Ortega - Neurodiversidade
Ortega - Neurodiversidade
Ortega - Neurodiversidade
O sujeito cerebral e o
movimento da neurodiversidade
Francisco Ortega
Introdução
“Você teria permitido que Bill Gates nascesse?” (“Would you have allowed
Bill Gates to be born?”), no qual sublinha o fato freqüentemente observado
que Gates apresenta muitos traços de personalidade dos portadores da sín-
drome de Asperger, pretendendo com isso chamar a atenção para os riscos
envolvidos nos testes genéticos.
Obviamente, o espectro do transtorno autista é muito amplo, abarcando
desde os casos “de alto funcionamento”, como (presumivelmente) Bill Gates,
o filósofo Ludwig Wittgenstein e o pianista Glenn Gould, até os “de baixo
funcionamento”, crianças e adultos com retardo mental e severos compro-
metimentos cognitivos e funcionais. A meu ver, este fato nos coloca diante
de importantes dilemas éticos e sociopolíticos. A questão é dupla: permitirá
o teste genético estabelecer as sutilezas necessárias para definir claramente
em que ponto do espectro autista o feto e/ou o embrião se encontra? Mas ao
mesmo tempo, se se trata de um espectro, ou seja, um contínuo, qual deve
ser o ponto de corte a determinar o nível em que o grau de comprometi-
mento cognitivo é aceitável, mas para além dele se justificaria o aborto?
Em poucas palavras, permitirá o teste genético diferenciar os autistas de
“baixo” daqueles de “alto” funcionamento? Isto sem mencionar que, mesmo
nos casos mais severos de autismo, não existe consenso a respeito do aborto
dessas crianças, como não existe de fato em relação à síndrome de Down e
a outras doenças e transtornos.
Para os ativistas do movimento autista, trata-se de um risco de genocídio
que deve ser combatido. Abortar um feto autista seria como abortar um feto
homossexual ou canhoto (caso fosse possível detectar essas características
geneticamente). Os testes pré-natais constituem uma verdadeira ameaça eu-
gênica que visa ao aborto dos neurodivergentes. Dada a tecnologia, pergunta
Susanne Antonetta, autora de A mind apart. Travels in a neurodiverse world,
diagnosticada com transtorno bipolar: “Escolheríamos apenas crianças per-
feitas? Perfeitas para os olhos de quem? Nossa cultura?” (Antonetta 2005:92).
A gravidade da situação levou a que ativistas do movimento entrassem em
2004 com uma petição nas Nações Unidas exigindo que, diante das ameaças,
fossem reconhecidos como “grupo social minoritário”, que merece proteção
perante a “discriminação” e o “tratamento inumano”. Eles se consideram
uma minoria, uma cultura diferente com padrões de comunicação e hábitos
diferentes (Nelson 2004).
Vale a pena ressaltar um elemento comum aos movimentos pró-cura e
anticura. Apesar de se encontrarem num feroz embate, ambos os movimen-
tos compartilham a recusa às explicações psicanalíticas “culpabilizantes”.
O deslocamento do paradigma psicanalítico para o cerebral possibilitou a
organização dos dois grupos antagônicos. Para os pais de autistas, recusar a
484 O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade
culpa pela doença dos filhos e a denúncia dos excessos da psicanálise está
na base das primeiras associações que visam, como foi ressaltado, buscar
formas de cura orientadas basicamente para a terapia comportamental e os
tratamentos farmacológicos. Todavia, os anseios dos pais de autistas con-
vergem com as explicações psicanalíticas que tratam o autismo como uma
doença e/ou uma deficiência, embora se inclinem para explicações genéti-
cas e/ou cerebrais do transtorno que exigem tratamentos farmacológicos e
comportamentais, e não psicodinâmicos.
Os movimentos de autistas surgem, por sua vez, como recusa à visão
negativa do autismo difundida pelas explicações psicanalíticas de Kanner,
Bettelheim e outros, que focalizam a incapacidade e a deficiência. Eles con-
vergem (nas suas posições mais radicais), no entanto, com as explicações
psicanalíticas, segundo as quais as crianças autistas deveriam ser afastadas
dos pais.10 A despeito das posições antagônicas de ambos os grupos em re-
lação a considerar o autismo como doença a ser tratada ou diferença a ser
tolerada e celebrada, a superação das explicações psicologizantes (psicana-
líticas) constitui uma forma de empowerment tanto para os grupos pró-cura,
como para os anticura. O cerebralismo do autismo é abraçado pelos dois
grupos, embora leve a posições políticas antagônicas. Aplica-se a ambos a já
citada observação de Rosenberg: “legitimidade social pressupõe identidade
somática” (2006:414).
Para os movimentos de pais de autistas, o cerebralismo desculpabili-
za-os pelo transtorno, apontando para uma causalidade concreta e objetiva
que possa ser usada para reivindicar verbas públicas para a pesquisa e o
tratamento de crianças autistas. Os movimentos de autistas, por sua vez,
servem-se das explicações cerebrais para destacar a diversidade e a sin-
gularidade das conexões cerebrais, muitas das quais são neuroatípicas ou
neurodivergentes. Refletem a diversidade do cérebro humano, que não pode
ser tratada na polaridade normal/patológico ou doença/cura. Tolerância e
direito à diferença e à diversidade tomam o cérebro como referência. Como
observa Muskie, autor do mencionado site do Institute for the Study of the
Neurologically Typical e diagnosticado com a síndrome de Asperger:
Minha bête noire atual consiste em ter consideradas minhas emoções como
“rasas”. Como alguém com um conhecimento consideravelmente maior sobre
minhas emoções do que os “especialistas” (experts), posso declarar inequivo-
camente que minhas emoções não são “rasas”. Pode ser que amanhã eu seja
descrito como “pouco empático”, ou serei ultrajado com um excepcionalmente
ignorante método “de treinamento” sendo infligido a crianças autistas, ou talvez
haja algum novo artigo escrito por algum especialista a partir da perspectiva de
O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade 485
que a percepção neurotípica está correta e que meu cérebro é um erro genético
[...] Meu cérebro é uma jóia. Eu estou espantado com a mente que tenho. Eu
e minha experiência de vida não somos inferiores e podemos ser superiores à
experiência de vida dos neurotípicos (ênfase minha).11
O fato de que meus filhos têm uma anormalidade no desenvolvimento não sig-
nifica que eu não os ame por quem eles são, como ela [Amy Harmon] insinua
tão incessantemente. Eu amo meus filhos, mas eu não amo o autismo. Meus
filhos não fazem parte de um grupo seleto de seres superiores denominados
“autistas”. Eles têm autismo, uma invalidez neurológica devastadora nas suas
implicações em suas vidas, se não for tratado [...] Em outras palavras, não é
mais normal ser autista do que é ter espinha bífida (Weintraub 2005).
(1976, 1997, 1999), mas sim segundo critérios de saúde, performances cor-
porais, doenças específicas, longevidade, entre outros. Na biossociabilidade
criam-se novos critérios de mérito e reconhecimento, novos valores com base
em regras higiênicas, regimes de ocupação de tempo, criação de modelos
ideais de sujeito baseados no desempenho físico. As ações individuais pas-
sam a ser dirigidas com o objetivo de se obterem melhor forma física, mais
longevidade e/ou o prolongamento da juventude.
Na biossociabilidade, a vida psíquica é descrita segundo predicados
corporais. Todo um vocabulário fisicalista-reducionista é utilizado na descri-
ção de crenças, sentimentos, desejos, volições. Os atos psicológicos têm sua
origem em causas físicas e as aspirações morais do indivíduo são medidas
segundo performances corporais. Como conseqüência, concepções psicoló-
gicas e internalistas de pessoa são deslocadas para a exterioridade, dando
lugar à constituição de identidades somáticas, as bioidentidades (Costa
2004; Ortega 2008). Esta acontece mediante toda uma série de recursos
reflexivos e de práticas de si, a bioascese, a qual reproduz no foco subjetivo
as regras da biossociabilidade, enfatizando-se os procedimentos de cuidados
corporais, médicos, higiênicos e estéticos na construção de identidades pes-
soais. A distinção entre corpo e self tornou-se obsoleta nas bioidentidades.
O físico transformou-se em um signo cardinal do self, de uma maneira não
mais conseguida por meio de acessórios, tais como moda e cosméticos. As
práticas bioascéticas fundem corpo e mente na formação da bioidentidade
somática, produzindo um eu que é indissociável do trabalho sobre o corpo,
o que torna obsoletas antigas dicotomias, tais como corpo-alma, interiori-
dade-exterioridade, mente-cérebro.
Nesse processo de descrição da individualidade e da subjetividade em
termos corporais, o cérebro ocupa um lugar privilegiado. O espetacular pro-
gresso das neurociências, o intenso processo de popularização pela mídia de
imagens, as informações que associam a atividade cerebral a praticamente
todos os aspectos da vida e certas características estruturais da sociedade
atual vêm produzindo, no imaginário social, uma crescente percepção do
cérebro como detentor das propriedades e autor das ações que definem o
que é ser alguém. Nas últimas décadas, precipitaram-se as condições para
o surgimento dessa nova figura antropológica. Entre elas, o fortalecimento
do cientificismo; o apagamento da política e das práticas sociais que faziam
apelo ao sujeito como autor de sua existência individual e coletiva; a emer-
gência de uma cultura da objetividade que valoriza a imagem em detrimento
da palavra e da interpretação; o mencionado deslocamento das regras de
socialização fundadas na interioridade sentimental em direção a uma cultura
da subjetividade somática; a explosão da tecnociência, das biotecnologias
490 O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade
Neuro-diversidade e neurociências
Com isso, entramos no último ponto que gostaríamos de abordar neste texto
e que constitui o maior desafio para os movimentos da neurodiversidade:
a tentação da “política identitária”. Ao colocar o direito à diferença do lado
biológico (cerebral), o movimento da neurodiversidade corre o risco de cair
em uma política identitária calcada em predicados naturais e que conduz a
uma redução da pluralidade à identidade, homogeneizando as diferenças
e suprimindo a singularidade dentro do próprio movimento. Sirva a adver-
tência que Agnes Heller fez acerca do movimento feminista radical quanto
ao perigo da homogeneização do grupo qua diferença: “Os que falam em
nome das mulheres se colocam no lugar de todas as mulheres, da metade da
humanidade, enquanto as mulheres podem ter, e de fato têm, aspirações total-
mente diferentes e imagens de si completamente divergentes; possivelmente
recusam a imagem prescrita por feministas radicais” (Heller 1995; Feher &
Heller 1994). Para dizer a verdade, nos debates entre os grupos pró-cura e
o movimento autista anticura, reconhecemos no tom, nos argumentos e na
pretensão de falar em nome de todos os autistas, a descrição que Heller faz
dos movimentos biopolíticos. “No discurso biopolítico”, escreve a filósofa
húngara, “os grupos autodefinidos determinam também as condições para
as contribuições dos outros. Um discurso que ‘desmascara’ outros discursos,
que trata com desconfiança o diferente, não é em realidade público. Todas
as raças e ambos os sexos encontram aqui sua própria verdade; e quanto
mais poderosos são seus lobbys mais enfaticamente tentam proclamar sua
verdade como incontestável e absoluta. As opiniões divergentes não são
aceitas, e as opiniões contrárias não são ouvidas” (Heller 1995).
Alguns teóricos dos “estudos sobre deficiência” vêm chamando a
atenção para o perigo de que a valorização de ser deficiente esteja relacio-
nada com a comparação e a hostilidade com os não-deficientes (Swain &
Cameron 1999) e, em face de uma idéia de comunidade fechada, calcada
em uma política identitária reducionista, propõem criar comunidades mais
abertas e democráticas (Corker 1999). Essa autocrítica foi feita recente-
mente no interior do próprio movimento da neurodiversidade. Jim Sinclair
(2005) recriminou o preconceito de certos autistas contra os neurotípicos.
E a própria Judy Singer, que impulsionou e deu grande visibilidade ao mo-
498 O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade
vimento, reconheceu há pouco tempo que ele está caminhando para o “lado
escuro” da política identitária, com “sua eterna vitimização, infantilidade e
demanda por amor incondicional e aceitação sem uma auto-reflexão adulta
concomitante, um autocriticismo, uma medida de estoicismo e desejo de ver
luz e escuridão em si próprio, assim como no ‘Outro’”.24
Singer faz ao mesmo tempo uma outra crítica, fundamental para se
compreender o papel da ontologia do sujeito cerebral e da neurocultura nos
movimentos da neurodiversidade. O cerebralismo da identidade é assumido,
como vimos, sem questionamento pelo movimento. A ativista australiana
ressalta que a chamada revolução neurocientífica não traz apenas vantagens
e que os autistas precisam ter uma visão mais equilibrada sobre o impacto
das neurociências na vida e no destino das pessoas, autistas ou não. Esta-
mos dispostos a pagar o preço exigido por nos definirmos cerebralmente?
O sujeito cerebral não sugere apenas a idéia de conexões cerebrais diferentes
e atípicas, que não devem ser “patologizadas” nem normalizadas, mas sim
ele implica formas de subjetivação, isto é, relações consigo mesmo e com
os outros enquanto sujeitos cerebrais.25
Este fato remete a visões reducionistas e empobrecidas da vida subje-
tiva e relacional, segundo as quais o cérebro responde por tudo o que ou-
trora costumávamos atribuir ao indivíduo, ao ambiente e à sociedade, com
conseqüências severas em diversas esferas socioculturais e clínicas. Entre
elas, estão o perigo das políticas identitárias reducionistas e as explicações
da depressão e de outros transtornos e doenças mentais em termos exclusi-
vamente cerebrais, fornecidas pela psiquiatria biológica aliada à indústria
farmacêutica, ignorando-se os fatores ambientais e sociais. É preciso saber
se queremos pagar esse preço.
Considerações finais
Tentei neste artigo mostrar alguns dos desafios que se apresentam aos movi-
mentos da neurodiversidade. Meu objetivo principal não era tomar partido
a favor ou contra os grupos pró ou anticura, pois acredito que ambos têm as
suas razões. Os primeiros, ao criticarem as políticas identitárias agressivas
praticadas por ativistas radicais do movimento autista e que se propõem a
falar em nome de todos os autistas.26 Os ativistas autistas são freqüentemente
autistas de “alto funcionamento”, em geral Aspergers, que se outorgam
o direito de se manifestarem em nome de todos os autistas, o que causa
irritação nos pais de filhos autistas de “baixo funcionamento”, com grave
atraso físico e mental. Obviamente seria hipocrisia subsumir todas as formas
O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade 499
Notas
1
http://en.wikipedia.org/wiki/Neurodiversity (acessado em 01/12/2006).O mais
famoso é http://www.neurodiversity.com (acessado em 01/12/2006).
2
Ver a introdução de “Autistic Pride Day” em Wikipedia: http://en.wikipedia.
org/wiki/Autistic_Pride_Day (acessado em 16/06/2007).
3
Resulta sintomático que, em um especial dedicado ao autismo, a revista EPOCA
tenha apresentado apenas a visão pró-cura e pró-terapia cognitiva do transtorno.
Ver Nogueira, 2007.
4
Para entender o debate e as posições em jogo, ver o excelente verbete “Autism
rights movement” em Wikipedia, op.cit.
5
“Curebie” é um termo criado pela comunidade autista para descrever e criticar
aqueles que pretendem desesperadamente curar o autismo. É um termo de difícil tradu-
ção, que poderia ser vertido como “obcecado pela cura” (Weintraub s/d). Ver http://www.
urbandictionary.com/define.php?term=curebie (acessado em 30/09/2007).
6
Esta posição foi consensual na psicanálise americana entre os anos de 1940
e 1960, identificada fundamentalmente com as figuras de Leo Kanner e Bruno Bet-
telheim. Sirva como exemplo a seguinte frase lapidar de Bettelheim no seu famoso
A fortaleza vazia (The empty fortress): “Eu mantenho minha crença de que o fator
precipitante no autismo infantil é o desejo dos pais de que seu filho não deveria
existir” (Bettelheim 1967:125). Ver também Pollack 1997.
7
Uma lista de artigos de Michelle Dawson encontra-se em http://neurodiversity.
com/dawson.html (acessado em 1/04/2007).
8
Sobre o caso Auton vs. British Columbia, ver a série de matérias e artigos em:
http://neurodiversity.com/auton.html (acessado em 1/04/2007). Um bom resumo
do caso oferece a seguinte entrada de Wikipedia: http://en.wikipedia.org/wiki/Au-
ton_%28Guardian_ad_litem_of%29_v._British_Columbia_%28Attorney_General%29
(acessado em 10/06/2007) . Ver também Baker 2006; Harmon 2004c; Feinberg & Vacca
2000; Newschaffer & Curran 2003.
9
O DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders) da Associação
Psiquiátrica Americana é o sistema diagnóstico mais utilizado nos Estados Unidos,
encontrando-se atualmente na 4ª. edição (1994). Esse sistema é consistente com a
CID (Classificação Internacional das Doenças, da Organização Mundial de Saúde —
OMS), que se encontra na 10ª. edição.
10
“Os pais são retratados como controladores enlouquecidos, egoístas e per-
feccionistas (espectros das ‘mães geladeiras!’) e os profissionais que devotaram suas
O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade 501
vidas para ajudar nossos filhos são descritos como frios manipuladores e abusadores
infantis”, escreve Kit Weintraub (2005) em relação aos movimentos de autistas.
11
http://isnt.autistics.org
12
Sirva como exemplo o depoimento relatado no artigo de Harvey Blume
(1997) acerca de uma mulher com autismo: “Depois de passar ‘... sua adolescência
em um estado clínico suicida-depressivo devido ao abuso sofrido e ao sentimento de
ser uma fracassada ou insana por ser diferente’, ela encontrou sua opinião ‘apenas
reforçada pelo psicoterapeuta, ao qual fui encaminhada, que decidiu que todos os
meus problemas tinham que ser o resultado de uma ‘repressão sexual’. Ela se declara
orgulhosa de si mesma por ter ‘ido embora após seis sessões’ e concluí que ter sido
diagnosticada como autista ‘foi a melhor coisa que já me aconteceu’”.
13
A comunidade científica defende atualmente os seguintes fatores causais na
etiologia do autismo: predisposição genética, explicações neuroquímicas, explicações
baseadas em vacinas, toxinas ambientais e teorias nutricionais (Feinberg & Vacca
2000:131).
14
Uso o termo em sentido mais amplo que o de Paul Rabinow (1992), que o
utiliza para analisar as implicações socioculturais e políticas da genética e do projeto
Genoma. Para o antropólogo americano, a genética deixará de ser apenas uma metá-
fora biológica para descrever o social, levando à formação de identidades e práticas
sociais. No texto, uso o conceito de Rabinow, sublinhando o elemento dos processos
de subjetivação, mas sem limitá-lo especificamente à genética, estendendo o uso a
diferentes formas de subjetividade biológica ou somática presentes nas sociedades
contemporâneas, incluindo o sujeito cerebral. O termo é usado para definir uma
forma de sociabilidade contemporânea, na qual a vida psíquica é descrita segundo
predicados corporais, como se depreende do vocabulário fisicalista utilizado na des-
crição de crenças e sentimentos, levando à constituição de identidades somáticas
que deslocam concepções psicológicas e internalistas de pessoa.
15
A bibliografia sobre o tema é imensa. Ver, entre outros, Ackerman 2006;
Dumit 2003, 2004; Ehrenberg 2004; Illes 2006; Healy 2002; Joyce 2005; Rodriguez
2006; Rose 2005, 2006; Valenstein 1998; Russo & Venâncio 2006; Russo 2005; Russo
& Henning 1999.
16
Ver, www.buzanworld.com/biography.html (acessado em 3/06/2006); Verbete
“Tony Buzan” in Wikipedia, http://en.wikipedia.org/wiki/Tony_Buzan (acessado em
3/06/2006).
17
http://www.braingle.com/community/index.php (acessado em 5/06/2006).
18
A lista de organizações e grupos de auto-ajuda e auto-advocacia em dife-
rentes países e continentes é enorme. Basta buscar no Google grupos de auto-ajuda
e auto-advocacia para as diferentes doenças e transtornos para aparecer uma lista
imensa de associações.
502 O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade
19
É necessário fazer aqui uma ressalva metodológica em relação à aplicação
que se faz neste texto do conceito de “indivíduo” e também daqueles de “pessoa”
e “sujeito”, que não devem ser entendidos em um sentido universal e a-histórico.
O “indivíduo” não é a priori uma categoria universal e a-histórica, independente dos
diferentes processos de individuação e de produção do “indivíduo” contemporâneo,
entendido como radicalização das formas ocidentais modernas de produção de indi-
víduos singularizados e naturalizados, tal como é analisado, entre outros, por Louis
Dumont (1985), Foucault (1976, 1984a, 1984b), Charles Taylor (1989), Norbert Elias
(1995) Alan McFarlane (1992). Entendo “pessoa”, por sua vez, no sentido proposto
por Marcel Mauss (2003) no seu célebre ensaio, isto é, como uma construção histórica
e social. Finalmente, uso sujeito e, por derivação, “sujeito cerebral” no sentido dado
por Foucault na sua história da subjetividade (Foucault, 1976, 1984a, 1984b; Ortega
1999) como uma categoria historicizada e cuja ênfase recai precisamente nas formas
e nos processos de subjetivação e nas tecnologias do self usadas pelos indivíduos
para a formação de diferentes “subjetividades”. Existiriam assim diferentes formas
de subjetividade, tipos de “sujeito” na história da subjetividade, entre elas, o “sujeito
cerebral” das sociedades contemporâneas.
20
A bibliografia é imensa e não pára de crescer. Ver, entre outros, Li 2003;
Sailor, Ming & Song 2006; Schwartz & Begley 2002; Stahnisch 2003; Weiller & Ri-
jntjes 1999.
21
Um exemplo deste deslocamento é o livro de Ansermet & Magistretti (2004),
no qual o conceito de plasticidade denota o caráter aberto à mudança e a contin-
gência das redes neuronais, possibilitando uma aproximação entre psicanálise e
neurociência.
22
Embora menos relevante para o argumento que estou lançando aqui, vale a
pena ressaltar que, mesmo do lado dos correlatos mentais, os dados experimentais são
contraditórios. Por exemplo, um estudo dinamarquês feito com indivíduos meditando
mostrou um resultado oposto ao de Newberg & D´Aquili, isto é, aumento de atividade
nos lobos parietais e diminuição nos frontais. Ver Andreson 2000.
23
Em outro contexto (Ortega 2008), usei o termo “corpo fenomenológico”
para ressaltar uma dimensão da corporeidade, a qual não é reduzível nem ao corpo
anatomofisiológico, isto é, ao conjunto das trocas metabólicas com o ambiente que
têm como objetivo a auto-regulação dos indivíduos e a continuidade da espécie,
nem ao corpo como discurso ou construção simbólica. Esta dimensão está presente,
entre outros, na fenomenologia corporal de Husserl, Merleau-Ponty, Erwin Strauss,
Samuel Todes, Drew Leder, no pragmatismo de William James e John Dewey, na
antropologia do “embodiment” de Csordas e outros, na psicanálise winnicottiana,
ou nas posições ecológicas de Gibson e Reed. Todas elas enfatizam a participação
do ambiente na constituição do eu corporal, afirmando o vínculo intencional com
o meio, a simultaneidade e a congenialidade das experiências do eu e do mundo,
a indissolubilidade do corpo e do ambiente. Nessa perspectiva, não existe divisão
mente/corpo, mente/cérebro, subjetivo/objetivo. Físico e mental não são entidades
metafísicas ou ontológicas estranhas entre si; são expressões diversas de um mes-
O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade 503
24
Singer (2007). Sou muito grato a Enrico Valtellina por ter chamado a minha
atenção para este texto, fundamental para meu argumento.
25
Como já foi assinalado, a noção de neurossociabilidade permite compreen-
der como o sujeito cerebral se torna um critério de formação de subjetividade e de
agrupamento, isto é, de relações consigo e com os outros enquanto sujeitos cerebrais.
Essas relações se produzem, como vimos, pela incorporação na vida dos indivíduos
de “fatos objetivos” sobre si mesmos — seus corpos, mentes e cérebros — assim como
pelo arsenal de produtos neuroascéticos produzidos pelas neurotecnologias e pelas
diversas associações e movimentos de doentes e seus familiares, competições que
testam a performance cerebral, entre outros.
movimento da neurodiversidade.
504 O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade
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506 O sujeito cerebral e o movimento da neurodiversidade
Resumo Abstract
Este artigo analisa o movimento da neuro This article analyzes the neurodiver-
diversidade organizado basicamente sity movement, organized mostly by
por autistas chamados de alto funcio- so-called high-functioning autists, who
namento que consideram que o autismo consider that autism is not a disease to
não é uma doença a ser tratada, mas be treated, but rather a human differ-
uma diferença humana, a qual deve ence that should be respected alongside
ser respeitada como outras diferenças. other differences. The “neurodiversity”
O movimento da “neurodiversidade” deve movement must be set within a wider
ser inserido em um marco sociocultural sociocultural and historical field that
e histórico mais amplo que incorpore o incorporates the growing impact of
impacto crescente no imaginário cultural neuroscientific knowledge and practices
dos saberes e das práticas neurocientíficas in the cultural imagination with the
com o paradigma do sujeito cerebral e a paradigm of the cerebral subject and
expansão da neurocultura. No contexto do the expansion of neuroculture. In the
sujeito cerebral, o cérebro responde por context of the cerebral subject, the brain
tudo o que outrora costumávamos atribuir accounts for all that we used to attribute
à pessoa e vem se tornando um critério to the person, and it is becoming a fun-
biossocial de agrupamento fundamental. damental criterion for biosocial group-
O artigo mostra como uma ideologia ing. The article shows how a solipsist,
solipsista, reducionista e cientificista – reductionist and scientificist ideology –
o sujeito cerebral – pode servir de base the cerebral subject – can act as the
para a formação de identidade e de redes basis for the formation of identity and
de sociabilidade e comunidade. networks of sociability and community.
Palavras-chave Neurodiversidade, Su- Key words Neurodiversity, Cerebral sub-
jeito cerebral, Autismo, Classificações ject, Autism, Psychiatric classifications
psiquiátricas