Göran Therborn - A Escola de Frankfurt Parte 1
Göran Therborn - A Escola de Frankfurt Parte 1
Göran Therborn - A Escola de Frankfurt Parte 1
Göran Therborn
Nota do editor
Trata-se de um texto de certa forma pioneiro, escrito na década de 1970, que representa uma
análise marxista sobre a “teoria crítica”, com a exceção do trabalho de Gian Enrico Rusconi, La
teoria critica della società (Bolonha: Il Mulino, 1968), da mesma forma publicado na Itália,
talvez a primeira crítica marxista ao pensamento da Escola de Frankfurt, que, aliás, é citada na
nota 1 do texto de Therborn, como sendo “uma obra muito útil e documentada”.
De qualquer forma, essa pequena, mas importante obra, editada há mais de 30 anos, continuava
inédita entre nós. Assim, acreditamos que a iniciativa de publicá-la, aqui, na forma de “Encarte”,
na revista Novos Rumos, é uma valiosa contribuição ao estudo da história das idéias,
especialmente no que se refere ao marxismo e à teoria crítica da sociedade.
A tradução aqui publicada foi realizada a partir da edição italiana -- Critica e rivoluzione. Saggio
sulla Scuola di Francoforte (Bari: Laterza, 1972) -- cotejada com a edição sueca --
Frankfurtskolan. Till kritiken av den kritiska teorin (Estocolmo: Arkiv Studiehäften, 1976).
Como se poderá ler no “Pós-escrito” de 1976, para a edição sueca, o texto integral havia sido
publicado somente em italiano, em 1972, exatamente a edição de que partimos para a tradução.
Tendo saído a edição sueca, nossa tradução foi cotejada com a mesma, incluindo-se aqui, na
edição brasileira, o mencionado “Pós-escrito”.
No que se refere às citações bibliográficas, sempre que possível, tomou-se como base as
indicações feitas pelo autor na edição sueca; contudo, em alguns casos, preferimos nos apoiar
nas notas da edição italiana, já que algumas menções bibliográficas da edição sueca se refiram a
edições que dificilmente poderão ser encontradas entre nós.
Capítulo I
A Escola de Frankfurt: os homens e o Instituto
Muitos de nós, provavelmente, tomamos contato pela primeira vez com a Escola de Frankfurt
lendo um livro de autoria de um dos seus expoentes máximos, sem imaginar que o autor
pertencia a uma escola teórica que já tinha alguns anos de existência. Durante o movimento
estudantil de 1968, que ocorreu em toda a área desenvolvida do mundo capitalista,
especialmente nos Estados Unidos, na Itália e na Alemanha ocidental, nos deparamos com a
obra mais recente de Herbert Marcuse. Adotada com entusiasmo, violentamente contestada,
embora pouco compreendida, teve, em todo caso, uma influência determinante. No contexto
muito pouco pacífico de seminários críticos dedicados a compreendermos o pensamento social
amadurecido na universidade burguesa, às vezes nos vemos envolvidos pelas argumentações de
Jürgen Habermas.
“Negação”, “teoria crítica”, “estudos críticos” são termos que dão a impressão de progresso e
certamente a atividade a que eles se referem jogou um papel progressista. Mas, num exame mais
acurado, descobrimos que, ao contrário, referem-se a um gênero particular de negação da
sociedade burguesa e a um tipo muito especial de crítica.
Este ensaio surgiu da necessidade de determinar tal particularidade que jamais foi explicitada --
pelo menos na Escandinávia -- e deslindar suas origens. No curso da pesquisa, ficou clara para
mim a inegável continuidade entre O homen unidimensional e as declarações programáticas da
Escola de Frankfurt, escritas na década de trinta por Max Horkheimer com a colaboração de
Herbert Marcuse, como também a profunda afinidade entre o livro e outras obras famosas da
Escola de Frankfurt, por exemplo Dialektik der Auflärung (Dialética do esclarecimento). Voltar
à Escola de Frankfurt é também a chave para entender Habermas e estabelecer o elo de ligação
entre as suas contribuições aos debates acadêmicos e as de Marcuse à rebelião estudantil; desta
perspectiva, Marcuse aparece como um membro da Escola e Habermas como um epígono
apagado e mais propriamente “ilegítimo”.
Partindo deste propósito, uma análise da Escola de Frankfurt não é só um estudo histórico a
respeito de uma brilhante escola alemã de filosofia, de teoria social e crítica da sociedade, que
atingiu o apogeu no exílio, entre a metade dos anos trinta e a metade dos anos quarenta; mas
representa também uma intervenção no atual debate político.
No centro das reflexões dos pensadores da Escola encontramos tanto as mais importantes
questões políticas como aqueles problemas teóricos com que o marxismo ocidental defrontou-se
a partir de seu surgimento: o fascismo, o stalinismo, a guerra fria, a chamada sociedade do bem-
estar, a revolução inacabada, de uma parte; e, de outra, a relação entre marxismo e filosofia
clássica alemã, sua relação com a crítica contemporânea que a filosofia burguesa introduziu no
seu próprio interior (por exemplo, a fenomenologia e o existencialismo), a arte de vanguarda, a
tecnologia e o trabalho, a psicanálise e o problema do indivíduo na sociedade.
A Escola tomou o nome do Institut für Sozialforschung (Instituto de Pesquisa Social), fundado
em 1923, com a doação de Felix Weil, um milionário progressista. Seu primeiro diretor foi Carl
Grünberg, um marxista austríaco, historiador da classe operária; e o Instituto continuou a
publicar sua revista, Archiv für die Geschichte des Sozialismus der Arbeiterbewegung (Arquivo
da História do Socialismo e do Movimento Operário), comumente chamada de Grünbergs
Archiv. A revista teve um papel central no vivo debate sobre o marxismo nos anos vinte na
Alemanha. Além de minuciosas pesquisas sobre o movimento operário, a Grünbergs Archiv
publicou também importantes obras de Karl Korsch (entre outras o seu principal trabalho sobre
o marxismo e a filosofia), de Györg Lukács e de D. Riazanov, diretor do Instituto Marx-Engels,
de Moscou.
Porém, a história da Escola de Frankfurt é mais recente do que a do Instituto. Pode-se dizer que
teve seu começo em 1930, quando um jovem filósofo de esquerda, Max Horkheimer, tornou-se o
diretor do Instituto e professor de filosofia social. O núcleo da Escola (Horkheimer, Theodor W.
Adorno e Herbert Marcuse) era formado por heréticos, frutos de uma cultura universitária
muito refinada. Nascidos na virada do século (Horkeimer nasceu em 1898, tendo inicialmente se
dedicado aos negócios; Marcuse também nasceu em 1898 e Adorno em 1903), tornaram-se
doutores em filosofia nos fins da década de vinte e começos da de trinta (Marcuse, por exemplo,
escreveu sua tese de doutoramento sobre a ontologia de Hegel tendo como orientador Martin
Heidegger, em Freiburg; Adorno, ao lado de seus estudos universitários, dedicou-se com o
mesmo afinco ao estudo de piano).
Pertencia à Escola e ao Instituto um grande grupo de filósofos, estudiosos das ciências sociais de
várias tendências e psicanalistas, pessoas com a idade entre trinta e quarenta anos, como Walter
Benjamin, Erich Fromm, Leo Lowenthal, Franz Neumann, Friedrich Pollock e Karl Wittfogel.
Também o ainda pouco conhecido Paul Baran ali permaneceu por um breve período.
Politicamente, os aderentes eram socialistas “convictos” que se colocavam decididamente à
esquerda do Partido Social-Democrata, mas com uma relação ambígua com o Partido
Comunista, e, em geral, eram contrários à participação em associações organizadas. O único
membro do grupo que possuía uma experiência política prática era Marcuse, que fora expoente
da esquerda social-democrata (USPD) em 1917-1918. (É bom recordar que também, por poucos
meses, no final da década de vinte, Marcuse fora editor da revista Die Gesellschaft, da social-
democracia, uma publicação teórica relativamente de esquerda).
Depois da tomada do poder pelos nazistas, em 1933, o Instituto foi obrigado a se transferir,
primeiro para Genebra e Paris e depois para Nova York. Em 1950, o Instituto voltou para
Frankfurt, onde sobreviveu como uma instituição acadêmica normal de sociologia e filosofia
social (mais ou menos crítica) -- e acadêmica até mesmo na visão da rebelião estudantil. Depois
da guerra, esteve sob a direção de Horkheimer e Adorno, enquanto Marcuse permaneceu nos
Estados Unidos. Alguns membros fundadores morreram durante a guerra e outros (por
exemplo, Erich Fromm) mudaram de posição. Por outra parte, a Escola ganhou novos ilustres
seguidores na Alemanha ocidental, entre os quais os mais representativos são os filósofos
Jürgen Habermas -- que atualmente ocupa a cátedra de filosofia e sociologia em Frankfurt -- e
Alfred Schmidt. Horkheimer aposentou-se e Adorno morreu em agosto de 1969.
O objetivo do Instituto e de sua famosa revista dos anos trinta, Zeitschrift für Sozialforschung
(Revista de Pesquisa Social), era justamente “a pesquisa social”. Com esta denominação
queriam indicar -- no tempo de Horkheimer -- que os trabalhos particulares nos vários campos
teóricos e empíricos -- economia, psicologia, sociologia, a cultura em geral -- deveriam ser
unidos com o objetivo comum de “contribuir para uma teoria da sociedade existente
considerada como um todo”. O que esses trabalhos esforçavam-se por conseguir era “o
conhecimento do desenvolvimento da sociedade em sua totalidade”. Desse ponto de vista, o
problema central era entender que relações tinham as várias partes da sociedade histórica.
Exatamente em relação a isso, a Escola de Frankfurt pôde dar uma contribuição válida ao
materialismo histórico. Um resultado desse tipo podia ser favorecido tanto pelas convicções
marxistas dos membros do Instituto como por sua abertura e vivacidade intelectuais.
Mas não foi assim. Analisaremos em seguida em detalhes a parte mais importante do
pensamento da Escola de Frankfurt, “a teoria crítica” e a sua relação com o materialismo
histórico. Mas, mesmo antes de 1937, quando se traçou o programa da teoria crítica, a Escola de
Frankfurt considerava de modo peculiar o problema da totalidade histórica. “Uma das tarefas
mais importantes para a solução deste problema -- da conexão entre os diferentes problemas da
cultura -- é o desenvolvimento de uma psicologia social que corresponda às necessidades da
história. Promover tal psicologia será uma das tarefas principais da revista.” Esse deveria ser o
objetivo: não um desenvolvimento do todo necessário do materialismo histórico, mas somente
sua integração, também em si uma tarefa importante.
Como veremos à frente, a teoria crítica desenvolvida por Horkheimer na metade dos anos trinta
fundava-se provavelmente numa necessidade política. Vista, ao contrário, através da história do
Instituto de Pesquisa Social, tem-se uma imagem diferente da Escola de Frankfurt. A direção de
Horkheimer provocou de fato uma mudança dos interesses, e dos problemas econômicos e
políticos passou-se, ao contrário, para a filosofia social e para a psicologia social.
Capítulo II
O contexto cultural. A Escola de Frankfurt e a problemática do marxismo
ocidental
A teoria que foi elaborada pela Escola de Frankfurt a partir dos anos trinta até os nossos dias
não é uma criação intelectual original. Na melhor das hipóteses, representa a continuação e o
desenvolvimento, até as últimas conseqüências, da forma de marxismo mais conscientemente
filosófico disponível para os teóricos da Escola de Frankfurt, ou seja, a filosofia do período
juvenil de Lukács e Korsch. Por sua vez, essa filosofia era o desenvolvimento de uma tendência
do pensamento filosófico e sociológico largamente difundida na Alemanha durante o século XIX
e nos primeiros anos do século XX.
Na Alemanha, em 1887, foi Ferdinand Tönnies que se fez porta-voz dessa posição quando
publicou o seu livro Gemeinschaft und Gesellschaft (Comunidade e sociedade). A distinção que
se faz com tal título mostra o conflito entre as relações pessoais de família e de vizinhança
existentes na sociedade rural pré-industrial e pré-capitalista e as relações impessoais,
meramente contratuais existentes entre os homens da sociedade urbana, comercial e industrial.
A racionalização implícita nas relações sociais tornou-se aos poucos o conceito básico de todo o
trabalho de Max Weber. De acordo com Weber, tratava-se de um destino inevitável para a
sociedade ocidental, depois de ter adotado a religião judaico-cristã. O judaísmo e o cristianismo
levaram ao desencanto do mundo (Entzauberung), à sua libertação da magia, da tradição e do
sentimento e ao nascimento de uma racionalidade instrumental, do cálculo e do controle. Weber
acompanha esse processo de racionalização nos diferentes setores e mostra seu ponto
culminante: na religião, através da Reforma; na política, por meio da burocratização; na
economia, pela empresa capitalista e pelo “espírito do capitalismo”.
Weber era um burguês com uma forte consciência de classe e sua elaboração do conceito de
capitalismo como economia racional estava estritamente ligada à sua oposição ao contexto
feudal dos Junker, que tinha como centro o Leste do Elba. Rápida e corretamente compreendeu
que a burguesia nada tinha a temer da social-democracia. De outra parte, porém, Weber estava
muito impregnado da tradição historicista alemã para considerar o processo de racionalização
com o mesmo ingênuo otimismo que os ingleses da época vitoriana ou dos sociólogos de última
hora que descrevem a modernização e a sociedade industrial. Ele estava profundamente
preocupado com a pouca possibilidade que as relações humanas e a Kultur tinham para
sobreviver num mundo completamente racionalizado, burocratizado e dominado pelo cálculo, e
chegava a conclusões muito alarmantes.
Para Weber, a racionalização representava quase que o marco da sociedade moderna enquanto
tal, assim inevitável. Mas, de vez em quando, a estrutura calculista e especialista poderia abrir
caminho para um líder “carismático”, e nele o “nacional-liberal” Weber depositava sua única
esperança. Györg Lukács -- que por um certo período, antes da guerra, pertencera a um grupo
de discípulos de Weber em Heidelberg -- descobriu uma outra possibilidade, isto é, a revolução
proletária. Enquanto Weber aspirava que a Alemanha tivesse uma presidência forte, Lukács
entrava no Partido Comunista húngaro há pouco fundado, em 1918.
A Escola de Frankfurt continua a obra do jovem Lukács nesse sentido. Sem dúvida, História e
consciência de classe (1923) deve ser lido junto com a Dialética do esclarecimento (1947), de
Adorno e Horkheimer, e com O homem unidimensional (1964), de Marcuse: a problemática
tratada é, em essência, a mesma. Ao conceito de reificação de Lukács, que provém do conceito
de racionalização de Weber, correspondem nessas obras a tese de autodestruição do iluminismo
e a idéia de unidimensionalidade. De outra parte, essa trilogia de teoria crítica revela de maneira
surpreendentemente clara as mudanças havidas na situação histórica do marxismo ocidental e
como elas se refletem numa de suas tendências principais. Os ensaios de Lukács foram escritos
entre 1919 e 1923 como contribuição às lutas revolucionárias da Komintern e como uma parte
dessas, num período em que a revolução proletária estava na ordem do dia nos países europeus
mais importantes. Adorno e Horkheimer escreveram a maior parte de seu livro durante a
Segunda Guerra Mundial e nele ficaram claros os sinais da derrota do movimento operário e do
triunfo do fascismo e da racionalidade tecnológica em geral, amplamente manifestada nos
Estados Unidos, onde os autores viveram seu exílio. O homem unidimensional, finalmente, era
voltado contra a base em que se inseria o desenvolvimento pós-bélico e contra a assim chamada
sociedade opulenta, a sufocante difusão do conservadorismo e do liberalismo de direita, a
Guerra Fria, o reformismo e a aparente integração da classe operária.
Nas críticas que a Escola de Frankfurt faz à racionalidade capitalista estão ainda presentes
também outras influências. Uma, por exemplo, pode ser encontrada na influência de um certo
tipo de existencialismo sobre Marcuse. Martin Heidegger -- professor do jovem Marcuse --
formulou em Sein und Zeit (Ser e tempo) uma terceira posição que se insere entre os dois pólos
do debate Weber-Lukács. Essa posição é caracterizada por uma crítica da sociedade tecnológica
centrada nas condições da existência individual em tal sociedade e numa concepção da
historicidade da existência humana analisada em termos ontológicos e metafísicos, sem
qualquer referência às instituições e às classes sociais. Ainda como discípulo de Heidegger,
Marcuse havia criticado o seu mestre por não ter tratado as conseqüências políticas
revolucionárias implícitas na sua ontologia e logo abandonou o existencialismo por uma posição
marxista. Mas em O homem unidimensional florescem ainda idéias existencialistas, como, por
exemplo, a do “projeto” histórico, derivada de Sartre.
Um relevo muito maior tiveram a psicanálise e a metapsicologia de Freud. Com a ajuda desses
instrumentos, a crítica à civilização capitalista é aprofundada em muitas direções. À crítica
humanista marxista se junta a reflexão psicológica sobre a civilização vista como repressão aos
instintos humanos. A Escola de Frankfurt recusou-se a atenuar “o mal-estar da civilização”, o
conflito entre sociedade e instintos do homem, considerando os últimos do ponto de vista
sociológico. Além disso, Adorno e Marcuse atacaram diretamente os revisionistas
neofreudianos, aliando-se neste sentido a seu antigo colega, Erich Fromm. Mas também
atribuíram à teoria de Freud uma importância histórica, identificando um tipo particular de
princípio de realidade típico da sociedade capitalista, o princípio de realidade. (Trata-se de
alguma coisa análoga àquilo que Weber definiu como “o espírito do capitalismo”.)
O psicanalista Wilhelm Reich, também comunista, tentou primeiro, já em 1929, acoplar Marx a
Freud numa contribuição à revista alemã da Komintern, num trabalho intitulado “Unter dem
Banner des Marxismus”. Mas o seu interesse específico estava ligado ao problema da liberação
da sexualidade, enquanto a idéia marcuseniana de uma sociedade não-repressiva implicava a
transformação da libido prevalentemente genital numa erotização de todo o corpo, ou para ser
mais exato, dar a toda a atividade humana um caráter de prazer e de energia libídica.
IDEALISMO E CIÊNCIA
Tanto para Lukács como para Korsch a idéia do marxismo como ciência exata e o abandono da
dialética hegeliana estavam assim ligados -- por meio da cisão entre teoria e prática e um
complacente evolucionismo -- à traição política da social-democracia. Assim, a reintrodução do
hegelianismo no interior do discurso marxista, realizada por eles, foi vista como uma
reafirmação do marxismo revolucionário.
A Escola de Frankfurt é a continuadora da obra de Lukács e Korsch do início dos anos vinte, mas
com uma diferente condição institucional e com uma situação histórica modificada, que
requerem várias mudanças. A Escola de Frankfurt já não age no interior do movimento
comunista, mas no interior do meio acadêmico, onde depara-se frente a frente com doutrinas
burguesas de vários tipos. Os primeiros ensaios de Horkheimer são, pois, dedicados em grande
parte à crítica das concepções idealistas da história da sociedade, incluindo entre essas as
confusas noções sobre “sociologia do conhecimento” de Mannheim e uma fundamental
afirmação do materialismo histórico. Os anos trinta são o período em que se desenvolvem o
positivismo de Carnap e do Wiener Kreis (Círculo de Viena), como também o pensamento
irracionalista do fascismo. A Escola de Frankfurt deve tomar posição no confronto entre eles.
Sobre isso, há uma outra mudança de perspectiva. Para Lukács, o dilema entre contemplação e
moralismo não podia ser superado individualmente. Somente uma classe, que por si só
representava a negação da sociedade presente, o proletariado, podia superá-lo, tornando-se um
sujeito histórico consciente. Exatamente por sua posição na sociedade capitalista, a consciência
de classe do proletariado está em condição de compreender essa sociedade na sua totalidade
histórica. Na Escola de Frankfurt, ao contrário, a consciência do proletariado era dissolvida num
longínquo futuro, e a teoria crítica -- se bem que em relação com o proletariado -- ficava sozinha
diante da tarefa de compreender a totalidade histórica.
Iminência da revolução
Um outro eixo em torno do qual se pode orientar uma análise do marxismo ocidental e da
Escola de Frankfurt é o da relação entre o proletariado e a revolução.
Numa primeira reflexão pode parecer que a única coisa a fazer é colocar em evidência o fato de
que onde para o marxismo ocidental e para a Escola de Frankfurt o proletariado está muito
distante da revolução, Lênin e Mao pensam diferente. Mas as coisas não são tão simples assim.
A essa concepção mediata e prática, o marxismo ocidental em seu nascimento substitui por uma
imediaticidade mítica. Em 1904, Rosa Luxemburg, em sua crítica ao Que fazer?, afirmara: “De
fato, a social-democracia não é ligada à organização da classe operária, mas é o movimento
específico da classe operária.” A distinção de Lênin entre ciência, política e ideologia espontânea
pertencia na realidade àquelas “antinomias” que, segundo Lukács, caracterizavam a filosofia
burguesa e das quais o proletariado devia propor a solução -- tomando progressivamente
consciência de si mesmo, da sua condição e da sua ação enquanto classe. Lukács aderiu aos
princípios bolcheviques de organização, mas com uma base teórica totalmente diferente da de
Lênin. Em lugar da distinção leniniana entre ciência e ideologia, Lukács estabeleceu a diferença
entre a “consciência de classe possível” e o grau com que a classe operária alcançou tal
consciência. Devido a essa diferença, torna-se necessária a presença de um partido comunista
que encarne a consciência de classe objetiva e que lute por sua difusão.
Jozsef Révai, naquele tempo também um dos representantes do marxismo ocidental, salientou,
numa resenha, como em História e consciência de classe o conceito de “consciência de classe
possível” não passava para Lukács de um substitutivo do conceito hegeliano de espírito.
Do ponto de vista político, devemos notar que o marxismo ocidental, em seu surgimento e
principalmente na figura chave de Lukács, não ficou incólume àquele extremismo de esquerda
que Lênin chamou de doença infantil do comunismo. Publicado muito tarde para ser levado em
consideração no livro de Lênin O esquerdismo doença infantil do comunismo, o artigo de
Lukács sobre o parlamentarismo, no qual ele opunha as táticas revolucionárias “ofensivas” às
táticas parlamentaristas “defensivas”, provocou a imediata réplica de Lênin. Na intervenção no
II Congresso da Komintern, Lukács enalteceu a desastrada e putschista “Ação de março” (uma
tentativa de insurreição revolucionária que teve lugar em março de 1923) do Partido Comunista
da Alemanha como “um grande movimento revolucionário de massa”. De fato, a “estratégia
ofensiva”, própria do extremismo de esquerda, caracterizou o partido alemão praticamente por
todo o período da segunda metade dos anos vinte -- exceto na fase em que Paul Levi esteve na
sua liderança. No V Congresso da Komintern tanto Lukács como Korsch foram violentamente
atacados por terem sustentado teses filosóficas não-ortodoxas e acusados de extremismo de
esquerda.
“As condições reais para a revolução: essa é a preocupação fundamental de Lênin”, escreve
Lukács em seu livro sobre Lênin. Escrito logo depois de sua morte, esse opúsculo é até agora um
dos pouquíssimos estudos válidos sobre Lênin. E a tese principal de Lukács é fora de dúvida
exata, mas nem aqui e nem agora, passados quarenta anos, ele não conseguia compreender a
diferença entre Lênin e os marxistas ocidentais de esquerda. Segundo Lukács, na base do
pensamento dos últimos existia “um pessimismo em relação à iminência e às condições reais
para a revolução proletária”. Ao contrário, seria preciso colocar em evidência o fato de que existe
uma importante diferença entre as condições concretas para a revolução numa determinada
época, que em certos momentos cruciais podem levar a uma situação revolucionária, e a
atualidade da revolução. A última convicção era a tendência dos marxistas ocidentais de
esquerda, alemães ou não, da qual Lênin disse: “É claro que os ‘extremistas de esquerda’ na
Alemanha trocaram o próprio desejo e a própria posição política e ideológica por um fato real.”
E acrescenta que “este é o engano mais perigoso em que podem cair os revolucionários”.
O outro e não menos importante lado da moeda era que, devido a seu “otimismo” a respeito da
iminência da revolução, os comunistas alemães -- em sincronia com a Komintern, sob a
liderança de Zinoviev -- na verdade deixaram escapar a única verdadeira ocasião para uma
insurreição revolucionária no verão de 1923, quando a crise culminou com a ocupação francesa
no Ruhr. Sua posição defensiva estava em contraste com as indicações que Lênin dera em suas
Cartas de longe ao Comitê Central bolchevique antes da Revolução de Outubro, nas quais
exortava a não se perder o momento oportuno. Ao contrário do que afirma Lukács na conclusão
de seu opúsculo sobre Lênin, é um fato surpreendente que as obras de estratégia de Lênin, como
o Que fazer?, O imperialismo e, em parte, ainda, O Estado e a revolução, iniciado no outono de
1916, foram escritas no curso da luta revolucionária, quando a revolução estava então bem longe
de ser iminente. O marxismo ocidental, ao contrário, seja porque a revolução surgisse por um
golpe de mão, não teve jamais qualquer relação prática e mediata com a luta revolucionária.
A Escola de Frankfurt nasce no contexto dessa situação nos anos trinta como o primeiro
exemplo de realidade exclusivamente acadêmica -- no sentido literal-institucional -- no interior
da tradição marxista. (Os maiores teóricos da Segunda Internacional, Plekhánov, Kautsky e
outros, exceto Labriola, apesar de sua situação acadêmica, não foram acadêmicos e o meio em
que se moveram era constituído pelas revistas e pelas escolas do partido.) De resto, os anos
trinta constituíram o decênio da depressão e sobretudo do nascimento do fascismo e da luta
contra ele. E, portanto, diante da posição teórica de Lukács dos primeiros anos vinte, o tom
político dos trabalhos dos teóricos da Escola de Frankfurt está de acordo sobretudo com a
experiência da imediata e desesperada necessidade de uma revolução socialista; se bem que sua
concreta situação política se mostrasse obscura. “Que no início dos anos trinta os trabalhadores
unidos aos intelectuais poderiam ter impedido o nacional-socialismo, não era uma especulação
vazia”, como salientou Horkheimer muito tempo depois. Até a tomada do poder pelos nazistas
na Alemanha, o destino do movimento operário europeu permanece “incerto”, como se expressa
Marcuse. Retomando em consideração esse período trinta anos mais tarde, ao anunciar a
reedição de seus ensaios mais importantes escritos naquele tempo, Marcuse nos apresenta o
quadro político da Escola de Frankfurt dos anos trinta afirmando que “nos campos de batalha e
de extermínio da guerra civil espanhola se lutou pela última vez, em sentido revolucionário, pela
solidariedade e pela humanidade”. Em seguida, desapareceu definitivamente na Escola de
Frankfurt a convicção sobre uma revolução iminente, mantida viva mediante o ativismo da sua
posição puramente teórica (ver capítulo seguinte), e a abstrata e forçada relação entre a maior
parte da teoria marxista ocidental e a ação revolucionária assume uma nova figura. Em larga
medida, tal relação torna-se sempre mais estreita depois de cada uma das duas experiências
traumáticas que foram a revolução não-realizada (no Ocidente) e a revolução traída (no
Oriente). Ambas as perspectivas se manifestam numa variedade de posições diversas. Partindo
da falência da revolução no Ocidente podia-se, por exemplo, aderir ao reformismo ou então
ostentar uma grande e intransigente renúncia pessoal. Partindo da revolução traída podia-se
aliar à burguesia ou então formar um grupo de puros. Em ambos os casos existe também, entre
outras, a possibilidade do exílio interior ou a retirada para os argumentos exclusivamente
filosóficos ou literários -- comportamento que não é raro se encontrar nos intelectuais
comunistas da Europa ocidental. Menos comum e certamente mais difícil -- por diferentes
razões, não excluídas aquelas econômico-sociais e político-organizativas -- são as tentativas de
encontrar uma relação (como havia feito Lênin) entre teoria e prática, colocando-se a teoria em
relação com os problemas concretos da luta de classe. De qualquer modo, além do mais, se
sugerirá a hipótese que os conceitos de “iminência da revolução”, de “revolução não-realizada” e
de “revolução traída” possam ser úteis tanto para explicar e compreender o distanciamento da
política, no pós-guerra, dos expoentes mais respeitáveis da Escola de Frankfurt, como o
renascimento da sua influência no final dos anos sessenta.
Capítulo III
O programa: a teoria crítica
A denominação “Escola de Frankfurt” não foi escolha de seus membros, mas atribuída a ela por
outros. Os membros do grupo preferiam denominá-la, a partir daquilo que consideravam o seu
programa teórico, de a “teoria crítica”. Um exame do que eles -- particularmente Horkheimer,
que cunhou a expressão num artigo progrmático -- entendiam por “teoria crítica” serve como
oportuna introdução ao seu trabalho em toda a sua complexidade.
A expressão “teoria crítica” não aparece nos primeiros números da revista do Instituto,
Zeitschrift für Sozialforschung. Ao contrário, é usado o termo “materialismo”. A definição
“teoria crítica” foi discutida pela primeira vez por Horkheimer em 1937, num artigo intitulado
“Teoria tradicional e teoria crítica”. Adorno esclareceu, trinta anos depois, que “a expressão de
Horkheimer ‘teoria crítica’ não era uma tentativa de tornar aceitável o materialismo, mas de
levá-lo a uma autoconsciência teórica”, e isto é plausível porque a substituição de materialismo
histórico por uma expressão mais vaga é acompanhada por uma notável radicalização da
posição de Horkheimer. Na realidade, a teoria crítica não é outra coisa senão a concepção de
Horkheimer sobre o marxismo e a expressão deriva da concepção convencional do próprio
materialismo como crítica da economia política.
A linha fundamental de demarcação entre a teoria crítica e a teoria tradicional é a resposta que
se dá à questão de considerar a teoria como uma contribuição ao processo da reprodução social,
ou, então, ao contrário, considerá-la como uma perturbação desse processo. A teoria tradicional
é absorvida pelos processos especializados de trabalho através dos quais a sociedade existente se
reproduz. Fundada na filosofia de Descartes e em seu Discurso sobre o método, ela “organiza a
experiência com base em problemas que surgem da exigência de se reproduzir a vida no interior
da sociedade existente”.
A aparente independência dos processos de trabalho, cujo curso será derivado da intrínseca
essência de seu objeto, corresponde à liberdade imaginária dos sujeitos econômicos na
sociedade burguesa. Eles pensam agir a partir de suas decisões individuais, enquanto até mesmo
os seus cálculos mais complicados não passam de instrumentos do mecanismo social.
Existe um posicionamento humano que tem como objeto a própria sociedade. Ele não é apenas
dirigido a “qualquer inconveniente secundário”, mas aparece muito mais como necessariamente
conectado à organização global da estrutura social. Mesmo surgindo da própria estrutura social,
não visa, nem por sua intenção consciente nem por seu significado, um melhor funcionamento
desta estrutura.
Os objetivos desse posicionamento “estão além da práxis social existente”. A teoria crítica é, em
primeiro lugar, uma tomada de posição e somente depois é uma teoria específica.
A sua oposição ao conceito tradicional de teoria é radical e surge não tanto de uma diferença de
objetos, mas de sujeitos. Para aqueles que compartilham deste posicionamento, os fatos, que
emergem do trabalho na sociedade, não assumem o mesmo relevo externo que têm para o
acadêmico ou para os outros profissionais que pensam todos como pequenos acadêmicos.
O teórico crítico é “aquele teórico cuja única preocupação está em um desenvolvimento que
conduza a uma sociedade sem exploração”.
A distinção sociológica e política entre teoria crítica e teoria tradicional, à luz do critério da
subversão-reprodução, comporta conseqüências precisas, seja a respeito do conteúdo, seja em
relação à estrutura lógica da teoria crítica. No primeiro caso, o efeito é o da indeterminação.
Não existem critérios gerais para a teoria crítica em sua totalidade, porque tais critérios
dependem da repetição dos eventos e também de uma totalidade auto-reproducente [...] Apesar
de toda a sua compreensão das específicas passagens e a congruência dos seus elementos com as
teorias tradicionais mais avançadas, a teoria crítica não tem nenhum modelo específico para se
fundamentar, a não ser aquele ligado a seu interesse pela eliminação do domínio de classe.
A ligação entre lógica e estrutura social, que desempenhou um papel tão importante nas mais
recentes obras da Escola de Frankfurt, aparece “brevemente desenvolvida” no ensaio
programático escrito por Horkheimer em 1937.
O juízo categórico é típico da sociedade pré-burguesa: as coisas são assim e os homens nada
podem mudar. As formas hipotéticas e disjuntivas pertencem mais propriamente ao mundo
burguês: dadas certas circunstâncias, poderá se dar certo efeito e as coisas podem caminhar de
um modo ou de outro. A teoria crítica, ao contrário, declara: as coisas não devem se dar assim,
os homens podem mudar a realidade e as circunstâncias para tal mudança já estão próximas.
Essa concepção da dialética foi formulada por Lukács em História e consciência de classe, na
qual vinham sintetizados os fundamentos da dialética entendida como “a influência recíproca de
sujeito e objeto, a unidade de teoria e práxis, e a mudança histórica do substrato das categorias
como base de sua mudança no pensamento”. Exatamente aqui, na confusão idealista a propósito
da distinção entre o objeto real e o objeto da consciência, entre o processo real e o processo
cognoscitivo está o fundamento filosófico da mais recente crítica que vê na lógica formal e na
ciência positiva da realidade a própria estrutura (sem levar em conta os fins para os quais são
usadas) dos meios de opressão e de domínio.
De que modo a distinção entre teoria tradicional e teoria crítica incide teoricamente no
problema da ciência? Qual é, segundo a teoria crítica, o significado da crítica marxiana da
economia política? Qual é o efeito sobre a economia pré-marxista dessa concepção da teoria
crítica?
Teoricamente, Horkheimer defendia que a teoria tradicional e a teoria crítica comportavam dois
diferentes “modos de conhecimento”. A teoria tradicional deriva das ciências especializadas e é
aplicada -- particularmente, mas não exclusivamente -- às ciências naturais assim como são
praticadas no atual sistema de trabalho.
Por outra parte, a teoria crítica, partindo da concepção do homem como sujeito criador da
história, passa pois a confrontar as objetivações da atividade humana existentes com as
possibilidades intrínsecas do homem. “A teoria crítica da sociedade tem como objeto os homens
considerados como produtores de todas as formas de vida presentes na sua história.” 15
[...] a teoria crítica, na formação de suas categorias e em todas as fases de seu caminho, persegue
conscientemente o interesse pela organização racional da atividade humana, a qual se colocou
como tarefa esclarecer e legitimar. A ela não interessam os objetivos assim como caracterizados
pelas formas de vida existentes, mas sim os homems com todas as suas possibilidades.
Com essa visão do homem e da sociedade, a teoria crítica se declara abertamente de acordo com
o idealismo alemão de Kant em diante, pretendendo apresentar-se não somente como sua
herdeira, mas até mesmo como herdeira da filosofia em geral com raízes no pensamento de
Platão e Aristóteles.
Até mesmo a compreensão a respeito da verdade, revelada pela teoria crítica, é a verdade da
filosofia clássica. Horkheimer coloca a objetividade da verdade em oposição a toda tomada de
posição relativista que esteve em moda durante a década de 1930. “Para [a teoria crítica] existe
puramente uma única verdade, e os predicados positivos da lealdade e da coerência interior, da
justiça da luta pela paz, pela liberdade e pela felicidade não são considerados no mesmo plano
por nenhuma outra teoria ou práxis.” A verdade é objetiva no sentido mais forte e metafísico de
ser intrínseca à essência da realidade humana, por mais infeliz que esta seja: “De fato, a meta de
uma sociedade racional, que hoje parece existir somente na fantasia, está realmente presente em
todo homem”. É por isso que a teoria crítica se torna um momento intrínseco do processo
histórico e da luta pela realização de uma sociedade livre. Mas essa tomada de posição política”
não se diferenciava dos objetivos éticos próprios de toda a tradição da filosofia racional.
A distinção epistemológica entre teoria crítica e teoria tradicional é exposta por Horkheimer de
modo mais completo numa obra escrita no decorrer da guerra. Nessa obra, a posição filosófica
própria da Escola de Frankfurt é explicitada mais claramente. O que antes era chamado de
materialismo e depois de teoria crítica é agora apontado como o conceito de “razão objetiva”,
enquanto o conceito oposto é chamado de “razão subjetiva”.
A concepção da verdade metafísica apontada no programa da teoria crítica torna-se aqui mais
clara.
Nos sistemas filosóficos da razão objetiva está implícita a convicção de que se possa descobrir
uma estrutura complexa fundamental de toda a realidade e que dela se possa deduzir uma
concepção do destino humano. Eles concebem a ciência -- a ciência digna de tal nome -- como
um instrumento de reflexão ou especulação filosófica.
Assim, do ponto de vista epistemológico, a diferença entre a teoria crítica e a teoria tradicional
equivale à diferença entre filosofia clássica e ciência moderna. A base epistemológica da teoria
crítica consiste em um humanismo metafísico.
Qual é o efeito dessa epistemologia nos casos em que está em jogo a ciência econômica? Qual é a
concepção que a teoria crítica avança sobre a crítica marxista da economia política? A passagem
da especulação filosófica clássica para o marxismo consiste simplesmente em colocar de cabeça
para baixo o idealismo, fazendo-o novamente apoiar-se “em seus pés”. O idealismo clássico
“considera espiritual a atividade que emerge do dado material [...] Para a concepção
materialista, ao contrário, qualquer atividade fundamental representa uma ação de trabalho
social”. Como “realização” da especulação humanista, a teoria crítica (ou seja, o marxismo, para
a Escola de Frankfurt) representa um juízo existencial específico sobre a vida do homem na
sociedade capitalista.
A crítica marxista é assim interpretada como uma negação dos conceitos econômicos, em
primeiro lugar o conceito de troca justa ou igual, que, segundo a Escola de Frankfurt, representa
o conceito chave da teoria econômica burguesa, assim como a troca constitui o princípio central
do sistema econômico burguês.
Diferentemente da atividade da moderna ciência especializada, a teoria crítica se torna filosófica
também como crítica da economia; o seu conteúdo representa a transformação dos conceitos
que dominam a economia em seu contrário, da troca justa no aprofundamento da injustiça
social, da livre concorrência no domínio do monopólio, do trabalho produtivo na consolidação
de relações que freiam a produção, da conservação da vida da sociedade no empobrecimento
dos povos. O efeito dessa crítica filosófica radical é muitas vezes paradoxal. Porque a crítica é
filosófica e não intervém diretamente no discurso científico, ela não pode criar nenhum novo
conceito científico; transcende certamente à economia burguesa, mas deixa intacto o seu
sistema de conceitos. A economia burguesa é a-histórica, mas não está equivocada ou privada de
cientificidade.
A teoria crítica da sociedade começa, pois, com uma idéia determinada por conceitos
relativamente gerais, da troca simples das mercadorias; baseando-se em todo o saber
disponível, mostra como a economia da troca, na sua estrutura dada de homens e coisas
intercambiando-se influências, deve necessariamente levar à agudização dos contrastes sociais
que provoca na época atual guerras e revoluções. E isto sem que os seus próprios princípios,
representados pela economia política especializada, sejam inter- rompidos.
O próprio radicalismo dessa interpretação da filosofia marxista limita os seus efeitos: o exame
que tal filosofia faz da economia adapta-se à prescrição de Wittgenstein: deixar tudo como está.
A teoria crítica, de acordo com seu programa, constitui mais o aspecto intelectual de uma
prática política que uma concreta teoria política. “A sua [do crítico teórico] profissão é a luta, à
qual o seu pensamento pertence, não o pensamento como algo autônomo, separado dela.” A
teoria crítica pode experimentar derrotas e vitórias, mas não há nenhuma disciplina
especializada da qual possa obter uma satisfação intelectual, assim como não há produto
intelectual que possa ser usado e consumido.
Mais em particular, a teoria crítica procura superar a divisão entre papéis especializados, por
exemplo, aqueles do profissional e do político, que Max Weber e a ciência oficial procuravam
resolver somente de modo psicológico, isto é, através da união pessoal no indivíduo de papéis
sociais claramente distintos, tais como do cientista e do cidadão.
[...] hoje o pensamento crítico está motivado pela tentativa de superar realmente a tensão, de
suprimir o contraste entre consciência do fim, espontaneidade e racionalidade inerentes ao
indivíduo, e as relações, fundamentais para a sociedade, do processo de trabalho.
Os pontos de vista que ela [a teoria crítica] extrai da análise histórica como fim da atividade
humana, antes de tudo a idéia de uma organização social racional correspondente à
comunidade, são imanentes ao trabalho humano, sem estarem presentes de forma justa nos
indivíduos ou no espírito público. Ocorre um preciso interesse quando se experimenta ou
percebe-se estas tendências. A doutrina de Marx e Engels é a prova de que isto é produzido pelo
proletariado [...] Mas a situação do proletariado não constitui nessa sociedade a garantia de um
justo conhecimento [...] A diferenciação, favorecida por assim dizer de cima, da sua estrutura
social e o contraste, somente rompido em momentos excepcionais, entre interesses pessoais e
interesses de classe, impedem que esta consciência tenha valor imediato.
A relação entre a teoria crítica e o proletariado é concebida por Horkheimer nos seguintes
termos:
Se, porém, o teórico e sua atividade específica com a classe dominada são vistos como unidade
dinâmica, de tal modo que a sua representação das contradições sociais apareça não só como
uma expressão da concreta situação histórica, mas também como fator estimulante, que produz
transformações, surge então a sua função. O andamento da discussão entre os componentes
avançados da classe e os indivíduos que exprimem a verdade sobre ela, e por sua vez a discussão
entre os componentes mais avançados juntamente com seus teóricos e o restante da classe, deve
ser compreendido como um processo de interação no qual a consciência desenvolve juntamente
com suas energias libertadoras, as suas energias estimuladoras, disciplinadoras e agressivas.
Deve-se notar que tal relação não é apresentada exclusivamente como aquela entre o teórico e o
proletariado, mas também como a que se dá entre o primeiro e “os componentes mais
avançados” da classe proletária, de uma parte, e o restante do proletariado, de outra. Poucas
frases antes se exemplificava concretamente o significado da expressão “componentes
avançados” ao se falar do “partido, ou melhor, de sua liderança”.
Todavia, em geral, o partido, que na concepção de Lukács sobre a relação entre a consciência de
classe e o proletariado, ocupava um lugar central, é jogado para o fundo. Horkheimer se
concentra na teoria crítica e não fala em partido. A única referência feita por ele sobre as
questões organizativas é representada pela afirmação geral, muito abstrata, de que
na organização e na união daqueles que lutam aparece, apesar de toda disciplina, alguma coisa
que anuncia a liberdade. Onde a união de disciplina e espontaneidade desaparece, o movimento
se transforma numa questão de burocratização, um fenômeno que já pertence à realidade da
história mais recente.
Desse modo, também a concepção que a teoria crítica tem da política desemboca num paradoxo.
De uma parte, a teoria se apresenta como a componente principal de uma prática política, de
outra, ela é privada de uma âncora política -- e não só do ponto de vista histórico (coisa que se
torna clara com a sua derrota e com o fato de ter sido obrigada ao exílio), mas também do ponto
de vista teórico. A excessiva politicização da teoria leva logicamente a se desenvolver a teoria
como substituição da política.
Até agora a nossa análise da Escola de Frankfurt limitou-se quase que exclusivamente a um
ensaio de Horkheimer, no qual se salientavam as diferenças entre teoria “tradicional” e teoria
“crítica” (de Frankfurt). Não obstante, já aparecem duas importantes conclusões. Horkheimer
afirma que o marxismo, ou melhor, a teoria crítica constitui um tipo completamente novo de
teoria; mas, num exame mais atento, torna-se claro que a fratura radical não é com a filosofia
clássica, da qual pretende ser herdeira, mas muito mais com a ciência. Além do mais, ela não se
propõe a substituir a ciência existente por uma nova ciência, ou melhor, recusa-se descer à
arena científica, somente denunciando a ciência de fora, do campo da filosofia. O resultado
paradoxal está no fato de que é conservada a ciência burguesa e a única mudança é representada
por um sinal filosófico (ou diretamente ético) negativo diante de suas categorias. Do mesmo
modo, a “teoria crítica” associa-se à luta da classe oprimida contra o domínio da classe
capitalista, mas é incapaz de colocar seu empenho na arena política. Ela permanece de fora,
denunciando a política da burguesa a partir da esfera filosófica. A teoria crítica de Horkheimer
comporta assim uma dupla redução da ciência e da política à filosofia.
Capítulo IV
A experiência decisiva: o fascismo como verdadeira face do liberalismo
É bastante natural que o esforço para descrever as raízes do fascismo constitua a preocupação
principal dos intelectuais antifascistas nos anos trinta e durante a guerra. Para a Escola de
Frankfurt tratava-se mais do que isto. Somente poucos anos antes, depois que o Institut für
Sozialforschung fora reconstruído em novas bases, os seus expoentes foram obrigados a fugir.
Todos os mais importantes textos da Escola foram escritos no exílio. Os seus expoentes vinham
todos de um meio que era o da burguesia abastada, que tinha uma experiência muito limitada
sobre as massas, o seu sofrimento e suas lutas. A todos os horrores do fascismo e a todas as
humilhações do exílio se somavam ainda as conseqüências de um radical anti-semitismo, na
medida em que os três expoentes mais representativos da Escola de Frankfurt eram de origem
judaica. Para a Escola de Frakfurt o fascismo foi a experiência decisiva.
Muitas das interpretações do fascismo concentravam-se não tanto nos problemas econômicos e
políticos, mas em seus fatores ideológicos e culturais. Deve-se ter presente o fato de que não
somente no interior dessas explicações culturais possam se individualizar dois campos
diametralmente opostos nas interpretações que são feitas da cultura fascista, mas que ainda no
interior de alguns desses campos estão presentes tanto os ideólogos revolucionários como os
contra-revolucionários. Para um desses campos, o fascismo constituía essencialmente um
fenômeno irracional, uma revolta contra a razão. Para outro, ao contrário, ele representava o
triunfo de uma racionalidade manipuladora.
Na primeira orientação interpretativa estão colocados tanto Karl Popper, com o seu livro The
Open Society and its Enemies, como, sucessivamente, Györg Lukács, com seu A destruição da
razão. A Escola de Frakfurt pertence decididamente à segunda orientação interpretativa, no
interior da qual encontrou uma contrapartida reacionária em pensadores como Friedrich von
Hayeck. Mas além desse fundo geral, a teoria que a Escola de Frankfurt apresentou sobre o
fascismo não permaneceu estática. Os anos 1939-1940, um divisor de águas para o radicalismo
intelectual dos anos trinta, fornecem uma adequada divisão entre duas distintas fases no
interior desse desenvolvimento.
No primeiro período, a interpretação que a Escola de Frakfurt avançava das origens do fascismo
apresentava dois temas principais, cujas fontes estavam respectivamente no marxismo e na
psicanálise. Em nível econômico, o fascismo é explicado como a passagem do capitalismo
concorrencial para o capitalismo monopolista e como a assunção ao poder por parte de grupos
monopolistas com o objetivo de enfrentar a crise econômica e política do capitalismo.
Num brilhante ensaio, “A luta contra o liberalismo na concepção totalitária do Estado”, Marcuse
mostra como os ataques fascistas ao liberalismo são fundados no fato de que essas duas
ideologias e esses dois sistemas políticos representam dois momentos diferentes do mesmo tipo
de sociedade, nos quais ambos entram e aos quais ambos aderem: mais exatamente, se trata do
capitalismo concorrencial e do capitalismo monopolista. Em primeiro lugar, Marcuse salienta
como os ataques que a ideologia fascista faz à burguesia, à busca do lucro, são principalmente
dirigidos aos capitalistas da fase do capitalismo concorrencial. Assim, o “mercador” é insultado,
enquanto “o genial empreendedor econômico” é exaltado.
O segundo tema, nessa primeira fase da explicação que a Escola de Frankfurt faz do fascismo,
consiste em derivar a ideologia moral do fascismo da moral burguesa em geral, decisivamente
contrária à sensualidade: ou seja, a ideologia moral fascista promove a sucessiva interdição do
prazer e da felicidade dos sentidos a favor da “virtude”.
Por cultura afirmativa entendemos aquela cultura que, própria da época burguesa, levou, no
curso de seu desenvolvimento, a fazer do mundo da alma e do espírito um reino autônomo de
valores, a destacá-lo da civilização material para lançá-lo para além dela. O seu traço mais
característico é a afirmação de que é um mundo de valores superiores e eternamente melhores,
o qual é obrigatório para todos e aprovado incondicionalmente. Este mundo é essencialmente
diverso do mundo efetivo da luta cotidiana pela existência, e todavia todo indivíduo pode
realizá-lo para si “do interior”, sem modificar o mundo factual.
Essa idéia da espiritualização, “esta abstrata comunidade interior (abstrata porque deixa
subsistir os contrastes reais) se transforma no último período da cultura afirmativa numa
comunidade exterior da mesma forma abstrata. O indivíduo é colocado numa falsa comunidade
(raça, estirpe, sangue e terra)”.
A reação pública da Escola de Frankfurt diante dos excepcionais eventos de 1939 mostra
claramente o caráter complexo da Escola, que se recusa a tomar uma simples posição, positiva
ou negativa, diante de tais eventos. Se bem que ligada ao clima daqueles anos no que diz
respeito a seu conteúdo, todavia a reação diante dos eventos de 1939 também fornece as
características fundamentais da Escola de Frankfurt do pós-guerra: a teoria crítica aparece
afirmada principalmente como uma pura teoria, mas de fato vai se afastando progressivamente
da política. (Mais à frente, quando examinarmos o desenvolvimento da Escola de Frankfurt,
veremos que ele não pode ser considerado dentro da esquemática estrutura aqui delineada.)
O ponto de partida sobre o qual insisto está claramente presente num escrito de Horkheimer,
“Os judeus e a Europa”, completado no início de setembro de 1939. Trata-se de um texto
particularmente sincero e intelectualmente corajoso que, significativamente, ele não incluiu na
coletânea de seus ensaios republicada em 1968.
A teoria destruiu o mito da harmonia dos interesses; representou o processo econômico liberal
como reprodução das relações de domínio por meio de livres contratos, que são arrancados
mediante a desigualdade da propriedade. A mediação agora é eliminada. O fascismo é a verdade
da sociedade moderna, que foi percebida desde o início da teoria. Essa decidida afirmação do
marxismo está colocada no seu contexto histórico, ou seja, num período em que Bruno Rizzi,
James Burnhan e outros renegados começavam a arquitetar as suas idéias sobre a “revolução
gerencial” e outras conclusões análogas.
Da aliança entre as grandes potências não se pode esperar coisa alguma. Nem se pode contar
com o colapso da economia totalitária [...] É completamente ingênuo conclamar a partir do
exterior os trabalhadores alemães para a revolução. Aquele que somente quer brincar com a
política deve ficar longe dela. A confusão tornou-se assim geral, que à verdade pertence uma
dignidade prática tanto maior, quanto menos é orientada para aquela que se retém da prática.
Horkheimer recorda a antiga e decidida oposição dos hebreus à veneração dos falsos deuses. “A
falta de respeito para um existente, que se proclama Deus, é a religião daqueles que na Europa
da bota de ferro não se cansam de empenhar sua vida na preparação de coisas melhores.” 0 Do
anticomunismo, nada se fala.
No mesmo período foi publicado também Razão e revolução, que juntamente com Marxismo
soviético constitui a melhor obra de Marcuse. O subtítulo Hegel e o “surgimento” da teoria social
indica como esse ensaio se propõe em primeiro lugar a mostrar a falsidade da identificação feita
pelos liberais entre Hegel e o fascismo, respondendo, assim, antecipadamente à crítica de
Popper. É bastante significativo que ele não cite o livro de Marcuse no seu trabalho The Open
Society and its Enemies. O livro de Marcuse é também uma reafirmação integral do marxismo.
Durante a guerra, além de Razão e revolução, de Marcuse, foram escritos três importantes obras
pelos expoentes da Escola de Frankfurt: Dialética do esclarecimento, de Horkheimer e Adorno;
Minima moralia, de Adorno; e o já citado A eclipse da razão, de Horkheimer. No que diz respeito
à explicação que se dava do fascismo, podemos nos limitar a um exame das teses expostas na
primeira delas.
A resposta que Adorno e Horkheimer davam ao quesito fazia, ao contrário, cair a culpa na
autodestruição do iluminismo liberal. (Segundo eles, o aparato de extermínio do campo de
Auschwitz podia ser, para seguir a terminologia de Popper, um exemplo significativo de
engenharia social.) O fascismo não é somente a verdadeira face do liberalismo, no sentido que
revela com crueza as desigualdades efetivas e a opressão implícita na troca aparentemente livre
própria do mercado capitalista. O fascismo exprime o objetivo total do iluminismo burguês de
Bacon ao homem liberado das superstições dos padres. Não é o mercado e nem as relações de
produção, mas as ciências naturais e aquilo que a elas corresponde em nível da epistemologia, o
que provoca os maiores danos.
O programa de uma teoria crítica reclama a componente política mais explícita do pensamento
da Escola de Frankfurt, mas é exatamente na Dialética do esclarecimento que se encontra o
ponto mais alto do seu radicalismo intelectual. De fato, nessa obra é colocado em discussão todo
o significado da lógica e da ciência.
Havendo observado por muitos anos que na atividade científica moderna as grandes invenções
são pagas com uma crescente decadência da cultura teorética, cremos sempre poder seguir a
pauta da organização científica no sentido de que a nossa contribuição será limitada
essencialmente à crítica ou à continuidade de doutrinas particulares. Isso deve-se ater, pelo
menos no ordenamento temático, às disciplinas tradicionais: sociologia, psicologia e
gnosiologia. Os fragmentos reunidos neste livro mostram que tivemos que renunciar a tal fé. Se
o atento estudo e o exame da tradição científica (especialmente onde os depuradores positivistas
a abandonam, como inútil estorvo, ao esquecimento) é um momento indispensável do
conhecimento, por outra parte entrou em crise, no presente esfacelamento da civilização
burguesa, não somente a organização, mas o próprio sentido da ciência.
O programa de uma teoria crítica reafirma ainda a noção lukacsiana de uma ciência
contemplativa oposta a um empenho por uma radical mudança social. Enquanto em Dialética
do esclarecimento o enfoque é inteiramente posto na ciência concebida como instrumento de
domínio, o alvo agora é principalmente a ciência natural e a teoria do conhecimento do
empirista Bacon. “O que os homens querem aprender com a natureza é como utilizá-la para os
fins do domínio integral da natureza e dos homens.” “O iluminismo se reporta às coisas como o
ditador aos homens que conhece a ponto de manipulá-los.” O iluminismo, exatamente por sua
indiferença nos confrontos com a lógica qualitativa e com a lógica individualmente única, como
tal se corrompeu e se ligou à racionalização capitalista do trabalho. “A indiferença para com o
indivíduo, que se exprime na lógica, traz as conseqüências do processo econômico.” Somente o
fascismo honrou plenamente a ciência, livre de qualquer consideração moral. “A ordem
totalitária acolhe completamente nos seus direitos o pensamento calculista e se liga à ciência
como tal.”
A alegoria dessa dialética pode ser encontrada no duodécimo livro da Odisséia, onde a nave de
Ulisses deve passar pelo ponto em que se encontram as sereias que, com seu canto
esplendidamente belo, levam os homens a se perderem no passado. Ulisses supera esse perigo
de dois modos. Uma solução envolve os seus marinheiros: ele enche de cera os seus ouvidos.
“Eles devem olhar para a frente e ignorar o que acontece ao lado”. A outra solução, ao contrário,
envolve ele mesmo, o proprietário: faz-se amarrar ao mastro da nave. Depois de tais
preocupações, pode gozar o canto das sereias, porque a tentação é transformada apenas num
objeto de contemplação, ou seja, arte, e quanto maior é a tentação tanto mais fortemente os seus
homens devem amarrá-lo. Do mesmo modo, sucessivamente, o burguês rejeitará a felicidade
com tanta maior obstinação quanto mais ela se avizinhar com o aumento de seu poder. O
mesma tema é reafirmado através de um exame da obra de Kant, Sade e Nietzsche, com o
intento de mostrar como “a sujeição de tudo o que é natural ao sujeito senhor de si se conclui
exatamente no domínio da objetividade e da naturalidade mais cega”. Os autores, por sua vez,
voltam a percorrer a transformação do iluminismo em cultura comercial e em comunicação de
massa, “o iluminismo como engano das massas”.
Uma parte do livro, mais marcadamente política, é constituída por sete teses sobre o anti-
semitismo. A mais significativa das teses é a última, que foi agregada depois da guerra no clima
de total euforia democrática pela vitória sobre o fascismo. Exatamente nesse período
Horkheimer e Adorno avançaram a tese de que o fascismo e o anti-semitismo continuavam a
sobreviver na própria estrutura dos partidos existentes.
O tom da sétima tese é o seguinte: “Não existem mais anti-semitas. Os últimos eram liberais que
queriam afirmar sua opinião antiliberal.” A sobrevivência do anti-semitismo é ainda ilustrada
com um termo e uma realidade derivados do sistema político dos Estados Unidos, o ticket, no
sentido, por exemplo, do programa eleitoral de Nixon-Agnew:
A mentalidade do ticket constitui uma componente do processo penetrante, por meio do qual é
rejeitada a individualidade. Dessa perspectiva, também os partidos progressistas são
explicitamente atacados:
A base da evolução que leva a se pensar através dos tickets já é, de fato, a universal redução de
toda energia específica a uma só, idêntica e abstrata forma de trabalho, do campo de batalha ao
estúdio cinematográfico. Mas a passagem dessas condições preliminares para um estado mais
humano não tem lugar, porque aquele que entende o mal entende também o bem. A liberdade
que aparece com o ticket progressista é da mesma forma extrínseca às estruturas de poder a que
tendem necessariamente as decisões progressistas, como o anti-semitismo contra o truste
químico.
Apesar de todos os seus virtuosismos, a explicação dada pela Escola de Frankfurt sobre o
fascismo representa um exemplo de impotência teórica. O tema de Dialética do esclarecimento é
o da autodestruição da razão burguesa: esse ensaio exprime também em si mesmo a
autodestruição do excessivo radicalismo intelectual. A mesma radical rejeição que os autores
fazem da cultura e da sociedade burguesa distorce as armas em suas mãos e os leva a se
refugiarem no interior de fragmentos especulativos. O desenvolvimento que se tem no pós-
guerra devia mostrar que essa era uma posição ideológica insustentável.
Göran Therborn