Nietzsche - Sobre A Morte
Nietzsche - Sobre A Morte
Nietzsche - Sobre A Morte
A morte racional. O que mais racional, parar a mquina, quando a obra que dela se
exigia foi completada ou deix-la funcionando at que pare por si mesma, isto , at
que se estrague? O segundo caso no um esbanjamento dos custos de manuteno,
um abuso da energia e ateno daqueles que dela cuidam? No a jogado fora o que
muito se necessita em outra parte? No se cria at mesmo uma espcie de desdm pelas
mquinas, quando muitas delas so mantidas e entretidas inutilmente? Estou falando
da morte involuntria (natural) e da morte voluntria (racional). A morte natural aquela
independente de toda razo, a propriamente irracional, em que a miservel substncia da
casca determina quanto tempo deve existir o ncleo: ou seja, em que o minguado,
enfermo, obtuso guardio da cadeia o senhor que designa o instante em que o seu
nobre prisioneiro deve morrer. A morte natural o suicdio da natureza, isto , a
destruio do ser mais racional pelo elemento mais irracional que a ele est ligado.
Apenas sob a luz da religio pode parecer o contrrio: porque ento, como de esperar, a
razo superior (de Deus) d suas ordens, a que a razo inferior deve se dobrar. Fora da
religio, a morte natural no digna de glorificao. A sbia organizao e disposio
da morte faz parte da moral do futuro, agora incompreensvel e imoral na aparncia, mas
cuja aurora uma indescritvel felicidade observar.
(O Andarilho e Sua Sombra, 185)
Existem pregadores da morte; e a terra est cheia daqueles a quem se deve pregar o
afastamento da vida.
A terra est cheia de suprfluos, a vida estragada pelos demasiados. Que sejam
atrados para fora dessa vida com a vida eterna!
Amarelos: assim so chamados os pregadores da morte, ou negros. Mas eu os
mostrarei a vs em outras cores.
H os terrveis, que carregam em si o animal de rapina e no tm escolha seno entre
os prazeres e a macerao. E tambm seus prazeres so ainda macerao.
Eles nem mesmo se tornaram homens ainda, esses terrveis: que preguem o
afastamento da vida e eles prprios se vo!
H os tuberculosos da alma: mal nasceram, j comeam a morrer e anseiam por
doutrinas do cansao e da renncia.
Queriam estar mortos, e ns deveramos aprovar seu desejo! Guardemo-nos de
despertar esses mortos e de ferir esses atades vivos!
Deparam com um doente, ou um velho, ou um cadver; e logo dizem: A vida est
refutada!.
Mas somente eles esto refutados, e seu olhar, que enxerga somente uma face da
existncia.
Envoltos em espessa melancolia, e vidos dos pequenos acasos que trazem a morte:
assim a esperam, com dentes cerrados.
Ou ento pegam doces e, ao faz-lo, zombam de sua criancice: apegam-se palhinha
de sua vida e zombam do fato de ainda se apegarem a uma palhinha.
Sua sabedoria diz: Tolo quem continua vivendo, mas tolos assim somos ns! E
justamente isso o mais tolo na vida
A vida s sofrimento assim dizem outros, e no mentem: cuidai, ento, de cessar!
Cuidai, ento, de que cesse a vida que s sofrimento!
E que esta seja a doutrina de vossa virtude: Deves matar a ti mesmo! Deves escapar!
Volpia pecado dizem os que pregam a morte , vamos nos apartar e no mais
gerar filhos!
Dar luz trabalhoso dizem outros , por que ainda dar luz? Nascem apenas
infelizes! E tambm eles so pregadores da morte.
preciso compaixo dizem outros ainda. Tomai o que tenho! Tomai o que sou!
Tanto menos estarei ligado vida!
Se fossem totalmente compassivos, tornariam intolervel a vida para o prximo. Ser
mau isto seria sua verdadeira bondade.
Mas querem soltar-se da vida: que lhes importa se, com suas cadeias e ddivas,
prendem ainda mais fortemente os outros!
E tambm vs, para quem a vida furioso trabalho e desassossego: no estais muito
cansados da vida? No estais maduros para a pregao da morte?
Vs todos, que gostais do trabalho furioso e do que veloz, novo, desconhecido mal
suportais a vs mesmos, vossa diligncia fuga e vontade de esquecer a vs prprios.
Se acreditsseis mais na vida, no vos lanareis tanto ao momento presente. Mas no
tendes, em vs, contedo bastante para a espera e nem mesmo para a preguia!
Em toda parte ecoa a voz dos que pregam a morte: e a terra est cheia daqueles a
quem a morte tem de ser pregada.
Ou a vida eterna: para mim o mesmo desde que se vo rapidamente!
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O PESO E A LEVEZA
O eterno retorno uma ideia misteriosa de Nietzsche que, com ela, conseguiu
dificultar a vida a no poucos filsofos: pensar que, um dia, tudo o que se viveu se h de
repetir outra vez e que essa repetio se h de repetir ainda uma e outra vez, at ao
infinito! Que significado ter este mito insensato? O mito do eterno retorno diz-nos, pela
negativa, que esta vida, que h de desaparecer de uma vez por todas para nunca mais
voltar, semelhante a uma sombra, desprovida de peso, que, de hoje em diante e para
todo o sempre, se encontra morta e que, por muito atroz, por muito bela, por muito
esplndida que
seja, essa beleza, esse horror, esse esplendor no tm qualquer sentido. No vale mais
do que uma guerra qualquer do sculo XIV entre dois reinos africanos, embora nela
tenham perecido trezentos mil negros entre suplcios indescritveis.
Mas algo se alterar nessa guerra do sculo XIV entre dois reinos africanos se, no
eterno retorno, se vier a repetir um nmero incalculvel de vezes? Sem dvida que sim:
passar a erguer-se como um bloco perdurvel cuja estupidez no ter remisso.
Se a Revoluo Francesa se repetisse eternamente, a historiografia francesa
orgulhar-se-ia com certeza menos do seu Robespierre. Mas, como se refere a algo que
nunca mais voltar, esses anos sangrentos reduzem-se hoje apenas a palavras, teorias,
discusses, mais leves do que penas, algo que j no aterroriza ningum. H uma
enorme diferena entre um Robespierre que apareceu uma nica vez na histria e um
Robespierre que eternamente voltasse para cortar a cabea aos franceses.
Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva em que
as coisas no nos aparecem como costume, porque nos aparecem sem a circunstncia
atenuante da sua fugacidade. Essa circunstncia atenuante impede-nos, com efeito, de
pronunciar um veredicto. Poder condenar-se o que efmero? As nuvens alaranjadas
do poente iluminam tudo com o encanto da nostalgia; mesmo a guilhotina.
No h muito, eu prprio me defrontei com o fato: parece incrvel mas, ao folhear
um livro sobre Hitler, comovi-me com algumas das suas fotografias; faziam-me lembrar a
minha infncia passada durante a guerra; diversas pessoas da minha famlia morreram
nos campos de concentrao dos nazistas, mas o que eram essas mortes comparadas
com uma fotografia de Hitler que me fazia lembrar um tempo perdido da minha vida, um
tempo que nunca mais h-de voltar? Esta minha reconciliao com Hitler deixa entrever a
profunda perverso inerente ao mundo fundado essencialmente sobre a inexistncia de
retorno, porque nesse mundo tudo se encontra previamente perdoado e tudo , portanto,
cinicamente permitido.