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RESUMO: Reflete-se sobre a influência do ensino de latim no curso de Letras com vista a
um melhor entendimento das irregularidades da língua portuguesa, à ampliação vocabular, a
maior embasamento da etimologia do léxico português e ao desenvolvimento do intelecto.
Objetiva-se não só evidenciar a necessidade de se desmistificar o latim como língua morta,
sublinhando a sua inserção em várias áreas do conhecimento, como também sugerir o
referencial teórico ora utilizado a leitores interessados pelo tema. Comenta-se sobre a
rejeição recorrente de muitos a esse estudo em razão de uma metodologia de ensino
arcaica e descontextualizada. Conclui-se o quão é fundamental o ensino do latim para
muitos fins: crescimento intelectual; domínio lexical; melhor entendimento das línguas
neolatinas nos seus aspectos histórico, cultural, literário, humanístico e morfossemântico.
Considerações iniciais
É comum o estranhamento acerca de muitas palavras do português. Por que
creme capilar, e não “cabelar”, aquário, e não “aguário”? É de conhecimento lato que
o português é língua neolatina 2 e, por isso, o latim marca presença constante na
nossa língua corrente. Interrogações como essas têm a sua explicação na
etimologia da palavra, que no caso é latina.
Há necessidade do estudo do latim na atualidade? Como ignorar a língua
geradora do português (e de outras tantas)? Não seria desprezar a oportunidade de
entrar em contato com uma das mais significativas civilizações do mundo antigo e
berço da cultura ocidental?
Tais questionamentos são discutidos neste artigo com vista a atingir os
objetivos de incitar nos leitores, agentes do contexto educacional, o estudo do latim
evidenciando o desenvolvimento do intelecto e a desmistificação da inutilidade
dessa língua, uma vez que ela se mantém atuante amiúde no por tuguês; fornecer a
quem se interesse pelo assunto um aporte teórico para melhor aprofundamento.
Para tanto, o desenvolvimento deste texto apresenta três seções. Na primeira
são apresentados elementos relevantes que marcam a história do latim; na
sequência, discutem-se alguns motivos causadores do repúdio do estudo do latim
1
Graduada em Let ras (FAFITA ). Pós-graduada lat o sens u em Língua Portuguesa (FAFITA). Mestre
em Educ ação Universidade Católica de Petrópolis. Doutora em Letras – Área de concentração:
Língua Portugues a (UE RJ). Atualment e professora de Latim e Linguística no curso de Let ras do
Cent ro Universitário São José. E-mail: dulcehpont es@gmail.com.
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Em razão das conquistas romanas em contato com diferentes famílias linguísticas surgiram as
línguas neolatinas (conhecidas também como românicas).
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por quem já o fez e/ou ainda o fará; por fim, argumenta-se a importância desse
estudo na contemporaneidade.
Autores como Napoleão Mendes de Almeida (1985), Rívia Silveira Fonseca;
Thaíse Bastos Pio (s/d) e GeorgesMounin (1975)foram fontes teóricas basilares para
a formação desta matéria.
Mas o que é o latim? Onde e quando surgiu? Quem era seu usuário? O latim é
uma língua que se desenvolveu a partir do século VII a.C. na região do Lácio
(Latium, onde foi fundada a cidade de Roma e ondenasceu a civilização latina). Era
falado pelos habitantes desse lugardurante o período das grandes expansões
territoriais. Foi língua oficial desde a criação de Roma até meados do século Vd.C.
com a queda do Império Romano do Ocidente. No início,
[...] a Itália era um amálgama das mais diferentes línguas: etrusco, grego,
gaulês, osco, umbro, entre muit as outras. Ora, é cost ume apontar como
local de origem do latim o Lácio, e salientar que de lá, com as conquistas
militares de Roma, se espalhou para outras regiões da Peníns ula Itálica e,
depois, para outros locais na Europa, Ásia e África (USP, 2015).
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Quanto ao ensino do Latim Clássico no Brasil, a sua difusão se deu pela igreja
católica, promotora da educação e da cultura clássicas.
Não encontra o pobre estudante brasileiro quem lhe prove ser o latim,
dentre todas as disciplinas, a que mais favorece o desenvolvimento da
inteligência. Talvez nem mesmo compreenda o significado de “desenvolver
a inteligência”, tal a rudeza de sua mente, preocupad a com outras coisas
que não o estudo (A LMEIDA, 1985, p. 8).
Apoiado em tal perspectiva, o latim não deve ser visto apenas como um
pretexto para se aprender análise sintática nem deve ser ensinado por meio de
memorização. Provavelmente assimse torna um estudo sem sentido para o aluno e
de difícil assimilação; a consequência é a rejeição. E, lamentavelmente, esse ensino
desde sua inserção no Brasil tem sido aplicado desse modo.
Aprender uma língua pelo método da gramática e da tradução é bastante
tradicional e criticado por linguistas,que concebem o aprendizado de língua mais
intuitivo que racional. Porém, o latim não é uma língua que se aprende em meio a
seus usuários, até porque ele não tem usuários, no sentido de discurso. A
metodologia então não pode ser idêntica à de uma língua moderna, que tem um
povo que a usa. Utilizar o Reading Latin (método através do qual se traduz antes de
qualquer aporte gramatical), por exemplo,também não é uma panaceia que
resolverá o problema deste ensino. Além disso,
Um outro pont o a ser visto é a própria carga horária do curso de latim que é
muito pequena, adotando-se, apenas, duas aulas por s emana e certa
inadequação do c urrículo, oferecendo o curso de latim em apenas dois
semestres. Essa falta de estruturação [...] obriga aaprender o latim em
pouco tempo, multiplicando, assim, as deficiências ortográficas,
morfossintáticos e léxico-semântico dos futuros profissionais de letras
(LUNA NE TO, 2008, p. 21).
Não é para ser falado que o latim deve ser estudado. Para aguçar seu
intelecto, para tornar-se mais observador, para aperfeiçoar-se no poder de
concentração de espírito, para obrigar -se à atenção, para desenvolver o
espírito de análise, para acostumar-se à calma e à ponderaç ão, qualidades
imprescindíveis ao homem da ciência é que o aluno estuda esse idioma
(ALMEIDA, 1985, p. 9).
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acessível graças a uma outra operação: o conhecimento das relações
arbitrárias, através do tempo, desta vez, dos mesmos signos com seus
significados sucessivamente diferentes (MOUNIN, 1975, p. 224).
Para que estudar o latim hoje? O ensino do latim é um ótimo instrumento para
entender as irregularidades e as exceções da gramática portuguesa, ainda assim ele
é, constantemente, objeto de polêmica: estudar ou não o latim? Há os que lamentam
a sua exclusão dos ensinos fundamental e médio. Em contrapartida, em maior
número, há os que o repudiam, talvez “traumatizados” pelas dificuldades de
aprendê-lo pelo método tradicional, que requeria do aluno, além de muito raciocínio,
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uma memória extraordinária. Na maioria dos cursos de Letras o latim é obrigatório.
De um lado, há alunos que pensam que encontrarão nesse aprendizado a solução
para todos os problemas da língua portuguesa; de outro, há alunos atemorizados
com este estudo. E daí muitos questionam: valorizar o ensino do latim não seria um
posicionamento anacrônico? Provavelmente não. Muitos professores de português
que se formam sem a base latina recorrem à decoreba de regras e listas de
exceções, pois não conseguem refletir sobre a raiz de tais ocorrências que se
fundamentam no latim. Com ou sem medo, a verdade é que a partir do latim
compreendemos melhor muitos mistérios do nosso idioma; alargamos nossa visão
de mundo, nossa cultura e nosso vocabulário.
Importa lembrar que são vinte e sete séculos (!) de uso do latim escrito;
portanto, não se trata de uma língua morta. Ele deixou de ser uma língua falada (a
língua do discurso). E, hoje, só se toma conhecimento dele por meio da modalidade
escrita: sua literatura e historiografia, por exemplo,mas continua sendo a gênese do
português e das línguas neolatinas.
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estudo do latim que não se trata de irregularidades nem de exceções, mas
encontramos a lógica previsível do fenômeno.
Há nos textos latinos valores bem distintos dos nossos, porém coerentes,
dignos de nosso fascínio e consideração. Ao estudá-los associando-os à vida social
em Roma, podemos conjecturar o que mudou e o que permanece intacto apesar de
nomeado, hoje, de forma diferente. Com efeito,
[...] não só a literat ura, [...] mas também vários out ros domínios: espaços
nacionais e políticos, estética, ética, moral, valores sociais e religiosos,
sistema jurídico dos Estados, usos e costumes da vida quotidiana etc. De
todos estes aspectos, Roma foi a grande difusora(FONSECA; PIO, s/d., p.
17).
São, pois, inúmeras as razões pelas quais se deve estudar o latim. Outrossim,
a nossa ascensão social requer de nós um vocabulário mais ampliado, aprimorado,
inclusive mais preciso. Essa precisão implica conhecer, segundo Platão, “a verdade
da palavra”, isto é, seu étimo. Por exemplo:
a) comedere> comer.No latim, comederesignifica “comer junto com outras
pessoas”.
b) volare> voar.A queda do l não caiu em todas as palavras daí derivadas,
como em volátil. O álcool é um líquido volátil, isto é, ele pode voar. E pode
mesmo.
c)Laborare> lavrar. Do radical labor aparece em muitas palavras: laboratório
“lugar em que se trabalha”, laborioso “trabalhoso”. A partir de laborare, podem-
se acrescentar prefixos: co- colaborar “trabalhar com (alguém)”, e-elaborar
“planejar algo, trabalhando”; re- reelaborar: fazer novamente, trabalhando.
Tornar-se-ia enfadonho se fosse necessário dizer: “tive de fazer o trabalho
novamente”, o período fica mais enxuto assim: “tive de reelaborar o trabalho”.
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Vale pontuar que uma das palavras mais bonitas da língua portuguesa é
companheiro. Do latim vulgar cum (com) + panis (pão) = campanha (forma antiga de
companhia) + o sufixo eiro = companheiro: aquele que divide o pão com o outro, o
que senta com o outro à mesa para comer e partilhar o pão. A propósito, a palavra
pão é muito significativa. Jesus proveu de pão as multidões famintas. Num sentido
mais lato, na oração do Pai Nosso, rogamos ao Pai “o pão nosso de cada dia”.
Também no sentido lato, a palavra companheiro tem o sentido de união com o outro
com vista a compartilharem sentimentos (alegrias e tristezas, por exemplo) em
qualquer lugar e em qualquer momento. O importante é dar-se, material ou
espiritualmente, ao outro. Entretanto, sem esse conhecimento, poucos empregam a
palavra com precisão.
Outro motivo, portanto, de se aprender o latim é que conhecendo a etimologia
das palavras saberemos melhor usá-las, seremos bons em ortografia, sem contar
que, na defesa do conhecimento da cultura da nossa história, o estudo do latim é,
sem dúvida, imprescindível; também o é para o desenvolvimento do raciocínio
lógico.
Raciocinar é, partindo de ideias conhecidas, diferent es, chegar a uma
terceira, desconhecida, e é o latim, quando estudado com método, calma, e
ponderação, o maior fator para aguçar o poder do raciocínio do estudante,
tornando-lhe mais claras e mais firmes as conclusões (ALME IDA, 1985, p.
9).
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É óbvio que os métodos antigos de ensino do latim devem ser substituídos por
uma metodologia focada na percepção etimológica das raízes do português, na
prática da análise sintática (raciocínio lógico), na ampliação de vocabulário e na
curiosidade para entender outros momentos históricos e o desenvolvimento das
sociedades e do pensamento até os dias de hoje.
Por consequência, o aluno melhorará na ortografia, na compreensão das
flexões irregulares e das exceções, no questionamento da nomenclatura tradicional.
Por fim, aumentará seu repertório histórico-filosófico, o que contribuirá para o
estabelecimento de suas próprias analogias e para a defesa de suas ideias com
mais discernimento e precisão. Para isso, há de se realizar um ensino
contextualizado vinculado ao estudo histórico-cultural já que
Considerações finais
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acadêmico-científico do aluno de letras, associando-se o aprendizado da sintaxe do
português ao linguístico-sintático da língua latina.
Insiste-se, porém, que esse ensino deve facultar ao acadêmico, não somente
partes estruturais da língua, mas da mesma forma a história, a sociedade, a cultura
e a literatura do povo romano, aliando-as à herança deixada aos povos de língua
neolatinas, incluindo-se aí a ampliação vocabular pelo conhecimento etimológico de
palavras da mesma raiz. Como se atesta, o estudo do latim configura-se como o
passaporte para muitas instâncias do conhecimento.
O latim não é mais uma língua falada (parole, conforme Saussure), mas como
langue, ele não morreu. Na verdade ele não é um falecido, mas tem morrido (está
sendo assassinado) a cada dia o seu ensino no país.
Referências:
ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Gramática latina. 20. ed. São Paulo: Saraiva,
1985.
FONSECA, Rívia Silveira; PIO, Thaíse Bastos .Latim: língua morta? Quem matou?.
Aula 1. In Latim genérico. V. 1. Rio de Janeiro: Cederj, s/d.
PITA, Luiz Fernando Dias. Latim e esperanto, via Internet. Rio de Janeiro:
Unigranrio/UCB, 2002.
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