Célia Xavier Camargo - Correntes Do Destino PDF
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CORRENTES DO DESTINO
Esprito Maria Ceclia Alves
Clia Xavier de Camargo
Sinopse:
Maria Eugnia, filha de ricos fazendeiros, descobre que seu
noivo est apaixonado por uma escrava. Descontrolada,
deixa-se arrastar por uma torrente de dio e vingana.
Traioeira, influencia Miguel, escravo apaixonado por ela, a
cometer um crime. O cativo no imagina o preo que pagar
pela satisfao dos seus desejos. Portadora de dons
medinicos que deveria colocar a servio do bem, a
sinhazinha escolhe o caminho do mal, arrastada por aqueles
que, no outro lado da vida, ainda no aprenderam a
perdoar...
Sumrio
Apresentao............................... 7
1 Preldio da volta 13
2 Os primeiros anos 16
3 Pedido de casamento 25
4 O noivado 32
5 Encarando o sofrimento 41
6 Novas responsabilidades 51
7 Cultivando o dio 65
8 Auxlio providencial 73
9 Na vspera do casamento 85
10 O casamento 93
11 A viagem 105
12 Enfrentando crises 116
13 Novas informaes 126
14 Retorno ao lar 138
15 Mergulho no erro 147
16 Na espiritualidade 158
17 Enfrentando conseqncias 168
18 O louco 179
19 A verdade vem tona 188
20 Dvidas 198
21 Novos desatinos 208
22 Reencontrando amigos 220
23 Na Fazenda Santa Clara 231
24 Novas descobertas 243
25 Diva 253
26 O escravo Josias capturado 265
27 Tefilo 277
28 Complicaes 289
29 Recebendo visitas 297
30 Informaes inquietantes 311
31 Os mortos falam! 323
32 Socorro do alto 338
33 Libertao 354
34 De volta espiritualidade 366
35 Eplogo 377
Biografia 386
Apresentao
Que Jesus os abenoe!
Confesso-lhes que nem acredito ter conseguido concluir
esta obra. No foi fcil. Foi um perodo longo, em que tive
de aprender a lidar com meus sentimentos e a trabalhar meu
lado emocional, a fim de que pudesse ser o mais isenta e fiel
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possvel ao relato dos acontecimentos vivenciados. Remexer
no passado doloroso e requer extremo equilbrio, para no
comprometer as conquistas que acreditamos j ter efetuado
ao longo do tempo.
No se trata, porm, nica e exclusivamente, do nosso
problema pessoal. um processo bem mais complicado e
abrangente. Quando recordamos fatos passados, mexemos
num verdadeiro vespeiro. No que isso seja prejudicial, ao
contrrio. Nossas lembranas movimentam vibraes,
sentimentos e emoes que atingem outros seres que
fizeram parte desse passado, no raro necessitados de
socorro, muitas vezes habitando ainda regies de sofrimento
e dor no Alm. Lembrando os dramas ocorridos, eles so
atrados para perto de ns pelas nossas emisses mentais, o
que propicia o socorro da Espiritualidade Maior.
Graas a estes textos, inmeros espritos foram socorridos,
iniciando-se para eles uma nova etapa, com a internao em
unidades hospitalares de recuperao, onde so utilizadas
tcnicas de tratamento tendentes a proporcionar-lhes o
reequilbrio de que tanto carecem. Durante esse perodo,
so objetos de atenes e carinho, recebem orientaes
necessrias ao seu aprendizado e podem, finalmente,
receber a visita de familiares, que restauram as ligaes que
julgavam perdidas. So submetidos a tcnicas teraputicas
direcionadas ao restabelecimento da confiana em Deus, em
si mesmo e nos outros. Terminada a convalescena e
apresentados terapia do servio, comeam a auxiliar em
alguma atividade, passando a ser teis comunidade em que
vivem. E, assim, se reeducaro moralmente luz do
Evangelho.
Muitos, rebeldes, precisam ser conduzidos a reunies
medinicas, em que recebem atendimento com profundo
amor, ocasies em que, no raro, reencontram algum
familiar querido que h muito no viam. Abrem o corao,
falam dos seus sentimentos, dos dramas ocorridos, at que,
extravasando todo o dio, acabam por adormecer nos braos
da me, do pai, da esposa, ou de algum outro ente querido,
sendo levados para atendimento hospitalar.
Como esprito muito comprometido com as divinas leis,
garanto-lhes que nada se compara ao perdo que temos
oportunidade de pedir nessa hora, libertando-nos da
conscincia de culpa que nos cobra pelos danos causados.
Nada se iguala ao momento em que podemos abraar nossa
vtima, agradecidos diante do perdo que nos concede, ou
quando conseguimos a bno de perdoar a um inimigo,
aliviando a mente e o corao.
Tudo isso eu consegui por meio do relato de minhas
experincias, limpando o lixo acumulado do ntimo e
tirando os sentimentos negativos do corao.
O drama aqui narrado se passa antes da chegada do
Consolador Prometido que viria, por intermdio da pliade
do Esprito de Verdade, trazer novos conhecimentos e
esclarecer a humanidade sobre a imortalidade da alma, a
natureza dos espritos e suas relaes com os homens. Esses
conhecimentos, reunidos magistralmente por Allan Kardec,
o Codificador da Doutrina Esprita, em O Livro dos
Espritos, obra publicada em 18 de abril de 1857, fariam que
os homens pudessem entender melhor a vida presente, a
vida futura e o porvir da humanidade, na aplicao das leis
morais, conforme os ensinamentos de Jesus, trabalhando
pela transformao moral que os levaria evoluo.
No entanto, como esses conhecimentos fazem parte das Leis
Naturais ou Leis Divinas, existiram desde as mais remotas
eras e eram conhecidos das mais antigas civilizaes,
conquanto houvessem sido esquecidos ao longo do tempo.
Desse modo, como fatos naturais, a existncia dos espritos e
a comunicao entre os dois mundos, inclusive os
fenmenos espirituais que acarretam, tambm chegaram ao
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conhecimento dos personagens deste livro, que puderam
vivenciar fatos interessantes e inusitados para a primeira
metade do sculo 19.
S posso agradecer a Deus, nosso Pai Maior, que, com tanta
misericrdia e sabedoria, encaminha nossos passos para o
que precisamos fazer.
Jesus, Mestre dos Mestres, que nos tem estendido sempre
os braos amorosos, aconchegando-nos ao seu corao temo
e fazendo que sintamos a consolao, a paz e o amor que
nos vm da sua presena.
Aos amigos espirituais, generosos e devotados, que jamais
nos deixaram ao desamparo.
No posso deixar de agradecer tambm a todos que convi-
veram comigo, que tiveram pacincia diante das minhas
muitas dificuldades, que toleraram meus erros, que me
ajudaram nesse trajeto pedregoso e escarpado.
O meu abrao saudoso aos familiares queridos, aos amigos,
aos colegas de trabalho e a todos os que me assistiram no
longo perodo das hemodilises.
A todos, a minha gratido perene. Reservei-me o direito de
no citar nomes, para no correr o risco de ser ingrata com
alguns, visto que seria impossvel lembrar-me de todos, e
no quero cometer injustias.
Espero que estas pginas, grafadas com profundo amor,
possam ser teis aos eventuais leitores, at para que
entendam minhas dificuldades e limitaes.
Que o Senhor os ilumine sempre e os ampare no caminho
do dever retamente cumprido, para que no venham a
sofrer o que sofri.
Aos trabalhadores espritas encarnados, que fazem parte da
grande falange do Consolador Prometido no planeta, dirijo
um apelo especial: espero que esta obra lhes sirva de alerta e
reflexo. O conhecimento da Doutrina Esprita e do
Evangelho de Jesus so ddivas que no podemos ignorar e
deixar ao abandono. So talentos que precisamos fazer
frutificar a nosso benefcio e dos nossos semelhantes; por
isso, no podemos simplesmente enterr-los, pois, conforme
a parbola evanglica, o medo no justifica o descaso no uso
dos tesouros divinos que recebemos.
"Muito se pedir quele a quem muito se houver dado e
maiores contas sero tomadas quele a quem mais coisas se
haja confiado", nos alerta Jesus.
Assim, empunhemos a enxada do servio, utilizando o
esforo na vontade de servir, para arar o campo ressequido
da nossa alma, lembrando ainda que a misericrdia divina,
sempre pronta a nos amparar e abenoar, nos conceder
invariavelmente novas oportunidades para a nossa redeno.
"Buscai, pois, em primeiro lugar, o Reino de Deus e sua
justia, e todas estas coisas vos sero acrescentadas", afirma o
Cristo.
Como espritas, no ignoramos que nosso objetivo a evo-
luo, que se far mediante o progresso intelectual e moral.
Dessa forma, imprescindvel modificar nosso ntimo,
acrescentando qualidades que nos direcionem para o amor
em sua mais ampla significao, que o amor ao prximo,
inclusive aos inimigos, com o que estaremos exercitando a
mais pura caridade crist.
"Aquele que perseverar at o fim ser salvo".
Muita paz!
ROLNDIA, 5 DE MAIO DE 2009
Maria Ceclia Alves
1 Preldio da volta
Esprito endividado e comprometido com as Leis Divinas,
eu desejava um alvio para minhas mgoas, remorsos e
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sofrimentos sem fim. Tanto havia ferido quanto fora ferido
ao longo dos tempos. Agora, ansiava que a bno do
esquecimento me concedesse paz.
Como a semente que aguarda na terra a hora de germinar e
transformar-se na planta tenra que cresce e se renova sob as
ddivas do calor do sol e da umidade do solo, sonhava eu
tambm com o recomeo. No suportava mais. Sentia-me
exausto.
Urgente parar de pensar, de lembrar cenas de um passado
distante que me atormentava o tempo todo. Para tanto, na
Espiritualidade, preparei-me por longos anos sob a tutela
amiga de zelosos benfeitores, que me incutiam bom nimo e
coragem para a renovao que se fazia to necessria.
Esprito cheio de imperfeies, somente dessa maneira
conseguiria vislumbrar a esperana de um futuro melhor e
mais feliz.
Mas como vencer o orgulho atroz que me queimava o
ntimo, e que gerara tanto mal, por julgar-me acima de todas
as outras criaturas? De que maneira expurgar do corao o
egosmo ferrenho que me fazia desejar tudo para mim, com
excluso dos demais? Como libertar a mente da ambio
desmedida, conseqncia fatal do orgulho e do seu filho
dileto, o egosmo? Ao longo do tempo, em vestes corpreas
masculinas ou femininas, por quantas vezes me entregara ao
erro, dilapidando excelentes oportunidades de vida que o
Senhor me concedera?
Sozinho diante do manto estrelado da noite, olhos elevados
para o alto, refletia na minha situao de ser indigno,
enquanto lgrimas quentes de arrependimento lavavam-me
o rosto e a alma. Eu sabia a resposta, tantas vezes estudada
at a exausto em nossas reunies: imprescindvel
transformar-me luz do Evangelho redentor, aquele mesmo
Evangelho que tantas vezes plantara a ferro e fogo na mente
de criaturas indefesas, como se fosse um remdio amargo
que devessem engolir fora. Trajando o hbito sacerdotal e
tendo nos lbios um sorriso, quantas vezes mandei pessoas
inocentes para a morte aps subtrair-lhes a fortuna! Quantas
vezes criei intrigas para derrubar inimigos mais altamente
colocados na poltica do mundo, jogando-os na vala da
amargura! Quantas vezes trabalhei nas sombras e atraioei
pessoas que se entregavam a mim, confiantes na amizade
que lhes hipotecara!
A maldade, a hipocrisia e a desonestidade se contavam entre
os caracteres de personalidade que eu mais prezava, para
minha vergonha e averso.
Basta, porm, de lembranas dolorosas! Eu no suportava
mais sofrer e rever as imagens que tanto me afligiam. No
suportava mais remoer o remorso, proporcionado pelo
sentimento de culpa que no me concedia trguas.
Desejava esquecer, apagar da mente torturada as recordaes
escabrosas. Recomear, como uma pgina em branco;
sujeitar-me a uma nova existncia que me proporcionasse
paz e tranqilidade.
Assim, retornaria ao palco da vida com o corao repleto de
esperana num futuro melhor.
Preparara-me com esmero. Durante dezenas de anos servira
ao prximo em benemritas instituies da Espiritualidade,
procurando aprender a soletrar o verbo amar, a desenvolver
em meu ntimo, sentimentos mais nobres. Dedicava-me aos
necessitados, praticando o exerccio de pensar menos em
mim e mais neles.
O planejamento reencarnatrio, um primor de tcnica e
eficincia, obedecia s minhas necessidades mais urgentes.
Envergaria um organismo feminino e iria reencontrar na
carne algumas das pessoas que eu mais amava e que me
proporcionariam sustentao afetiva e emocional, compondo
o cenrio de cada dia, alm de vrios desafetos, objetivo
maior da existncia, espritos que me comprometera a
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ajudar, resgatando erros de outrora.
Do Alm, amigos, companheiros, familiares queridos,
instrutores e generosos benfeitores velariam por mim na
retaguarda, sustentando-me nos momentos mais difceis.
Aqueles que seriam meus pais e me acolheriam como filha
do corao, ultimavam os preparativos para mergulhar na
carne.
Eles renasceriam no Brasil, o Novo Mundo que se descor-
tinava para todos os condenados como a Terra da Promisso,
fugindo das recordaes que o Velho Mundo representava.
Despedi-me deles, reiterando os propsitos de cumprir os
compromissos assumidos por ocasio do planejamento
reencarnatrio.
Terminara o primeiro quarto do sculo 19, que se iniciara
pleno de esperanas. Em 1822, o Brasil se tornara
definitivamente independente de Portugal, pela vontade do
prncipe regente, Pedro de Alcntara, filho de D. Joo VI,
que passou a ser D. Pedro I, o imperador do Brasil.
2 - Os primeiros anos
As primeiras lembranas que me vm memria so
extremamente agradveis. Um vasto gramado, onde eu
gostava de ficar sob os raios de sol aos cuidados de uma
negra de olhar doce e terno. Havia tambm uma criana da
minha idade com quem sempre brincava; essa
companheirinha de folguedos era Maria Rita, ou Ritinha,
filha da escrava Dionsia, que eu tratava pelo apelido
carinhoso de Dinha.
Quando me cansava das brincadeiras, nos acomodvamos
sombra de uma rvore amiga, e Dinha nos servia refresco,
acompanhado de uma fruta, um pedao de po ou um doce,
que devorvamos entre risos.
Eu era feliz. Sentia-me segura e confiante.
hora do almoo, com o sol a pino, voltvamos cansadas,
mas satisfeitas, para o imenso casaro onde eu morava.
Dinha, minha ama de leite, lavava-me e trocava minhas
roupas sujas por outras limpas e mais belas; e penteava com
carinho meus cabelos loiros, compridos e anelados. Ao dar
por terminada a tarefa, afastava-se um pouco e lanava-me
um ltimo olhar crtico, para confirmar se eu estava em
condies de apresentar-me diante de meus pais, e eu a
fitava com os olhos azuis externando meu agradecimento;
depois, satisfeita com a sua obra, levava-me para a sala,
quando eu tinha o prazer de estar com minha me.
Era sempre com infinito amor que eu abraava mame.
Dama bonita e elegante, mame tinha o rosto bem-feito, terno e
carinhoso; de tez clara, a pele era macia e aveludada; as
sobrancelhas, perfeitas e arqueadas, emolduravam os meigos olhos
verdes; quando sorria, duas covinhas encantadoras surgiam
em cada face, e tudo ao seu redor se iluminava, mesmo que o cu
estivesse escuro e chuvoso. Os cabelos eram longos e encaracolados,
da cor do mel, e eu gostava de pente-los, sempre que ela
deixava.
Ao me ver, ela abria os braos e eu me abrigava neles,
sentindo seu perfume de alfazema. Naquele momento,
envolvida pelo seu carinho, eu sentia que de nada mais
precisava. Ela era meu sol, minha vida, meu tudo.
Meu pai, porm, inspirava-me medo. Invariavelmente
mostrava cenho carregado, testa franzida, e seu olhar azul
era severo. Alto, usava sempre botas de cano longo, que lhe
deixavam o andar ainda mais firme e pesado. Quando ouvia
seus passos ressoando no lajeado da varanda que circundava
nossa casa, ou suas botas rangendo nas largas tbuas do
assoalho, eu estremecia de medo. Quase nunca ele me fazia
um agrado e, quando o fazia, parecia-me uma atitude
forada, sem espontaneidade. Seu sorriso, raro, semelhava-se
mais a uma careta, jamais deixando ver os dentes. Isso me
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fazia pensar que ele no tivesse dentes. Todavia, como ele
dificilmente permanecia em casa, meus dias eram tranqilos
e agradveis.
Na fazenda havia muitos escravos, e eu gostava de ir at a
senzala brincar com as crianas, conquanto no fosse do
agrado de meu pai.
Ao ver-me junto com os meninos, ele ficava ainda mais
carrancudo e com um gesto indicava-me o rumo, enrgico:
J para casa, Maria Eugnia!
E eu corria, o mais depressa que minhas pequenas pernas
permitiam. Chegava ao casaro com o corao aos saltos, ofegante e
trmula de medo. Subia as escadarias e corria para meu
quarto, escondendo-me entre as roupas de um grande
armrio l existente. E ali ficava at que algum viesse me
buscar, passado o temporal.
Com o tempo, a diferena entre meu pai e minha me ficou
ainda mais patente. Ela era toda delicada, elegante, refinada.
Fora educada em Paris e viajara por vrios pases. Ao voltar
da Europa, seu pai tinha acertado o casamento dela com
aquele que viria a ser meu pai, Felipe de Albuquerque
Figueiroa, rico fazendeiro da regio.
O noivo, porm, era muito diferente da doce Virgnia. Como sempre
se interessara mais pela terra, ele jamais se propusera a continuar os
estudos, contentando-se com aprender a ler e a escrever, a
fazer contas e a cuidar da fazenda, dos animais, das lavouras
de cana-de-acar, ao contrrio de tantos jovens, inclusive
colegas seus, que foram para a Europa estudar. Felipe era grosseiro e
xucro, como seus cavalos. Amava, porm, a terna Virgnia
desde que a conhecera ainda criana. Com ela, era carinhoso
e gentil.
Exatamente um ano aps o casamento deles, eu vim ao
mundo, enchendo a casa de alegria e tornando a vida de
minha me mais fcil e agradvel.
Tudo isso fiquei sabendo por minha prpria me, nos
momentos em que estvamos a ss, conversando. Curiosa,
eu perguntava-lhe como tinha sido sua vida e ela me
contava. Aos poucos, sua histria foi-se delineando em
minha mente, ganhando contornos mais precisos e levando-
me a entender coisas que, at ento, eu no compreendera.
Sentada aos ps dela, nas tardes de inverno, enquanto me
ensinava a bordar, eu voltava ao assunto que mais me
interessava, isto , descobrir seu passado, como fora sua
existncia.
Conte-me, mame, como morar to distante, no
estrangeiro.
E minha me, ento, falava-me de lugares longnquos e
encantadores, contava histrias e acontecimentos
interessantes e engraados. Eram momentos muito especiais.
Eu me perdia em divagaes, vendo, por meio de suas
narrativas, aquelas belas paisagens que ela descrevia com
tanto primor.
Certo dia, quando ela me falava do tempo em que aguardava
minha chegada, perguntei:
Mame, se meu nascimento foi cercado de tanta expectativa e
amor, por que papai no gosta de mim?
Ela fitou-me com seus olhos grandes, que nesse momento
me pareceram ainda maiores, e onde notei um brilho de
aflio:
No diga isso, minha filha! Seu pai a ama. Como pode
pensar diferente?
Talvez a senhora tenha razo, mame, mas nunca senti o
amor de meu pai. Estou agora com treze anos, e, desde que
me lembro, ele sempre foi rude comigo. Trata-me, s vezes,
pior
do que os escravos, se que isso possvel.
Minha me ps de lado o bordado, depois se abaixou
envolvendo-me em seus braos com imenso carinho, e
pude ver que o brilho de seus olhos se apagara, enquanto
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uma ruga de preocupao marcava sua bela testa.
Oh, minha filha, seu pai a ama, sim, apenas no sabe
demonstrar esse amor. Tenha pacincia com ele.
Calei-me. No queria entristec-la. Naquele momento,
porm, decidi que iria procurar conhecer a verdade. Sua
reao mostrara-me que havia algo que eu no sabia. Dinha,
minha querida ama de leite, estava na fazenda havia muitos
anos, ali nascera e crescera, e, se houvesse algum segredo
ligado ao meu nascimento, ela o saberia com certeza.
Mudei de assunto e nunca mais voltei a incomodar mame
com minhas dvidas e questionamentos.
ALGUNS DIAS DEPOIS, surgiu a oportunidade ideal. Dinha e eu
estvamos sozinhas, caminhando pelo parque, e nos
dirigimos para a margem do rio, algumas centenas de metros
ao fundo do jardim. Ritinha permanecera em casa por estar
febril. O cu, sem nuvens, apresentava um tom de azul
intenso, e o sol caminhava para o poente. Aleguei cansao
em virtude do calor, incomum quela poca, e nos sentamos
margem. A ama fechou a sombrinha e, sob a copa de uma
grande rvore enquanto leve brisa nos refrescava, ficamos
apreciando o murmrio das guas, o gorjeio dos pssaros e o
coaxar dos sapos e rs em meio vegetao ribeirinha.
Estendi-me na grama e fechei os olhos. De repente, fiz a
pergunta que me martelava na cabea:
Dinha, por que meu pai no gosta de mim?
O que isso, menina? Seu pai gosta de voc, sim,
sinhazinha - respondeu com seu jeito peculiar de se
expressar.
Sinto que aconteceu alguma coisa e ningum quer
me contar. E sei que voc sabe, Dinha. Por que me esconde
a verdade?
Sei de nada, no, sinhazinha. Vamos embora. tarde e o
sinh, seu pai, no tarda a chegar da cidade.
Insisti, mas ela no cedeu. Levantei-me contrariada, ajeitei
as saias e retruquei irritada:
Pois muito bem. Eu vou descobrir. Voc no minha
amiga. Com sua ajuda ou no, eu vou descobrir. Ouviu?
A escrava lanou um olhar enviesado e murmurou entre
dentes:
Pois sim! Sinhazinha quer me arrumar problema. No
h nada para descobrir!
Levantei a cabea e comecei a caminhar apressada,
obrigando-a a me acompanhar. No conversamos mais. Eu
estava muito brava com ela. Esperava que me ajudasse, e sua
recusa me deixou magoada; mais do que isso, indignada.
Chegamos casa-grande e corri para meus aposentos.
Precisava arrumar-me para o jantar. Felizmente meu pai
ainda no voltara da cidade.
Quando desci as escadarias, ouvi vozes na sala de visitas.
Uma delas era a de meu pai, a outra, desconhecida. No
desejando ser vista, procurei esgueirar-me para a cozinha,
quando minha me surgiu vinda da sala, impedindo-me a
retirada:
Ah, voc, Maria Eugnia! Estava mesmo indo procur-
la. Seu pai solicita sua presena na sala.
Sem sada, respirei fundo e caminhei acompanhando
minha me at a sala de visitas. Ao entrar, vi meu pai e outro
cavalheiro que estava de costas. Aproximamo-nos e meu pai
sorriu. Pela primeira vez, consegui ver seus dentes, feios e
amarelados pelo fumo.
Ei-la que chega! Guilherme, tenho o prazer de lhe
apresentar Maria Eugnia, minha filha. Maria Eugnia, este
Guilherme, filho de um grande amigo meu.
O rapaz levantou-se, curvando-se elegantemente numa
reverncia. S ento pude v-lo. Tratava-se de um moo alto
e distinto, rosto simptico, olhos e cabelos pretos. Ele sorriu
e pude ver uma fieira de dentes alvos e simtricos.
um grande prazer conhec-la, senhorita.
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Gaguejei algumas palavras inaudveis, corando de vergonha.
Aps os cumprimentos, meu pai sugeriu:
Vamos sentar-nos. Acomode-se, meu caro Guilherme,
por gentileza.
Em seguida, virando-se para a esposa, informou:
Virgnia, nosso caro Guilherme jantar conosco.
Minha me levantou-se, assegurando, gentil:
um grande prazer t-lo conosco, senhor Guilherme.
Peo-lhes licena. Devo verificar se est tudo em ordem na
cozinha. Enquanto isso, mandarei que lhes sirvam uma taa
de vinho.
Voltando-se para mim, com gesto gracioso, mame
convidou-me a acompanh-la:
Venha ajudar-me, filha.
Sa lanando-lhe um olhar agradecido. Seria difcil ficar
naquela sala enquanto os homens conversavam. Alm disso,
eu era apenas uma criana e no estava interessada em
conversas de adultos.
Chegando cozinha, mame ordenou a uma escrava:
Odete, sirva vinho aos cavalheiros na sala. Depois, colo-
que mais um lugar mesa. Temos visita para o jantar.
Sim, sinh Virgnia.
Aproximando-se do grande fogo de lenha, mame
perguntou a Florncia:
Como est o jantar?
Dentro de meia hora no mximo estar pronto, sinh
Virgnia.
timo. Temos visita. Capriche.
Dirigimo-nos sala de jantar, onde minha me passou os
olhos pela mesa para ver se estava tudo em ordem; ela
gostava de esmerar-se nos detalhes e verificava se a toalha
de linho estava bem passada, se a maneira de colocar os
pratos, os talheres, os copos e os guardanapos estava perfeita;
tudo tinha de ficar impecvel. Assim fora criada e no abria
mo de seus hbitos. Acertou um ou outro pequeno detalhe
e, satisfeita, encaminhou-se comigo para a sala onde os
homens conversavam sobre negcios.
Sentei-me perto de minha me. Sentia-me segura junto dela.
No gostava de visitas e de gente desconhecida. Guilherme
gentilmente dirigiu-me a palavra:
O que gosta de fazer, senhorita? Vi um belo piano logo na
entrada. Aprecia msica? Se bem que esta bela fazenda h de
ter muitas atividades interessantes...
Timidamente, abri a boca para responder, porm meu pai
adiantou-se:
Meu caro Guilherme, essa uma mania de minha esposa.
Ensinou Maria Eugnia a tocar piano, embora eu considere
isso desnecessrio. s mulheres compete apenas aprender a
cuidar da casa, cozinhar, costurar e mandar nos escravos,
para fazerem um bom casamento. No concorda comigo?
Guilherme, que acabara de tomar um gole de vinho, colocou a taa
sobre a mesa e respondeu:
Bem, senhor Figueiroa, penso que estudar e aprender
sempre importante.
Minha me ergueu a bela cabea, lanou um olhar para meu
pai, depois se dirigiu ao visitante:
Meu marido, senhor Guilherme, acredita que mulher no
deve estudar. Estou procurando convenc-lo a deixar Maria
Eugnia estudar na capital, porm sem resultado. Recusa-se
terminantemente a ceder aos meus rogos.
E para que lhe serve tanto estudo, minha querida? A
senhora um exemplo disso. Estudou na Frana, viajou pela
Europa inteira, aprendeu tantas coisas, para qu? - retrucou
ele.
No s o lado material da vida que importa, Felipe.
Aprendi a pensar, estudei literatura, arte, msica e
muito mais. Tudo isso foi muito importante para minha
formao. Os conhecimentos abriram-me a cabea.
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Para qu, minha querida? Para aprender a dirigir uma
casa, para cuidar do marido e da filha, no precisaria nada
disso. Entende? Tempo perdido!
Minha me prendeu a respirao. Desejava retrucar, mas no
deveria faz-lo. No diante de um convidado. Segurei sua
mo delicadamente por baixo das dobras do vestido, e senti
que ela tremia.
Guilherme, para minha surpresa, tomou sua defesa,
concordando com ela:
Dona Virgnia tem razo ao afirmar que o conhecimento
importante. Nossa vida s ser melhor se soubermos
valoriz-la adequadamente, utilizando todas as nossas
potencialidades.
Minha me endereou a ele um discreto olhar de agrade-
cimento. Aos poucos ela foi voltando normalidade,
enquanto meu pai, sem nada perceber, j mudara de assunto,
enveredando para o terreno que conhecia: os negcios.
Guilherme, aproveitando a ocasio, comentou:
Suas lavouras esto uma beleza, senhor Figueiroa! Os
canaviais, muito bem cuidados.
Realmente, meu caro amigo. Tenho orgulho deles.
Percebi que Guilherme, vez por outra, lanava um olhar
cheio de piedade para minha me.
Nesse momento, a escrava Odete aproximou-se avisando
que o jantar estava servido, para alvio geral. Fomos para a
sala de jantar, onde as iguarias foram servidas e degustadas
em meio a uma conversa amena e agradvel. Em seguida
vieram as sobremesas. Depois, j na sala de visitas, o
cafezinho.
Como j era tarde e estava com sono, pedi licena e retirei-
me para meus aposentos, desejando boa-noite a todos.
3 Pedido de casamento
9 Na vspera do casamento
Por alguns dias permaneci pensativa e preocupada. Contudo,
a proximidade da data do casamento fez com que me ligasse
em coisas mais agradveis.
Quando mame perguntou-me como fora o encontro com
pai Albino, disse-lhe que tinha sido bom e que ele me
tranqilizara afirmando que era apenas um sonho sem
maiores conseqncias. Ela mostrou-se um tanto
decepcionada, mas acabou por esquecer o assunto.
O burburinho na casa era grande; o movimento, intenso. As
escravas corriam com os preparativos.
Na vspera, encontrei Ritinha chorando.
O que houve, Rita? - perguntei.
Nada, Maria Eugnia. a emoo do seu casamento que
me faz ficar assim. Afinal, sempre fomos amigas e a partir de
agora tudo vai mudar. Voc ter outros interesses, os cuida
dos com o esposo e, mais tarde, com os filhos... Nada mais
ser como antes.
Sorri da sua ingnua preocupao, fingindo que acreditava.
No se aflija, Ritinha. Que bobagem! A vida tem seus
caminhos e devemos segui-los. Pode acreditar, estaremos
sempre juntas, acontea o que acontecer.
A jovem escrava enxugou as lgrimas, considerando:
Ser? Maria Eugnia, noto que desde algum tempo voc
se afastou de mim.
Fitei-a investigativamente, tentando adivinhar o que haveria
no fundo de seus olhos.
E existe algum motivo para isso? - indaguei lentamente.
Desconcertada, talvez achando que tinha falado demais, ela
negou:
No. Claro que no. Nada aconteceu, no ?
Bem. Ento, se nada aconteceu, tudo no passa de
imaginao da sua cabea - completei.
. Deve ser. Deve ser - concordou com um sorriso
plido.
Afastei-me, alegando urgncia em cuidar de alguns detalhes
do casamento. No fundo, estava feliz e eufrica. Rita perce-
bia que algo havia mudado entre ns e devia estar
preocupada, uma vez que trazia a culpa dentro de si.
Cantarolando, fui at a cozinha, onde as cozinheiras se
esmeravam em preparar os quitutes que seriam servidos na
festa. Tudo o mais estava pronto.
Mais tarde, aps o almoo, meu noivo apareceu. Fui ao seu
encontro, com o melhor dos meus sorrisos. Ele tomou
minha mo, na qual deu um beijo ligeiro.
Est radiante hoje, Maria Eugnia.
Pois no deveria estar, Guilherme? vspera do nosso
casamento, data to esperada por todos. Mame no se
agenta de tanta ansiedade!
natural. Afinal, voc sua filha nica! - ponderou.
Eu o conduzi para a sala, onde inmeros convidados se
entretinham a conversar. Parentes de longe haviam chegado
e o casaro estava cheio de gente circulando por todos os
lados.
Com elegncia, meu noivo aproximou-se e cumprimentou a
todos os hspedes. Apresentei-o queles que ainda lhe eram
desconhecidos, e deixei-o entregue s visitas, alegando
urgncia em ver alguns detalhes.
Meia hora depois, Guilherme foi me procurar. Eu estava na
varanda verificando a colocao de vasos de flores, como
mame ordenara.
Estava sua procura, Maria Eugnia - ele disse, meio
contrariado.
Sim? Como v, cuidava dos ltimos detalhes da festa.
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( Espiritismo) - Maria C Alves - Celia X Camargo - Correntes Do Destino.txt
Podemos conversar um pouco?
Claro, querido. Tem alguma preferncia de local?
Desejo um lugar sossegado onde no sejamos interrom-
pidos a todo instante - respondeu, um tanto impaciente com
o movimento da casa.
Entendi. Realmente, a confuso hoje grande. Pois
muito bem. Sugiro o caramancho de rosas no fundo do
jardim. um local tranqilo e agradvel a esta hora do dia. E
l, certamente, no seremos interrompidos.
De braos dados caminhamos at o local. Percebi que
Guilherme estava tenso e que suas mos tremiam
ligeiramente, embora procurasse demonstrar serenidade.
Entramos no caramancho e um agradvel odor de rosas
atingiu-me o olfato.
Ah, como gosto deste lugar! to agradvel! Sente-se,
querido.
Voc tem razo. E um lugar perfeito para pensar, refletir.
Essas palavras deixaram-me em alerta. Se meu noivo estava
precisando pensar e refletir, era sinal de que algo no ia
bem.
Querido, o que deseja conversar comigo? Se sobre as
passagens, esto em meu poder h uma semana.
No, no sobre isso.
Pois ento, pode falar. Meu tempo curto. Sabe que
tenho uma infinidade de coisas para ver hoje.
Guilherme levantou-se do banco, pondo-se a andar de um
lado para o outro, sem dizer nada.
Voc est me deixando tonta, Guilherme. Fale de uma
vez! Tem alguma dvida?
Ele parou, olhou-me fixamente e perguntou queima-roupa:
Maria Eugnia, voc est feliz?
Fitei-o com os olhos arregalados. No gostei da pergunta;
no quela altura dos acontecimentos. Coloquei meu melhor
sorriso no rosto e respondi:
Claro que estou feliz, Guilherme. Que pergunta! Justa-
mente na vspera de nosso casamento!
Por isso mesmo, Maria Eugnia. Tenho estranhado seu
comportamento nos ltimos tempos. No quero obrig-la a
nada. Se no est contente, se no deseja se casar comigo,
compreenderei perfeitamente.
Ergui-me de um salto. O maldito estava tentando livrar-se de
mim. Nossa unio era-lhe demasiadamente pesada a ponto
de no se incomodar em romper o compromisso na vspera
do casamento!
Levei a mo ao peito ofegante, tentando controlar a emoo,
enquanto lgrimas de dio umedeceram meus olhos.
Por que me diz tal coisa, Guilherme? Por acaso no quer
mais se casar comigo?
Vendo o meu estado e julgando que minha reao fosse
ditada pelo amor, ele murmurou:
No isso, Maria Eugnia. Preocupo-me com voc. S
isso.
Se algum dia lhe dei a impresso de no estar satisfeita,
perdoe-me. E a presso dos preparativos, tantas coisas para
organizar, enxoval, roupas, festa e tudo o mais. Estou feliz,
sim, meu querido. Quero passar toda a minha vida ao seu
lado.
Plido e trmulo, Guilherme revirava o chapu nas mos.
Afinal, sem sada, como um honrado cavalheiro, concordou:
Ento, se isso o que voc realmente deseja, tudo bem.
Julguei que, em virtude de nossa unio ter sido arranjada por
nossos pais, voc no desejasse realmente casar-se comigo.
Ah! Se por isso, tranqilize-se. Est tudo em ordem,
meu querido. No comeo, confesso-lhe que no desejava
mesmo este casamento; porm, com o passar do tempo,
aprendi a conhec-lo e afeioei-me a voc. Hoje, eu o amo
de verdade.
Guilherme respirou profundamente, mas se manteve calado.
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Aproveitei para colocar um ponto-final naquela conversa.
Ento, se est tudo esclarecido, podemos voltar?
Ele concordou com leve sinal de cabea. Caminhamos de
retorno ao casaro sem trocar uma palavra sequer. Percebi
apenas que seu tremor aumentara. Entrando em casa, deixei-
o integrado numa roda de animadas e alegres visitas.
Intimamente, alegrava-me pela vitria. Pois sim! Se ele
esperava que eu desistisse assim, na ltima hora, causando
transtornos e cobrindo de vergonha a mim e minha
famlia, estava redondamente enganado. Esse homem estava
irremediavelmente preso a mim, e iria sofrer as
conseqncias pela dor e pela humilhao que eu estava
sentindo por sua traio.
Guilherme se arrependeria amargamente por ter-me
rejeitado. Uma mulher ofendida jamais esquece, pensou ela,
rancorosa.
AQUELE DIA, o LTIMO que passaria em minha casa na
condio de solteira, transcorreu rapidamente. Ao me
recolher, estava moda de cansao.
Dinha ajudou-me nos preparativos. No conversamos como
de costume. Ela notou que eu estava calada, perdida nos
prprios pensamentos, e respeitou meu silncio.
Antes de sair, no entanto, com delicadeza disse-me:
Sinhazinha, amanh voc estar casada. Como talvez no
tenhamos oportunidade de conversar, quero desejar-lhe
muitas felicidades nessa nova vida.
Parada humildemente minha frente, a ama tinha os olhos
midos de emoo. Fitei-a e estendi-lhe meus braos.
D-me um abrao, Dinha. Necessito muito de carinho.
Agradeo-lhe por tudo o que voc foi para mim desde
criana: ama de leite, amiga, conselheira.
Ela apertou-me em seus braos, deixando que as lgrimas
vertessem.
Sempre serei para a sinhazinha a ama devotada que muito
lhe quer, Maria Eugnia.
Agradeci, e ela concluiu:
Agora durma, minha princesa. Amanh teremos um dia
cheio e, mais do que nunca, precisar estar descansada e
bela.
A cabea de minha me apontou na porta. Risonha e
radiante, ela entrou.
Ainda bem que no dormiu ainda, minha filha. Queria
desejar-lhe uma boa noite. Ufa! O dia hoje foi cansativo.
Somente agora o ltimo hspede se recolheu. Ento, aqui
estou.
Mame acomodou-me no leito, ajeitou as cobertas e disse:
Esta a ltima noite que passa nesta casa como solteira...
Sorri concordando:
Dinha disse-me a mesma coisa.
Eu sei que sua ama tambm est sentindo a mudana que
ocorrer em sua existncia a partir de amanh.
Mas, mame, eu vou continuar sendo a mesma e
amando-as do mesmo jeito.
Sei disso, querida. Contudo, diferente. A partir do
casamento, ter de seguir e obedecer a seu esposo. Ter uma
vida nova, responsabilidades e deveres que ocuparo seus
dias.
Abracei mame com ardor.
Jamais me separarei da senhora, minha me. Conti-
nuaremos sempre unidas, como at agora.
Ela sorriu por entre lgrimas, segurando-me as mos:
Minha filhinha, desejo-lhe toda a felicidade do
mundo. Todavia, se algo acontecer, se algum dia precisar de
ns, de mim e do seu pai, esta casa sempre foi e continuar
sendo sua.
Eu sei, mame. Obrigada por tudo.
Agora, repouse. Durma bem, minha querida. Tenha
lindos sonhos.
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Ela levantou-se do leito, diminuiu a claridade do quarto e
saiu, deixando-me sozinha.
Ser que mame desconfiava de alguma coisa? Dissera
palavras estranhas, como se soubesse que eu poderia ter pro-
blemas! Bobagem. natural que a me se preocupe com a
filha que vai se casar.
Tentei pegar no sono, porm a cabea fervilhava. E, quanto
mais pensava, pior me sentia.
De sbito, dei-me conta de que o quarto estava cheio de
pessoas estranhas, vultos assustadores, aqueles mesmos do
pesadelo que tive algumas noites atrs. Um murmrio
abafado soava em meus ouvidos, como se esses vultos me
acusassem de alguma coisa.
Tapei os ouvidos para no escutar. No entanto, eles
continuavam desfilando minha frente.
Acendi a vela da cabeceira e agarrei-me no rosrio. Puxei as
cobertas, escondendo-me debaixo delas, a tremer de medo.
Rezei como nunca na vida.
Perdi a conta das oraes feitas naquela noite, at que
finalmente consegui adormecer quando as primeiras tintas
da aurora surgiam no horizonte.
10 O casamento
Na manh seguinte, despertei com o corpo todo dolorido,
como se tivesse levado uma surra. Sentia-me exausta, com a
sensao de no ter pregado o olho a noite toda. Vagas
imagens de vultos terrficos que me povoaram a noite de
pesadelos sem fim voltavam-me memria. No desejava
levantar-me. Queria permanecer no leito, to fraca e sem
foras me sentia.
Nesse momento, um grupo alegre invadiu meus aposentos:
mame, Dinha, vov Justina e trs primas, Luciana, Eunice e
Valria. A ama trazia uma bandeja com o caf da manh.
Somente naquele instante lembrei-me do casamento.
Satisfeita e bem-disposta, como sempre, mame afastou
minhas cobertas.
Vamos! Vamos, minha preguiosa! Acorde! O dia vai ser
movimentado. Viemos desejar-lhe bom-dia! Agora coma,
porque vai precisar de foras para enfrentar este dia, que
desejamos seja muito feliz.
As primas brincavam e riam, felizes. Filhas do tio Eugnio,
irmo de minha me, as trs eram lindas, mas de tipos
completamente diferentes. Luciana, a mais velha, de tez
clara, cabelos e olhos castanhos, a mais comedida das trs, a
mais sria. Eunice, a do meio, de cabelos claros e
encaracolados, olhos verdes e um lindo sorriso, falava
bastante e estava sempre alegre. Valria, a mais nova, tinha a
pele branca como leite, olhos acinzentados e uma
esplndida cabeleira ruiva; doce e tmida, quando ria, duas
encantadoras covinhas surgiam nos cantos da boca.
Como damas de honra, ns somos responsveis pela
toalete da noiva - afirmou Luciana, com firmeza. Assim,
hoje voc est em nossas mos!
De alguma forma, aquela onda de alegria e barulho fez-me
bem. Tentei comer, mas elas falavam tanto, diziam coisas to
engraadas, especialmente Eunice, muito espirituosa. Em
virtude de suas brincadeiras, no conseguia me alimentar.
Tomei apenas uma xcara de leite com caf e algumas
rosquinhas de nata, minhas preferidas.
Luciana, Eunice e Valria cercaram-me o leito.
Agora, levante-se, sua preguiosa! Temos muito que
fazer. O tempo urge. Passa da uma hora da tarde e
precisamos prepar-la e embelez-la para que esteja
deslumbrante na hora do casamento.
Sem poder resistir-lhes, levantei-me cambaleante. Dinha
avisou-as de que o banho estava pronto e elas me enfiaram
na banheira. A gua tpida e o perfume das essncias
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fizeram-me bem. Haviam colocado na gua ervas aromticas
e ptalas de rosas vermelhas recm-colhidas, para relaxar. O
banho pareceu retirar de mim todo o mal-estar, cansao e
fraqueza. As trs deixaram-me sozinha por vinte minutos
para que aproveitasse aqueles momentos de relaxamento,
serenidade e prazer.
Aps esse tempo, brincando e rindo, cantando e
tagarelando, as trs primas rodearam-me novamente.
Enxugaram-me e depois elas passaram em meu corpo um
creme feito de leite de cabra, de agradvel aroma, para
amaciar a pele. Era a ltima novidade na capital do imprio.
Vestiram-me as anguas e o espartilho. Em seguida, com cuidado,
trouxeram meu vestido: um belo traje branco confeccionado
com renda de Bruxelas e tafet, tecidos que mame mandara
buscar na Europa. Aps vestir-me, pentearam-me os
cabelos, levando as mechas da frente para o alto da cabea e
prendendo-as com presilhas de diamantes, deixando o resto
de meus cabelos carem pelos ombros em cachos largos.
Colocaram-me brincos de brilhantes e um belo colar,
tambm de brilhantes, herana que me fora deixada por
minha av paterna para ser entregue por ocasio do meu
casamento. Calaram-me sapatos forrados de tafet e, em
seguida, puseram-me o vu e a grinalda na cabea. Por fim,
depositaram-me nas mos o rosrio de madreprola e um
belo ramalhete de flores de laranjeira, recm-colhidas, que
exalava agradvel aroma.
Luciana, Eunice e Valria tambm j estavam arrumadas
para a festa. Espertas, entre uma tarefa e outra, elas se
revezaram cuidando da prpria toalete. Vestiam belos trajes
de cores diferentes: Luciana de verde-gua, Eunice de rosa e
Valria de azul. Estavam maravilhosas! Assim, na hora
marcada, tanto eu quanto elas j estvamos prontas.
Postaram-me diante de um grande espelho e prendi a
respirao. Quase no consegui reconhecer-me naquela
noiva encantadora. Realmente estava linda! Orgulhosa, meus
olhos azuis ficaram midos e brilhantes de emoo.
Ao descer as escadarias, ouvi um murmrio de admirao
daqueles que ainda me esperavam. Meu pai aproximou-se,
estendendo-me a mo. Parecia mais sensvel, mais humano,
e olhava-me com carinho.
Est linda, minha filha. A noiva mais bela que j vi. O
coche aguardava para levar-nos cidade. Ao chegar defronte
da igreja, o veculo parou e o cocheiro abriu-nos a porta.
Meu pai desceu e estendeu-me a mo. Eunice, ansiosa, que
aguardava na porta da igreja, aproximou-se, ajeitando-me o
vestido e o longo vu.
Ao entrar na igreja, ouvi o som do rgo tocando uma
msica sacra. Com as damas de honra na frente, trmula e
emocionada, caminhei lentamente pela nave, apoiada no
brao de meu pai. O templo religioso estava lotado.
Conforme avanvamos, eu notava as pessoas
elegantemente trajadas, via o faiscar das jias e sentia os
diferentes perfumes que se misturavam ao odor
caracterstico da igreja.
Padre Antnio, paramentado, aguardava-nos. Na frente, os
padrinhos, os pais do noivo, mame e, claro, o noivo. O
sacerdote deu incio cerimnia. Enquanto ele falava,
algumas imagens vinham-me mente. Algum me dizia
com imenso carinho: "Filha, detm-te! Ainda h tempo. No
erres mais".
Naquele instante, lembrei-me do sonho que tivera noite.
Uma mulher, bela e delicada, com vestes flutuantes e
luminescentes, de semblante sereno e muito familiar, e que
eu j vira em outra oportunidade, dizia-me as palavras que,
nesse instante, acudiam-me memria.
O padre prosseguia no sermo. Senti ligeira tontura. Aquelas
palavras no saam da minha cabea, numa repetio
contnua. Justamente nesse momento, o padre perguntou:
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Guilherme de Arajo Cerqueira, de livre vontade que
aceita Maria Eugnia como sua esposa, para am-la e
respeit-la todos os dias da sua vida, at que a morte os
separe?
Sim, padre - respondeu Guilherme, compenetrado.
Maria Eugnia de Albuquerque Figueiroa, de sua livre
vontade...
Sentindo leve vertigem, demorei a responder. O padre
repetiu a pergunta. Percebi que Guilherme tornou-se rubro,
olhando-me inquieto; certamente temia passar por uma
humilhao diante de todos os convidados. Olhei para o lado
e notei a aflio de meus pais. Voltei a fixar o padre
Antnio, que se inclinara para frente, aguardando minha
resposta. Afinal, num sopro de voz, murmurei:
Sim.
Os presentes, ansiosos e preocupados, respiraram aliviados.
A cerimnia logo terminou, iniciando-se os cumprimentos
aos noivos.
Retornamos todos para a fazenda, onde a festa estava
preparada. As mesas, arrumadas no gramado do jardim,
estavam lindamente enfeitadas com arranjos de flores. Ao
nos verem chegar, os msicos comearam a tocar bela
melodia.
Os alegres convidados formavam grupos, conversando e
rindo animadamente. Os pratos foram-se sucedendo,
servidos por escravos em trajes de gala, que transitavam
entre os presentes. Horas depois, vieram os doces e o
enorme bolo.
Guilherme e eu, agora casados, recebamos os
comprimentos de todos. Caminhando por entre as mesas,
encontrei minha ama. De Rita, nem sinal. Como fazia
questo de ver como ela estava se sentindo, perguntei:
Ainda no vi Rita. Onde ela est?
Ah, Maria Eugnia, minha filha no pde comparecer ao
seu casamento. Est em seu quarto, doente
respondeu penalizada.
Doente? E o que ela tem?
Sente-se muito mal. No tem conseguido se alimentar, e
sofre enjos constantes.
Ah, que pena! Desejo-lhe melhoras - exclamei,
procurando disfarar a decepo.
"Mentirosa! Com certeza no quis apreciar o espetculo da
minha unio com Guilherme. Mas ela no perde por
esperar!", murmurei entre os dentes.
Na senzala, os escravos tambm comemoravam o
casamento da sua sinhazinha. Cantavam e danavam,
comiam e bebiam, em torno de uma grande fogueira. O
senhor havia liberado a bebida e eles aproveitavam para se
divertir. Era um dia de festa, acontecimento raro na fazenda.
No dia seguinte no iriam trabalhar; era folga para todos.
Diva percebeu que Miguel estava amuado num canto e no
participava da festa. Chamado pelos amigos e pelas jovens
escravas para integrar-se ao grupo, que cantava e danava
luz da fogueira, recusara-se, alegando cansao. Ela pegou um
prato de comida, uma caneca, um jarro de barro com
aguardente e dirigiu-se at onde ele estava.
A escrava era jovem, bonita e tinha uma queda por ele. Toda
faceira, aproximou-se lentamente e entregou-lhe o prato e a
caneca.
Trouxe para voc, Miguel. Notei que ainda no comeu
nem bebeu nada esta noite. Aproveita, homem! No todo
dia que temos fartura!
Sentou-se perto dele, mostrando inteno de fazer-lhe
companhia. Incomodado e um tanto descontente, ele disse:
Agradeo a preocupao comigo, mas no carecia tanta
ateno, Diva. Voc jovem e bela, cheia de vida. V para
junto dos outros, participe das diverses. No serei uma boa
companhia para voc. Estou num dia pssimo.
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Tambm no estou muito para festa, Miguel. Prefiro
permanecer aqui ao seu lado, longe da confuso e do
barulho. Isto , se voc permitir.
No tendo como recusar, conformado, ele assentiu:
Se o que deseja...
Ento, Miguel calou-se, no insistindo, sem sequer
enderear-lhe um olhar. Enquanto os escravos cantavam ao
som dos atabaques, sua mente foi ficando nublada pelos
vapores da bebida. Em certo momento, ele comeou a
resmungar, j sem saber direito o que dizia:
Ela vai para longe... nos braos dele.
O que disse, Miguel? - indagou Diva, interessada.
Nada... Nada. - e, depois de alguns minutos, prosseguiu: -
Tudo vai mudar. Ah, se vai. Na volta tudo ser diferente.
A esperta mocinha, apesar de ficar de ouvidos atentos, no
conseguia entender direito o que ele dizia, mas sabia que
tinha a ver com Maria Eugnia e Guilherme. Ele prosseguia
com voz enrolada:
Vou acabar com aquela miservel. Traio no se perdoa.
No se perdoa...
Diva tentou faz-lo falar mais:
O que diz, Miguel? Com quem vai acabar?
Ele a fitou, colocando o dedo na boca, a pedir silncio com
voz empastada:
Psssiiiu!... Isso segredo. Ningum pode saber.
Concordo com voc. Traio no merece perdo. Mas,
quem o traiu? A sinhazinha? - falou ela em voz baixa,
imitando-o, enquanto enchia-lhe novamente a caneca vazia.
Com olhos embaados pela bebida, ele tentou responder:
No... Ela no... Ela um anjo...
Nesse momento, com um resto de lucidez, temendo falar
demais, Miguel levantou-se e saiu cambaleando para o meio
do mato.
No, Miguel! Volte! Volte!...
O rapaz, porm, j se enfiara no meio da vegetao e, com a
escurido da noite, Diva no conseguiu alcan-lo. Cheia de
despeito, sentindo-se rejeitada e frustrada por no ter
conseguido que ele falasse mais, limitou-se a voltar para
junto dos outros escravos. Mas o resto da noite no pensou
em outra coisa: "Vou descobrir a verdade, custe o que
custar, ou no mais me chamarei Diva!".
Aos poucos as luzes foram-se apagando. Na casa-grande, os
ltimos convidados se retiraram. Cansados de tanta agitao,
tambm nos recolhemos, ocupando os aposentos preparados
especialmente para ns, os recm-casados. De manhzinha,
Guilherme e eu partiramos para a capital da provncia, em
viagem de npcias.
ESTAVA CLAREANDO o DIA quando os batuques se calaram na
senzala e todos puderam descansar. O silncio se fez e s se
ouviam o rudo dos animais e o pio de uma ou outra ave
noturna.
Partimos bem cedo enquanto todos ainda dormiam.
Precisvamos aproveitar o tempo para viajar com claridade,
pois era longo o trajeto at o porto, onde pegaramos o navio
com destino Europa.
Somente levantaram-se os mais chegados: Dinha, a av
Justina e minha me. Tudo estava arrumado. Dois escravos
colocaram nossa bagagem na carruagem e Josias, cocheiro
experimentado, iria nos levar at o porto.
Sem que ningum percebesse, Rita observava nossas
despedidas, ralada de angstia e desespero. Somente eu a vi,
entre os arbustos, e fiz questo de mostrar-me ainda mais
carinhosa com meu marido.
Rita sentia-se s e abandonada. No acreditava que
Guilherme voltaria para ela. Sabia que a partir de agora
teramos um relacionamento mais ntimo, estaramos a ss e
certamente elos mais fortes acabariam por nos unir. Cheia
de cime, Rita pensava no que seria sua vida dali por diante.
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Seu amado Guilherme, que tantas promessas lhe fizera, no
deixaria a mim, rica herdeira, por ela, uma reles escrava.
Quase de imediato, a jovem sorriu, levando as mos barriga
e acariciando-a. Ela tinha um trunfo, que mantinha em
segredo: carregava dentro de si o fruto do seu amor com
Guilherme. Esperava um filho dele e, por certo, o teria em
suas mos, pois eu, a esposa, no gostaria de saber disso. Se
eu ficasse sabendo, o casamento e o grande negcio que
Guilherme fizera anexando minha fortuna dele, algo
combalida, j comearia com problemas. Esse era outro
trunfo que Rita tambm guardava como um tesouro; ele Ire
revelara num momento de fraqueza e com essa vantagem
ela contava poder melhorar sua situao, quando do nosso
retorno.
Conquanto julgasse amar Guilherme, no fundo Maria Rita
no sentia verdadeiro amor por ele. Seus sentimentos eram
uma mescla de atrao, interesse e orgulho, e Guilherme
viera representar para ela a materializao de um ideal
acalentado em seus sonhos no desabrochar da vida. Ela
desejava ter uma existncia diferente daquela que tinha sua
me, sujeita ao jugo de um senhor, e que tambm lhe estava
reservada. Rita sabia que era bela e desejvel, e o interesse
de um homem jovem, elegante, bonito e rico, como
Guilherme, a seduzira, especialmente porque ele era algum
destinado sua sinhazinha, de quem sempre, no ntimo,
tivera inveja.
Tudo isso s fui descobrir mais tarde. Naquele momento,
olhei de novo na direo dela, mas Rita havia desaparecido.
Aps nos despedirmos d Dinha, da av Justina e de minha
me, entre sorrisos, lgrimas e promessas de notcias,
entramos na carruagem que nos levaria para uma viagem de
sonho, segundo eu acreditava.
MIGUEL DESPERTOU NO MEIO do mato com o sol alto.
Demorou a entender o que estava fazendo ali, com a cara
enterrada na terra e fiapos de capim grudados no nariz. Aos
poucos, foi voltando realidade e lembrou-se do que tinha
acontecido.
Sentia-se pssimo, com a boca amarga e o estmago
embrulhado. A cabea doa-lhe terrivelmente. Levantou-se
cambaleando e caminhou com dificuldade, quase se
arrastando, at a senzala. Deitou-se na sua esteira pensando:
"Como tinha acontecido isso? Logo eu, que no sou dado a
bebedeiras.
Seu amigo Amaro, to logo o viu entrar na senzala, foi atrs
dele.
Est com pssimo aspecto, irmo.
Diva me encheu de bebida.
Ah, mas voc parecia muito bem. No me aproximei,
pois vi a bela jovem a seu lado e no quis atrapalhar a
conversa. Depois, voc desapareceu...
Levando a mo cabea, que latejava horrivelmente, Miguel
respondeu:
verdade. Para fugir de Diva, embrenhei-me no mato.
Ah, mas como di minha cabea. Parece-me que tenho
atabaques tocando dentro dela.
Amaro sorriu, concordando:
Realmente, irmo. Para quem no bebe, voc exagerou
na dose. Mas vou falar com pai Albino, que conhecedor de
ervas e saber dar-lhe algo que alivie a sua dor.
Amaro procurou o ancio, que foi ver Miguel na senzala. Pai
Albino trouxe-lhe uma caneca com uma beberagem que ele
tomou fazendo careta.
amargo - resmungou.
No demorou muito, sentiu nuseas e, enjoado, preferiu
ficar quieto, procurando uma esteira mais distante. J deitado
na esteira, pai Albino recomendou:
Miguel, meu filho, agora repouse. Logo estar melhor. Depois
conversaremos. Felizmente, hoje dia de folga para todos.
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Miguel dormiu o resto do dia, recuperando as foras.
noitinha, quando as tochas se acenderam, ele despertou.
Como est se sentindo? - perguntou pai Albino.
Bem melhor, meu pai. Bastante fraco, porm sem dor de
cabea.
timo. Agora voc precisa de alimento para fortalecer o
corpo. Reservei um prato para voc. Coma.
Esfomeado, Miguel sentou-se e comeu todo o angu. Depois,
agradeceu.
Obrigado, pai Albino.
No precisa agradecer, meu filho. No fao mais do que
minha obrigao. Quando temos conhecimento sobre
alguma coisa, precisamos espalhar essa bno em benefcio
de todos
os irmos. Mas, agora podemos conversar.
Fitou o rapaz longamente, como se vasculhasse sua alma.
Miguel, sei que est com problemas. Sofre e se desespera
por amor. Contudo, meu filho, evite cometer algo que
venha a prejudicar a outros e a si mesmo, em particular.
Agora sbrio, Miguel tentou disfarar:
No sei do que est falando, meu pai.
Sabe sim. J errou bastante no passado por amor a essa
mesma mulher. No torne a errar ou ir sofrer muito no
futuro. A prpria natureza nos ensina todo dia lio de
grande importncia: quem planta, colhe. Entendeu?
Sim, pai Albino. Entendi. Quer dizer que nos conhe-
cemos de outras pocas? Acha mesmo isso?
Exatamente, Miguel. E acredito, sim, em outras existn-
cias, e voc tambm. E lhe digo mais: ela sempre o
dominou. Est na hora de mudar. O Senhor nos deu esta
existncia para
que o tempo fosse utilizado de modo a aprendermos as
lies que a vida nos oferece, e nos melhorarmos, tornando-
nos seres bons, pacficos e fraternos.
Entendi, meu pai. verdade. Muitas vezes, ao sentir a
fora desse amor que trago dentro de mim, parece-me t-la
encontrado em outras pocas com roupagens diferentes.
Sinto saudade desse tempo, mas tambm muito medo,
quando essas imagens me vm lembrana.
Ento, cuidado! No se entregue a esse sentimento, uma
vez que sabe ser impossvel, e nem se deixe dominar por
ele. Aproveite, meu filho, a oportunidade que o Senhor lhe
confiou. Ajude a si mesmo, ajudando-a, e tambm a outras
pessoas envolvidas nesse caso.
O ancio levantou-se e foi embora, enquanto Miguel ficou
refletindo sobre tudo o que havia sido conversado entre
eles.
11 A viagem
Viajamos at Cruzeiro da Mata, vilarejo mais prximo, em
seguida tomamos o rumo que nos levaria capital da
provncia. No trajeto s se ouviam o rudo das rodas e, vez
por outra, o estalar do chicote no lombo dos animais,
acompanhado de uma ordem do cocheiro. Guilherme,
conquanto gentil, mantinha-se em silncio, falando apenas o
estritamente necessrio.
No incio da viagem, tentei conversar com meu marido,
discorrendo sobre a festa, os convidados, os aspectos
interessantes ou pitorescos que presenciara. Ele, porm,
respondia-me brevemente. Ento, calei-me, acreditando-o
cansado e com sono. Da por diante, trocamos poucas
palavras. Na penumbra da carruagem, acabei por adormecer
sob o balano e o movimento rtmico do rodar do veculo
em atrito com o solo.
Algum tempo depois, despertei ao ouvir vozes. Era
Guilherme que, abrindo a janela, falava com o cocheiro:
Josias, quanto falta para chegarmos capital?
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Muitas horas, sinh Guilherme.
H alguma estalagem aqui por perto?
Sim, sinh. H uma no muito distante.
timo. Ento, faremos uma parada l.
Sim, sinh.
Guilherme fechou a cortina, voltando a seu lugar; ao
perceber que eu havia acordado, explicou:
Logo faremos uma parada. Precisamos descansar e comer
alguma coisa. Alm disso, imprescindvel cuidar dos
animais. Conseguiu dormir?
Sim, estava cansada. Afinal, dormimos pouco esta noite -
disse, corando.
Guilherme manteve-se impassvel.
Haver tempo bastante para repousar na longa viagem
que vamos fazer.
verdade. Onde estamos? - perguntei, abrindo a cortina
e colocando a cabea pela janela.
Numa regio de serras, em meio a mata fechada, onde a
estrada cheia de curvas e a temperatura sempre mais baixa,
pela altitude e pela ausncia do sol, que no consegue
romper a ramaria. Logo, porm, chegaremos a um trecho de
plancie onde haver mais claridade e o calor do sol voltar a
nos aquecer.
Realmente, eu estava tiritando de frio. Todavia, em mo-
mento algum Guilherme se aproximou de mim,
envolvendo-me com seus braos, o que teria espantado o
frio e me aquecido o corao. Mantinha-se o mais afastado
possvel.
"No precisaria do sol para aquecer-me", pensei. "Bastaria o
calor humano, se houvesse."
Afinal, notando que eu tremia de frio, delicadamente ele
pegou uma manta que estava guardada em pequena
prateleira no alto, acima de nossa cabea, desdobrou-a,
colocando-a sobre mim. Agradeci a gentileza,
aconchegando-me manta de l de carneiro, que logo me
aqueceu.
Prosseguimos em silncio; no demorou muito, a carruagem
parou. Josias abriu a portinhola, avisando:
Chegamos, meu sinh.
Guilherme desceu e estendeu-me a mo, como um perfeito
cavalheiro que era.
Olhei em torno, encantada. A regio era maravilhosa; ao
longe se descortinavam as montanhas em meio a uma
vegetao luxuriante, pintada pelo colorido das flores.
Acercando-me da margem da estrada, prxima ao
precipcio, pude notar que estvamos num ponto bem
elevado. Olhei para baixo e vi as encostas recobertas de
plantas e flores, cujo aroma me atingia o olfato no dia limpo
e claro; mais alm, notei uma cascata, cujas guas
despencavam de grande altura, e, em seguida, se integravam
a um rio l embaixo, que sumia pouco depois, serpenteando
entre as montanhas.
Lindo! - murmurei encantada.
Impaciente, Guilherme lembrou-me de que precisvamos
prosseguir. No tnhamos tempo para nos deter na
contemplao da paisagem.
E por qu? - retruquei.
H lugares muito mais belos para ver na viagem, minha
querida.
Se estamos em viagem, Guilherme, parece-me que tudo
deve ser bem aproveitado. Inclusive as paisagens da nossa
terra, por que no? Particularmente, tudo novo para mim.
Nunca
tive oportunidade de viajar como voc.
Talvez me julgando uma verdadeira provinciana, algum que
nunca sara do local onde nascera, meu esposo no res-
pondeu. Delicadamente, colocou a mo em minhas costas,
indicando-me a estalagem, cuja porta de acesso ficava a uns
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trinta metros de distncia.
Entramos. Imediatamente, sentimo-nos revigorados pelo
ambiente, que o calor do fogo aquecia. Sentamo-nos a uma
das mesas rsticas. Logo, o proprietrio, senhor gordo e
bonacho, veio nos atender.
O que tem para se comer?
Temos carne assada e po sado do forno ainda agorinha,
manteiga, queijo, gelia e biscoitos.
Muito bem. E para beber?
Vinho e aguardente. Se preferir, temos tambm caf,
leite e ch.
Traga-nos vinho.
Logo uma criadinha veio trazer o pedido. O po quente
recendia agradvel aroma e a carne assada estava tima.
Depois, tomamos caf coado na hora. Tudo nos pareceu
muito bom, certamente porque Guilherme e eu nos
sentamos famintos. No havamos almoado; comemos
apenas algumas guloseimas da festa, que Florncia colocara
numa cesta para viagem.
Adorei o local. Nunca entrara antes numa estalagem e o
ambiente rstico, mas limpo, cativou-me. Descansamos um
pouco e prosseguimos viagem. Descamos sempre; a estrada,
perigosa, cheia de curvas, permitia-nos ver as ribanceiras, e
um passo em falso dos animais poderia ser fatal. O cocheiro
precisou de toda a sua experincia para manter os cavalos
sob controle, obrigando-os a reduzir a marcha, para no
causar um acidente.
Eu estava assustada. Agarrei as contas do meu rosrio, do
qual no me separava, pondo-me a rezar. Guilherme, mais
habituado a enfrentar essas situaes, fazia pouco caso do
meu medo. Para meu alvio, depois de um tempo que me
pareceu excessivamente longo, a vista se modificou por
completo. Paramos de descer; a regio agora era de plancie,
ora com prados e animais, ora com plantaes de cana-de-
acar.
Fizemos mais uma parada ao anoitecer. Josias avisou-nos de
que no era seguro viajar noite e que aquela era a ltima
estalagem em muitas lguas.
O local no nos pareceu to agradvel, mas pedimos o jantar.
Em seguida, nos recolhemos no melhor quarto que ele
tinham para oferecer. Eu estava to cansada que, mal deitei,
j estava dormindo.
Despertei na manh seguinte com Guilherme a me chamar.
Precisamos prosseguir, Maria Eugnia.
Arrumei-me com alguma dificuldade, visto que estava
acostumada a contar com a assistncia de uma escrava, mas
tive a ajuda de Guilherme, que amarrou meu espartilho.
Tomamos o caf da manh e continuamos a viagem.
Atravessamos Barra do Pira e alguns vilarejos, chegando
finalmente ao Rio de Janeiro, capital do Imprio.
A grande cidade me deixou fascinada. O movimento de
pessoas e de carruagens, as lojas que ferviam de gente, as
construes, tudo me encantava. O veculo rodou pelas ruas
at chegarmos a um hotel. Descemos e nos acomodamos
num quarto a que um criado nos conduziu. Aps um banho,
nos dirigimos ao salo para jantar. Achei tudo lindo e bem
ornamentado, evitando demonstrar meu espanto para no
parecer provinciana, j que, para meu marido, tudo era
natural. Os pratos estavam excelentes, e a msica era um
convite dana.
Na manh seguinte fizemos o trajeto que nos levaria at o
porto. De longe, j pude ver uma grande extenso de gua,
que me deixou sem flego. Chegando ao porto, que
apresentava intenso movimento, dirigimo-nos ao navio
atracado.
Meu corao batia intensamente. Pela primeira vez
contemplava o mar, e pensar que viajaramos naquela
grande casa flutuante, sobre as guas, me deixou tensa e
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insegura.
O cocheiro Josias, cumprida sua misso, despediu-se de ns,
desejando-nos boa viagem; enquanto carregadores levavam
nossas bagagens para o navio, subamos as escadas. A bordo,
inclinei-me sobre a amurada do grande navio,
contemplando a multido que se acotovelava no cais. Algum
tempo depois, soou um estrondoso apito e a embarcao
comeou a se movimentar lentamente. A multido l
embaixo acenava para os viajantes; muitos choravam de
emoo por se separarem de pessoas queridas; a nosso lado,
algum sorria por entre as lgrimas.
Logo tudo ficou para trs. A multido foi ficando cada vez
menor at sumir de nossa vista; depois a cidade com seus
prdios e, por fim, s existia mar nossa volta.
Instalados no camarote, iniciamos uma vida completamente
diferente. Confesso que, no incio, tive dificuldade para me
adaptar. O balano das ondas e do navio deixava-me quase
sempre com nuseas, sem vontade de sair do camarote ou de
fazer qualquer atividade. Aos poucos, todavia, o mal-estar foi
passando e comecei a aproveitar realmente a viagem.
ENQUANTO isso, NA FAZENDA, Ritinha atravessava momentos
bem difceis. Sua gravidez logo comearia a dar sinais e ela
temia que a me e os demais percebessem; especialmente o
patro, que iria querer saber o nome do pai da criana.
Embora a gravidez ainda no aparecesse, ela arrastava-se
pelos cantos, temendo que os demais notassem seu estado.
S tinha algum descanso noite, ao se recolher, quando se
permitia dar livre curso aos sentimentos e a mente divagava,
voando em busca do seu amado, atravs do pensamento. Sua
fixao por Guilherme era intensa; acreditava am-lo com
loucura e sonhava com o momento em que ele voltaria para
seus braos.
POR OUTRO LADO, EU SOFRIA com a indiferena de meu
esposo. Ele cumpria suas obrigaes conjugais, contudo me
tratava com desinteresse. Era educado, gentil, delicado, uma
boa companhia, tanto no perodo em que passamos no navio
quanto nos passeios, nas visitas aos museus, nas compras,
depois que chegamos a Lisboa. Como conhecia os pases do
nosso roteiro e se sentia feliz por estar na Europa, era
sempre um excelente guia, alegre, divertido, fazendo
questo de mostrar-me tudo o que havia de belo e
interessante por onde passvamos. Era um companheiro
perfeito, mas s isso. No existia amor por mim em seu
corao.
Tal situao me fazia sofrer, deixando-me realmente
enciumada, porque eu sabia que ele estava pensando na
escrava que ficara na fazenda. Especialmente quando estivemos na
Frana, em Paris, cidade que eu adorei e que ele tambm
apreciava bastante, onde permanecemos mais tempo. No
raro, quando retomvamos ao hotel, no final do dia, ele se
sentava na pequena sacada para apreciar o movimento e, muitas
vezes, quando o tempo o permitia, o pr do sol. Nesses
momentos, eu notava-lhe o olhar perdido no vazio e o
semblante que se abria num leve e fugaz sorriso, como se apenas
seu corpo permanecesse ali, mas o pensamento estivesse
longe. Naquele instante, eu sabia que ele estava pensando
em Ritinha, e isso me fazia roer de cime e desespero.
Na verdade, eu estava me ligando muito mais a ele do que
pretendia. Aqueles dias adorveis em que passamos juntos
seriam inesquecveis. Lisboa, Madri, Roma, e Paris de
maneira especial, quando passevamos pelas margens do
Sena, no Bois de Bologne ou no Palais-Royal. Quando nos
sentvamos nos cafs ou percorramos as magnficas lojas da
grande cidade eram momentos extremamente agradveis.
Guilherme mostrava-se um acompanhante encantador,
cavalheiro, sedutor, e eu estava cada vez mais presa ao
seu fascnio. Sentia que meu amor aumentava sempre, e que
ele se tornara indispensvel na minha vida, o que me fazia
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sofrer ainda mais, sabendo que no era correspondida.
Atravessei noites em claro pensando numa maneira de
conquist-lo definitivamente. Minha cabea fervilhava,
inquieta e angustiada. Passei a controlar todos os seus passos,
temendo que encontrasse outra mulher mais interessante do
que eu. Quando ele estava calado, sentia-me incomodada e
desejava vasculhar-lhe a mente, at o ponto de no me
conter e perguntar:
Em que est pensando, Guilherme?
Com um sorriso frio, que mostrava seu descontentamento,
ele respondia:
Maria Eugnia! No sou obrigado a dar-lhe conta do que
penso. No basta exigir-me explicaes sobre aonde vou,
com quem converso, o que fiz longe de voc? Agora quer
desvendar tambm meus pensamentos?
Observando a insatisfao e o tdio em seu olhar, procurava
amenizar, temendo perd-lo:
No, querido! Longe de mim querer controlar seus
pensamentos. Apenas notei seu olhar distante e julguei que
poderia estar com algum problema, e que, por delicadeza,
no
quisesse me incomodar.
Ao que ele respondia, j arrependido da sua reao:
Desculpe-me, querida. Estou um pouco cansado hoje. Mas no
se preocupe. No tenho problema algum, est tudo bem.
J que est cansado, poderamos nos recolher mais cedo
hoje, deixando a pera para outro dia.
Como quiser. Concordo, porque realmente, para ir ao
teatro, preciso estar-se com bastante disposio para
aproveitar o espetculo.
Assim, naquela noite, nos recolhemos mais cedo para um
merecido repouso.
Todavia, as coisas comearam a se complicar cada vez mais.
Eu no mais me controlava, pois queria mant-lo sempre
meu lado e no suportava ficar longe dele.
Certo dia, porm, aconteceu algo que piorou a situao. Dias
antes eu estava tendo dificuldade para dormir. Guilherme
levara-me a um mdico, indicado por Pierre e Marie
Legrand, um casal amigo que ele conhecia desde a poca em
que estudava em Paris, e que s vezes nos acompanhava nos
passeios. O mdico, doutor Maurice, prescrevera-me um
remdio que eu deveria tomar noite, pouco antes de deitar.
Entretanto, mesmo com a ajuda do medicamento, nem
sempre eu conseguia adormecer.
Nessa noite em especial, passei por um cochilo e depois
acordei. Como no conseguisse voltar a dormir levantei-me
com cuidado, para no incomodar meu marido, e fui beber
um copo de gua. Apesar de ser vero, a temperatura estava
fresca; e, vendo as luzes da cidade pela porta de vidro que se
abria para a sacadinha, para l me dirigi. Abri a porta e o ar
da madrugada me fez bem. Sentei-me. A noite escura aos
poucos ia sendo substituda pela claridade de um novo dia.
Lentamente, as luzes da grande cidade foram-se apagando e
os primeiros movimentos comearam: as carroas levando
produtos para a feira, os empregados que saam para
trabalhar, as carruagens com o rudo caracterstico dos
cascos dos cavalos no atrito com as pedras da rua...
De repente, bocejei, dando-me conta de que estava com
sono. Contente, deixei a sacada, voltando para o leito.
Quando entrei no quarto, na penumbra, notei perfeitamente
algum deitado ao lado de Guilherme. Era uma mulher.
Dormia tambm.
Indignada, comecei a gritar completamente enlouquecida:
Guilherme, quem essa mulher?
Ele despertou assustado, sem entender o que estava
acontecendo:
O que houve? Por que est gritando desse jeito? Mas eu
avancei para cima dele, agredindo-o:
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Canalha! Quem essa mulher que estava dormindo com
voc?
Calma, Maria Eugnia! Do que est falando? A que
mulher se refere?
Aquela que est aqui!
Onde? - indagou surpreso, olhando para todos os lados.
Naquele instante, olhei para o leito e dei-me conta de que a
mulher sumira.
No sei! No sei! Ela desapareceu. Mas vou procur-la, e
no descansarei enquanto no a encontrar - respondi
perplexa ao perceber que ela j no estava mais ali.
Corri para o quarto de vestir, para o banheiro, procurei atrs
das cortinas, embaixo da cama. Abri a porta da sute, exa-
minando o corredor. Nada. Ela tinha se evaporado.
Entrementes, Guilherme tinha se levantado, tentando
entender a situao. Acompanhava-me as idas-e-vindas,
passando as mos pelos cabelos, espantado. Ao ver-me
despencar na poltrona, decepcionada e j mais calma,
indagou:
Maria Eugnia, agora que est mais tranqila, pode me
explicar direito o que est acontecendo?
Em lgrimas, com ar de frustrao, comecei a falar:
Tambm no sei explicar o que houve aqui.
Muito bem. Ento, vamos comear pelo princpio. Pelo
que entendi, voc no estava na cama?
Isso mesmo. Perdi o sono e fui para a sacada tomar um
pouco de ar.
E depois?
Fiquei l algum tempo. Em seguida, notei que estava
com sono e resolvi voltar ao quarto para dormir.
E o que aconteceu depois?
Fico arrepiada s de lembrar. Eu vi uma mulher no leito!
Ao seu lado!
Impossvel, querida! Voc deve ter dormido na sacada e
sonhou! - exclamou Guilherme, rindo.
No, Guilherme! Eu realmente a vi. Era morena e tinha
cabelos escuros. Como o quarto estivesse na penumbra, no
deu para ver detalhes.
Ele levantou-se, vindo a meu encontro.
Ento foi isso! Deve ter confundido com as cobertas, com
as sombras do aposento. Vem, vamos dormir. Ainda muito
cedo.
No desejando contradiz-lo e incapaz de provar o que tinha
visto, j que no encontrara ningum, acabei por concordar
com ele:
Talvez tenha razo. O melhor voltar a dormir. Quando
acordar, pensarei no caso.
Guilherme levou-me para o leito, ajeitou as cobertas e
depois se deitou tambm, respirando mais aliviado. Antes de
dez minutos, pude ouvir-lhe o ressonar. Havia dormido de
novo. E eu no conseguia pegar no sono. As imagens
voltavam-me mente. Lembrando-me delas, uma forte
intuio segredava-me que aquela mulher era Maria Rita.
Tinha absoluta certeza de que era ela a mulher que vira ao
lado de meu marido na cama. No entanto, como explicar tal
fato? Por isso, nada dissera a Guilherme. Ele me julgaria
louca!
Quando consegui adormecer, o sol j tinha surgido no cu
para sua trajetria diria, expulsando as trevas da noite.
12 Enfrentando crises
Abri os olhos e olhei em torno; num primeiro momento,
tive dificuldade em reconhecer o ambiente. Em seguida, vi
Guilherme sentado numa poltrona, distrado na leitura de
um jornal.
Tentei levantar-me, mas no consegui. Sentia-me cansada e
sem foras. Ao meu movimento, ele fechou o jornal.
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( Espiritismo) - Maria C Alves - Celia X Camargo - Correntes Do Destino.txt
Como est, querida? - perguntou solcito, aproximando-
se do leito.
Sem nimo para me levantar.
Ento, vou pedir algo para voc comer. Precisa se
alimentar.
Tocou a campainha e, logo, bateram porta. Guilherme
explicou ao criado o que desejava e, quinze minutos depois,
ele retorna trazendo uma bandeja com suco, ch, biscoitos,
croissants, manteiga e gelia de damasco.
Sentada no leito, apoiada nos travesseiros, alimentei-me
frugalmente. Depois, mais animada, levantei-me, tomei
banho e cuidei da toalete, procurando mostrar que estava
bem. Notando-me a nova disposio, Guilherme atreveu-se
a tocar no assunto:
Lembra-se do que aconteceu esta noite?
Fiz um gesto afirmativo com a cabea.
Perguntei ao pessoal que estava de servio, mas ningum
viu uma mulher estranha no prdio do hotel. Talvez voc
tenha sonhado - comentou um tanto contrafeito.
Resolvida a colocar uma pedra sobre o assunto, considerei:
Nem deveria ter-se dado ao trabalho de perguntar,
querido. Com certeza voc tem razo. Devo ter adormecido
na cadeira da sacada e sonhei. Quero pedir-lhe desculpas
pela
confuso que fiz esta noite. Voc estava dormindo e eu o
acordei aos gritos. Perdoe-me.
Guilherme sorriu compreensivo e aliviado:
No precisa pedir-me perdo, Maria Eugnia. Todavia,
confesso-lhe que fiquei assustado. Ainda bem que tudo
passou.
Graas a Deus!
No entanto, tenho uma sugesto a fazer, querida. Julgo
que devemos retornar ao mdico. Voc no tem dormido
bem, apesar da medicao, e as dores de cabea se tornaram
mais
freqentes.
Se julga necessrio, aceito - concordei.
Muito bem. Enquanto voc dormia, procurei me infor-
mar. O mdico tem horrio para esta tarde mesmo, s quatro
horas. Tomei a liberdade de marcar uma consulta - explicou,
satisfeito.
No horrio combinado, tomamos uma carruagem de aluguel
e nos dirigimos ao consultrio mdico. Dr. Maurice j nos
aguardava. O ltimo cliente havia sado e ele teria todo o
tempo para nos atender, comentou com largo sorriso.
Fez algumas perguntas de praxe sobre minha sade orgnica,
que respondi, e depois indagou:
E ento, o que est acontecendo madame Maria Eugnia?
Relatei a ele a ocorrncia daquela madrugada, sem omitir
nada.
Como era essa pessoa? Madame reconheceu a mulher
que, supostamente, teria entrado no quarto de hotel?
Penso t-la reconhecido, sim.
Madame estava sonhando, talvez?
Pensei um pouco. Depois, respondi consciente e resoluta:
No. Mantinha-me desperta. Em certo momento,
comecei a sentir sono e fiquei satisfeita, porque antes no
havia conseguido dormir. Ento, levantei-me da cadeira,
deixei a sacada e entrei no quarto. Nesse momento, eu vi
essa mulher deitada ao lado de meu marido. Ela tambm
estava dormindo.
E depois? O que aconteceu?
Pus-me a gritar, indignada, ao ver uma mulher no meu
leito junto de meu esposo! Guilherme acordou assustado,
interpelando-me sobre a razo dos meus gritos.
Calei-me. O mdico indagou:
E o que aconteceu depois?
Depois... quando me dei conta, a mulher havia
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desaparecido - admiti, constrangida.
Guilherme, que ouvia a conversa calado at esse momento,
interferiu:
Querida, lembra-se de que depois, mais calma, voc
concordou comigo que tudo no passara de um sonho?
Concordei, verdade, para satisfaz-lo. Entretanto, no
creio que tenha sido um sonho, Guilherme.
O mdico observava-me atentamente. Fez algumas ano-
taes e depois disse:
Parece-me que, em virtude de madame Maria Eugnia
estar tendo dificuldades para adormecer, isso lhe tem
causado algumas perturbaes. Vou prescrever-lhe outra
medicao que, acredito, resolver o problema. Qualquer
alterao, no deixe de comunicar-me, monsieur Guilherme.
Pegando o bloco, rapidamente fez a receita, que entregou ao
meu esposo. Despedimo-nos.
Passar bem, madame.
Antes de voltar ao hotel, fomos a uma farmcia para aviar a
receita. O dia estava to bonito e agradvel que meu marido
me convidou para dar um passeio de carruagem. Como
estivesse me sentindo bem, aceitei. Precisava mesmo
espairecer as idias.
Rodamos pela bela cidade por mais de uma hora. Depois,
paramos numa tpica e simptica cafeteria da cidade. Sentamo-nos
numa mesinha de calada e tomamos um ch, enquanto
aprecivamos o movimento.
Quando retornamos ao hotel, eu me sentia tima. Esquecera
por completo o que tinha acontecido na noite anterior. Ao
nos recolhermos, Guilherme trouxe-me um copo com gua
e o remdio que o mdico havia prescrito.
Satisfeita, adormeci com facilidade, mergulhando em sono
profundo. L pelas quatro horas da madrugada, acordei com
a sensao de uma presena estranha no aposento. Abri os
olhos e olhei em torno. No canto direito do quarto, na
parede que dava para a sacadinha, eu a vi: estava de p,
olhando fixamente para o leito onde dormamos. Levei um
tremendo susto e pus-me a gritar:
Ah! Socorro! Socorro!
Guilherme deu um pulo e sentou-se na cama, assustado.
O que houve? O que est acontecendo?
ela! ela! Est aqui de novo!
Onde, querida? No estou vendo ningum. impresso
sua.
No no. Ela estava ali, naquele canto, de p, nos
olhando.
Impossvel, Maria Eugnia. Ningum entraria aqui. A
porta est trancada.
Mas eu chorava convulsivamente, com a cabea entre as
mos, gritando:
Ela quer me enlouquecer. Quer acabar com a minha vida.
No vou permitir que isso acontea...
Guilherme agarrou-me pelos ombros, sacudindo-me,
procurando fazer-me voltar ao normal:
Quem? Quem est tentando acabar com sua vida? Fale!
Naquele momento, ca em mim; no poderia dizer o nome
da mulher. Mais calma, respondi:
No sei. S sei que uma mulher.
Voc afirmou ao mdico t-la reconhecido. Exijo que me
diga: Quem ela?
No sei, Guilherme! Parece-me conhec-la de algum
lugar, mas no sei quem .
Mostre-me onde ela estava - insistia ele.
Com o dedo em riste, apontei para o canto direito do
aposento, temerosa, mas a mulher havia desaparecido.
No est mais ali. Foi embora.
Guilherme largou-me, respirando fundo. Passou a mo pelos
cabelos revoltos, depois sentou-se na poltrona, perplexo.
O que est acontecendo com voc, Maria Eugnia? -
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perguntou irritado.
Todavia, ao ver-me encolhida na cama, de cabea baixa,
olhos parados no vazio, ele procurou se acalmar, penalizado
com meu estado. Levantou-se, pegou um copo com gua e
colocou-o em minhas mos:
Beba, vai lhe fazer bem.
Levei o copo aos lbios e tomei um gole, voltando mesma
posio. Guilherme ajudou-me a deitar, cobriu-me,
enquanto eu continuava com os olhos vtreos, distantes.
Procure dormir, Maria Eugnia.
Sentou-se na poltrona e ficou velando por mim, esperando
que eu adormecesse. Preocupado, temia nova crise.
Ao despertar na manh seguinte, vi que Guilherme tinha
passado a noite na poltrona. Levantei-me e cheguei perto
dele, tocando-o com a mo.
Guilherme, v para a cama. Voc est mal acomodado.
Ele abriu os olhos e pulou da poltrona, assustado. Ao ver-me
a fisionomia serena, relaxou.
O que houve?
Nada, querido. Estou bem. V para a cama.
Ele obedeceu prontamente, deitando-se e voltando a
dormir. Uma hora depois, acordou e levantou-se. Fez a
higiene, arrumou-se e descemos para tomar o caf da
manh. Ele no tocou no assunto.
Convidou-me para sair, mas eu estava sonolenta pelo efeito
do medicamento e no aceitei. Retornamos para o quarto,
deitei no leito e voltei a dormir.
Guilherme escreveu um bilhete, pedindo a um garoto de
recados do hotel que o entregasse no endereo indicado.
Quando o portador retornou com a resposta, ele solicitou
que uma camareira ficasse no quarto cuidando de mim e
saiu, alegando urgncia de resolver alguns assuntos.
Dirigiu-se a um caf bastante conhecido aonde j framos
algumas vezes. Entrou, sentou-se e ficou aguardando. Pouco
depois, nossos amigos chegaram. O casal relanceou o olhar
pelo recinto at descobri-lo numa pequena e discreta mesa
de canto. Com um enorme sorriso, encaminharam-se para
l.
Aps os cumprimentos, sentaram-se, e Pierre perguntou:
J pediu alguma coisa, Guilherme?
No. Esperava os amigos. O que vamos tomar?
Quero um caf - disse Marie.
E eu, uma bebida - escolheu Pierre.
Eu o acompanho, Pierre.
Aps os pedidos ao garom, Guilherme fitou os amigos,
satisfeito:
Obrigado por aceitarem o convite para este encontro.
Precisava mesmo conversar com algum. Desabafar.
Preocupados, ambos olharam para Guilherme, notando seu
abatimento.
Tem a ver com Maria Eugnia? - indagou Pierre.
Sim, meus amigos. Ainda ontem, retornamos ao consul-
trio do doutor Maurice. A medicao foi modificada e
minha esposa conseguiu adormecer.
Fez uma pausa, diante dos ouvintes interessados, depois
prosseguiu:
Maria Eugnia acordou por volta das quatro horas da
madrugada, afirmando ter visto novamente a tal mulher!
No leito? - indagou Marie, perplexa.
No. Desta feita, estava de p, parada num canto do
aposento, nos observando. No sei mais o que fazer! Estou
tenso e preocupado.
No seria melhor avisar nosso amigo Maurice? sugeriu
Pierre.
Sem dvida. Mas como encontr-lo agora? Estamos quase
hora do almoo - disse Guilherme, olhando o relgio de
algibeira.
No se inquiete por isso. Sei onde encontr-lo afirmou
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( Espiritismo) - Maria C Alves - Celia X Camargo - Correntes Do Destino.txt
o amigo.
Chamando um desses garotos que vendiam balas nas ruas, e que
entrara oferecendo seus doces aos fregueses do bar, indagou:
Sabe onde fica o Hospital Saint Paul?
Oui, monsieur. aqui perto.
Pois bem. Entregue ao doutor Maurice Bournier este
bilhete - e passou s mos do garoto um papel, afirmando:
Aqui est uma moeda. Se cumprir bem sua misso, no
retorno receber outra moeda como esta.
Oui, monsieur. E se o cavalheiro l no estiver?
Voc receber o combinado do mesmo jeito. De
qualquer modo, retorne com a resposta. V rpido!
O rosto do rapazinho se iluminou. Saiu correndo e, pela
janela, eles o viram dobrando a esquina. Quinze minutos
depois, entrou no estabelecimento o prprio mdico, que se
acercou da mesa, cumprimentando-os com familiaridade.
Recebi seu bilhete, Pierre, e aqui estou. Quanto ao
garoto, dei-lhe a moeda que prometeu e dispensei-o. Saiu
todo feliz, voltando a oferecer suas guloseimas.
Agradeo-lhe, amigo, a presteza em atender-me a
solicitao. Guilherme est preocupado.
Ah! O que se passa? Vejo que sua esposa no est pre-
sente. Ela no est bem? - indagou, dirigindo-se a
Guilherme.
De fato, doutor Maurice.
Chame-me Maurice, apenas.
Sim. Maria Eugnia ontem noite conseguiu adormecer
com facilidade. Porm, acordou pela madrugada vendo a
mesma mulher. Estou tenso, aflito.
O mdico balanou a cabea, concordando:
Compreendo. Todavia, a medicao ainda no teve
tempo de agir.
Qual o problema de minha esposa, Maurice? Pode dizer
a verdade.
O mdico pareceu pensar por alguns instantes, depois
explicou:
J que me pede, serei bem franco. Ainda no tenho o
diagnstico preciso de sua esposa, caro Guilherme. Parece-
me que se trata de algum problema mental. E, nesses casos, a
cincia
ainda d os primeiros passos. No se conhecem com
preciso as razes desses comportamentos, nem existe
medicao verdadeiramente adequada ao tratamento.
E o que me sugere?
Bem. Talvez o estado emocional de madame Maria
Eugnia esteja abalado por razes que desconhecemos. Ela
muito nova e inexperiente. Provavelmente, o fato de ter
sado pela primeira vez do seu ambiente natural, deixado a
famlia, especialmente a me; o prprio casamento
pode ter mexido com suas emoes, gerando um
desequilbrio. Tantos fatores podem influir!
Volto a perguntar: o que me sugere?
Creio que o melhor seria lev-la de volta para casa.
Perplexo, Guilherme exclamou decepcionado:
Mas fizemos tantos planos para essa viagem! Voltar para
nosso pas, quando mal chegamos Europa?
Sim, compreendo sua frustrao, Guilherme. Contudo,
volto a repetir. Talvez o melhor para sua esposa seja retornar
ao Brasil, ao prprio ambiente, aos familiares e s pessoas
conhecidas. Quando perguntei, voc mesmo afirmou que,
antes, sua esposa jamais apresentara problema semelhante.
Pelo menos, no que eu saiba.
Ento... Quem sabe no ser melhor, para a sade mental
dela, voltar ao Brasil? Pense nisso!
Tomando um ltimo gole de vinho, o mdico disse:
Bem, agora devo retirar-me. Tenho uma cirurgia logo
aps o almoo e meu tempo curto.
Agradeo-lhe pela ajuda, Maurice - disse Guilherme.
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Estou sua disposio. Se precisar de alguma coisa, avise-
me, seja a hora que for. Irei at o hotel se necessrio.
Depois que o mdico saiu, Guilherme ficou pensativo e
angustiado.
O que decide? - indagou Pierre.
Ainda no sei, meu amigo. Vou pensar. Tenho esperana
de que o problema no se repetir.
E se voltar?
Nesse caso, talvez, lamentavelmente, eu tenha de deixar
a Europa. No me conformo! Depois de tantos planos, de
tantos gastos, no poder aproveitar a nossa viagem de lua de
mel um absurdo!
verdade. Tambm me sinto frustrado. Esperava que eu
pudesse aproveitar melhor a companhia do amigo que no
encontrava havia tanto tempo - concordou Pierre.
Marie, que se mantivera calada e pensativa o tempo todo,
mais sensvel e vendo o lado feminino, justificou:
No entanto, Maria Eugnia no est assim por vontade
prpria. E apenas uma mocinha insegura e que se sente
desamparada. Sinto que algo de muito srio a est abalando
intimamente.
Ela deve estar sofrendo bastante.
Tem razo, Marie - concordou o amigo brasileiro.
Em seguida, Guilherme levantou-se alegando urgncia em
voltar, pois tinha ficado tempo demais longe da esposa.
Agradeceu ainda uma vez a ateno dos amigos, despediu-se
e voltou ao hotel.
Entrando no quarto, perguntou criada:
E ento?
Tudo bem, monsieur. Madame ainda no acordou.
Tirando da algibeira uma moeda, Guilherme entregou-a
camareira, agradecendo o servio prestado. A moa
inclinou-se numa mesura:
Se precisar de meus prstimos, monsieur, estarei sua
disposio. Basta chamar-me. Meu nome Juliane.
Merci, Juliane.
Depois, Guilherme sentou-se na poltrona, abriu o jornal e
mergulhou na leitura.
13 Novas informaes
Guilherme procurou ajeitar-se o melhor que pde na
poltrona, puxando um tamborete no qual apoiou os ps.
Com o jornal aberto, as notcias passavam pelos seus olhos
sem que conseguisse interessar-se por nenhuma delas. O
pensamento vagava em torno dos ltimos acontecimentos, e
ps-se a refletir sobre os estranhos fenmenos que cercavam
o comportamento da esposa.
Interessante que, analisando a situao comeou a relacionar
essas ocorrncias, que chamava de "alucinaes" da esposa,
com o que se passava consigo mesmo.
Guilherme deu-se conta de que, na primeira noite,
adormecera lembrando-se de Rita, escrava com quem
mantivera um relacionamento mais ntimo. Agora, longe da
terra natal, sentia intensa saudade dela. A bela mulata entrara
no seu sangue; passara com ela momentos inesquecveis
beira do riacho, e esses momentos lhe voltavam sempre
memria. Sentia falta da sua presena, do seu cheiro, do
toque da sua pele morena e macia, dos seus beijos. Como
uma obsesso, a imagem de Rita o seguia por toda parte.
Tentava ser um marido amoroso e dedicado para Maria
Eugnia, porm a diferena entre as duas era grande, e, na
comparao, sua esposa levava desvantagem. Maria Eugnia,
pouco mais nova do que Rita, era insossa e sem expresso,
conquanto tivesse excelentes qualidades: era bonita, bem-
educada, elegante, refinada, sabia conversar e como
comportar-se em qualquer ambiente; pelos seus dotes, atraa
os olhares em qualquer lugar onde estivesse e, o mais
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importante, ela era muito rica.
Por outro lado, Rita havia nascido sob a sina da escravido.
Apesar da condio social no lhe dar nenhum direito,
recebera certa educao junto com a sinhazinha e se vestia
razoavelmente bem graas aos trajes que Maria Eugnia lhe
dava. Possua, no entanto, uma chama, uma vibrao
interior, que o conquistara primeira vista. Tinha um andar
envolvente, o corpo atraente, um olhar fascinante e sedutor
que o encantaram, deixando-o vencido.
Guilherme lembrava-se de que, justamente naquela noite
em que ocorrera a primeira alucinao, ele havia sonhado
com Rita. Feliz por reencontr-la, abraara e beijara a
escrava com ardor, passando momentos de intensa
felicidade com ela. Curioso que, no seu sonho, eles estavam
juntos no leito da sute do hotel! Como poderia ser isso?
Embora Maria Eugnia no houvesse notado, ele se assustara
bastante ao acordar, no tanto pelos gritos dela, mas porque
guardava a lembrana ntida do sonho, e se sentia
intimamente culpado. Enquanto a esposa procurava a
mulher pelo quarto, ele refletia na estranha coincidncia que
ligava os dois fatos. Tudo muito estranho e inusitado! Como
explicar isso? Teria realmente acontecido o encontro? O
mais interessante, e que o deixara verdadeiramente
perplexo, que o sonho lhe parecera to real como se
tivesse acabado de acontecer! Impossvel! No entanto, tinha
ainda a sensao do toque da pele dela, do seu cheiro, do
calor da sua respirao no pescoo dele.
Na segunda noite, quando a esposa vira a "mulher" no canto
do aposento, ele no se recordava de ter sonhado com a
escrava, mas, intuitivamente, sabia que Maria Eugnia estava
vendo Rita.
Depois, a esposa disse que havia reconhecido a mulher
misteriosa, deixando-o assustado. Inclusive, em prantos,
afirmara que essa "mulher" estava querendo destruir-lhe a
vida, mas que ela no permitiria. Ele ficou pasmo. Todavia,
que motivo teria Maria Eugnia para temer Rita, de quem
sempre fora amiga e companheira? A no ser que ela
soubesse dos encontros que ele mantivera com a escrava,
poca. Ento, estaria explicado. Contudo, tinha certeza
absoluta de que a esposa ignorava tal fato.
Nesse momento, o jornal caiu-lhe das mos, e ele levou um
susto. Ao mesmo tempo, eu me espreguicei no leito e
Guilherme se levantou da poltrona, aproximando-se de
mim.
Como est, Maria Eugnia?
Com fome.
Ento, vamos almoar. Passam das duas da tarde. Aonde
quer ir? No longe daqui h um excelente restaurante.
Se no se importa, Guilherme, gostaria de almoar aqui
mesmo, no restaurante do hotel - sugeri, fitando-o com
meiguice:
Para mim, est bem. Depois, poderamos sair para um
passeio.
tima idia. s o tempo necessrio para me preparar.
Chamei a camareira para me ajudar e, quarenta minutos
depois, descemos para o restaurante, que, quele horrio, j
no estava to concorrido. Almoamos e samos de
carruagem pelas ruas da grande cidade. Felizmente, o tempo
estava timo. Temperatura amena, cu azul sem nuvens.
Passeamos pelo Bois de Bologne aproveitando a bela tarde de
sol. Ali era um local que congregava a sociedade parisiense
para conversar, namorar ou passear. A p, a cavalo ou de
carruagem, era um programa agradvel e simptico.
Por coincidncia, no meio do povo vimos nossos amigos
Marie e Pierre. Abraamo-nos com alegria. Sempre bom
depararmos com pessoas conhecidas no meio de estranhos.
Marie e eu caminhamos juntas a trocar idias, enquanto
Guilherme conversava com Pierre, um pouco atrs. A noite,
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como eu me sentisse bem, fomos ao teatro com os amigos e,
depois, jantamos juntos.
A companhia de Marie e Pierre era agradvel e nos diverti-
mos bastante. Voltamos ao hotel bem tarde; exausta e
sonolenta, ca no leito e adormeci incontinenti.
Acordei de madrugada. Pela porta da sacada, a claridade da
lua invadia o aposento. Nisso, eu a vi novamente. Ela abriu a
porta de vidro e entrou no quarto, mantendo os olhos fixos
em Guilherme, sem parecer notar minha presena. Passou
por mim e dirigiu-se para perto de meu marido.
Estupefata, comecei a gritar de pavor. Guilherme despertou
assustado, e o vulto da mulher se desvaneceu minha
frente.
O que houve? Nova alucinao? - indagou ele.
De novo, ela, sempre ela. Quer me enlouquecer!
O que aconteceu desta vez, Maria Eugnia?
Em prantos, contei a ele como vira a mulher.
Voc a reconheceu? - ele perguntou, com voz estranha,
como se receoso de alguma coisa.
Balancei a cabea negativamente.
No.
No?... Mas ainda ontem voc afirmou que conhecia a tal
mulher!
No me atormente, Guilherme! Sim, sei que a conheo,
mas no me lembro de onde.
Desculpe-me, querida. Tambm estou nervoso com tudo
isso. Venha, vamos deitar. Por certo ela no voltar a
atorment-la.
De repente, olhei para a porta de vidro e me lembrei:
Guilherme! Veja, a porta de vidro est aberta!
E da, minha querida? Muitas vezes a deixamos aberta!
Todavia, ontem, antes de me deitar, lembro-me de que
comeou a ventar e fechei a porta. Ento, ela esteve aqui de
verdade! At abriu a porta! Esta a prova de que no
estou tendo alucinaes!
Guilherme pareceu-me assustado; depois, readquirindo seu
equilbrio, falou-me com serenidade:
Impossvel querida. Tudo deve ter uma explicao lgica.
J muito tarde e precisamos dormir. Depois conversaremos
sobre o assunto, est bem?
Por vrios dias, a situao se repetiu, deixando-me ainda
mais abalada emocionalmente. A tal ponto, que eu no
queria mais dormir para no ser obrigada a v-la.
Sem saber o que fazer, tambm bastante cansado e insone,
Guilherme deixou-me sob os cuidados da camareira e
procurou o mdico, que repetiu a sugesto:
Volto a afirmar, Guilherme, que o melhor para sua
esposa ser o retorno s terras brasileiras. Julgo que o
contato de madame Maria Eugnia com os familiares e
o ambiente domstico que lhe natural reagir
beneficamente sobre sua personalidade nervosa.
Despedindo-se do mdico, ainda no completamente
convencido, Guilherme foi procurar o amigo Pierre.
Encontrou-o no escritrio de engenharia que dividia com
outro profissional. Acabara de atender a um cliente e ficou
bastante contente em v-lo.
Que bons ventos o trazem, meu caro Guilherme?
Peo-lhe desculpas por vir procur-lo em seu ambiente
de trabalho. No quero ser inconveniente.
De maneira alguma. Hoje no tenho mais compromissos.
Estava mesmo para sair e tomar um caf. Aceita?
Com prazer.
Ento vamos. Aqui perto h um lugarzinho calmo e
agradvel.
Caminharam pelas ruas at a cafeteria. A hora era excelente.
No local, praticamente vazio, sentaram-se a uma mesinha
perto da janela, da qual podiam ver o movimento da rua.
Pediram dois cafs e, enquanto aguardavam, ficaram
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conversando sobre banalidades.
O garom trouxe o pedido e afastou-se. Levando aos lbios a
bebida fumegante, Pierre fitava o amigo com preocupao.
Em seguida, comentou:
Sua aparncia est pssima.
Maria Eugnia. Tudo continua como antes, embora ela
esteja tomando regularmente a medicao receitada pelo
mdico. Estou a ponto de enlouquecer!
Fez uma pausa, pensativo, mexendo o caf com a
colherinha, sem parar. Sentia que precisava se abrir
urgentemente com algum ou acabaria por explodir. Pierre,
com delicadeza, considerou:
Acho que seu caf j est bem mexido. Guilherme, meu
caro, sinto que voc tem outros problemas. Sabe que sou seu
amigo de longa data. Se puder ser til de alguma maneira,
estou sua disposio.
Decidindo-se, afinal, Guilherme confessou:
Tem razo, meu amigo. O problema muito mais grave
do que parece primeira vista. Oua-me.
E Guilherme passou a relatar, em detalhes, os
acontecimentos dos ltimos dias e as reaes da esposa. Fez
uma pausa, respirou fundo e continuou:
Mas essa apenas uma parte da histria. A outra parte
tem relao com a poca em que Maria Eugnia e eu ramos
noivos.
Respirou fundo, como se estivesse procurando as palavras, e
depois prosseguiu:
Nosso compromisso foi firmado por um acordo entre as
famlias.
Deu de ombros e prosseguiu com expresso melanclica:
Que fazer? Aceitei! Naquela poca, no tinha interesse
por ningum, e isso resolveria o problema financeiro da
minha famlia. S que, no mesmo dia do nosso noivado,
aconteceu um fato que mudou minha vida: conheci uma
escrava da casa, que servia Maria Eugnia. Uma bela moa,
que me encantou primeira vista, e percebi que ela tambm
se interessou por mim. Alguns dias depois, aproximando-me
da fazenda, ainda na estrada, eu a vi se encaminhando
para o riacho. Como ningum da fazenda ainda me vira,
pois eu havia parado longe e fora do ngulo de viso de
quem estivesse na casa-grande, resolvi segui-la.
Parou de falar, tomou um gole de caf e continuou com
expresso enlevada, como se fitasse um ponto ao longe:
Nessa tarde deu-se incio o nosso relacionamento.
Depois, todos os dias ns nos encontrvamos no mesmo
local e passvamos momentos muito felizes juntos. Ao
contrrio do que possa parecer, afirmo-lhe que no agi como
um canalha. Desesperado, na vspera do casamento procurei
at uma desculpa para romper o compromisso com minha
noiva, mas no foi possvel.
Imagino que se sinta culpado por isso, meu caro
Guilherme. Todavia, esses relacionamentos so normais
numa sociedade como a brasileira, em que existem senhores
e escravos. At onde sei, fatos como esses so comuns e
ningum se preocupa com eles! - considerou Pierre.
Quanto sociedade, sim, tem razo. Mas voc se engana,
Pierre, em relao a esse caso. As coisas no so to simples
assim. Vou contar-lhe o desdobramento dessa situao e
poder ajuizar melhor. A noite em que minha esposa teve a
alucinao pela primeira vez...
Guilherme relatou ao amigo Pierre tudo o que acontecera a
respeito das alucinaes, das coincidncias sobre seus
sonhos e a presena da tal mulher. Enfim, da sua certeza de
que a imagem que eu vira no era outra seno a de Rita, a
escrava.
Ser possvel?... - indagou perplexo.
Tudo me leva a crer que sim.
Mas, como?...
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( Espiritismo) - Maria C Alves - Celia X Camargo - Correntes Do Destino.txt
Esta a questo. No sei.
Pierre pensou um pouco, depois sugeriu:
Quem sabe Marie poderia nos ajudar?
Marie? Sua esposa?!...
Sim, ela mesma! Eu sou meio ctico em relao a essas
coisas, sabe disso, mas Marie tem mais contato com fatos do
gnero, pois tem estudado o assunto. Se expuser a ela a
situao...
Por mim, tudo bem. Quando pode ser?
Agora mesmo. Podemos ir at minha casa, aproveitando
que voc est desacompanhado.
Guilherme pediu a nota ao garom, pagou, e se dirigiram
moradia de Pierre. Localizada em agradvel bairro no muito
distante do centro da cidade, cercada por um belo jardim, a
casa era simptica e agradvel. Entretida em cuidar das
plantas no jardim, Marie ficou satisfeita ao ver o esposo
chegar com o amigo brasileiro.
Guilherme, seja bem-vindo! Por que no trouxe Maria
Eugnia?
Pierre adiantou-se, explicando:
Precisamos conversar com voc sem a presena de Maria
Eugnia, minha querida. Logo vai entender. Vamos entrar e
nos acomodarmos.
Marie percebeu que era uma situao especial e calou-se.
Logo depois, sentados confortavelmente na sala de visitas,
Pierre sugeriu:
Guilherme, conte a Marie o que me disse. Pode ser
franco, meu amigo. O que disser morrer aqui.
Guilherme tomou flego e comeou a falar, um pouco
constrangido a princpio, repetindo tudo o que j relatara a
Pierre. Quando acabou, a jovem senhora estava perplexa.
Como a esposa permanecesse calada, Pierre indagou fazendo
um gesto com as mos:
E da? O que pensa sobre esses fatos, querida?
Lentamente, com extremo cuidado e delicadeza, ela
confirmou:
Julgo que voc pode estar com a razo, Guilherme. Essa
mulher pode ser a escrava Rita.
Mas isso uma loucura, Marie! Tambm pensei nessa
possibilidade, mas o que a leva a achar que isso possa ter um
fundo de verdade? - considerou Guilherme.
Porque tenho testemunhado outros fatos semelhantes.
H alguns anos, venho estudando esses fenmenos. A partir
de alguns sonhos que eu tive - e que depois se confirmaram,
como se houvessem realmente acontecido -, passei a me
interessar pelo assunto. Por coincidncia, algumas pessoas
relataram-me ocorrncias semelhantes, o que fez com que
eu chegasse concluso de que, de alguma forma, isso
existe, um fato. como se, ao dormir, pudssemos gozar
de uma outra vida, realizar atividades, passear, visitar
pessoas, e muito mais.
Ser possvel? - disse Guilherme.
No digo que possvel. Tenho convico absoluta do
que afirmo. Alis, eu no disse nenhuma novidade. Scrates
e Plato, que viveram cerca de quatrocentos anos antes de
Cristo, j acreditavam nisso - respondeu Marie com
gravidade e firmeza.
Estou absolutamente pasmo! Mas, tudo bem. Tudo bem.
Suponhamos que possa ser verdade. Diga-me, o que leva
esses sonhos a acontecerem? Porque durante minha
existncia
j tive uma infinidade de outros sonhos e nada me pareceu
to "real" assim!
Exato. Cheguei concluso de que o que determina esse
tipo de sonho "real" so nossos interesses.
Como assim? Explique-se melhor, Marie.
Voc no afirmou que estava sentindo falta da escrava?
Sim. Lamento confessar, mas verdade.
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Fique tranqilo. Ningum est aqui para julg-lo, meu
amigo. Certamente, ela tambm sentia falta de voc. Tanto
que foi ela que o procurou aqui, num outro pas, distante do
Brasil.
Mas to longe!... E como ela teria me encontrado, aqui,
em Paris? A distncia no interfere?
Aparentemente, no. Afirmo mais: ela o teria encontrado
em qualquer lugar do mundo. Parece que o que conta nesses
casos o sentimento, o desejo intenso direcionado para
alguma coisa ou algum.
Guilherme olhava fixamente para Marie. Parecia que a estava
vendo pela primeira vez. Aquela jovem francesa que sempre
lhe parecera to comum, como tantas jovens da sua idade,
mostrava agora uma inteligncia que ele estava longe de
suspeitar, alm de cultura, seriedade, lucidez. Era uma
personalidade instigante.
Marie, como pode ter tanta certeza desses fatos? voltou
Guilherme a questionar.
Como j expliquei, pelo estudo de vrios casos. E lhe digo
mais, Guilherme. Pode acontecer de duas pessoas, que esto
em lugares distantes, terem sonhos absolutamente idnticos
e, ao acordar, se lembrarem desse fato. Chegam a falar sobre
detalhes do lugar, das pessoas, do assunto tratado, que
ningum mais poderia conhecer, a no ser que tivesse
estado realmente l. Tenho tudo anotado e, se voc desejar,
poderei lhe emprestar esse material.
Extraordinrio! Ento, duas pessoas que se amam podem
estar juntas em qualquer lugar! Gostaria de poder ter a sua
certeza, Marie - disse com sinceridade.
Eu o compreendo, Guilherme. Voc no obrigado a
partilhar das minhas convices. Apenas lhe contei o
resultado de minhas pesquisas. Todavia, eu lhe asseguro,
meu caro, que tudo muito verdadeiro. E digo mais: no
apenas as pessoas que se amam podem encontrar-se, mas
tambm as que se odeiam.
Verdade?
Sim, sem dvida, porque o motivo o mesmo: o
sentimento. Tudo isso pode ser provado. Existem casos,
inclusive, em que a pessoa, ao acordar, v a prova do seu
sonho, seja uma flor, um objeto qualquer, um detalhe
comprovando que tudo o que ela sonhou verdade, que
aconteceu de fato.
Nesse momento, atnito, Guilherme lembrou-se do detalhe
da porta.
Entendo o que quer dizer. Comigo aconteceu algo
semelhante. Certa madrugada, Maria Eugnia viu a mulher
misteriosa entrar pela porta de vidro que d para a nossa
sacada. Depois, quando acordamos, a porta estava aberta. O
curioso que minha esposa lembrou-se, com toda a certeza,
de que havia fechado a porta antes de deitar, em virtude de
estar ventando bastante.
Percebe como detalhes so importantes? - afirmou Marie,
satisfeita pelo fato que comprovava suas pesquisas.
Verdadeiramente incrvel! E quanto a Maria Eugnia?
Acha que retornar para nosso pas poderia ajud-la?
indagou Guilherme, preocupado em resolver seu problema.
Marie pensou um pouco e considerou:
Na verdade, no posso afirmar tal coisa em relao sua
esposa. Talvez retornar ao Brasil possa ajudar no sentido de
que Rita, vendo-o por perto, no precise busc-lo pelo
sonho.
uma hiptese. Como pode acontecer tambm que, pela
proximidade, ela o procure ainda mais. Difcil saber a reao
das pessoas. Todavia, quanto Maria Eugnia, Maurice tem
razo quando julga que o ambiente em que ela sempre viveu
junto da me e das pessoas que fizeram parte de sua vida,
possa fazer com que se sinta mais segura e confiante.
Conversaram mais um pouco, depois Guilherme despediu-
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se, agradecendo a hospitalidade e as informaes, e
regressou ao hotel.
No dia seguinte, aps refletir bastante, simplesmente me
comunicou:
Retornaremos ao Brasil no primeiro navio.
14 Retorno ao lar
Marcada a data do regresso para duas semanas depois,
passamos os dias que ainda nos restavam comprando
lembranas e preparando as bagagens. Despedimo-nos dos
amigos e dos mais belos recantos de Paris e, afinal, com o
corao partido, vimos chegar o momento de voltar para o
Brasil.
O dia amanhecera encoberto e uma leve bruma invadia
tudo. Nossa despedida da bela cidade era melanclica, assim
como eu me sentia. Uma tristeza infinita se me
assenhoreava do ntimo, juntamente com uma sensao de
angstia, de opresso no peito, como se um perigo iminente
nos ameaasse. Contive-me para no desabar em choro
convulsivo. No queria que meu marido me visse nesse
estado.
Alugamos uma carruagem, que nos levou de Paris ao porto
de Havre, na embocadura do rio Sena, do qual zarparia o
navio. Pousamos num hotel e, na manh seguinte, fomos
para o porto, cujo movimento de veculos, carregadores de
bagagens, passageiros, era intenso, sem contar a multido
alvoroada que ali se congregava para ver a partida de entes
queridos e de amigos. Subimos a rampa de embarque e
ficamos no tombadilho, debruados na amurada. Olhando l
para baixo, as pessoas pareciam um formigueiro e aquela
confuso mexeu com meus nervos, deixando-me atordoada.
Assim, foi com alvio que ouvi soar o apito, indicando a
partida. O grande navio se ps em movimento com
dificuldade, lentamente, enquanto os passageiros acenavam
para os que ficaram no porto. Aos poucos nos afastamos de
terra firme ganhando guas profundas. Como o mau tempo
no nos permitisse ficar no tombadilho, e o movimento das
ondas agitadas me deixasse nauseada, passei uma boa parte
dos dias dentro do camarote. Guilherme, ao contrrio,
gastava as horas conversando e se distraindo com outros
passageiros; quando a chuva no lhe permitia ficar ao
relento, sentava-se numa mesa de jogo e passava o tempo
entregue s cartas.
Da minha parte, descansava e, com incrvel esforo,
preparava-me para os almoos e jantares, ocasies essas em
que as mulheres sempre caprichavam nas vestimentas e nas
jias, que as transformavam para os momentos especiais da
sociedade ali reunida. Na verdade, eu no tinha vontade de
sair do camarote. Alis, desde que Guilherme me informara
da sua deciso de retornar ao Brasil, sentia-me tensa,
angustiada, envolvida por um estado de grande agitao que
no sabia explicar.
Procurava vencer, sem resultado, essa sensao que se
apoderara de mim. A viagem foi um tormento, por isso me
senti aliviada quando, aps um tempo enorme, atracamos
em porto brasileiro. Guilherme alugou uma carruagem e
assim, do Rio de Janeiro, fizemos o trajeto de retorno, que
agora eu j conhecia, e, aps longo percurso por terra -
sacolejos que nem de longe se pareciam aos movimentos da
embarcao -, para meu alvio nos aproximamos da fazenda.
No fundo, estava sentindo falta de tudo o que representava
terreno seguro: a presena de minha me, que me transmitia
segurana e paz, meus aposentos, que guardavam meus
sonhos e tristezas, anseios e alegrias. Lembranas queridas
afloraram-me mente, ampliando o desejo de chegar.
Curioso que o retorno ao lar, casa que me vira nascer,
momento que eu tanto aguardava, provocou-me um
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aumento no mal-estar. Quanto mais diminua a distncia
entre ns e a fazenda, pior eu ficava. Essa sensao deixou-
me surpresa e angustiada.
Chegamos ao entardecer. As luzes j estavam acesas e, de
longe, pude ver a casa-grande. A nica coisa que realmente
me alegrava era poder rever minha me, de quem sentia
profunda saudade.
Ao ouvir o rodar de uma carruagem parando entrada, os
escravos saram para ver quem se aproximava quela hora.
Reconhecendo-nos, correram a avisar os senhores. Meus
pais assomaram porta, surpresos e ansiosos, enquanto os
escravos, ligeiros, tiravam as bagagens do veculo,
transportando-as para dentro de casa.
Minha filha! - exclamou minha me, correndo a abraar-
me, enquanto meu pai se dirigia ao encontro de Guilherme,
cumprimentando - o.
Naquele momento, no resisti e dei vazo s lgrimas por
tanto tempo represadas. Choramos abraadas, e minha me
me levou para dentro com imenso carinho.
Enquanto nos cumprimentvamos, eu relanceava o olhar
pelo ambiente que to bem conhecia, sentindo-me, afinal,
de volta ao lar. Na sala de estar, meu pai dizia a Guilherme:
Chegaram a tempo de jantar conosco, Guilherme. Porm,
foi uma bela surpresa! No os aguardvamos to cedo. Pensei
que ficariam mais tempo pelo Velho Mundo...
verdade, senhor Figueiroa. Resolvemos retornar antes
do previsto. Estvamos ambos sentindo falta da nossa terra.
Fizeram boa viagem?
Muito boa. O tempo prejudicou um pouco as atividades
no navio, mas ainda assim correu tudo bem.
E voc, minha filha, ainda no me disse o que achou da
Europa - indagou a me, curiosa.
Ah, mame! tudo muito lindo e diferente daqui.
realmente outro mundo. Especialmente Paris, onde
permanecemos mais tempo, uma cidade encantadora.
Trouxemos lembranas para todos.
Apesar da aparente animao da filha, Virgnia notou que
algo no estava bem. O jeito de olhar, as mos nervosas e a
agitao mostraram a ela que Maria Eugnia devia estar com
problemas.
No se preocupe, querida. Teremos tempo para tudo isso.
Agora vamos jantar, porque sei que a viagem foi exaustiva e
desejam repousar.
Sentados mesa, que a escrava Odete havia arrumado,
fizemos jus s delcias que Florncia cozinhara. Ao terminar,
comentei satisfeita:
Ah!...Muito bom retornar ao lar. Estava com saudade do
tempero de Florncia. Creio que agora tudo entrar nos
eixos...
Aquele comentrio casual, embora acompanhado de um
sorriso, soou estranho aos meus pais. Trocaram um olhar de
preocupao, enquanto mame nos convidava a passar para a
sala de estar onde, como de hbito, nos serviriam caf e um
licor.
Conversamos ainda sobre banalidades por alguns minutos,
depois mame sugeriu bem-humorada:
Teremos muito tempo para saber das novidades. Agora,
se quiserem se recolher, no se acanhem. Percebo que esto
cansados. Os aposentos esto preparados e as bagagens foram
arrumadas.
Aproveitando a deixa, Guilherme levantou-se, fazendo uma
leve reverncia:
Obrigado, senhora Virgnia. Realmente estamos exaustos
e, se no for indelicadeza de nossa parte, vamos nos
recolher. Boa noite!
Tambm me despedi de ambos e subimos as escadarias,
enquanto meus pais permaneciam na sala. A satisfao que
eu sentia pela volta ao lar misturava-se a um outro
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sentimento: o medo.
Dionsia veio ajudar-me a trocar de roupa e nos abraamos
com carinho.
Estava desacostumada desses hbitos, Dinha. Nesse
perodo, fui obrigada a fazer tudo sozinha, e confesso que
tive alguns problemas. No hotel era diferente, pois havia
uma cria
da de quarto que me ajudava, quando necessrio. Estava com
saudade de voc, minha me de leite.
A escrava, em lgrimas, fitava-me com devoo:
Enquanto esteve l longe, rezei muito por voc,
sinhazinha, para que tudo corresse bem e fosse feliz.
Obrigada, Dinha.
Agora durma, sinhazinha. Boa noite!
Ela cobriu-me e saiu do quarto sem fazer barulho. Logo,
Guilherme veio deitar-se tambm. Adormecemos pouco
depois.
Acordei de manh cedinho e, como meu esposo ainda esti-
vesse dormindo, comecei a pensar. Agora que estava em casa, temia
que Guilherme se afastasse de mim, por causa de Rita. Lembrei-me
de que deixara tudo combinado com Miguel. Teria de ir procur-lo e
colocar em ao meu plano. Mais do que nunca, eu queria acabar
com ela. Rita no me dera paz durante a viagem e eu temia
que as coisas piorassem, uma vez que estvamos ali to
perto.
Levantei-me, fiz a higiene e desci para tomar caf com meus
pais, cujo horrio eu conhecia de longa data. Estvamos
sentados mesa quando Guilherme apareceu, todo
arrumado; cumprimentou-nos e acomodou-se tambm.
Depois, serviu-se de uma xcara de caf com leite, po fresco
e manteiga.
No apenas voc estava com saudade do lar, querida. Eu
tambm. Essas pequenas coisas que nos lembram a infncia,
a famlia, o lar so insubstituveis. No troco este nosso po
caseiro, a manteiga, o caf com leite, por nada.
Pois ento, no faa cerimnia e sirva-se vontade,
Guilherme - disse minha me. - Estas rosquinhas de nata
recheadas de gelia de laranja esto uma verdadeira delcia!
Obrigado, senhora Virgnia.
Olhei para meu marido, sentado a meu lado, e comentei:
Estava dormindo to tranqilo que julguei no fosse
acordar to cedo, Guilherme.
Quando voc desceu, eu j estava acordado, minha
querida. Por falar nisso, levantei porque precisamos ir
fazenda Santa Clara. Estou preocupado, especialmente com
meu pai,
que no anda bem de sade.
Ouvindo suas palavras, achei que seria a ocasio ideal para
colocar meu plano em ao; assim, com expresso
penalizada, considerei:
To rpido? Mas mal chegamos de viagem! Lamento,
porm acho que no vou poder acompanh-lo, querido.
Ainda estou bastante fragilizada e sensvel para atrever-me a
entrar
numa carruagem, mesmo que por pouco tempo. Sinto-me
nauseada e, s de pensar em viajar, meu estado piora. Ficar
triste se eu no for com voc? - disse com voz macia.
Guilherme, que a princpio tinha mostrado certo des-
contentamento, acabou conformando-se diante de minhas
razes:
Claro que no ficarei satisfeito de ir sozinho, Maria
Eugnia; todavia, entendo seus motivos. Quanto a meus pais,
certamente ficaro decepcionados, pois lhe querem muito
bem.
Eu sei, querido. Tambm gosto muito do senhor
Valentim e da senhora Leonora. Entretanto, diga-lhes que,
assim que for possvel, iremos passar alguns dias na Santa
Clara. Ah! No se esquea de levar os presentes que
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trouxemos para seus pais! To logo acabe de tomar meu caf,
cuidarei pessoalmente disso. Alis, estou quase terminando.
Chamei Odete, que me auxiliou a separar os presentes e
traz-los para baixo, colocando na carruagem as lembranas
que trouxramos para meus sogros. Dinha j havia feito uma
pequena mala com o indispensvel, visto que meu marido
ficaria poucos dias na casa paterna. Em seguida, Guilherme
partiu, com a carruagem carregada de mimos. Despedi-me
dele, mandando mil recomendaes para seus pais.
Assim que ele desapareceu na curva da estrada, corri para
dentro. Precisava aproveitar aqueles trs dias de ausncia.
Pensei que voc estivesse com problemas no estmago, e
agora a vejo toda animada! - considerou minha me,
estranhando-me a melhora sbita.
Realmente, estou bem melhor. Ah! Ainda no entreguei
os presentes para a senhora e para o papai! Aqui esto.
Entreguei para minha me um lindo xale colorido terminado
em franjas; para meu pai, um novo e belo cachimbo; para
Dinha, um vestido.
Todos gostaram dos presentes. Dinha agradeceu, em
lgrimas, dizendo que o vestido era o mais belo que j vira e
que lhe serviria direitinho.
Depois, resolvi andar pelo jardim. Sempre me fez muito
bem passear pelas alamedas, respirando o ar puro e sentindo
o aroma das flores.
No deixe de levar a sombrinha, pois o sol est forte -
alertou minha me.
No esquecerei, mame. At mais!
Caminhei um pouco e, dando a volta no jardim, segui rumo
senzala. Encontrando uns garotos, indaguei por Miguel.
Um deles respondeu-me que o vira trabalhando no depsito.
Tudo estava meu favor.
Depsito era um grande barraco onde se guardava a
produo da fazenda. Ordenei que o menino fosse avis-lo
de que eu o esperava no caramancho.
Veja l, moleque. Ningum pode ficar sabendo disso.
Aqui est uma moeda. Se souber ficar calado, receber mais.
O garoto saiu correndo, enquanto tomei o rumo do
caramancho. No demorou muito, escutei passos que
se aproximavam. Miguel entrou no caramancho e percebi
que estava trmulo.
Fitei-o sorridente.
Muito bem. Gosto que me obedeam com presteza,
Miguel.
A notcia do retorno da sinhazinha j correu pela
fazenda. O que deseja de mim, sinhazinha?
Sabe o que desejo de voc. Esqueceu o que acertamos
antes do meu casamento? Agora que voltei, quero saber se
voc continua a meu dispor.
Miguel olhava-me de um jeito que no escondia seu inte-
resse por mim. Depois de alguns segundos, ele murmurou:
Pensei que tivesse mudado de idia, sinhazinha.
E claro que no. E voc, continua disposto a me ajudar?
O que eu ganharei em troca? - indagou.
Vendo o jovem minha frente, percebi que ainda estava
dominado pelos escrpulos, mas que no conseguia disfarar
seus sentimentos. Se soubesse agir, ele faria qualquer coisa
por mim. Ento, tomei a sua mo grande e calosa entre as
minhas, fazendo-lhe um carinho e disse com voz doce:
Sabe o que ganhar. No o bastante?
Ele estremeceu de prazer, fitando-me de maneira diferente.
Quando ser feito o servio?
Vencera-lhe as ltimas resistncias. Respondi baixinho, com
um leve sorriso:
Hoje por volta das trs horas da tarde.
Hoje?... Sinhazinha, no esperava o seu retorno to
rpido. E se no for possvel?
possvel. Tem que ser hoje - afirmei autoritria. No
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quero saber como far o servio. Faa-o, apenas. Lembra-se
de tudo o que conversamos antes da minha viagem?
Lembro. Tenho tudo guardado aqui na cabea disse ele,
apontando com o dedo indicador.
Est bem. Ento, pode ir agora. Tome cuidado. No
admito erros.
Miguel deu alguns passos at a sada do caramancho.
Depois, voltou-se, envolvendo-me num ltimo olhar:
A sinhazinha est mais bela do que nunca. Quando
receberei minha paga?
Soltei uma risada, percebendo como ele estava tenso.
No se preocupe. Faa o servio e cumprirei minha parte
no acordo.
O escravo foi embora e fiquei eufrica. Tudo daria certo.
Nada poderia sair errado.
Voltei para o casaro, satisfeita com o rumo dos
acontecimentos. Conversei com minha me at a hora do
almoo, contando-lhe detalhes da nossa viagem.
15 Mergulho no erro
Aps o almoo, como era hbito na fazenda, todos da casa se
recolheram. Em meu quarto, quieta, fingi que estava
dormindo e passei a imaginar o que estaria acontecendo l
fora. Afinal, no resisti e desci as escadarias sem fazer rudo.
Tomei o rumo do lago tendo o cuidado de olhar em torno,
certificando-me de no estar sendo vista.
Bem a tempo. Aproximando-me, pude ver Miguel e Rita que
se encaminhavam para um pequeno barco ancorado
margem. Escondi-me atrs de uma grande rvore e pus-me a
observar.
Miguel dizia para Rita, que caminhava a seu lado:
No fique preocupada, Ritinha. No tem perigo algum.
Mas eu no sei nadar, Miguel! - afirmava ela, temerosa.
Nem precisa. Vamos apenas dar um pequeno passeio pelo
lago. Prometo-lhe que no me afastarei da margem. Alm
disso, ser bom para perder esse medo.
Ento, est bem - concordou ela, respirando fundo para
ganhar coragem.
Miguel ajudou-a a subir no barco e, depois de soltar a corda,
subiu tambm. Sentados defronte um do outro, ele comeou
a remar. Notei que conversavam, porm, daquela distncia,
no conseguia ouvir o que diziam. Ao perceber que estavam
em local mais fundo, ele fingiu deixar cair o remo e
inclinou-se perigosamente para apanh-lo. Nesse momento,
com o peso do seu corpo, a frgil embarcao desequilibrou-
se e virou. Ritinha, apavorada, soltou um grito. Eu
acompanhava-lhes todos os movimentos. O corao batia
forte, de excitao e prazer ao ver que minha vingana
estava sendo consumada. Lamentava apenas que Rita no
soubesse por que ia morrer. Meu prazer seria completo se
pudesse dizer a ela: Veja! Voc morre por ter-me trado.
Roubou-me o amor de Guilherme, meu noivo, porm no
roubar o amor de meu marido. Morra, maldita!
Fixando a ateno no lago, vi quando ela afundou e, depois
de alguns instantes, voltou tona a se debater, desesperada,
gritando por socorro. Amedrontado agora diante do que
estava fazendo e temendo que algum a ouvisse, Miguel
agarrou-a pelo pescoo, puxando-a para baixo. De longe,
ainda pude ouvir os gritos apavorados de Ritinha:
Socorro! Socorro! No deixem ele me afogar! No deixem
ele me afogar!
Tudo em vo, porm. Estvamos distantes da casa-grande e
ningum poderia ouvi-la. Eu era a nica pessoa mais
prxima e no a ajudaria em hiptese alguma.
Com os nervos abalados diante da cena que tanto planejara,
comecei a rir de satisfao. Miguel se saiu melhor do que eu
imaginara.
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Considerando consumado o ato, apressei-me em fugir dali
antes que algum aparecesse. Com certeza, logo Miguel se
poria a gritar pedindo socorro, e eu no podia ser vista nas
imediaes. O escravo, trmulo e apavorado, correu
pelo gramado acima clamando por ajuda. Algum na
senzala ouviu seus gritos e alertou os demais, que
procuraram saber o que estava acontecendo.
Dentro em pouco uma multido se aglomerava na beira do
lago. Miguel explicava em lgrimas:
Ritinha quis sair de barco e fiz sua vontade. De repente,
por infelicidade, o remo caiu no lago; inclinei-me para
apanh-lo, c o barco virou. Tentei salv-la, mas Ritinha
afundou e no a vi mais. Creio que ficou presa no fundo.
Ento, gritei por socorro.
Alguns homens imediatamente se jogaram na gua
procurando pelo corpo. Quando se cansavam eram
substitudos por outros que prosseguiam na busca.
No estamos encontrando! Onde ela afundou? -
perguntou Ramiro.
Foi nessa direo - explicou Miguel, indicando o rumo.
Porm, eles mergulhavam, e nada. Com o passar do tempo,
as condies foram ficando mais difceis, pois, como
atingiam o fundo, a gua do lago ficava cada vez mais turva,
dificultando a visibilidade.
At que, em dado momento, Ramiro voltou tona
exclamando:
Encontrei! Encontrei o corpo! Preciso de ajuda
para tir-lo do fundo.
Amaro, amigo de Miguel, pulou na gua e, em pouco tempo,
trouxeram Rita. A jovem foi colocada na grama, sem vida;
estava suja de terra e, na cabeleira molhada e emaranhada,
viam-se restos de folhas e de sujeiras; o semblante
acinzentado, marmreo, os lbios descorados, a expresso
inerte, impressionaram a todos os que ali estavam. Parecia
impossvel que aquela jovem to bela e cheia de vida agora
estivesse morta.
Dinha, que aguardava o resultado da busca como os
demais, chorando e rezando, se abraou ao corpo da filha
querida, agora sem vida, em grande desespero.
To jovem e to bela era minha filha... O que farei sem
ela? O que ser da minha vida sem ela, a luz dos meus olhos?
Mame e Dinha se abraavam, procurando dar-lhe consolo e
amparo naquele momento de grande sofrimento.
Acalme-se, Dinha. O Senhor quis assim. No se rebele
contra a vontade soberana de Deus.
Aquela me, porm, enlouquecida de dor, no conseguia
ouvir a ela e a nenhuma outra pessoa, debruada sobre a
filha que no voltaria a sorrir, que no voltaria a falar, que
no voltaria a andar e correr pelos campos, que no voltaria
a viver...
Algum tempo depois, transportaram o corpo de Rita para a
senzala, colocando-o sobre uma esteira. Dionsia fez questo
de cuidar da filha, como sempre o fizera. Assim, tirou-lhe as
vestes molhadas, limpou-a, enxugou-a e em seguida vestiu-
lhe roupas limpas e secas. Penteou-lhe os cabelos e acendeu
velas em torno da esteira. Depois, abriu a porta da senzala,
permitindo que todos entrassem para velar e rezar por sua
filha.
ENQUANTO isso, A POBRE RITA passara por momentos
dramticos e terrveis. Por insistncia de Miguel, relutante,
ela havia aceitado o convite para dar um passeio de barco.
Na verdade, nem sabia por que aceitara. Nunca gostara do
lago; desde pequena sentia muito medo de gua. Esse foi o
motivo por que no aprendera a nadar como as outras
crianas da fazenda. S entrava no riacho, em local bem
raso.
Todavia, como era a primeira vez que Miguel lhe fazia um
convite, resolveu concordar. Ao entrar no barco, Rita sentiu
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grande mal-estar, como se intuitivamente soubesse que algo
trgico iria acontecer. Miguel, no entanto, acalmou-a
dizendo:
No seja tola, Ritinha. No h perigo nenhum. Ando
nessa embarcao h muitos anos e nunca aconteceu nada.
Ela segura! Sei nadar muito bem e no permitirei que lhe
acontea nada de ruim. Alm disso, no confia em mim?
Ouvindo-o colocar as coisas dessa forma, embora no esti-
vesse totalmente convencida, Rita ficou constrangida de
descer. "Afinal, ele estava sendo to gentil! Sabia que seu ro-
mance com Guilherme no tinha futuro, no apenas por
serem de mundos diferentes, mas tambm porque ele agora
estava casado com aquela que sempre tinha considerado
como sua melhor amiga, Maria Eugnia. Quem sabe esse
convite para o passeio no lago no seria o incio de um novo
relacionamento? Era sabido por todos que Miguel no tinha
namorada; sempre arredio, mantinha-se afastado das moas
da senzala. Agora, ele tentava se aproximar dela. No seria
esse um sinal do destino para mudar sua vida, dedicando-se a
algum da sua prpria condio, e que teria como faz-la
feliz?"
Assim pensando, olhava-o sentado sua frente e no podia
deixar de reconhecer que ele era um belo homem: alto e
forte, inspirava segurana; sob a camisa rstica de algodo,
podia notar os msculos salientes do peito e dos braos; as
pernas enrijecidas no labor do campo, plantadas no fundo do
barco com firmeza; o rosto srio, que brilhava de suor, era
bem feito, e os olhos escuros, expressivos; trazia os cabelos
crespos aparados, bem curtos, deixando a testa e o pescoo
rijo mostra. Sobretudo, porm, era o porte altivo e
vigoroso, a expresso desafiadora, que faziam dele algum
especial, como se fosse um rei.
Tudo aconteceu em frao de segundos. Estavam conver-
sando, quando notou que um dos remos, escapando da mo
de Miguel, cara no lago. O rapaz se inclinara para apanh-lo
e ela gritou assustada; a frgil embarcao virou e, quando
deu por si, apavorada, estava na gua debatendo-se e
afundando cada vez mais; o ar lhe faltava e o peito parecia
que ia explodir; depois de um tempo que lhe parecera sem
fim, atingiu o fundo e, lentamente, comeou a subir.
Enchendo-se de esperana, ela batia os braos lutando para
conservar-se tona. Nesse momento, sentiu a proximidade
de Miguel e procurou agarrar-se a ele, na tentativa de salvar-
se. No entanto, com horror, sem entender o que estava
acontecendo, notou que seu companheiro ainda a puxava
para baixo. Lembrou-se de ter gritado:
Socorro! Socorro! No deixem ele me afogar! No deixem
ele me afogar!
Entretanto, quanto mais ela gritava, mais lutava para
conservar-se tona, mais Miguel a empurrava para
baixo, at que no viu mais nada. Sentiu a gua penetrar em
seus pulmes, por todo o corpo, impedindo-a de respirar... e
perdeu a conscincia.
Rita no notou quando dois vultos difanos e luminosos
mergulharam no lago, aproximaram-se dela e,
delicadamente, retiraram o esprito daquele que seria seu
filho, envolvendo-o carinhosamente.
Pobre irm! Ainda no foi desta vez que conseguiu
melhorar. Comprometeu-se, comprometendo o
planejamento reencarnatrio do nosso querido amigo, que
se preparava para voltar carne com o objetivo de ampar-
la. Que Deus a ajude. Nada podemos fazer por ela neste
momento. Partamos!
Em seguida, subiram tona e alaram-se no espao,
levando nos braos o pequeno ser adormecido.
De repente, Rita sentiu que despertava. Lutou para sair da
gua, mas, com indescritvel horror, sentiu-se presa. Via os
escravos que mergulhavam, procurando-a, e tentava
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chamar-lhes a ateno, pedindo ajuda, mas no conseguia.
At que viu Ramiro, seu amigo, que se aproximou tentando
solt-la. Ele no conseguiu e afastou-se, retornando pouco
depois com Amaro, que a segurou fortemente, enquanto o
companheiro soltava sua roupa dos ramos que a prendiam,
libertando-a. Finalmente, cheia de esperana, sentiu-se nos
braos de Amaro que subia, at que chegou tona, e,
imediatamente, outros braos a retiraram da gua.
Aliviada e agradecida, percebeu que a arrastavam,
colocando-a sobre a grama, margem do lago. Sentia-se
extremamente cansada e sonolenta. Aproveitou aqueles
momentos para descansar. Por sorte, tinham conseguido
salv-la!
Exausta, entrou em sonolncia e no viu mais nada.
De sbito, acordou e viu-se estendida na esteira, no
ambiente conhecido da senzala. Quanto tempo teria
dormido? Olhou em torno e percebeu que seus amigos
rezavam sua volta. O que est acontecendo? - pensou. -
Ser que me julgam morta?
Tentou falar com os que estavam por ali, seus amigos,
chamar-lhes a ateno, mas no conseguiu. Pareciam no
v-la. De repente, viu Miguel, que entrava na senzala
lentamente. No era mais aquele homem seguro e resoluto,
era um ser inseguro e acovardado, de ombros cados e
cabea enterrada no peito; seus passos eram indecisos e a
expresso, temerosa. Correu a encontr-lo, gritando:
Por que fez isso comigo, Miguel? Por que queria me
matar? Sempre fomos amigos! Todavia, voc no conseguiu.
Estou viva e todos ficaro sabendo o que voc fez, maldito!
Eu confiava em voc, e voc me traiu. Por qu? Por qu?...
Rita batia em Miguel, que no conseguia v-la, mas ele
comeou a sentir grande mal-estar, arrepios gelados
percorrendo-lhe o corpo e uma sensao de tontura, que o
fez sentar-se no cho de terra batida para no cair, enquanto
ela prosseguia revoltada:
Por que no me olha, miservel? Por que seus olhos
fogem dos meus? Infeliz de voc, porque o denunciarei ao
sinh Figueiroa. No ficar impune!
Rita continuou falando e falando, repetindo as mesmas
coisas. Como no recebesse resposta, ela se cansou e foi
acocorar-se a um canto da senzala, desalentada.
Eu NO PODERIA DEIXAR DE comparecer ao velrio, pois o feito
chamaria a ateno de todos. Desse modo, em determinada
hora, acompanhei minha me. Eu observava o sofrimento
dos escravos, via suas lgrimas, ouvia suas rezas misturadas
com cnticos, e meu corao continuava frio e insensvel.
Nesse momento, Rita me viu chegar. Foi ao meu encontro,
procurando ser ouvida:
Maria Eugnia, ajude-me! Aconteceu uma coisa horrvel!
Miguel tentou me matar e, por pouco, no conseguiu. Estou viva
porque outros me tiraram do lago. Quero que todos saibam desse
fato. Vou denunciar esse criminoso para o sinh Figueiroa. Por que
no me responde, sinhazinha? Responda-me, pela nossa amizade!
Voc no me ouve? Tambm me despreza, como os outros? Todos
me ignoram, at voc! O que est acontecendo?...
Rita parou de falar, pensativa. Nem a amiga lhe dava
ateno! Diante da gravidade desse fato e, com a conscincia
culpada, resolveu abrir seu corao, julgando que, de alguma
maneira, a sinhazinha tivesse ficado sabendo dos encontros
no riacho. Ento, extremamente envergonhada, prosseguiu:
Ser que por causa de seu esposo, Guilherme? Perdoe-me,
pois tra sua confiana, mas ele era sedutor e eu fui muito fraca.
No dei sinal de ter ouvido sua explicao. Perplexa, Rita
continuou falando e procurando justificar-se. Todavia, como
no obtivesse resposta, cansada, afastou-se em prantos,
acreditando que sua sinhazinha no lhe perdoara, visto que
nem sequer aceitara dar-lhe ateno. Voltou a acomodar-se
num canto da senzala, observando todos os que entravam e
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saam.
NESSA HORA, o CADVER DE Rita no estava mais na esteira.
Haviam trazido uma mesa, onde estenderam seu corpo. Mais
tarde, aproveitando um momento em que no havia
ningum por perto, acerquei-me dela e fitei-a. Ainda no a
tinha visto de perto desde que chegara de viagem. Nem viva
nem morta. Inclinando-me de mos postas, fingi que rezava
por inteno de sua alma. No fundo, porm, s desejava ver
como ela tinha ficado agora que ultrapassara os umbrais da
morte.
Fitei seu rosto marmreo, que aparentava um estranho tom
cinza-esverdeado, os olhos cerrados, as mos de cera
cruzadas sobre o peito, as unhas roxas, e disse baixinho, no
conseguindo controlar o desejo de tripudiar diante daquela
que odiava:
Oh, Rita, onde est sua beleza agora? Que feito do seu
porte elegante, do gingado que conquistou meu noivo?
Ah!... Julgava que eu ignorava tudo, no ? No entanto,
sempre soube do seu envolvimento com Guilherme. Eu vi
vocs dois juntos beira do riacho, miservel, e desde
aquele dia passei a odi-la. E, por isso, mereceu morrer! No
poderia permitir que continuasse viva para desfrutar do
amor de meu esposo. Acreditava mesmo que eu aceitaria
dividir o que meu com algum, especialmente com uma
reles escrava?... Agora, ele ser s meu para sempre, e voc
ter o destino daqueles que morrem: a terra, onde ser
devorada pelos bichos. Estou satisfeita. Voc teve o que
mereceu. Adeus.
O que eu no poderia imaginar que Rita, no momento em
que eu me aproximava da mesa, foi atrada para l, deixando
o canto do barraco e, com supremo horror, tinha ouvido
tudo.
medida que eu falava, lavando a alma e saboreando minha
vingana, Rita acompanhava com ateno e assombro tudo o
que eu dizia. Tentava retrucar, pedir-me perdo, mas eu no
podia escutar. Nesse momento, Rita percebeu que fora
vtima de uma vingana atroz; que Miguel agira sob minhas
ordens, e que eu era a verdadeira culpada por tudo o que lhe
acontecera.
Alucinada, s naquele momento Rita fitou o corpo esten-
dido, ao qual por duas vezes tentara voltar, mas que, por
uma estranha razo, apesar dos seus esforos, no tinha
conseguido.
"Estou mortal", pensou, assustada.
No entanto, como se sentia cheia de vida, pensando, gritou-
me em plena face:
Pois se engana, megera. Apesar de seus esforos e do seu
cmplice, no conseguiram me matar. Aqui estou eu, viva! Eu no
morri! E, tanto quanto gostava de voc, agora vou odi-la at o fim
dos meus dias. Estou apenas adormecida, fato que j aconteceu
antes, e, quando eu acordar, voc ter o que merece. Eu juro!
Nesse momento, eu fazia o sinal-da-cruz para afastar-me.
Como eu no reagisse, nem lhe respondesse, ela prosseguiu
febril e rancorosa:
Talvez voc gostasse de saber que estive at em seu quarto,
quando estava viajando? No sei como isso acontece, mas posso
movimentar-me durante o sono e ir para onde quiser.
Como eu continuasse muda, Rita ficou possessa de raiva:
Tambm me despreza, sinhazinha, como os outros? Pois ter o
que merece, maldita!
E, alucinada, passou a agredir-me com socos e pontaps,
tentando rasgar-me as vestes, arrancar-me os cabelos bem
penteados, atingir-me de alguma maneira. Sem conseguir
faz-lo materialmente, suas vibraes de dio causaram-me
tremendo mal-estar. A cabea rodopiou e teria cado ao
cho se meu pai, que chegava naquele momento, no tivesse
percebido que eu no estava bem. Ele segurou-me e,
afastando os que se aproximavam, curiosos, carregou-me
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para fora da senzala, seguido por minha me.
Meu pai levou-me at o banco de madeira mais prximo,
onde me colocou com cuidado. Ao ver-me abrir os olhos,
indagou preocupado:
O que houve, minha filha?
No sei, papai. De sbito, senti um grande mal-estar e
minha vista se turvou. Pensei que fosse cair.
E teria realmente cado se eu no a tivesse amparado. Foi
imprudncia de sua me traz-la ao velrio.
Felipe, Ritinha era amiga de nossa filha. Maria Eugnia
precisava vir orar por ela! - justificou-se Virgnia.
Sei disso. No entanto, a aglomerao era grande, o am-
biente estava muito quente, abafado, sem ar. Creio que foi
isso. Como est agora, filha?
Estou bem, meu pai. Acho que j posso caminhar.
Ladeada por meus pais, andei at o casaro. Depois, subi para
meu quarto, onde deitei, sob os cuidados de minha me.
Ajeitando-me as cobertas, mame disse:
Vou mandar trazer-lhe um copo de leite morno, que lhe
far bem. Agora, descanse. As emoes foram muitas para
um nico dia.
" verdade. Muito mais do que a senhora imagina", pensei.
16 Na espiritualidade
29 Recebendo visitas
Na manh seguinte, quando Tefilo chegou fazenda Santa
Genoveva, ao aproximar-se da casa-grande, ficou sabendo
das novidades por Tome, que estava entrada. Apressou o
passo, encaminhando-se para os aposentos da dona da casa.
Bateu levemente na porta, e Dinha atendeu prontamente.
Ah! Que bom que o sinh chegou, doutor.
Como est ela, Dionsia?
Ontem a sinh no passou muito bem, doutor, e tive de
lhe dar o remdio. Mas agora est melhor. Veja! Est se mexendo.
Vai acordar!
Ele aproximou-se do leito, olhou a mulher deitada e achou-a
ainda mais bela. Talvez ouvindo o leve rudo de passos, as
longas pestanas se abriram e dois olhos verdes e sonolentos
o fitaram. Somente ento ela deu-se conta do que estava
acontecendo.
Doutor! O senhor, aqui?
Sim, minha senhora! J passa das nove horas. Como
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prometi, aqui estou. Pelo jeito dormiu muito bem! Como se
sente?
Ela agarrou a mo do mdico, atemorizada:
Estou com medo, meu amigo. O que ser que Josias sabe
que apavora tanto a minha filha?
No se assuste, cara Virgnia. Fique tranqila. Vou ver
Maria Eugnia, depois irei at a senzala. Em seguida, voltarei
com notcias. Agora, tome estas gotas e procure relaxar. No
me demoro.
Cerca de uma hora depois, ele retornou, encontrando-a
ansiosa:
E ento? Falou com Josias?
Acalme-se! Falei, sim. Porm teremos tempo para
conversar. A senhora j tomou seu caf da manh?
Dinha, com a liberdade da longa convivncia, antecipou-se
e respondeu:
No tomou no, sinh doutor. Quem sabe agora que o
sinh est aqui, a sinh Virgnia aceite comer alguma coisa.
O mdico sorriu, animado:
verdade, Dinha! Com a pressa, tambm eu ainda no
comi nada.
Mame devolveu-lhe o sorriso e estendeu o brao tocando a
sineta. Quando a escrava apareceu, ela ordenou:
Odete, traga caf para dois, sim?
pra j, sinh - disse, saindo do quarto.
Dinha ajudou sua senhora a se vestir. Em seguida, mame se
levantou e acomodou-se com o mdico em torno de
uma pequena mesa redonda que ela, normalmente, usava
para leituras. No demorou muito, Odete entrou com a
bandeja, colocando-a sobre a mesa. Tefilo ficou to
animado diante da fartura que mame tambm se rendeu.
Ambos provaram de tudo. Ao terminar, satisfeitos, um
olhou para o outro e trocaram um sorriso.
Muito bem. assim que gosto de v-la, minha amiga
Virgnia.
Ento, agora que satisfiz sua vontade e alimentei-me
convenientemente, vai contar-me o que conversou com
Josias, meu caro doutor?
Tefilo olhou para os lados, verificando se havia ouvidos indiscretos
ali no quarto. Notando-lhe a preocupao, ela o serenou:
No h ningum aqui, doutor. Odete foi cuidar de suas
obrigaes e Dinha foi ver minha filha. Pode falar sem
medo.
Mais tranqilo, ele relatou o que sabia:
Conversei com Josias e ele falou-me sobre a sua fuga e
como tinha sido capturado por Luprcio, o capito do mato,
entre outras coisas.
O que mais ele lhe disse?
Virgnia, temos de estar preparados para tudo.
Como assim, Tefilo? Soube de mais alguma coisa? -
indagou ansiosa.
Quando estiver melhor, falaremos sobre isso.
No. Quero saber j! Sou forte o suficiente para enfrentar
qualquer situao. Diga-me, o que mais ele disse? - exigiu
ela, enrgica.
Bem, j que insiste. A mim, Josias contou que tinha
recebido as moedas das mos da sinhazinha, como
pagamento por um servio realizado.
Servio realizado? Que ligaes poderia ter minha filha
com esse escravo?
A senhora no imagina?
Ser por ter... enfim... tem a ver com Miguel?
Tem.
Meu Deus! Ele disse isso?
Sim, com todas as letras.
Ento aquilo que eu suspeitava era verdade!
Infelizmente! E tem mais... - disse ele, lentamente e com
cuidado, sabendo que iria ferir ainda mais aquele corao de
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me, mas que ela precisava saber de toda a verdade, como
um tumor que precisa ser extirpado para destilar toda a
podrido.
Mais ainda?...
Sim, Virgnia. Josias contou-me que, saindo da pro-
priedade levou um farnel que Maria Eugnia lhe preparara.
Ao sentir fome, parou e abriu a sacola. Ia comer um pedao
de po com carne, quando um cachorro se aproximou dele,
faminto; penalizado, deu um pedao da carne ao animal,
Como estivesse com sede, antes de comer, desceu at o
riacho, lavou o rosto e bebeu gua. Ao voltar, o co estava
morto.
Com os olhos arregalados de susto e medo, ela levou as mos
cabea, desesperada:
No posso acreditar, Tefilo! Ela pretendia matar Josias
para eliminar qualquer prova contra ela! Meu Deus, isso j
demais para minha cabea, no vou suportar! - gritou em
lgrimas.
Ele abraou-a, envolvendo-a com imenso carinho.
E agora, Tefilo? O que ser de ns? O que ser de Maria
Eugnia?
Fique tranqila. Deixe isso por minha conta. Confie em
mim!
Eu confio! Ah, como eu confio!...
Trocaram um olhar em que havia tanto entendimento entre
eles, que as palavras eram desnecessrias.
Virgnia pensava: "Quantos anos da minha existncia eu
sofri com um homem que no me compreendia nem me
amava! Ou melhor, amava-me do seu jeito. E agora, somente
agora, quando j tarde, encontro algum que me
compreende e que poderia me fazer feliz!".
De sua parte, Tefilo suspirava, refletindo: "Quantos anos eu
passei sofrendo pela perda de minha querida esposa, sem
conseguir ligar-me a mulher alguma. Agora, que j nem
pensava mais em refazer minha vida, descubro a pessoa que
poderia me fazer feliz! Quem sabe no tarde demais?"
Estavam assim, abraados, envolvidos pela descoberta um do
outro. Ela levantou a cabea do peito dele, afastando-se um
pouco; ele tomou entre suas mos as mos dela e fitavam-se
sem nada dizer quando ouviram duas batidas leves na porta e
se assustaram. Era Odete.
Sinh Virgnia, o sinh Guilherme chegou com visitas l
de Santa Clara.
Guilherme?... E quem mais?
Trouxe um casal que eu no conheo, sinh.
Ah, sim! Com certeza devem ser Marie e Pierre. Avise as
visitas que estou descendo, Odete. E pea a Dinha que
venha me ajudar.
Sim, sinh.
Mame tinha os olhos arregalados e a expresso preocupada.
"Visitas logo hoje, que estamos com tantos problemas?"
O que houve, Virgnia? Parece-me inquieta.
que no esperava visitas, Tefilo. Pelo menos, no hoje,
que est tudo to conturbado aqui em casa!
Acalme-se, Virgnia. Quem sabe a vinda de Guilherme
no foi providencial? Lembre-se de que precisamos de infor-
maes que s ele poder nos dar. Talvez a mim ele fale
sobre o envolvimento dele com a Rita. Vou descer e fazer
sala s visitas, enquanto troca de roupa.
Tem razo, Tefilo. Obrigada. Que seria de mim sem
voc?
O mdico sorriu, satisfeito diante dessas palavras; saiu do
quarto e desceu as escadarias alegre, mas curioso. Enfim, iria
conhecer o casal ao qual ela se referira no dia anterior.
Ao v-lo, Guilherme levantou-se sorridente,
cumprimentando-o:
Bom dia, doutor Tefilo! Que feliz encontro! No
esperava v-lo aqui. Tenho o prazer de apresentar-lhe meus
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amigos Pierre e Marie Legrand, que esto de visita nossa
regio.
Ah, sim?... Muito prazer em conhec-los. E vieram
de onde?
Da Frana; mais especificamente, de Paris respondeu
Pierre, estendendo-lhe a mo.
Ah! A Europa! Estou com saudade da cultura e da beleza
que l podemos desfrutar. Infelizmente, toda vez que
programo uma viagem, meus pacientes no concordam e
caem de cama.
Todos riram, enquanto se acomodavam na sala de visitas,
conversando sobre trivialidades.
Para franceses, falam muito bem nosso idioma - consi-
derou Tefilo.
Na verdade, sou brasileiro e ensinei a Marie a nossa
lngua.
Um quarto de hora depois, a dona da casa desceu bem
arrumada e bela como sempre. No fosse por leve palidez -
que somente algum que a conhecia bem poderia notar,
apesar do colorido que colocara nas faces -, no se
perceberia que estava atravessando problemas.
Guilherme desculpou-se por terem vindo sem avisar. Aps a
troca de cumprimentos, a dona da casa afirmou:
No se desculpe, caro Guilherme. Sinto-me satisfeita por
t-los aqui em nossa casa e muito feliz de reencontrar os
amigos Marie e Pierre.
O mdico comentou que tambm se sentia satisfeito por
conhecer o casal que viera de alm-mar, do qual j tivera
notcias pela senhora Virgnia, ao que Guilherme retrucou:
O doutor j poderia t-los conhecido, se no demorasse
tanto a nos visitar.
Tem razo, Guilherme. Estou em falta com seu pai. No
entanto, devo estar por l nos prximos dias.
Essa uma boa notcia, doutor Tefilo. Minha me ficar
satisfeita. A propsito, senhora Virgnia, desculpe-me
perguntar, como est Maria Eugnia? Fiquei sabendo que
enfrentaram problemas um dia desses e c estou, juntamente
com os amigos, para apresentar-lhes nossa solidariedade e
tambm ajudar, se possvel. Afinal, ainda sou esposo de
Maria Eugnia e me considero da famlia - disse Guilherme.
Agradeo-lhe, Guilherme. Sempre foi um filho para mim,
sabe disso. Maria Eugnia est acamada, porm seu estado
relativamente bom.
E o escravo Josias, doutor? - ele indagou, dirigindo-se ao
mdico.
Vai muito bem. Recupera-se de forma promissora,
Guilherme.
tima notcia, doutor.
Sem dvida.
Conversaram amistosamente durante algum tempo, quando
Guilherme, trocando um olhar com o casal, afirmou que
precisavam despedir-se, ao que a dona da casa reagiu:
Absolutamente! No aceito de maneira alguma. Afinal,
esta a primeira vez que nossos amigos Marie e Pierre
Legrand vm nossa casa. So nossos convidados para o
almoo, e no abro mo disso. Temos to poucas ocasies de
estarmos juntos, que no podemos perder a oportunidade
quando ela se apresenta.
Senhora Virgnia, se faz tanta questo, ficaremos com
prazer.
A dona da casa virou-se para o mdico:
Tambm o senhor, doutor Tefilo, espero que fique. A
no ser que tenha compromissos na cidade...
Ele lanou um longo olhar para ela e sorriu:
No tenho compromissos. Reservei este dia para a Santa
Genoveva. Terei prazer em aceitar seu convite, senhora
Virgnia.
Sinto-me deveras feliz, pois hoje ser um dia festivo.
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Desde que meu marido faleceu, no recebamos os amigos
em nossa casa. Ento, dem-me licena. Preciso dar algumas
ordens na cozinha.
Ela saiu e eles continuaram conversando. Odete levou caf
para as visitas e, nesse momento de descontrao, o mdico
ficou perto de Marie, travando dilogo com ela.
Gostaria de ter ocasio de podermos conversar, senhora
Marie. Virgnia assegurou-me que possui idias bastante
interessantes sobre a alma humana.
Com leve e descontrado sorriso, Marie afirmou:
Estou sua disposio, doutor. Poderemos conversar a
hora que o senhor quiser.
timo! Quem sabe hoje mesmo, no? Penso que esta
oportunidade no surgiu por acaso.
Tambm penso assim, doutor.
E o senhor Pierre partilha de suas idias?
Digamos que meu esposo aceita, com restries -
respondeu, com sorriso cativante.
O mdico examinava-a disfaradamente. Ela era mais jovem
do que julgara. Tinha uma expresso de menina, os olhos
mais azuis que ele j vira, a pele cheia de sardas e uma
surpreendente cabeleira ruiva. Nada nela era comum, usual.
No entanto, irradiava ternura, sinceridade e falava com
segurana.
Providencialmente, Pierre demonstrou desejo de conhecer a
fazenda, e Guilherme disps-se a acompanh-lo. Marie
trocou um olhar com Teflo como se dissesse "esta outra
oportunidade que no podemos desprezar".
A dona da casa retornara da cozinha e acomodara-se em
uma poltrona ao lado de Marie. O mdico aproveitou o
momento para sugerir:
Cara Virgnia, h pouco eu falava com a senhora Marie
sobre o que conversamos ainda ontem. Apreciaria saber a
opinio dela sobre a situao que estamos atravessando e que
envolve diretamente Maria Eugnia. Mame aprovou a feliz
lembrana:
Querida Marie, no imagina os problemas que estamos
enfrentando!
Pelas notcias que tivemos hoje, posso fazer uma idia.
A propsito, como ficaram sabendo assim to rpido
sobre o acontecido aqui na Santa Genoveva? - indagou o
mdico, curioso.
Parece que um escravo aqui da fazenda estava trabalhando para os
lados da Santa Clara e encontrou um escravo de l, seu conhecido,
que vinha pela estrada a caminho da vila. Conversaram e
este foi informado do que houve; desistiu de ir para a vila,
que era seu destino, e, voltando para a Santa Clara, contou a
novidade a Guilherme, haja vista o parentesco que une as
famlias.
, as notcias correm! Mas, gostaria que me falasse um
pouco de seus estudos sobre a alma - pediu ele, no
querendo perder tempo.
Falarei, com certeza. Todavia, gostaria antes de ver Maria
Eugnia.
Claro, Marie! Venha! Vamos at os aposentos dela - disse
minha me.
Os trs subiram as escadarias e, atravessando o corredor,
chegaram aos aposentos da doente. A dona da casa abriu a
porta, e Dinha, que estava ao lado do leito, veio ao encontro
das senhoras e do mdico.
Como est minha filha, Dinha?
Ainda dorme, sinh. No entanto, noto que seu sono no
tranqilo, tem momentos em que parece estar tendo
pesadelos. Agora, est mais calma.
Obrigada, Dinha. Se quiser, pode descer um pouco.
Ficaremos aqui ao lado dela. Se precisar, tocarei a sineta.
Sim, sinh. Com sua licena.
Aps a sada da criada, eles se aproximaram mais do leito,
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onde a jovem dormia. Marie examinou-a atentamente,
depois cerrou os olhos, como se procurando perceber algo
mais. O mdico e minha me no a perdiam de vista, por
motivos diferentes. Tefilo, interessado em saber como ela
agia, e a me preocupada com a filha. Aps uns dez minutos,
Marie pareceu sair daquele estranho estado e comentou em
voz baixa:
Pobrezinha. Ela sofre muito.
Como chegou a essa concluso, senhora? - indagou o
mdico.
Vejo-a cercada por seres que desejam destru-la.
Como assim? - contra-atacou o mdico, com uma ponta
de ironia.
No bom conversarmos aqui, perto dela.
A dona da casa levou-os at uma pequena sala, entrada dos
aposentos, onde havia um sof e uma poltrona.
Acomodaram-se, e Marie, fitando o mdico, passou a
responder:
Doutor Tefilo. Sei que no deve acreditar nessas coisas,
mas foi o senhor que me perguntou sobre o que eu pensava
a respeito da alma humana. Ento, lhe respondo: o que vi
tem relao com sua pergunta.
Pode explicar-se melhor, senhora?
Sem dvida. Veja! A alma o ser inteligente que habita
um corpo material, como se fosse uma vestimenta, e o que
lhe d vida! Todos ns somos almas que ocupam
provisoriamente
um corpo terreno, para aprendizado e conseqente
progresso. Quando o corpo morre, a alma se desliga dele e
continua vivendo, de acordo com suas tendncias boas ou
ms, ou com o que j aprendeu.
Se bem entendi, quer dizer que esses seres que a senhora
diz que viu so almas que j ocuparam um corpo de carne?
Exatamente. Neste caso, em especial, tentam vingar-se de
Maria Eugnia, a quem acusam de lhes ter feito muito mal.
Quando?
No sei. Nesta existncia ou em outras.
Em outras existncias? A senhora acredita nas vidas
sucessivas, ento?
Parece-me que a nica opo aceitvel para podermos
acreditar na Justia Divina. Como imaginarmos um mundo
em que existem senhores e escravos, homens bons e maus,
doentes e sos, todos criados por Deus? Como entendermos
tais diferenas, se Jesus nos ensinou que Deus Pai e que
ama a todos os seus filhos da mesma maneira?
Tefilo estava surpreso com as explicaes de Marie. Cru-
zando os braos frente do peito, prosseguiu questionando:
E as almas que vivem em nosso mundo, ficam presas ao
corpo que habitam?
De certa forma, sim. No entanto, quando o corpo
dorme, a alma pode ganhar o espao e viver uma outra vida,
ir em busca de seus interesses, como um pssaro que
readquire a liberdade.
Entendo. Quer dizer que algum pode deslocar-se e ir a
outro lugar, mesmo longe? Pode aparecer para outras
pessoas?
Sem dvida.
Tefilo trocou um olhar com mame, que no passou
despercebido a Marie, que prosseguiu, esclarecendo:
Fatos semelhantes aconteceram com Maria Eugnia em
Paris, quando ela teve ocasio de ver uma mulher no quarto
de hotel em que se hospedava com Guilherme.
Sim, Virgnia falou-me sobre isso. Como mdico, ouvi
relatos de fatos do gnero inmeras vezes em minha
vida, especialmente de doentes graves que,
aproximando-se da hora da morte, viam pessoas
falecidas, parentes ou amigos. Mas, na verdade,
sempre julguei que fossem causados pela crendice
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popular.
No so. Posso, inclusive, passar ao senhor um material
que coletei e que prova essa realidade. Trouxe comigo para o
Brasil e, se for do seu interesse, terei prazer em emprestar-
lhe.
Tefilo sorriu, agradecido:
Faa-me essa gentileza e ficarei muito grato. Alis, por
esses dias devo ir Santa Clara ver meu amigo Valentim, e
aproveitarei para pegar esse material.
timo! Sem problemas, doutor,
Obrigado, senhora. Confesso que estou surpreso com
tudo o que afirmou. So conhecimentos que no se
encontram em livros, pelo menos no que eu saiba. Poderia
dizer-me onde os obteve, ou com quem?
A princpio, aprendi com os filsofos. Scrates e Plato j
falavam sobre esses assuntos.
verdade. Porm, nunca fui muito ligado Filosofia.
Sempre tive mais interesse pela Biologia e pela Anatomia,
tanto que fiz Medicina.
Entendo. Depois, fui orientada pelos anjos de luz.
Mas, que interessante! A senhora recebeu orientao de
anjos de luz? A senhora os v?
Marie sorriu diante da perplexidade do doutor, e seu rosto
sardento se iluminou:
Sim, eu os vejo, ouo e converso com eles. So almas de
pessoas que j viveram na Terra e que agora habitam outro
mundo, como eles dizem. A diferena entre eles e os seres
que vi h pouco que esses anjos so bons, procuram ajudar
as pessoas, tm uma moral elevada e s desejam o bem do
prximo. So muito belos, e a luz que os envolve atesta-lhes
a condio de almas superiores a ns.
E os outros, os que a senhora viu perto da menina?
So feios, sujos e escuros, denotando a condio inferior
em que vivem.
O mdico estava pasmo diante de tudo o que ouvira. A
francesinha crescera agora diante de seus olhos, ganhando
uma aura de credibilidade, maturidade e respeito. Fitando-a
com expresso diferente no olhar, ele confessou:
Senhora Marie, tenho de refletir muito sobre tudo o que
a senhora afirmou. Prometo-lhe analisar com bastante
interesse as suas idias. Se puder emprestar-me o material
sobre o qual se referiu, ficar-lhe-ei muito grato.
Sem dvida.
Pensando bem, creio que irei amanh mesmo Santa
Clara. Estou ansioso para ter nas mos esse material.
Mas, quanto aos anjos de luz, somente a senhora pode v-
los e ser orientada por eles?
Ela balanou a cabea negativamente, sorrindo:
No, claro que no. Tenho certeza de que outras pessoas
tambm os vem e ouvem. De resto, eles afirmam que est
perto o tempo em que todas essas verdades sero conhecidas
por todos aqui do nosso mundo terreno.
Muito interessante! Oxal venha logo essa era de luz!
Naquele momento, uma onda de vibraes boas inundou o
ambiente de bem-estar, paz e esperana. Marie comentou
com sua voz doce e maviosa:
Sentem uma sensao boa? Os anjos de luz esto aqui!
Vamos aproveitar a presena deles para orar a benefcio de
Maria Eugnia. Eles sempre afirmam que a orao tem muito
poder.
Marie convidou-os para irem ao quarto da doente e, l,
posicionaram-se em torno do leito, de mos dadas. A
francesa ergueu a fronte e, fechando os olhos, orou o Pai-
Nosso em voz alta, sendo acompanhada por Tefilo e
mame.
Depois, comentou:
Maria Eugnia foi ajudada. O ambiente agora est limpo e
bem mais agradvel, com a bno de Deus!
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Como a hora avanava, a dona da casa convidou-os a
descerem. O almoo no tardaria a ser servido.
30 Informaes inquietantes
Marie, Virgnia e Tefilo desceram as escadarias e, ao
entrarem na sala, encontraram Guilherme e Pierre, que
haviam voltado do giro pela propriedade e conversavam
animadamente sobre tudo o que tinham visto. Pierre estava
encantado e, diante da dona da casa, externou sua
admirao:
Parabns, senhora Virgnia! Pelo que pude perceber, tem
administrado muito bem a fazenda, inclusive fazendo
modificaes, acrescentando melhorias.
Obrigada, senhor Pierre. Fao o que posso. Felipe Figueiroa, meu
falecido marido, tinha uma maneira de pensar mais rgida,
sempre avesso a mudanas e, assim, no aceitava novidades. Penso
diferente e busco o progresso. Em relao aos escravos, por exemplo,
acredito que devam ser tratados com mais dignidade e respeito,
como seres humanos que so, e coloco em ao minhas
idias.
Sem dvida. Conversei com alguns deles e pude notar
que se sentem felizes, trabalham sorridentes e, aqueles que
tm famlia, falam com satisfao das novas casas que
ganharam.
Procuro fazer o melhor para eles, senhor Pierre. Dessa
forma, todos ns ganhamos. Desde que foram abolidos os
castigos no tronco, os escravos tornaram-se mais tranqilos
e satisfeitos, trabalham com mais disposio, o que tem
gerado um rendimento significativamente maior.
Pierre, com verdadeiro entusiasmo, prosseguiu:
A senhora est aplicando idias humanistas de profundo
valor social. Enquanto houver escravido, que sejam dadas
melhores condies de vida para os escravos.
Evidentemente, os abolicionistas desejam mais: a extino
do trfico e da escravatura, algum dia, ser realidade em
nossa terra, a exemplo de outros pases. Mas as mudanas
devem comear dessa forma, devagar, de modo a se
transformarem em um hbito para a sociedade e modificar o
modo de pensar e os costumes dos fazendeiros, por atitudes
mais dignas e respeitosas em relao aos seus servos.
Guilherme, que ouvia calado, mas com interesse, afirmou
com nfase:
Penso exatamente como voc, Pierre. inadmissvel que
ainda tenhamos escravos aqui no Brasil. Estou tentando
modificar as coisas l na Santa Clara, porm reconheo que,
enquanto meu pai for vivo, ser difcil. Ele no aceita
minhas idias, que considera revolucionrias e prejudiciais
aos nossos interesses.
Concordando com ele, a dona da casa acrescentou:
s uma questo de tempo, Guilherme, como afirma
nosso amigo Pierre. Tenho recebido informaes de vrias
pessoas, donos de terras, que j pensam como ns. Nossa
posio tem recebido valiosa colaborao de todos aqueles
que estudaram na Europa, como ns, e que retornam com o
pensamento abolicionista, no aceitando mais a escravatura
em nossa sociedade, e que iro colaborar na implantao de
novas conquistas. Particularmente, considero vergonhoso o
fato de ainda termos escravos aqui no Brasil.
Em seguida, notando que Odete assomara porta e lhe fizera
um sinal, levantou-se e, com um sorriso, convidou os
demais:
Caros amigos, nossa conversa est tima, porm o almoo
ser servido dentro em pouco; passemos sala de jantar.
Dialogando alegremente, os convidados acompanharam a
dona da casa, encaminhando-se sala ao lado e
acomodando-se em torno da grande mesa, impecavelmente
arrumada.
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A cabeceira, mame exercia perfeitamente seu papel de
anfitri. Ao terminar a refeio, Marie elogiou o almoo.
Cara Virgnia, os pratos aqui servidos e as sobremesas
agradariam aos mais exigentes paladares!
Agradeo-lhe as palavras gentis, minha querida. O elogio,
vindo de uma francesa, tem ainda mais valor. Florncia,
minha cozinheira, ficar orgulhosa! - disse com um sorriso,
e completou:
- Uma vez que todos esto satisfeitos, passemos outra sala.
Os cavalheiros, aps o caf, trocaram idias sobre negcios e
a situao econmica do pas, uma vez que a cultura da
cana-de-acar estava em decadncia e as plantaes de caf
surgiam com plena fora, gerando lucros extraordinrios,
visto que no exigiam grandes e vultosos investimentos,
como a montagem do engenho.
As mulheres, em outro canto, um pouco afastadas, falavam
sobre assuntos mais amenos.
Lamento profundamente, Marie, que a querida Leonora
no tenha podido acompanh-los. Seria muito bom se ela
tambm estivesse aqui conosco.
Sem dvida, Virgnia. Todavia, nossa hospedeira no
podia afastar-se do solar, pois monsieur Cerqueira no estava
sentindo-se bem hoje. Ah! Leonora tem sofrido bastante!
Pobre Valentim! Est muito doente, o que torna a vida de
nossa amiga mais difcil - lamentou minha me.
Sim, mas no me refiro somente doena, que por si s
bastante grave. Noto tambm, Virgnia, que monsieur
Cerqueira algum de personalidade muito difcil. A
enfermidade algo que pode atingir qualquer pessoa, porm
conheo doentes em piores condies que a dele e que so
tranqilos e resignados. Monsieur Cerqueira, porm, se
comporta pessimamente. Lamento por Leonora, que tenta
disfarar-lhe as grosserias, as indelicadezas, justificando-lhe
as atitudes.
A anfitri meneou a cabea, concordando:
Compreendo o que quer dizer, Marie. Conheo a famlia
Cerqueira h longo tempo e posso lhe assegurar que ele
sempre foi assim, difcil e descontente com tudo. Por mais
que a esposa
tente agradar-lhe, no consegue. Por que tal
comportamento? Sempre teve tudo! Lembro-me de
Valentim quando jovem. Era um rapaz bonito, elegante e
muito rico; casou-se com uma das moas mais belas da nossa
regio e, apesar do que a vida lhe tem dado, vive insatisfeito,
Marie pareceu pensar por alguns instantes e depois
considerou:
Virgnia, uma parte desse comportamento dele mesmo,
isto , monsieur Cerqueira mostra o que realmente . Outra
parte causada por inimigos espirituais, que ele fez com seu
modo de ser, nesta ou em outras vidas.
A anfitri olhou-a espantada:
Voc os v?
Sim, como a vejo agora. Perturbam-no, aumentam-lhe as
dores, provocam mal-estar, angstia e desequilbrio. por
isso que ele se sente muito pior do que realmente deveria
estar.
A amiga fitou-a, mostrando que entendera a situao, a qual
lamentava profundamente, e indagou-lhe:
Marie, o caso de minha filha semelhante ao de
Valentim Cerqueira, no ?
De certo modo, sim, Virgnia.
Foi o que pensei. Diga-me uma coisa: quais almas penadas
voc viu junto de Maria Eugnia, quando estvamos nos
aposentos dela?
Vrias almas sofredoras e encolerizadas, como a escrava
Rita, Miguel, o pai dela, monsieur Felipe Figueiroa, monsieur
Frederico Figueiroa e vrias outras.
Minha me estava surpresa.
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Marie, como sabe que so essas pessoas se no os conhe-
ceu em vida? Meu sogro, especialmente, Frederico
Figueiroa, morreu h muito tempo!
Eu sei, simplesmente.
Ah!... E o que dizem essas almas penadas?
De modo geral, acusam Maria Eugnia por males que lhes
causou. Outros, como o pai dela e o av, tentam fazer com
que ela reaja e lute, para tomar conta da fazenda, que julgam
mal administrada, entre outras coisas.
Meu Deus! Ento, verdade que meu falecido esposo est
por aqui?! Por isso notei em minha filha reaes e idias
extremamente parecidas com as dele!
Sem dvida. Em Maria Eugnia, que filha e com a qual
ele tem relaes, monsieur Felipe Figueiroa encontrou
algum malevel e dcil a seus pensamentos, capaz de tomar
atitudes
por ele!
A dona da casa estava assustada.
Mas ento a situao muito pior do que pensava!
Com serenidade e firmeza, Marie respondeu, tentando
serenar a dona da casa:
No diria que a situao pior, Virgnia, porm que
precisa ser tratada de outra maneira.
A anfitri ia perguntar que "outra maneira" seria essa,
quando viu Guilherme que se aproximava, falando da
necessidade de se despedirem.
Querida senhora Virgnia! Precisamos partir agora, pois j
tarde e tenho providncias a tomar ainda hoje.
Marie levantou-se e, olhando para a amiga, as segurou-lhe:
Obrigada pela hospitalidade, Virgnia. Voltaremos o mais
rpido possvel ao assunto sobre o qual falvamos. No se
preocupe.
Despediram-se e, alguns minutos depois, a carruagem
levando Pierre, Marie e Guilherme desaparecia ao longe, na
curva da estrada.
Com expresso grave, Tefilo aproximou-se mais da amiga,
segurou-lhe a mo e convidou:
Venha comigo! Vamos caminhar um pouco pelo jardim,
Virgnia.
Com um sorriso, ele ofereceu-lhe o brao e saram pelas
alamedas, lentamente, apreciando a tarde morna e bela, com
o sol mais ameno.
Tivemos um dia realmente agradabilssimo, no ver-
dade? Tudo foi perfeito. Apesar da contrariedade que sentiu
quando eles chegaram, logo pela manh, considero que foi
um dia, alm de aprazvel, bastante instrutivo.
verdade - respondeu ela, distrada.
O mdico voltou carga:
Contudo, para algum que teve um bom dia, est muito
preocupada. Gostaria de saber o que a deixou com a
testa to franzida.
Mas ela continuava calada, olhando fixamente para a frente,
imersa em seus pensamentos. Tefilo apertou delicadamente
a mo que se lhe apoiava no brao e insistiu:
No me responde, Virgnia?
Parecendo ter voltado a si, afinal ela se deu conta da
presena dele.
Desculpe-me. Falou comigo, Tefilo?
Balanando a cabea, ele afirmou:
Parece que o problema srio. Nem sequer ouve o que
digo! O que est acontecendo, Virgnia? Foi a conversa que
teve com Marie que a deixou desse jeito?
Ela sentia-se perturbada, tensa. Como estavam perto do
caramancho de rosas, ela sugeriu:
Vamos sentar-nos ali. Preciso repousar um pouco.
Acomodaram-se no banco, e Tefilo voltou a indagar-lhe:
Ento, vai me contar ou no o que a preocupa?
Virando-se para seu acompanhante, ela tinha os olhos
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marejados de lgrimas.
Estou com medo, meu amigo.
Ela parecia um passarinho assustado, e Tefilo aconchegou-a
em seus braos. Com a cabea dela apoiada em seu peito, ele
sentia um calor gostoso invadi-lo.
Eu estou aqui, Virgnia. Nada tema, minha querida.
Conte-me o que a aflige.
Ganhando nimo, ela respirou profundamente e comeou a
narrar-lhe a conversa que tivera com Marie, e que tanto a
deixara assustada. Depois, sem poder segurar mais as
lgrimas, ela lhe perguntou:
Ser possvel? Ser verdade o que ela me disse?
No sei, minha querida. No entanto, voc no afirmou
que Marie viu almas ou seres?
Sim, isso mesmo.
Ento, como Marie poderia saber que eram Rita, Miguel,
Felipe, seu falecido marido, e at Frederico Figueiroa, seu
sogro?
verdade. Concordo com voc. Mas tudo isso um
enigma.
Com expresso grave, Tefilo respondeu:
Pois pretendo decifrar esse enigma com a maior
brevidade possvel. Estou resolvido a ir amanh cedo
fazenda Santa Clara. Primeiro, passarei para dar uma olhada
em Maria Eugnia, em Josias e, claro, em voc - falou,
endereando-lhe um olhar cheio de amor, e completou -
depois visitarei Valentim Cerqueira, j que o trajeto o
mesmo.
A amiga corou sob esse olhar e levantou a cabea,
interessada.
Bem pensado, Tefilo. Posso acompanh-lo? Isto , se no
for atrapalhar...
Com largo sorriso o mdico aprovou:
tima idia! Iremos juntos. Ser um prazer t-la ao meu
lado nessa pequena viagem. Alm disso, teremos ocasio de
conversar com Marie e trocar idias sobre esses assuntos que
tanto a incomodam.
A dona da casa desanuviou o semblante, mais calma com a
deciso tomada. Eles permaneceram algum tempo calados,
aproveitando a proximidade um do outro, sentindo o
corao bater em nico som, at que Tefilo murmurou:
Lamento, minha querida. Ficaria o resto da tarde aqui, ao
seu lado, porm preciso retornar para a vila.
Ela levantou a cabea, ajeitou os cabelos e balbuciou terna:
Eu sei. Amanh cedo estaremos juntos de novo. Tambm
preciso tomar algumas providncias, uma vez que amanh
irei ausentar-me. Vamos?
Ergueram-se e voltaram para o casaro, caminhando
lentamente, como se quisessem estender ao mximo os
instantes que lhes restavam. Entraram na casa-grande e o
doutor subiu as escadarias para dar mais uma olhada em sua
paciente. Como ela estivesse dormindo tranqilamente,
reiterou as recomendaes Dionsia e desceu. Tome trouxe
o cavalo do mdico, e ele despediu-se:
Ento, at amanh, Virgnia.
At amanh, Tefilo.
Aps a partida do mdico, mame chamou seu capataz.
Notificou-o de que precisaria ausentar-se no dia seguinte,
deu-lhe algumas ordens e informou:
Pretendo ir at a fazenda Santa Clara. Se houver algum
imprevisto e precisar de mim, sabe onde me encontrar.
Sim, sinh Virgnia. No se preocupe. No vai acontecer
nada.
Espero. Confio em voc, Roque.
V sossegada, sinh. Tomarei conta de tudo por aqui.
O capataz afastou-se e ela subiu as escadarias para repousar
um pouco em seus aposentos. Antes, foi me ver.
Como ela est, Dinha?
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Bem, sinh. Dorme tranqila h horas. No percebi mais
aquela agitao de antes.
Graas a Deus! Dinha, estou bastante cansada e vou
repousar um pouco. Se minha filha acordar, ou se precisar
de alguma coisa, avise-me.
Sim, sinh Virgnia.
A senhora entrou em seus aposentos e jogou-se no leito.
Estava com a cabea confusa e precisava repousar. Os
problemas eram muitos, as preocupaes imensas, e, diante
de assuntos que no entendia, sentia-se perdida. Ansiava por
conversar com Marie, pedir-lhe explicaes, tentar entender
o que estava acontecendo. Tensa e ansiosa, ela mal
conseguia esperar pelo dia seguinte.
Odete veio avisar que o jantar estava pronto e Florncia
queria saber se podia servi-lo.
Odete, eu no estou com disposio para descer mais
hoje. Traga-me apenas alguma coisa leve: um prato de sopa e
algumas torradas, sim?
No demorou muito, a escrava retornou com uma bandeja
que continha um prato de sopa de aroma irresistvel, mais
algumas torradas e um copo de suco.
A senhora sentou-se pequena mesa redonda e comeu com
vontade. Depois, a criada tirou-lhe as roupas, vestindo-lhe
uma leve camisa de dormir. Ela voltou para o leito, tomou as
gotas prescritas pelo mdico e, em pouco tempo, estava
dormindo a sono solto.
MAME DESPERTOU NA MANH seguinte sentindo-se bem-
disposta e tranqila. Lembrava-se de ter sonhado com pai
Albino e conversado muito com ele. Ento, ela bateu na
testa, dando-se conta: "Como no me lembrei de pai Albino,
justamente ele, que sempre me tem socorrido nas
necessidades? Preciso falar com ele!"
Tocou a sineta chamando a criada para ajud-la a se vestir.
Logo mais, j estava tomando o caf da manh. Sentando-se
mesa, pediu a Odete que fosse chamar pai Albino.
Acabara de sentar-se no seu gabinete, quando o ancio
chegou com seu jeito manso:
A sinh me chamou?
Ah! Pai Albino, preciso muito lhe falar. Sente-se, por
favor. Sabe que sonhei com o pai Albino esta noite?
Ele acomodou-se, dando uma risadinha.
Sei sim, filha. Conversamos bastante.
No entanto, no me recordo de nada. Despertei bem,
serena, mas de nada me lembro.
No tem importncia, filha. Sua alma sabe. Vai lembrar
aos poucos, quando precisar.
Ah!... Pai Albino, estou preocupada com minha filha.
Uma amiga disse-me que vrias almas penadas esto
tentando prejudicar Maria Eugnia! O que fao?
Ore, sinh Virgnia. Ore. Quanto ao que sua amiga falou,
j conversamos sobre isso, lembra-se?
Sim, pai Albino. Mas at meu sogro, Frederico Figueiroa,
est junto dela!
Cada um de ns atrai para perto de si aqueles com os quais
tem ligao, filha. V conversar com sua amiga que veio de
longe. Ela poder ajudar bastante e orientar a sinh quanto a
esse problema, Todos ns trabalhando juntos podemos fazer
muito pela sinhazinha e por aqueles que j morreram e
continuam presos ao nosso mundo.
Obrigada, pai Albino. E que Deus nos ajude! Hoje
mesmo vou falar com minha amiga.
O idoso levantou-se e deixou a sala lentamente. Ela, mais
encorajada, ficou mais um pouco ali, colocando em ordem
alguns papis. No tardou muito, Tefilo chegou.
Cumprimentaram-se e subiram para os meus aposentos.
Acordada, eu tomava o caf da manh.
Bom dia, minha filha! Est com tima aparncia hoje.
Tenho dormido bastante, mame.
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Como se sente, Maria Eugnia? - o mdico perguntou,
examinando-a.
Estou bem, doutor. Um pouco sonolenta, apenas.
natural. Voc precisa de bastante repouso. Se conseguir,
leia um pouco, que lhe far bem. Mais tarde voltarei para v-
la.
Mame e o mdico saram, aps ele ter feito algumas
recomendaes Dinha.
Desceram as escadarias e seguiram para a porta da frente. De
braos dados, caminharam at a carruagem, que estava
espera. O dia amanhecera limpo e claro. A passarada voava
no alto, enquanto outros gorjeavam nas rvores. Tudo lhes
parecia maravilhoso nesse dia; satisfeitos por estarem juntos,
a ss, trocavam olhares carinhosos. Tefilo, pela primeira
vez, falou dos seus sentimentos:
Virgnia, nesses poucos dias de maior convivncia, eu me
deixei envolver pelo seu fascnio, pela sua presena
encantadora. A verdade que eu amo voc como nunca
amei antes na vida.
Ela deitou a cabea no ombro dele e corou de prazer ao
ouvir essas palavras.
Tambm eu, Tefilo; descobri em voc o amor da minha
vida. Jamais amei ningum antes, pode acreditar. Casei-me
por um acordo entre famlias, no por amor. E, ainda que
honrasse e respeitasse meu marido, ele nunca conseguiu
despertar em mim outro sentimento que no fosse carinho e
amizade.
Tefilo, delicadamente, levantou o queixo de sua
acompanhante e beijou-a com ternura e emoo. Ambos
estavam enlevados e felizes. Uma ltima reao surgiu nela,
que se afastou um pouco dele, exclamando:
No sei se estamos agindo bem, Tefilo. Afinal, tenho
uma posio a manter, uma filha, e no sei...
Ele sorriu, passando a mo pelos cabelos macios e perfu-
mados dela:
Minha querida, voc e eu somos livres! Ambos somos
vivos e no temos de dar satisfao da nossa vida a
ningum. Temos o direito de ser felizes.
Tem razo, querido! S devemos satisfao s nossas
famlias.
Conversando, nem perceberam o tempo passar. Quando a
carruagem parou, estavam na fazenda Santa Clara.
31 Os mortos falam!
Leonora andava distrada pelo jardim, contemplando suas
flores, quando ouviu o rudo de uma carruagem que
chegava; ergueu a cabea e, reconhecendo que era da
fazenda Santa Genoveva, com muita satisfao foi receber as
visitas.
Tefilo apeou, depois se virou e deu a mo sua
acompanhante, ajudando-a a descer.
Sejam bem-vindos nossa casa!
Leonora abraou a amiga com imenso carinho, em seguida
cumprimentou o mdico, eufrica:
Que lembrana feliz, doutor! Estvamos com saudade do
senhor. Desta vez, demorou muito a vir nos visitar.
Guilherme avisou-me de que o senhor estava por vir e fiquei
contente, pois Valentim tem estado inquieto e nervoso.
Tefilo inclinou-se, beijando-lhe a mo estendida, enquanto
justificava-se:
Tem razo, senhora Leonora. Estava devendo-lhes
uma visita, porm os compromissos eram muitos e
inadiveis. Mas no pense que me descuidei do meu amigo e
paciente Valentim,
pois sempre me mantive informado sobre as condies dele
por Guilherme, quando este ia vila. Ontem, ao
noticiar senhora Virgnia que pretendia visitar a
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Santa Clara nesta manh, ela no resistiu, animando-se a
fazer-me companhia, saudosa da sua presena. Assim, c
estamos! Meu paciente est acordado?
Pois fez muito bem! No poderia dar-me maior prazer do
que trazer consigo minha grande amiga. Meu marido est
acordado, sem dvida! Embora nada tenha para fazer,
no perdeu o hbito de despertar cedo. Mas, vamos entrar!
Valentim deve estar em seus aposentos, como sempre.
Quanto a nossos hspedes, foram dar um passeio pela
fazenda com Guilherme, aproveitando o sol matinal; mas
no devem demorar.
Entraram. Leonora, dirigindo-se amiga, desculpou-se:
Querida Virgnia, no se incomoda de aguardar aqui na
sala, enquanto levo o doutor at os aposentos de Valentim?
Sei o quanto esta visita importante para ele, e no quero
priv-lo desse encontro nem por mais um minuto. Prometo
no me demorar. Enquanto isso, Teresa lhe servir alguma
coisa.
No se preocupe comigo, Leonora. Ficarei bem. Gaste o
tempo que for preciso.
A escrava, que discretamente aguardava as ordens a
certa distncia, aps a sada da sua sinh se aproximou,
inclinando-se:
Sinh Virgnia, o que deseja tomar? Um caf, um ch ou
um refresco?
Apenas gua, Teresa. Apesar de cedo, o sol j est
forte e cheguei acalorada.
verdade, sinh. Se continuar assim, vai acabar
chovendo.
A negra pediu licena e afastou-se, enquanto a visitante se
acomodava no sof. Logo depois a escrava voltou, trazendo
em uma bandeja um copo com gua, que entregou
senhora.
Obrigada, Teresa. Pode ir agora; no se preocupe comigo.
Sim, sinh. Se precisar de alguma coisa, s tocar a sineta.
Mame ficou s, sentindo o prazer de estar naquela casa e,
ao mesmo tempo, a ansiedade de reencontrar Marie, em
quem depositava tantas esperanas. "Quem sabe, tambm,
Tefilo conseguiria conversar com Guilherme, j que no
outro dia no surgira oportunidade, arrancando dele a
confirmao do motivo que teria afastado Maria Eugnia de
Ritinha?", pensou.
Dez minutos depois, Leonora retornou sorridente, indo ao
encontro da amiga.
Deixei o doutor conversando com Valentim. Novamente,
quero externar-lhe o prazer que me causa a sua presena
aqui em nossa casa, Virgnia. Quando a carruagem chegou,
julguei que
estivesse com Maria Eugnia. Como est ela?
Est to bem quanto possvel, mas ainda acamada em
virtude dos ltimos acontecimentos.
Leonora se preparava para responder, quando ouviram
rudos de vozes e risadas. Pouco depois, Guilherme apareceu
porta, seguido de Marie e Pierre. Vinham corados, alegres,
olhos brilhantes de prazer pela cavalgada ao ar livre. Diante
da recm-chegada, mostraram a satisfao que sua presena
lhes causava. Cumprimentaram-se e a conversa generalizou-
se, agradvel e amena. Logo, o mdico veio do interior da
casa para integrar-se ao grupo.
E ento, doutor Tefilo, o que achou de meu marido? -
indagou Leonora.
Cara senhora, a doena segue seu curso, mas ele est
relativamente bem. Poderia estar melhor, se desejasse
melhorar. Noto, porm, que Valentim no se ajuda e isso
dificulta meu trabalho.
Marie balanou a cabea concordando. Preocupada com as
palavras do doutor, Leonora virou-se para ela e murmurou:
O que nosso mdico disse tem a ver com o que temos
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conversado, Marie?
Sim, Leonora. Concordo com doutor Tefilo quando diz
que monsieur Cerqueira no se ajuda. Conhecero-nos h
pouco tempo, mas j pude perceber que a personalidade dele
difcil, sempre v as coisas pelo lado negativo, reclama de
tudo, nada est bom. Se agisse diferente, o resultado do
tratamento seria outro.
Surpreso com as ponderaes da francesa, o mdico
confirmou:
verdade, senhora Leonora. Tenho dois pacientes que
estavam em pior situao que nosso Valentim, e que, apesar
da idade, se recuperam rapidamente. Porm, so pessoas que
tm f em Deus, oram com freqncia, so otimistas,
bem-humoradas e esto sempre alegres. Desejam sarar e
jamais se queixam de nada. Creio que isso faz a diferena,
pelo menos o que pude perceber.
Leonora suspirou, desalentada:
Mas, o que fazer?... Tudo o que depende de mim, eu fao!
Todavia, no posso mudar a cabea de meu esposo!
Sabemos disso, senhora Leonora - tranqilizou-a o
mdico.
Estavam assim dialogando, cada um querendo dar a sua
opinio, uns concordando e outros discordando dessas
idias, o que gerou certa agitao, pois falavam todos ao
mesmo tempo, em um vozerio confuso que tumultuou o
ambiente.
Nesse momento, Marie comeou a dar sinais de que no
estava bem. Sua expresso se modificou, passou a transpirar
muito e reclamou estar sentindo um calor terrvel, enquanto
tentava abrir o boto que lhe fechava a gola alta da blusa.
Sentado diante dela, Tefilo notou-lhe o mal-estar e
aproximou-se rapidamente, segurando-lhe o pulso, e
verificando que estava muito acelerado. O brusco
movimento dele, correndo para junto de Marie, atraiu a
ateno dos demais, que se calaram. Mame levantou-se,
pondo-se a aban-la com um leque que estava sobre a
mesinha ao lado, enquanto o mdico auscultava-lhe o
corao, cujos batimentos eram rpidos e desordenados.
Senhora Marie! O que est sentindo? - perguntou,
enquanto retirava um vidrinho de remdio da maleta, com a
agilidade do profissional acostumado a emergncias.
No teve tempo, porm, de lhe dar a medicao. Quando ia
colocar as gotas entre os lbios de Marie, ela comeou a
falar, com voz grossa e rouquenha, totalmente estranha,
acusando modos grosseiros que destoavam
completamente das suas maneiras usuais:
Vamos nos vingar daquele miservel! Ele no perde por
esperar! No adianta tentar ajud-lo! Tudo o que fizerem ser
intil! Ele pagar por tudo o que nos fez sofrer! Maldito!
A fisionomia de Marie mudara completamente: testa
franzida, sobrancelhas contradas e olhos injetados de
sangue; apresentava uma expresso cruel e a boca,
ligeiramente cada nos cantos, tinha um ar irnico. Aps
fazer aquelas ameaas, comeou a rir assustadoramente, um
riso escarninho e sibilante, que parecia sado das entranhas
da terra...
Todos estremeceram, apavorados. Minha me, um pouco
mais informada sobre assuntos do alm-tmulo, notando
que era "algum do outro mundo" e enchendo-se de
coragem, perguntou:
Quem voc?
Isso no importa! Ele sabe quem eu sou e isso me basta!
Seja voc quem for, afaste-se, em nome de Deus!
Diante do nome de Deus, por ela pronunciado sob inspi-
rao de amigo espiritual que se fazia presente, a entidade
fechou os olhos, acalmando-se aos poucos, e acabou por se
afastar. Aps alguns minutos, Marie voltou a si, surpresa ao
perceber a expresso assustada dos demais.
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Como est, senhora Marie? - perguntou o mdico,
tomando-lhe o pulso e confirmando que normalizara, assim
como os batimentos cardacos. - Pode dizer-nos o que
aconteceu?
Ela respirou profundamente, ajeitou os cabelos ruivos e
respondeu com voz fraca:
No se preocupem, estou bem agora. Comecei por notar
muitos seres aqui junto de ns, alguns bastante irados e
violentos. Um chamou minha ateno de forma especial: era
um escravo todo machucado. Ele se aproximou de mim... e
no vi mais nada...
Acho que era uma alma penada que conversou conosco,
Marie. No sei como aconteceu, mas, pelo que senti, trata-se
de um inimigo de Valentim Cerqueira - informou mame
em voz baixa, ainda trmula de susto.
Em lgrimas, Leonora confirmou as palavras da amiga:
verdade, Marie! Virgnia tem razo. Tambm senti a
mesma coisa. Ele deseja vingar-se de meu marido!
Agora mais fortalecida, Marie assumiu o controle da
situao, informando:
Isso no importa agora. Temos de ter f. Vamos rezar
pedindo o amparo de Deus para esta casa, para seus
moradores e para todos ns. Pensem em Jesus e, de mos
dadas, vamos rezar o pai-nosso.
Todos se levantaram e fizeram um crculo. Ela elevou os
olhos para o alto e comeou a orar, sendo acompanhada
pelos demais. Quando terminaram, o ambiente havia
mudado radicalmente: estava tranqilo e cheio de paz.
Eles se olharam, sem entender direito o que tinha
acontecido e, mais ainda, com a mudana do ambiente.
Todos sentiam um grande bem-estar. Ao notar a
perplexidade geral, Marie pediu-lhes que se acomodassem
em seus lugares e explicou:
Os anjos de luz esto aqui agora, nos protegendo e
amparando.
Ela parou de falar, e seus olhos pareciam fixar um ponto
qualquer a distncia. Depois prosseguiu:
Vejo algum que se aproxima. uma mulher bela, jovem
de pele clara, rosto suave e sorriso meigo. Veste um
encantador traje branco de renda. Seus cabelos so pretos e
encaracolados.
Ela leva a mo a um colar que traz no pescoo; uma
corrente de ouro com lindo camafeu rosado; ela faz presso
sobre um pequeno boto na lateral; o camafeu se abre,
parece ter a imagem de um homem. Mas, que pena! Por
mais que tente, no consigo ver-lhe o rosto. E ela fez
questo de mostrar-me esse camafeu! Por que ser?
Prestando ateno ao que Marie dizia, ningum notou a
expresso de assombro de Tefilo, at que ouviram seus
soluos.
minha falecida esposa! Tenho certeza! Tenho certeza!
Meu Deus!
Ah!... verdade, doutor. Sorridente, ela confirma ser sua
esposa. Diz chamar-se Helena e deseja mandar-lhe
um recado - disse Marie.
Recado? Que recado?...
Marie, agora com suave sorriso no semblante sereno, parece
estar ouvindo algum. Aps alguns segundos, transmitiu
com voz pausada:
Meu querido Tefilo. Estou muito feliz por poder estar
aqui hoje e ter a oportunidade de falar-lhe. Asseguro-lhe que
a vida no se acaba no tmulo, como voc imaginava.
Continuamos vivendo e sendo os mesmos que ramos antes.
Estou muito bem e continuo amando-o como sempre amei.
Seja feliz, meu querido! Voc merece a felicidade que no
pude lhe dar, por ter retornado to cedo Verdadeira Vida.
Todavia, essa era a deciso de Deus, qual no pude me
furtar. Tem a minha bno. Que Jesus os abenoe! At um
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dia.
Quando a entidade terminou de falar, todos estavam
emocionados, especialmente Tefilo e mame, que
perceberam a inteno de Helena de libert-lo do
compromisso matrimonial, rompido com a morte fsica.
Tefilo desejou falar, conversar com a querida morta, mas
no conseguiu. A emoo o dominava e a voz no saiu, em
razo de um n a apertar-lhe a garganta.
O impacto da presena das entidades ali, naquele momento,
foi to grande, to inegvel e to extraordinrio, que todos
permaneceram calados, entregues aos prprios pensamentos
e reflexes.
Guilherme, de cabea baixa, monologava intimamente,
lembrando-se de que ele mesmo tivera uma experincia
desse gnero e que Marie confirmara a veracidade desses
casos. Percebera a alma de Rita nos aposentos do
hotel. Sim. No tinha dvida alguma. Ela, de alguma
maneira, estivera ali com ele. E, tanto era verdade, que sua
esposa, Maria Eugnia, vira a imagem de Rita no quarto, no
uma, mas vrias vezes, deitada no leito ou de p, a um canto
do aposento, a observ-los.
Leonora mantinha-se lvida. Sim, acreditava em tudo o que
acontecera pouco antes, pois a mudana de Marie no
deixava dvidas quanto a isso. Ela, sempre to delicada,
gentil, educada, no teria condies de mostrar tanta
grosseria de atitudes. E no era s isso. O jeito, a maneira de
ser, os gestos, a expresso dos olhos e a prpria voz, tudo era
diferente! Depois, a delicadeza, a suavidade e a doura de
Helena, a quem o doutor reconhecera como sua falecida
esposa. Sim, no podia duvidar mais. Entretanto, sentia-se
assustada ao imaginar que seres violentos e diablicos
estariam desejando vingar-se de seu esposo.
Pierre, que sempre se recusara a acreditar nas idias da
esposa, mantendo-se distante e observador, agora tivera uma
prova irrefutvel de tudo aquilo que Marie afirmava. Decidiu
que, a partir desse dia, passaria a analisar melhor o assunto.
Aps essa experincia notvel, que jamais supusera possvel,
de poder ter notcias da pranteada esposa que ele tanto
amava, Tefilo agora se sentia tranqilo, em paz consigo
mesmo; a saudade que tanto lhe doera estava acalmada, e o
corao, satisfeito e sereno. Sim, teria de procurar informar-
se melhor sobre esses fenmenos que tantas vezes ouvira de
pacientes, inclusive de alguns em fase final de existncia,
histrias essas em que nunca acreditara, pensando ser
imaginao ou alucinao daquele que partia.
De todos, minha me era a pessoa que tinha melhores
condies de entender o que havia acontecido, por tudo o
que ela j vivera comigo, pelas conversas to esclarecedoras
que mantivera com pai Albino e at pelas palavras de
Miguel, que deixara claro estar vendo almas do outro mundo
ali, na Pedra Grande, perturbando sua paz, tirando-lhe o
sossego.
Marie, calada e serena, entendia o que estava se passando na
cabea de cada um e aguardava que esse primeiro momento
passasse, pois tinha certeza de que logo a crivariam de
perguntas. Tefilo, ainda emocionado, porm retomando a
posio de homem estudioso e interessado em pesquisas,
pela prpria formao profissional, levantou a cabea,
pigarreou e dirigiu-se a ela:
Cara senhora Marie! Estou ainda tentando entender tudo
o que aconteceu h poucos minutos. Fatos que no nego,
em absoluto! Ao contrrio, tenho de lhe agradecer por ter
transmitido o recado de minha querida esposa Helena. Pela
descrio que fez, eu j no tinha dvidas da presena dela.
Havia reconhecido Helena por cada detalhe que descreveu.
Era como se a estivesse vendo aqui, na minha frente, viva!
Fez uma pausa e prosseguiu:
Ficou claro que ela no desejava que eu tivesse dvidas. E
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o fez, provando-me cabalmente sua presena pelo colar que
lhe mostrou e do qual a senhora no poderia ter
conhecimento, pois ningum mais aqui sabia disso. Esse
colar foi um presente que lhe dei no dia do nosso casamento
e do qual jamais se separava. E provou-me isso hoje,
trazendo-o consigo dependurado no pescoo. A jia
realmente se abre, como descreveu, e a imagem que a
senhora viu e no conseguiu identificar a minha, com
vinte anos de idade.
Parou de falar, levou a mo algibeira e de l retirou uma
corrente de ouro com belo camafeu. E, com a voz
embargada agora pela emoo das recordaes, ele apertou
um pequeno dispositivo que o fez abrir e mostrar um
delicado busto feminino:
Quando encomendei essas peas ao joalheiro, havia
mandado fazer tambm pinturas em porcelana com a
imagem dela e a minha, que foram incrustadas nas jias, para
que cada um de ns pudesse estar sempre com o outro perto
de si, mesmo a distncia. Vejam!
Passou o camafeu que estava em seu poder, e os demais
puderam ver o belo rosto de uma jovem no auge da beleza.
Todos ficaram emocionados.
Ao pegar a jia por sua vez, Marie olhou para a linda
mocinha, quase uma criana, que ali estava sorridente.
Exatamente como a vi, apenas com alguns anos a mais.
At o vestido o mesmo!
Sem dvida! o traje de noiva que usou no nosso
casamento.
Depois que todos viram a imagem de Helena, Tefilo
guardou a relquia e prosseguiu:
Senhora Marie, poder responder a alguns
questionamentos nossos?
Sem dvida. Com prazer, doutor.
Bem. Todos ns ouvimos aquele homem fazendo amea-
as e as mudanas que se processaram na senhora:
fisionomia, modos, voz, enfim, tudo. Depois, vimos a
senhora totalmente diferente - voltando a ser a mesma, eu
diria -, repassando-me o recado de minha falecida esposa.
Por qual processo isso se d? O que acontece nesse
momento? E por qu?
Os demais se inclinaram um pouco para frente, interessados
nas questes que eles mesmos tinham em mente e nas
respostas que gostariam de ter. Marie sorriu timidamente e
respondeu:
No acreditem que tenho todas as respostas, porque isso
no verdade. E verdade, sim, que tenho procurado
informaes, estudado o assunto, mas tudo muito novo
para mim tambm.
Sei o que os anjos de luz me dizem: aqueles que j morreram
continuam vivos e podem falar conosco. Cada um deles traz
suas caractersticas de quando habitava o nosso mundo,
porque continua sendo o mesmo, at que deseje melhorar.
Ento por isso que o homem mostrava um compor-
tamento, e a esposa do doutor, um outro mais... refinado, eu
diria - considerou Guilherme.
Exatamente, Guilherme - concordou Marie,
prosseguindo -, cada um mostra o que , como viveu,
os valores morais que j adquiriu, os sentimentos, desejos e
defeitos que faziam parte do seu modo de ser.
Tefilo pareceu refletir um pouco e tornou a questionar:
At a posso entender perfeitamente. Todavia, parece que
ambas as... nem sei como dizer...aparies?... manifestaes
- talvez seja o termo mais apropriado - foram
diferentes na maneira de se apresentar. Percebe o que
quero dizer, senhora Marie?
Ela balanou a cabea, concordando:
Sim. Digamos que o ser masculino, mais rude, grosseiro,
irritado e violento, agiu "tomando meu corpo" de forma
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brusca, no me respeitando, agindo contra minha
vontade. Posso assegurar-lhes que raramente isso acontece.
E a senhora Helena, de educao mais esmerada, de
comportamento cordial e atencioso, gentilmente
aproximou-se de mim e solicitou-me, delicadamente, o
favor de transmitir-lhe um recado, o que fiz com satisfao.
Entendeu a diferena, doutor?
Sim, ele e os demais haviam entendido. Conversaram um
pouco mais, trocando idias sobre o palpitante tema, at que
Teresa veio avisar que o almoo estava pronto. A anfitri
convidou a todos para se dirigirem sala de jantar. Leonora
procurou saber se Valentim iria almoar na mesa com as
visitas. Foi notificada de que o esposo no iria comparecer.
O escravo que o servia informou que seu sinh, durante a
manh, tinha sentido muitas dores e depois, estranhamente,
se aquietara, acabando por adormecer. Nesse momento
estava dormindo profundamente.
Ento meu esposo tomou outra dose da medicao?
No, sinh Leonora. O estranho que as dores passaram
sem que ele tivesse tomado o remdio.
Leonora no pde deixar de notar que esse fato tinha relao
com o que acontecera na sala, mas absteve-se de comentar
diante dos servos.
Acomodaram-se ao redor da mesa e logo foram sendo
servidos pelos escravos. A conversa transcorreu
amena e agradvel, enquanto os pratos se sucediam,
embora a dona da casa e os convivas se mostrassem mais
calados e introspectivos, com a mente ainda sob o impacto
do acontecido pela manh. Gostariam de prosseguir
falando sobre o palpitante tema, mas diante dos serviais
preferiram no tocar no assunto que tanto os impressionara.
Em seguida se dirigiram para outra sala. Como de hbito
nessa hora, os cavalheiros puseram-se a conversar sobre
negcios. As damas sentaram-se no jardim de inverno.
Leonora aproveitou esse momento para contar o estranho
fato que sucedera com seu marido. Marie confirmou
que a entidade que falara por intermdio dela fora
socorrida, pois a vira afastando-se bem mais calma, ladeada
por dois anjos de luz.
Mame ouviu o que as outras diziam, mas permanecia
calada, pensativa. Ao notar seu estado, a anfitri indagou:
Querida Virgnia, o que se passa com voc? Notei que
durante a refeio no disse mais do que duas palavras! Quer
falar sobre o que a incomoda?
A visitante sorriu suavemente e justificou-se:
Peo-lhes desculpas. No pensei que tivesse me mostrado
to pouco cordial e participativa durante o almoo. Minha
cabea estava ainda preocupada com o que tinha acontecido.
Leonora mexeu a cabea negativamente:
Nem de longe tive inteno de julg-la, minha querida.
Apenas fiquei preocupada com voc. Pareceu-me to
inquieta, to fechada em si mesma!
verdade. Os acontecimentos que vivenciamos pela
manh, to extraordinrios, fizeram-me pensar em minha
filha, analisando tudo o que temos passado e sofrido. Voc
testemunha, minha querida Leonora, das dificuldades
que tenho enfrentado.
Preferiu no comentar, por pudor, que j vira um fato
semelhante acontecer com a filha - diante de Florncia -, e
que ambas no tiveram dvidas em acreditar que as palavras
fossem de Felipe, seu falecido marido, dando ordens a ela,
sua esposa.
Permaneceu calada por alguns segundos, depois se dirigiu
diretamente a Marie:
Cara Marie, quando vocs estiveram na Santa Genoveva,
falou-me de seres que viu em torno de minha filha. Fiquei
pensando se no poderamos nos reunir l em casa e tentar
dialogar com essas almas penadas. O que acha? Poder ser
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benfico para Maria Eugnia?
Marie fitou-a com gravidade, respondendo:
Virgnia, voc foi direto ao ponto. Creio,
verdadeiramente, que a soluo para muitos problemas
esteja no dilogo com esses espritos. Muitas nos desejam o
mal e tentam nos destruir, porque nos odeiam em virtude de
terem sido prejudicadas por ns no passado, seja em um
passado mais recente, seja em um passado mais remoto.
Poderia explicar melhor, Marie? - atalhou-a Leonora.
Pelo que aprendi com os filsofos, todos ns tivemos
muitas existncias. Em cada uma delas podemos ter feito o
bem ou o mal. Aqueles que prejudicamos se tornam nossos
desafetos, tal qual acontece na existncia atual. Se nos
encontrarem novamente e no tiverem nos perdoado
provvel que tentem se vingar de ns. Entendeu agora?
Entendi. Quer dizer que, no caso de meu marido, por
exemplo, ele pode estar cercado de inimigos desta ou de
outras vidas, no ?
Exatamente.
Bem. Acho que Valentim no precisa de desafetos de
outras existncias. H muita gente que o odeia pelos atos que
cometeu nesta vida mesmo, no s escravos como
brancos tambm.
As trs se calaram, pensativas, diante das palavras de
Leonora. Logo o mdico veio informar mame que era hora
de se despedirem dos amigos. Antes de partirem, Marie
trouxe uma pasta de couro preto, um tanto desgastada pelo
uso, que colocou nas mos de Tefilo:
Doutor, aqui est o material sobre o qual lhe falei. Leia-o.
Conversaremos depois.
Ao se despedir da amiga que partia, Marie prometeu que
brevemente iriam visit-la.
Como estou aqui na condio de visita, fico na depen-
dncia de Guilherme e Leonora. Prometo-lhe, ento, que
lhe ser enviado um recado confirmando o dia. Est bem?
Mame agradeceu a gentileza, feliz pela promessa. Em
seguida, ela e Tefilo retornaram para a fazenda, com novas
esperanas, aps aquele dia de to importantes
esclarecimentos para todos.
Um novo horizonte se abria na mente deles, mostrando o
amor, a bondade, a misericrdia e a justia de Deus.
32 Socorro do alto
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