O Afeto em Ferenczi
O Afeto em Ferenczi
O Afeto em Ferenczi
O Afeto em Ferenczi
2.1
Ferenczi e a Psicanlise
liberal de 1848. Anos depois, ele se tornou proprietrio de uma livraria, onde
passou a exercer o ofcio de grfico e editor. Em 1880 foi eleito presidente da
Cmara de Comrcio de Miskolcz, vindo a falecer em 1888, quando Sndor tinha
apenas quinze anos (Barande, 1996; Bokanowski, 2000).
Os poucos relatos sobre a infncia de Ferenczi parecem indicar uma
atmosfera intelectualmente estimulante. Estudou num colgio protestante, onde se
destacava como um aluno brilhante e um onanista secreto - como ele mesmo
confidenciou mais tarde numa carta datada de 31 de dezembro de 1921 e enviada
ao amigo Georg Groddeck. Ao terminar os estudos secundrios, mudou-se para
Viena onde cursou a universidade em tempo regular, mas sem o destaque dos anos
escolares, pois preferia levar a vida boa revelao do prprio Ferenczi, tambm
numa carta a Groddeck. Formou-se mdico e obteve o diploma em 1894
(Sabourin, 1988).
Essa primeira visita foi sucedida por uma longa, ntima e at hoje imperturbada
amizade, no decorrer da qual tambm efetuou a viagem aos Estados Unidos,
em 1909, a fim de pronunciar conferncias na Universidade de Clark, em
Worcester, Mass. Esses foram os comeos de Ferenczi que, desde ento, se
tornou, ele prprio, mestre e professor de psicanlise (Freud, 1923, p. 333).
Cerca de dez anos aps este artigo, em maio de 1933, Freud redigiu o
necrolgio de Ferenczi. Nele, alm de enaltecer a personalidade afvel do amigo,
reconhece que a colaborao entre os dois, durante as conversas nos encontros e
viagens, foi responsvel por dar forma inicial a numerosos artigos e trabalhos
produzidos por cada um deles. Tambm menciona um aspecto particularmente
importante desta relao entre os dois, destacado por muitos comentadores e
estudiosos da histria da psicanlise, a realizao da anlise que Ferenczi fez com
Freud. Destaca ainda que Ferenczi tornou seus discpulos todos os analistas e
conclui o artigo profetizando que considera impossvel imaginar que a histria
de nossa cincia algum dia venha a esquec-lo (Freud, 1933, p. 279).
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2.2
Sobre o afeto em Ferenczi
para Ferenczi, tudo o que externo ao aparelho psquico, tudo o que vem
perturbar a ordem e o ritmo deste, ganha relevo. Faz assim, contraponto a Freud
que, na construo da metapsicologia, d nfase ao que o prprio aparato
psquico capaz de produzir. Ferenczi parece ver no externo ao aparato psquico
o fator determinante para toda mudana possvel. Em suma, em lugar dos fatores
endgenos, seriam sobretudo os fatores externos ao sujeito os grandes
perturbadores do aparelho psquico. No existe a nenhum radicalismo, como se
poderia pensar, pois ele no pe em dvida a importncia dos fatores endgenos,
embora sempre ressalte os fatores externos ao mundo intrapsquico (Pinheiro,
1995, p. 35).
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Introjeo
O conceito de introjeo aparece pela primeira vez na obra ferencziana em
1909, no artigo Transferncia e Introjeo. Trs anos depois, em 1912, ele
escreve outro artigo sobre o tema, O conceito de introjeo, com o objetivo de
reafirmar a sua definio, de maneira mais esclarecedora, e de afastar os possveis
equvocos realizados na interpretao e na apropriao do conceito (Ferenczi,
1912).
profundo do nosso ser continuamos crianas e assim ficaremos toda a nossa vida.
Grattez ladulte et vous y trouverez lenfant (Raspem o adulto e por baixo dele
encontraro a criana) (Ferenczi, 1909, p. 98, grifado no original).
Teresa Pinheiro define a introjeo na obra de Ferenczi como a prpria
forma de funcionamento do aparelho psquico, aquilo que o psiquismo pode e
sabe fazer, mas sobretudo traz embutida em si uma noo de produtos tais como
representar, produzir fantasma e identificaes (Pinheiro, 1995, p. 45). Ainda
segundo a autora, traz tambm a possibilidade de dar sentido para a experincia
vivida e uma ordem de valores (hierarquia e diferenas entre as diversas
qualidades).
Isto nos permite supor que, para Ferenczi, a incluso na esfera psquica do
diferencial prazer / desprazer (responsvel pela instaurao da ordem psquica
sob a regncia do princpio do prazer) seria necessariamente realizada pela
primeira introjeo. o primeiro objeto introjetado que inauguraria o sentido de
prazer ou desprazer. Se o processo de introjeo que possibilita a inscrio do
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diferencial prazer / desprazer no aparelho psquico, ele que funda este aparelho;
ele que implanta a ordem da sexualidade atravs do princpio do prazer.
Afirmando que a introjeo o primeiro processo psquico, Ferenczi anuncia, por
assim dizer, sua inteno de atrelar a introjeo ordenao psquica
propriamente dita (Pinheiro, 1995, p. 46).
A fico bioanaltica
Em 1924, Ferenczi finalmente publica o livro que se dedicou a escrever
durante longos anos, Thalassa: ensaio sobre a teoria da sexualidade. Na
introduo do texto, Ferenczi afirma que as primeiras ideias de uma teoria
filogentica e ontogentica lhe surgiram em 1914, durante a traduo que fazia
para o hngaro dos Trs Ensaios sobre a Sexualidade (1905) de Freud.
com o mesmo direito que nos permite supor a transferncia para o indivduo dos
traos mnsicos da histria da espcie, e at com mais fortes razes, podemos
sustentar que os traos psquicos intra-uterinos no deixam de exercer influncia
sobre a configurao do material psquico que se manifesta aps o nascimento. O
comportamento da criana imediatamente aps o nascimento fala a favor de uma
tal continuidade dos processos psquicos (Ferenczi, 1913, p. 42-43).
Trauma
De acordo com Barande (1996), a partir de 1927 que o conceito de
trauma ganha um interesse maior na obra de Ferenczi, tanto na teoria quanto na
experincia clnica. Em A adaptao da famlia criana (1928a), Ferenczi
reavalia a concepo do trauma do nascimento proposta por Otto Rank e da qual
ele tambm se ocupou a investigar. Suas observaes posteriores, porm,
levaram-no a abandonar essa ideia, pois considerava que o nascimento era, na
verdade, o triunfo da vida, j que, na maioria dos casos, a previdncia fisiolgica e
a preocupao (instintiva) demonstrada pelos pais em tornar essa transio o mais
suave possvel, procurando eliminar o transtorno e os incmodos do recm-
nascido de forma to rpida, no poderia assumir o valor de um trauma. No
entanto, em seguida, ele aponta uma srie de situaes verdadeiramente
traumticas por que passa a criana aps o parto.
pacientes, alm de delinear com mais detalhes a sua teoria do trauma. Pois, a
manuteno da atitude de hipocrisia profissional se revela para Ferenczi como a
reproduo na situao analtica do trauma infantil. A situao descrita por ele
da seguinte maneira:
A criana que sofreu uma agresso sexual pode, de sbito, sob a presso da
urgncia traumtica, manifestar todas as emoes de um adulto maduro, as
faculdades potenciais para o casamento, a paternidade, a maternidade, faculdades
virtualmente pr-formadas nela. Nesse caso, pode-se falar simplesmente, para
op-la regresso de que falamos de hbito, de progresso traumtica
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A comoo psquica sobrevm sempre sem preparao. Teve que ser precedida
pelo sentimento de estar seguro de si, no qual, em conseqncia dos eventos, a
pessoa sentiu-se decepcionada; antes, tinha excesso de confiana no mundo
circundante, depois, muito pouco ou nenhuma. Subestimou a sua prpria fora e
viveu na louca iluso de que tal coisa no podia acontecer; no a mim. Uma
comoo pode ser puramente fsica, puramente moral ou ento fsica e moral. A
comoo fsica tambm sempre psquica; a comoo psquica pode, sem
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6
A insistncia de Ferenczi a esse respeito me faz lembrar dos versos da msica de Itamar
Assumpo (V cuidar da sua vida): V cuidar da sua vida/ Diz o dito popular/ Quem cuida da
vida alheia/ Da sua no pode cuidar. Sobre a necessidade da anlise pessoal do analista para
poder desempenhar bem a anlise de seus pacientes.
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imagens o que for possvel, pois, como j diria Freud, os exemplos, as imagens e
as metforas s nos servem at certo ponto, depois deixam de ser teis ou
adequados como comparao.
A primeira dessas imagens, proposta por Ferenczi, a de uma tira elstica,
flexvel, que possa ceder o quanto for conveniente ou necessrio, mas sem
abandonar a trao que lhe prpria, sob o risco de arrebentar. A outra, diz
respeito a se colocar no diapaso do doente e poder sentir com ele todos os seus
humores, mantendo, por outro lado, a firmeza necessria posio do analista,
fornecida pela experincia clnica (Ferenczi, 1928c). A metfora musical soa mais
interessante. Ao afinar um violo, por exemplo, com um nico instrumento rstico
(diapaso), buscamos fazer com que a corda vibre na mesma sintonia da vibrao
do diapaso. Uma imagem mais grandiosa e, aparentemente, mais anrquica, a
da orquestra afinando todos os seus instrumentos (guardadas todas as propores
e limitaes destas imagens). Ao final, o que temos a possibilidade de uma
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execuo harmoniosa de uma msica. O percurso de uma anlise pode ser assim
exemplificado, como o movimento coordenado de analista e analisando, com
modulaes, modificaes do ritmo e do andamento, a possibilidade de
construo de acordes (por vezes, com notas dissonantes) para simples (tristes,
montonas ou alegres) melodias. Com uma importante diferena: a partitura
escrita a quatro mos, medida que se toca uma anlise. Isso sem falar, claro,
no silncio.
Essa pequena digresso serviu para tentar resgatar a dimenso afetiva que
procurei acompanhar na obra ferencziana a partir dos conceitos de introjeo e
trauma, e os seus desdobramentos. A meu ver, Ferenczi parece trazer a ideia de
uma atmosfera afetiva que se cria nos encontros e que confere a eles um sentido
(sem necessariamente utilizar o recurso da palavra falada), nas mais variadas
relaes, como me-beb, pais-filho(a), professor-aluno, analista-analisando. Ele
se d a partir do encontro intersubjetivo dos corpos, atravessado por um conjunto
de impresses, marcas e sensaes, capazes de produzir diferentes climas, que
favorecem e dificultam a expresso dos diferentes estados afetivos e do
significado que acompanha cada um deles.
A obra de Ferenczi traz, assim, uma importante contribuio para a
conceituao do afeto em psicanlise, por apresentar um complemento distinto da
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Mesmo que dispusssemos de uma mquina que projetasse numa tela os mais
sutis processos do crebro e registrasse com preciso todas as modificaes do
pensamento e do sentimento, restaria sempre a experincia interna e seria
necessrio ligar ambas as experincias. O nico meio de resolver essa dificuldade
consiste em reconhecer as duas vias da experincia a fsica e a psquica
(Ferenczi, 1928, p. 13).