo o que chama a ateno, atrai e prende o
olhar (Cunha 1982). Dessa raiz derivou-se uma enorme gama de termos
vinculados ideia de distanciamento e objetificao de tipo ocularista:
spectator, aquele que v, o espectador que aprecia o spectaculum, a festa
pblica ou espetculo. E se speculum o espelho, aquele que observa
pode tambm dedicar-se speculatio e especular, isto , realizar um escru-
tnio objetificador a respeito do outro que para ele se espetaculariza, ou
por sua prpria deciso ou porque foi, por sua vez, espetacularizado a
servio de um terceiro (Chau 1988).
O processo de transformar eventos pblicos (sociais ou comunit-
rios) em espetculo possui uma longa histria e o exemplo mais bvio
seria o circo romano: o espetculo dos gladiadores no Coliseu tornou-se
smbolo da ideia de entretenimento, alienao e manipulao das massas
exploradas e excludas do poder poltico. Tambm na Europa ps-Re-
nascena, os autos-de-f da Inquisio, as execues e linchamentos dos
dspotas franceses, as coroaes barrocas, eram eventos concebidos
como espetculo para as massas. Contudo, um novo sentido de espet-
culo surgiu no incio do sculo XIX com a sociedade de massa da era
urbano-industrial, que passou a ser manipulada tanto pelo Estado como
pelo capital por meio da indstria cultural.
Resumindo um tema complexo, a espetacularizao das institui-
es pblicas e privadas no mundo moderno ocidental um processo
derivado diretamente de vrias revolues tecnolgicas coetneas ao alto
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7 Neil Gabler (1998) mostra, em um ensaio bastante original sobre a indstria cultural
norte-americana, como a representao espetacularizada da vida no cinema trans-
formou a prpria vida em um espetculo de cinema.
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uma dupla fantasia de prazer e posse pode ser realizada pelo turista
quando contrata os servios sexuais de uma jovem que tambm uma
brincante de algum grupo que se apresentou.
A estrutura do turismo tnico, que a principal responsvel pela
espetacularizao das tradies culturais exticas, o pano de fundo do
incidente do Cuzco e de inmeros outros que ocorrem frequentemente
durante as apresentaes de artistas populares. Vem a calhar aqui per-
feitamente uma frase do cineasta Dennis ORourke, autor do excelente
documentrio Viagens Canibais, de 1988, sobre o turismo tnico de bran-
cos ocidentais na Nova Guin: Uma lio do filme que os neogui-
neenses experimentam os seus mitos como mitos, enquanto os turistas
experimentam os seus mitos como sintomas e histeria (ORourke 1999;
Root 1996). A questo saber a quantas profanaes de turistas podem
os mitos nativos resistir at perder definitivamente o seu lugar de mito.
Podemos aqui lanar a proposta de um novo pacto entre governo,
sociedade civil, pesquisadores e artistas populares parecida com o que foi
feito em 1962, quando foi redigida a Carta do Samba, sob a coordenao
de Edison Carneiro (Carneiro 1962). Naquela poca, representantes de
todas as escolas de samba do Rio de Janeiro se reuniram no Instituto
Nacional do Folclore para definir qual seria o formato do samba, como
um gnero musical e da escola de samba, como espetculo coreogrfico.
A redao dessa Carta foi uma tentativa de colocar limites ao que
percebiam como uma descaracterizao daquelas formas artsticas. Assim
organizados, mestres e brincantes poderiam resistir melhor presso dos
empresrios, da classe mdia canibalizadora, das secretarias (municipal e
estadual) e das empresas de turismo.
Proponho ento que definamos coletivamente, entre mestres, pro-
dutores culturais, terceiro setor, pesquisadores e governo, o que exata-
mente pertence, do ponto de vista esttico, ao reino do negocivel, e o
que pertence ao reino do sagrado. O que ficar definido como sagrado
no poder mais ser descontextualizado para fins de entretenimento
ficando, portanto, declarado inegocivel. Quem quiser apreci-lo dever
obedecer s regras de tempo e espao que regem as tradies sagradas,
bem assim como as regras prprias de etiqueta que definem os papis e
os lugares sociais e fsicos dos que so iniciados na tradio ou membros
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Canibalizao
A espetacularizao consequncia de um longo processo de pre-
dao e expropriao das culturas populares que definimos como cani-
balizao. A metfora do canibalismo na rea da cultura j possui uma
longa trajetria e associada hoje em dia principalmente indstria do
turismo, que estimula as viagens de pessoas do Primeiro Mundo para
lugares distantes, onde habitam seres de costumes exticos, suposta-
mente inexplorados. Um dos costumes exticos que mais fascinam os
turistas ocidentais justamente o canibalismo! Ou seja, o turista embarca
em uma viagem de aventuras controlada pela companhia de turismo para
conhecer e tornar-se, por um breve tempo, canibal do canibal. O canibal
9 Sobre essa soluo dos Arturos, ver os ensaios de Glaura Lucas (2006a, 2006b).
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10 Um grande terico desse modelo de antropofagia foi Michel de Certeau (1986) que,
obviamente, no pode ser responsabilizado pelo uso ideolgico e legitimador de sua
teoria por parte dos intelectuais e acadmicos modernistas brasileiros.
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11 Em outro ensaio teorizei com detalhe esse processo, que denomino de mascarada
(Carvalho 2004a). Esse quarto sentido da canibalizao o que melhor revela a
dimenso racista dessa antropofagia cultural. Por exemplo, neste momento j temos
maracatus de brancos, congados de brancos, grupos de capoeira de brancos. Essa
prtica implica quase sempre em roubar a cena do outro, estar no lugar do outro.
Ela permite um paralelo com os Estados Unidos, na poca em que os chamados
minstrels, msicos brancos, pintavam-se de negros e apresentavam-se em shows, cari-
caturando uma gestualidade tradicionalmente negra. A mascarada significa, por-
tanto, brincar de ser o outro ocupando o lugar do outro.
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Bibliografia
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Filmografia
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Anexo
I.
Ns, participantes do II Encontro Sul-americano das Culturas
Populares, que representamos as delegaes da Argentina, Bolvia,
Brasil, Equador, Paraguai, Venezuela, com a presena de Cuba
como convidada, chamamos a ateno de nossos governos para
que reconheam o extraordinrio valor deste Encontro, que acei-
tem e incorporem as afirmaes e as propostas dos mestres e
mestras das culturas populares, que so a alma, o passado, o
presente e o futuro de nossa Amrica.
A presente reunio se conecta tambm com os alinhamentos da
Conveno sobre a Proteo e Promoo da Diversidade das
Expresses Culturais da UNESCO (outubro de 2005), que vem,
justamente, enfatizar a defesa, a valorizao e a promoo das
culturas tradicionais e o respeito diferena dos povos de todo o
mundo.
Este momento tem um grande valor histrico tambm porque,
em uma quarta semana de novembro (precisamente de 25 a 27 de
novembro de 1970), h 38 anos, foi realizada em Caracas a
primeira Reunio Interamericana de Especialistas em Etnomusico-
logia e Folclore, da qual resultou a Carta do Folclore Americano.
Naquela poca e naquele contexto social, cultural e poltico, a
Carta concretizou a aspirao de uma gerao de pesquisadores e
representantes de rgos estatais e internacionais de todo o conti-
nente para que as culturas tradicionais da Amrica Latina fossem
protegidas, difundidas e promovidas.
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II.
A partir do II Encontro Sul-americano das Culturas Populares, os
mestres e as mestras, os grupos e redes da cultura popular, artess
e artesos, pesquisadores e representantes dos Estados, de cada
pas aqui representado, expressamos a necessidade de destacar o
que foi invisibilizado e silenciado ao longo do tempo, de obter
mais respeito, de garantir a cultura como um direito humano
fundamental. Alm disso, esperamos que naquelas regies da
Amrica em que, infelizmente, ainda se sofre com a falta de
recursos, a discriminao e a ausncia de mecanismos adequados
de registro e proteo, se superem tais condies.
Consideramos que a cultura produz vnculos sociais durveis e
que, para fazer uma verdadeira revoluo com cidadania, temos
que comear pela cultura, na medida em que um povo que no se
envolve no processo de construo de sua cultura no tem sentido
de pertencimento.
No podemos deixar morrerem as culturas populares, nem deixar
que os produtos da indstria cultural transnacional, sem razes em
nossos povos, tenham mais importncia e opaquem a nossa.
O mundo tem que se abrir. necessrio criar um ambiente de
confiana no qual todos se sintam livres para expressarem suas
artes e saberes. Hoje em dia desejamos ter mais espaos onde
possamos expressar nossos sentimentos. Existem aqueles que
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III.
Precisamos promover e preservar as culturas populares, reunindo
e deixando flurem novas criaes. Para isso, deve haver em todos
os pases um casamento entre a cultura e a educao, valorizando
os mestres como docentes nas escolas e universidades e ensinando
professores a danarem, tocarem e brincarem, por exemplo.
Devemos unir cultura e educao se queremos a continuidade das
culturas populares, ensinar as crianas e os jovens para que se per-
petue o saber e a cultura do que nos prprio. Se a educao
um direito de todos, devemos criar as condies para que a cultura
tambm possa ser.
importante promover o conhecimento mtuo das expresses
das culturas populares, por meio de um mapeamento regional.
Paralelamente, propomos a elaborao de uma poltica de gesto
de riscos das expresses das culturas tradicionais e, a partir disso,
criar um fundo latino-americano para proteo e promoo de
nossas culturas.
O registro e a difuso de tudo o que fazemos so tambm formas
de resistncia.
Para contribuir com a preservao e a dignidade deve ser criada,
dentre outras coisas, uma penso digna aos mestres, que fazem a
beleza de seu pas com tanto trabalho e amor.
Devem ser criados centros de formao permanente sobre as cul-
turas populares, para que os mestres e artistas possam circular
entre os pases na qualidade de mestres, promovendo a intercul-
turalidade.
Requere-se proteger o patrimnio lingustico sul-americano, Fo-
mentando seu reconhecimento como lnguas oficiais e promo-
vendo sua aprendizagem e seu uso.
Devemos ter conscincia de que as culturas populares no so
predadoras do meio ambiente. Ao contrrio, nas comunidades em
que as tradies esto vivas, o meio ambiente e a biodiversidade
esto preservados. E, alm disso, os produtos industrializados des-
cartados so transformados para gerar beleza, desfrute e desenvol-
vimento humano.
IV.
Com estes processos, podemos construir nossa obra e nossos
sonhos. Podemos compartilhar e multiplicar nosso amor, paz e
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