Kant e o Romantismo (Pedro Duarte - 24.05.10)
Kant e o Romantismo (Pedro Duarte - 24.05.10)
Kant e o Romantismo (Pedro Duarte - 24.05.10)
Pois o conceito de crítica de Schlegel não conquistou apenas a liberdade com relação
às doutrinas estéticas heterônimas – antes, ele possibilitou isto, pelo fato de ter posto
um outro critério de obra de arte que não a regra: o critério de uma determinada
construção imanente da obra mesma. (…) Desta maneira, ele assegurou, do lado do
objeto ou da conformação, aquela autonomia no campo da arte que Kant, na crítica
desta, havia conferido ao juízo.6
1
Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras, 1999),
p. 60.
2
Ibidem, p. 79.
3
Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 74 (Athenäum, Fr.
167).
4
Ibidem, p. 153 (182).
5
Ibidem, p. 89 (Athenäum, Fr. 239).
6
Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras, 1999),
p. 79-80.
Nesse sentido, os românticos desdobraram o pensamento estético de Kant. Ele
firmara a autonomia do sentimento estético em geral, desde então protegido quanto ao
julgamento prévio a partir de critérios extrínsecos – cognitivos, morais, políticos,
pragmáticos e ideológicos. Friedrich Schlegel acentuava a aplicação deste preceito
especificamente para a arte. Ele continuava o legado de Kant mas, ao mesmo tempo,
transformava-o. Saía-se, assim, do âmbito do juízo estético entendido apenas como
sentimento, que não faz distinção entre o belo natural e o belo artificial, para entrar na
filosofia da arte e, no caso dos primeiros românticos, mais especificamente na crítica
de arte compreendida filosoficamente. Benjamin afirma que “neste contexto pode-se
indicar sem dificuldade uma diferença entre o conceito kantiano de juízo e o
romântico de reflexão: a reflexão não é, como o juízo, um procedimento subjetivo
reflexivo, mas, antes, ela está compreendida na forma-de-exposição da obra”7.
Nesse aspecto, os primeiros românticos adiantam o problema que, depois,
Hegel atribuíria diretamente à estética de Kant, a saber, seu subjetivismo. Tanto a
obra deve ser compreendida na sua objetividade efetiva quanto, por conseqüência, seu
acolhimento deve ser crítico, e não somente no sentimento do sujeito – é o que
defendem os primeiros românticos. Friedrich Schlegel escreveu, com ironia, que, “se
muitos amantes místicos da arte, que consideram toda crítica como desmembramento
e todo desmembramento como destruição da fruição, pensassem conseqüentemente,
então ‘oh!’ seria o melhor juízo artístico sobre a obra de arte mais apreciável” 8. Ele
defende, portanto, que a arte suscite algo mais do que a admiração estupefata. Para
servir à obra, a crítica não pode ser servil a ela. Por isso, se “sempre se fala da
perturbação que a dissecação do belo artístico provoca na fruição do amante”, é bom
lembrar que “o verdadeiro amante não se deixa perturbar assim”9.
Nessa medida, os primeiros românticos avançam da contemplação
desinteressada da estética de Kant para a produtividade da reflexão crítica,
acentuando, como o próprio Kant já anotara, que essa experiência não precisa fechar
cada sujeito sobre si mesmo, mas pode, pelo contrário, fundar sua comunicação.
Interesses privados suspensos, sentimo-nos à vontade para discutir, pois supomos
poder partilhar a experiência estética em algum tipo de sentido comum com os outros.
Essa partilha, podemos arriscar, é o que se efetiva na crítica, desde que aí os
fenômenos estéticos “nos surpreendem e nos fazem falar”10, como observou Luiz
Camillo Osório. Kant estava na base do conceito romântico de crítica.
Benjamin, em suas cartas, observou que “somente desde o romantismo, a
seguinte visão tornou-se predominante: que uma obra de arte em si e para si, sem
referência à teoria ou à moral, poderia ser compreendida apenas pela contemplação, e
que a pessoa que a contempla pode lhe fazer justiça”, confessando: “eu teria que
provar que, a este respeito, a estética de Kant constitui a premissa fundamental da
crítica de arte romântica”11. Foi só a partir da interpretação da estética de Kant que os
primeiros românticos alemães puderam tratar a obra de arte fora dos marcos que
buscavam compreendê-la através de regras externas. Friedrich Schlegel, na esteira de
Kant, afirma que a poesia “é um discurso que é sua própria lei”12.
Não seriam admissíveis leis fixadas a priori para julgar as obras de arte. É a lei
da própria obra que deve dirigir os esforços críticos, na sua singularidade. Noutras
7
Ibidem, p. 94.
8
Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 29 (Lyceum, Fr. 57).
9
Ibidem, p. 57 (Athenäum, Fr. 71).
10
Luiz Camillo Osório, Razões da crítica (Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2005), p. 23.
11
Walter Benjamin, The Correspondence of Walter Benjamin, 1910-1940 (Chicago, The University of
Chicago Press, 1994), p. 119.
12
Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 30 (Lyceum, Fr. 65).
palavras, não se trata de julgar as obras tendo como parâmetro o ideal geral ao qual
todas devem obedecer, e sim de criticá-las tendo em vista o ideal que cada uma, em si
e para si, formula individualmente. Por isso, Benjamin afirma que “apenas com os
românticos se estabelece de uma vez por todas a expressão ‘crítico de arte’ em
oposição à expressão mais antiga ‘juiz de arte’”, já que, agora, “evita-se a
representação de um tribunal constituído diante da obra de arte, de um veredicto
fixado de antemão”13. Era o que dizia August Schlegel.
Novamente, Kant antecipara, ainda que de forma vaga, que só a correção seria
pouco para fazer surgir o verdadeiro sentimento estético e, portanto, pouco também
para fazer surgir a arte. Seus exemplos a este respeito são bem diversos, porém todos
assentam-se sobre o denominador comum de que jamais deveriam ser julgados a
partir do que têm de censurável ou não. Censurável seria o que não é correto, ou seja,
o critério de postura policial vigilante que, adotado em geral pelo neoclassicismo
estético, era recusado por Kant e, depois, pelos românticos.
Diz-se de certos produtos, dos quais se esperaria que devessem pelo menos em parte
mostrar-se como arte bela, que eles são sem espírito, embora no que concerne ao
gosto não se encontre neles nada de censurável. Uma poesia pode ser
verdadeiramente graciosa e elegante, mas é sem espírito. Uma história é precisa e
ordenada, mas sem espírito. Um discurso festivo é profundo e requintado, mas sem
espírito (…); até de uma mulher diz-se: ela é bonita, comunicável e correta, mas sem
espírito.15
23
Ibidem, p. 76.
24
Ibidem, p. 87.
25
Ibidem, p. 85.
26
Ibidem, p. 85.
27
Ibidem, p. 78.
28
Novalis, “Fragmentos I e II”, in Pólen (São Paulo, Iluminuras, 2001), p. 155.
29
Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,
1999), p. 76.
30
Friedrich Schlegel, O dialeto dos fragmentos (São Paulo, Iluminuras, 1997), p. 100 (Athenäum, Fr.
297).
31
Friedrich Schlegel, Conversa sobre a poesia (São Paulo, Iluminuras, 1994), p. 29.
tornem alimento e semente de sua própria fantasia”32. Se a crítica pode ajudar o
artista, ainda que não dependa disso para se legitimar, é evidenciando que sua obra,
por mais que enverede por caminhos distintos da de outros, pertence ao “grande
oceano universal” no qual “todas as correntes da poesia deságuam”33. Pertence à arte.
Por sua vez, a crítica, enquanto acabamento da obra, situa-se, ela mesma,
dentro do campo da arte, ainda que não exatamente da mesma forma que a obra
primeira. Ela carrega a obra adiante, eleva sua reflexão, potencializa, desdobra. Não
está lá e a obra cá. Ela continua a obra. Para cumprir tal função, a crítica experimenta
transformação decisiva: a partir de agora, “de poesia, também, só se pode falar em
poesia”34, afirma Friedrich Schlegel. Segundo Benjamin, os primeiros românticos
“fomentaram a crítica poética”35. Só assim poderíamos encontrar o dizer que
corresponde ao que a arte é, sem engolfá-la em conceitos prontos: se a poesia
moderna era crítica, a crítica moderna era poética.
Seria possível escutar, aqui, ecos da concepção de Kant do que seria a idéia
estética, presente por exemplo na arte: a “representação da faculdade da imaginação
que dá muito a pensar, sem que contudo qualquer pensamento determinado, isto é,
conceito, possa ser-lhe adequado, que consequentemente nenhuma linguagem alcança
inteiramente nem pode tornar compreensível”36. Não é difícil enxergar na crítica de
arte romântica a tentativa de construção dessa linguagem que não se fecha em
conceitos determinados e acolhe a ausência da transparência compreensiva completa,
para assim corresponder ao que a idéia estética da obra de arte dá a pensar. “Pode
existir um falar de poesia que, não só lhe esteja adequado, mas que ela até exija”, diria
Heidegger tempos depois, alertando que “talvez se possa falar da poesia
poeticamente, o que, todavia, não quer dizer em versos e rimas”37. Não se trata,
portanto, de colocar o crítico para escrever em verso. Pelo contrário, seu elemento
costuma ser a prosa. Mas esta prosa, enquanto tal, é ela mesma literatura. Situa-se
dentro da arte, não fora. Também o crítico é escritor. Ele escreve crítica. Essa
valorização da dimensão da materialidade da escrita na forma de expressão é que dá o
caráter poético da crítica, cujo exercício, então, está menos distante da obra sobre a
qual fala do que, em geral, supomos. “Tanto a poesia como o pensamento se
movimentam no elemento do dizer”38, observaria Heidegger anos depois.
32
Ibidem, p. 29.
33
Ibidem, p. 30.
34
Ibidem, p. 30.
35
Walter Benjamin, O conceito de crítica de arte no Romantismo alemão (São Paulo, Iluminuras,
1999), p. 77.
36
I. Kant, Crítica da faculdade do juízo (Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1995), p. 159 (193).
37
Martin Heidegger, Hinos de Hölderlin (Lisboa, Instituto Piaget, 2004), p. 13.
38
Martin Heidegger, “A essência da linguagem”, in A caminho da linguagem (Petrópolis, Vozes,
2003), p. 146.