Ana Maria Capitanio

Alfabetizao
e Letramento
Sumrio
CAPTULO 1 Voc j ouviu falar sobre as novas maneiras de abordar a aprendizagem
da leitura e da escrita?....................................................................................................05

Introduo.....................................................................................................................05

1.1 Uma breve histria....................................................................................................05

1.1.1 A evoluo da escrita.......................................................................................05

1.1.2 Sistema Alfabtico............................................................................................08

1.2 Mtodos de alfabetizao..........................................................................................10

1.2.1 O processo de alfabetizao.............................................................................11

1.3 Alfabetizao e Letramento: novas abordagens e suas implicaes.................................15

1.3.1 As mudanas de paradigmas e as novas abordagens...........................................15

1.4 As relaes entre pensamento e linguagem para Piaget e Vygotsky.................................17

1.4.1 Jean Piaget......................................................................................................17

Sntese...........................................................................................................................23

Referncias Bibliogrficas ................................................................................................24

03
Captulo 1 Voc j ouviu falar sobre
as novas maneiras de
abordar a aprendizagem
da leitura e da escrita?
Introduo
Voc sabia que a escrita tem uma histria? Voc sabia que a alfabetizao foi desvinculada
do letramento devido demasiada preocupao da prpria escola em alfabetizar por meio da
escrita mecanizada? E voc sabia que o inverso tambm pode ser verdadeiro? A extrema preo-
cupao com o letramento tem contribudo para os altos ndices de analfabetos funcionais em
nosso pas?

Nosso objetivo, neste captulo, ser responder a estes questionamentos. Como? Vamos descrever
brevemente a histria da inveno da escrita e do processo de ensinar a ler e a escrever. Assim
como, vamos refletir sobre os mtodos de alfabetizao, muitas vezes conhecidos como tradi-
cionais, e sobre as consequncias dessa excessiva preocupao com o letramento e, conforme
defende a professora Magda Soares, a perda da especificidade da alfabetizao.

Tambm, nos apoiaremos nas ideias de Emlia Ferreiro que, com um olhar psicolgico, nos leva
a compreender que ler e escrever no so simples decodificaes e codificaes de letras e sons:
ler e escrever fazem parte de um sistema simblico, que a criana vai compreendendo e se apro-
priando conforme se desenvolve psicologicamente.

Por fim, outro objetivo deste captulo buscar a compreenso sobre as contribuies da psico-
logia cognitiva, na relao entre a linguagem e o pensamento, sob os pontos de vista de Piaget
e Vygotsky.

1.1 Uma breve histria

Voc sabia que a escrita foi inventada pela humanidade e que no decorrer da histria ela foi
se desenvolvendo e se modificando? A escrita uma das maiores invenes humanas e, como
qualquer inveno, ela sofreu transformaes ao longo do complexo processo histrico da hu-
manidade. Vamos contextualizar melhor esse processo neste tpico. Acompanhe!

1.1.1 A evoluo da escrita

H vrios tipos de escritas (Figura 1): pictogrficas, hierglifas, cuneiformes, entre outras. A es-
crita alfabtica, isto , uma forma de representao daquilo que falamos, a que possui maior
presena no mundo ocidental, e por essa escrita que ns, brasileiros, na maioria das vezes, nos
comunicamos e representamos o mundo.

05
 Alfabetizao e Letramento

Figura 1 Escrita Cuneiforme: consiste em escrever sobre uma placa mole de argila,
de maneira que a escrita ficasse afundada com o instrumento utilizado (cunha).
Fonte: Acrilex, 2015.

H centenas de anos, o ato de escrever era uma atividade para poucos conhecedores e era
comum referir-se a esse ato como uma arte. Por exemplo, no Egito, uma das mais antigas civili-
zaes, havia um grupo de pessoas, geralmente composto por homens, que detinha o conheci-
mento sobre a escrita, conhecidos como Escribas (Figura 1). Eles eram responsveis pelo registro
escrito de todos os acontecimentos, fosse por meio de registro de histrias populares, pelo arqui-
vamento dos documentos produzidos ou por meio outras atividades intelectuais.

Figura 2 O Escriba. Ele era responsvel pelo registro escrito de todos os acontecimentos no antigo Egito.
Fonte: Catraca Livre, 2015.

06 Laureate- International Universities

Antes da inveno da prensa (1455), por Gutemberg, os textos manuscritos, ou seja, escritos
mo, sofriam alterao propositalmente ou no, por aqueles que os possuam e/ou os liam ou,
ainda, por aqueles que os reproduziam (os copistas). Os primeiros livros impressos por Gutem-
berg foram as Bblias, que eram escritas em latim.

A diversidade de textos, dos mais simples, como os panfletos, aos mais complexos, como jornais
e livros, ao serem produzidos e reproduzidos pela impresso (por meio da prensa), tornaram-nos
estveis, isto , suas cpias passaram a ser idnticas umas s outras, alm disso, foi possvel
ampliar suas difuses.

Chamamos a ateno para a inveno de Gutemberg: a prensa de tipos mveis, pois foi graas
a ela que a quantidade e a estabilidade de textos escritos passaram a ser disseminados cada vez
mais e paulatinamente populao, o que, consequentemente, viabilizou as prticas de leitura
e escrita, isto , o letramento, de modo que

[...] a revoluo de Gutemberg alterou profundamente as formas de produo, de reproduo

e de difuso da escrita, e, conseqentemente, modificou significativamente as prticas sociais
e individuais de leitura e de escrita modificou o letramento, isto , o estado ou condio de
quem participa de eventos em que tem papel fundamental a escrita (SOARES, 2002, p. 153)

VOC O CONHECE?
A professora Magda Soares doutora e livre-docente em Educao pela Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). Professora titular emrita da Faculdade de Educao
dessa Universidade, ela autora de diversos livros sobre o ensino de Portugus e de
colees didticas para o nvel fundamental. Alm disso, a professora uma das auto-
ras mais influentes nas definies de alfabetizao e letramento

Dessa maneira, consequentemente, a prtica social da leitura por meio dos diversos materiais
escritos vai se tornando cada vez mais acessvel populao, ensinando-a, concomitantemente,
a ler e a escrever. Chamamos a ateno aqui para o seguinte ponto: letramento um termo
recente, inventado no final do sculo XX, e ele ser definido mais adiante, mas, apesar disso, as
prticas sociais da leitura sempre existiram.

Por outro lado, a expanso da alfabetizao, entendida como um processo de ensino a ler e a
escrever, s foi acontecer sculos depois, na Europa, em decorrncia da Reforma Protestante.
Lutero, o lder da Reforma, props que todos deviam aprender a ler para poder compreender
a Bblia com autonomia. Preste ateno: a Reforma Protestante aconteceu em 1517, depois da
inveno da prensa, sendo que os primeiros livros impressos foram as Bblias catlicas. Com
essa perspectiva, criou-se a necessidade de alfabetizar, isto , havia uma grande motivao para
aprender, por meio desse gnero literrio, a literatura bblica.

Alm de ser a finalidade da aprendizagem, o texto bblico era, ao mesmo tempo, o prprio
material de leitura utilizado no ensino de ler e escrever. Do ponto de vista da alfabetizao,
importante destacarmos que o objetivo (ensinar a ler e a escrever) era feito pela leitura de um
texto que tinha importncia para a vida das pessoas, isto , era uma leitura significativa. Note: a
alfabetizao e a prtica social da leitura (letramento) no estavam separadas, elas aconteciam
juntas, durante a leitura da Bblia.

07
 Alfabetizao e Letramento

NO DEIXE DE VER...
Assista ao filme O Nome da Rosa, protagonizado por Sean Connery. A histria acon-
tece no ano de 1327 no norte da Itlia e conta a saga de um monge franciscano que,
junto a seu pupilo, desvendam vrios assassinatos que acontecem ao longo da histria.
Preste ateno do incio ao fim e voc descobrir as relaes entre escrita, conhecimen-
to e poder. Disponvel em: <http://megafilmeshd.net/o-nome-da-rosa/>.

Ainda, antes da formalizao e do desenvolvimento da instituio escolar como um lugar de se

ensinar a ler e escrever, (alfabetizar), que passou a ter um carter universal e pblico somente
a partir do sculo XVIII, a alfabetizao acontecia informalmente entre as pessoas, ou seja, nos
grupos dos quais elas faziam parte, fosse dentro do mbito familiar ou no local onde trabalha-
vam (COOK-GUMPERZ, 1991 apud SANTOS, 2007).

E por falar sobre a inveno da escrita, Emlia Ferreiro (2011) chama a ateno para o longo
processo histrico de um sistema de representao, isto , um sistema simblico. A autora afir-
ma que cada criana, ao ser inserida no mundo da escrita, deve apreend-la e, para isso, elas
enfrentam dificuldades conceituais semelhantes ao processo de construo do sistema, e por
isso que ela diz que a criana reinventa a escrita, mas agora essa reinveno tem base na nossa
escrita alfabtica.

O processo de construo da escrita aconteceria em cada uma das crianas, mas agora com base
num sistema convencional que j circula entre ns. A linguagem escrita, assim como a falada,
um sistema simblico criado e sistematizado pelas pessoas. A seguir, vamos estudar um pouco
sobre o sistema alfabtico, isto , o sistema ao qual nossa lngua portuguesa-brasileira pertence.

NO DEIXE DE VER...
Todos podem aprender a ler e a escrever uma srie, composta por seis episdios, que
trata do desenvolvimento da leitura e da escrita nas crianas. Os episdios discutem as
dificuldades enfrentadas por alunos e alunas e revelam algumas possveis estratgias
para trabalhar levando-os(as) superao. Disponvel em: <http://tvescola.mec.gov.
br/tve/video/serie-completa>.

1.1.2 Sistema Alfabtico

Voc j parou para refletir sobre quem organiza e dita as regras das lnguas existentes no mundo,
como o ingls, o espanhol ou o portugus? No difcil percebermos que um idioma influen-
ciado pela cultura dos seus falantes. Usemos o Brasil como exemplo. O portugus falado no
nordeste possui particularidades que no so usadas ou mesmo conhecidas no sul do pas, no
mesmo? Para isso servem as convenes sociais, isto , para criarem sistemas de escrita nas
diferentes culturas.

Ento, em nosso sistema da lngua falada, ns tambm temos convenes que so especficas do Bra-
sil. E justamente dessa oralidade que adaptamos o sistema alfabtico e as convenes ortogrficas.

08 Laureate- International Universities

 VOC SABIA?
Desde o incio do sculo XX, busca-se estabelecer um modelo de ortografia padroni-
zado que possa ser usado como referncia nas publicaes oficiais e no ensino. Saiba
que, no Brasil, j houve trs reformas ortogrficas: em 1943, em 1971 e em 2009.

Lembremos, ainda, de que, alm de ser considerada como tcnica, a escrita foi alvo de outros
equvocos. Considerou-se que sua origem era uma inveno simplista, cuja natureza seria de
um cdigo. Durante muito tempo e at recentemente, costumava-se atribuir s letras a funo
de transcries grficas de valores sonoros unitrios. E isto no verdade? Isso acontece, mas
s que no mantida a mesma transcrio em todas as palavras, sendo que essas restries
atrapalham as pessoas na hora de decifr-las.

por isso que no podemos ter total entendimento do que se quer expressar, o que causa uma
complicao, pois se confiarmos nessa transcrio, temos que decorar letra por letra, no mes-
mo? Mas nem sempre as unidades grficas tm a mesma significao. Como assim?

Por exemplo, uma mesma letra pode representar diferentes sons: o fonema /s/ ora /s/ como em
saco, ora /z/ como em casa. Tambm acontece o inverso: o mesmo som representado por
vrias grafias. Vamos utilizar o mesmo fonema /s/ para ilustrar: ele pode ser grafado s, c, ou
ss. O /c/ de casa pode ser k de Ktia e q de queijo, entre outros tantos exemplos.

Essas possibilidades por si s destroem a ideia de cdigo, pois a peculiaridade dele a preciso,
basta nos lembrarmos das senhas que hoje usamos para controle de contas. A escrita uma
representao. Segundo Ferreiro (2012), em um cdigo, os elementos e as caractersticas so
inventadas e, arbitrariamente, no precisam de explicao e nem se apresentam vinculados:

[...] no caso da codificao, tanto os elementos como as relaes j esto predeterminados.

(...) no caso de uma representao, nem os elementos nem as relaes esto predeterminados
[...] Embora se saiba falar adequadamente, e se faam todas as discriminaes perceptivas
aparentemente necessrias, isso no resolve o problema central: compreender a natureza desse
sistema de representao. (FERREIRO, 2011, p. 16 e 19).

O sistema alfabtico tem carter bifsico, isto , seus signos lingusticos so formados a partir da
unio indissolvel de um significante com um significado, sendo que sua inteno inicial repre-
sentar as diferenas entre os significantes, diferentemente do sistema ideogrfico, que representa
as diferenas no significado. No entanto, ressaltamos que:

h elementos essenciais da fala (lngua oral) que no so retidos na representao

(entonao, gestos etc.);

palavras so tratadas como equivalentes;

os paralelos no significado so ignorados para privilegiar as semelhanas sonoras.
necessrio compreender o significante e o significado, por exemplo, quando uma letra mantm
sempre a mesma representao escrita em relao ao som, quando muda, por que muda, como
muda etc. Existem regras convencionais e processos histricos da origem das palavras. Portanto,
conforme o entendimento sobre a natureza da escrita decide-se tambm a prtica pedaggica a
ser escolhida, de modo que:

[...] se a escrita concebida como um cdigo de transcrio, sua aprendizagem concebida

como a aquisio de uma tcnica; se a escrita concebida como um sistema de representao,
sua aprendizagem se converte na apropriao de um novo objeto de conhecimento, ou seja,
em uma aprendizagem conceitual. (FERREIRO, 2011, p. 19).

09
 Alfabetizao e Letramento

E qual o papel da escola nesse assunto? Em relao escola, importante discutirmos sobre
as prticas e sobre a aprendizagem do aluno, que se preocupam, conforme afirma a abordagem
piagetiana, com as possibilidades cognitivas que seu desenvolvimento anterior lhe permite e com
a natureza do objeto do conhecimento que lhe facilite essa aquisio.

Algumas prticas vigentes de alfabetizao deixam de considerar essas premissas bsicas, favo-
recendo o ponto de vista do adulto e no o da criana, pois, de acordo com o construtivismo, o
papel central no processo de ensino-aprendizagem passa a ser o da criana e no mais o do(a)
professor(a). Antes, na chamada escola tradicional, ensinava-se diretamente os diversos concei-
tos, por meio de cpias, decorebas, memorizaes de acordo com o que o mundo adulto deci-
dia e considerava convencional. Tomemos o conceito de famlia: a professora escrevia o conceito
na lousa e todos copiavam, decoravam para responder na prova, de acordo com o exposto pela
professora e com a definio socialmente aceita. Atualmente, de acordo com o construtivismo,
leva-se em conta o que a criana compreende sobre o conceito de famlia, ou seja, o significado
disso para ela, que provavelmente tenha aprendido de acordo com suas vivncias com a prpria
famlia, com suas experincias concretas e afetivas.

A definio dada pela criana estaria de acordo com o seu nvel de desenvolvimento psicolgico.
Com o passar do tempo e com o seu desenvolvimento intelectual, esse conceito vai se transfor-
mando e ficando mais abrangente. Para Piaget, quando o jovem torna-se capaz de pensar mais
abstratamente, o conceito de famlia muda, aproximando-se ou ultrapassando aquele que
socialmente aceito.

Atualmente, a ideia predominante de que criana no chega escola como tbula rasa,
como era considerada nas pedagogias tradicionais, que acreditavam que tudo que o aluno
aprendia dependia de ser ensinado intencionalmente por algum. certo que a gente sempre
aprende com algum, ainda que os pais no ensinem a ler e a escrever, intencionalmente, como
j destacado, a criana chega escola com conhecimentos prvios, aprendidos por meio de
interaes sociais.

O problema que a pedagogia tradicional considera que o conhecimento ou a verdade j eram

predeterminados antes de acontecer. Geralmente, nessa concepo, considera-se que quem de-
tm o conhecimento so os indivduos mais velhos. Assim, no caso da alfabetizao, apenas os
alfabetizados saberiam sobre a escrita. Essa concepo do conhecimento passa pela aprovao
da sociedade vigente. Saber algo a respeito de certo objeto no quer dizer, necessariamente,
saber algo socialmente aceito como conhecimento (FERREIRO, 2011, p. 20).

Na escola, esse conhecimento sobre a escrita s poderia acontecer aps a professora o ter ensi-
nado. Para que isso ocorresse, era necessrio optar por um mtodo, de forma que as discusses
sobre alfabetizao giravam em torno dessas escolhas. Como ser que o processo de alfabeti-
zao ocorria? Vamos descobrir!

1.2 Mtodos de alfabetizao

Voc j reparou que nas sociedades atuais, urbanizadas e escolarizadas, a escrita e a leitura
dominam grande parte da comunicao? Ela est presente em outdoors, jornais, revistas, livros,
computadores, filmes, smartphones, entre tantos outros. Ao longo de sua histria, o ensino da
escrita e da leitura foi se constituindo como uma tcnica. Enquanto isso, em virtude da preocu-
pao em ensinar a ler e a escrever, os textos, que antes eram privilegiados informal e cotidiana-
mente pelas pessoas, foram sendo abandonados no processo de alfabetizao escolar.

E o que isso quer dizer? Significa que, quando a instituio escolar entra em cena e toma pra si
a responsabilidade de alfabetizar, ela acaba por se especializar demasiadamente em tcnicas sis-

10 Laureate- International Universities

temticas motoras e mecanizadas, por meio de repetio e memorizao das letras, das slabas,
das palavras, ou seja, longe dos contextos em que poderiam ser praticadas.

At agora, voc j deve ter percebido a presena constante dos termos alfabetizao e letramen-
to durante a leitura deste texto. Mas o que alfabetizao? O que letramento? Magda Soares
ajuda-nos a compreender esses conceitos no seguinte trecho de uma entrevista:

Se alfabetizar significa orientar a criana para o domnio da tecnologia da escrita, letrar significa
lev-la ao exerccio das prticas sociais de leitura e de escrita. Uma criana alfabetizada uma
criana que sabe ler e escrever; uma criana letrada (...) uma criana que tem o hbito, as
habilidades e at mesmo o prazer de leitura e de escrita de diferentes gneros de textos, em
diferentes suportes ou portadores, em diferentes contextos e circunstncias. Se a criana no
sabe ler, mas pede que leiam histrias para ela, ou finge estar lendo um livro, se no sabe
escrever, mas faz rabiscos dizendo que aquilo uma carta que escreveu para algum, letrada,
embora analfabeta, porque conhece e tenta exercer, no limite de suas possibilidades, prticas
de leitura e de escrita. Alfabetizar letrando significa orientar a criana para que aprenda a ler
e a escrever levando-a a conviver com prticas reais de leitura e de escrita: substituindo as
tradicionais e artificiais cartilhas por livros, por revistas, por jornais, enfim, pelo material de
leitura que circula na escola e na sociedade, e criando situaes que tornem necessrias e
significativas prticas de produo de textos. (SOARES, 2004, p. 17).

Assim, depreende-se disso que possvel ser letrado sem ser alfabetizado, isto , o indivduo
analfabeto, mas letrado. Um termo que s vezes se confunde com o conceito de letramento
o alfabetismo funcional. Este considerado por Soares (2014) como uma verso fraca da di-
menso social dada pelo conceito de letramento (verso forte da dimenso social). Ela explica
que, aparado por uma perspectiva progressista e liberal, o alfabetismo funcional (ou letramento
funcional) definido em termos de habilidades necessrias para que o indivduo funcione ade-
quadamente em um contexto social (SOARES, 2014, p. 72, grifo da autora).

Chamamos ateno para o termo funcional que leva um indivduo adaptado socialmente e que
usa e a leitura e a escrita a funcionar adequadamente em sua sociedade.

Porm, a verso forte de letramento defende que:

Letramento no pode ser considerado um instrumento neutro a ser usado nas prticas sociais
quando exigido, mas essencialmente um conjunto de prticas socialmente construdas que
envolvem a leitura e a escrita, geradas por processos sociais mais amplos, e responsveis
por reforar ou questionar valores, tradies e formas de distribuio de poder presente nos
contextos sociais (SOARES, 2014, p. 75)

Assim, letramento no seria um instrumento que as pessoas simplesmente lanam mo para

responder s exigncias das prticas sociais (LANKSHEAR, 1987, apud SOARES, 2014, p. 75).

E como fica a alfabetizao?

1.2.1 O processo de alfabetizao

No Brasil, foi somente aps a proclamao da Repblica que as prticas de leitura e escrita
comearam a ser sistematizadas no mbito escolar, sendo que a escola passa a ser considerada
uma importante maneira de modernizar o Estado-Nao, levando o esclarecimento popula-
o no alfabetizada. A leitura e a escrita passaram a ser compreendidas como tecnicamente
ensinveis e, assim sendo, deveriam ser ensinadas sistemtica e intencionalmente, necessitando
para isso de pessoas especializadas para tal (MORTATTI, 2006).

O conceito de alfabetizao vigente no mbito escolar, no final do sculo XIX, era o de ensinar
habilidades para codificar e decodificar [...] mediante a criao de diferentes mtodos de alfa-
betizao mtodos sintticos (silbicos ou fnicos) x mtodos analticos (global) que padroni-
zaram a aprendizagem da leitura e da escrita (ALBUQUERQUE, 2007, p. 11-12).

11
 Alfabetizao e Letramento

Os mtodos foram sendo escolhidos privilegiando a tcnica para aprender a ler e a escrever, isto
, a metodologia, sistematicamente adotada pela escola, foi eliminando aquilo que seria o ob-
jetivo principal, a leitura significativa do texto, para atender forma, tcnica, tomada como
a melhor, para dominar mecanicamente o ato de ler e escrever.

Esses mtodos (seja o sinttico, seja o analtico e suas derivaes, definidos a seguir em voc
sabia?) passaram a iniciar o ensino com letras ou conjunto de letras, principalmente com peda-
cinhos das palavras: as slabas. Quando o ensino de uma palavra era privilegiada, ignorava-se
o seu significado em um contexto significativo, isto , o seu significado dentro de um texto.

Talvez voc esteja pensando: mas eu nasci prximo do final do sculo XX e fui alfabetizado pelo
mtodo sinttico ou o professor do meu filho o ensina pelo mtodo analtico. Sim, isso poss-
vel. Ainda existem escolas que utilizam essa forma de ensino. Contudo, o que destacamos aqui
que, embora a escola tenha se dedicado ao ensino da leitura e da escrita, isso no implica
necessariamente a produo de leitores que compreendiam o que liam ou o que escreviam.

VOC SABIA?
Existem diferenas no ensino da leitura e da escrita pelo mtodo sinttico e pelo mto-
do analtico: Pelo mtodo sinttico l-se letra por letra, ou slaba por slaba, e palavra
por palavra, com vrias pausas durante a leitura ocorrendo o cansao e prejudicando
o ritmo e a compreenso da leitura. (...) O mtodo analtico um mtodo constitudo
por palavrao (leitura de palavra por palavra), assim como os mtodos tradicionais e
sintticos, trabalham com elementos isolados, o que no favorece a compreenso de
um texto, tornando-se cansativo e desestimulante, por impedir que a criana possa en-
tender o texto como um todo sem sentido. (Pedagogia ao p da letra, 2013) Disponvel
em:< http://pedagogiaaopedaletra.com/alfabetizacao-e-seus-metodos/>.

At meados da dcada de 1980, o trabalho pedaggico centrava-se nas cartilhas, livros did-
ticos com frases curtas e simples, tentando passar essa facilidade utilizando palavras com slabas
simples, por exemplo: A bab lava o beb.

Ento, em nome da facilidade ou simplicidade, perdia-se a significao. A perda do sentido des-

tri o significado para explorar apenas um conjunto de letras j estudadas e assim sucessivamente.

Talvez voc seja muito jovem e no tenha conhecido a famosa cartilha Caminho Suave, repre-
sentada na Figura 3, ou de repente voc tenha vindo de outro estado brasileiro onde h lugares
que a utilizam at os dias de hoje, de modo que voc j a conhece ou at j estudou com ela.

12 Laureate- International Universities

 Figura 3 Cartilha Caminho Suave: esteve presente nas salas de aula at meados de 1980.
Em nome da simplificao, perdia-se o significado das palavras.
Fonte: Gibanet, 2015.

NO DEIXE DE LER...
A histria dos mtodos de alfabetizao do Brasil, de Maria Rosrio Longo Mortatti.
Esse texto um artigo acadmico, e a professora traz alguns resultados de pesquisas
que ela desenvolveu a respeito da histria do ensino de lngua e literatura no Brasil
e, em particular, a respeito do ensino da leitura e da escrita na fase inicial de escola-
rizao de crianas, ou alfabetizao. Vale muito a pena l-lo para compreender as
prticas antigas e atuais de alfabetizao. Disponvel em: <http://portal.mec.gov.br/
seb/arquivos/pdf/Ensfund/alf_mortattihisttextalfbbr.pdf>.

Em meados da dcada de 1980, os estudos de Emlia Ferreiro e a proposta da abordagem cons-

trutivista, com base na Epistemologia Gentica de Jean Piaget, passaram a mudar as concepes
de ensino e aprendizagem, sobretudo, nas escolas pblicas.

Mesmo com o abandono das cartilhas pelas escolas pblicas, ainda existem disputas sobre qual
mtodo seria o mais eficiente entre o sinttico e o analtico e suas derivaes: os mtodos mistos
ou eclticos (analtico-sinttico ou vice-versa), considerados mais rpidos e eficientes (MORTAT-
TI, 2006).

13
 Alfabetizao e Letramento

A despeito de toda essa discusso, nenhuma delas levou em conta as concepes das crianas
sobre o sistema de escrita. H prticas que levam os alunos a supor que o conhecimento algo
que os outros possuem e que s podem obter por intermdio deles, sem participar dessa cons-
truo. H prticas que os levam a pensar que o que existe para se conhecer um conjunto
estabelecido de coisas, fechado e no modificvel. H prticas que levam a criana a ficar de
fora do conhecimento, como espectador ou receptor, sem encontrar respostas aos porqus.

Nenhuma prtica pedaggica neutra e elas esto apoiadas nas concepes do processo de
ensino-aprendizagem, bem como do objeto dessa aprendizagem. So essas prticas e no m-
todos que tm efeitos no domnio da lngua escrita ou em outros conhecimentos, pois esses
mtodos so limitados,

[...] os mtodos (como sequncia de passos ordenados para chegar a um fim) no oferecem
mais do que sugestes, incitaes, quando no prticas rituais ou conjuntos de proibies. O
mtodo no pode criar conhecimento. (FERREIRO, 2011, p. 32).

Algumas crianas que s copiam so resultados de prticas que entendem que a cpia e a re-
petio de modelos devem ser priorizadas como procedimentos de ensino. Se analisarmos as
crianas que so copistas experientes, mas que no compreendem o que copiam, veremos que
a origem do problema est no entendimento de quem ensina. Vamos compreender isso melhor?
Pensemos no caso do professor que confunde escrever com desenhar letras. Por isso que o f-
cil e o difcil no podem ser definidos a partir da perspectiva do adulto, mas sim da de quem
aprende (FERREIRO, 2011, p. 32).

Entretanto, os estudos acadmicos, os resultados das avaliaes nacionais e internacionais, os

rgos responsveis por pesquisas em educao, por exemplo, o Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Educacionais Ansio Teixeira (INEP), os noticirios (em suas diversas formas: jornal, TV,
rdio, internet, entre outros) tm revelado que, no Brasil, a escola tem fracassado em sua tarefa
de alfabetizar. Os estudos apontam que esse fracasso no pertence contemporaneidade, ele
vem acontecendo no decorrer de todo o sculo XX at os dias atuais. Assim:

Decorridos mais de cem anos desde a implantao, em nosso pas, do modelo republicano de
escola, podemos observar que, desde essa poca, o que hoje denominamos fracasso escolar
na alfabetizao se vem impondo como problema estratgico a demandar solues urgentes
e vem mobilizando administradores pblicos, legisladores do ensino, intelectuais de diferentes
reas de conhecimento, educadores e professores (MORTATTI, 2006, p.3).

VOC O CONHECE?
Emilia Ferreiro nasceu na Argentina em 1936. Doutorou-se na Universidade de Ge-
nebra, sob a orientao do bilogo e Psiclogo Jean Piaget, cujo trabalho sobre a
epistemologia gentica (teoria que aborda a gnese do conhecimento humano). Ela
explorou um campo pelo qual Piaget no havia se interessado: a escrita. A partir de
1974, ela desenvolveu, na Universidade de Buenos Aires, uma srie de experimentos
com crianas que deu origem s concluses apresentadas em Psicognese da Lngua
Escrita, assinado em parceria com sua colaboradora, a pedagoga espanhola Ana Tebe-
rosky e publicado em 1979. Alm da atividade de professora universitria, a psicolin-
guista est frente do site www.chicosyescritores.org, no qual estudantes escrevem em
parceria com autores consagrados e publicam os prprios textos. Informaes dispo-
nveis em: <http://revistaescola.abril.com.br/linguaportuguesa/alfabetizacao-inicial/
estudiosa-revolucionou-alfabetizacao-423543.shtml>.

14 Laureate- International Universities

Em razo dos resultados negativos dos processos de alfabetizao, no s no Brasil, mas em
outros pases tambm, como Argentina, Mxico e Estados Unidos, diversos estudos foram con-
duzidos para tentar entender esse fenmeno, ocorrendo mudanas paradigmticas em meados
dos anos 1980. Vamos conhecer mais sobre isso? Ento, acompanhe-nos!

VOC SABIA?
Paradigma significa modelo ou padro, correspondendo a algo que vai servir de mo-
delo ou exemplo a ser seguido em determinada situao, so as normas orientadoras
de um grupo que estabelecem limites e que determinam como um indivduo deve agir
dentro desses limites. Disponvel em: < http://www.significados.com.br/paradigma/>.

1.3 Alfabetizao e Letramento: novas

abordagens e suas implicaes
J parou para refletir sobre como possvel desenvolver um trabalho que privilegia o texto ao
contrrio da tradicional preferncia pelos contedos da sintaxe, da morfologia, da fontica e fo-
nologia to difundidas pelos compndios gramaticais e pela maioria dos livros didticos? E como
fazer isso sem polarizar ora a alfabetizao mecanizada, ora a nfase exclusiva na utilizao dos
gneros textuais?

Nas ltimas trs dcadas, ocorreram mudanas de paradigmas importantes e que trouxeram
consequncias para a alfabetizao. Vejamos como isso aconteceu!

1.3.1 As mudanas de paradigmas e as novas abordagens

Em meados da dcada de 1980, no processo de alfabetizao, instaurou-se um novo paradigma
conceitual que reclamava outra prtica pedaggica. As prticas tradicionais foram criticadas e
revistas quando a psicloga Emlia Ferreiro props uma revoluo nessa rea. Ela apresentou
resultados de pesquisas que indicavam como acontecia a evoluo da aquisio da leitura e da
escrita pela criana ou por adultos analfabetos.

Nos EUA, as mudanas aconteceram primeiro e de forma mais ampliada, ou seja, em todo o
contexto de ensino. J no Brasil, elas refletiram sobre a alfabetizao com o domnio do cons-
trutivismo (de Piaget) e, posteriormente, o socioconstrutivismo (de Vygotsky). A Psicognese da
Lngua Escrita, de Emlia Ferreiro, transformou [...] a concepo do processo de construo da
representao da lngua escrita, pela criana, que deixa de ser considerada como dependente de
estmulos externos para aprender o sistema de escrita (SOARES, 2006, p. 10).

Em suas anlises, Emilia Ferreiro procura demonstrar o papel ativo do sujeito no processo de
elaborao individual da escrita. Em suas relaes com a escrita, a criana vai, ativa e esponta-
neamente, elaborando e testando hipteses a respeito de como as palavras so escritas. Sendo
essas hipteses de natureza cognitiva, elas dependem do desenvolvimento da inteligncia da
criana. (FONTANA; CRUZ, 2007).

E o que significava isso na prtica? Na continuidade do ensino da lngua, no se tratava de

abandonar os contedos ditos gramaticais, mas sim trabalhar, concomitantemente, com o ma-
terial escrito ou com as prticas sociais da leitura letramento. O que antes no ensino da lngua

15
 Alfabetizao e Letramento

era colocado em primeiro plano (como as unidades lingusticas mnimas, morfolgicas, sintticas
ou fonticas) atualmente pensado de modo a alfabetizar letrando. O que isso quer dizer?
Significa ensinar a ler e a escrever dentro do contexto das prticas sociais da leitura.

Por exemplo: a professora escolhe um texto, de acordo com o planejamento, que poderia ser
uma fbula, como A cigarra e a formiga. Depois:

1. a professora l para as crianas;

2. inicia uma conversa, em roda, sobre o que as crianas entenderam sobre a fbula;

3. solicita-lhes que recontem a histria coletivamente/individualmente;

4. pergunta para as crianas sobre as palavras que elas no compreenderam;

5. ensina-os a pesquisar em dicionrios fsicos ou pela internet o significados das palavras;

6. destaca-lhes a escrita dessas palavras por meio da lousa, de jogos com alfabeto mvel,
jogo da memria, entre outros;

7. trabalha com outros textos em que essas palavras aparecem;

8. solicita-lhes que reescrevam a fbula, de acordo com seus prprios conhecimentos e

respeitando o nvel de escrita que apresentam;

9. solicita-lhes que ilustrem a reescrita com um desenho.

Quando falamos do ensino da lngua materna, imprescindvel que os sujeitos envolvidos no

processo, tanto professor quanto aluno, sintam-se responsveis pela construo evolutiva do
texto. O professor, que o coordenador responsvel pelo planejamento desse ensino, precisa as-
sumir com muito conhecimento e responsabilidade essa tarefa, desde a alfabetizao, tomando
alguns cuidados para no cometer o erro de tentar simplific-lo para facilitar e destitu-lo, assim
como fizeram as cartilhas.

Segundo Teberosky (2008), existem textos que garantem o interesse e tambm o significado ao
mesmo tempo em que facilitam o ensino de nomes prprios, escrita de ttulos, textos conhecidos
de memria. Estes so textos com os quais podemos iniciar o processo de alfabetizao.

Ainda de acordo com Teberosky (2008), dentro dessa viso, o nome prprio tambm conside-
rado um tipo de texto, j que ele contempla outra caracterstica, que o uso social, e encerra em
si mesmo toda motivao para a escrita. Como texto, o nome , inicialmente, a unidade sinttica
e lingustica mais significativa para o sujeito que aprende um todo unificado e representado em
uma nica palavra. Convenhamos: no existe algo mais motivador do que aprender a escrever
o prprio nome, no mesmo?

Atualmente, recomenda-se que ele seja o texto base para referncia de sons e signos grficos
na aquisio da linguagem escrita. Esse trabalho j vem sendo realizado por grande parte dos
alfabetizadores. Alm disso, textos mais complexos, compostos de muitas frases, tais como as
histrias, tambm fazem parte desse universo. Porm, o excessivo e intenso uso de textos implicou
alguns problemas.

De acordo com Soares (2006, p. 11), ainda que a contribuio da Psicognese da Lngua escrita
seja incontestvel, essa mudana de paradigma foi interpretada equivocadamente, conduzindo
a falsas inferncias, explicando o que a autora chamou de desinveno da alfabetizao.
O que isso? Seria a perda da especificidade do processo de alfabetizao.

16 Laureate- International Universities

De acordo com Soares (2006), a perda dessa especificidade, isto , o ensino da leitura e da
escrita - que requer o uso de tcnicas de alfabetizao - se deu pelo uso excessivo de gneros
literrios, sendo que as(os) professoras(es) passaram a usar e a abusar desses textos e deixaram
para um segundo plano a alfabetizao. A proposta que ela faz , como se diz popularmente,
nem oito, nem oitenta, ou seja, no se pode ficar preocupado apenas com alfabetizar e mui-
to menos esquecer de alfabetizar. Ela diz que deve-se alfabetizar letrando. Assim, no se deve
existir uma negao do letramento ou uma negao da alfabetizao. O problema est no foco
exagerado de um sobre o outro. Na verdade, a alfabetizao e o letramento so indissociveis
e ocorrem simultaneamente:

Dissociar alfabetizao e letramento um equvoco porque, no quadro das atuais concepes

psicolgicas, lingusticas e psicolingusticas de leitura e a entrada da criana (e tambm do adulto
analfabeto) no mundo da escrita ocorrem simultaneamente esses dois processos: pela aquisio
do sistema convencional de escrita a alfabetizao e pelo desenvolvimento de habilidades
de uso desse sistema em atividades de leitura e escrita, nas prticas sociais que envolvem
a lngua escrita o letramento. No so processos independentes, mas interdependentes, e
indissociveis: a alfabetizao desenvolve-se no contexto de e por meio de prticas sociais de
leitura e de escrita, isto , atravs de atividades de letramento, e este, por sua vez, s se pode
desenvolver relaes fonemagrafema, isto , em dependncia da alfabetizao. (SOARES,
2006, p. 11, grifos da autora).

NO DEIXE DE LER...
Artigo: Letramento e alfabetizao: as muitas facetas, de Magda Soares. Nesse artigo,
a professora discute a indissociabilidade dos conceitos de alfabetizao e letramento,
ainda que sejam conceitos diferentes. Ela defende que eles devam ser trabalhados ao
mesmo tempo: Alfabetizar letrando. Disponvel em: <http://www.scielo.br/pdf/rbedu/
n25/n25a01.pdf>.

Acompanhe-nos para estudar um pouco sobre como a linguagem e o pensamento se relacionam

nas vises de Piaget e Vygotsky. Vamos l!

1.4 As relaes entre pensamento e linguagem

para Piaget e Vygotsky
Voc sabia que Piaget estudou o desenvolvimento do pensamento da criana e dividiu-os em
quatro estgios? So eles: o sensrio motor, o pr-operatrio, o operatrio concreto e o operat-
rio formal. Porm, para nosso entendimento atual sobre o desenvolvimento da funo simblica
e a aquisio da linguagem, iremos nos deter, por enquanto, no estgio sensrio-motor.

1.4.1 Jean Piaget

O primeiro estgio, o sensrio motor, marcado pelas sensaes e pelo movimento e se inicia
no nascimento. Como podemos perceber, no incio da vida, a criana interage com o mundo a
sua volta pelos rgos dos sentidos e pelo movimento de seu corpo. Ela vai respondendo aos
estmulos de forma ativa e afetiva. E, por meio dos processos de equilibrao, a criana vai or-
ganizando seus primeiros esquemas de ao por assimilaes e acomodaes.

No decorrer dos dois primeiros anos, graas s interaes que ela estabelece com o meio fsico
e social, a inteligncia da criana vai se desenvolvendo gradativamente. Em torno dos dois anos,

17
 Alfabetizao e Letramento

podemos perceber que ela j capaz de representar, pelo pensamento e pelas primeiras pala-
vras, coisas e situaes que no esto presentes. A essa funo da inteligncia, que permite a
capacidade de representao, damos o nome de funo simblica.

De acordo com a teoria piagetiana, somente aps o desenvolvimento da funo simblica que
a linguagem se torna acessvel para a criana, ou seja, a partir do desenvolvimento da inteli-
gncia simblica que condies vo sendo criadas para a aquisio da linguagem. Resumindo:
a linguagem um produto do desenvolvimento do pensamento da criana, assim como os
jogos, a fantasia, o desenho e, por fim, a escrita. Por isso, dizemos que a funo simblica um
mecanismo individual cuja existncia prvia necessria para tornar possvel [...] a constituio
ou a aquisio de significaes coletivas (PIAGET, 1990, p. 14).

Figura 4 Jean Piaget na Universidade de Michigan, em Ann Arbor (1967-68).

Fonte: Wikimedia Commons, 2015.

Os significados das palavras no so incorporados pela criana de forma direta. A elaborao

de seus significados realizada ativamente com base em seus esquemas de assimilao, e
elas constroem significados que nem sempre so correspondentes aos significados dados pelos
adultos (FONTANA; CRUZ, 2007). Vamos entender isso melhor?

Por exemplo, os primeiros esquemas verbais, sinalizados pelo rummm, podem significar o ba-
rulho do motor de um nibus, uma motocicleta vista pela criana ou o ronco ensurdecedor de
seu pai. Assim, para situaes diferentes, a criana d a mesma denominao. Para a teoria
piagetiana, isso acontece em razo de uma forma de pensar, nesse perodo de desenvolvimento,
denominada pensamento sincrtico.

18 Laureate- International Universities

Conforme a inteligncia da criana vai se desenvolvendo, sua linguagem segue o mesmo curso
de desenvolvimento. Assim, podemos representar o desenvolvimento das palavras por meio do
seguinte esquema:

Primeiros esquemas verbais (rumm ou bad) palavras frases (mam = quero ma-
mar) frases de duas palavras (d aga = estou com sede) frases completas (nen
qu nana) narrativas descrio.

A criana inicia as conceituaes sobre o mundo que a rodeia a partir de suas experincias parti-
culares, isto , a partir de suas vivncias. Os conceitos formulados nessa fase, em torno de trs a
quatro anos, aproximam-se mais dos significados e smbolos individuais do que de conceitos mais
amplos e generalizados da linguagem convencional, bem como dos mais desenvolvidos em adul-
tos. Piaget nomeou os conceitos infantis que ainda esto em desenvolvimento de pr-conceitos.
Na verdade, os pr-conceitos esto entre a generalidade e a individualidade, pois a criana ainda
no estabelece relaes lgicas, mas se baseia em suas experincias individuais para conceituar.

Embora Piaget jamais tenha formulado uma metodologia educacional, seus estudos e teoria
sobre o desenvolvimento da inteligncia tm ajudado professores e educadores a compreender
como o pensamento e a linguagem se desenvolvem e como podem melhorar suas prticas pe-
daggicas. Emilia Ferreiro baseou-se nesses pressupostos do desenvolvimento de Piaget para
elaborar seus estudos sobre a Psicognese da lngua escrita.

Agora, vamos ver se as ideias de Piaget so as mesmas de Vygotsky? Vamos estudar as ideias de
Vygotsky e ver como elas podem ajudar? Acompanhe-nos!

Figura 5 O psiclogo sovitico Lev Vygotsky (1896-1934).

Fonte: Wikimedia Commons, 2015.

Para Vygotsky, todo o processo diferente. Ele defende que a criana tem desde o nascimento
[seno antes, no ventre materno] uma exposio linguagem por meio das interaes sociais, le-
vando-a ao desenvolvimento da funo simblica. Em outras palavras, a linguagem a base para

19
 Alfabetizao e Letramento

o desenvolvimento do pensamento havendo, fundamentalmente, uma interao entre pensamento

e linguagem, sendo a linguagem essencial no desenvolvimento do pensamento. Por isso, poss-
vel dizer que a linguagem a base para o desenvolvimento do pensamento (VYGOTSKY, 2005).

A linguagem uma representao do simbolismo que foi produzido por meio das interaes das
pessoas pela necessidade de se comunicarem, o que as levou a desenvolvimento dos signos. A
palavra um veculo da linguagem que conduz o pensamento: [...] a representao simblica
primria deve ser atribuda fala, que utilizada como base para todos os outros sistemas de
signos. (HETZER, 1926, apud VYGOTSKY, 2003, p. 150).

Todo esse processo no acontece naturalmente, mas sim como uma construo scio-histrica,
ou seja, a palavra uma produo humana situada em um espao (scio) e em um tempo (his-
trico) porque [...] o significado das palavras no desenvolvido espontaneamente pela criana
[...]" (VYGOTSKY, 2005, p. 84).

A linguagem tem a funo mediadora entre ns e os outros, sendo que os adultos procuram
ativamente fazer com que a criana incorpore os significados, objetos e modos de agir criados
pelas geraes precedentes (FONTANA; CRUZ, 2007, p. 83).

De acordo com Vygotsky, a fala perpassa todas as atividades simblicas das crianas. O que
isso quer dizer? A partir do momento em que elas adquirem a capacidade de falar, comeam a
atribuir valor e a dar nomes s coisas. A fala predomina e modela boa parte da vida interior (pen-
samento), submetendo-a a suas leis. a partir da fala que a criana se comunica de forma exata.

Ao criticar a mecanizao da escrita, assim como as linhas de estudos da psicologia que a con-
sideram como uma complicada habilidade motora, a psicologia scio-histrica afirma:

A linguagem escrita constituda por um sistema de signos que designam os sons e as

palavras da linguagem falada, os quais por sua vez, so signos das relaes e entidades
reais. Gradualmente, esse elo intermedirio (a linguagem falada) desaparece e a linguagem
escrita converte-se num sistema de signos que simboliza diretamente as entidades reais e as
relaes entre elas. Parece claro que o domnio de tal sistema complexo de signos no pode
ser alcanado de maneira puramente mecnica e externa; ao invs disso, esse domnio o
culminar, na criana, de um longo processo de desenvolvimento de funes comportamentais
[psicolgicas] complexas. A nica forma de nos aproximar de uma soluo correta para a
psicologia da escrita atravs da compreenso de toda a histria do desenvolvimento de signos
na criana. (VYGOTSKY, 2003, p. 140).

VOC O CONHECE?
Lev Semenovitch Vygotsky, fundador da Psicologia Scio-Histrica, nasceu em 1896 em
uma pequena cidade perto de Minsk, a capital da Bielorrssia. A sua famlia, de origem
abastada, promovia saraus, isto , encontros de artistas, msicos, escritores, em sua
residncia, que lhe proporcionaram uma base cultural extraordinria. Aos 18 anos, ele
se matriculou no curso de Medicina em Moscou, mas acabou cursando a faculdade de
Direito. Formado, voltou a Gomel e lecionou num curso de formao de professores,
ministrando Literatura, Esttica e Histria da Arte e tambm fundou um laboratrio de
psicologia. Mais tarde, preocupado com os aspectos neuropsicolgicos da aprendiza-
gem e da linguagem, Vygotsky voltou ao curso de Medicina e o completou. Sendo
ameaado pela tuberculose, diagnosticada desde os 19 anos, sua obra revela um sen-
tido de urgncia, isto , uma corrida contra o tempo. Em sua curta vida, ele produziu
trabalhos extraordinrios, totalizando mais de 200, entre livros, artigos cientficos e
conferncias. Infelizmente, esse terico faleceu jovem, com tuberculose, em 1934.

20 Laureate- International Universities

Em relao ao desenvolvimento de conceitos, ele discorda de Piaget, pois considera que esse de-
senvolvimento acontece dentro de uma cultura e por meio das interaes da criana com outras
mais velhas e experientes ou com adultos que convivem com ela. Assim, este no um processo
natural e muito menos individual.

Para a criana, inicialmente, os significados das palavras se relacionam ao ambiente e entre as

pessoas com quem ela vive e convive. Paulatinamente, esses fatores ligados situao em que ela
aprendeu o significado das palavras vo deixando de influenciar a sua compreenso sobre elas.

Vygotsky elege a escolarizao, isto , a aprendizagem pela educao formal, como a forma
de levar o desenvolvimento de conceitos na criana, que vo dos conceitos aprendidos cotidia-
namente (espontneos) aos conceitos cientficos (no espontneos). Mas ele concorda que [um
conceito] um ato real e complexo de pensamento que no pode ser ensinado por meio de
treinamento, s podendo ser realizado quando o prprio desenvolvimento mental da criana j
tiver atingindo o nvel necessrio (VYGOTSKY, 2005, p. 104). Ele afirma ainda que:

Em qualquer idade, um conceito expresso por uma palavra representa um ato de generalizao.
Mas os significados das palavras evoluem. Quando uma palavra nova aprendida pela
criana, o seu desenvolvimento mal comeou: a palavra primeiramente uma generalizao
do tipo mais primitivo; medida que o intelecto da criana se desenvolve, substitudo por
generalizaes de um tipo cada vez mais elevado processo que acaba por levar formao
de verdadeiros conceitos. (VYGOTSKY, 2005, p. 104).

Quando a palavra comea a se tornar mais estvel, deixando de se vincular a uma situao em
que a criana a aprendeu, suas funes de anlise e de generalizao vo se transformando
conforme o intelecto do desenvolvimento avana.

Cada vez que uma criana amplia o conceito sobre uma palavra, h um intenso processo men-
tal proporcionado pela anlise da situao em que essa palavra pode ser utilizada, bem como
o aumento de seu nvel de generalizao, ou seja, a criana reelabora o seu significado. Quer
compreender isso na prtica?

Veja, por exemplo, o significado da palavra escola. Para uma criana e um adulto, a palavra
escola tem significados diferentes. Para a criana, esta pode ter um significado que tenha
base em suas experincias: um lugar para fazer lio; ver os amigos; um lugar chato; comer a
merenda; etc. Mas, se procurarmos a definio dessa palavra, encontraremos definies como:
instituio que tem o encargo de educar segundo programas e planos sistemticos de ensino.

Para chegar a uma definio mais generalista, a criana dever superar o pensamento por com-
pleto, pelo qual ela tenta estabelecer relaes entre os dados de sua realidade e unificar impres-
ses dispersas. Assim, o significado da palavra elaborado com base na afetividade. Nesse tipo
de pensamento, a palavra agrupa elementos e situaes da realidade com base na subjetividade
da criana, assim como nas relaes que de fato existem entre esses elementos no seu contexto
de uso (FONTANA; CRUZ, 2007).

Os conceitos tm como base as relaes lgicas e um grau de generalizao que ultrapassa

as relaes imediatas (VYGOTSKY, 2005). O problema est em saber como ensin-los a uma
criana. Ento, esse processo deve ocorrer a partir de um mero treinamento, repetio ou pela
memorizao de conceitos prontos, dados e passados na lousa para serem copiados, como pre-
gava a pedagogia tradicional? O professor deve ter a funo de transmissor de conhecimentos,
sem a participao ativa da criana?

Preste ateno s palavras de Tolstoi a seguir e reflita sobre o seu significado to atual em tempos
de alfabetizao e letramento.

21
 Alfabetizao e Letramento

Temos que admitir que tentamos vrias vezes... [mtodo pela repetio e memorizao] fazer
isso, e que sempre nos deparamos como uma enorme averso por parte das crianas, o que
mostra que estvamos no caminho errado. (...) Quando se explica qualquer palavra, a palavra
impresso, por exemplo, coloca-se em seu lugar outra palavra igualmente incompreensvel,
ou toda uma srie de palavras, sendo a conexo entre elas to ininteligvel quanto prpria
palavra. Quando a criana ouve uma palavra desconhecida numa frase, de resto compreensvel,
e a l novamente em outra frase, ela comea a ter uma ideia vaga do novo conceito: mais cedo
ou mais tarde ela sentir a necessidade de usar essa palavra e uma vez que a tenha usado, a
palavra e o conceito lhe pertencem. (TOLSTOI apud VYGOTSKY, 2005, p. 105).

NO DEIXE DE LER...
A Formao Social da Mente. A leitura do captulo A pr-histria da linguagem escrita
primordial, toda pedagoga e alfabetizadora deveria ler! Nessa obra, Vygotsky discute
o desenvolvimento da escrita na criana por meio de experimentos que realizou junto
com Luria, seu grande colaborador . Essa leitura muito interessante!

A abordagem socioconstrutivista tambm contribui para a compreenso de desenvolvimento da

linguagem falada e escrita, bem como a importncia das interaes sociais com crianas mais
experientes e com adultos, sobretudo, ela coloca o papel de mediador do professor no centro
desse processo.

CASO
O que pode acontecer um desequilbrio entre alfabetizar e letrar. Quando a alfabetizao fica
centrada em mtodos sintticos, ensinada por pedaos, ou em mtodos analticos, ensinado
por palavras inteiras, retira-se as palavras do contexto no qual ela deveria ser interpretada.

Assim, o professor ou ensina: b+a= ba; b+e = be, ou somente a palavra por inteiro: bala; bolo;
belo. Essa nfase indica que a concepo de leitura e escrita se baseia simplesmente em um
conceito de decodificao e codificao, isto , o significado retirado das palavras.

Por outro lado, quando o letramento se sobressai alfabetizao, o ensino de como se escreve
as palavras, isto , a gramtica fica em um segundo plano. Nesse caso, o professor traba-
lha intensamente com cantigas, parlendas, fbulas, contos, jornais, lendo-os, reescrevendo-os,
recontando-os etc., sem dar um devido lugar ao ensino de normas e critrios para escrever de
forma culta.

Voc sabia que consequncias das formas como ns mesmos fomos alfabetizados e letrados
pode interferir at hoje em nossas vidas? Ainda que alunos do nvel superior sejam alfabetizados,
muito mais comum do que podemos imaginar eles apresentarem srias dificuldades para a lei-
tura e interpretao de textos acadmicos. Eles revelam dificuldades em interpretar e verbalizar
quando indagados sobre os objetivos de um artigo, mesmo que no texto estejam destacados os
objetivos gerais e especficos. Aos professores resta o desafio de criar vrias situaes didticas
para que os alunos compreendam o sentido das palavras no contexto.

22 Laureate- International Universities

Sntese Sntese
Foi interessante esclarecer os conceitos de alfabetizao e letramento, no mesmo? Vimos que
eles possuem uma histria que vem se modificando, desde a inveno da escrita pela humanida-
de. Durante nossos estudos, foi possvel:

acompanhar a evoluo histrica da escrita e dos primrdios da alfabetizao at a

poca da Reforma Protestante, como uma necessidade da leitura do texto bblico (um tipo
de gnero textual);

discutir a escrita como a representao de um sistema de signos, e no como um simples

cdigo, que se aprenderia de forma mecanizada;

descobrir que a escola, como principal instituio alfabetizadora, pelos usos excessivos
de mtodos sintticos ou analticos, acabou por retirar a importncia da contextualizao
textual para ensinar a ler e escrever;

questionar,
por outro lado, o uso excessivo das prticas sociais da leitura (letramento)
como um abandono da alfabetizao;

concluir que alfabetizao e letramento so indissociveis e interdependentes e que

alfabetizar letrando um caminho para o sucesso e a diminuio de analfabetos funcionais;

discutir
a importncia das abordagens piagetiana e vygotskiana para compreender o
desenvolvimento da lngua falada e escrita nas crianas.

23
 Referncias Bibliogrficas
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24 Laureate- International Universities

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