Souad Queimada Viva
Souad Queimada Viva
Souad Queimada Viva
Souad
O relato de um milagre.
France Soir
France Dimanche
ELLE
Há relatos que nos deixam desarmados e incrédulos face às atrocidades de
que o Homem é capaz; Queimada Viva é um desses
casos.
Marianne
La Dernière Heure
QUEIMADA VIVA
ÍNDICE
ENVOLTA EM CHAMAS
Sou uma rapariga, e uma rapariga deve caminhar depressa, com a cabeça
inclinada para o chão, como se estivesse a contar os passos. Não deve
erguer o olhar nem desviá-lo para a direita ou para a esquerda enquanto
caminha, porque se os seus olhos se cruzarem com os de um homem toda a
aldeia lhe chamará charmuta.
Se uma vizinha já casada, uma velha ou quem quer que seja a avistar
sozinha numa ruela, sem estar acompanhada pela mãe ou pela irmã mais
velha, sem as ovelhas, sem um molho de feno ou um carrego de figos,
também lhe chamarão charmuta.
Uma rapariga tem de estar casada para poder olhar em frente, entrar na
loja do comerciante, depilar-se ou usar jóias.
Quando uma rapariga ainda não casou, a partir dos catorze anos, como a
minha mãe, a aldeia começa a troçar dela. Mas, para poder casar, uma
rapariga tem de esperar pela sua vez na família. Primeiro a mais velha e
depois as outras.
Há muitas raparigas na casa de meu pai. Quatro, todas em idade de casar.
Há também duas meias-irmãs, filhas da segunda mulher do nosso pai. Ainda
são crianças. O único homem da família, o filho adorado por todos, o
nosso irmão Assad, nasceu, triunfalmente, no meio de todas estas
raparigas. Foi o quarto. Eu sou a terceira.
O meu pai, Adnan, está desgostoso com a minha mãe, Leila, que lhe deu
tantas filhas. Também está descontente com a outra esposa, Aicha, que só
lhe deu raparigas.
Noura, a mais velha, casou tarde, quando eu tinha cerca de quinze anos.
Kainat, a segunda rapariga, não é requestada por ninguém. Ouvi dizer que
um homem falou em mim ao meu pai, mas tenho de aguardar o casamento de
Kainat antes de poder pensar no meu. Talvez Kainat não seja
suficientemente bonita ou seja demasiado lenta no trabalho... Ignoro por
que razão ninguém a quer, mas se ficar solteira, será objecto de troça da
aldeia, tal como eu.
Não conheci folguedos nem prazeres tanto quanto a minha mente é capaz de
se lembrar. Na minha aldeia nascer rapariga é uma maldição. O único sonho
de liberdade é o casamento. Abandonar a casa do pai em troca da casa do
marido e não voltar nunca mais, mesmo que se seja espancada. Quando uma
rapariga casada regressa à casa do pai é uma infâmia. Não deve pedir
protecção fora da sua própria casa e é dever da família levá-la de novo
para o
lar.
A minha irmã foi espancada pelo marido e arrastou consigo a
vergonha ao vir queixar-se.
Ela tem sorte em ter um marido. Eu sonho com isso. Desde que ouvi dizer
que um homem falou de mim ao meu pai, a impaciência e a curiosidade
devoram-me. Sei que o rapaz mora a três ou quatro passos da nossa casa.
Às vezes avisto-o do alto do terraço onde estendo a roupa. Sei que tem
carro, usa fato completo, anda sempre com uma pasta, deve trabalhar na
cidade e ter uma boa profissão porque nunca anda vestido como um
operário, mas sempre impecável. Gostava de ver a cara dele mais de perto,
mas tenho sempre receio que a família me surpreenda a espreitar. Por
isso, quando vou apanhar feno para um carneiro doente no estábulo, sigo
num passo rápido pelo caminho na esperança de o ver de perto. Mas ele
estaciona o carro demasiado longe. À força de tanto o observar, quase já
sei a que horas sai para ir trabalhar. Às sete da manhã, finjo dobrar a
roupa no terraço, ou simulo colher um figo maduro ou sacudir os tapetes
para, durante menos de um minuto, o ver partir de carro. Tenho de ser
rápida para não chamar as atenções.
Subo as escadas, atravesso os quartos para aceder ao terraço, sacudo
energicamente um tapete e olho por cima do muro de cimento, com os olhos
ligeiramente virados para a direita.
MEMÓRIA
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sem saber outra coisa para além de que, pelo facto de ser uma rapariga,
era menos do que um animal.
Foi a minha primeira vida, a de uma mulher árabe na Cisjordânia. Durou
vinte anos e ali morri. Morri física e socialmente para sempre.
A minha segunda vida começa na Europa em finais da década de 1970, num
aeroporto internacional. Sou um farrapo humano, doente, deitada numa
maca. Exalo um tal cheiro a morte que os passageiros do avião que me
transportou protestaram. Apesar de dissimulada atrás de uma cortina, a
minha presença era-lhes insuportável. Dizem-me que vou viver, mas sei
muito bem que não e espero a morte. Chego a suplicar-lhe que me leve. A
morte é preferível ao sofrimento e à humilhação. Do meu corpo não resta
nada. Por que razão insistem em que eu viva quando o que eu desejo é
deixar de existir, em corpo e em espírito ?
Ainda hoje, acontece-me pensar nisso. É verdade que teria preferido
morrer do que ter de enfrentar esta segunda vida que me era oferecida tão
generosamente. Sobreviver, no meu caso, é um milagre. Permite-me agora
testemunhar em nome de todas as que não tiveram essa oportunidade, que
continuam a morrer nos dias de hoje por uma única razão: serem mulheres.
Aprendi francês ao ouvir as pessoas a falar e esforçando-me por repetir
as palavras que me explicavam através de sinais: «Mal? Menos mal? Comer?
Beber? Dormir? Andar?». Eu respondia por gestos «sim» ou «não».
Muito mais tarde, aprendi a ler as palavras num jornal, pacientemente e
dia após dia. Ao princípio só conseguia decifrar pequenos anúncios,
notícias de óbitos, frases curtas com poucas palavras que repetia
foneticamente. Por vezes tinha a impressão de ser um animal a quem
ensinavam a comunicar como um ser humano, ao mesmo tempo que na minha
cabeça, em língua árabe, me interrogava onde estava, em que país e por
que não estava morta na minha aldeia. Sentia vergonha por ainda estar
viva, mas ninguém sabia. Tinha medo desta vida e ninguém compreendia
isso.
Devia dizer tudo isso antes de tentar reunir os pedaços da minha memória,
porque queria que as minhas palavras ficassem registadas num livro.
A minha memória está cheia de lacunas.
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Logo de manhã cedo, vou ao estábulo, assobio com os dedos para reunir os
carneiros à minha volta e parto com a minha irmã Kainat, cerca de um ano
mais velha. As raparigas não devem sair sozinhas nem com uma irmã mais
nova. A mais velha serve de garantia à mais pequena. A minha irmã Kainat
é gentil, roliça, um tanto gorda, ao passo que eu sou pequena e magra, e
entendíamo-nos bem.
Costumávamos sair as duas em direcção ao prado com os carneiros e as
cabras, a um quarto de hora de marcha da aldeia, caminhando depressa, de
olhos baixos até à última casa. Uma vez no prado, éramos livres de contar
disparates uma à outra e até de rir um pouco. Não me lembro de termos
tido grandes conversas. Lembro-me sobretudo de comermos queijo, de nos
regalarmos com uma melancia, de vigiarmos os carneiros e sobretudo as
cabras capazes de devorar todas as folhas de uma figueira em poucos
minutos. Quando os carneiros se reuniam em círculo para dormir, nós
também adormecíamos, à sombra, correndo o risco de deixar que um dos
animais se extraviasse num campo vizinho e sofrer as consequências no
regresso. Se o animal tivesse invadido uma horta, ou se chegássemos uns
minutos atrasadas ao estábulo, apanhávamos uma sova com o cinto.
Para mim, a nossa aldeia é muito bonita e muito verde. Há muitos figos,
uvas, fruta, limões, e imensas oliveiras. O meu pai possui metade das
parcelas cultivadas da aldeia só para ele... Não é muito rico, mas vive
bem. A casa é grande, de pedra, cercada por um muro com uma grande porta
cinzenta de ferro. Essa porta é o símbolo da nossa clausura. Uma vez no
interior, fecha-se atrás de nós para nos impedir de sair. Podemos, pois,
entrar por essa porta quando vimos do exterior, mas não podemos sair.
Existe uma chave? Um mecanismo automático? Lembro-me que o meu pai e a
minha mãe saíam, mas nós não. Pelo contrário, o meu irmão é livre. E
livre como o vento: vai ao cinema, sai, entra por essa porta, faz o que
quer. Ficava a olhar muitas vezes para aquela maldita porta de ferro e a
pensar: «Nunca poderei sair por ali, nunca...»
Não conheço muito bem a aldeia, porque não estamos autorizadas a sair. Se
fechar os olhos para me concentrar e com muito esforço, posso dizer
aquilo que vi. Há a casa dos meus pais, depois aquela a que eu chamo a
casa da gente rica um pouco mais longe, do mesmo lado.
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apenas o meu irmão tinha direito a água só para ele e, claro, o meu pai.
À noite, eu dormia com as minhas irmãs, no chão, em cima de uma pele de
carneiro. Quando o calor apertava, dormíamos nos terraços, alinhadas sob
a lua. As raparigas ficavam deitadas umas ao lado das outras, num canto.
Os pais e o meu irmão, noutro.
O dia de trabalho começava cedo. Por volta das quatro da manhã, ao nascer
do sol quando não era antes, o meu pai e a minha mãe levantavam-se. Na
época do trigo, levávamos de comer connosco, e estávamos todos, o meu
pai, a minha mãe, as minhas irmãs e eu. Na época dos figos, também
saíamos bastante cedo. Era preciso colhê-los um a um, sem esquecer
nenhum, metê-los em caixas, que o meu pai levava ao mercado. Tínhamos uma
boa meia hora de caminho com o burro até chegarmos a uma pequena cidade,
na verdade muito pequena, cujo nome esqueci, se é que o soube alguma
vez... Metade do mercado, à entrada da cidade, era reservada à produção
do meu pai e alguns comerciantes ocupavam-se da venda. Para comprar
roupa, tínhamos que ir a uma cidade maior e ir de carro. Mas as raparigas
nunca iam. A minha mãe ia até lá com o meu pai. Era assim: ela compra com
o meu pai e dá um vestido às filhas. Quer se goste quer não, temos de o
usar. Nem as minhas irmãs, nem eu, nem sequer a minha mãe tínhamos uma
palavra a dizer. Ou era assim ou nada.
Portanto, os nossos vestidos eram compridos, de mangas curtas, de um tipo
de algodão cinzento, às vezes branco, muito raramente preto, um tecido
muito quente e que picava a pele. A gola era bastante alta e fechada. Mas
éramos obrigadas a usar mais uma camisa ou um colete consoante a estação,
de mangas compridas. Muitas vezes o calor era sufocante, mas as mangas
eram obrigatórias. Mostrar uma nesga de braço ou de perna, e pior ainda
um bocadinho do decote, era uma vergonha. Andávamos sempre descalças,
nunca usávamos calçado, salvo às vezes as mulheres casadas. Eu usava um
saroual por baixo do vestido comprido e abotoado até ao pescoço. O
saroual consiste numas calças cinzentas ou brancas, muito tufadas, e por
baixo ainda umas cuecas grandes como calções até à cintura. Todas as
minhas irmãs se vestiam da
mesma maneira.
A minha mãe vestia muitas vezes de negro. O meu pai usava um saroual
branco,
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que decide, que bate e nos tortura. E fuma tranquilamente o seu cachimbo
diante da sua casa, com as suas mulheres fechadas, a quem trata pior que
ao gado. O homem arranja uma mulher para ter filhos, para lhe servir de
escrava como as filhas que vierem, se tiver a infelicidade de as ter.
Pensava muitas vezes ao olhar para o meu irmão, que toda a família
adorava tal como eu o adorava: «Que é que ele tem a mais? Saiu do mesmo
ventre que eu...» E não encontrava resposta. Era assim. Devíamos servi-lo
como ao meu pai, de rastos e de cabeça
baixa.
Recordo a bandeja do chá, até essa bandeja de chá temos de a levar aos
homens da família, de rojo, contando os passos, de dorso vergado e em
silêncio. Não se fala. Não se responde às perguntas. Ao meio-dia, é o
arroz açucarado, legumes com frango ou carneiro. E sempre pão. Há sempre
que comer, à família não falta nada às
refeições.
Há muita fruta. As uvas, basta-me colhê-las no terraço. Há laranjas,
bananas e, sobretudo, figos pretos e verdes. De manhã, quando os vamos
colher muito cedo, é uma recordação que jamais esquecerei. Abriram um
pouco com o frio da noite e escorrem como mel, a mais pura das iguarias.
O trabalho mais pesado são os carneiros. Sair com os carneiros, levá-los
para o campo, vigiá-los, trazê-los de volta, tosquiar a lã que o meu pai
vai levar ao mercado para ser vendida. Seguro o carneiro pelas patas,
deito-o por terra, prendo-o e tosquio-o com as enormes tesouras de lã,
demasiado grandes para as minhas mãos, que ficam a doer muito passados
instantes.
E ordenho as ovelhas, sentada no chão. Seguro-lhes as patas entre as
pernas e munjo o leite para fazer queijos. Também deixamos arrefecer o
leite e bebemo-lo ao natural, gordo e alimentício.
Na casa de meu pai, o quintal dá-nos quase tudo de que precisamos para
comer. E fazemos tudo sozinhas. O meu pai só tem de comprar açúcar, sal e
chá.
De manhã, preparo o chá para as raparigas, deito um pouco de azeite num
prato, com azeitonas ao lado, e aqueço a água numa bacia sobre as brasas
do forno de pão. A um canto da cozinha, no chão, está um saco de pano
bege com chá verde seco. Enfio a mão no saco, retiro um punhado que meto
na chaleira,
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Foi então assim que a minha mãe se desembaraçou das cinco ou sete filhas
que teve para além de nós, manifestamente depois de Hanan, a última
sobrevivente. Era uma coisa aceite, normal, que não levantava problemas a
ninguém. Nem mesmo a mim, pelo menos assim pensei da primeira vez, apesar
de ter tido tanto medo.
Aquelas meninas que a minha mãe matava eram um pouco eu própria. Comecei
a esconder-me para chorar de cada vez que o meu pai matava um carneiro ou
um frango, porque temia pela minha vida. A morte de um animal, como a
morte de um bebé, tão simples e tão banal para os meus pais, desencadeava
o pavor de também eu desaparecer como eles, com a mesma simplicidade e
rapidez. Dizia para mim: «Um dia vai ser a minha vez, ou da minha irmã,
eles podem matar-nos quando quiserem. Grande ou pequena, não faz
diferença. Já que nos dão a vida, têm o direito de a fazer desaparecer.»
Na minha aldeia, enquanto se vive em casa dos pais, o medo da morte está
sempre presente. Receio subir a uma escada quando o meu pai está por
baixo. Tenho medo do machado que serve para cortar a lenha, tenho medo do
poço quando lá vou buscar água. Tenho medo quando o meu pai vigia o
regresso dos carneiros ao curral, connosco. Tenho medo dos ruídos de
portas a meio da noite, de me sentir sufocar sob a pele de carneiro que
me serve de leito.
Às vezes, ao regressarmos do prado com os animais, eu e Kainat falamos
disso:
- E se estiverem todos mortos quando entrarmos em casa... ? E se o pai
tiver matado a mãe? Basta uma pedrada! O que é que fazemos?
- Eu rezo sempre que vou buscar água ao poço, que é fundo. Penso que se
me atirarem lá para dentro ninguém saberá onde é que eu paro! Podes
morrer lá no fundo que ninguém te irá procurar.
Esse poço era o meu grande pavor. E sentia que era também o terror da
minha mãe. Também tinha medo dos barrancos, quando conduzia as cabras e
os carneiros. Olhava à minha volta, à ideia de que o meu pai podia estar
escondido em qualquer parte e que me ia empurrar para o vazio. Para ele
seria fácil e, lá no fundo da ravina, eu estaria morta.
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Podiam até empilhar algumas pedras sobre o meu corpo, eu jazia na terra e
aí permaneceria.
A eventual morte da nossa mãe preocupava-nos mais do que a morte de uma
irmã. Irmãs, há outras... Ela era espancada muitas vezes como nós. Às
vezes, tentava defender-nos quando ele batia com demasiada violência e
então ele agredia-a, atirava-a ao chão, arrastava-a pelos cabelos... A
nossa vida quotidiana era uma morte possível, dia após dia. Podia chegar
por um nada, de surpresa, simplesmente porque o pai assim decidira. Do
mesmo modo como a minha mãe decidia sufocar as filhas recém-nascidas.
Estava grávida, depois deixava de estar, ninguém fazia perguntas. Nós não
tínhamos qualquer contacto com as outras raparigas da aldeia. Apenas
trocávamos os bons-dias e um adeus. Nunca nos juntávamos, a não ser nos
casamentos. E as conversas eram banais. Falava-se de comida, faziam-se
comentários acerca da noiva, sobre outras raparigas que achávamos bonitas
ou feias... de uma mulher que tinha sorte porque estava maquilhada.
- Repara naquela, tem as sobrancelhas depiladas...
- Tem um belo corte de cabelo.
- Olha aquela, tem sapatos calçados!
Era a rapariga mais rica da aldeia, usava babuchas bordadas. Nós íamos
descalças para os campos, espetávamos espinhos nos pés e tínhamos de nos
sentar no chão para os arrancarmos. A minha mãe não tinha sapatos e a
minha irmã Noura casara descalça. Eram, no essencial, as poucas frases
trocadas nos casamentos e eu só assisti a duas ou três cerimónias.
Era impensável uma mulher queixar-se de ser espancada, porque era normal.
Não se falava de bebés vivos ou mortos, a menos que uma mulher acabasse
de dar à luz um rapaz. Se esse filho sobrevivesse, glória a ela e à
família. Se morresse, choravam-no, era a desgraça para ela e para a
família. Contam-se os machos, mas não as fêmeas.
Não sei o que era feito das raparigas recém-nascidas depois de terem sido
asfixiadas pela minha mãe. Iam enterrá-las em qualquer parte? Davam-nas a
comer aos cães?... A minha mãe vestia-se de negro e o meu pai também.
Cada nascimento de uma rapariga equivalia a um enterro na família. A
culpa era sempre da mãe se só dava à luz raparigas.
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HANÁN?
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como ela fazia comigo. Não a vejo connosco no estábulo, não a vejo a
mungir as vacas nem a tosquiar a lã dos carneiros... mas antes na cozinha
a ajudar a minha mãe. Talvez seja por isso que quase se desvaneceu da
minha memória. E no entanto conto e volto a contar, tentando ordená-las
por data de nascimento: Noura, Kainat, Souad, Assad e...? A minha quarta
irmã deixou de existir, olvidei até o seu nome próprio. Aconteceu-me
mesmo já não saber quem tinha nascido antes de quem. Tinha a certeza em
relação a Noura, em relação a Assad, mas ainda hoje faço confusões entre
Kainat e eu. Quanto àquela a quem chamo Hanan, o pior para mim é que
durante anos nem sequer me afligi com o seu desaparecimento.
«Esqueci-a» profundamente, como se um portão de ferro se fechasse sobre
essa irmã do meu sangue, tornando-a totalmente invisível ao olhar da
minha memória já de si tão confusa.
Há algum tempo, porém, uma imagem surgiu brutalmente e uma visão atroz
impôs-se ao meu espírito. Alguém, numa reunião de mulheres, me mostrou a
fotografia de uma rapariga morta, deitada no chão, estrangulada por um
cordão preto, um fio de telefone. Tive a impressão de já ter visto algo
semelhante. Aquela fotografia causava-me uma sensação de mal-estar, não
só por se tratar de uma desgraçada rapariga assassinada, mas porque era
como se no meio do nevoeiro tentasse «ver» algo que tinha a ver comigo. E
no dia seguinte, de forma bizarra, a minha memória despertou de súbito.
Eu estava lá! Tinha visto! Sabia quando é que a minha irmã Hanan tinha
desaparecido!
Desde então, vivo com esse novo pesadelo no espírito, que me deixa
doente. Cada recordação precisa, cada cena da minha existência passada
que surge brutalmente, ao acaso, deixa-me doente. Queria esquecer por
completo todas essas coisas horríveis e, ao longo de mais de vinte anos,
conseguira-o inconscientemente. No entanto, para dar testemunho da minha
vida de criança e de mulher no meu país, sou forçada a mergulhar no meu
cérebro como no fundo do poço que outrora me aterrorizava tanto. E todos
esses fragmentos do meu passado que emergem à superfície parecem-me agora
de tal modo horríveis que tenho dificuldade em lhes dar crédito. Sucede-
me às vezes, quando estou sozinha,
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fazer a mim mesma esta pergunta, em voz alta: «Terei vivido estas coisas
na realidade?»
Existo e sobrevivi a tudo isso. Outras mulheres viveram-nas e continuam a
vivê-las por esse mundo fora. Gostaria de esquecer, mas somos tão poucas
as sobreviventes que podem falar que é meu dever testemunhar e reviver
esses pesadelos.
Estou em casa e ouço gritos, depois vejo a minha irmã sentada no chão, a
gesticular com os braços e as pernas, e o meu irmão Assad debruçado sobre
ela, de braços abertos. Prepara-se para a estrangular com o fio do
telefone. Evoco essa imagem como se a tivesse presenciado ontem. Estou
tão colada contra a parede que desejo enfiar-me por dentro dela e
desaparecer. Estou com as duas irmãs mais pequenas e posto-me diante
delas para as proteger. Seguro-as pelos cabelos para que não se mexam.
Assad deve ter-nos visto ou ouvido aproximar e grita: «Rouhi! Rouhi!
Desapareçam! Desapareçam!»
Corro para a escada de cimento que dá acesso aos quartos, arrastando as
minhas duas irmãs. Uma das garotas tem tanto medo que estrebucha e magoa
uma perna, mas obrigo-a a seguir-me. Sinto o corpo todo a tremer. Fecho-
me com elas no quarto e consolo a mais pequena. Trato-lhe do joelho e ali
ficamos, as três, muito tempo, sem fazer barulho. Não posso fazer nada,
absolutamente nada senão guardar silêncio, com aquela visão de horror.
O meu irmão a estrangular a minha irmã... Ela devia estar ao telefone e
ele veio por trás para a estrangular... Ela está morta, estou persuadida
de que está morta.
Naquele dia, Hanan usava umas calças brancas tufadas e um camiseiro
comprido até aos joelhos. Estava descalça. Vi-a agitar as pernas e os
braços que agrediam o meu irmão no rosto enquanto ele gritava:
«Desapareçam!»
O telefone era preto, creio. Estava pousado no chão na sala principal,
com um fio muito comprido. Ela devia estar a telefonar, mas ignoro a quem
e porquê. Não sei o que estava a fazer antes disso, nem onde estava, nem
o que poderá ter feito Hanan, mas, que eu saiba, nada no seu
comportamento justifica que o meu irmão a queira estrangular. Não
compreendo o que se passa.
Permaneci no quarto com as garotas até a minha mãe voltar. Tinha saído
com o meu pai. Assad estava sozinho connosco.
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Durante muito tempo interroguei-me por que razão não estava mais ninguém
em casa senão ele e nós. Mais tarde, as recordações foram-se encadeando.
Naquele dia, os meus pais tinham ido ver a mulher do meu irmão a casa dos
pais dela, onde se tinha refugiado porque ele lhe tinha batido, apesar de
estar grávida. Era por isso que o meu irmão estava sozinho connosco em
casa. E devia estar furioso como qualquer homem que sofre essa afronta.
Como de costume, eu só tinha fiapos de informação sobre o que se passava.
Uma rapariga não assiste às reuniões de família quando surgem conflitos.
Mantém-na à distância. Soube mais tarde que a minha cunhada tinha
abortado e suponho que os pais dela acusaram o meu irmão de ser o
responsável. Mas naquele dia não havia nenhuma relação entre os dois
acontecimentos. Que estava Hanan a fazer ao telefone? Pouco o usávamos.
Eu própria devo tê-lo usado duas ou três vezes para falar com a minha
irmã mais velha, com a minha tia ou com a mulher do meu irmão. Se Hanan
estava a ligar para alguém, era forçosamente alguém da família.
Há quanto tempo estava o telefone instalado em casa? Não devia haver
muitos na aldeia naquela época... O meu pai tinha modernizado a casa.
Tínhamos uma casa de banho com água quente e telefone...
Quando os meus pais regressaram, sei que a minha mãe falou com Assad.
Vejo-a a chorar, mas sei agora que estava a fingir. Presentemente sou
realista e compreendi como se passam as coisas no meu país. Sei por que
razão matam as raparigas. Sei como tudo se passa. Há uma reunião de
família que decide e, no dia fatal, os pais nunca estão presentes. Só
aquele que tiver sido designado para matar é que fica com a rapariga.
A minha mãe não chorava verdadeiramente. Não chorava! Era tudo teatro.
Sabia forçosamente a razão por que o meu irmão tinha estrangulado a minha
irmã. Senão porquê sair nesse mesmo dia com o meu pai e com a minha irmã
mais velha, Noura? Porquê deixar-nos sozinhas em casa com Assad? O que
ignoro é o motivo para a condenação de Hanan. Deve ter cometido um
pecado, mas não imagino qual. Ter saído sozinha? Alguém a viu falar com
um homem? Terá sido denunciada por um vizinho? Basta tão pouco para se
considerar que uma rapariga é uma charmuta,
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que trouxe a vergonha à família e que deve morrer para lavar a honra não
apenas dos pais e do irmão, mas da aldeia inteira!
A minha irmã era mais madura do que eu, apesar de mais nova. Deve ter
cometido uma imprudência, que eu ignorava em absoluto. As raparigas não
trocam entre si confidências. Têm muito medo de falar, mesmo entre irmãs.
Sei o que digo, porque eu própria me calei...
Eu gostava muito do meu irmão. Todas nós o amávamos porque era o único
homem da família, o único protector depois do meu pai. Se o pai morrer, é
ele quem dirige a casa e, se ele morrer, se só restarem mulheres, a
família está perdida. Deixa de haver carneiros, deixa de haver terras,
não resta nada. A pior coisa que pode acontecer a uma família é perder o
único irmão. Como viver sem um homem? É o homem que dita a lei e nos
protege, é o filho que ocupa o lugar do pai e casa as irmãs.
Assad era violento como o meu pai. Era um assassino, embora essa palavra
não tenha qualquer sentido no meu país, desde que se trate de dar a morte
a uma mulher. O irmão, o cunhado ou o tio, pouco importa, têm por missão
preservar a honra de uma família. Têm direito de vida e de morte sobre as
suas mulheres. Se o pai ou a mãe disserem ao filho: «A tua irmã pecou,
deves matá-la...», ele fá-lo-á por uma questão de honra, é essa a lei.
Assad era o nosso irmão adorado. Certa vez, caiu do cavalo - ele gostava
muito de andar a cavalo. O cavalo escorregou e ele caiu. Chorámos tanto,
lembro-me bem! Com a dor, rasguei o vestido e puxei os cabelos.
Felizmente não foi grave e tratámos dele. Mas quando o meu pai partiu a
perna, ficámos tão contentes que éramos capazes de dançar de alegria. E,
ainda hoje, não consigo conceber que Assad é um assassino. A visão da
minha irmã estrangulada é um autêntico pesadelo, mas naquele momento eu
não era capaz de lhe querer mal. O que ele tinha feito era normal, tinha
aceitado fazê-lo por uma questão de dever, porque era necessário para
toda a família. E eu gostava dele.
Não sei o que fizeram de Hanan. Seja como for, ela desapareceu de casa.
Esqueci-a. Não compreendo muito bem porquê. Depois do medo, deve ter
funcionado a lógica da minha vida naquela época, os costumes, a lei, tudo
o que nos obriga a viver essas coisas com «normalidade». Só são crimes e
horrores noutros sítios,
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eu teria feito como as outras mulheres, teria sofrido sem me revoltar. É
insuportável pensar e dizer isto aqui, mas para nós, lá, era assim.
Hoje é diferente, porque estou morta na minha aldeia e nasci uma segunda
vez na Europa. O meu espírito absorveu outras
ideias.
Não obstante, continuo a amar o meu irmão. É como a raiz de uma oliveira
que não se consegue arrancar, mesmo que a árvore caia.
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O TOMATE VERDE
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um tamborete quase ao nível do chão, pegava numa das patas da vaca e
apertava-a entre as minhas pernas para evitar que ela se mexesse e o
leite jorrasse para fora da vasilha. Se houvesse uma poça de leite no
chão, nem que fossem apenas umas gotas, esse seria o último dia da minha
vida! O meu pai esbofeteava-me, berrando que ia ficar sem um queijo! As
tetas das vacas eram muito grossas e muito duras porque estavam
intumescidas de leite e as minhas mãos eram pequenas. Doíam-me os braços,
demorava muito tempo a ordenhar e estava exausta. Uma vez, foi numa época
em que havia seis vacas no estábulo, adormeci, agarrada ao balde, com a
pata da vaca apertada entre as pernas. Por azar, o meu pai apareceu e
gritou: «Charmuta! Puta!» Arrastou-me pelo chão do estábulo, puxando-me
pelos cabelos, e apanhei uma sova com o cinto. Eu amaldiçoava aquele
cinto grande de couro, que ele usava sempre à cintura com outro mais
pequeno. O mais pequeno zurzia com muita força. Ele chicoteava levantando
o braço e segurando o cinto por uma das pontas como uma corda. Quando
usava o grande, tinha de o dobrar em dois, porque era muito pesado. Eu
suplicava e chorava de dor, mas quanto mais lhe dizia que doía mais ele
batia, chamando-me puta.
À noite, à hora da refeição, ainda chorava. A minha mãe tentou saber o
que se passava. Percebeu que o meu pai me tinha espancado com muita força
nessa tarde, mas ele começou a bater-lhe também, dizendo-lhe que não lhe
dizia respeito, que não tinha de saber porque é que me tinha batido, uma
vez que eu sabia.
Um dia normal em casa incluía pelo menos uma bofetada ou um pontapé com o
pretexto de que trabalhava devagar, que a água do chá demorara muito a
ferver... Às vezes conseguia esquivar-me às pancadas na cabeça, mas era
raro. Não me lembro se a minha irmã Kainat sofria tanta pancada como eu,
mas penso que sim, pois tinha tanto medo como eu. Nunca perdi esse
reflexo de trabalhar depressa e de caminhar depressa, como se tivesse
permanentemente um cinturão à espreita. Um burro avança às bastonadas. Se
o bastão parar, ele pára. Sucedia o mesmo connosco, com a diferença de
que o meu pai nos batia com muito mais força do que ao burro. Por uma
questão de princípio, volto a ser espancada no dia seguinte para não
esquecer a sova da véspera. Para continuar a avançar sem adormecer, como
o burro nos trilhos.
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O burro recorda-me um outro episódio, que tem a ver com a minha mãe.
Vejo-me a levar o rebanho para a pastagem como de costume e regressar
rapidamente a casa para limpar o estábulo ainda mais depressa. A minha
mãe está comigo e apressa-me porque temos de ir apanhar figos. É preciso
carregar as caixas no dorso do burro e caminhar durante bastante tempo
fora da aldeia. Sou incapaz de situar esta história no tempo, a não ser
que essa manhã me parece muito próxima da cena do tomate verde. É fim de
estação porque a figueira junto à qual nos detemos está nua. Prendo o
burro ao tronco da figueira para o impedir de comer os frutos e as folhas
que juncam o chão.
Começo a apanhar os figos e a minha mãe diz-me: - Escuta bem, Souad. Tu
ficas aqui com o burro, apanhas todos os figos à beira do caminho, mas
não te afastas desta árvore. Não saias daqui. Se vires o teu pai chegar
com o cavalo branco, ou o teu irmão ou alguém, assobias e eu venho logo.
Afasta-se um pouco pelo caminho para ir ao encontro de um cavaleiro que
espera, montado no cavalo. Conheço-o de vista. Chama-se Fadel. Tem uma
cabeça muito redonda, é baixo e bastante forte. O seu cavalo está muito
bem tratado, é todo branco com uma mancha preta e tem a cauda entrançada
até à ponta. Não sei se é casado ou não.
A minha mãe engana o meu pai com ele. Compreendi quando ela me disse: «Se
alguém se aproximar, assobia.» O cavaleiro desaparece e a minha mãe
também. Eu apanho conscienciosamente os figos à beira do caminho. Não há
muitos naquele sítio, mas não posso ir procurar mais longe senão não
verei chegar nem o meu pai nem ninguém.
Estranhamente, esta história não me surpreende. Na minha memória, não
tenho a sensação de recear grande coisa. Talvez por a minha mãe ter um
plano bem organizado. O burro está preso ao tronco da figueira nua, não
pode comer nada, nem folhas nem frutos, como convém neste tipo de
colheita. Por isso não preciso de o vigiar como em plena estação e posso
trabalhar sozinha. Dou dez passadas numa direcção, dez noutra, apanho os
figos caídos para os depositar nas caixas. Tenho uma boa visão do caminho
em direcção à aldeia, posso avistar ao longe alguém que se aproxime e
assobiar a tempo. Já não vejo nem o tal Fadel nem a minha mãe,
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mas calculo que devem estar a uns cinquenta passos, escondidos algures no
campo. Portanto, se houver um contratempo, ela poderá sempre alegar que
se afastou um momento devido a uma necessidade urgente. Um homem, mesmo o
meu pai ou o meu irmão, jamais fará uma pergunta indecente sobre o
assunto. Seria vergonhoso.
Não fico sozinha muito tempo: a caixa ainda está quase vazia quando eles
regressam, separados. A minha mãe sai do campo. Vejo Fadel montar de novo
a cavalo; falha a sela uma primeira vez porque o cavalo é alto. Tem um
belo chicote de madeira, muito fino, e sorri à mamã antes de desaparecer.
Finjo que não vi nada.
Despacharam-se muito depressa. Fizeram amor algures no campo, ao abrigo
das ervas, ou estiveram simplesmente juntos para falarem um com o outro,
não quero saber. Não tenho o direito de perguntar o que estiveram a fazer
nem de me mostrar surpreendida, não me diz respeito. A minha mãe não vai
fazer-me confidências. Também sabe que eu não direi nada, pelo simples
facto de ser sua cúmplice e ser espancada até à morte tal como ela. A
única coisa que o meu pai sabe fazer é bater nas mulheres e obrigá-las a
trabalhar para ganhar dinheiro. Por isso, que a minha mãe vá fazer amor
com outro homem sob o pretexto de lhe trazer umas caixas de figos, deixa-
me até muito contente. Ela tem toda a razão.
Agora temos de colher os figos muito depressa para as caixas ficarem
suficientemente cheias de modo a justificar o tempo gasto. Senão o meu
pai vai perguntar: «Voltas com as caixas vazias, o que é que estiveste a
fazer todo este tempo?» E não escapo ao cinto.
Estamos bastante afastadas da aldeia. A minha mãe monta em cima do burro,
com as pernas um pouco afastadas à volta do pescoço do animal, junto à
cabeça para não esmagar os frutos. Eu caminho à frente para guiar os
passos do burro pela vereda e regressamos com um bom carrego.
Um pouco mais longe cruzamo-nos com uma mulher idosa sozinha com um
burro, que também leva figos. Como já é velha, não tem de ir acompanhada
e segue à nossa frente. A minha mãe saúda-a e continuamos o caminho
juntas. É um caminho muito estreito e bizarro, cheio de buracos, de
lombas e de calhaus. Há sítios com subidas muito íngremes e o burro tem
dificuldade em avançar com a carga.
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Andavam sozinhas, sem os pais ao lado. Pensava para comigo que nunca
poderiam casar. Não havia nenhum homem que as quisesse porque tinham
mostrado as pernas e os lábios pintados. E não compreendia por que razão
não estavam fechadas.
Apercebo-me agora que a vida na aldeia não mudara desde que a minha mãe
nascera e, antes dela, a sua mãe, e desde tempos ainda mais recuados.
Aquelas raparigas eram espancadas como eu? Trabalhavam tanto como eu?
Estavam fechadas como eu? Eram escravas como eu? Não podia afastar-me um
centímetro da camioneta do meu pai. Ele vigiava a descarga das caixas,
recebia o dinheiro e, a um gesto seu, como um burro, tinha de subir e
enfiar-me no interior, tendo como único prazer uma pausa no trabalho e a
visão das lojas inacessíveis através dos caixotes de fruta ou de legumes.
O mercado era muito grande. Havia uma espécie de cobertura feita de
videiras que projectava sombra para a fruta. Era muito bonito. Depois de
vender tudo, o meu pai ficava feliz. Ia ter com o vendedor antes de o
mercado fechar, sozinho, e trazia o dinheiro na mão. Contava-o várias
vezes e metia-o num saquinho de tecido, atado com um cordel, que enfiava
à volta do pescoço. Foi com esse dinheiro do mercado que ele pôde
modernizar a casa.
Eu gostava muito de subir para a camioneta porque era um momento de
repouso. Não tinha de fazer nada durante o trajecto, ficava sentada
sossegada. Mas mal chegávamos ao mercado, tínhamos de nos despachar,
transportar as caixas com toda a rapidez. O meu pai gostava de mostrar
que a mulher e a filha trabalhavam no duro. Eu ia sempre com a minha mãe.
Ele nunca levava as duas irmãs juntas.
Quando a minha irmã os acompanhava, eu ia buscar água para lavar o pátio,
que ficava a secar ao sol. Preparava a comida e amassava o pão. Sentada
no chão, deitava a farinha num grande alguidar com água e sal e
trabalhava a massa à mão. Depois deixava repousar a massa sob um pano
branco, à espera que levedasse. Ia atear o forno de padeiro para ficar
muito quente. A casa de amassar o pão era como uma casa pequena, com um
telhado de madeira, e lá dentro o forno de ferro estava sempre aceso. As
brasas ardiam durante muito tempo, mas era preciso reavivar o lume em
especial antes de fazer o pão.
É magnífico ver uma massa a levedar... eu adorava fazer pão.
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Fazia uma cova na massa para ficar mais bonita, antes de a meter no
forno. E para não se pegar às mãos, mergulhava-as numa saca de farinha e
acariciava a massa que se ia tornando branca e muito macia. Fazia uma
espécie de grande bolacha, soberba, um belo pão redondo e um pão chato
que devia ter sempre a mesma forma. Senão o meu pai atirava-mo à cara.
Depois de cozido o pão, limpava o forno e apanhava as cinzas. Quando saía
dali, tinha os cabelos, a cara, as sobrancelhas e as pestanas cobertos de
pó cinzento. Sacudia-me como um cão com pulgas.
Um dia, estava eu dentro de casa e vimos fumo a sair do telhado da casa
do forno. Corri com a minha irmã para ver o que se passava e começámos a
gritar que havia fogo. O meu pai trouxe água. Havia labaredas e ardeu
tudo. No interior do forno via-se uma espécie de excrementos de cabra,
completamente negros. Tinha-me esquecido de um pão dentro do forno e não
tinha limpo bem as cinzas. Ficara uma brasa que desencadeou o fogo. A
culpa era minha. Não me devia ter esquecido daquele bocado de pão, mas,
sobretudo, nunca devia esquecer-me de remexer as cinzas com um bocado de
madeira para remover as brasas.
Eu era responsável pelo incêndio no forno de padeiro, a pior
das catástrofes.
E o meu pai desancou-me mais do que nunca. Levei pontapés e bastonadas
nas costas. Agarrou-me pelos cabelos, pôs-me de joelhos e esmagou-me o
rosto contra as cinzas, felizmente já mornas. Sentia-me sufocar, babava-
me, a cinza entrava-me pelo nariz e pela boca e tinha os olhos vermelhos.
Obrigou-me a comer as cinzas para me castigar. Com o choro, quando ele me
largou, estava completamente negra e cinzenta, com os olhos vermelhos
como tomates. Era uma falta muito grave da minha parte e, se a minha mãe
e a minha irmã não estivessem presentes, creio que o meu pai me teria
atirado para o lume antes de o apagar.
Foi necessário reconstruir o forno com tijolos e essa tarefa demorou
bastante tempo. Todos os dias eu tinha direito a um insulto, a uma
palavra ofensiva. Esgueirava-me para o estábulo de costas curvadas e
varria o pátio de cabeça baixa. Penso que o meu pai me detestava de
verdade e, no entanto, à parte essa falha, eu fazia um bom trabalho.
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Talvez não tivesse uma horta tão grande como a nossa. Talvez se
encontrasse com o homem às escondidas como a minha mãe com Fadel. Um dia,
a minha mãe contou que os seus dois irmãos entraram pela porta dentro e
lhe cortaram a cabeça. E que tinham deixado o corpo no chão e se tinham
passeado pela aldeia com a cabeça degolada. Contava também que o marido,
ao regressar do trabalho, ficara satisfeito por a mulher estar morta,
porque se suspeitava que tinha feito qualquer coisa com o dono da loja.
No entanto, ela não era muito bonita e já tinha quatro filhos.
Eu não vi esses homens passearem pela aldeia com a cabeça da irmã, apenas
ouvi o relato da minha mãe. Já era suficientemente amadurecida para
compreender, mas não tive medo. Talvez por não ter visto nada,
justamente. Parecia-me que na minha família ninguém era charmuta, que
essas coisas nunca me iriam acontecer. Aquela mulher tinha sido
castigada, era normal. Mais normal do que uma rapariga da minha idade
esmagada na estrada.
Não imaginava que simples mexericos de comadres, meras suposições de
vizinhos, e até mentiras podiam fazer de qualquer mulher uma charmuta e
arrastá-la para a morte para defender a honra das outras.
É o que se chama um crime de honra, «Jarimai ai Sharaf», e, para os
homens do meu país, não é um crime.
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O SANGUE DA NOIVA
Os pais de Hussein vieram pedir Noura. Vieram por diversas vezes para
discutir o assunto porque, na nossa terra, quando se casa uma filha esta
é vendida a troco de ouro. Portanto, os pais de Hussein trouxeram consigo
ouro, colocaram esse ouro num belo prato dourado e o pai de Hussein
disse:
- Aqui tendes, metade para Adnan, o pai, e a outra metade para a sua
filha, Noura.
Se o ouro for pouco, discute-se. As duas partes são importantes porque,
no dia do casamento, a rapariga deverá mostrar a toda a gente o ouro que
o pai obteve ao vendê-la.
Não é para Noura essa quantidade de ouro que ostentará no dia do
casamento. O número de braceletes, de colares, de diademas de que
necessita é para defender a sua honra e a dos seus pais. Não é para o seu
futuro nem para si, mas poderá passear pela aldeia e, ao passar, as
pessoas dirão a quantidade de ouro que ela trouxe aos pais. Se uma
rapariga não tiver jóias no dia do casamento, será uma terrível vergonha
para ela e para a família. O meu pai esqueceu-se de nos dizer isso quando
gritava às filhas que nem sequer lhe davam o que lhe dava uma ovelha.
Quando vende a filha, tem direito a metade do ouro!
Por isso, pode regatear o preço. A discussão decorre sem a nossa
presença, apenas entre os pais. Mal esteja concluído o negócio, não há
papéis assinados, é a palavra dos homens que conta. Unicamente a dos
homens.
As mulheres não têm o direito de dizer nada,
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tanto a minha mãe e a mãe de Hussein como a futura noiva. Ainda ninguém
viu o ouro, mas todos sabem que o casamento foi acordado porque a família
de Hussein veio. Mas não convém incomodar, não convém mostrar-se, há que
respeitar a negociação dos homens. A minha irmã Noura sabe que entrou em
casa um homem acompanhado pelos pais e, portanto, que vai com certeza
casar-se. Está muito contente. Diz-me que deseja casar para se poder
vestir melhor, depilar as sobrancelhas, ter uma família sua e filhos.
Noura é tímida e tem uma cara bonita. Apesar de tudo, está preocupada
enquanto os pais discutem, gostava muito de saber a quantidade de ouro
que eles trouxeram, e reza a Deus para que cheguem a acordo.
Não faz ideia como é o futuro marido, ignora a idade dele, mas não vai
perguntar como é ele. Fazer essa pergunta é vergonhoso. Até mesmo a mim,
que podia esconder-me em qualquer lado para espreitar a cara dele. Talvez
receie que eu vá contar aos pais.
Alguns dias depois, o meu pai chama Noura na presença da minha mãe e diz-
lhe:
- Pois bem, tu vais casar no dia tal.
Eu não assisti porque não tinha o direito de estar com eles. Nem sequer
devia dizer «Eu não tinha o direito», porque tal coisa não existe. É a
tradição, é assim e pronto. Se o teu pai te disser «Não saias desse canto
a vida inteira», tu ficas nesse canto toda a vida. Se o teu pai te puser
uma azeitona no prato e te disser «Hoje não comes mais nada», tu não
comes mais nada. É muito difícil abandonar essa pele de escrava
consentida, porque se nasce com ela quando se é rapariga e, durante toda
a infância, essa forma de não-existência, de obedecer ao homem e à sua
lei, é cultivada ininterruptamente, pelo pai, pela mãe, pelo irmão, e a
única saída, que consiste em casar, vai perpetuá-la com o marido.
Quando a minha irmã Noura acede a esse estatuto tão ansiado, calculo que
eu teria menos de quinze anos. Mas talvez esteja enganada, e bastante,
porque, à força de pensar nisso e de tentar ordenar as minhas
reminiscências, apercebi-me de que a minha vida naquele tempo não tinha
nenhuma das referências que temos na Europa. Não havia aniversários nem
fotografias, era uma vida mesquinha de um animalzinho que come, que
trabalha o mais depressa possível, que dorme e que apanha pancada. Depois
sabemos que estamos «maduras», ou seja, corremos o perigo de atrair a
cólera da sociedade ao mínimo passo em falso.
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um limão, umas gotas de azeite, uma gema de ovo e açúcar. Põe tudo a
derreter na frigideira e fecha-se com Noura. É com esse preparado que a
vai depilar. Têm que se remover por completo os pêlos do sexo, que deve
ficar nu e limpo. A minha mãe diz que, se por azar, se deixar ficar um
pêlo que seja, o homem vai-se embora sem sequer olhar para a mulher,
dizendo que está suja!
Essa história dos pêlos sujos preocupa-me. Não se faz a depilação das
pernas nem dos braços, mas apenas do sexo. E também das sobrancelhas, mas
por uma questão de beleza. Mal os pêlos aparecem numa rapariga é o
primeiro sinal de que já é uma mulher, juntamente com os seios. E morre
com os pêlos, porque, assim como Deus nos criou, assim nos recebe. No
entanto, todas as raparigas se sentem orgulhosas ante a ideia de serem
depiladas... É a prova de que vamos pertencer a outro homem que não o
pai. Uma pessoa passa a ser realmente alguém, sem pêlos. Acho que é mais
um castigo do que outra coisa, porque ouço a minha irmã gritar. Quando
ela sai do quarto, uma pequena multidão de mulheres que aguardava atrás
da porta bate as palmas e grita. É uma grande alegria: a minha irmã está
pronta para o casamento, o famoso sacrifício da sua virgindade.
Depois desta sessão, pode ir dormir. As mulheres também voltam para as
suas casas porque já a viram e tudo foi feito segundo as regras.
No dia seguinte, ao nascer do sol, prepara-se a comida no pátio do
casamento. É preciso que toda a gente assista à preparação da refeição e
calcule o número de pratos. Mas sobretudo não convém perder a cozedura de
um único punhado de arroz, senão toda a aldeia falará disso. Metade do
pátio é consagrado à preparação dos alimentos: a carne, o cuscuz, os
legumes, o arroz, os frangos e muitos doces, bolos que a minha mãe fez
com a ajuda de vizinhas, pois nunca conseguiria preparar tudo sozinha
para tanta gente.
Depois de prontos os pratos e expostos aos olhares de todos, a minha mãe
vai com outra mulher preparar a minha irmã. O vestido é bordado à frente,
desce até aos tornozelos e tem botões de tecido. Quando sai do quarto,
Noura está magnífica, coberta de ouro. Bela como uma flor. Usa
braceletes, colares e, sobretudo, o mais importante de tudo para uma
noiva, o diadema!
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O homem acaba de descobrir o rosto daquela que se manteve pura para ele e
que lhe dará filhos.
Permanecem ali, os dois sentados como dois manequins. As pessoas dançam,
cantam, comem, mas eles não se mexem. Trazem-lhes de comer aos seus
lugares e, para que não as sujem, protegem-lhes as belas roupas com panos
brancos.
O noivo não toca na mulher, não a beija nem lhe pega na mão. Não se passa
nada entre eles, nem um gesto de amor ou de ternura. São uma imagem fixa
do casamento, que perdura durante muito tempo.
Ignoro tudo sobre aquele homem, que idade tem, se tem irmãos ou irmãs,
qual é o seu trabalho e onde é que vive com os pais. No entanto, ele é da
mesma aldeia. Não se vai procurar mulher fora da terra! É também a
primeira vez que eu vejo aquele homem. Não sabíamos se era bonito ou
feio, baixo, alto, gordo, cego, maneta, se tinha ou não a boca torta, se
tinha orelhas ou não, ou um nariz grande... Hussein é um belo homem. Não
é muito alto, cerca de um metro e setenta, os cabelos encarapinhados
muito curtos, o corpo bem lançado. O rosto moreno e trigueiro tem um
aspecto saudável. O nariz muito curto, bastante achatado, com narinas
largas, é imponente. Uma postura orgulhosa e, à primeira vista, não
parece má pessoa, mas talvez seja. Pressinto-o, porque às vezes fala com
nervosismo.
Para darem a entender que a festa chegou ao fim e que os convidados se
vão embora, as mulheres cantam, dirigindo-se directamente ao marido,
qualquer coisa que diz mais ou menos isto: «Agora protege-me. Se não me
protegeres, não és um homem...» E a derradeira canção obrigatória: «Não
saímos daqui se tu não dançares.»
Os dois têm de dançar para que a cerimónia termine.
O marido ajuda a mulher a descer - desta vez toca-lhe com o dedo, ela
pertence-lhe - e dançam juntos. Alguns não dançam, por timidez. A minha
irmã dançou muito com o marido e a aldeia achou magnífico.
O marido conduz agora a mulher para casa dele, a noite já caiu. O pai, se
for um verdadeiro homem, ofereceu-lhe uma casa. A casa de Hussein não
fica muito distante da dos pais dele, dentro da aldeia. Vão-se embora, os
dois sozinhos, a pé.
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Mas mesmo perante a ideia de apanhar pancada, mais do que tudo no mundo
eu desejava casar. É uma coisa curiosa o destino das mulheres árabes,
pelo menos na minha aldeia. Aceitam-no naturalmente. Nem nos passa pela
cabeça revoltarmo-nos. Sabemos chorar, esconder-nos, mentir se for
preciso para evitar a pancada, mas revoltarmo-nos nunca. Apenas porque
não temos outro sítio onde viver senão em casa do pai ou do marido. Viver
sozinha é inconcebível.
Hussein nem sequer veio buscar a mulher. Aliás, ela não ficou muito tempo
tal o medo da minha mãe de que a filha quisesse voltar para casa! Mais
tarde, quando Noura engravidou e toda a gente esperava que tivesse um
rapaz, passou a ser a princesa da família do marido, do marido e da minha
família. Eu às vezes sentia ciúmes. Ela era mais importante do que eu na
família. Já antes do casamento falava mais com a minha mãe e depois de
casar estavam ainda mais próximas uma da outra. Quando iam apanhar juntas
o feno, demoravam mais tempo porque falavam muito uma com a outra.
Fechavam-se numa das divisões, cuja porta era verde, lembro-me bem, e eu
passava diante da porta. Sentia-me só e abandonada porque a minha irmã
estava atrás daquela porta com a minha mãe, a ser depilada. O
compartimento servia também para armazenar o trigo, as azeitonas e a
farinha.
Não sei por que razão aquela porta me veio brutalmente à memória.
Atravessava-a muitas vezes, quase todos os dias, com sacos. Passou-se
algo inquietante atrás dessa porta, mas o quê? Penso que me escondi no
meio dos sacos, com medo. Estou a ver-me como se fosse um macaco,
acocorada de joelhos, no escuro. Aquela divisão não tem muita luz.
Escondi-me lá, e tenho a testa encostada ao chão. Os ladrilhos são
castanhos, pequenos quadrados castanhos. E o meu pai pintou de branco o
espaço entre os ladrilhos. Tenho medo de qualquer coisa. Vejo a minha
mãe, que tem um saco enfiado na cabeça. Foi o meu pai que lhe enfiou o
saco na cabeça. Foi ali ou noutro sítio? Foi para a castigar? Quer
estrangulá-la? Não posso gritar. Em todo o caso é o meu pai, ele mantém o
saco muito apertado junto à nuca da mamã, vejo o perfil dela, o nariz
contra o tecido. Segura-a pelos cabelos com uma das mãos e com a outra
aperta o saco.
Ela está vestida de negro. Deve ter-se passado qualquer coisa algumas
horas antes.
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Mas o quê? A minha irmã veio a nossa casa, porque o marido lhe batia. A
mamã ouviu-a, será que a mamã não deve lamentar a filha? Não deve chorar,
não deve tentar defendê-la junto do meu pai? Parece-me que as recordações
se encadeiam a partir daquela porta verde. A visita da minha irmã, eu
escondida no meio dos sacos cheios de trigo, a minha mãe a ser asfixiada
pelo meu pai com um saco vazio. Devo ter entrado ali para me esconder. É
um hábito meu, esconder-me. No estábulo, no quarto ou no armário do
corredor onde põem a secar as peles de carneiro antes de as venderem.
Estão penduradas como no mercado e escondo-me lá dentro, mesmo que me
falte o ar, para não me apanharem. Mas é raro esconder-me no meio dos
sacos da despensa, porque tenho muito medo que saiam de lá cobras. Se me
fui esconder ali é porque temo que também me aconteça alguma coisa de mal
a mim.
Talvez fosse no dia em que o meu pai tentou sufocar-me com uma pele de
carneiro, num dos quartos do piso superior. Quer que eu lhe diga a
verdade, que lhe diga se a mamã o enganou ou não. Dobrou a pele ao meio.
E comprime-me a cabeça. Prefiro morrer do que trair a minha mãe. Apesar
de a ter visto com os meus próprios olhos esconder-se com um homem. Se eu
disser a verdade, ele mata-nos às duas. Mesmo com uma faca na garganta,
não a posso trair. Já não consigo respirar. É ele que me solta ou sou eu
que lhe fujo? Seja como for, corro e vou esconder-me lá em baixo, atrás
daquela porta verde, no meio dos sacos imóveis que parecem monstros.
Sempre me meteram medo naquela divisão quase negra. Costumava sonhar que,
durante a noite, o meu pai esvaziava o trigo e enchia os sacos de
serpentes!
É assim que, por vezes, fragmentos da minha vida anterior tentam
encontrar espaço na minha memória. Uma porta verde, um saco, o meu pai
que quer asfixiar a minha mãe e a mim para me obrigar a falar, o medo do
escuro, e as serpentes.
Não há muito tempo, estava a encher um grande saco de lixo e um bocado de
papel de embalagem de plástico ficou preso em cima. Foi deslizando aos
poucos para o fundo do saco, fazendo um barulho especial. Dei um salto
como se uma serpente fosse saltar do caixote de lixo. Estava a tremer e
desatei a chorar como uma
criança.
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O meu pai sabia matar uma serpente. Tinha uma bengala especial com dois
ganchos na extremidade. Apertava-a entre os dois ganchos e a serpente não
se podia mexer. Em seguida, matava-a com um pau. Assim como era capaz de
imobilizar as serpentes para as matar, também era capaz de as meter nos
sacos para me morderem se eu lá enfiasse a mão para tirar farinha. Era
por isso que eu tinha medo daquela porta verde, que ao mesmo tempo me
fascinava porque a minha mãe e a minha irmã iam para lá fazer a
depilação, sem mim. E continuava a não ser oficialmente pedida em
casamento.
Contudo, o boato tinha-me chegado aos ouvidos, quando tinha apenas uns
doze ou treze anos... Uma família tinha falado em mim aos meus pais, a
título oficioso. Algures na aldeia, havia um homem para mim. Mas era
preciso esperar. Antes da minha, era a vez de Kainat.
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ASSAD
Fui a única que desatei a correr, aos gritos, quando o cavalo escorregou
e ele caiu. Tenho constantemente diante de mim a imagem do meu irmão:
tinha uma camisa verde com muitas cores e, como estava vento, a camisa
flutuava nas suas costas. Estava magnífico em cima do cavalo. Eu gostava
tanto dele, do meu irmão, que aquela imagem jamais me abandonou.
Creio que era ainda mais gentil com ele depois do desaparecimento de
Hanan. Rojava-me aos seus pés. Não tinha medo dele, não receava que me
fizesse mal... Seria por ser mais velha do que ele? Por sermos mais
chegados? No entanto, ele também nos batia quando o meu pai não estava.
Chegou mesmo a agredir a minha mãe uma vez. Discutiram, ele puxou-lhe
pelos cabelos e ela chorou... estou a vê-los com toda a nitidez, mas não
me lembro do motivo dessa briga. Continuo a ter uma enorme dificuldade em
juntar as imagens, em detectar um significado. Como se a minha memória
palestiniana se tivesse pulverizado em pequenas partículas na nova vida
que tive de construir na Europa.
Hoje é difícil de entender, depois do que o meu irmão fez, mas naquela
época, depois de passado o terror, de certeza que não tomei consciência
de que Hanan estava morta. Só hoje, ao rever a cena que surgiu na minha
memória, é que não posso pensar outra coisa ao relacionar os factos entre
si, com lógica e distanciamento. Por um lado, os meus pais estavam
ausentes, e sempre que ocorre um drama, isto é, quando uma mulher é
condenada pela família, aquele que é encarregado da sua execução é o
único presente.
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Depois, nunca mais voltei a ver Hanan em casa. Nunca mais. Nessa tarde,
Assad estava louco de raiva, humilhado por ter sido posto de lado na
altura do parto da mulher, humilhado pelos sogros. A notícia da morte do
filho esperado teria chegado através daquele telefone? Teria Hanan sido
brusca com ele? Não sei. A violência em casa dos meus pais, e na nossa
aldeia em geral, era tão recorrente e quotidiana em relação às mulheres!
E eu gostava tanto de Assad! Quanto mais o meu pai detestava o filho,
mais eu adorava aquele único irmão.
Lembro-me do seu casamento como de uma festa extraordinária.
Provavelmente a única recordação de verdadeira alegria no meu passado de
demência. Eu devia ter uns dezoito anos e era velha. Tinha mesmo recusado
assistir a um outro casamento, porque as raparigas troçavam de mim
abertamente. Ditos, cotoveladas, risos desagradáveis à minha passagem. E
eu chorava o tempo todo. Às vezes tinha vergonha de passar na aldeia com
o rebanho com receio do olhar das pessoas. Não era melhor do que a
vizinha que tinha a mancha no olho e que ninguém queria. A minha mãe
autorizou-me a não ir ao casamento de uma vizinha, porque compreendia o
meu desespero. Foi então que ousei falar ao meu pai:
- A culpa é tua! Deixa-me casar!
Ele insistia em não querer e deu-me murros na cabeça.
- A tua irmã tem de casar primeiro! Desaparece!
Eu só disse uma vez, não voltei a repetir.
Mas no casamento do meu irmão, toda a família está feliz e eu em
especial. Ela chama-se Fatma e não compreendo porque é que vem de uma
família estranha de outra aldeia. Não havia nenhuma família com uma filha
casadoira à nossa volta? O meu pai alugou autocarros para irmos ao
casamento. Um para as mulheres e outro para os homens. O dos homens vai à
frente, bem entendido.
Atravessamos montanhas e de cada vez que descrevemos uma curva as
mulheres soltam exclamações para agradecer a Deus ter-nos protegido da
ravina, de tal modo o caminho é perigoso. A paisagem assemelha-se a um
deserto, a estrada não está alcatroada, é um caminho de terra seca e
escura, e as rodas do carro dos homens levantam uma grande nuvem de
poeira à nossa frente. Mas toda a gente dança. Levo um tambor pequeno
apertado entre os joelhos e acompanho as exclamações de júbilo das
mulheres. Danço também,
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com o meu lenço, sou muito hábil a dançar. Toda a gente dança, toda a
gente está alegre, o motorista é o único que não dança!
O casamento do irmão é uma festa muito maior do que o da irmã. A mulher
dele é jovem, bela, de estatura pequena e muito morena. Não é uma
criança, tem quase a mesma idade de Assad. Na aldeia, na nossa terra,
troçaram um pouco do meu pai e da minha mãe por o meu irmão ser
«obrigado» a desposar uma rapariga de idade madura e desconhecida. Devia
casar com uma rapariga mais nova do que ele, pois não é normal desposar
uma mulher da mesma idade! E por que razão ir procurá-la fora? É uma
rapariga muito bonita e tem a sorte de ter muitos irmãos. O meu pai teve
de gastar muito ouro para a pedir em casamento. Ela recebeu imensas
jóias.
O casamento dura três dias inteiros de dança e de festa. E no regresso,
lembro-me de que o motorista parou o carro na berma da estrada e que
dançámos mais. Estou a ver-me com o tambor e o lenço, tenho o coração
feliz, estou orgulhosa de Assad. Para nós ele é como o bom Deus e é muito
estranho este amor por ele, que teima em perdurar. É a única pessoa que
sou incapaz de odiar, apesar de me bater, apesar de espancar a mulher,
apesar de se ter tornado um assassino.
Aos meus olhos, ele é Assad o ahouia. Assad meu irmão. Assad ahouia. Bom-
dia meu irmão Assad. Nunca saio para o trabalho sem lhe dizer: «Bom-dia,
meu irmão Assad!» Uma verdadeira devoção. Em crianças, partilhámos muitas
coisas. Agora que está casado e que vive em nossa casa com a mulher,
continuo a servi-lo. Se faltar água quente para o seu banho, vou aquecê-
la para ele, limpo a banheira, lavo e arrumo-lhe a roupa. Coso-a se for
preciso antes de a guardar no seu lugar.
Na verdade, não devia amá-lo nem servi-lo com tanta dedicação, porque ele
é como os outros homens. Muito pouco tempo depois do casamento, Fatma é
espancada e envergonha-o ao regressar para casa dos pais. E, ao contrário
do que é costume, o pai e a mãe não a trazem de volta para casa, à força,
nesse mesmo dia. Talvez sejam mais ricos, mais avançados do que nós, ou,
sendo a única filha, gostem mais dela, não sei. Creio que os problemas
entre o meu pai e Assad começaram por causa disso. O meu irmão tinha
querido aquela mulher de outra aldeia, tinha obrigado o pai a dar muito
ouro, e o resultado era que a mulher abortara em vez de lhe dar um filho
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Kainat engordara apesar de comer o mesmo que eu, a culpa não era dela. E,
de qualquer modo, nem uma nem outra tínhamos a possibilidade de
parecermos mais bonitas do que Deus nos fizera. Como? Não tínhamos belos
vestidos, usávamos sempre as mesmas calças brancas ou cinzentas, não nos
pintávamos nem usávamos jóias. Além disso, ficávamos fechadas como
galinhas velhas, caminhando rente às paredes, contando os passos, de
nariz baixo, desde que saíamos de casa com os carneiros.
Se Kainat não acalenta esperanças e me veda o caminho do casamento, eu
pelo menos sei que houve um homem que me pediu em casamento. Disse-me a
minha mãe:
- Veio cá o pai de Faiez pedir-te para o filho. Mas por enquanto não
podemos falar em casamento, temos de esperar pela tua irmã.
Desde então, imagino que ele espera por mim e se impacienta com a recusa
dos meus pais.
O meu irmão Assad conhece-o. Mora na casa em frente da nossa, do outro
lado da estrada. Não são camponeses como nós, não tratam muito da horta.
Os pais dele tiveram três filhos e Faiez é o único que falta casar. Não
há raparigas em casa, é por isso que não está cercada de muros, mas antes
por uma bela vedação e a porta nunca está fechada à chave. As paredes são
cor-de-rosa e o carro que está sempre estacionado em frente é cinzento.
Faiez trabalha na cidade. Não sei o que faz, mas imagino que esteja num
escritório como o meu tio. De qualquer modo, é muito melhor do que
Hussein, o marido da minha irmã mais velha. Hussein anda sempre com fato
de operário, sempre pouco limpo e cheira mal.
Faiez é a elegância personificada, tem um carro de quatro lugares, com
que sai todas as manhãs.
Comecei a espiar o carro para o ver. O melhor observatório é o terraço
onde vou sacudir os tapetes de lã de carneiro, onde apanho as uvas, onde
estendo a roupa. Se estiver atenta, posso descobrir sempre qualquer coisa
para fazer lá em cima.
Reparei primeiro que ele estacionava sempre o carro no mesmo sítio, a
pouca distância da porta. Como não podia permanecer demasiado tempo no
terraço, para descobrir a que horas é que ele saía de casa demorei vários
dias até perceber que saía por volta das sete todas as manhãs,
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uma altura em que para mim era muito fácil arranjar qualquer coisa para
fazer lá em cima.
A primeira vez que o vi tive sorte. Apressara-me a limpar o estábulo e
carregava um molho de feno seco para uma ovelha doente prestes a parir.
Encontrava-me a dois ou três passos com a palha nos braços quando ele
saiu. Tão elegante como o meu tio, de fato completo, com uns belos
sapatos pretos e beges com atacadores, uma pasta na mão, os cabelos muito
negros, a pele muito morena e uma postura orgulhosa.
Baixei a cabeça e enfiei o nariz na palha. Ouvi o som dos seus passos até
chegar ao pé do carro, o barulho da porta ao fechar-se, o ruído do motor
e dos pneus no cascalho. Só levantei a cabeça quando o carro se afastou e
esperei que desaparecesse, com o coração a bater-me no peito e as pernas
a tremer. E pensei: «Quero este homem para marido, amo-o. Quero-o, quero-
o...»
Mas que fazer? Como suplicar-lhe que fosse ele próprio suplicar ao meu
pai a celebração do casamento? Antes de mais, como falar com ele? Uma
rapariga não dirige a palavra a um homem. Nem sequer deve olhá-lo de
frente. Ele é inacessível e, mesmo que esse homem queira casar comigo,
não é ele quem decide. É o meu pai, sempre ele, e era capaz de me matar
se soubesse que me demorei um minuto no caminho com o feixe de palha para
chamar a atenção de Faiez.
Naquele dia não esperava tanto, mas queria que ele me visse, que soubesse
que eu também estava à espera. Por isso, decidi fazer tudo o que pudesse
para me encontrar com ele às escondidas e falar-lhe. Apesar de correr o
risco de ser morta à pedrada ou à paulada. Não queria continuar à espera
meses ou anos que Kainat saísse de casa, era demasiado injusto. Não
queria ficar mais velha e tornar-me no alvo da chacota da aldeia. Não
queria perder toda a esperança de ir para outro lugar com um homem, de me
libertar das brutalidades do meu pai.
Todas as manhãs e todos os fins de tarde estarei no terraço, à espreita
do meu apaixonado, até que ele levante os olhos para mim e me faça um
sinal. Ou um sorriso. De contrário, tenho a certeza de que irá pedir em
casamento outra rapariga da aldeia ou fora da aldeia. E, um dia, verei
uma mulher subir para o carro em vez de mim.
Ela vai roubar-me Faiez.
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O SEGREDO
Estou consciente de que arrisco a vida por causa desta história de amor
que começa há perto de vinte cinco anos, na minha aldeia natal na
Cisjordânia. Uma aldeia minúscula, então em território ocupado pelos
Israelitas, e cujo nome ainda não posso dizer. Porque continuo a pôr em
perigo a minha vida, mesmo a milhares de quilómetros de distância. Na
minha terra estou oficialmente morta, a minha existência foi olvidada
desde há muito, mas se lá voltasse hoje matar-me-iam uma segunda vez para
salvar a honra da minha família. E o direito tradicional.
No terraço da casa familiar, espiando a chegada do homem que amo, sou uma
rapariga que corre perigo de morte. No entanto, só penso numa coisa: no
casamento.
É Primavera. Não sei dizer o mês, provavelmente Abril. Na minha aldeia as
contas não se fazem da mesma maneira que na Europa. Nunca se sabe ao
certo a idade do pai ou da mãe, ignoramos a data do nosso nascimento.
Calcula-se o tempo em função do Ramadão, da estação das ceifas ou da
colheita dos figos. Orientamo-nos pelo sol ao longo de uma jornada de
trabalho, que começa e acaba com ele.
Julgo ter cerca de dezassete anos, mas saberei mais tarde que tenho
dezanove nos papéis. Ignoro a existência desses papéis e como é que foram
feitos. É muito possível que a minha mãe tenha confundido o nascimento de
uma das filhas com o de outra no momento em que a obrigaram a dar-me uma
existência oficial. Estou madura desde que me apareceram as regras e apta
a casar depois de três ou quatro períodos de Ramadão.
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Serei uma mulher no dia do meu casamento. A minha própria mãe ainda é
nova mas já parece uma velha e o meu pai é velho porque lhe faltam muitos
dentes.
Faiez é sem dúvida mais velho do que eu, o que é bom. O que espero dele é
segurança. O meu irmão Assad casou muito jovem ainda com uma rapariga da
idade dele e, se por azar ela não lhe der filhos, um dia terá de arranjar
outra mulher.
Ouço os passos de Faiez no saibro do caminho. Sacudo o tapete de lã no
parapeito do terraço e ele levanta os olhos. Observa-me e sei que
percebeu. Não há o mínimo gesto e, sobretudo, nem uma palavra, entra no
carro e parte. O meu primeiro encontro durou o tempo de trincar uma
azeitona, uma emoção inesquecível.
Na manhã do dia seguinte, mais aventurosa, simulo ir buscar uma cabra
para passar diante da porta dele. Faiez sorri-me e como o carro não
arranca logo, sei que ele me observa enquanto me dirijo ao prado com o
gado. De manhã, o ar é mais fresco, o que me deu uma oportunidade de
vestir o casaco de lã vermelha, a minha única roupa nova, abotoado desde
o umbigo até ao pescoço, e que me faz parecer mais bonita. Se pudesse
dançar no meio dos carneiros, dançaria. O meu segundo encontro durou mais
tempo, porque ao virar-me levemente à saída da aldeia, vejo que o carro
ainda não arrancou.
Não posso ir mais longe, no que toca a deixar-lhe sinais. Cabe-lhe agora
a ele decidir como há-de fazer para falar comigo às escondidas. Sabe para
onde vou e a que horas.
No dia seguinte, a minha mãe não está, o meu pai foi à cidade com ela, o
meu irmão está com a mulher e Kainat ocupa-se dos estábulos e das irmãs
mais pequenas. Vou sozinha apanhar a erva para os coelhos. Depois de ter
caminhado um quarto de hora, Faiez aparece à minha frente. Seguiu-me
discretamente e saúda-me. A sua súbita presença deixa-me desvairada. Olho
à minha volta, inquieta, com receio de ver aparecer o meu irmão ou uma
mulher da aldeia. Não se vê vivalma, mas avisto a protecção de um talude
bastante alto na berma do campo e Faiez segue-me. Sinto vergonha, não
despego os olhos dos pés, amachuco o vestido e puxo os botões do casaco,
sem saber que dizer. Ele toma uma pose lisonjeira, com uma haste de trigo
entre os dentes e examina-me:
- Porque é que não te casas?
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- Tenho de encontrar o homem da minha vida e esperar que a minha irmã se
case.
- O teu pai falou contigo?
- Disse-me que o teu pai tinha ido falar com ele, há já bastante tempo.
- Vives bem em tua casa?
- Se ele me vir contigo, bate-me.
- Gostavas que nos casássemos um com o outro?
- Mas é preciso que a minha irmã case primeiro...
- Tens medo?
- Tenho, tenho medo. O meu pai é mau. Também é perigoso para ti. O meu
pai pode bater-me e bater-te a ti também.
Ele continua tranquilamente sentado atrás do talude enquanto eu me
apresso a apanhar a erva. Parece estar à minha espera, embora saiba muito
bem que não posso regressar à aldeia com ele.
- Tu ficas aqui, eu vou voltar sozinha.
Caminho depressa ao regressar a casa, orgulhosa de mim mesma. Quero que
ele fique com boa impressão, que me ache uma rapariga atilada. Tenho de
ter muito cuidado com a minha reputação perante ele, porque fui eu que
tomei a iniciativa.
Nunca me tinha sentido tão feliz. É maravilhoso estar com ele, tão perto,
ainda que por breves minutos. É uma sensação que me invade todo o corpo,
sem que a saiba definir com clareza naquele momento. Sou extremamente
ingénua e a educação que recebi não é superior à de uma cabra, mas essa
sensação de maravilhamento é a da liberdade do meu coração e também do
meu corpo. Pela primeira vez na minha vida sou alguém porque eu própria
decidi fazer aquilo que faço. Estou viva. Não obedeço nem ao meu pai nem
a mais ninguém. Pelo contrário, desobedeço.
A minha recordação desses instantes e dos que se seguiram é muito nítida.
Antes disso, é praticamente inexistente. Não me revejo, não sei como sou,
se sou bonita ou não. Não tenho consciência de ser um ser humano, de
pensar, de ter sentimentos. Conheço o medo, a sede quando está calor, o
sofrimento e a humilhação de ficar presa no estábulo como um animal e de
ser espancada até deixar de sentir as costas. O terror de ser asfixiada
ou atirada para o fundo de um poço. Recebi docilmente muita pancada.
Apesar de o meu pai já não correr tão depressa como nós,
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Ele cumprira o que dissera, tinha ido falar com o meu pai depois do nosso
segundo encontro. E embora a data não tivesse sido fixada, o ano não
chegaria ao fim sem eu estar casada.
É um dia belo e quente, os figos ainda não estão maduros, mas tenho a
certeza de que não terei de esperar pelo começo do Verão e das colheitas
para a minha mãe preparar a cera quente para me depilar. Faiez aproxima-
se de mim, muito perto. Fecho os olhos, tenho um certo medo. Sinto a mão
dele na nuca e beija-me na boca. Afasto-o logo, sem dizer nada, mas o meu
gesto quer dizer: «Atenção! Não avances mais.»
- Até amanhã. Espera por mim, mas não no caminho, é muito perigoso.
Esconde-te aqui, na vala. Venho ter contigo depois do trabalho.
Ele é o primeiro a partir. Espero que esteja bastante longe para
regressar como de costume, mas desta vez mais nervosa. Aquele beijo, o
primeiro da minha vida, perturbou-me. E no dia seguinte, ao vê-lo
aproximar-se do meu esconderijo, sinto o coração confrangido. Ninguém em
casa suspeita dos meus encontros secretos. De manhã, a minha irmã
acompanha-me por vezes para levarmos os carneiros e as cabras, mas a
maior parte das vezes regressa para tratar do estábulo e da casa, pelo
que fico sozinha durante a tarde. Na Primavera, a erva está alta, os
carneiros devem aproveitar e é sobretudo a eles que devo uma certa
facilidade para me deslocar sozinha. É uma falsa liberdade que a família
me concede, porque o meu pai está sempre atento ao momento em que saio e
ao momento em que entro. A aldeia e os vizinhos lá estão para me
lembrarem que não tenho direito ao mínimo desvio. Comunico através de
sinais invisíveis com Faiez, do terraço. Um gesto da cabeça, e sei que
ele virá. Mas se entrar no carro muito depressa sem olhar para cima, é
porque não vem. Sei que nesse dia virá, porque mo confirmou. E
experimento um sentimento muito forte de que algo se vai passar.
Tenho medo que Faiez queira algo mais do que um beijo e ao mesmo tempo
desejo-o sem saber verdadeiramente o que me espera. Receio repeli-lo se
ele quiser ir demasiado longe e que ele se zangue. Também confio nele
porque sabe muito bem que não posso permitir que me toquem antes de
casar. Sabe perfeitamente que não sou uma charmuta. E prometeu casar
comigo.
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Mas apesar disso tenho medo, ali sozinha no prado com o rebanho. Oculta
no meio das ervas altas, vigio ao mesmo tempo os animais e o caminho. Não
vejo ninguém. O prado está magnífico, cheio de flores. Os carneiros estão
tranquilos nesta estação, passam o tempo a pastar sem quererem fugir como
em pleno Verão, quando a erva rareia.
Esperava-o vindo da direita, mas Faiez chega da direcção oposta, de
surpresa. Está certo, ele toma precauções para que não o vejam, está a
proteger-me. É tão belo. Usa umas calças justas da cintura até ao joelho
e largas para baixo. É a moda masculina para os homens que se vestem à
moderna, à ocidental. Traz um pullover branco de mangas compridas, de
decote em bico, que deixa ver os pêlos do peito. Acho-o elegante,
incomparavelmente chique ao pé de mim. Obedeci-lhe e não trouxe o casaco
vermelho, para não ser vista ao longe. Tanto o meu vestido como o saroual
são cinzentos. Tive o cuidado de lavar muito bem a roupa, porque com o
trabalho fica muitas vezes suja. Escondi os cabelos sob um lenço branco,
mas lamento não ter trazido o casaco vermelho, gostava de estar mais
bonita.
Sentamo-nos no chão e ele beija-me. Pousa-me a mão na coxa, mas eu não
deixo. Zanga-se. Tem uma expressão cruel quando me olha nos olhos.
- Porque é que não queres? Deixa!
Tenho tanto medo que ele se vá embora, que vá procurar outra... Pode
fazê-lo quando quiser, é um belo homem, o meu futuro marido. Amo-o, não
queria ceder, tenho muito medo, mas mais medo ainda de o perder. É a
minha única esperança. E então deixo que ele o faça sem saber o que me
vai acontecer e até onde é que ele irá. Está ali, diante dos meus olhos,
quer tocar-me, e nada mais interessa. O sol não tardará a declinar, está
menos calor, já não me resta muito tempo até recolher o rebanho. Deita-me
na erva e faz o que quer. Já não digo nada, não faço um gesto para o
afastar. Não é violento, não me força, sabe muito bem o que faz. A dor
apanha-me de surpresa. Não estava à espera, mas não é por causa disso que
choro. Ele não diz nada nem antes nem depois, não me pergunta porque
choro e eu própria não sei porquê tantas lágrimas. Não saberia o que lhe
responder se ele me perguntasse. Eu não queria. Sou virgem, não sei nada
do amor entre um homem e uma mulher, ninguém me explicou. A mulher deve
sangrar, com o marido,
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foi tudo o que aprendi desde a infância. Ele faz o que quer em silêncio,
até eu sangrar, e fica com uma expressão perplexa, como se não esperasse.
Estaria convencido que eu já tinha feito aquilo com outros homens? Pelo
facto de andar sozinha com os carneiros? Ele próprio tinha-me dito que me
tinha espreitado e que eu era uma rapariga séria. Não me atrevo a olhá-lo
de frente, tenho vergonha. Levanta-me o queixo e diz:
- Amo-te.
- Também te amo.
Não compreendi naquele momento que ele estava orgulhoso de si. Só muito
mais tarde é que lhe quis mal por ter duvidado da minha honra, por se ter
aproveitado de mim quando sabia perfeitamente o que eu estava a arriscar.
Eu não queria fazer amor com ele escondida numa vala, queria o que querem
todas as raparigas da minha aldeia. Casar, ser depilada como deve ser,
ter um belo vestido e ir dormir na sua casa. Queria que ao nascer do sol
ele mostrasse a todos o lençol branco manchado. Queria ouvir os aplausos
das mulheres. Ele aproveitou-se do meu receio, sabia que eu acabaria por
ceder para não o perder.
Fui a correr esconder-me, um pouco mais longe, para limpar o sangue das
pernas e recompor a roupa, enquanto ele compunha tranquilamente o fato.
Depois, supliquei-lhe que não me abandonasse, que tratasse do casamento
rapidamente. Uma rapariga que deixa de ser virgem é gravíssimo, está tudo
acabado para ela.
- Nunca te abandonarei.
- Amo-te.
- Eu também te amo. Agora vais voltar para casa, mudas de roupa e fazes
de conta que nada se passou. Mas sobretudo não chores em casa.
Partiu antes de mim. Eu já não chorava, mas sentia-me mal. Aquele sangue
era repugnante. Fazer amor com um homem não era uma festa. Tinha sofrido,
sentia-me suja, não tinha água para me lavar, mas apenas um punhado de
erva para me limpar, sentia ainda um ardor no ventre e tinha de reunir os
carneiros para regressar, com as calças sujas. Tinha de as lavar às
escondidas. Enquanto caminhava apressada, ia pensando que não voltaria a
sangrar, mas interrogava-me se sentiria sempre dores com o meu marido.
Seria sempre assim tão nojento?
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Quando chegar a casa, o meu rosto estará normal? Não choro, mas no meu
íntimo sofro e tenho medo. Tomo consciência do que fiz. Deixei de ser
rapariga. Já não estou em segurança enquanto não casar. Na noite do
casamento, não serei virgem. Mas não é importante, porque ele sabe que eu
era virgem quando estive com ele. Hei-de desenvencilhar-me, faço um golpe
com uma faca e mancho de sangue o meu lençol de casamento. Serei como
todas as outras mulheres.
Aguardo três dias. Espreito no terraço que Faiez me faça um sinal de
encontro. Desta vez, leva-me até um pequeno abrigo de pedras, na outra
extremidade do campo. Costumamos proteger-nos ali da chuva. Desta vez,
não sangro. Ainda me sinto mal, mas tenho muito menos medo. Ele voltou e
isso é tudo o que conta para mim. Está comigo e amo-o mais ainda. O que
ele faz com o meu corpo não é importante, é com a cabeça que eu o amo. É
toda a minha vida, toda a minha esperança de abandonar a casa dos meus
pais, de ser uma mulher que anda na rua com um homem, que se senta no
carro ao lado dele para ir comprar vestidos e sapatos às lojas, e ir ao
mercado.
Estou contente por estar com ele, por lhe pertencer... É um homem
verdadeiro. Percebi muito bem que para ele não era a primeira vez, sabe
fazer bem as coisas. Estou confiante em relação ao casamento, ele não
sabe ainda quando e eu também não, mas não faço perguntas. No meu
espírito, é uma certeza.
Entretanto, tenho que ter muito cuidado para que ninguém me denuncie.
Quando nos encontrarmos a próxima vez, mudo de caminho. Calculo quanto
tempo mais será preciso e, entretanto, não me atrevo a sair sozinha de
casa pela porta de ferro. Espero sempre pela minha mãe ou pela minha
irmã. De manhã, espio sempre a saída de Faiez. Mal ouço os passos dele no
cascalho, aproximo-me rapidamente do muro de cimento. Se houver alguém lá
fora, viro as costas; se não houver ninguém, aguardo o sinal. Houve dois
encontros desde que deixei de ser virgem. Não podemos ver-nos todos os
dias, pois seria imprudente. O sinal para o terceiro encontro só chega ao
fim de seis dias. Sinto sempre medo, mas também confiança. Estou atenta
ao mínimo ruído no campo. Evito ficar na orla do prado. Aguardo, sentada
na erva da vala, com o meu cajado, observo as abelhas que esvoaçam à
volta das flores silvestres,
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sonho com o dia já próximo em que deixarei de guardar os carneiros e as
cabras, em que não irei limpar os excrementos do estábulo. Ele vai
chegar, amar-me e, quando se for embora, dir-lhe-ei, como da primeira e
da segunda vez: «Não me abandones.»
Fazemos amor pela terceira vez. O sol está amarelo, devo regressar para
ordenhar as ovelhas e as vacas. Digo-lhe:
- Amo-te, não me abandones. Quando voltas?
- Não nos podemos ver imediatamente. Temos de esperar um pouco. Temos de
ter cuidado.
- Até quando?
, - Até eu te fazer sinal.
Naquele momento, a minha história de amor durava há uma quinzena de dias,
o tempo de três encontros no prado onde pastavam os carneiros. Faiez tem
razão em ser prudente e eu devo ser paciente, esperar que os meus pais
falem comigo, tal como falaram com a minha irmã Noura. Agora o meu pai
não vai poder esperar para casar Kainat antes de mim! Uma vez que Faiez
me pediu em casamento e ela continua solteira aos vinte anos, pode
desembaraçar-se de mim, ainda tem duas filhas! Khadija e Salima, as mais
pequenas, vão trabalhar, por sua vez, com a minha mãe e ocupar-se do
rebanho e das colheitas. Fatma, a mulher do meu irmão, está outra vez
grávida e vai parir em breve. Também pode trabalhar. Aguardo o meu
destino sempre com um ligeiro temor, porque não depende de mim. Mas a
espera é demasiado longa. Os dias vão passando e Faiez não me dá qualquer
sinal. Apesar disso, todas as tardes espero vê-lo aparecer como ele sabe,
vindo do nada, à esquerda ou à direita da vala onde me escondo.
Uma manhã, no estábulo, sinto-me esquisita. O odor do estrume deixa-me
azoada. Ao preparar a refeição, é a carne de carneiro que me agonia.
Sinto-me nervosa, tenho vontade de chorar e de dormir sem motivo. Sempre
que sai de casa, Faiez olha noutra direcção e não me faz sinal. O tempo
custa a passar, é demasiado longo e não sei quando tive o período nem
quando é que deve aparecer de novo. Ouvi muitas vezes a minha mãe
perguntar à minha irmã Noura:
- Já te veio o período?
- Sim, mamã.
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Mas esta mentira não pode arrastar-se durante muito tempo. Estou grávida
e há mais de um mês que não voltei a estar com Faiez.
Preciso de falar com ele urgentemente. Uma tarde, quando o sol ainda não
se tinha posto, vou até à horta aquecer água como se fosse para uma
barrela e subo ao terraço com a roupa, mais ou menos à hora a que sei que
ele regressa. Desta vez, faço-lhe sinal com a cabeça e insisto, fazendo
gestos até ele compreender: «Quero falar contigo, vou lá abaixo, segue-
me...»
Ele viu-me e eu escapo-me em vez de ir tratar de uma ovelha doente ao
curral, como dei a entender. A ovelha está realmente doente, estamos à
espera que dê à luz, não é a primeira vez que fico junto dela. Cheguei
mesmo a dormir em cima da palha uma noite inteira com receio de não a
ouvir.
Ele chega ao nosso local de encontro pouco tempo depois de mim e tenta
logo fazer amor, persuadido de que o chamei para isso. Recuo.
- Não, não foi para isso que te quis ver.
- Para quê, então?
- Preciso de falar contigo.
- Falamos depois... Vem!
- Tu não me amas, não nos podemos ver apenas para conversarmos?
- Claro que te amo, amo-te tanto que cada vez que te vejo desejo-te.
- Faiez, a primeira vez eu não queria nada, depois tu beijaste-me e
aceitei três vezes e até hoje não voltei a ter o período.
- Talvez haja um atraso.
- Não, nunca tive atrasos e sinto-me esquisita.
Já não me deseja. Leio-o no seu rosto. Ficou pálido.
- Que vamos fazer?
- Temos de casar depressa, já! Não podemos esperar, tens de ir falar com
o meu pai, mesmo que não haja festa, não me importo!
- As pessoas da aldeia vão falar, isso nunca se faz!
- Como é que vamos fazer com o lençol que tens de pendurar na varanda?
- Com isso não te preocupes, eu cá me arranjo. Mas não podemos fazer um
casamento sem uma grande festa. Tínhamos combinado um grande casamento e
vamos fazer um grande casamento.
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Vou falar com o teu pai. Espera por mim aqui amanhã, à mesma hora.
- Mas eu nem sempre posso. Tu és homem, podes fazer o que quiseres...
Espera que te faça sinal. Se eu puder, faço uma trança com os meus
cabelos. Se não tirar o lenço, não venhas.
No dia seguinte, arrisco-me ao dizer que vou colher erva para a ovelha
doente. Faço o sinal e corro para o nosso encontro, a tremer. O meu pai
não disse nada, não ouvi dizer nada. Tenho tanto medo que quase perco o
fôlego. Ele chega uma boa meia hora depois de mim. Por uma questão de
prudência, passo ao ataque:
- Porque é que não foste falar com o meu pai?
- Não ouso encará-lo de frente, ao teu pai. Tenho medo dele.
- Mas tens de te despachar, já passaram quase dois meses. A barriga vai
começar a crescer e o que é que eu faço?
Começo a chorar e, então, ele diz-me:
- Pára, não entres em casa a chorar. Amanhã irei falar com o teu pai.
Eu acreditei, tamanho era o meu desejo de acreditar. Porque o amava e
tinha também boas razões para esperar, uma vez que já me tinha pedido em
casamento ao meu pai. Percebia o seu receio de o encarar. Não era simples
explicar a razão por que queria fazer o casamento tão depressa. Qual a
justificação que poderia alegar perante a desconfiança e a crueldade do
meu pai, sem confessar o segredo e desonrar-me a mim e a si próprio
diante da família?
Nessa noite, fiz as minhas preces a Deus como de costume. Os meus pais
eram muito religiosos e a minha mãe frequentava muito a mesquita. As
raparigas deviam fazer as orações duas vezes ao dia, dentro de casa. No
dia seguinte, ao acordar, agradeci a Alá por ainda estar viva.
Quando subi ao terraço, o carro já tinha partido. Trabalhei
como de costume, tratei da ovelha, limpei o estábulo, saí com o rebanho,
apanhei os tomates.
; Esperei pela noite. Sentia tal medo que apanhei uma pedra grande e
golpeei o ventre na esperança de que o sangue recompusesse as coisas.
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O ÚLTIMO ENCONTRO
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Penso que desta vez é que é, vou morrer. Agora é a vez da minha mãe.
Rodeia a bacia, de mãos nas ancas. Está calma, mas rude.
- Pára de lavar a roupa! Mostra-me os teus seios!
- Não, mamã, peço-te! Tenho vergonha.
- Mostras-mos ou queres que te rasgue o vestido? Então, desabotoo os
botões da gola até à altura do peito e
abro o tecido. .
- Estás grávida?
- Claro que não!
- Tiveste o período?
- Tive!
- Da próxima vez que tiveres o período, deixas-me ver! Respondi que sim,
para ficar calma, para a tranquilizar e para
minha segurança. Sei que vou ter de me cortar, deixar correr o sangue
para um papel e mostrar-lho na próxima lua.
Abandono a roupa, saio de casa atravessando o quintal sem autorização e
vou esconder-me nos ramos de um velho limoeiro. É estúpido procurar
protecção assim, não é o limoeiro que me vai salvar, mas tenho tanto medo
que já nem sei o que faço. O meu pai foi logo à minha procura e encontra-
me ali, encavalitada como uma cabra no meio da folhagem. Puxa-me pelas
pernas e caio.
Tenho um dos joelhos a sangrar e ele leva-me para casa. Vai buscar folhas
de salva, que macera e aplica a massa sobre a ferida para estancar o
sangue. É estranho. Não compreendo por que razão, depois de me ter feito
cair de forma tão brutal, se dá ao trabalho de me tratar, o que nunca
fizera antes. Nesse momento, penso que afinal ele não é mau. Acreditou no
que eu lhe respondi. À distância, pergunto-me se não foi muito
simplesmente para evitar que me servisse desse sangue para fazer crer que
me viera o período...
Ao cair, magoei-me no abdómen e tenho esperança de que a queda faça
aparecer as regras.
Um pouco mais tarde, tem lugar um conselho de família ao qual não sou
autorizada a assistir. Os meus pais mandaram vir Noura e Hussein. Fico à
escuta do outro lado da parede. Falam todos ao mesmo tempo e ouço o meu
pai dizer:
- Tenho a certeza de que ela está grávida, não nos quer dizer, esperemos
que nos mostre as regras...
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Quando se calaram, subo para o meu quarto e finjo que estou a dormir.
No dia seguinte, os meus pais vão à cidade. Estou proibida de sair.
Fecham a porta do pátio, mas passo pelo quintal e fujo a esconder-me no
campo. Com uma pedra grande começo a bater metodicamente no ventre, por
cima do vestido, para provocar sangue. Nunca ninguém me disse como é que
os bebés crescem na barriga da mãe. Sei que num dado momento o bebé se
mexe. Vi a minha mãe grávida, sei quanto tempo é preciso para a criança
vir ao mundo, mas ignoro todo o resto. A partir de quando é que uma
criança vive? Para mim é ao nascer, pois é nesse momento que vi a minha
mãe decidir se o deixava viver ou não. O que espero ardentemente, agora
que estou grávida de cerca de três meses e meio ou quatro, é que o sangue
volte. Só penso nisso. Não imagino sequer que a criança que trago no
ventre é já um ser humano.
E choro de raiva, de medo, porque o sangue não jorra. Porque os meus pais
vão regressar e tenho de estar em casa antes deles.
Esta recordação neste momento é de tal modo dolorosa... sinto-me tão
culpada. Por mais que diga que era ignorante, que estava aterrorizada com
o que me esperava, é um pesadelo pensar no modo como golpeei o meu ventre
para que aquela criança não nascesse.
E no dia seguinte a mesma coisa, bato no ventre com tudo o que encontro e
sempre que posso. A minha mãe aguarda. Concedeu-me um mês a contar do dia
em que me obrigou a mostrar-lhe os seios. Sei que faz as contas na sua
cabeça e, entretanto, estou proibida de sair. Tenho de ficar fechada em
casa e contentar-me com as lides domésticas. A minha mãe disse-me:
- Não voltas a passar por aquela porta! Não voltas a guardar os carneiros
nem voltas a apanhar feno.
Posso escapulir-me pelos pátios e pelas hortas, mas para ir onde? Nunca
apanhei o autocarro sozinha, não tenho dinheiro e, de qualquer maneira, o
motorista não me deixará subir.
Devo estar no quinto mês. Senti mexer no ventre e, em pé, atiro-me contra
a esquina de um muro, como louca. Já não posso mentir mais nem esconder a
barriga e o peito, não tenho outra saída.
A única ideia que me ocorre, a única possível, é fugir de casa
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a sua promessa de casamento, até mesmo o seu primeiro pedido feito ao meu
pai, nada disso conta. Na nossa terra, um homem que se respeite não
desposa a rapariga que ele próprio desflorou antes do casamento.
Ele amava-me? Não. E se cometi algum erro, foi o de acreditar que não o
perderia se fizesse o que ele queria. Eu estava apaixonada? Tive medo que
ele arranjasse outra? São argumentos que não interessam... mesmo para mim
deixaram de fazer sentido.
Uma noite houve outra reunião de família: os meus pais, a minha irmã mais
velha e o seu marido Hussein. O meu irmão não está em casa porque a
mulher vai dar à luz e foi ter com ela, a casa da família.
Fico à escuta atrás da parede, aterrorizada. A minha mãe fala com
Hussein:
- Não podemos pedir ao nosso filho, ele não será capaz, é muito novo.
- Eu posso ocupar-me dela. O meu pai fala, por sua vez:
- Se tens que o fazer, deves fazê-lo como deve ser. Qual é a tua ideia?
- Não te preocupes, eu arranjarei maneira. ( Ouço a minha mãe de novo:
- Deves tratar dela, mas tens que te desembaraçar rapidamente.
Ouço a minha irmã chorar e dizer que não quer ouvir aquilo e quer voltar
para casa. Hussein diz-lhe para esperar e acrescenta, dirigindo-se aos
meus pais:
- Vocês saem. Não estejam em casa, não podem cá estar. Quando voltarem,
estará terminado.
Ouvi com os meus ouvidos a minha condenação à morte e fugi para a escada
porque a minha irmã preparava-se para sair. Não ouvi o que se seguiu. Um
pouco mais tarde, o meu pai fez a ronda da casa e a porta do quarto das
raparigas bateu com estrondo.
Não dormi. Não conseguia compreender o que tinha ouvido. Pensava para
mim: será um sonho? É um pesadelo? Vão realmente fazer isso? Será para me
assustarem? E se o fizerem, quando será? Como? Vão-me cortar a cabeça?
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Talvez me deixem ter a criança e me matem depois. Ficarão com ele, se for
um rapaz? E a minha mãe vai asfixiá-la se for uma rapariga?
Vão matar-me antes?
No dia seguinte, porém, fiz como se não tivesse ouvido nada. Mantinha-me
vigilante, mas não acreditava verdadeiramente nisso. Porém, logo a seguir
começava a tremer outra vez e acreditava. As únicas interrogações eram
quando e onde. Não podia ser já de seguida... aliás, Hussein fora-se
embora. E, além disso, eu não conseguia imaginar Hussein a querer matar-
me!
Nesse dia, a minha mãe disse-me com o mesmo tom do costume:
- É altura de ires lavar a roupa, eu e o teu pai vamos à cidade.
Soube o que se ia passar. Eles ausentavam-se de casa como Hussein tinha
dito.
Quando, recentemente, me lembrei do desaparecimento da minha irmã Hanan,
apercebi-me que era a mesma coisa. Os pais tinham saído, as raparigas
estavam sozinhas em casa com o irmão. A única diferença, em relação a
mim, era que Hussein ainda lá não estava. Contemplei o pátio, que era
grande, com uma parte ladrilhada e o resto coberto de areia. A toda a
volta, havia um muro encimado por um gradeamento bastante alto e
pontiagudo. E, num dos cantos, o portão cinzento, metálico, completamente
liso do lado virado para o pátio, sem fechadura nem chave, apenas com uma
maçaneta no exterior.
A minha irmã Kainat nunca lava a roupa comigo, não são precisas duas
pessoas.
Não sei de que tarefa a incumbiram, nem onde está com as mais pequenas.
Deixou de me falar. Dorme ao meu lado, de costas viradas desde que tentei
fugir para casa da minha tia.
A minha mãe espera que eu recolha a roupa para lavar. É bastante porque,
em regra, só fazemos a barrela uma vez por semana. Se começar por volta
das duas ou três da tarde, não estou despachada antes das seis horas.
Primeiro, vou buscar água ao poço, mesmo ao fundo do quintal. Disponho as
achas de madeira para a fogueira, coloco a enorme celha em cima e encho-a
de água até metade. Sento-me numa pedra à espera que aqueça.
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Os meus pais saem pela porta de casa, que fecham sempre à chave quando
saem.
Eu estou do outro lado do pátio. Ateio constantemente as brasas. Não
posso deixar que o fogo esmoreça, a água tem de estar muito quente quando
molhar a roupa. Em seguida, esfrego as nódoas com sabão de azeite e volto
ao poço buscar água para enxaguar.
É um trabalho duro e cansativo que faço há anos, mas neste momento é-me
particularmente penoso.
Ali fico, descalça, sentada numa pedra, com um vestido de pano cinzento,
cansada de ter medo. Já nem sei dizer há quanto tempo estou grávida com
este pavor no meu ventre. Em todo o caso, há mais de seis meses. Olho de
vez em quando para a porta, ao fundo, mesmo ao fundo do imenso pátio.
Fascina-me.
Se ele vier, só pode entrar por ali.
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O FOGO
De súbito, ouço bater a porta. Ele aparece e avança. Revejo essas imagens
vinte cinco anos depois como se o tempo se tivesse imobilizado. São as
últimas imagens da minha existência anterior, lá longe, na minha aldeia
da Cisjordânia. Desfilam ao retardador, como nos filmes que passam na
televisão. Surgem incessantemente diante dos meus olhos. Queria apagá-las
mal surge a primeira, mas já não consigo parar o filme. Quando a porta
bate, é demasiado tarde para o interromper, tenho necessidade de rever
essas imagens porque continuo sempre a tentar compreender o que não
compreendi: como é que ele fez? Eu teria sido capaz de lhe escapar se
tivesse compreendido?
Avança na minha direcção. É o meu cunhado Hussein com roupa de trabalho,
umas calças velhas e uma t-shirt. Pára em frente de mim e diz:
- Olá, como vai isso? - com um sorriso. Tem na boca uma erva, que vai
mascando sem deixar de sorrir. - Vou-me ocupar de ti.
Aquele sorriso... diz que vai ocupar-se de mim, e eu não estava à espera
daquilo. Também esboço um sorriso, de agradecimento, não me atrevendo a
balbuciar uma palavra.
- Estás com uma grande barriga, hem?
Baixo a cabeça, sinto vergonha de olhar para ele. Baixo ainda mais a
cabeça e toco os joelhos com a testa.
- Tens aí uma mancha. Puseste hena de propósito?
- Não, pus hena nos cabelos, não foi de propósito.
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Não consigo levantar a cabeça, não consigo mexer o corpo nem os braços,
sinto-me a arder, sempre a arder... sinto o cheiro nauseabundo da
gasolina, não compreendo aquele ruído do motor, as lamentações das
mulheres, não sei para onde me levam. Quando entreabro os olhos, só
consigo vislumbrar um bocadinho do meu vestido ou da minha pele. É negro
e cheira mal. Continuo a arder e, no entanto, o fogo já não me envolve.
Mas, apesar disso, continuo a arder. Na minha mente, continuo a correr
envolta em chamas.
Vou morrer. Não importa. Talvez já esteja morta. Finalmente acabou-se.
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MORRER
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Durmo, com a cabeça sempre colada ao peito. Com a cabeça inclinada como
quando estava envolta pelas chamas.
Os meus braços são estranhos, ambos ligeiramente afastados e paralisados.
Continuo a ter mãos, mas não me servem para nada. Queria coçar-me,
arrancar a pele para não sofrer mais.
Obrigam-me a levantar. Caminho ao lado daquela enfermeira. Doem-me os
olhos. Vejo as pernas, as mãos pendentes ao lado do corpo, os ladrilhos.
Odeio esta mulher. Leva-me para uma sala e pega numa mangueira para me
lavar. Diz que eu cheiro tão mal que tem vontade de vomitar. Exalo um
cheiro fétido, choro, estou para ali como um resíduo imundo, como uma
coisa putrefacta sobre a qual despejam um balde de água. Como a caca nas
casas de banho, puxa-se o autoclismo, e pronto, acabou-se. Morro. A água
arranca-me a pele, grito, choro, suplico, o sangue escorre-me até às
pontas dos dedos. Obriga-me a permanecer de pé. Arranca, sob o jacto de
água fria, bocados de carne negra, pedaços da minha roupa queimada,
imundícies fétidas que formam um pequeno montículo no canto do duche.
Exalo um tal cheiro a podre, a carne queimada e a fumo que ela colocou
uma máscara e sai por instantes da casa de banho a tossir e a amaldiçoar-
me.
Inspiro-lhe repugnância, devia morrer como um cão, mas longe dela. Porque
é que não acaba comigo? Volto para a cama, abrasada e gelada ao mesmo
tempo, e atira o lençol para cima de mim para não me ver mais. Morre para
aí, é o que me diz o seu olhar. Morre para te irem deitar fora algures.
Vejo o meu pai, com a bengala. Está furioso, golpeia o chão, quer saber
quem me engravidou, quem me trouxe para ali, tudo o que se passou. Tem os
olhos vermelhos. Chora, o velho, mas continua a aterrorizar-me com aquela
bengala e não consigo sequer responder-lhe. Vou adormecer, ou morrer, ou
despertar, o meu pai estava ali, já lá não está.
Mas não sonhei, a voz dele ressoa ainda na minha cabeça:
- Fala!
Consegui sentar-me um pouco para não sentir os braços colados sob o
lençol, com a cabeça apoiada numa almofada. Não há nada capaz de me
aliviar, mas posso ver quem passa no corredor, com a porta entreaberta.
Ouço alguém, vislumbro uns pés descalços,
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Deve ter tirado o copo do saco porque não há nada à minha volta. Não há
nenhuma mesa ao lado da cama, não vejo nada. Não, não a vi remexer no
saco, tirou-o do parapeito da janela, é um copo do hospital. Mas não sei
o que é que ela lhe deitou lá dentro.
- Se não beberes isto, o teu irmão vai ter problemas, porque a polícia
foi a nossa casa.
Deve tê-lo enchido enquanto eu chorava de vergonha, de dor, de medo. Eu
chorava de muitas coisas, com a cabeça baixa e os olhos fechados.
- Bebe este copo... sou eu que to dou.
Jamais esquecerei aquele copo grande, cheio até ao rebordo, com um
líquido transparente que parecia água.
- Tu vais beber isto e o teu irmão não terá problemas. É melhor, é melhor
para ti, é melhor para mim, é melhor para o teu irmão.
Ela chorava. E eu também. Lembro-me das lágrimas a correr sobre as
queimaduras do queixo, ao longo do pescoço, a devorarem-me a pele.
Não conseguia erguer os braços. Foi ela que pôs as mãos debaixo da minha
cabeça, que me soergueu até ao copo que segurava numa das mãos. Até
àquele momento ninguém me dera de beber. Aproximava o copo grande da
minha boca. Queria humedecer pelo menos os lábios, tanta a sede que
sentia. Tentava levantar o queixo, mas em vão.
De súbito, apareceu o médico e a minha mãe assustou-se. Ele pegou no copo
com um gesto brusco, voltou a pousá-lo com brusquidão e gritou com força:
-Não!
Vi o líquido derramar-se no parapeito da janela. Escorria pelo vidro,
transparente, tão cristalino como água.
O médico pegou na minha mãe pelo braço e obrigou-a a sair do quarto. Eu
não desviava os olhos do copo, tê-lo-ia bebido mesmo derramado no chão,
tê-lo-ia lambido com a língua, como um cão. Tinha sede, tanto fazia beber
como morrer.
O médico reapareceu e disse-me:
- Tiveste sorte por eu ter chegado no momento exacto. Primeiro o teu pai
e agora a tua mãe! Mais ninguém da tua família volta a entrar aqui!
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Ninguém, nem sequer ele, se preocupara em saber até que ponto é que eu
estava a sofrer com a pele que se ia escavando, apodrecendo, ressudando
enquanto me devorava lentamente como o veneno de uma serpente em toda a
parte superior do meu corpo, no crânio sem cabelos, nos ombros, nas
costas, nos braços, nos seios.
Chorei muito. Chorei por saber que era a última vez que o via? Chorei por
ter um desejo enorme de ver os filhos dele? Estavam à espera que a mulher
desse à luz. Soube mais tarde que tinha tido dois rapazes. Toda a família
deve tê-la admirado e felicitado.
Não pude comer a fruta. Sozinha era impossível e o saco desaparecera.
Nunca mais voltei a ver a minha família. A minha derradeira visão da
minha mãe é essa imagem do copo com água envenenada. A do meu pai a
golpear furioso o chão com a bengala. E a do meu irmão com o saco de
fruta.
No mais profundo do meu sofrimento, procurava ainda entender por que
razão não tinha visto nada quando o fogo se derramou sobre a minha
cabeça. Havia um bidão de gasolina ao meu lado, mas estava fechado com um
tampão. Não vi Hussein tocar-lhe. Estava de cabeça baixa enquanto ele me
dizia que ia «ocupar-se de mim» e durante breves segundos julguei-me
salva por causa daquele sorriso e da erva que mascava tranquilamente. Na
realidade, ele pretendia ganhar a minha confiança para impedir a minha
fuga. Na véspera, tinha previsto tudo com os meus pais. Mas onde é que
foi buscar o lume? Ao braseiro? Não vi nada. Terá usado um fósforo para
ser assim tão rápido? Eu costumava ter sempre uma caixa de fósforos à
mão, mas também não vi nada. Talvez tivesse um isqueiro na algibeira...
Mal tive tempo de sentir o líquido frio nos cabelos e já estava a arder.
Gostava muito de saber porque é que não vi nada.
As noites, deitada ao comprido na cama, são um pesadelo interminável.
Fico imersa numa escuridão completa, vejo cortinas à volta, a janela
desapareceu. Uma dor estranha como uma facada no ventre, as pernas a
tremer... vou morrer. Tento erguer-me mas não consigo. Os meus braços
continuam rígidos como duas chagas imundas que se recusam a servir-me.
Não há ninguém, estou sozinha, por isso quem é que me cravou esta faca no
ventre?
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Sinto entre as coxas algo de estranho. Dobro uma perna, depois a outra,
tacteio com o pé, tento livrar-me sozinha daquela coisa que me horroriza.
Ao princípio não me dou conta que estou prestes a parir. Tacteio com
ambos os pés, no escuro. Empurro, sem o saber, o corpo da criança,
lentamente, debaixo do lençol. Depois permaneço imóvel, exausta pelo
esforço. Junto as pernas e sinto o bebé contra a pele, de ambos os lados.
Mexe-se ao de leve. Retenho a respiração. Como é que saiu tão depressa?
Uma punhalada no ventre e ei-lo? Vou voltar a adormecer, é impossível,
esta criança não saiu sozinha sem prevenir. Devo estar com um pesadelo.
Mas não estou a sonhar, porque o sinto ali, entre os joelhos, contra a
pele das pernas. As minhas pernas não ficaram queimadas, sinto as coisas
com a pele das pernas e dos pés. Não me atrevo a fazer um movimento,
depois levanto um pé tal como faria com a mão para aflorar... uma
cabecinha minúscula, uns braços que se agitam debilmente.
Devo ter gritado. Não me lembro. O médico entra no quarto, afasta as
cortinas, mas continuo mergulhada nas trevas. Lá fora deve ser noite.
Apenas distingo uma luz no corredor através da porta aberta. O médico
debruça-se, retira o lençol e leva a criança sem sequer ma mostrar.
Já não há nada entre as minhas pernas. Alguém repuxa as cortinas. Não me
lembro de mais nada. Devo ter desmaiado, devo ter dormido durante muito
tempo, não sei ao certo. Nos dias seguintes, só tenho uma certeza, já não
tenho a criança no meu ventre.
Não sabia se o bebé estava vivo ou morto, ninguém me dizia nada e eu não
ousava perguntar àquela enfermeira má o que tinham feito à criança.
Que ele me perdoe, mas sentia-me incapaz de lhe dar uma realidade. Sabia
que tinha dado à luz, mas não o tinha visto, não mo tinham posto nos
braços, não sabia se era um rapaz ou uma rapariga. Naquele momento eu não
era uma mãe, mas um despojo humano condenado à morte. A vergonha era mais
forte.
O médico informou-me mais tarde que eu tinha dado à luz um bebé de sete
meses, que estava vivo e protegido. Escutava vagamente o que ele me
dizia, porque as orelhas queimadas doíam-me horrivelmente! Toda a parte
superior do meu corpo era uma sensação dolorosa,
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JACQUELINE
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não diz respeito aos estrangeiros. Foi uma mulher que decidiu mencioná-lo
na minha presença. Uma amiga cristã, com a qual estou frequentemente em
contacto porque se ocupa de crianças. Por esse facto, passam por ela
muitas mães oriundas de todo o país, de todas as aldeias. E ela é um
pouco como o moukhtar do sector, o que significa que convida as mulheres
a beber chá ou café e discute com elas o que se passa nas aldeias donde
vêm. Aqui, é uma forma de comunicação importante. Todos os dias se toma
chá ou café enquanto se conversa, é a tradição, e a oportunidade que ela
tem de identificar os casos de crianças em situação grave. Certo dia,
ouve um grupo de mulheres dizerem:
- Na aldeia, temos uma rapariga que se portava muito mal e por isso os
pais tentaram queimá-la. Consta que está num hospital, algures.
Esta amiga possui um certo carisma, respeitam-na e dá provas de uma
enorme coragem, como virei a constatar depois. Normalmente, só se ocupa
de crianças, mas a mãe nunca está longe dos filhos! Assim, por volta de
15 de Setembro desse ano, a minha amiga disse-me:
- Escuta, Jacqueline, há uma rapariga no hospital que está quase a
morrer. A assistente social confirmou-me que foi queimada por alguém da
família. Achas que podes fazer alguma coisa?
- Que mais é que sabes?
- Sei apenas que é uma rapariga nova que estava grávida e que na aldeia
dela dizem: «Fizeram bem em castigá-la, agora vai morrer no hospital.»
- É monstruoso!
- Eu sei, mas aqui é assim. Está grávida e, portanto, vai morrer. É tudo.
É normal. As pessoas dizem: «Pobres pais!» Lamentam os pais, mas não a
filha. Aliás, ela vai mesmo morrer, segundo ouvi dizer.
Semelhante história faz tocar uma campainha de alarme na minha cabeça. Na
altura, estou a trabalhar no seio da associação Terra dos Homens,
dirigida por um homem fantástico, Edmond Kaiser. A minha missão
primordial são as crianças. Nunca abordei, por razões óbvias, esse tipo
de casos, mas digo para comigo: «Jacqueline, minha cara, tens de ir ver
de perto o que se passa!»
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Dirijo-me ao tal hospital, que conhecia bastante mal dado que o tinha
visitado poucas vezes. Não tenho problemas porque conheço o país, os
costumes, desembaraço-me com a língua e já passei muito tempo em
hospitais. Limito-me a pedir que me levem junto de uma rapariga que foi
queimada. Conduzem-me sem qualquer problema e entro numa divisão ampla,
onde vejo duas camas e duas raparigas. Tenho desde logo a impressão que
se trata de uma sala de desterro. Um sítio para onde levam aqueles casos
que não convém mostrar.
Um quarto bastante soturno, com grades nas janelas, duas camas e o resto
completamente vazio.
Como há duas raparigas, pergunto à enfermeira:
- Estou à procura daquela que acabou de ter um bebé.
- Ah sim, é aquela!
É tudo. A enfermeira sai. Não se detém sequer no corredor, não me
pergunta quem sou, nada! Apenas um vago gesto em direcção a uma das
camas:
- É aquela!
Vejo uma delas com os cabelos curtos, frisados mas quase rapados, e outra
com os cabelos meio curtos e inteiriçados. Mas as duas raparigas têm o
rosto completamente negro, coberto de fuligem. Os corpos estão cobertos
por um lençol. Sei que já lá estão há algum tempo. Há cerca de quinze
dias, segundo me dizem. É evidente que não conseguem falar. São duas
moribundas. A que tem os cabelos retesados está em coma. A outra, a que
teve um filho, mal abre as pálpebras por breves instantes.
Ninguém circula naquele quarto, nem enfermeira nem médico. Não ouso falar
e menos ainda tocar-lhes, e o cheiro que ali reina é infecto. Vim para
ver uma mulher e descubro duas horrivelmente queimadas sem sombra de
dúvida e sem receberem quaisquer cuidados. Saio à procura de uma
enfermeira noutro sítio fora daquela sala de degredo. Encontro uma.
- Gostava de falar com o médico-chefe do hospital.
Estou habituada a este tipo de instalações hospitalares, não é nenhuma
novidade para mim. O médico-chefe recebe-me bem, com bastante
afabilidade.
- Trata-se do seguinte. Estão aqui duas raparigas queimadas.
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Como se fosse um único bloco. Vejo que tem as orelhas queimadas e que
pouco sobrou. Passo-lhe uma mão diante dos olhos. Ela não reage. Não lhe
vejo nem as mãos nem os braços e não ouso levantar o lençol. Enfim, não
sei o que fazer. Mas tenho que lhe tocar em qualquer sítio para assinalar
a minha presença. Como se fosse uma moribunda. Para lhe dar a perceber
que está ali alguém, para que sinta uma presença, um contacto humano.
Tem as pernas dobradas, os joelhos erguidos debaixo do lençol, como as
mulheres se sentam à moda oriental, mas na horizontal. Coloco a mão num
dos joelhos e ela abre os olhos.
- Como te chamas?
Não responde.
- Escuta, vou-te ajudar. Vou voltar e ajudar-te.
- Aioua.
Sim, em árabe, e nada mais. Volta a fechar os olhos. Nem sequer sei se me
viu.
Foi o meu primeiro encontro com Souad.
Fui-me embora, consternada. Era evidente para mim que tinha de fazer
alguma coisa! Em tudo o que tenho realizado até aqui, sempre tive a
sensação de ter recebido um chamamento. Basta que me falem de uma
situação de apuro para que eu acorra sabendo que vou fazer qualquer coisa
em resposta a esse apelo. Não sei o quê, mas hei-de descobrir.
Vou ter de novo com a tal amiga que me dá alguns dados novos, se assim se
pode dizer, sobre o caso daquela rapariga.
- A criança que ela deu à luz, o serviço social já lha tirou por ordem da
polícia. Não vais poder fazer nada. Ela é jovem, ninguém te ajudará
dentro do hospital. Jacqueline, acredita em mim, não vais poder fazer
nada.
- Está bem, vamos ver.
No dia seguinte volto ao hospital. Ela mantém-se pouco consciente e a
vizinha de cama continua em coma. E aquele cheiro nauseabundo é
insuportável. Ignoro a extensão das queimaduras, mas ninguém as
desinfectou. Dois dias depois, uma das duas camas está vazia. A jovem em
coma morreu durante a noite. Olho para aquela cama vazia, mas apesar
disso ainda não limpa, com uma pena imensa.
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É sempre uma mágoa enorme não ter podido fazer qualquer coisa. E
reflicto: «Agora, é preciso tratar da outra.» Porém, ela está semi-
inconsciente, delira muito e não percebo nada do que tenta responder às
minhas perguntas.
E eis que acontece aquilo a que chamo o milagre. Na pessoa de um jovem
médico palestiniano que encontro ali pela primeira vez. O director do
hospital já me tinha dito: «Não pense mais nisso, ela vai morrer.» Peço a
opinião àquele jovem médico.
- O que acha? Porque é que não lhe limpam o rosto, para já?
- Tentamos limpá-la como podemos, mas não é fácil. Estes casos são
extremamente difíceis para nós, muito complicados, por causa dos
costumes... compreende...
- Acha que a podemos salvar, que podemos fazer alguma coisa?
- Se ainda não morreu, talvez ainda haja hipóteses. Mas tem que ser
prudente quando se trata de uma história destas, muito prudente.
Nos dias seguintes, encontro um rosto um pouco mais limpo e vestígios de
mercurocromo aqui e ali. O jovem médico deve ter dado instruções à
enfermeira, que faz um esforço, mas sem se preocupar grandemente. Souad
contou-me mais tarde que a tinham agarrado pelos cabelos para a
esfregarem dentro de uma banheira e que a manipulavam assim porque
ninguém lhe queria tocar. Abstenho-me, por isso, de fazer críticas, o que
só contribuiria para agravar as minhas relações com aquele hospital.
Voltei a procurar o jovem médico árabe, a única pessoa que me parece
acessível.
- Trabalho com uma organização humanitária, posso fazer alguma coisa, por
isso gostava de saber se há alguma esperança de vida para ela.
- A mim, parece-me que sim. Podíamos tentar qualquer coisa, mas duvido
que tal se faça no nosso hospital.
- Então, talvez a pudéssemos mudar de hospital?
- Sim, mas a rapariga tem família, pais, é menor, não é possível! Não
podemos intervir, os pais sabem que ela está ali, a mãe já cá veio e,
aliás, as visitas foram proibidas desde que... É um caso muito especial,
acredite.
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Sei sem sombra de dúvida que não dispõem dos meios necessários para os
queimados graves. Trata-se pois de uma primeira etapa. Contudo, numa
segunda fase, em Belém, poderão dispensar-lhe o mínimo de cuidados
básicos. Terceira fase do plano: partida para a Europa, com o acordo da
organização Terra dos Homens, que ainda não solicitei.
Isto sem falar da criança, que tenciono tentar encontrar entretanto.
Quando o meu jovem médico sobe para o meu pequeno carro para uma segunda
visita a casa dos pais, mostra-se igualmente inquieto. Idêntica recepção,
no exterior debaixo da árvore, a mesma conversa banal à partida, mas
desta vez eu falo dos filhos que nunca vemos.
- Têm muitos filhos? Onde estão?
- Estão a trabalhar no campo. Temos uma filha casada, que tem dois
rapazes e um filho casado, também com dois rapazes.
Excelente ter rapazes. Há que felicitar o chefe de família. Mas lamentá-
lo também.
- Sei que têm uma filha que vos causa muitos problemas.
- Ya haram! É terrível o que nos acontece! Que desgraça!
- É realmente lamentável para vós.
- Sim, é uma pena. Allah Karim! Mas Deus é grande.
- Na aldeia, é penoso ter problemas tão difíceis...
- Sim, é muito duro para nós. (
A mãe não fala. Continua de pé, hierática.
- Bem, de qualquer modo ela vai morrer em breve. Está muito mal.
- Sim. Allah Karim!
O meu médico acrescenta, num tom muito profissional:
- Sim, ela está realmente muito mal.
Percebeu o meu interesse naquele estranho regatear sobre a morte esperada
de uma rapariga. Ajuda-me, acrescentando uma mímica bastante explícita
sobre a morte inevitável de Souad, quando o que esperamos é precisamente
o contrário... É agora a sua vez. O pai confia-lhe por fim, com maior
clareza, o ponto fulcral de todas as suas preocupações.
- Espero que possamos ficar na aldeia.
- Com certeza que sim. De qualquer maneira, ela vai morrer.
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onde tratam dos queimados graves com tanta precaução e empenhamento para
tornarem as dores suportáveis...
Reatámos as negociações, sempre os dois, eu e o meu corajoso médico. É
preciso malhar no ferro, propor a transacção com igual dose de diplomacia
e de convicção.
- O que não seria bom era que ela morresse cá na terra. Para vocês, mesmo
no hospital, na cidade, não convém. Mas nós podemos levá-la para longe,
para outro país. E assim acabou-se e poderão dizer à aldeia em peso que
ela morreu. Irá morrer noutro país e nunca mais ouvem falar dela.
Neste momento, a conversa torna-se extremamente tensa. Sem os papéis,
qualquer acordo com eles não servirá para nada. Estou quase a chegar ao
assunto. Não faço mais perguntas, nem quem fez aquilo nem quem é o pai da
criança. Essas histórias não têm qualquer interesse para a negociação e a
sua evocação apenas contribuiria para manchar mais ainda a sua honra. O
que importa é convencê-los de que a filha vai morrer, mas noutro sítio. E
deixo que me tomem por uma louca, por uma estrangeira excêntrica, que, ao
fim e ao cabo, lhes interessa aproveitar.
Sinto que a ideia começa a fazer o seu caminho. Se disserem que sim, mal
viremos as costas, poderão declarar a morte da filha a toda a aldeia, sem
mais pormenores, e sem enterro no quintal. Poderão contar o que bem
entenderem e até que vingaram a sua honra à sua maneira. É demencial se
pensamos nisso com um raciocínio de Ocidental... é realmente uma loucura
conseguir objectivos em semelhantes condições. Esta negociação não os
incomoda, em termos morais. Aqui a moral é uma moral especial, exerce-se
contra as raparigas e as mulheres, ao pretender impor-lhes uma lei que só
interessa aos homens do clã. Mesmo aquela mãe aceita-a sem vacilar ao
desejar a morte e o desaparecimento da própria filha. Não pode fazer
outra coisa e, intimamente, chego a lamentá-la. Aliás, não me preocupo
com os estados de alma. Em todos os países onde trabalho, seja em África,
na índia, na Jordânia ou na Cisjordânia, tenho de me adaptar à cultura e
respeitar os costumes ancestrais. O único objectivo é ajudar aqueles ou
aquelas que são vítimas desses costumes. Mas é a primeira vez na minha
vida que negoceio uma vida nestes moldes. Eles cedem.
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O pai obriga-me a prometer, e a mãe também, que nunca mais a verão! NUNCA
MAIS?
- Não! Nunca mais! JAMAIS!
Prometo. Mas para cumprir a minha promessa e levar Souad para o
estrangeiro, preciso dos papéis dela.
- Tenho que lhes pedir uma coisa... Talvez seja um pouco difícil, mas
irei convosco e ajudo-vos. Temos de ir juntos ao serviço que passa os
documentos de identidade e de viagem.
Este novo obstáculo inquieta-os de imediato. Todo e qualquer contacto com
a população israelita, e sobretudo com a administração, constitui um
problema para eles.
- Levo-os de carro até Jerusalém, a si e à senhora, para assinarem os
papéis.
- Mas nós não sabemos escrever!
- Não faz mal, basta a impressão digital...
- Está bem, nós vamos consigo.
Desta vez é com a administração que tenho de negociar antes
de vir buscar os pais. Felizmente conheço gente no serviço de vistos de
Jerusalém. Ali, posso prestar esclarecimentos e os funcionários sabem o
que faço pelas crianças. De resto, é uma criança que vou salvar. Souad
disse-me que tinha dezassete anos, mas que importa, é ainda uma criança.
Explico aos funcionários israelitas que lhes vou trazer os pais de uma
palestiniana gravemente doente, que não convém fazê-los esperar três
horas sob pena de se irem embora sem assinarem nada. São pessoas
iletradas, que necessitam da minha presença para as formalidades.
Portanto, vou trazê-los, munidos de uma certidão de nascimento, se a
tiverem, e a administração terá apenas que confirmar a idade da filha no
salvo-conduto. Acrescento, e mais uma vez sou temerária, que essa
rapariga vai partir acompanhada por uma criança. Embora continue a
ignorar o paradeiro do bebé e como descobri-lo.
Mas, por agora, não se põe a questão: cada coisa a seu tempo. O meu único
problema é apressar os pais e que sejam dispensados alguns cuidados à
pequena Souad.
Como é evidente, o funcionário israelita interroga-me:
- Sabes o nome do pai da criança?
- Não, não sei o nome.
- Devo escrever ilegítima?
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Aquela designação num documento oficial enerva-me.
- Não, não vamos escrever ilegítimo! A mãe vai para o estrangeiro e lá as
vossas histórias de filhos ilegítimos não fazem sentido!
Este salvo-conduto para Souad e para a criança não é um passaporte, mas
apenas uma autorização para sair do território palestiniano com destino a
um país estrangeiro. Souad nunca mais voltará a este território. O que
significa que, virtualmente, ela deixará de ter existência no seu país,
eliminada do mapa, a jovem queimada. Um fantasma.
- Passe-me dois salvo-condutos, um para a mãe e outro para a criança.
- E onde é que está a criança?
- Vou buscá-la.
O tempo arrasta-se, mas ao fim de uma hora a administração israelita dá-
me luz verde. E no dia seguinte vou ter com os pais, desta vez sozinha,
como uma adulta. Sobem para o carro em silêncio, como duas máscaras, e
eis-nos em Jerusalém, no serviço de vistos. Um território inimigo para
aquela gente, onde por hábito são tratados como menos do que nada.
Aguardo, sentada ao lado deles. Para os israelitas, sou de algum modo uma
garantia de que aquelas pessoas não vêm para ali com uma bomba. Conhecem-
me muito bem desde que trabalho nos meios palestinianos e israelitas. De
súbito, a funcionária que redige os papéis faz-me sinal para me
aproximar.
- De acordo com a certidão de nascimento, esta rapariga tem dezanove
anos! Tu disseste-me dezassete!
- Não vamos discutir por causa disso. De qualquer maneira, tu estás-te
nas tintas se ela tem dezassete ou dezanove anos...
- Porque é que não a trouxeste? Ela também tem de assinar!
- Não a trouxe porque está moribunda num hospital.
- E a criança?
- Ouve, não te preocupes. Passem-me um salvo-conduto para a rapariga na
presença dos pais, para eles assinarem, e em relação ao da criança eu
trago-vos todos os dados e venho cá buscá-lo.
Desde que não seja posta em causa a segurança do território, os
funcionários israelitas são colaborantes. No início da minha actividade
humanitária, sempre que o meu trabalho me levava aos territórios
ocupados,
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Mas de boa saúde, o que é uma proeza da sua parte. Não teve nem
incubadora, nem uma ponta de ternura. Tem apenas vestígios de uma ligeira
icterícia típica dos recém-nascidos. Eu receava que tivesse problemas
graves. A mãe ardera como uma tocha com a criança no ventre e deu-a à luz
em condições de absoluto pesadelo. Está magro, mas sem problemas. Olha-me
com os seus olhos redondos, sem chorar, sereno.
Quem sou eu? O Zorro? Sou estúpida, sabe lá ele quem é o Zorro...
Estou habituada a crianças que sofrem de malnutrição. Temos, nesse
momento, sessenta numa instituição. Porém, levo-o para minha casa, onde
tenho tudo o necessário para o seu caso. Já promovi a deslocação de
crianças atingidas por enfermidades graves para serem operadas na Europa.
Durante a noite, instalo Marouan numa alcofa, enfaixado, vestido,
alimentado. Já tenho os vistos. Tenho tudo. Edmond Kaiser espera-nos em
Lausanne, com destino ao CHU, sector de queimados graves.
Amanhã, partimos. Transporte da mãe numa maca para apanharmos o avião em
Telavive. Souad é dócil como uma rapariguinha. Sofre terrivelmente, mas
quando lhe pergunto:
- Como é que isso vai? Não tens muitas dores? Ela responde simplesmente:
- Sim, tenho dores. E é tudo.
- Se eu te virar um pouco, ficas melhor?
- Sim, fico melhor. Obrigada.
Sempre «obrigada». Obrigada pela cadeira de rodas no aeroporto, uma peça
que nunca tinha visto na vida. Obrigada pelo café com uma palhinha.
Obrigada por a instalar num canto, o tempo necessário para validar os
bilhetes. Como seguro o bebé, o que me causa algum embaraço nas
formalidades, sempre demoradas, digo a Souad:
- Escuta, vou colocar o bebé ao teu colo, não te mexas... Lança-me um
olhar levemente assustado. As queimaduras não
lhe permitem segurá-lo nos braços. Apenas consegue aproximá-los de ambos
os lados do corpo do bebé, rígida e angustiada. Esboça um gesto de receio
quando lhe confio a criança. É duro para ela.
- Fica assim. Volto já.
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Levo comigo uma espécie de pequena selvagem iletrada, que não pára de
descobrir coisas talvez aterradoras para ela. Também sei que as dores
estão muito longe de chegar ao fim. Será preciso muito tempo até que esta
sobrevivência volte a ser uma vida suportável. Nem sequer sei se a
poderão operar e se ainda será possível fazer enxertos. Depois, será a
integração no mundo ocidental, a aprendizagem de uma língua e tudo o mais
que se seguirá. Sempre que «resgatamos» uma vítima, sabemos, como diz
Edmond Kaiser, que é uma responsabilidade que assumimos para o resto da
vida.
A cabeça de Souad está ao lado da vigia. Não acredito que, no seu estado,
seja capaz de pensar em tudo o que a aguarda. Espera, sem saber
exactamente o quê.
- Estás a ver aquilo? Chamam-se nuvens. Dorme. Alguns passageiros
queixam-se do cheiro, apesar das cortinas corridas à volta. Desde o dia
da minha primeira visita a Souad, naquela sala de desterro e de morte,
passaram dois meses. Cada centímetro de pele do busto e dos braços está
decomposta numa vasta chaga purulenta. Bem podem os passageiros apertar o
nariz e dirigir à hospedeira caretas enojadas que eu não ligo. Trago
comigo uma mulher queimada e o seu bebé, e um dia irão saber porquê.
Saberão também que há outras, que já morreram ou vão morrer, em todos os
países onde a lei dos homens instituiu o crime de honra. Na Cisjordânia,
mas também na Jordânia, na Turquia, no Irão, no Iraque, no Iémen, na
índia, no Paquistão e mesmo em Israel, e até na Europa. Ficarão a saber
que as raras sobreviventes são obrigadas a permanecer escondidas o resto
da vida, para que os seus assassinos não as encontrem não importa onde,
por esse mundo fora. Porque ainda conseguem fazê-lo. Ficarão a saber que
a maior parte das associações humanitárias não as tomam a seu cargo
porque essas mulheres constituem casos sociais individuais, «culturais»!
E nalguns países as leis protegem os seus assassinos. O caso destas
mulheres não faz parte das grandes campanhas contra a fome e a guerra, a
ajuda aos refugiados, ou as grandes epidemias. Posso compreendê-lo e
aceitá-lo. A cada um a sua função neste triste estaleiro mundial. Mas a
experiência que acabo de viver revela a dificuldade e o tempo que é
preciso para uma pessoa se integrar discretamente num país, identificar
as sobreviventes dos crimes de honra e ajudá-las,
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A SUÍÇA
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- Mas olha, tem as pernas à mostra, não é normal deixar ver as pernas.
- Claro que é normal. Ela vestiu uma bata para trabalhar.
- E os olhos? É grave pintar os olhos?
- Não, aqui as mulheres pintam-se, saem, têm o direito de ter um
namorado. No teu país não. Aqui, não estás na tua terra, estás na Suíça.
Eu não conseguia entender, meter aquilo na minha cabeça. Acho que devo
ter dado cabo da paciência a Edmond Kaiser a fazer-lhe sempre as mesmas
perguntas. Da primeira vez, disse: - Nunca mais volto a ver aquela
rapariga. Vai morrer.
Mas no dia seguinte vi que continuava ali, e fiquei contente por ela.
Interiormente, pensava: «Graças a Deus que está viva. Usa a mesma bata
branca, vêem-se-lhe as pernas, portanto eles têm razão, ninguém morre por
causa disso.» Pensava que em todos os países era como no meu. Se uma
rapariga for vista a falar com um homem, morre.
Também me chocava a maneira como aquelas raparigas andavam. Sorriam,
satisfeitas e caminhavam como os homens... além disso viam-se muitas
louras.
- Porque é que são louras? Porque é que não são morenas como eu? Porque
há menos sol? Quando estiver mais calor, vão ficar escuras e com os
cabelos frisados? Oh! Aquela usa mangas curtas. Olha, olha para ali, duas
mulheres a rirem! Na nossa terra, uma mulher nunca se ri com outra, uma
mulher nunca usa mangas curtas... E têm sapatos!
- E ainda não viste nada!
Lembro-me da primeira vez que visitei a cidade, sozinha com Edmond
Kaiser. Jacqueline voltara a partir em missão. Vi mulheres sentadas em
restaurantes, a fumarem um cigarro, com os braços nus e uma bela pele
branca. Só via as louras de pele branca, que me fascinavam. Perguntava-me
de onde viriam. Na nossa terra, as louras são tão raras que os homens
apreciam-nas muito, o que me levava a pensar que deviam estar em perigo
por causa disso. Edmond Kaiser deu-me a minha primeira lição de
geografia.
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e estava coberta de pensos. Não podia ler porque não sabia. Não podia
falar, porque as enfermeiras não me entendiam. Jacqueline tinha-lhes
deixado algumas fichas com palavras em francês e a transcrição fonética
do árabe. Comer, dormir, casa de banho, mal, mais ou menos, tudo o que
lhes pudesse ser útil para cuidarem de mim. Quando estava de pé, ficava
muitas vezes ao pé da janela. Olhava a cidade, as luzes e a montanha lá
em cima. Era magnífica. Contemplava aquele espectáculo de boca aberta.
Tinha vontade de sair e de ir passear, nunca tinha visto tal coisa, tudo
o que via era tão belo!
Ia todas as manhãs ver Marouan. Era obrigada a sair do edifício para ir à
maternidade. Tinha frio. Vestia apenas a camisa do hospital, abotoada nas
costas, um roupão do hospital e sapatos do hospital. Juntamente com a
escova de dentes do hospital, eram os meus únicos pertences. Caminhava
muito depressa, como na minha terra, de cabeça baixa. A enfermeira dizia-
me para andar devagar, mas eu não queria. Queria armar em orgulhosa lá
fora pelo facto de estar viva, apesar de ainda ter medo. As enfermeiras e
os médicos não conseguiam nada contra isso. Eu tinha a impressão de ser a
única mulher queimada no mundo. Sentia-me humilhada, culpada, não
conseguia desembaraçar-me desse sentimento. Às vezes, sozinha, deitada na
minha cama, pensava que devia ter morrido porque o merecia. Quando
Jacqueline me transportou do hospital até ao avião para Lausanne, lembro-
me de ter tido a impressão de ser um saco do lixo. Devia atirar-me para
um canto e deixar-me apodrecer. Essa ideia, a vergonha de ser aquilo que
era, ocorria-me com regularidade.
Foi então que comecei a esquecer a minha vida anterior, queria ser outra
pessoa naquele país. Queria ser como aquelas mulheres livres, integrar-
me, aprender a viver ali o mais rapidamente possível. Durante anos,
enterrei as recordações. A minha aldeia e a minha família tinham de
deixar de existir na minha cabeça. Mas havia Marouan e as enfermeiras que
me ensinavam a dar-lhe o biberão, a mudar-lhe as fraldas, a ser mãe
durante alguns minutos por dia na medida das minhas capacidades físicas.
E que o meu filho me perdoe, mas custava-me fazer o que me pediam.
Inconscientemente, eu era culpada por ser a mãe dele. Quem podia
compreender isso? Sentia-me incapaz de o assumir,
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durante muito tempo. Quando queria chorar, escondia-me... um velho
hábito. Sorrir era o símbolo de uma outra vida. Aqui as pessoas eram
sorridentes, mesmo os homens. Queria sorrir o mais possível. Dizer
obrigado, era o mínimo que podia fazer. Nunca ninguém me tinha dito
obrigado antes. Nem o meu pai, nem o meu irmão, nem ninguém quando eu
trabalhava como uma escrava. Estava acostumada à pancada, mas não aos
agradecimentos.
Achava, por isso, que «obrigada» era uma extrema delicadeza, um grande
respeito. Dava-me prazer dizer, porque também me diziam. Obrigada pelo
penso, pela pastilha para dormir, pelo creme para não esfolar a pele,
pela refeição e, sobretudo, pelo chocolate. Devorei tabletes inteiras de
chocolate... É tão bom e tão reconfortante.
Portanto, agradeci a Edmond Kaiser as calças, os sapatos e o belo
pullover.
- Aqui, és uma mulher livre, Souad, podes fazer o que te apetecer, mas
aconselho-te a vestir com simplicidade, com roupas confortáveis e que não
te irritem a pele, e que não chames as atenções.
Tinha razão. Nesse país que me acolhia com tanta bondade, eu continuava a
ser uma jovem pastora da Cisjordânia, inculta, sem educação e sem
família, que sonhava com um dente de ouro!
"; Abandonei o hospital para ser internada num centro de acolhimento, no
final do ano da minha chegada.
Os enxertos sucediam-se. Voltava ao hospital, onde sofria. As coisas
continuavam a não estar muito bem na minha cabeça, mas ia sobrevivendo.
Não podia pedir mais. Ia aprendendo francês como podia, algumas
expressões, fragmentos de frases que repetia como um papagaio, sem sequer
saber o que era um papagaio!
Jacqueline explicou-me, mais tarde, que na altura em que ela me trouxe
para a Europa, as hospitalizações repetidas não me permitiam seguir aulas
regulares de francês. Era mais importante salvar-me a pele do que mandar-
me para a escola. Aliás, eu não pensava nisso. Na minha aldeia, havia
duas raparigas que apanhavam o autocarro para irem à escola à cidade e
faziam troça delas.
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Eu também troçava delas, persuadida tal como as minhas irmãs de que nunca
arranjariam marido por irem à escola!
Secretamente, a minha maior vergonha era não ter marido. Conservava a
mentalidade da minha aldeia, era mais forte do que eu. E pensava para
comigo que não havia nenhum homem que me quisesse. Ora, para uma mulher
do meu país, viver sem homem é um castigo para a vida inteira.
Na casa que me tinha acolhido e a Marouan, todos pensavam que eu acabaria
por me habituar a essa dupla punição de ser feia e não ser desejada por
um homem. Estavam também convencidos de que iria ocupar-me do meu filho
quando tivesse possibilidade de trabalhar para o educar. Apenas
Jacqueline percebeu que eu era totalmente incapaz de o fazer. Em primeiro
lugar, porque seriam precisos anos para voltar a ser um ser humano e
aceitar-me tal como era. E durante todos esses anos a criança ia crescer
mal. Depois, porque, apesar dos meus vinte anos, eu continuava a ser uma
criança. Não sabia nada da vida, das responsabilidades, da independência.
Foi nessa altura que abandonei a Suíça. Os tratamentos tinham chegado ao
fim, podia ir viver para outro lado. Jacqueline encontrou uma família de
acolhimento, algures na Europa. Pais adoptivos de quem gostei muito e a
quem chamava papá e mamã, como Marouan. Esse casal recebia muitas
crianças enviadas pela Terra dos Homens. Umas ficavam muito tempo, outras
eram adoptadas. A família era sempre numerosa. Tínhamos de tratar dos
mais pequenos e eu ajudava dentro das minhas possibilidades. Um dia, a
«mamã» disse-me que me ocupava demasiado de Marouan e pouco dos outros.
Esta reflexão surpreendeu-me porque não tinha a sensação de me dedicar ao
meu filho. Estava demasiado confusa para o fazer. Nos meus únicos
momentos de solidão, passava-os a passear ao longo de uma ribeira com
Marouan no carrinho de bebé. Sentia necessidade de caminhar, de estar lá
fora. Não sabia por que razão tinha tanto desejo de andar sozinha no
campo, talvez pelo hábito de andar com os rebanhos. Como dantes, levava
água e qualquer coisa para comer e empurrava o carrinho, caminhando
depressa, direita e orgulhosa. Era dúplice, caminhava depressa como na
minha terra e direita e orgulhosa como na Europa.
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MAROUAN
Marouan tinha cinco anos quando assinei os papéis que autorizavam a nossa
família de acolhimento a adoptá-lo. Entretanto eu tinha feito alguns
progressos na língua deles - continuava a não saber ler nem escrever, mas
sabia o que fazia. Não se tratava de um abandono. Os meus novos pais iam
educar o rapazinho o melhor possível. Ao passar a ser filho deles, ia
poder beneficiar de uma verdadeira educação e usar um nome que o poria a
salvo de todo o meu passado. Eu era totalmente incapaz de lhe dar
equilíbrio, de lhe dispensar cuidados, uma escolaridade normal. Muitos
anos mais tarde, sinto-me culpada por ter feito essa escolha. Mas esses
anos permitiram-me reconstruir uma vida em que já não acreditava, embora
a esperasse instintivamente. Não sei explicar tudo isto muito bem sem
desatar em pranto. Durante todos estes anos quis convencer-me que não
sofria com essa separação. Mas não é possível esquecer um filho,
sobretudo aquele filho.
Eu sabia que ele era feliz e ele sabia da minha existência. Aos cinco
anos não podia ignorar que tinha uma mãe verdadeira, pois tínhamos vivido
juntos em casa dos seus pais adoptivos. Não sabia como é que lhe tinham
explicado a minha partida, mas a família recebia inúmeras crianças vindas
do mundo inteiro e recordo-me que, a dada altura, éramos dezoito à volta
da mesa. Na sua maior parte, eram crianças perdidas. Todos nós os
tratávamos por «papá» e «mamã». Essas pessoas formidáveis recebiam da
Terra dos Homens o dinheiro necessário para o acolhimento provisório de
algumas crianças e, quando se iam embora, era sempre doloroso.
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Comecei por trabalhar numa quinta, mas depois, graças ao «papá», entrei
para uma fábrica que fabricava peças de precisão. Era um trabalho limpo e
ganhava bem. Verificava circuitos e peças de mecanismo. Havia outro
sector interessante nessa fábrica, mas era necessário verificar as peças
no computador e não me sentia capaz. Recusei a formação nesse posto,
alegando que preferia trabalhar de pé na cadeia de montagem, em vez de
permanecer sentada. Um dia, a chefe de equipa chamou-me.
- Souad, venha comigo, se faz favor.
- Sim, minha senhora.
- Sente-se ali, ao meu lado, pegue nesse rato, que eu vou mostrar-lhe!
- Mas eu nunca fiz isso, não sei. Prefiro a cadeia...
- E se um dia deixar de haver trabalho nas cadeias de montagem? O que é
que se faz? Nada? A Souad deixa de trabalhar?
Não me atrevia a dizer-lhe que não. Apesar de ter medo. Sempre que tinha
de aprender qualquer coisa nova, ficava com as mãos húmidas e as pernas
trémulas. Era o pânico total, mas apertava os dentes. Cada dia, cada hora
da minha vida, tinha de aprender, sem qualquer bagagem, incapaz de ler e
de escrever como os outros. Analfabeta sem sequer conhecer essa palavra!
Mas desejava tanto trabalhar que se aquela mulher me tivesse dito para
enfiar a cabeça num balde e não respirar, tê-lo-ia feito.
Aprendi portanto a manipular um rato e a compreender um ecrã de
computador. Ao fim de alguns dias aquilo funcionava. Mostravam-se todos
muito satisfeitos comigo. Em três anos nunca faltei um minuto, o meu
lugar estava sempre impecável - limpava-o antes de sair - e chegava
sempre a horas, antes dos outros. Tinham-me «preparado» na infância, à
custa de paulada, para um trabalho intenso e para a obediência, para a
pontualidade e a limpeza. Era uma segunda natureza, a única que me
restava de uma vida anterior. Costumava pensar para comigo. «Nunca se
sabe, se amanhã vier outra pessoa, não quero que encontre o lugar
sujo...»
Tornei-me inclusivamente um tanto ou quanto maníaca da ordem e da
limpeza. Quando se tira um objecto do seu lugar deve ser colocado de novo
no mesmo sítio, deve-se tomar duche todos os dias, escovar os dentes três
vezes ao dia, lavar o cabelo duas vezes por semana, escovar as unhas,
mudar de roupa interior todos os dias...
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procuro a pureza em tudo, é muito importante para mim, sem que o saiba
explicar.
Gosto de escolher a minha roupa, mas neste caso sei porquê: porque a
escolha sempre me foi interdita. Gosto do vermelho, por exemplo, porque a
minha mãe costumava dizer: «Tens aqui o teu vestido, veste-o.» Era feio e
cinzento, mas, mesmo que não gostasse dele, vestia-o.
Portanto, gosto do vermelho, do verde, do azul, do amarelo, do preto, do
castanho, de todas as cores que me eram interditas. Quanto ao modelo, não
tenho alternativa. Gola alta ou rente ao pescoço, blusa fechada, calças.
E os cabelos a tapar as orelhas. Não posso mostrar nada.
Às vezes, ia sentar-me numa esplanada de café, coberta de roupa tanto de
Verão como de Inverno e ficava a observar as pessoas que passavam. As
mulheres de mini-saia ou decotadas, de braços e pernas expostos ao olhar
dos homens. Eu espiava nesses olhares algum que pudesse pousar em mim e
não via nenhum. Então voltava para casa. Até ao dia em que avistei da
janela do meu quarto um carro e um homem lá dentro, de que só via as mãos
e os joelhos.
Apaixonei-me. Era o único homem na terra inteira. Só o via a ele, por
causa daquele carro, das duas mãos pousadas sobre o volante.
Não me apaixonei por ele por ser belo, gentil, terno, porque não me batia
ou por me sentir em segurança ao pé dele. Apaixonei-me porque ele guiava.
Bastava ver o carro estacionar diante do prédio para sentir o coração a
bater. O estar ali, o simples facto de o ver entrar ou sair do carro
quando ia para o trabalho ou quando voltava... fazia-me chorar! De manhã,
tinha medo que ele não voltasse à noite.
Não tive consciência de que era a mesma coisa que da primeira vez. Foi
preciso que alguém me chamasse a atenção, mais tarde, para eu perceber.
Um carro e um homem que parte e regressa, debaixo da minha janela, que
amo à primeira vista sem lho dizer, que espio com a angústia de não
voltar a ver o carro chegar. Era simples. Na altura, não consegui ver
mais longe. Por vezes, tentava esforçar a memória,
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saber o porquê das coisas da minha vida, mas desistia muito depressa, era
demasiado complicado para mim.
António tinha um carro vermelho. Eu ficava à janela até o ver desaparecer
de vista... E voltava a fechar a janela.
Conheci-o, falei com ele, soube que tinha uma namorada que eu conhecia, e
aguardei. Começámos por ser amigos. Passaram pelo menos dois anos e meio
ou três até essa amizade se transformar noutra coisa. Eu estava
apaixonada, mas ele... não sabia o que pensava de mim. Não ousava
perguntar-lhe, mas fazia todos os possíveis para que ele me amasse, para
o conservar. Queria dar-lhe tudo, servi-lo, acarinhá-lo, alimentá-lo,
fazer tudo para o ter comigo!
Era a única maneira. Não via outra. Como poderia seduzi-lo? Com os meus
belos olhos? Com as minhas pernas bonitas? Com o meu belo decote?
Primeiro, vivemos juntos, sem nos casarmos, e precisei de algum tempo
para me sentir à vontade. Não acendia a luz para me despir, mas apenas
velas. De manhã, fechava-me na casa de banho o mais depressa possível e
só aparecia enfiada num roupão, da cabeça aos pés. Isto arrastou-se
durante muito tempo. Ainda hoje me incomoda. Sei que as minhas cicatrizes
não são bonitas.
Começámos por nos mudar para um estúdio na cidade. Trabalhávamos os dois.
Ele ganhava honestamente a vida e eu também. Esperava que me pedisse em
casamento, mas ele não abordava o assunto. Sonhava com um anel de
noivado, com uma cerimónia e, por isso, fiz pelo António o que a minha
mãe fazia pelo meu pai, o que todas as mulheres da minha aldeia faziam
pelo marido. Levantava-me às cinco da manhã especialmente por causa dele,
para lhe lavar os pés e o cabelo. Para lhe preparar a roupa, bem passada.
Para o ver partir para o trabalho com um último aceno de mão, um beijo
atirado da janela...
E esperava-o, à noite, com a refeição pronta, até à meia-noite e meia, ou
mesmo à uma da manhã se necessário, para comer com ele. Ainda que tivesse
fome, esperava por ele como vira fazer às mulheres da nossa terra. Com a
diferença que tinha sido eu a escolher aquele homem, que ninguém mo tinha
imposto e que o amava. Tudo isso devia ser bastante surpreendente para
ele. Um homem ocidental não está habituado. Ao princípio, disse-me:
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e não a minha. Tal como o sorriso é uma forma de oferecer felicidade aos
outros, mas não necessariamente a minha.
Esse casamento foi a alegria da minha vida. A única que conheci antes
dessa foi o meu primeiro encontro com o pai de Marouan. Mas já não
pensava nisso. Estava esquecido, enterrado noutra cabeça que não a minha.
Quando fiquei grávida, senti-me no paraíso.
Laetitia era verdadeiramente um filho desejado. Estava sempre a falar com
ela no meu ventre, sentia-me orgulhosa ao exibi-lo e usava roupas justas
e cingidas. Queria que toda a gente soubesse que estava à espera de um
filho, que toda a gente visse o meu anel e a minha aliança. Toda a minha
atitude de então era o inverso daquilo que vivera da primeira vez, mas
nem tinha consciência. Tinha sido obrigada a esconder-me, a mentir e a
suplicar, a pedir para casar para que do meu ventre não nascesse uma
criança para desonra da minha família. E estava viva, na rua, caminhava
pelos passeios com o meu ventre novo, com um filho novo. Julgava ter
apagado tudo com aquela felicidade. Acreditava nisso porque o desejava
com todas as minhas forças.
Num recanto da minha cabeça, Marouan estava escondido, muito pequeno. Um
dia, talvez fosse capaz de o enfrentar, de lhe contar, mas ainda não
tinha acabado de renascer.
Laetitia chegou como uma flor. Apenas o tempo de dizer ao médico:
- Acho que preciso de ir à casa de banho...
- Não, é o bebé que está a chegar...
Uma flor pequenina, de cabelos negros e tez mate. Deslizou para fora do
meu ventre com uma facilidade espantosa. Ouvi dizer à minha volta:
- Para um primeiro filho, é extraordinário, é raro dar à luz com tanta
facilidade...
Amamentei-a até aos sete meses e meio, e foi um bebé muito fácil. Comia
tudo, dormia bem, nunca teve problemas de saúde.
Dois anos depois, quis ter outro filho. Rapaz ou rapariga, não importava.
Mas o meu desejo era tal que não engravidava e o médico aconselhou-nos a
ir de férias, António e eu, e a não pensar mais nisso. No entanto, eu
estava à espreita e a cada decepção,
148
uma vez por mês, desatava em pranto. Até que, finalmente, se perfila no
horizonte outra menina.
Ficámos os dois loucos de alegria quando nasceu Nadia. ,
A
Laetitia era ainda muito pequena quando me perguntou, acariciando-me a
mão:
- O que é isto, mamã? Dói-dói? É o quê?
- Sim, a mamã tem um dói-dói, mas explico-te quando fores mais crescida.
Nunca mais voltou a falar nisso. Aos poucos, fui arregaçando as mangas
diante dela, mostrava-me um pouco mais. Não queria impressioná-la, não
queria chocá-la, e por isso ia avançando aos poucos, progressivamente.
Tocou-me no braço, devia ter uns cinco anos.
- O que é, mamã?
- A mamã queimou-se.
,- Queimaste-te com quê?
- Foi uma pessoa.
- É muito má!
- Sim, é muito má.
- O papá pode fazer-lhe o que ele te fez a ti?
- Não, o teu papá não pode fazer o que ele fez à mamã, porque foi lá
longe, no país onde nasci, e aconteceu há muito tempo. A mamã há-de
explicar-te quando tu fores ainda mais crescida.
- Mas com que é que te queimaram?
- Sabes, nesse país, não existem máquinas de lavar como aqui, e por isso
a mamã ia buscar água e acendia uma fogueira...
- Como é que fazias uma fogueira?
- Lembras-te quando fomos com o papá buscar lenha à floresta e acendemos
o lume para grelhar as salsichas? A mamã fazia o mesmo. Havia um sítio
para acender o lume para aquecer a água. A mamã estava a lavar a roupa,
chegou um senhor, pegou num produto muito mau, que queima tudo, até pode
queimar uma casa inteira, despejou esse produto em cima da cabeça da mamã
e acendeu um fósforo. Foi assim que a mamã ficou queimada.
- Ele é mau! Detesto-o! Vou matá-lo!
149
150
Depois foi a vez de Nadia. Mais ou menos na mesma idade. Mas reagiu de
modo muito diferente. Não teve pesadelos, não tinha medos por minha
causa, embora não estivesse bem. Percebia que guardava tudo para si.
Estávamos as duas sentadas e ela suspirava.
- Por que estás a suspirar, minha querida?
- Não sei, suspiro.
- Coração que suspira não tem tudo a que aspira. O que é que queres dizer
à mamã e não te atreves a dizer?
- As tuas orelhas são pequenas! Tens umas orelhas pequenas porque comias
pouco?
- Não, querida. A mamã tem orelhas pequenas porque foi queimada.
Expliquei a Nadia da mesma maneira. Queria que as minhas filhas ouvissem
as mesmas coisas, as mesmas palavras. Por isso, usei a mesma linguagem, a
mesma verdade com Nadia.
Fê-la sofrer. Nadia não disse, como a irmã, que queria matar quem tinha
feito aquilo, pediu para tocar. Eu tinha brincos, que uso com frequência
para dissimular o que me resta das orelhas.
- Podes tocar, mas não puxes os brincos porque me faz doer. Tocou ao de
leve nas minhas orelhas e foi para o quarto, fechando a porta.
Para elas, o mais difícil de suportar devia ser a escola. Estavam a
crescer e António nem sempre as podia ir buscar. Eu imaginava as
perguntas das outras crianças. Porque é que a tua mamã é assim? O que é
que tem a tua mamã? Porque é que ela usa sempre um pullover no Verão?
Porque é que não tem orelhas?
A etapa seguinte de explicações foi a mais dura. Simplifiquei-a, sem
falar de Marouan. Menti. Tinha conhecido um senhor de quem gostava e que
gostava de mim, mas os meus pais não autorizavam. Tinham decidido que
devia morrer queimada. Era um costume do meu país. Mas Jacqueline, que
vinha muitas vezes a nossa casa visitar-nos, tinha-me trazido para a
Europa para me curarem.
Laetitia era sempre mais violenta e Nadia ficava calada, silenciosa.
Laetitia tinha uns doze anos quando me disse que queria lá ir para os
matar a todos. Quase as mesmas palavras do pai, quando lhe contei a minha
história e o nascimento de Marouan. «Espero que estoirem todos por te
terem feito isso!»
151
Voltei a ter pesadelos. Estava deitada, a dormir, e a minha mãe vinha com
uma faca brilhante na mão. Brandia a lâmina por cima da minha cabeça e
dizia: «Vou-te matar com esta faca!» E a faca brilha como uma luz... A
minha mãe é real, está realmente ali, presente por cima da minha cabeça.
Acordo, empapada em suor, aterrorizada.
Esse pesadelo repetiu-se com muita frequência. Despertava sempre no
momento em que a lâmina brilhava com mais intensidade. O mais
insuportável era rever a minha mãe. Mais do que a morte, mais do que o
fogo, é aquele rosto que me obceca. Ela quis matar-me, matou os seus
bebés, é capaz de tudo, e é a minha mãe! Saí da barriga dela!
Tenho tanto medo de me parecer com ela que, um dia, decidi submeter-me a
uma nova operação, mas desta vez estética. Mais uma, menos uma... Esta ia
libertar-me de uma semelhança física que já não conseguia suportar quando
me via ao espelho. Uma ligeira curvatura entre as sobrancelhas, na base
do nariz, igual à dela. Já não a tenho e acho que fico mais bonita. No
entanto, o pesadelo continuava a perseguir-me. E o médico não podia fazer
nada. Talvez devesse ter consultado um psiquiatra, mas essa ideia nunca
me tinha ocorrido.
Certo dia, fui consultar uma curandeira para lhe explicar o meu caso.
Deu-me uma pequena faca, minúscula, e disse-me: «Meta-a debaixo da sua
almofada, com a lâmina recolhida, e nunca mais voltará a ter esse
pesadelo.»
Fiz o que ela disse e a a lâmina nunca mais voltou a aterrorizar-me
durante o sono.
Infelizmente, continuo a pensar na minha mãe.
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Gostava muito de ter aprendido a escrever. Sei ler, mas apenas as letras
impressas. Não compreendo uma letra manuscrita porque só aprendi a ler o
jornal. Mas acontece-me com frequência tropeçar numa palavra. Então,
pergunto às minhas filhas.
Ao princípio, Edmond Kaiser e Jacqueline tentaram dar-me algumas noções.
Queria aprender para ser como as outras. Por volta dos vinte e quatro
anos, quando comecei a trabalhar, tive a possibilidade de frequentar umas
aulas durante três meses. Estava muito contente. Era difícil, porque
pagava muito mais do que o meu salário e, então, António disse-me:
- Não te preocupes, eu posso ajudar-te.
- Não. Quero pagar as minhas aulas, sozinha - respondi.
Queria consegui-lo eu mesma, com o meu próprio dinheiro. Parei ao fim de
três meses, mas mesmo assim ajudou-me bastante. Ensinaram-me a segurar
num lápis como a uma criança que vai para o infantário e a escrever o meu
nome. Não sabia fazer os a nem os s, nada. Assim, aprendi o alfabeto,
letra a letra, ao mesmo tempo que a língua. Ao cabo desses três meses já
conseguia decifrar algumas palavras no jornal.
Comecei por ler o horóscopo, porque alguém me tinha dito que eu era
Balança! Todos os dias decifrava o meu futuro. Aquilo que entendia nem
sempre era muito claro, mas ao princípio precisava de textos breves e de
frases curtas. Ler um artigo inteiro ficaria para mais tarde. Nos textos
curtos, também havia os obituários.
153
Nunca ninguém os esmiuçou como eu! «É com muita dor que a família X
comunica o falecimento da Senhora X. Paz à sua alma!»
Também lia os pequenos anúncios de casamento, as vendas de carros, mas
não tardei a pô-los de parte porque não me entendia com as abreviaturas!
Quis assinar um jornal diário, muito popular, mas António achava-o
estúpido... Por isso, todos os dias, antes do trabalho, descia à cidade e
começava por beber um café enquanto lia o jornal. Gostava imenso desse
momento. Para mim, era a melhor forma de aprender. E aos poucos, quando
as pessoas à minha volta falavam de um acontecimento qualquer, podia
responder que também estava a par, que tinha lido no jornal. As pessoas
viajam, vão e vêm, falam do mar, de restaurantes, de hotéis, da praia.
Falam do mundo inteiro, mas eu não podia discutir com eles essas coisas.
Agora já posso.
Conheço um pouco da geografia europeia, as grandes capitais e algumas
cidades mais pequenas. Visitei Roma, Veneza e Porto-fino. Em Espanha,
visitei Barcelona com os meus pais adoptivos, mas só lá estive cinco
dias.
Foi nas férias de Verão. Estava muito calor e tinha a impressão de estar
a privar o papá e a mamã da praia, de os obrigar a ficar fechados como
eu. Por isso regressei e eles ficaram. Para mim um fato de banho é uma
coisa difícil de encarar. Teria de estar sozinha na praia, do mesmo modo
que estou sozinha na minha casa de banho.
Conheço muito pouco do mundo. É uma bola redonda, mas nunca me ensinaram
a compreendê-lo. Sei, por exemplo, que os Estados Unidos são a América,
mas ignoro onde fica a América nessa bola redonda. Mesmo a Cisjordânia
não a sei situar.
Experimentei ver nos livros de geografia das minhas filhas, mas não sei
por onde começar para conseguir imaginar todos os países. Não tenho a
noção das distâncias. Se alguém me disser, por exemplo: «Encontramo-nos a
uns quinhentos metros da tua casa», não consigo calcular na minha mente o
que são quinhentos metros. Os meus pontos de referência são visuais, uma
rua ou uma loja que conheço. Portanto, não consigo mesmo imaginá-lo. Vejo
a meteorologia internacional na televisão e tento lembrar-me onde ficam a
Inglaterra, Madrid, Paris e Londres, Beirute e Telavive.
154
Lembro-me de ter trabalhado ao lado de Telavive com o meu pai. Ainda era
pequena, tinha uns dez anos. Tinham-nos levado para ali para a colheita
de couves-flor. Era para um vizinho que nos tinha ajudado a ceifar o
trigo. Havia uma barreira que nos protegia dos judeus, estávamos quase na
terra deles. Eu pensava que bastava transpor aquela barreira para se ser
judeu e tinha muito medo. Tomei consciência de que as memórias que me
restam da infância estão todas associadas ao medo.
Tinham-me ensinado que não nos devíamos aproximar dos judeus, porque eram
todos halouf, «porcos». Nem sequer devíamos olhar para eles. Para nós,
era algo horrível estarmos ali tão perto deles. Comem de maneira
diferente, vivem de maneira diferente. Não os podemos comparar connosco,
é como o dia e a noite, como a lã e a seda. Foi assim que aprendi as
coisas. A lã são os judeus e a seda os muçulmanos. Não percebo por que
razão me meteram essas coisas na cabeça, mas era assim que pensávamos.
Quando víamos um judeu na rua - aliás, eles quase nunca apareciam - havia
logo desordens com pedras e paus. Mas, sobretudo, não nos devíamos
aproximar nem falar com ele senão também nos tornávamos judeus! Tenho que
perceber de uma vez por todas que são tolices. Aquela gente não me fez
mal nenhum! No meu bairro, por exemplo, há um talho judeu muito bonito.
Lá, a carne é melhor, já experimentei, mas não me atrevo a entrar lá
sozinha para comprar. Por isso, vou ao tunisino só porque é tunisino.
Porquê? Não sei. Penso muitas vezes: «Souad, tu vais entrar ali e comprar
aquela bela carne, é igual às outras!»
Sei que um dia hei-de conseguir, mas ainda tenho medo. Na minha terra,
ouvi dizer demasiadas vezes que não devíamos ter qualquer espécie de
contacto com eles, que devíamos ignorá-los como se não existissem sobre a
terra. Era mais do que ódio. Era o pior inimigo dos muçulmanos.
Nasci muçulmana e continuo a acreditar em Deus, continuo muçulmana, mas
hoje pouco me resta dos costumes da minha aldeia. E não gosto da guerra,
detesto a violência. Se alguém me censura alguma coisa, se me acusam por
exemplo de renegar a religião muçulmana porque digo mal dos homens do meu
país - o que já me aconteceu -, em vez de agredir, falo, discuto,
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156
- Olha para mim, donde venho e como sou agora. Fui queimada, como é
possível que tu me queiras, a mim, quando há tantas outras mulheres?
Não tenho confiança em mim e, às vezes, penso:
- Bolas! E se ele arranjar outra mulher, o que é que eu faço? Não deixa
de ser estranho. Quando falo com ele ao telefone,
faço sempre a mesma pergunta: «Onde estás, querido?» E quando me responde
que está em casa, sinto um imenso alívio. Tenho sempre esse leve receio
dentro de mim. O medo do abandono, do homem que não volta, por quem
espero sozinha e angustiada, como esperei pelo pai de Marouan.
Nestes últimos tempos, sonhei muitas vezes que António estava com uma
mulher.
Era mais um pesadelo, que começou dois dias após o nascimento de Nadia, a
mais nova. António tinha outra mulher. Caminhavam juntos de braço dado. E
eu dizia à minha filha Laetitia: «Vai depressa à procura do papá!» Eu não
me atrevia a ir. A minha filha puxava pelo casaco do pai: «Não, papá! Não
te vás embora com ela! Vem!» Era preciso trazê-lo de volta para mim e
puxava pelo pai tanto quanto era capaz! Este pesadelo não tem fim. Nunca
sei se António vai voltar ou não. Da última vez acordei por volta das
três e meia da manhã e não o vi. Levantei-me, não estava na sua poltrona
e a televisão estava desligada. Precipitei-me para a janela para ver se o
carro estava lá, antes de reparar que havia luz no seu escritório e que
estava a trabalhar nas contas da empresa.
Gostava tanto de ter paz, de não ter mais pesadelos! Porém, os meus
sentimentos nunca são tranquilos: emoção, angústia, incerteza, ciúme,
inquietude permanente toda a vida. Há algo que se quebrou em mim e,
muitas vezes, as pessoas não se apercebem, porque sorrio sempre por
delicadeza, por respeito pelos outros.
Mas quando vejo passar uma mulher bonita, de belos cabelos, com pernas
bonitas e uma pele bonita... Quando chega o Verão, a época da piscina e
dos vestidos ligeiros...
Abro o roupeiro: está cheio de roupa fechada até ao pescoço. Mas continuo
a comprar roupa, vestidos decotados, blusas sem mangas, porque me dá
prazer. Mas só os posso usar com casaco, também abotoado até ao pescoço.
A minha outra pele...
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Tinha quarenta anos. Estávamos mesmo no início do Verão, num mês de Junho
que se anunciava quente. Acabara de fazer as compras nas lojas da parte
de baixo do prédio e via lá fora, pela janela, aquelas mulheres quase
nuas em fato de banho. Uma das minhas vizinhas, uma rapariga bonita,
regressava precisamente da piscina em bikini, descalça, com um páreo
sobre os ombros, ao lado do namorado, de tronco nu. Eu estava sozinha,
fechada, obcecada pela ideia de que não podia fazer o mesmo que eles. Não
era justo, estava tanto calor. Abri o roupeiro e procurei. Espalhei não
sei quantos vestidos em cima da cama até encontrar qualquer coisa
razoável,
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mas continuava a não me sentir bem na minha pele. Mangas curtas por baixo
e outra blusa por cima. Demasiado quente. Não posso vestir uma blusa
demasiado transparente, mesmo fechada até cima. Uma mini-saia também não
por causa das pernas que serviram de reserva aos meus enxertos. Não posso
andar decotada nem de mangas curtas por causa das cicatrizes. Tudo o que
espalhava em cima da cama eram coisas que «não posso pôr». Transpirava e
sentia tudo colado à pele.
Deitei-me e comecei a chorar seriamente. Não aguentava mais ficar fechada
com aquele calor, enquanto as outras estavam lá fora com a pele ao ar
livre. Podia chorar à vontade, estava sozinha, as miúdas ainda estavam na
escola defronte de casa. Depois mirei-me ao espelho do meu quarto e
pensei: «Olha para ti! Que fazes aqui? Não podes ir com a tua família à
praia. Mesmo que vás, vais privá-las de ficarem dentro de água porque têm
de regressar por tua causa. As miúdas estão na escola, mas quando
chegarem querem ir para a piscina. Felizmente para elas, têm esse
direito, mas tu não! Tu nem sequer podes ir ao restaurante da piscina
tomar um café, beber uma limonada, porque tens medo que as outras te
vejam. Estás vestida da cabeça aos pés como se fosse Inverno e estivessem
10 graus à beira da piscina. Devem achar-te louca! Não serves para nada!
Estás aqui, mas é como se não estivesses. És um objecto que fica fechado
em casa.»
Dirigi-me à casa de banho, peguei no frasco de soporíferos que tinha
comprado na farmácia, sem receita, porque tinha dificuldade em dormir.
Demasiadas coisas baralhavam-se na minha cabeça. Despejei o tubo e contei
os comprimidos. Havia dezanove e engoli-os todos.
Passados poucos minutos, senti-me estranha, tudo girava à volta. Abri a
janela, chorava ao olhar, à minha frente, o telhado da escola de Laetitia
e de Nadia. Abri a porta do apartamento enquanto falava sozinha, ouvia-me
como se estivesse no fundo de um poço. Queria subir ao sexto andar,
saltar do terraço, caminhava como uma sonâmbula sem parar de falar.
- Que será delas se eu morrer? Elas gostam de mim. Porque é que as dei à
luz? Para sofrerem? Não chega tudo o que eu sofri? Não quero que elas
sofram, ou abandonamos esta vida as três juntas ou então... Não, elas
precisam de mim. António está a trabalhar.
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Ele diz que está a trabalhar, mas talvez esteja na praia, não sei onde
está... Mas ele sabe muito bem que eu estou em casa, porque está muito
calor. Não posso sair, não me posso vestir como quero. Porque me
aconteceu isto? Que mal fiz eu a Deus? Que é que eu fiz neste mundo?
Chorava no corredor. Já não sabia onde estava. Voltei ao apartamento para
fechar a janela, em seguida dirigi-me à entrada, parei diante das caixas
do correio, à espera das minhas filhas. Depois, já não me lembro de nada,
até ao hospital.
Perdi os sentidos sob o efeito do medicamento. Fizeram-me uma lavagem ao
estômago e o médico manteve-me sob observação. No dia seguinte, dei
comigo no hospital psiquiátrico. Vi uma psiquiatra, uma mulher muito
simpática. Entrou no meu quarto.
- Bom-dia, minha senhora...
- Bom-dia, doutora.
Queria sorrir num gesto de delicadeza, mas desfiz-me em lágrimas.
Obrigou-me a tomar um tranquilizante e sentou-se ao meu lado.
- Conte-me como é que aconteceu, porque é que tomou aqueles comprimidos
todos. Porque é que se quis suicidar?
Expliquei: o sol, a piscina, o fogo, as cicatrizes, o desejo de morrer, e
recomecei a chorar. Não conseguia destrinçar o que se tinha passado na
minha mente. Fora a piscina, aquela estúpida piscina, que tinha
desencadeado tudo. Queria morrer por causa de uma piscina?
- Sabe que é a segunda vez que escapa à morte? Primeiro, foi o seu
cunhado, agora é você. Acho que já chega e se não a tratarmos, pode
repetir-se. Eu estou aqui para a ajudar. Quer que a ajude?
Durante um mês segui uma terapia com ela e, em seguida, enviou-me a outra
psiquiatra, uma vez por semana, todas as quar-tas-feiras. Era a primeira
vez na minha vida desde o fogo que me era dada a palavra diante de alguém
que estava ali apenas para me ouvir falar dos meus pais, da minha
infelicidade, de Marouan... Não era fácil para mim. Às vezes sentia
vontade de acabar com aquilo, mas fazia um esforço porque sabia que no
fim me iria sentir bem.
Ao fim de algum tempo comecei a achá-la demasiado autoritária. Sentia que
me queria impor um caminho a seguir,
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António dizia-me:
- Não é verdade, querida, é um filme, é só um filme. Apagou a televisão.
Apertou-me nos braços para me acalmar,
repetindo:
- Querida, é a televisão. Não é verdade, é cinema!
Eu estava longe, ficara para trás, e corria envolta em chamas. Não dormi
toda a noite. Tenho um tal terror do fogo que a mais pequena chama deixa-
me paralisada. Não afasto os olhos de António quando ele acende um
cigarro, espero que o fósforo se apague ou que a chama do isqueiro se
extinga. Não vejo muita televisão por causa disso. Tenho medo de ver
alguém ou alguma coisa a arder. As minhas filhas são muito atentas. Mal
se apercebem de qualquer coisa que possa chocar-me, cortam a imagem.
Não quero que acendam velas. Em nossa casa é tudo eléctrico. Não quero
ver fogo na cozinha nem em parte nenhuma. Mas um dia alguém brincou com
fósforos à minha frente, a rir, para fazer uma demonstração. Tinha posto
álcool num dos dedos e chegou-lhe lume. A pele não ardia, era uma
brincadeira.
Levantei-me, num acesso de pavor e de furor.
- Vai fazer isso para outro lado! Eu fui queimada. Tu não sabes o que
isso é!
O fogo numa lareira não me assusta, desde que não me aproxime. A água não
me incomoda desde que seja morna. Tenho medo de tudo o que é quente. Do
fogo, da água quente, do forno, das placas, das caçarolas, das máquinas
de café sempre ligadas, da televisão que se pode incendiar, das tomadas
eléctricas mal instaladas, do aspirador, dos cigarros esquecidos, de
tudo... De tudo o que pode advir do fogo. E por fim, as minhas filhas
vivem aterrorizadas por minha causa. Porque uma rapariga de catorze anos
que não pode ligar uma placa eléctrica por minha causa, não é normal.
Quando eu não estou, não quero que se sirvam da panela eléctrica, que
ponham água a ferver para a massa ou para o chá. Tenho de estar ao pé
delas, atenta, com os nervos alerta, para ter a certeza de que eu própria
apago tudo. Não se passa um único dia que eu me vá deitar sem ir ver
antes as placas eléctricas.
Vivo com este medo dia e noite. Sei que estorvo a vida dos outros. Que o
meu marido é paciente, mas que às vezes se cansa de um terror tão
irracional. Que as minhas filhas deviam poder pegar numa caçarola sem eu
me pôr a tremer.
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TESTEMUNHA SOBREVIVENTE
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faz parte do seu mundo. É esta a vida normal para nós, mulheres. Tu és
desancada com pancada, é normal. És queimada, é normal, és estrangulada,
é normal, és maltratada, é normal. Como dizia o meu pai, a vaca e os
carneiros merecem mais consideração do que as mulheres. Se não quisermos
morrer, temos de nos calar, obedecer, humilharmo-nos, casar virgens e ter
filhos rapazes. Se eu não tivesse encontrado um homem no meu caminho,
teria sido essa a minha vida. Os meus filhos seriam como eu e os meus
netos como os meus filhos. Se eu continuasse a viver lá, tornar-me-ia
normal como a minha mãe, que asfixiava as próprias filhas. Talvez tivesse
matado a minha filha. Talvez deixasse que a queimassem. Agora, penso que
é monstruoso! Mas se lá tivesse permanecido, teria feito o mesmo! Quando
estava no hospital, no meu país, à beira da morte, ainda achava que era
normal. Mas, quando vim para a Europa, compreendi, aos vinte cinco anos,
à custa de ouvir o que diziam as pessoas à minha volta, que existem
países onde não se queimam as mulheres e onde as raparigas são tão bem
aceites como os rapazes. Para mim, o mundo estava confinado à minha
aldeia. A minha aldeia era maravilhosa, era o mundo inteiro, até ao
mercado! Para lá do mercado, deixava de ser normal porque as raparigas se
pintavam, usavam vestidos curtos e decotes. Eram elas que não eram
normais. A minha família era! Nós éramos puros como a lã dos carneiros e
os outros, para lá do mercado, eram impuros!
«As raparigas não tinham o direito de ir à escola, porquê? Para não
conhecerem o mundo. O mais importante eram os nossos pais. Devemos fazer
o que eles dizem. O conhecimento, a lei, a educação é unicamente deles
que vêm. Era por isso que não havia escola para nós. Para não apanharmos
o autocarro, para não nos vestirmos de forma diferente, com uma pasta na
mão, para não aprendermos a ler e a escrever, é demasiado inteligente e
não convém a uma rapariga! O meu irmão era o único rapaz no meio das
raparigas, vestia-se como aqui, como na cidade, ia ao barbeiro, à escola,
ao cinema, tinha liberdade para sair, porquê? Porque tinha uma pilinha
entre as pernas! Teve sorte, teve dois rapazes, mas afinal não foi ele
quem teve mais sorte, foram as suas filhas. Essas tiveram a imensa sorte
de não terem nascido!
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«A Fundação Surgir, com Jacqueline, tenta salvar essas raparigas. Mas não
é fácil. Nós estamos ali, de braços cruzados. Eu estou a falar-vos e
vocês escutam-me. Mas elas, as que lá estão, estão a sofrer! É por essa
razão que venho dar o meu testemunho pela Surgir sobre os crimes de
honra, porque continuam a existir!
«Estou viva e de pé graças a Deus, graças a Edmond Kaiser e graças a
Jacqueline. A Surgir significa coragem, trabalhar muito para ajudar essas
raparigas. Admiro-os. Não sei como fazem. Preferia levar comida e roupa
aos refugiados, aos doentes, do que fazer o trabalho deles. Têm que
desconfiar de toda a gente. Pode-se estar a falar com uma mulher de ar
amável que te vai denunciar porque queres ajudar e ela não está de
acordo. Jacqueline chega a um país, é obrigada a comportar-se como eles,
a comer, a andar e a falar como eles. Tem de se fundir nesse mundo para
permanecer anónima!»
- Obrigada, minha senhora!
Ao princípio, sentia-me angustiada, não sabia como devia falar, mas agora
Jacqueline vê-se obrigada a interromper-me!
Falar diante do público, em directo, não me incomodava muito. Mas tive
medo da rádio, por causa dos que me rodeavam, das relações de trabalho,
das minhas filhas, que sabiam, mas que não sabiam tudo. Tinham à volta de
dez e oito anos, tinham companheiras de escola, eu pedia-lhes que fossem
discretas se lhes fizessem perguntas.
- Ah, fixe, gostava muito de ir contigo!
Esta reacção de Laetitia era ao mesmo tempo reconfortante e algo
inquietante. A mamã a falar na rádio, é fixe... Apercebi-me de que elas
não compreendiam o que estava em jogo nesse testemunho e que, à parte as
minhas cicatrizes, não sabiam quase nada da minha vida. Mais cedo ou mais
tarde, quando fossem mais crescidas, teria de lhes contar tudo e isso
punha-me antecipadamente doente.
Era a primeira vez que ia falar para um auditório tão grande.
Através dessa emissão, as minhas filhas ficaram a conhecer um novo lado
da minha história. Depois de ter ouvido o programa, Laetitia teve uma
reacção muito violenta.
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esse mesmo juiz nunca mais poderia andar na rua, nunca mais poderia viver
numa aldeia, teria de fugir de vergonha por ter punido um «herói».
Pergunto-me o que será feito do meu cunhado. Terá ido para a cadeia
apenas alguns dias? A minha mãe falara da polícia, dos aborrecimentos que
o meu irmão e o meu cunhado podiam vir a ter se eu não morresse. Por que
razão a polícia não veio interrogar-me? A vítima era eu, com queimaduras
de terceiro grau!
Conheci raparigas vindas de longe, como eu, há anos. Escondem-nas. Uma
rapariga sem pernas: foi agredida por dois vizinhos que a amarraram e
puseram debaixo de um comboio. Uma outra a quem o pai e o irmão quiseram
massacrar à facada e atiraram para um vazadouro de lixo. Outra ainda que
a mãe e os dois irmãos atiraram pela janela e que ficou paralítica.
E as outras de que não se fala, que foram encontradas demasiado tarde, já
mortas. As que conseguiram fugir mas foram apanhadas no estrangeiro e
mortas.
As que conseguiram fugir a tempo e se escondem, com ou sem filhos,
virgens ou mães.
Não conheci nenhuma mulher queimada como eu porque não sobreviveram. E
continuo a esconder-me, não posso dizer o meu verdadeiro nome, mostrar o
meu rosto. Só posso falar, é a única arma que me resta.
170
JACQUELINE
Hoje e nos próximos anos, o meu papel é continuar a salvar outras Souad.
Será demorado, complicado, árduo e, como sempre, é preciso dinheiro. A
nossa fundação chama-se Surgir, porque é preciso surgir no momento certo
para ajudar essas mulheres a escaparem à morte. Trabalhamos em qualquer
parte do mundo, no Afeganistão, em Marrocos ou no Chade. Em toda a parte
onde possamos intervir com urgência. Uma urgência que avança lentamente!
Anuncia-se que mais de seis mil casos de crimes de honra são recenseados
por ano, mas por detrás desses números escondem-se todos os suicídios,
acidentes, etc, que não são contabilizados...
Nalguns países, para as poderem proteger, metem as mulheres na prisão
logo que elas têm a coragem de se queixar. Algumas estão presas há mais
de quinze anos! Porque as únicas pessoas que as podem tirar de lá são o
pai ou o irmão, ou seja, os que as querem assassinar. Por isso, se um pai
pedir para a filha sair, é evidente que o governador não autoriza! Tanto
quanto sei, houve uma ou duas que, mesmo assim, saíram; foram mortas em
seguida.
Na Jordânia - e é apenas um exemplo - existe uma lei que estipula, tal
como na maior parte dos países, que todo e qualquer homicídio, crime de
direito comum, deve ser punido com vários anos de prisão. Porém, a par
dessa lei, dois breves artigos, 97 e 98, precisam que os juízes serão
indulgentes em relação aos culpados de crimes de honra. A pena varia, em
regra, entre seis meses e dois anos de cadeia. Os condenados, às vezes
considerados heróis,
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O MEU FILHO
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Durante quase um ano, disse que não ao livro, a não ser que pudesse
deixar o meu filho à margem da narrativa. E Jacqueline respeitou a minha
decisão. Era pena, mas compreendia.
Não queria fazer um livro a falar de mim sem falar dele e não conseguia
decidir-me a um frente a frente com Marouan para resolver o problema. A
vida continuava e sentia-me desmoralizar à força de dizer a mim própria:
«Faz! Não, não faças!» Como abordar Marouan? Um belo dia telefono-lhe,
sem mais nem menos, sem o avisar ao fim de tantos anos, para lhe dizer:
«Marouan, podemos conversar?»
Como me devo apresentar? A mamã? Como agir diante dele? Aperto-lhe a mão?
Beijo-o? E se ele já não se lembrar de mim? Tem esse direito, uma vez que
eu própria o «esqueci»...
Jacqueline fez-me reflectir numa coisa que me atormentava ainda mais.
- Como seria se Marouan conhecesse um dia uma das irmãs e ela não
soubesse que são irmãos? Se ela se apaixonasse por ele e o levasse a tua
casa, o que é que fazias?
Nunca tinha pensado nisso. Separavam-nos cerca de vinte quilómetros.
Laetitia ia fazer catorze anos e estava quase na idade de ter os seus
amigos... Depois era Nadia... vinte quilómetros não é nada. O mundo é tão
pequeno! Apesar desse risco incerto, mas sempre possível, não conseguia
decidir-me. Passou um ano.
Até que, finalmente, as coisas se resolveram por si. Marouan telefonou lá
para casa. Eu estava a trabalhar e foi Nadia que atendeu. Ele limitou-se
a dizer:
- Conheço a tua mãe, estivemos juntos na mesma família de acolhimento.
Podes pedir-lhe que me telefone?
Quando cheguei a casa, Nadia já não sabia do papel onde tinha anotado o
número. Procurou por toda a parte e eu comecei a ficar enervada. Parecia
que o destino não queria que eu retomasse o contacto com Marouan.
Ignorava onde é que ele vivia e trabalhava agora. Podia telefonar ao seu
pai adoptivo para me informar, mas não tinha coragem. Auto-recriminava-me
pela minha cobardia. Era mais fácil deixar que fosse o destino a decidir
do que olhar-me ao espelho. Foi ele que telefonou, numa quinta-feira. E
foi ele que disse: «Precisamos de conversar.» Combinámos um encontro para
o dia seguinte ao meio-dia. Ia ter que enfrentar o meu filho e sabia o
que me esperava.
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Nessa noite, António saiu com um amigo para me deixar sozinha com as
miúdas.
Sábado à tarde, sete horas, 16 de Novembro de 2002.
O jantar é bem disposto. Eles devoram e riem por tudo e por nada.
Laetitia, muito faladora, não pára de tagarelar como de costume. Marouan
veio acompanhado pela namorada. Para as minhas filhas, oficialmente ele é
ainda uma das crianças que conheci em casa da família que me acolheu. A
presença deles não as surpreende, estão felizes por saírem um sábado à
noite com a mãe e uns amigos.
Não cresceram juntos, mas transmitem uma sensação de cumplicidade. Temia
que a noite fosse penosa. António dissera-me antes de sair:
- Telefona-me se precisares de mim, que eu vou ter contigo. É estranho,
mas sinto-me bem, já quase não tenho medo.
Apenas uma certa inquietação em relação às minhas duas filhas. Marouan
implica com a mais velha.
- Anda, Laetitia, senta-te ao meu lado, vá lá.
Aperta-a contra si, gracejando. Ela vira-se para mim e segreda-me ao
ouvido:
- Ele é tão simpático, mamã!
- Pois é.
- E bonito!
Observo com atenção as feições dos três rostos. Marouan tem mais traços
de Laetitia, talvez a parte superior da fronte.
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Parece-me descobrir nele uma expressão de Nadia, mais pensativa e mais
reservada do que a irmã. Laetitia manifesta sempre os seus sentimentos e
as suas reacções às vezes são demasiado impulsivas. Herdou a costela
italiana do pai. Nadia prefere guardá-los para si.
Irão elas compreender?... Tenho uma enorme tendência para as ver ainda
como umas garotas de três anos e para as superproteger. Com a idade de
Laetitia já a minha mãe estava casada e grávida...
Ela acabou de me dizer:
- Que bonito que ele é...
Podia apaixonar-se pelo irmão! O meu silêncio podia desencadear toda uma
série de catástrofes. Neste momento, riem às gargalhadas e fazem troça de
um homem manifestamente embriagado. O homem olha para a nossa mesa,
dirigindo-se de longe a Marouan:
- Grande estúpido! Tens sorte em estar com mulheres! Quatro mulheres e eu
aqui sozinho!
Marouan é orgulhoso e aparentemente susceptível. Resmunga:
- Vou-me levantar e dar-lhe um murro.
- Não, fica sentado, se fazes favor!
- Está bem...
O dono do restaurante encarrega-se de afastar o intruso com calma e a
refeição acaba no meio de piadas e de risos.
Acompanhamos Marouan e a amiga até à estação. Ele vive e trabalha no
campo. O meu filho ocupa-se de jardins e da manutenção de espaços verdes.
Parece gostar da sua profissão, de que falou um pouco à mesa. Laetitia e
Nadia ainda não têm projectos definidos. Nadia fala em ir trabalhar na
costura e Laetitia salta de uma ideia para outra. Caminham os três à
minha frente, pela rua que desce até à estação, Marouan no meio, Laetitia
dá-lhe um braço e Nadia o outro. É a primeira vez na vida que elas fazem
isto com toda a confiança. Eu continuei sem dizer nada e Marouan é
formidável, deixa andar. Graceja com as irmãs, naturalmente, como se as
conhecesse desde sempre. Eu não tive grandes alegrias na vida antes do
meu casamento com António e do nascimento das minhas filhas. Marouan
nasceu no meio do sofrimento, sem pai, e elas num ambiente de felicidade
e são os tesouros do pai. Os seus destinos são diferentes, mas os seus
risos aproximam-nos mais do que eu alguma vez conseguiria fazer. Sou
invadida por um sentimento desconhecido.
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Tenho orgulho neles. Esta noite, não me falta nada. No meu espírito já
não há angústia nem tristeza, mas uma grande paz.
No cais da estação, Laetitia diz-me:
- Nunca me senti tão bem com ninguém como com Marouan. E Nadia
acrescenta:
- Eu também...
- Gostava de ir dormir em casa de Marouan e da amiga, amanhã de manhã
almoçávamos juntos e depois apanhávamos o comboio de volta!
- Não, vamos voltar para casa, Laetitia, o teu pai está à nossa espera.
- Ele é tão simpático, mamã, gosto muito dele, é amoroso, é bonito... É
mesmo bonito, mamã!
Foi depois a vez de Nadia se agarrar a mim:
- Quando é que o voltamos a ver, mamã?
- Talvez amanhã ou depois de amanhã. A mamã vai arranjar tudo, vais ver.
- O que é que ela está a dizer, Nadia?
- Pedi à mamã para voltarmos a estar com o Marouan e a mamã disse que
sim, que íamos estar com ele amanhã, não foi, mamã? Combinado?
- Podem contar comigo. A mamã vai arranjar as coisas...
O comboio parte, olho para o relógio, é uma e quarenta e oito da manhã.
Correm as duas ao mesmo tempo que atiram beijos com a mão. Nunca poderei
esquecer aquele momento. Desde que vivo na Europa, adquiri o hábito dos
relógios e esse hábito transformou-se numa espécie de referência quase
maníaca. A minha memória tem tantas lacunas em relação ao passado que
anoto conscienciosamente o presente, sempre que é importante para mim. É
engraçado, ainda na véspera Marouan queria saber a que horas tinha
nascido... Também ele tem necessidade de pontos de referência. Trata-se
de um presente que tenho dificuldade em lhe oferecer. Pensei nisso esta
noite, na minha insónia. Tudo o que consigo extrair da minha pobre cabeça
é que era de noite. Creio ter visto uma lâmpada eléctrica acesa no
corredor daquele maldito hospital quando o médico levou o meu filho. A
hora... é um reflexo dos Ocidentais, na nossa terra só os homens usavam
relógio.
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Como vão aceitar que o nascimento de Marouan tenha sido um pesadelo tão
grande a ponto de nunca lhe ter dito o mesmo?
No dia seguinte de manhã, por volta das nove horas, o despertar de
domingo é como de costume.
- Queres que te faça um café, mamã?
- Com muito gosto.
É o ritual da manhã, a que respondo sempre «com muito gosto». Sou
intransigente em matéria de delicadeza e de respeito mútuo. Acho que as
crianças daqui são frequentemente mal-educadas. Usam uma linguagem
ordinária que aprendem na escola e contra a qual lutamos firmemente,
António e eu. Laetitia já teve de ser repreendida pelo pai mais de uma
vez por responder mal. Eu recebi uma única educação, a da escravatura.
Laetitia traz-me o café e um copo de água morna. Ela e a irmã beijam-me,
naturalmente. O amor que recebo delas e do pai todos os dias surpreende-
me, como se não o merecesse. O que vou fazer é igualmente duro por outras
razões além do medo de afrontar o olhar do meu filho.
- Gostava de lhes falar de uma coisa muito importante.
- Então, diz, mamã, estamos à espera.
- Não, aqui não, vou levá-las ao escritório, à cafetaria.
- Mas tu hoje não trabalhas! Sabes que estive a pensar na noite de ontem,
foi óptima. Marouan não te ligou?
- Nós voltámos tarde. Ele ainda deve estar a dormir.
Se não fosse o irmão, ficaria inquieta. Conversam entre si, totalmente
despreocupadas com aquela passagem invulgar pelo escritório num domingo
de manhã. Sou eu que imagino coisas. Vão sair com a mãe, a mãe tem de ir
ao escritório fazer qualquer coisa e depois... Pouco importa, confiam em
mim.
- Ontem à noite passámos umas belas horas juntos.
- Ah, era isso que nos querias dizer?
- Calma, uma coisa de cada vez... Ontem à noite passámos momentos muito
agradáveis com Marouan. Isso não vos diz nada? Marouan fá-las pensar em
quê?
- Num rapaz amoroso que vivia em casa dos teus pais adoptivos, foi ele
que disse...
- Além disso é bonito e delicado.
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- Talvez. Mas perceberás melhor quando ficar escrito num livro. Direi
tudo o que tu ainda ignoras e que muitas pessoas também ignoram. Porque
são poucas as sobreviventes e, entre elas, há mulheres que continuam
escondidas durante muito tempo. Viveram no medo e continuam a viver no
medo. Eu posso testemunhar por elas.
- Tens medo?
- Algum.
Tenho sobretudo medo que os meus filhos e Marouan em especial vivam com o
espinho da vingança. Que a violência que se transmite entre gerações de
homens tenha deixado uma marca, ainda que ínfima, no seu espírito. Também
ele terá de construir a sua casa, tijolo a tijolo. Um livro é excelente
para construir uma casa.
Recebi uma carta do meu filho, com uma bela caligrafia arredondada.
Queria incentivar-me a levar a cabo essa árdua tarefa. A sua carta fez-me
chorar mais uma vez.
Mamã,
Depois de todo este tempo em que vivi sozinho, sem ti, o ter-te
reencontrado finalmente, apesar de tudo o que se passou, deu-me a
esperança de uma vida nova. Penso em ti e na tua coragem. Obrigado por
nos dares este livro. Ele dar-me-á, também a mim, coragem na vida. Amo-
te, mamã.
Souad.