Historia & Gênero - Andréa Lisly Gonçalves PDF
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HISTÓRIA &... REFLEXÕES
Aos amigos, “ por que a vida é mutirão de todos, por todos remexida e temperada ” .
(J.G.R).
Aos meus pais, aos meus irmãos e à Efigênia, pois “ somente com a alegria é que a gente
realiza bem ” (J.G.R).
INTRODUÇÃO
Quando comecei a me interessar pelo tema das alforrias, sobretudo em Minas Gerais, por
fatores que diziam respeito à dinâmica da escravidão naquela região, as questões relacionadas
à história das mulheres e ao gênero não constituíam o centro das minhas investigações. Aos
poucos, como se tivesse “ autonomia própria ” , o elemento gênero passou a ter importância
em minha pesquisa, insinuando-se, primeiramente, nos dados quantitativos – logo eles,
aparentemente “ tão neutros ” –, que confirmavam as conclusões dos estudos anteriores de que
ao comportamento das práticas de alforria de forma alguma era indiferente a distinção por
gênero. Das diversas fontes que utilizei, algumas davam conta de que ex-escravas não apenas
participavam ativamente das atividades econômicas da região, como moviam causas judiciais
nas quais reivindicavam direitos à preservação de sua própria liberdade ou a de terceiros, como
filhos e outros parentes e lutavam pelo reconhecimento de prerrogativas conquistadas ainda no
cativeiro. Isso sem falar no papel desempenhado pelos arranjos familiares, na maioria dos
casos encabeçados por mulheres, na conquista da alforria e na dinâmica societária da capitania
e da província de Minas Gerais. Tais constatações despertaram em mim a convicção da
importância de se considerar a categoria gênero na compreensão dos processos históricos,
desde os mais fragmentários até aqueles que se pretendessem abrangentes e me conduziram à
elaboração deste trabalho.
Não preciso me estender sobre a afirmação de que se trata de um tema cuja amplitude é de
tirar o fôlego. Afinal de contas, que sociedade humana não produziu de forma mais ou menos
sistemática discursos e práticas, velados ou não, sobre as relações entre homens e mulheres ?
Sob o fio condutor da categoria gênero, procurei realizar uma abordagem que ressaltasse a
natureza relacional da construção das definições de feminino e masculino, apontando, sob o
discurso muitas vezes legitimado por homens e mulheres de uma desigualdade inata, que as
diferenças entre o feminino e o masculino, até por se alterarem historicamente, foram
socialmente construídas. Ressaltar a importância da análise relacional não significa que não se
tenha dado grande atenção à história das mulheres, campo que se desenvolveu de forma
expressiva nas últimas décadas. Ao contrário, como se verá, mas sempre procurando abordá-la
de forma não essencialista, ou seja, buscando superar a idéia de que existe uma condição
feminina imutável.
No primeiro capítulo, procurei dar destaque à forma como a “ questão da mulher ” ganha
força a partir do século XIX. Essa escolha permitiu que se abordassem alguns dos modelos
contra os quais as mulheres lutavam, alguns forjados no próprio Oitocentos, outros existentes
desde períodos imemoriais, mas consolidados em sistematizações ainda presentes nos dias
atuais. Destaque especial foi dado à emergência do movimento feminino, com seus graus
variáveis de organização, dependendo de cada região e contexto histórico. Em seguida, abordei
o campo específico da história das mulheres, realçando os debates teóricos em torno das
questões mais prementes, seus impasses e desafios. No último capítulo, busquei apresentar,
valendo-se de exemplos relacionados à minha prática docente, alguns aspectos metodológicos
(temas, cronologias, fontes, metodologias, interdisciplinaridade) tanto da história das mulheres
quanto da história de gênero. A enunciação dos temas dos capítulos já revela que o que parece
bem subdividido, ao ser colocado no papel, mostrará que tais fronteiras são esmaecidas e que
não se pode falar de um assunto sem tocar em outro.
Por fim, não posso resistir a citar a passagem de uma leitura paralela que fiz enquanto
preparava essas páginas, escolhida pela constatação de que seu enredo central gira em torno de
questões de gênero. Refiro-me a Grande Sertão : Veredas, de Guimarães Rosa, onde se lê que
“ contar assim cerzidinho, somente sendo coisa de rasa importância ” . Relembro essas
palavras apenas para confirmar que se a apresentação dos temas, em benefício da comunicação
com os leitores, deve ser feita de forma minimamente articulada, isso não deve encobrir a
convicção de que a abordagem da história e da historiografia das mulheres e de gênero resiste a
qualquer tentativa de enquadramento em uma narrativa linear. Feita a “ advertência ” , espero
que a leitura seja, de alguma maneira, proveitosa.
CAPÍTULO I
Militância feminista
Lista de assinaturas da Declaração de sentimentos e resoluções elaborada durante a Convenção para o Direito das Mulheres, realizada em Seneca Falls,
Nova Iorque, entre 19 e 20 de julho de 1848. Note-se que 32 dos 100 signatários eram delegados do sexo masculino.
(Fonte : <http://www.loc.gov/exhibits/treasures/trr040.html>)
Mais provável, porém, é que a dificuldade real esteja realmente em datar um movimento
que se manifesta em lugares e mediante formas e iniciativas as mais variadas. E que,
exatamente por ser um movimento, não se reduz apenas às mobilizações que se intensificam
no século XIX em torno da “ questão feminina ” , mas que corresponde ao processo crescente e
com ritmos variados da participação da mulher no mercado de trabalho, da paulatina presença
feminina no espaço público, na atuação de porta-vozes que, a partir de lugares considerados
como verdadeiros redutos femininos, como no caso da literatura, como se verá, se manifestam
por meio da palavra escrita, da oratória, das publicações em jornais.
Não que a militância feminina, coletiva ou individual, estivesse ausente no século XVIII.
Nesse sentido, e ainda em que pesem as polêmicas a esse respeito, as várias revoluções
ocorridas na crise do Antigo Regime (Estado Absolutista) em diversas partes da Europa
colocaram na ordem do dia a questão feminina. Sobretudo na França, onde muitas mulheres,
além de participarem de manifestações públicas, como as tricoteuses, mulheres que assistiam
tricotando (mais uma vez das galerias, impedidas que estavam de tomar parte direta nos
debates políticos) às sessões da Assembléia Constituinte durante a Revolução Francesa,
procuravam influenciar nos acontecimentos pela prática da escrita.
O caso mais influente de mulher escritora, nesse período, foi o da inglesa Mary
Wollstonecraft (1759-1797), que em 1792 publicou seu Reivindicação dos direitos da mulher,
trabalho que dará inspiração a muitas gerações de feministas. A obra foi publicada no Brasil
pela primeira vez em 1833, na tradução de Nísia Floresta, educadora, escritora e feminista
republicana e abolicionista, nascida no Rio Grande do Norte, em 1810. Nísia Floresta irá
transpor fronteiras, tanto a de seu sexo num país monárquico e escravocrata quanto espaciais,
tendo sua figura sido admirada na Europa, onde morou, por personalidades do mundo
intelectual como Augusto Comte, filósofo fundador da doutrina positivista.
Mary Wollstonecraft publicou na Europa, no ano de 1792, o livro Reivindicação dos direitos da mulher, obra traduzida no Brasil por Nísia Floresta em 1833.
(Fonte :<http://www.msmagazine.com/fall2004/liberatingmarywollstonecraft.asp>)
Nísia Floresta terminou os seus dias em Rouen, na França, acompanhando o evolver das
conquistas feministas não apenas naquele país, mas em toda a Europa. Ela certamente pode
constatar que os desdobramentos dos movimentos influenciados pelas idéias iluministas, a
princípio, não resultaram na emancipação da mulher, entendida como contestação da
desigualdade dos sexos. Por outro lado, também não deve ter passado despercebido à autora
que as revoluções, ao instaurarem uma esfera pública de poder separada do privado,
reservaram o exercício desse poder aos homens, destinando o espaço privado às mulheres.
Uma separação que não se fez sem desafios, sendo remodelada pela ação de homens e
mulheres feministas. E tão importante quanto a inclusão das mulheres no direito civil, com a
instauração do casamento civil e do direito ao divórcio, bem como do direito à herança,
representavam conquistas inquestionáveis, apesar de terem sua contrapartida na submissão da
esposa ao marido e de não terem significado, imediatamente, o acesso ao direito de voto.
A militância feminista mais ativa não se restringiu à Europa central ou aos Estados Unidos.
Na Rússia, por exemplo, as disputas envolveram, com um ardor característico, escritores e
intelectuais das mais diferentes correntes.
Em meados do século XIX, quando a “ questão feminina ” era debatida, sobretudo em São
Petersburgo e em Moscou, com base em uma perspectiva filantrópica, ganhavam destaque as
discussões em torno da prostituição feminina. O contexto, pelo menos no meio intelectual
russo, era tão sensível à discussão do tema que a mera divulgação da gravura “ Cristo e a
adúltera ” , do pintor Emil Signol, “ inspirada nas palavras de São João : ‘Aquele que estiver
isento do pecado, que atire a primeira pedra’ ” , suscitou a manifestação de diversos escritores,
inspirando poemas e romances sobre “ questão feminina na Rússia ” não apenas sob a
polêmica da prostituição.
Cristo e a adúltera, do pintor Emile Signol, inspirada nas palavras de São João.(Fonte :<http://www.insecula.com/salle/MS00380.html>)
Mas retornemos à manifestação das vozes feministas através da literatura. Nesse ponto é
importante destacar que essa atuação apresentava um potencial de transformação que não deve
nem de longe ser subestimado. Prova disso é o fato de que algumas dessas reflexões
repercutem até os dias de hoje nos debates sobre a história das mulheres. Como observa
Michelle Perrot : “ Uma mulher, na intimidade de seu quarto, pode escrever um livro ou um
artigo de jornal que a introduzirão no espaço público. É por isso que a escritura, suscetível de
uma prática domiciliar (assim como a pintura), é uma das primeiras conquistas femininas, e
também uma das que provocaram mais forte resistência ” 5 .
Para algumas escritoras atuais, Joan Scott entre elas, essas palavras antecipavam as
formulações teóricas do campo da história das mulheres. Elas manifestavam que o
conhecimento histórico que se pretendia Universal não passava de uma história parcial,
exatamente por dela estarem excluídas as mulheres :
A invocação de Woolf de um suplemento parece apresentar um compromisso, mas não o é.
O delicado sarcasmo de seus comentários sobre um “ nome discreto ” e a necessidade de
propriedade sugere um projeto complicado... que evoca implicações contraditórias. As
mulheres estão ao mesmo tempo adicionadas à história e provocam sua reescrita ; elas
proporcionam algo extra e são necessárias à complementação, são supérfluas e indispensáveis.7
Entre os inúmeros fatores que irão distinguir a militância feminista do século XIX do
“ verdadeiro feminismo ” , “ feminismo sistemático ” , “ novo feminismo ” (não há consenso
entre as participantes do movimento ou entre seus teóricos sobre a melhor designação a ser
adotada) da segunda metade do século XX, destaca-se a luta pela cidadania que se
consubstanciou nas manifestações pela conquista do sufrágio universal dentro do núcleo mais
ativo do movimento das mulheres no Oitocentos :
De forma desigual de país para país, no entanto, até mesmo avançado o século XIX, os
direitos conquistados pelas mulheres ainda não estavam consolidados como se depreende das
manifestações de Anita Augspurg, jurista radical do movimento das mulheres alemãs :
A questão das mulheres é em grande parte uma questão econômica, mas pode
acontecer que seja ainda mais uma questão cultural [...] mas antes de mais ela
é uma questão de direito, porque é apenas na base dos direitos escritos [...]
que podemos pretender encontrar-lhe uma solução que seja segura.14
As transformações “ invisíveis ”
Nos Estados Unidos, a data em que as mulheres conquistaram o direito de voto variou de Estado para Estado. No Colorado, o sufrágio feminino se estabeleceu
em 1896. Já em Washington as mulheres só puderam votar a partir de 1910.(Fonte :
<http://encarta.msn.com/media_461531215/Woman_Suffrage_in_the_United_States.html>)
Símbolo da “ ética puritana ” , a rainha Vitória reinará entre 1837 e 1901.(Fonte :<http://www.answers.com/topic/queen-victoria>)
Fatores demográficos também contribuem para explicar esse “ retorno ao lar ” ou, quando
nem sequer as mulheres haviam saído, o reforço da esfera doméstica. Diferentemente do que se
observara na França, as baixas taxas de mortalidade e a manutenção de uma natalidade alta na
Inglaterra refrearam a demanda por mão-de-obra feminina no mercado de trabalho britânico,
seja nas fábricas, seja no setor de serviços. A mão-de-obra masculina disponível era abundante,
não apenas em razão da expulsão dos camponeses da terra, resultado da “ revolução
agrícola ” , como também dos contingentes de trabalhadores provenientes da Irlanda. Assim,
“ com a ajuda do vitorianismo, o modelo do anjo do lar pode implantar-se com facilidade ” 26.
Mas em que consistia, propriamente, o “ modelo vitoriano ” ?
No século XIX forja-se a idéia de privacidade, fruto do individualismo burguês, e, como
decorrência, revaloriza-se o espaço privado, ao mesmo tempo lugar do exercício do “ dever ” ,
mas também do “ prazer ” . É nesse espaço que se opera a afirmação da família tipicamente
burguesa, com suas noções de intimidade. Nesse contexto, a rainha Vitória, agindo de acordo
com seu tempo, imprime ao seu reinado uma marca de austeridade que o diferencia
radicalmente da sociedade de corte – com suas sociabilidades típicas do Antigo Regime,
marcadas pela representação de comédias, bailes e festas – e assume o papel praticamente
inquestionável de símbolo do triunfo do espaço doméstico, obviamente com significados
diferentes para a vivência diária de homens e mulheres do período, com desdobramentos que
não se restringem à Inglaterra.
A “ época vitoriana ” foi um período de valorização da família, quando se consolidam as
regras de intimidade, momento de invenção do “ self [“ eu ” ], do indivíduo egoísta refratário a
um mundo gregário e coletivista ” 27, típico da fase de ascensão da burguesia. Os confrontos
entre as participantes dos movimentos coletivos de mulheres e os defensores da “ nova
ordem ” serão inevitáveis. Mais sutis, mas nem por isso menos decisivos, serão os confrontos
entre os modelos que se constituíam acerca do feminino e o dia-a-dia das mulheres de carne e
osso, com efeitos diferenciados, dependendo da classe social. Sistematizado em um sem
número de manuais e códigos, o mínimo que se esperava do comportamento das mulheres era
que elas se constituíssem em verdadeiros “ dragões da virtude ” 28.
A moral vitoriana consagrou, principalmente entre os estratos mais favorecidos da população, o espaço privado do lar. Pedro Américo Retrato de mulher,
1885. (Fonte : O Brasil do século XIX na Coleção Fadel. Rio de Janeiro : Edições Fadel, 2004, p.169, p.173.)
Tais modelos, construídos sobre oposições hierarquizadas em relação ao masculino,
reforçavam uma tendência milenar, na qual, no lugar de se representar a mulher com base em
suas condições concretas de existência, ela era apresentada valendo-se de modelos construídos
pela imaginação masculina. Assim se dera na Idade Média, quando uma imagem feminina
idealizada pelo homem era elevada à condição de objeto de desejo cantado pela poesia
trovadoresca (amor cortês), situação essa que não se alterou substancialmente com a
introdução do amor romântico no século XIX. Também na pintura, essa tendência se
manifestava por meio de temas que realçavam mulheres compassivas, cumprindo seus destinos
de penélopes, tecendo, bordando, fiando.
Mesmo quando no desempenho de tarefas corriqueiras, muitas vezes as mulheres são alvos de representações idealizadas. Bernhard Wiegandt. Lavadeiras,
Belém, c. 1878. (Fonte : O Brasil do século XIX na Coleção Fadel. Rio de Janeiro : Edições Fadel, 2004, p. 192.)
1GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988. p. 143.
2 As manifestações do célebre autor russo estão reproduzidas em FRANK, Joseph Frank. Dostoievski : os
efeitos da libertação (1860 a 1865). São Paulo : Edusp, 2002, p. 150-51.
3 É amplamente aceito que o livro de Mill teria sido influenciado por Harriet Taylor, sua futura esposa, uma
defensora tenaz dos direitos da mulher.
6 WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1985.
7 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p.75-6.
8 “ A afirmação de Bennet de que as mulheres eram intelectualmente inferiores aos homens levou Virgínia
Woolf a pensar melhor sobre o assunto que ela explorou em Um teto todo seu... ” . WOOLF, Virginia. O status
intelectual da mulher. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997, p. 19.
9 WOOLF, Virgínia. O status intelectual da mulher. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997, p.22.
10 WOOLF, Virgínia. O status intelectual da mulher. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997, p. 28.
11 WOOLF, Virgínia. O status intelectual da mulher. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997, p. 31.
12 WOOLF, Virginia. O status intelectual da mulher. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1997, p.36.
14 Citado por Anne-Marie Käppeli. Cenas feministas. In : DUBY, Georges e PERRT, Michelle. História das
mulheres no Ocidente. Porto : Afrontamento, 1991, p. 556.
15 “ quando, em 1833, Guizot obriga as vilas de mais de cinco mil habitantes a abrirem uma escola, tal medida
abrange apenas os meninos ” . Mulheres públicas. São Paulo : UNESP, 1998, p. 111.
17 QUEIROS, Eça de. A correspondência de Fradique Mendes. Porto Alegre : L&PM, 2001, p. 126.
20 CHAUÍ, Marilena. Sobre o medo. In : CARDOSO, Sérgio... et al. Os sentidos da Paixão. São Paulo :
Companhia das Letras, 1987, p. 38.
21 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 128.
22 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 135.
23 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 135. Ainda assim, o ensino secundário para as mulheres só se generalizou na
Europa entre 1880 e 1920.
25 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 128.
27 MALERBA, Jurandir. Algumas histórias da vida privada de determinadas classes sociais em certas regiões
do Brasil. Tempo, Rio de Janeiro, n. 6, p. 224.
28 ROQUETE, José Inácio. Código do bom-tom : ou Regras de civilidade e de bem viver no século XIX. São
Paulo : Companhia das Letras, 1997. Organização de Lilia Moritz Schwarcz, p. 307.
29 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 138-139.
30 A tese é defendida por Glenna Matthews em seu livro “ Just a housewife ” de 1987. Citado em SAMARA,
Eni de Mesquita (Org.). As idéias e os números do gênero : Argentina, Brasil e Chile no século XIX. São
Paulo : Hucitec/Cedhal/Vitae, 1997, p. 27.
31 PERROT, Michelle. Os excluídos da História : operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro : Paz e
Terra, 1988, p. 191.
CAPÍTULO II
Anatomia e destino
Para o escritor francês Jules Michelet ser mulher era carregar o “ fardo pesado de uma fatalidade ” .(Fonte :<http://www.histoire-
image.org/site/oeuvre/analyse.php ?liste_analyse=78>)
Rose Bertin, costureirade Maria Antonieta, famosa por sua suposta ingerência nos assuntos da Corte de Luís XVI.(Fonte :
<http://www.batguano.com/Vigeeartpages.html>)
Desafio particular a tais definições representou, apenas decorridos dez anos da morte de
Freud, a publicação do estudo decisivo de Simone de Beauvoir, O segundo sexo, cuja
afirmação de que “ ninguém nasce mulher : torna-se mulher ” 43 , estabelece um claro
antagonismo com os legados “ fatalistas ” , fossem os contemporâneos à autora, fossem os de
períodos mais remotos. Assim, muito tempo se passou até que as desigualdades entre homens e
mulheres fossem sendo repostas não com a ênfase em fatores biológicos, supostamente
naturais, mas como relações sociais hierarquizadas e, como tal, construídas historicamente.
Não é meu propósito aqui fazer uma reconstituição exaustiva das correntes historiográficas
modernas. Importa-nos apenas identificar em que medida tais correntes, predominantes em
determinados períodos, relacionaram-se à constituição do campo da história das mulheres e
como elas contribuíram, em maior ou menor medida, para a superação de noções baseadas na
desigualdade naturalizada entre os sexos.
O positivismo merece ser citado apenas pela importância que assume como corrente
historiográfica no século XIX, com sua visão da História como um processo contínuo,
retilíneo, linear, causal, inteligível apenas por um modo racional, pois, no que diz respeito às
mulheres, opera uma dupla exclusão : de um lado, porque essa vertente associa exclusivamente
o político ao público, elegendo, portanto, os homens como únicos protagonistas ; de outro,
porque veda às mulheres o acesso à profissão de historiador44 .
Também no século XIX, e apontando para mudanças nas interpretações tradicionais –
ainda que não se possa falar exatamente em rupturas que levassem à superação das noções
correntes sobre as mulheres –, constitui-se um campo designado como Antropologia Histórica,
que, ao redescobrir a “ família como célula fundamental e evolutiva das sociedades ” , colocou
“ em primeiro plano as estruturas de parentesco e da sexualidade e, conseqüentemente, o
feminino ” 45, com destaque para o livro de Lewis Henry Morgan A sociedade antiga, de 1877.
Voltemos, outra vez, a Michelet. Mais de um historiador reconheceu a dívida que a história
dos Annales tem para com o autor de A Revolução Francesa. E não apenas por ele ter se
distanciado do caminho, tão caro aos positivistas, de que interessavam à História apenas os
grandes feitos e a sagração dos heróis, a reconstituição das biografias dos grandes homens ou a
crônica de acontecimentos notáveis, mas também, e como decorrência desse “ desvio ” , pela
proposição de uma noção de tempo histórico, diretamente relacionada ao seu procedimento de
definição das massas como sujeito histórico, conforme assinalado, com ritmos específicos à
atuação dos setores populares.
Apesar de não terem dado grande destaque às mulheres em seus trabalhos historiográficos,
tanto os precursores dos Annales, March Bloch e Lucian Febrve, nos anos 1930, quanto seus
seguidores, ao direcionarem seus interesses para a história de seres concretos e para a teia de
suas relações cotidianas, livrando-se de idealidades abstratas, instauraram a possibilidade de
que as mulheres fossem incorporadas à historiografia.
Decisivo nesse sentido, ainda que, insista-se, as mulheres não aparecessem como sujeitos
privilegiados, foi a introdução por Fernand Braudel, seguindo a trilha inaugurada por Marc
Bloch, da trama do cotidiano numa perspectiva histórica. As implicações que tal iniciativa
trouxeram para a redefinição do tempo na História foram assim elucidadas por Norberto
Guarinelo :
Em síntese, não há como negar a contribuição da corrente historiográfica dos Annales para
a história das mulheres, com seu “ alargamento progressivo do campo histórico às práticas
quotidianas, aos comportamentos vulgares, às ‘mentalidades’ comuns ” mesmo que “ as
relações entre os sexos não [tenham sido] a preocupação prioritária de uma corrente
interessada sobretudo nas conjunturas econômicas e nas categorias sociais ” , mas que, no
entanto, lhe deu atenção favorável ” 47 , acabando por criar condições intelectuais propícias à
incorporação da mulher como sujeito histórico.
Nenhuma fatalidade inscrita no conjunto da teoria marxista poderia ser responsabilizada
por certa indiferença de seus intérpretes, sobretudo na década de 1970, em relação ao tema das
mulheres na História. Afinal, as mulheres socialistas eram, entre as que iniciaram as
mobilizações feministas no século XIX, como era de se esperar, as mais bem organizadas.
Além disso, em As origens da família, da propriedade privada e do Estado, livro escrito em
1884, era claro o entusiasmo de Friedrich Engels quando, influenciado pelas teses do
antropólogo evolucionista Lewis Henry Morgan – e, portanto, pela Antropologia Histórica do
século XIX, mencionada mais acima – e pelo livro do suíço J. J. Bachofen, O matriarcado,
publicado em 186148 , insistia que a humanidade vivera um estágio no qual o matriarcado havia
sido a forma por excelência da organização social e política. Da superação desse estágio,
prossegue Engels, resultara o retorno da humanidade às mais antigas formas de exploração e
diferenciação política que eram exatamente as que se estabeleciam entre os sexos49 .
Apesar disso, algumas passagens do Manifesto Comunista, de 1848, especialmente aquelas
que abordam o tema da relação entre as mulheres e os homens, já poderiam ser tomadas como
evidência de que a questão das diferenças entre os sexos seria considerada de forma
indiferenciada dos resultados da superação dos antagonismos de classe. Ou seja, de que a
superação de tais desigualdades seria o resultado quase automático da eliminação da sociedade
de classes. Apesar de longa, a passagem do Manifesto Comunista que trata das mulheres é por
demais ilustrativa para que não seja citada.
Ela inicia, de forma engenhosa, fazendo com que se voltem contra os inimigos de classe as
acusações desferidas contra os comunistas :
Nada mais grotesco, aliás, que a virtuosa indignação que, a nossos burgueses,
inspira a pretensa comunidade oficial das mulheres que adotariam os
comunistas. Os comunistas não precisam introduzir a comunidade das
mulheres. Esta quase sempre existiu. Nossos burgueses, não contentes em ter
à sua disposição as mulheres e as filhas dos proletários, sem falar da
prostituição oficial, têm singular prazer em cornearem-se uns aos outros. O
casamento burguês é, na realidade, a comunidade das mulheres casadas. No
máximo, poderiam acusar os comunistas de quererem substituir uma
comunidade de mulheres, hipócrita e dissimulada, por outra que seria franca
e oficial. De resto, é evidente que, com a abolição das relações de produção
atuais, a comunidade das mulheres que deriva dessas relações, isto é, a
prostituição oficial e não oficial desaparecerá.
(<http://www.culturabrasil.pro.br/manifestocomunista.htm>)
A emergência dos estudos sobre as mulheres como sujeitos históricos e o movimento feminista
Não parece restar qualquer dúvida nos dias atuais de que a constituição da história das
mulheres como campo específico de conhecimento se processa em relação direta com o
movimento feminista das décadas de 1960-70. É Joan Scott, porém, historiadora e militante
feminista norte-americana, que nos alerta para o fato de que tais relações não se estabeleceram
de forma linear.
Segundo a autora, processos e acontecimentos que se encaixam quase que perfeitamente
pertencem muito mais a uma visão “ idílica ” do processo e apenas aparentemente dão conta
da diversidade, das marchas e contramarchas que marcaram esse campo do conhecimento,
perdendo-se para o encadeamento das explicações algo da riqueza dos processos.
Joan Scott questiona principalmente certa cronologia da produção da história das mulheres,
predominante em muitas análises, na qual ela passa de saber imediatamente relacionado aos
movimentos feministas, para em seguida se estabelecer como saber acadêmico, culminando
com o surgimento e a utilização da categoria gênero. Para a autora, a trajetória traçada não é
criticável apenas pelo seu aspecto linear (ainda que também o seja), mas, pelo que esse
pretenso processo tem de crescente despolitização : “ A emergência da história das mulheres
como um campo de estudo envolve, nesta interpretação, uma evolução do feminismo para as
mulheres e daí para o gênero ; ou seja, da política para a história especializada e daí para a
análise ” 58 .
Chamando a atenção para o fato de que essa narrativa “ representa mal a história das
mulheres e seu relacionamento, tanto com a política, quanto com a disciplina da história ” ,
Scott esclarece que :
A história deste campo não requer somente uma narrativa linear, mas um
relato mais complexo, que leve em conta, ao mesmo tempo, a posição
variável das mulheres na história, o movimento feminista e a disciplina da
história. Embora a história das mulheres esteja certamente associada à
emergência do feminismo, este não desapareceu, seja como uma presença na
academia ou na sociedade em geral, ainda que os termos de sua organização e
de sua existência tenham mudado.59
Ainda segundo a autora, nem mesmo a introdução da categoria gênero pode ser
“ acusada ” de ter significado a despolitização do tema, visto que muitos dos profissionais que
se dedicam a esse campo de pesquisa se reconhecem como “ historiadores feministas ” .
Em atenção a essas considerações, e mesmo sabendo das dificuldades em seguir à risca seu
“ programa ” , procurei reconstituir alguns aspectos das relações entre o movimento feminista
e a história das mulheres.
Comecemos retornando a Simone de Beauvoir. Nem mesmo o fato de a escritora ter
“ decretado ” , nos anos quarenta, em O segundo sexo, que “ as mulheres não tinham
história ” , não podendo, assim, orgulharem-se de si próprias, desestimulava os pesquisadores
que, algumas décadas depois, se voltaram para o estudo das mulheres. Ao contrário, e graças,
entre outros fatores, à sua articulação com o movimento feminista que se apresentava no auge
do seu vigor, supunha-se que a história das mulheres viera para revolucionar o saber histórico.
Muitos desses estúdios discordavam, exatamente, das conclusões a que chegou Beauvoir,
argumentando que o fato de os homens terem predominado como historiadores levara ao
encobrimento do real papel das mulheres na História. O resultado dessa conclusão talvez
explique a tendência, nem de longe recente, mas sem dúvida reavivada pelo debate de então,
da historiografia “ engajada ” com as questões femininas dedicar-se à biografia das “ grandes
mulheres ” , em geral àquelas com trajetórias similares aos congêneres masculinos, o que
muitas vezes significava o mesmo que realçar-lhe a visibilidade através do reconhecimento de
sua atuação na esfera pública, confirmando-lhes a excepcionalidade.
Dessa efervescência em torno da afirmação da igualdade entre os sexos e do resultado de
um duplo movimento, o das reflexões sobre as bandeiras e da própria organização do
movimento, por um lado, e dos resultados concretos que dele resultavam, como uma maior
presença de mulheres no meio acadêmico, surgem os estudos sistemáticos sobre a “ condição
feminina ” no campo mais amplo das Ciências Humanas e Sociais, particularmente no da
História, com o surgimento da história das mulheres.
Os ataques contra as inconsistências de um “ sujeito universal ” representado pela figura
masculina da história tradicional – e mesmo daquela não tão tradicional assim – contemplavam
não apenas a crítica a uma historiografia em que os sujeitos submergiam às “ estruturas ”
(econômicas, sociais, políticas), mas também apontavam para a insustentabilidade de um saber
histórico que se não se apoiasse na multiplicidade dos sujeitos.
“ À crítica a uma história uterina respondeu-se com a idéia de que a história fora, ao longo
do tempo, fálica ” 60 . A frase de Joan Scott, talvez uma das mais importantes historiadoras que
alcançou, com uma clara demonstração teórica, “ reabilitar ” o termo feminista, e cujas idéias
servem de base à presente reconstituição, sintetiza o alcance demolidor da crítica ao sujeito
universal61 .
Assim, se as historiadoras feministas eram acusadas de se basearem em uma visão parcial
da História, ao privilegiar as mulheres como sujeitos, ficava claro que também o conhecimento
histórico que se produzia sob o rótulo de “ História Universal ” ou “ História da
Humanidade ” padecia da isenção que muitos profissionais reivindicavam para ela. Isso
porque o que se fizera até então, com as exceções de praxe, é claro, fora a história do homem
branco que excluía pelo menos a metade da humanidade. Uma evidência disso é que os
grandes marcos cronológicos, reputados quase como naturais, História Antiga, Medieval,
Moderna, entre outras “ unidades de sentido ” 62 , constituíram-se como resultado dessa
parcialidade e só poderiam servir a determinado sujeito histórico, excluindo os demais.
A natureza subversiva da história das mulheres se evidenciava ainda no rol de perguntas
que apresentavam à “ comunidade de historiadores ” , questionando suas hierarquias,
pressupostos, hipóteses : “ Que padrões, que definições de ‘profissionalismo’ estão em voga ?
Que consenso representam ? Como se chegou ao consenso ? Que outros pontos de vista foram
excluídos ou suprimidos ? Que perspectiva determina o que se considera como sendo uma boa
história ou, para aquela questão, como história ? ” 63 .
A multiplicação de trabalhos sobre a história das mulheres, construídos sobre um
considerável aporte de pesquisas empíricas, não apenas questionavam as periodizações
correntes, como também redefiniam o lócus de exercício de poder, agora não mais limitado ao
espaço público, demonstravam que as mulheres haviam influenciado nos acontecimentos
históricos como denunciavam a insuficiência do sujeito universal : “ O sujeito da história não
era uma figura universal, e os historiadores, que escreviam como se ele o fosse, não podiam
mais reivindicar estar contando toda a história ” 64 .
O momento histórico se mostrava particularmente propício à criação de “ uma identidade
coletiva de mulheres, indivíduos do sexo feminino com um interesse compartilhado no fim da
subordinação, da invisibilidade e da impotência, criando igualdade e ganhando um controle
sobre seus corpos e sobre suas vidas ” 65 .
Decorridos apenas dez anos do auge das manifestações feministas, os balanços dessa
prática política não conseguiam encobrir uma sombra de decepção que se sobressaia em livros
como A segunda etapa, de Betty Friedan, considerada uma das figuras totêmicas do novo
feminismo. Publicado nos Estados Unidos, em 1981, e apenas dois anos depois no Brasil66,
sua tese central era a de que a conquista da igualdade de direitos entre os homens e as mulheres
não acarretou a felicidade e o bem-estar esperados. A maioria dos analistas concordava que o
feminismo passava por uma “ crise de adolescência ” . Houve quem admitisse, entre antigas e
novas lideranças do movimento, que muitas mulheres não conseguiam olhar para o retrato de
suas avós sem sentirem pelo menos uma vaga nostalgia...
As considerações de Betty Friedan, é claro, jogavam água no moinho das desilusões. Suas
previsões de que o fim do feminismo estava próximo só não pareciam mais demolidoras do
que a avaliação que a autora fazia das razões que levaram a tal fracasso. Em primeiro lugar, o
“ erro ideológico de fomentar o envenamento das relações entre homens e mulheres e, pior
ainda, das relações entre elas próprias ” 67 . Em segundo, mas não menos importante, de que a
reivindicação de igualdade fora formulada de acordo com um modelo masculino, construído
sobre a negação de que qualquer atributo, justa ou injustamente, associado à mulher – como a
ternura, a efetividade – fossem preteríveis ao primado da razão (o que mostra como eram
recorrentes as oposições formuladas por Michelet no século XIX). Na esteira da crise, não
faltaram frases bombásticas, como a proferida por Gloria Steinem : “ Hoje estamos nos
transformando nos homens com quem queríamos casar ” .
Além desses dilemas, as avaliações sobre os impasses sofridos pelo feminismo
reconheciam o componente utópico do movimento revelado pelo insucesso de mudança da
organização da sociedade com base na produtividade, na competição e no sucesso econômico
por qualidade de vida, na realização pessoal e numa sociedade mais humana. Somavam-se a
essas, impostas por convicções religiosas, questões sobre o uso de contraceptivos e a
legalização do aborto, assim como as dificuldades em se enfrentar os desafios impostos pela
necessidade de combinar, principalmente nas famílias monoparentais constituídas em torno da
mãe, a criação de filhos com o trabalho fora de casa68 .
A própria dinâmica do movimento feminista foi revelando sua diversidade e acentuando
suas divisões : “ As mulheres penetravam nos movimentos sociais, expressando suas inúmeras
outras associações e dessa forma se descobriram como diversidade dentro do próprio
movimento feminista, que deixava de ser uma luta localizada ” 69 . Era o movimento feminista
se confrontando com o “ dilema da diferença ” .
Como resultado, reforça-se a idéia de separação entre o movimento feminista e a produção
de uma história das mulheres, o que se evidencia, no plano dos conceitos, pela formulação da
categoria história feminista, que, de acordo com Joan Scott, se definiria como um saber
produzido com ênfase nas relações de dominação entre homens e mulheres, preocupação
menos central na história das mulheres. No processo, tal história consolida seu lugar na
academia e compensa a perda do ardor militante com a adoção de padrões mais rigorosos de
pesquisa.
Esses impasses, como não poderia deixar de ser, repercutiram sobre o campo da história
das mulheres. Se a emergência desses estudos fora fundamental para desacreditar a categoria
do sujeito universal da História (“ O homem, macho, branco sempre no comando ” , como
aparece em um verso da música Estrangeiro de Caetano Veloso), não sem ironia os impasses
do feminismo levavam ao questionamento da categoria universal do feminino, forjada pelo
movimento feminista. Admitia-se, assim, que a idéia de uma condição feminina, inalterável ao
longo da História, acabava reincidindo no erro, contra o qual lutaram gerações de
historiadoras, de naturalização de algo que era definido historicamente e de forma relacional :
a incessante construção das definições de feminino e de masculino.
Nos anos 1990, esses impasses parecem ter-se acentuado. Mesmo tendo sido decretado o
fim do sujeito universal masculino, os estudos focados exclusivamente nas mulheres acabavam
por revelar-lhes uma participação ancilar, secundária no processo histórico. A história das
mulheres seguia sendo uma “ história paralela ” . A condição feminina que aparecia como
elemento essencial (e essencialista no sentido de acabar incidindo, mesmo que
involuntariamente, em uma noção de natureza feminina, recaindo, assim, na mesma
naturalização contra a qual muito se lutou, sintetizada na frase já citada “ anatomia é
destino ” ) para cimentar uma unidade entre esses novos protagonistas históricos não parecia
resistir aos desafios colocados pela história social por revelarem que nem sempre as diferenças
de sexo se mostraram fundamentais, ou, ainda, que à diferença entre homens e mulheres
sobrepunham-se distinções de classe, etnia, raça.
O balanço da história das mulheres não parecia, mesmo, alentador :
Nos anos 80 e depois de uma farta produção, os historiadores se perguntavam em que os
estudos sobre a mulher teriam modificado a história tradicional ou renovado seus métodos. [...]
A verdade é que, diferentemente de outras ciências humanas, como a sociologia, a história não
tinha conseguido concretizar as necessárias rupturas epistemológicas a fim de realizar uma
redefinição e um alargamento de noções tradicionais na ciência histórica70 .
A categoria gênero
Freud muitas vezes admitiu que o vocabulário que utilizava para definir “ masculino ” e
“ feminino ” era impreciso e enganador : “ os termos ‘masculino’ e ‘feminino’ significam
coisas diferentes para cada autor. Qualificar a libido de ‘masculina’ não significa, observou ele
explicitamente em 1915, senão que ela é ‘ativa’ ” . Com ênfase no aspecto sexual, o pai da
psicanálise apresentava uma definição de gênero na qual o masculino e o feminino se
definiriam de forma especular e se distinguiriam pelas influências do meio : “ O que mais
importava nesses anos... era que Freud descrevia uma evolução semelhante da vida sexual dos
meninos e das meninas, diferenciada apenas por pressões sociais. Como seres sexuais,
conforme então Freud via a questão, os homens e as mulheres são mais ou menos espelhos uns
dos outros ” 74 .
As considerações da psicanálise, ainda que pese o reconhecimento de Freud de que suas
definições sobre o assunto fossem imprecisas e até mesmo enganadoras, teriam sido de
fundamental importância para a definição da categoria na forma como ela foi incorporada à
história das mulheres. Baseadas nas interpretações de Lacan, da psicanálise de Freud
estabeleceu-se que “ a masculinidade e a feminilidade são encaradas como posições de sujeito,
não necessariamente restritas a machos ou fêmeas biológicos ” 75 .
Outras influências não menos importantes na formulação da categoria de gênero aplicada
(ou em alguns casos, em substituição) à história das mulheres ou, melhor dizendo, utilizada par
“ teorizar a questão da diferença sexual, viriam do seu emprego na gramática e na lingüística –
e menos da psicanálise – como também dos estudos “ de sociologia dos papéis sociais
designados às mulheres e aos homens ” 76 .
Não que o termo não fosse empregado antes do que se pode considerar o refluxo do
movimento feminista clássico, sendo registrado já em 1970 nos trabalhos de Ann Oakley,
permitindo que o próprio conceito de feminino fosse reconstruído.
Tal genealogia importa menos talvez do que destacar que o conceito ganhava força,
sobretudo nos anos 1980, sendo entendido como uma categoria de análise histórica capaz de :
Para alguns historiadores das mulheres, Michelle Perrot entre eles, a introdução da
categoria gênero colocaria em segundo plano o sexo biológico ao incluir a idéia de que as
diferenças entre os sexos seriam uma construção cultural. Evidência do peso da cultura na
definição dessas diferenças é o fato de que o fenômeno que depreendia as mulheres como
extensão ou resultado da conformação do corpo, de sua fisiologia, podia ser datado e resultava
de práticas das chamadas Ciências Naturais e da Medicina, a partir do século XVIII,
afirmavam a existência de uma feminilidade natural.
Apesar de não negar que o sexo biológico fosse um fator de identidade, tanto pessoal como
coletiva, a crítica às correntes predominantes desde o século XVIII afirmava que não era o
único ou nem sequer o mais importante. Com a categoria gênero estaria consumada a
superação de noções universais, fossem de homens, fossem de mulheres. A introdução da
categoria gênero, relacionada ao contexto social, portanto, levou à consideração da “ diferença
na diferença ” . Não cabia, assim, a utilização do termo mulher sem adjetivá-lo : mulheres
mestiças, negras, judias, trabalhadoras, camponesas, operárias, homossexuais.
Do ponto de vista metodológico, considerar o conteúdo relacional da história das mulheres
significou a ampliação das fontes disponíveis ao historiador, acentuando um processo já em
andamento, uma vez que não se tratava mais apenas de localizar aquela documentação na qual
as mulheres figuravam como “ protagonistas ” . Passou-se a conferir especial atenção às
lacunas, às omissões existentes em fonte consideradas convencionais, realçando-se à medida
que tais conteúdos velados contribuíam para esclarecer sobre o papel desempenhado pelas
mulheres em determinados contextos79 .
Foi assim, por exemplo, no caso dos censos populacionais – assunto ao qual voltaremos no
próximo capítulo – realizados em várias regiões do globo, desde pelo menos a constituição dos
Estados Nacionais e que, por razões as mais diversas, que vão desde os preconceitos dos
recenseadores, os interesses dos que prestavam as informações no sentido de subrepresentar
determinada realidade, à subjetividade dos que organizavam os questionários, revelaram
aspectos bastante esclarecedores para o entendimento da história das mulheres, agora
entendida em seu conteúdo relacional com a contraparte masculina.
A noção de que os papéis sexuais são construídos socialmente e não se constituem como
desdobramento da anatomia de homens e mulheres pode ser melhor compreendida através da
contextualização dessas relações em um mesmo momento histórico. Um bom exemplo é o
fornecido por Michelle Perrot acerca dos diferentes papéis políticos que cabem a homens e
mulheres em países capitalistas mas com diferentes tradições culturais.
Assim, nos países escandinavos, onde a política é associada à administração, é muito mais
aceitável que uma mulher, plenamente capaz de administrar a casa, assuma um posto de poder.
A política se confunde com a administração do cotidiano. Já na França e nos países latinos – e
aqui vão indicadas algumas variáveis importantes para se entender o comportamento político
relacionado a gênero :
A separação entre o público e o privado, entre o doméstico e o político é muito mais forte
na França, por todas as razões históricas... e, de maneira geral, nos países latinos. O
catolicismo contribui para essa sacralização do político, de que as mulheres são indignas por
sua própria feminilidade. As italianas e as espanholas votaram antes das francesas. Mas têm
ainda mais dificuldades para chegar ao poder executivo. A diferença dos sexos, que se exprime
com tanta força no exercício do poder político, varia de acordo com os contextos religiosos e
culturais que tecem as nações.80
Ainda que o reconhecimento de que a introdução da categoria gênero tenha representado
um considerável avanço no que até então era tratado essencialmente como história das
mulheres tenha sido partilhado por boa parte dos historiadores – mesmo que por motivos
diferentes, variando entre aqueles que viam na sua incorporação uma forma mais neutra, mais
“ científica ” e portanto uma alternativa à forma politizada como se vinha construindo o
conhecimento sobre as mulheres, àqueles que saudavam o seu caráter relacional – tal
reconhecimento não deixou de gerar polêmicas acirradas e que podem ser resumidas em pelo
menos três diferentes perspectivas.
Uma, de que a categoria gênero havia sofrido um processo de absorção e passara a ser
sinônimo de história das mulheres81 , contradizendo explicitamente considerações como a de
Michelle Perrot para quem “ a categoria relacional de gêneros substituiu internacionalmente a
perspectiva de uma ‘história das mulheres’ ” 82 . A outra, expressa pela historiadora Ginna
Pomata, de que a utilização da noção de gênero não substituía a constituição do campo
reconhecido como história das mulheres, mas, sim, que :
Em Escrever a história das mulheres, texto que introduz a coleção História das mulheres
no Ocidente, os organizadores Georges Duby e Michelle Perrot admitem que a obra tem como
um dos seus limites a ausência de trabalhos que versem sobre a história das mulheres na
América Latina. Tal ausência se explica, textualmente, pela “ inexistência de estudos ” , à
época, sobre o assunto na região. A avaliação sobre a produção historiográfica desse “ outro
Ocidente ” talvez não fizesse justiça às iniciativas realizadas nesse campo, uma vez que,
apenas dez anos após o lançamento da coleção que tinha Duby e Perrot como organizadores,
veio a público o História das mulheres no Brasil84 , trabalho que integrou, de forma bem-
sucedida, os estudos que então se desenvolviam no país sobre o tema.
Pode-se até argumentar que o espaço de dez anos é um intervalo considerável. No entanto,
a qualidade e consistência dos trabalhos reunidos por Mary Del Priore no História das
mulheres no Brasil precedidos que foram pelos estudos abordando a questão no Brasil,
demonstram que as pesquisas sobre aquele campo de conhecimento datavam de muito antes na
América Latina.85
Mais importante, porém, do que a constatação do equívoco assinalado são as considerações
de Duby e Perrot acerca das contribuições que adviriam da realização de pesquisas sobre as
mulheres na região. A começar pelos efeitos causados pela importação de modelos femininos
ibéricos sobre as mulheres indígenas, passando pelo impacto que a colonização casou nas
relações entre os gêneros, principalmente levando-se em conta a adoção do trabalho
compulsório que, na maioria das possessões hispano-americanas, significou a desorganização
das sociedades autóctones. Realidade também verificada na América Portuguesa, mas à qual
viria se sobrepor a organização de uma sociedade escravista, cuja principal fonte de reposição
da mão-de-obra se dava através do tráfico internacional de escravos africanos, resultando em
uma das maiores diásporas forçadas da história da humanidade.
A ênfase na distinção entre o contexto histórico da Europa e da América Ibérica teria até
mesmo levado à elaboração de modelos diversos de comportamentos femininos nos quais, de
forma bastante esquemática, se supunha que as mulheres latino-americanas se sentiam mais
confortáveis no desempenho de seus papéis tradicionais, restritos aos espaços domésticos e às
tarefas relacionadas à reprodução da família do que as anglo-saxãs86 . A expansão do
catolicismo e, mais especificamente, o culto Mariano, muito disseminado na Ibero-América,
explicariam, em grande parte, tais distinções. Com base na assimilação do marianismo, as
mulheres latino americanas – seja qual for o significado atribuído a expressão tão genérica –
teriam se apropriado “ do ‘machismo’ na consecução dos seus próprios interesses ” e tornado
“ beneficiárias desse mito ” que, reelaborado, as retiraria da condição de vítimas.
Que tais questões, ainda que não apenas elas, tornaram-se cruciais para a história das
mulheres na América Latina, atesta a ênfase dada pela historiografia que tratou do assunto, ao
período colonial e imperial brasileiros, sobretudo nos primórdios dessa produção. Semelhanças
e diversidades foram ressaltadas entre a história das “ mulheres brancas ” – ainda que o termo,
empregado na mesma Introdução ao História das Mulheres no Ocidente possa sugerir uma
univocidade que está longe de corresponder à realidade histórica – e as africanas na diáspora,
ao fenômeno da mestiçagem, tanto negra quanto indígena, etc.
Um ponto que merece ser enfatizado é o de que essas particularidades da História do Novo
Mundo, pelo menos em sua parte meridional, parecem propícias a um tratamento relacional
hoje reivindicado pelos estudos sobre as mulheres tomando por base a emergência da noção de
gênero. Explicando melhor, a introdução da categoria gênero desafiou os estudos sobre as
mulheres – e não apenas os históricos – a levar em conta o aspecto de que a construção das
várias identidades femininas só poderia se processar em relação às identidades masculinas
fosse por oposição, de forma hierarquizada, com acento nas desigualdades, fosse por realce
apenas nas diferenças.
O que desejo assinalar é que, como resultado do processo de colonização, as sociedades do
Novo Mundo se colocam como objetos mais do que favoráveis às abordagens que buscam
enfatizar o caráter relacional, com ênfase nas diferentes culturas, etnias, organizações
societárias, fornecendo parâmetros para os estudos voltados para o gênero, temas e
perspectivas que foram considerados, com maior ou menor êxito, na expressiva produção
historiográfica voltada para os estudos da escravidão no Brasil, com destaque as mulheres que
viveram a experiência do cativeiro e de suas descendentes.
O assunto é por demais vasto para ser considerado aqui. Por hora, desejo apenas registrar
que os estudos que considero mais profícuos são aqueles que pretendem combinar as práticas
culturais específicas, variando de região para região, de que são portadoras as mulheres
escravas com a redefinição dessas mesmas práticas a partir das condições de cativeiro no novo
mundo.87A importância de tal consideração pode ser exemplificada nas informações das
divisões estamentais do trabalho, que se verificavam principalmente na África Ocidental,
baseadas nas distinções de gênero.
Ressalte-se, ainda, que o tema parece privilegiado, no caso do Brasil, para demonstrar o
quanto equivocadas são as concepções de que a maior ou menor mobilidade e participação das
mulheres na sociedade obedece a uma linha seqüencial ou evolutiva marcada pela crescente
participação feminina no espaço público.
Outro bom exemplo de que é o contexto histórico que define a maior ou menor autonomia
alcançada pelas mulheres é o observado em estudos que comparam as relações de gênero na
sociedade escravista e aquelas verificadas no contexto de plena vigência do trabalho livre :
32 PERROT, Michelle. Os excluídos da História : operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro : Paz e
Terra, 1988, p. 457.
33 Idem, p. 461.
34 Idem, ibidem. “ Ainda em 1938, ele podia escrever a Stefan Zweig com um inequívoco acento oitocentista :
‘A análise é como uma mulher que quer ser conquistada, mas sabe que será tida em baixa conta se não oferecer
resistência’ ” . Idem, ibidem.
35 DUBY, Georges ; PERROT, Michelle (Orgs.). Escrever a história das mulheres. História das mulheres no
Ocidente. Lisboa : Afrontamento, 1991, p. 12.
36 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 130.
37 MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da Mulher. Bauru/São Paulo : Edusc, 2000, p.20.
38 PERROT, Michelle. Os excluídos da história : operários, mulheres, prisioneiros. Rio de Janeiro : Paz e
Terra, 1988, p. 173.
40 SCHAMA, Simon. Cidadãos : uma crônica da Revolução Francesa. São Paulo : Companhia das Letras,
1989, p. 189.
41 Idem, ibidem.
42 ROQUETE, José Inácio. Código do bom-tom : ou Regras de civilidade e de bem viver no século XIX. São
Paulo : Companhia das Letras, 1997, p. 389. Organização de Lilia Moritz Schwarcz.
43 “ Ninguém nasce mulher : torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma
que a fêmea humana assume no seio da sociedade ; é o conjunto da civilização que elabora esse produto
intermediário entre o macho castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode
constituir um indivíduo como um Outro ” . BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo, Rio de Janeiro : Nova
Fronteira, 1980, v. 2, p. 9.
44 “ Quando, no final do século XIX, a história positivista se constitui como disciplina universitária apaixonada
pelo rigor ela exclui duplamente as mulheres : da sua área, visto que se consagra à vida pública e política ; da
sua escrita, visto que esta profissão é vedada às mulheres ” . DUBY, Georges ; PERROT, Michelle (Orgs.).
Escrever a história das mulheres. História das mulheres no Ocidente. Lisboa : Afrontamento, 1991, p. 13.
45 DUBY, Georges ; PERROT, Michelle (Orgs.). Escrever a história das mulheres. História das mulheres no
Ocidente. Lisboa : Afrontamento, 1991, p. 13.
46 GUARINELO, Luiz Norberto. História científica, história contemporânea e história cotidiana. Revista
Brasileira de História, São Paulo, n. 48, p. 24, 2005.
47 DUBY, Georges ; PERROT, Michelle (Orgs.). Escrever a história das mulheres. História das mulheres no
Ocidente. Lisboa : Afrontamento, 1991, p. 13.
48 Para Bachofen, o matriarcado seria uma fase intermediária entre o primitivismo sem qualquer norma de
organização familiar e o patriarcalismo, forma superior de organização da família e da sociedade.
49 Karl Marx também se sentiu atraído pelas conclusões de Morgan, ponto de partida de suas “ Notas
etnográficas ” , escritas entre 1880 e 1882.
50 No interior do pensamento de esquerda do século XIX e entre os que conflitavam com as idéias de Marx e
Engels, Ludwig Feuerbach (1804-1872), economista e filósofo alemão, assinalava a diferença entre os sexos,
não para justificar a divisão de papéis entre eles, mas para ressaltar o prazer, a fruição das relações entre
homens e mulheres.
51 MATOS, Maria Izilda S. de. Por uma história da mulher. São Paulo : Edusc, 2000, p. 13.
52 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 65.
53 MATOS, Maria Izilda S de. Por uma história da mulher. São Paulo : Edusc, 2000, p. 14.
54 Nas palavras de Michel de Certeau trata-se de reconhecer “ as formas sub-reptícias que assume a
criatividade dispersa, tática e bricoulese dos dominados, com vistas a reagir à opressão que sobre eles incide ” .
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano : artes de fazer. Petrópolis : Vozes, 1994, p. 14.
55 PRIORE, Mary Del. História das mulheres : as vozes do silêncio. In : FREITAS, Marcos Cezar de (Org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo : Contexto, 1998, p. 226.
56 “ Podemos, talvez, situar os sintomas da mudança nos anos 1970 ou mesmo um pouco antes, com a crise de
maio de 1968, com a guerra do Vietnã, a ascensão do feminismo, o surgimento da New Left, em termos de
cultura.... Foi quando então se insinuou a hoje comentada crise dos paradigmas explicativos da realidade,
ocasionando rupturas epistemológicas profundas que puseram em xeque os marcos conceituais dominantes na
História ” . PESAVENTO, Sandra Jatahy. História & História Cultural. Belo Horizonte : Autêntica, 2003, p. 8.
57 DUBY, Georges ; PERROT, Michelle (Orgs.). Escrever a história das mulheres. História das mulheres no
Ocidente. Lisboa : Afrontamento, 1991, p. 14.
58 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 65.
59 Idem, ibidem.
60 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 80.
62 “ A História, portanto, nunca se debruçou sobre a história humana como um todo, mas sobre histórias
particulares, histórias de ALGO. Sempre estudou histórias específicas inseridas dentro de unidades de sentido
(os ALGOS) que conferiam coerência a um corpo de documentos e a uma narrativa, descrição, explicação ou
interpretação. Entender o modo como se definiram essas unidades, ou seja, os objetos particulares da História, é
crucial para compreender os impasses contemporâneos da disciplina ” . GUARINELO, Luiz Norberto. História
científica, história contemporânea e história cotidiana. Revista Brasileira de História, São Paulo, n. 48, p. 15-
16, 2005.
63 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 74.
64 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 86.
65 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 68.
67 COSTA, Albertina Oliveira. A volta ao lar segundo Betty Friedan. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, v.2,
n. 2, p. 19-20, jul. 83.
68 PRIORE, Mary Del. História das mulheres : as vozes do silêncio. In : FREITAS, Marcos Cezar de (Org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo : Contexto, 1998, p. 222.
69 MATOS, Maria Izilda S de. Outras histórias : as mulheres e estudos dos gêneros percursos e possibilidades.
In : SAMARA, Eni de Mesquita ; SOIHET, Rachel ; MATOS, Maria Izilda S de. Gênero em debate : trajetória
e perspectiva na historiografia contemporânea. São Paulo : Educ, 1997, p. 96.
70 PRIORE, Mary Del. História das mulheres : as vozes do silêncio. In : FREITAS, Marcos Cezar de (Org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo : Contexto, 1998, p. 222.
71 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 91.
72 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 89.
74 GAY, Peter. Freud : uma vida para o nosso tempo. São Paulo : Companhia das Letras, 1989. p. 467.
75 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 89.
76 SCOTT, Joan. História das mulheres. In : BURKE, Peter (Org.). A escrita da História : novas perspectivas.
São Paulo : Unesp, 1992, p. 86.
77 POSSAS, Lídia M. Vianna. Vozes femininas na correspondência de Plínio Salgado. In : GOMES, Ângela de
Castro (Org.). Escrita de si e escrita da História. Rio de Janeiro : FGV, 2004. p. 265-266.
79 “ ... ela [a História das mulheres] teria passado por uma verdadeira revolução documental, pela redescoberta
da pesquisa em arquivos, por temas no seio dos quais descortinavam-se as mulheres : sobretudo a família ou a
demografia ” . PRIORE, Mary Del. História das mulheres : as vozes do silêncio. In : FREITAS, Marcos Cezar
de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo : Contexto, 1998, p. 226.
81 “ Enquanto nova categoria, o gênero vem procurando dialogar com outras categorias históricas já existentes,
mas vulgarmente ainda é empregado como sinônimo de mulher, já que seu uso teve uma acolhida maior entre
os estudiosos do tema ” . MATOS, Maria Izilda S de. Outras histórias : as mulheres e estudos dos gêneros
percursos e possibilidades. In : SAMARA, Eni de Mesquita ; SOIHET, Rachel ; MATOS, Maria Izilda S de.
Gênero em debate : trajetória e perspectiva na historiografia contemporânea. São Paulo : Educ, 1997, p. 97.
82 PERROT, Michelle. Em que ponto está a história das mulheres na França ?. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 14, n. 28, p. 9-27, 1994.
84 PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo : Contexto, 2001.
85 Alguns desses estudos pioneiros encontram-se listados na Bibliografia, logo após as considerações finais
deste trabalho.
86 É a conclusão a que chega Evelyn Stevens em : Marianismo : the other face of machismo in Latin América.
In : PESCATELO, A. (Ed.). Female and male in Latin America. Pittsburgh : University of Pittsburgh Press,
1973. Apud. SAMARA, Eni de Mesquita. O discurso e a construção da identidade de gênero na América
Latina. In : SAMARA, Eni de Mesquita ; SOIHET, Rachel ; MATOS, Maria Izilda S de. Gênero em debate :
trajetória e perspectiva na historiografia contemporânea. São Paulo : Educ, 1997, p. 21.
87 Sob o risco certo de cometer omissões, gostaria de mencionar dois trabalhos que me parecem significativos
acerca do tema, perspectiva por mim assinalada : PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na
colônia : Minas Gerais, 1716-1789. Belo Horizonte : UFMG, 2001 e FARIA, Sheila de Castro. FARIA, Sheila
de Castro. Sinhás pretas : acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras nos sudeste
escravista (sécs. XVIII e XIX). In : SILVA, Francisco Carlos Teixeira da, MATTOS ; Hebe Maria ;
FRAGOSO, João (Orgs.). Escritos sobre História e Educação. Homenagem a Maria Yedda Leite Linhares. Rio
de Janeiro : Mauad/Faperj, 2001, p. 289-329. Desse último trabalho, e a título de ilustração, extraí a seguinte
passagem localizada à página 292 : “ Quero crer que suas opções [das forras de contemplarem outras mulheres
e ex-escravas em testamento]... foram ditadas por experiências mais profundas e que as escolhas faziam parte
do universo cultural de suas terras de origem, embora tivessem como limite a realidade da sociedade escravista
do Brasil que, com certeza, elas também ajudaram a construir ” . Mais curioso ainda quando se identificam o
que parecem ser persistências hodiernas desse fenômeno : Na Nigéria, na década de 1960, as mulheres
ocupavam um importante papel no comércio, ainda que subestimado pelos censos, demonstrando a persistência
histórica das mulheres da África Ocidental nas atividades comerciais : “ Polly Hill escreveu sobre o ‘comércio
secreto’ de grãos das mulheres Hauça, que opera através de um ‘mercado labiríntico’, equivalente a um
mercado rural formal ” . HIIL, Bridget. Para onde vai a história da mulher ? História da mulher e história social
juntas ou separadas ? Varia Historia, Belo Horizonte, n.14, p.61, set./95.
88 CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras, brasileiras e escandinavas : loucuras, folias e
relações de gênero no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, n. 5, 1988, p. 189.
89 MATOS, Maria Izilda S de. Por uma história da mulher. São Paulo : Edusc, 2000, p.14.
90 PRIORE, Mary Del. História das mulheres : as vozes do silêncio. In : FREITAS, Marcos Cezar de (Org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo : Contexto, 1998, p. 226.
91 CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras, brasileiras e escandinavas : loucuras, folias e
relações de gênero no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, n. 5, 1988, p. 188.
92 CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras, brasileiras e escandinavas : loucuras, folias e
relações de gênero no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, n. 5, 1988, p. 213.
93 CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras, brasileiras e escandinavas : loucuras, folias e
relações de gênero no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, n. 5, 1988, p. 93.
CAPÍTULO III
A dificuldade do historiador
[da história das mulheres e de
gênero] está mais na fragmentação
do que na ausência da documentação.
Rachel Soihet. Enfoques feministas e
a História : desafios e perspectivas, p. 102.
Reconhecida por sua contribuição teórica para o pensamento de esquerda, Rosa Luxemburgo foi uma das mais destacadas militantes do Partido Social
Democrata Alemão.(Fonte :<http://ar.geocities.com/argentinaroja/fotos_rosa.htm>)
Mas o gênero “ biografia de militantes políticas ” também poderia guardar outras surpresas
e, até mesmo, “ ciladas ” , pelo menos quando o objetivo era destacar o papel “ edificante ” ,
exemplar que a história de vida dessas mulheres poderia representar para a luta das ativistas do
movimento feminista, principalmente quando o estudo de sua atuação pública, por sua
biografia, trazia à tona aspectos insuspeitados de sua vida privada. Talvez tenha sido esse o
impacto causado pelas revelações feitas sobre a militante de esquerda Rosa Luxemburgo
(1871-1919), nascida na Polônia, de onde fora expulsa exatamente por sua atuação política.
Membro destacado do Partido Social Democrata alemão, Rosa Luxemburgo, em uma
correspondência indiscreta, deixou registradas atitudes para com o sexo oposto que pouco se
coadunavam com o modelo que se fazia de uma militante revolucionária.
O que mais chamava atenção no comportamento de Rosa não era nem a forma dramática,
súplice, e por isso romanesca com que se dirigia à pessoa amada, rebaixando-se a implorar-lhe,
sufocada, o regresso. Nem o fato de ela procurar compensar exatamente na cozinha, os
atrativos que lhe faltavam para atrair a atenção do pretendido, cozinhando pratos sofisticados.
Mas decepção das decepções, sobretudo para as militantes de esquerda : suspeitava-se que
Rosa Luxemburgo desviava dinheiro do Partido Social Democrata Alemão para comprar os
talheres de prata com os quais serviria os manjares que, presumiam muitos, lhe roubavam um
tempo precioso que deveria ser dedicado ao partido.
Certamente, valendo-se dessas revelações, a fé inquebrantável que muitos demonstravam
na fórmula tão sintética e elegante do “ socialismo ou barbárie ” começou a dar lugar a
suspeitas. Até mesmo a oposição cerrada que ela fazia à política leninista de incorporação das
províncias ligadas à Rússia na “ República Soviética ” passou a ser motivo de desconfiança. A
partir daquelas revelações tão pouco ortodoxas para uma geração de feministas, Rosa era rosa
mesmo. Seu vermelho era vacilante, assim como seu modo de caminhar.
Ainda na perspectiva de reconstituição de vida de mulheres militantes, principalmente de
esquerda, não há como desconhecer que, pelo menos uma geração de intelectuais
“ engajados ” da década de 1970, sobretudo os interessados em América Latina, para além do
valor da fonte por si mesma, recebeu de forma bastante acalorada a autobiografia (ainda que
registrada por mãos de terceiras, sob a forma de entrevista) de uma mestiça boliviana, líder
popular junto aos operários das minas e da Central Operária Boliviana (COB), Domitila
Barrios de Chungara. Em Se me deixam falar104, Domitila, ao narrar os episódios relacionados
à sua luta política e sindical, revela, certamente de forma involuntária, evidências de algo que à
época deve ter passado de forma despercebida : como a condição de gênero afetava a
militância política, inclusive a de esquerda.
Exemplos destacados disso são as passagens em que ela revela as dificuldades em conciliar
a condição de militante e mãe, principalmente nos longos períodos passados na prisão onde
nasceu um de seus filhos. Uma fonte que, no momento atual da historiografia sobre as
mulheres, em que se insiste cada vez mais não apenas na importância em se considerar as
relações de gênero, mas, dentro delas, o comportamento de outras variáveis, como etnia e
condição social, talvez merecesse ser resgatada.
Pelo menos duas evidências, entre outras que poderiam ser citadas, da historiografia atual
produzida no Brasil, de que estaria ultrapassada a fase em que as biografias serviram apenas
para eternizar os feitos das mulheres reputadas como célebres, são os trabalhos de Francisca L.
Nogueira de Azevedo e de Júnia Ferreira Furtado.
No primeiro caso, ciente de que um trabalho historiográfico que se ocupe de uma única
personagem, não por acaso uma princesa, nem necessariamente é tributário de uma
historiografia tradicional de cunho positivista – com sua tendência a conferir atenção aos
grandes vultos históricos – nem de uma historiografia “ militante ” , interessada em resgatar o
“ verdadeiro papel que coube às mulheres na história ” , Francisca Nogueira se lança à tarefa
de reconstituir a biografia de Carlota Joaquina, desautorizando os autores que abordaram a
personagem baseando-se em posições misóginas.
Na busca de realçar os feitos dos heróis fundadores da nacionalidade brasileira, Carlota
Joaquina aparece na historiografia, particularmente a do século XIX, tanto no Brasil como em
Portugal, não apenas como o exemplo do anti-herói, mas também como a perfeita
contraposição aos modelos e representações idealizadas que se faziam da mulher à qual nosso
passado deveria ser identificado. Ela, portanto, “ para o bem, ou para o mal ” , não se
enquadrava nos cânones do papel feminino, mesmo em uma sociedade de corte e que “ ousou
enfrentar o mundo dos homens, transgredir as normas sociais de seu tempo. Nunca uma
Santa... mas uma mulher com desejos, vigor e ambição para viver de forma radical aquilo que
queria e acreditava ” 105 .
As fontes utilizadas por Francisca Azevedo constituem-se, principalmente, da
correspondência ativa e passiva de Carlota Joaquina, tanto a trocada oficialmente quanto a
pessoal, especialmente para a sua mãe, da qual temos um exemplo na seguinte passagem,
escrita a 27 de setembro de 1807, quando a princesa tentava evitar sua vinda, juntamente com a
Corte portuguesa, para o Brasil :
Ao retratar Carlota Joaquina montando como uma donzela – de lado, e não com as pernas enganchadas no cavalo como era de seu costume –, a imagem tenta
enquadrá-la aos modelos femininos de sua época. (Fonte : Quadro eqüestre de D. Carlota Joaquina. Pintura de Jorge Sampaio de Souza. Em O Museu
Imperial. São Paulo : Banco Safra, 1989. p.107. Acervo Museu Imperial, Petrópolis. Apud. AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte
.
do Brasil R.J. : Civilização Brasileira, 2003 (encarte)).
Ao contrário do que se costuma pensar, como outras mulheres forras de seu tempo, Chica
não foi rainha ou bruxa e sua atuação junto à elite branca do arraial do Tejuco foi sempre
conservadora, procurando usufruir das vantagens que sua nova inserção nessa sociedade podia
lhe oferecer. Ao longo de sua vida, procurou diminuir o estigma que a cor e a escravidão lhe
impuseram, promovendo a ascensão social de sua prole. Para isso, ela dispôs da influência e da
riqueza de seu companheiro.108
Estudos como o de Júnia Furtado contribuem para lançar luz a uma demanda
expressa por Michelle Perrot e Georges Duby na Introdução ao História das
mulheres no Ocidente : a da importância de se estudar o impacto da
colonização no Novo Mundo sobre as relações entre sexo e raça.
Cartas e diários
No Brasil, algo semelhante a esse tipo de fonte é a correspondência trocada entre Dona
Maria Bárbara Garcez Pinto de Madureira, senhora do engenho baiano de Aramaré, “ opulenta,
vigorosa e ruiva ” , com seu marido Luis Paulino d’Oliveira França enquanto esse se
encontrava em Portugal como deputado pela Bahia nas Cortes de Lisboa (Assembléia
Constituinte instalada após a “ Revolução do Porto ” , em 1820).
As “ notícias frescas ” que Dona Bárbara enviava a seu marido (que, pela demora da
travessia entre Brasil e Portugal, que variava de seis a sete meses já não chegavam tão viçosas
assim) diziam respeito, principalmente, aos efeitos desencadeados pela Guerra da
Independência da Bahia entre os escravos das propriedades rurais. Os cativos cujas estratégias
variavam de acordo com a origem étnica de cada grupo, disposta, grosso modo, em africanos e
crioulos, pareciam mobilizados e prontos a se aproveitarem das divisões entre os proprietários
e da situação de instabilidade resultante do embate das tropas portuguesas e “ brasileiras ” .
Observadora arguta, entre uma notícia e outra sobre a rotina da vida familiar, da saúde dos
filhos e dos netos, ela mostrava lucidez, ao informar a seu marido que discordava da avaliação
feita por outros senhores de engenho acerca da mobilização dos escravos, alertando que os
crioulos e os pardos (escravos nascidos no Brasil, os segundos mestiços) eram mais perigosos
que os africanos, pela capacidade de associar o movimento que libertaria o Brasil de Portugal
com a possibilidade de eles próprios tornarem-se livres. No caso de Dona Maria Bárbara, como
também no da viscondessa do Arcozelo, como se verá – e que seria característico da
aristocracia escravista brasileira –, seu mundo doméstico incluía a supervisão da propriedade e
o “ governo dos escravos ” , sobretudo na ausência do marido114 . Um mundo distinto do das
classes médias européias em ascensão na Europa.
Ao contrário do que se observou com as biografias e as autobiografias, sejam as que
abordam personagens femininos, sejam as que tratam de figuras masculinas, que
experimentam crescimento inigualável nos dias atuais, a troca de correspondência, e aqui me
refiro às formas convencionais, não àquelas que se servem dos meios eletrônicos, caíram, de
maneira geral, em desuso (ainda que estejam longe de desaparecer), o que se revela pelas
palavras que abrem o livro O feminino e o Sagrado, fruto da correspondência estabelecida
entre duas intelectuais européias, a ensaísta e escritora francesa Catherine Clément e a
psicanalista e semióloga Julia Kristeva, nascida na Bulgária, mas que vive em Paris desde
1966 : “ Ninguém escreve mais cartas ” , escreveu Julia Kristeva, do que discordou Clément
“ Ainda se escreve sim ” . A insistência de Clément, além de resultar no belíssimo livro que
aborda a questão dos gêneros, referida ao sagrado, ainda suscitou algumas considerações de
Kristeva sobre a prática epistolar : “ Gênero arcaico ? Não, espaço de precisão. Artifício ?
Talvez, mas o espaço da sinceridade também ” 115 .
Os diários pessoais, por sua vez, tornaram-se moda febril em vários países do mundo
ocidental no século XIX. Apesar de pertencerem, conforme observado logo acima, ao
subgênero “ literatura do íntimo ” , os diários têm uma diferença marcante em relação às
cartas : pelo menos em princípio, e, sobretudo conquanto registro da vida íntima, e não como
anotações de reflexões literárias, filosóficas, etc., não foram escritos para serem lidos até
mesmo pelo círculo mais íntimo que gravitava em torno de seus autores. Afinal, e a
redundância é proposital, os diários eram o produto de uma cultura que não media esforços
para manter assuntos privados em âmbito privado.
Constatando que esse tipo de registro foi produzido de forma mais abundante nos Estados
Unidos e nos países europeus, nestes últimos, principalmente naqueles onde, à semelhança do
que ocorria na América do Norte, se professava a religião protestante, autores como Evaldo
Cabral de Melo se ocuparam em buscar as razões para que tal ocorresse. O historiador
pernambucano sugeriu como explicação para o fenômeno exatamente fatores de ordem
religiosa, já sugeridos por Gilberto Freyre. Desse modo, “ ao passo que no catolicismo o
exame da consciência está tutelado na confissão pela autoridade sacerdotal, no protestantismo
ele não está submetido a interposta pessoa ” , do que resultava que “ o católico podia recorrer
ao confessionário ” , enquanto ao protestante “ só restava o refúgio do papel ” 116 .
A “ febre ” dos diários teria contagiado principalmente as mulheres. As folhas em branco
poderiam receber anotações que, mesmo nos países católicos, não seriam motivo de conversa
no confessionário, como as feitas por uma dona de casa norte-americana de nome não
revelado, que, em 1880, se queixava dos efeitos que o reforço do espaço doméstico,
característico da “ era vitoriana ” , havia representado em relação ao “ verdadeiro trabalho de
Sísifo que era sua tarefa doméstica ” . Não sem ironia, o historiador que revelou a fonte
observou que “ muitas mulheres pareciam utilizar o diário para se queixarem do tédio e não
apenas para registrar fatos espetaculares (ou até mesmo para se queixarem da falta de
oportunidade para que eles ocorressem) ” 117 .
Outras, porém, como Mabel Loomis Todd, mulher de classe média norte-americana que
viveu entre 1867 e 1932, citada pelo mesmo historiador, demonstrava “ desinibição ”
suficiente para manter em dia, e com níveis excessivo de detalhes, o registro de sua vida
erótica, a ponto de surpreender o profissional habituado com o tratamento da fonte : “ Pode ser
que o diário tenha se tornado muito comum no século burguês, porém eis decerto um registro
incomum ” 118 . Talvez o que se explicasse pela facilidade com que Mabel Loomis Todd
transitava pelo espaço público, não tendo que se queixar do peso das tarefas domésticas, como
fez sua conterrânea anônima. Afinal, coube a ela a primazia de reconhecer as qualidades
literárias e de publicar os poemas da renomada escritora Emily Dickinson (1830-1866).
O registro de Mabel Todd era sem dúvida incomum, mas não exclusivo. Anotações de
natureza tão íntimas quanto as feitas por elas foram encontradas nos diários de Barbara
Suslova, feminista russa, à qual já se fez menção no primeiro capítulo. Irmã da primeira
mulher a graduar-se em Medicina na Rússia e também feminista ativa, Nadejda, e filha de um
servo emancipado, Bárbara Suslova, que também havia sido professora, tornou-se jornalista e
não hesitava em expor suas divergências em relação à opinião pública convencional,
desdenhando, principalmente, das idéias sustentadas por esses porta-vozes do conservadorismo
com referência às relações entre os sexos. Missivista ativa, Suslova tinha o hábito de
transcrever suas cartas pessoais como as enviadas para Fiódor Dostoievski em seu diário, bem
como “ as oscilações próprias de suas próprias emoções instáveis ” e os encontros do casal nos
quartos de hotéis em suas viagens pela Europa119 .
Se fatores como o catolicismo ajudam a explicar o porquê de os diários serem tão escassos
no Brasil, ele não pode ser considerado como causa única. Vários autores concordam que a
manutenção de laços tradicionais de família e de uma sociabilidade marcada pelo
patriarcalismo teriam dificultado, no Brasil do século XIX, a ocorrência de mudanças como as
registradas na Europa, quando se constituíram, juntamente com a emergência da burguesia,
concepções de interioridade, de individualidade, do eu (self), como se viu no Capítulo I. No
lugar de uma burguesia puritana, nossas classes dominantes se constituíam baseando-se no
domínio exercido sobre os escravos, sem a interferência do Estado, o que resultaria em certa
indistinção entre o público e o privado, o primeiro quase que constituindo mera extensão da
vida familiar
No Brasil Imperial, com raras exceções, como o diário íntimo escrito não por uma mulher,
mas pelo político e empresário José Vieira Couto de Magalhães entre os anos de 1880 e
1887,120 esse tipo de registro teria sido raro.
No máximo, alguns registros de assento, cadernos de notas onde, além da contabilidade das
empresas, o proprietário anotava acontecimentos extraordinários ou rotineiros, como o
nascimento ou morte de um filho ou parente próximo, os gastos com a visita de um médico,
etc.
Mas talvez não seja mesmo o caso de buscar similaridades nas fontes produzidas em
contextos tão diversos. Nesse caso, parecem oportunas as observações de Celso Castro acerca
do que possa ser definido como um diário. O historiador propõe, com base no argumento de
que a palavra diário pode apresentar múltiplos significados, que “ ... a própria palavra ‘diário’
deve ser pensada no contexto de uma história cultural dos ‘registros em si’ ” . O que o leva a
considerar que possa existir uma definição “ mínima ” de diário, entendido como “ um
contínuo que abrange desde uma simples ‘agenda’ de acontecimentos ao registro dos
pensamentos ‘íntimos’ de seu autor ” .
É nessa perspectiva que ele aborda o que denomina o “ Diário de Bernardina ” , mesmo
que sua autora, a filha de Benjamin Constant, um dos protagonistas do processo de transição
da Monarquia para a República, limite-se a anotar na capa do caderno onde escrevia a singela
frase “ continuação das notas de 1889 ” 121 . Os apontamentos de Bernardina, iniciados quando
a jovem andava pelos 16 anos, circunscreviam-se aos acontecimentos passados no espaço
doméstico : a visita de parentes, as raras saídas para o teatro, as doenças, suas e dos mais
próximos e, apenas ocasionalmente, algum registro displicente sobre algum episódio que
depois pudesse se relacionar à história da Proclamação da República.
A comparação com o diário, esse sim mais próximo das noções correntes que se tem desse
tipo de “ escrita de si ” , de Helena Morley (Alice Dayrell Caldeira Brant, 1880-1970), escrito
quando a autora tinha entre 13 e 15 anos, na cidade de Diamantina, Minas Gerais, também no
final do século XIX e publicados pela primeira vez em 1942,122 parece forçosa. Celso Castro,
depois de ressaltar a “ vivacidade ” com que Helena Morley escreve suas vivências diárias,
conclui que os registros, porém, aproximam-se pelo “ peso das relações familiares e do destino
então geralmente reservado às mulheres, circunscritas aos cuidados com o lar e a família ” 123 ,
constituindo-se em fontes para a história social das mulheres no Brasil.
Para o autor, esse tipo de fonte ganha importância quando se sobreleva o fato de que, de
acordo com os dados do Censo Geral do Império de 1872, quase dois terços das mulheres
brasileiras eram analfabetas,124fator que, sem dúvida, se soma aos demais para explicar a
“ inapetência ” que se demonstrava em sociedades como a brasileira para a reprodução desse
tipo de fonte.
Sob o nome de “ Diário de lembranças ” , Maria Isabel de Lacerda Werneck, a viscondessa
de Arcozelo, membro genuína da elite cafeeira do Rio de Janeiro, registra, a partir do ano de
1887, aos 48 anos, as mais variadas informações acerca do seu cotidiano e de sua propriedade :
o batizado dos escravos, o movimento de mercadorias e pessoas, mas também sobre seus
sentimentos, “ todos de apreço, preocupação ou desagrado ” 125.
Não importa aqui estabelecer o quanto as anotações da viscondessa se aproximam da
taxonomia do gênero diário. Elas são úteis para a reconstituição dos “ diferentes papéis
femininos assumidos na dinâmica de uma família da aristocracia rural oitocentista ” ,
comparativamente aos outros estratos sociais. O que não significa afirmar que suas
experiências, sobretudo as de tempo e espaço, também não estivessem ligadas ao âmbito
doméstico, se bem que ampliado pelas lides próprias a uma unidade plantacionista e que a
distanciava do mundo público freqüentado pelos homens da fazenda.
O seu tempo, como se lê no seu diário, era plural e compreendia “ o tempo climático, do
frio e da chuva ; o tempo de vida dos filhos que crescem e dos netos que nascem ; o tempo da
colheita do café e da garantia da riqueza ; o tempo dos escravos e de suas tarefas diárias ” . O
espaço por excelência era o doméstico “ das tarefas diárias e do crescimento das crianças ” , e
não o das cidades, com a vida glamourosa dos salões e onde se afirmava uma esfera de poder
público126.
O Cabrião
Por meio de caricaturas em jornais, tentava-se controlar os gestos, as modas e os modos da mulher. . Semanário editado por Ângelo
Agostini, Américo Campo e Antônio Manoel Reis, 1866-1867. São Paulo, Unesp/Imprensa Oficial, 2000.
Fontes oficiais
Sob o risco de uma generalização excessiva, podemos afirmar que as fontes oficiais são
aquelas geradas nas esferas de poder público, seja no âmbito do Estado, seja no da Igreja. A
produção historiográfica, partindo do princípio de que o campo de ação em que as mulheres
atuaram se restringia ao espaço privado, doméstico, como se vem insistindo, durante algum
tempo não se prestou a devida atenção às potencialidades desse tipo de registro para a
reconstituição da história das mulheres nem de gênero. Nesse ponto, talvez tenha que se
destacar os estudos demográficos como pioneiros nessas abordagens, ainda que pesem sobre
muitos deles a crítica de terem assimilado a história das mulheres à da família ; ou as pesquisas
voltadas para a história social, que, desde cedo, se mostraram atentas às possibilidades abertas
pela documentação produzida pelo poder público (estatal ou não), com destaque para os
registros judiciários.
Afirmar as possibilidades desse conjunto documental para a elaboração da história das
mulheres, principalmente pelo reconhecimento de que mesmo as fontes consideradas
“ tradicionais ” , quando submetidas a novas leituras, a questões originais, podem, da mesma
forma que a documentação privada, lançar luz sobre os universos femininos, abre um conjunto
de possibilidades que vem sendo explorado de forma alargada pela historiografia. Em
decorrência disso, as escolhas que tive que fazer neste item, em razão da extensão do objeto,
foram mais complexas porque mais restritivas e corresponderam, mais uma vez, a escolhas e
critérios baseados em minha experiência profissional.
O fato de que no Brasil, como em vários países da Europa, Igreja e Estado encontrarem-se
unidos durante boa parte de sua história (no caso do nosso país até a Proclamação da
República) levou a que os registros de casamento, nascimento e óbitos fossem feitos pela
Igreja. Na América Portuguesa, o próprio processo de colonização, efetuado pela “ cruz e pela
espada ” , reforçava os poderes da Igreja católica em franca união com a Coroa portuguesa,
consolidada por uma instituição conhecida como o Padroado Régio. Através dele, ao mesmo
tempo em que o Estado metropolitano remunerava os integrantes do clero e intervinha na
indicação das autoridades eclesiásticas, a Igreja instituía seus instrumentos de controle sobre a
população, mediante a instauração de devassas eclesiásticas, do controle sobre as confissões,
entre muitos outros mecanismos.
Baseando-se na documentação gerada pelas devassas eclesiásticas, instauradas pela Igreja
para apurar os crimes contra a religião, por exemplo, foi possível reconstituir vários aspectos
da vida em família, das relações extraconjugais, das práticas de feitiçaria, dos processos de
divórcio que muito contribuíram para o avanço da história das mulheres. Fontes que, ao
mesmo tempo em que permitem “ auscultar as vozes femininas ” em suas “ vidas corriqueiras,
absolutamente ordinárias ” , devem ser tratadas com a máxima cautela, em razão de terem sido
“ ouvidas à luz dos constrangimentos impostos pelas práticas de poder que orientam tal e qual
interrogatório ” 149 .
O mesmo impulso se fez sentir pela sistematização das fontes seriadas representadas pelos
registros de batismo, de casamento e de óbitos, como também dos chamados róis de
confessado (que registravam todos os fiéis que haviam recebido o sacramento da comunhão
por ocasião da quaresma) para a história da família e, dentro dela, das mulheres. Elas
permitiram, e não apenas no Brasil, que se conhecesse a dinâmica dos arranjos familiares e de
como são recentes as noções de família baseada apenas na consangüinidade.
As conclusões dessa historiografia, para a realidade brasileira, ainda que não possam se
generalizadas, apontam para a existência de lares encabeçados por mulheres sustentando que o
modelo de família extensa (onde coabitavam, sob um mesmo teto, parentes de diversas
gerações) se circunscrevia a uma realidade muito restrita de regiões do Nordeste brasileiro.
Constatada a vastidão desses conjuntos documentais, que ensejaram grande número de
pesquisas, optei por tratar, mais uma vez a título de exemplo, com duas entre as muitas fontes
oficiais depositadas em cartórios, quais sejam, os testamentos e os processos crime. As
informações neles contidas, juntamente com os inventários, as ações de liberdade e tantas
outras, vêm contribuindo para a compreensão da história das mulheres e de gênero no Brasil.
TESTAMENTOS
Em se tratando da história do Brasil, essa fonte apresenta um duplo significado, no que diz
respeito às suas potencialidades para a história das mulheres. De um lado, em razão das nossas
origens ibéricas, as mulheres aqui tiveram direito à sua parte na herança de pais e maridos
desde os primórdios da colonização, situação que só se observa na maioria dos países da
Europa central apenas após as revoluções burguesas, quando então desaparece o direito de
primogenitura (quando o filho mais velho é quem herdava) em benefício de uma igualdade
perante a herança.
Essa realidade teria facultado certa autonomia à parcela das mulheres que dispunham de
bens, tanto quando se tornavam viúvas e se colocavam à frente da administração das
propriedades da família, quanto diante do casamento, pela possibilidade de anteciparem sua
parte na herança através do dote : “ Com o dote, foi possível verificar que, muitas vezes, as
filhas foram privilegiadas no recebimento da herança familiar, em detrimento dos filhos, que
aguardavam as respectivas legítimas na divisão do monte ” 150 .
O outro significado que a utilização dos testamentos tem revelado para a abordagem da
história das mulheres diz respeito à possibilidade que um grupo de mulheres demonstrou de
acumular pecúlio ao longo da vida, a ponto de constituírem fortunas nem de longe
desprezíveis. E o mais interessante é que, se logo acima se destacou o direito das mulheres à
herança como a reprodução de um traço ibérico no Brasil, no caso da acumulação do pecúlio
cada vez mais se vem estabelecendo que tal fato possuía relações estreitas com a história da
África.
Sheila de Castro Faria, em estudo realizado sobre as negras forras de Campos (RJ), para os
anos de 1707-1812, e de São João Del Rei (MG), entre 1730-1839, e apoiando-se nos trabalhos
de Eduardo França Paiva, demonstrou como as mulheres escravizadas do grupo étnico mina
reproduziram, nas condições de cativeiro, não apenas as divisões de trabalho prevalecentes no
continente africano, baseadas essencialmente no critério de gênero, mas também as relações
familiares do continente de origem. No caso dessas mulheres, o testamento se mostrou como
fonte essencial, uma vez que a exigência de abertura de inventários não era obrigatório quando
morriam pessoas sem herdeiros diretos, como acontecia com grande parte delas.
Depois de destacar que as negras mina se sobressaíam nas atividades comerciais, o que
lhes permitia o acúmulo de um pecúlio suficiente não apenas para a compra da alforria como
também para a aquisição de bens e escravos, Sheila de Castro destaca que essa habilidade tinha
sua origem na divisão do trabalho por sexo na Costa Ocidental (o que explicaria, até, o porquê
de o mesmo desempenho não ter se repetido no conjunto de escravas provenientes da região
Congo-angolana) : “ A constituição das unidades domésticas e os tipos de investimentos das
mulheres forras mostraram-se extremamente uniformes, o que reforça meus argumentos de que
as raízes das opções das mulheres forras localizavam-se além do Brasil ” 151 .
Dispondo dos recursos ganhos por seu “ próprio trabalho e indústria ” , essas mulheres
tendiam a reproduzir, no Brasil escravista, os arranjos familiares também predominantes
naquela região, onde a poliginia (em que um homem era casado simultaneamente com várias
mulheres) havia criado lares com características bem peculiares, composto pelas esposas que
habitavam casas separadas e que abrigavam aquelas mulheres que, inelegíveis para o
casamento pela falta de dote, inclusive, passavam a constituir sua família.
Tal situação explicaria a opção, uma vez no Brasil e tendo conhecido as condições de
cativeiro, de as forras de origem mina manterem-se solteiras, adquirirem preferencialmente
escravas em relação às quais não só assumia a prole, como também contemplavam em seus
testamentos, tornando palpável a perspectiva de serem alforriadas e reiniciarem o “ ciclo ” .
O fascinante de toda essa reconstituição é que ela não apenas mostra como as relações de
gênero interferiam mesmo nas condições desfavoráveis de cativeiro (até porque essas mulheres
se alforriavam em bem maior número do que os escravos), como também que a história dos
“ contra-poderes ” das mulheres não se limitaram à mera resistência mas à construção de
espaços de autonomia e de definição do próprio destino, mesmo em condições adversas.
PROCESSOS CRIME
Uma das fontes das mais utilizadas pela historiografia que, sobretudo em finais da década
de 1980, se ocupou em caracterizar o tipo de relações que se estabeleceram entre senhores e
escravos no Brasil colonial e imperial, os processos crime têm revelado suas possibilidades
também para o estudo das relações de gênero, principalmente quando se referem a crimes
passionais.
Seguindo a linha inaugurada por trabalhos como Meninas perdidas, de Marta Abreu, que
aborda os conflitos entre a realidade e a norma do comportamento sexual estabelecida por
médicos e juristas, comparativamente aos valores compartilhados pelos segmentos populares
em suas relações amorosas, Magali Gouveia Engel, através da análise de processos de
homicídio entre homens e mulheres ocorridos em Campinas entre 1952 e 1972, propõe-se a
analisar o universo da crimes passionais para o Rio de Janeiro entre 1890 e 1930.
Entre suas fontes, encontram-se, além dos processos criminais cujos réus foram acusados
de assassinar, ou tentar assassinar, seus companheiros, notícias sobre crimes passionais
publicados nos jornais cariocas, teses médicas, dentre outras. Com base nelas, Magali Engel
esboça um perfil dos conflitos que envolviam relações amorosas e/ou sexuais, ocorridos
naquela cidade, preocupando-se em analisar os resultados e os julgamentos narrados nas fontes
judiciais. O último procedimento permitiu-lhe concluir que nem sempre os juristas decidiam
com base em um único modelo de comportamento, ainda que fossem dominantes as
associações entre “ mulher e dona de casa e homem provedor e bom trabalhador ” .
A preocupação da autora em enfocar o tema não com base na história das mulheres, mas,
sim, numa perspectiva de gênero, faz com que o trabalho contribua para que se compreenda a
“ multiplicidade de padrões socioculturais que informava as relações homem-mulher
disseminadas na sociedade ” 152 .
CENSOS
Das imensas possibilidades contidas nas fontes censitárias (elas próprias de natureza
variada), por exemplo, buscar perceber as alterações na prática antroponímica (escolha de
nomes próprios e adoção de sobrenomes) ao longo do tempo para descobrir como os estudos
nessa área têm revelado que o estoque de nomes disponíveis para as mulheres, ao longo da
época moderna, era menor do que o dos homens ; ou os níveis de alfabetização de determinada
população, permitindo as diferenciações entre os gêneros, entre muitos outros temas
identificáveis a uma história menos convencional, optei por considerá-las a partir do que elas
revelam sobre ocupações, profissões e a participação das mulheres na força de trabalho.
Trabalhando com as listas nominativas de habitantes de Minas Gerais de 1832-33 e 1839-
40, produto de uma das primeiras tentativas mais sistemáticas das autoridades mineiras de
contarem a população da província, Clotilde Andrade Paiva faz uma observação interessante
sobre as ocupações femininas que se encontram subrepresentadas nessas fontes153 . Isso se
deve ao fato de os “ recenseadores ” , de antemão, associarem as mulheres ao trabalho
doméstico (entendido como as tarefas de limpeza, de alimentação e cuidados com a família),
mesmo que o que se conheça hoje sobre a realidade da economia da região aponte para o papel
destacado que as mulheres desempenhavam não apenas nas atividades agrícolas e, mais
importante ainda, no trabalho de fiação e tecelagem, significativa fonte de renda, como
também em manufaturas localizadas fora do espaço da casa, ainda que predominassem aquelas
feitas dentro dos domicílios. Nesse caso, portanto, os sub-registros apontam muito mais os
preconceitos dos responsáveis pelo levantamento à época do que o confinamento das mulheres
às atividades essencialmente domésticas.
A mesma observação cabe à realidade de vários países da Europa, nos quais, “ no século
XIX, o trabalho das mulheres agricultoras ou camponesas é constantemente subestimado, dado
que apenas é referido a profissão do chefe de família ” , o que significa dizer que “ a relação
dos sexos imprime a sua marca nas fontes históricas e condiciona a sua desigual
densidade ” 154 .
A situação se verificaria particularmente na Inglaterra na época em que os primeiros sensos
foram realizados. É o que revela Bridiget Hill, que, levando em conta os preconceitos de
muitos realizadores das pesquisas, alerta que devemos confiar neles (os censos) “ até certo
ponto ” , para estabelecermos como as ocupações das mulheres mudaram ao longo do tempo, a
proporção de mulheres que trabalhavam no país, a estrutura etária desse força de trabalho, o
estado civil dessas mulheres, entre muitos outros aspectos.
Naquele país, a partir de 1841, os censos ocupacionais passaram a se basear em critérios
definidos pela economia clássica que considerava que apenas o trabalho remunerado deveria
ser registrado. O resultado disso foi que a divisão do trabalho se inseriu “ permanentemente ”
no censo, contribuindo para que se consolidasse uma identidade entre ocupação e trabalho
masculino. No caso desses levantamentos, “ o lugar ” de onde falavam seu organizadores e
realizadores contava e muito uma vez que eram homens “ que tinham certas hipóteses sobre a
posição das mulheres na sociedade ” 155 . A hipótese prevalecente, a de que apenas o trabalho
remunerado era o que contava, levou ao sub-registro do trabalho feminino.
Mesmo o exercício de tarefas domésticas poderia significar alguma fonte de renda para as mulheres quando desempenhadas para terceiros. A lavagem de
roupa encontrava-se entre as principais delas. Teixeira da Rocha. A lavadeira, s/d. Óleo sobre tela. Teixeira da Rocha. O Brasil do século XIX na Coleção
Fadel. Rio de Janeiro : Edições Fadel, 2004, p. 197.
Literatura de viagem
94 Outra possibilidade seria a da indicação de uma bibliografia mais exaustiva sobre o assunto, que desse conta
dos temas mais recorrentes, dos aspectos inter e transdiciplinares que envolveram a matéria. A existência de
excelentes levantamentos dessa natureza, inclusive para o Brasil, levou-me a optar pelo caminho exposto nesta
primeira parte do capítulo. O leitor que tiverespecial interesse acerca da bibliografia sobre história das mulheres
e gênero, poderá consultar, entre tantos outros, os trabalhos de PRIORE, Mary Del. História das mulheres : as
vozes do silêncio. In : FREITAS, Marcos Cezar de (Org.). Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo :
Contexto, 1998 e MATOS, Maria Izilda S de. Por uma história da mulher. São Paulo : Edusc, 2000, p. 14-33.
95 GOMES, Ângela de Castro. A título de Prólogo. In : GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si e
escrita da História. Rio de Janeiro : FGV, 2004, p. 9.
97 “ Carlo Ginzburg... nos fala de um paradigma indiciário, método este extremamente difundido na
comunidade acadêmica.... Qual Sherlock Holmes, [o historiador] enfrenta o desafio do passado com atitude
dedutiva e movido por suspeita : vai em busca de traços, de pegadas como um caçador, de vestígios, como um
policial ” . PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História cultural. Belo Horizonte : Autêntica, 2003, p. 63.
98 MATOS, Maria Izilda S de. Outras histórias : as mulheres e estudos dos gêneros percursos e possibilidades.
In : SAMARA, Eni de Mesquita ; SOIHET, Rachel ; MATOS, Maria Izilda S de. Gênero em debate : trajetória
e perspectiva na historiografia contemporânea. São Paulo : Educ, 1997, p. 103.
99 MATOS, Maria Izilda S de. Por uma história da mulher. São Paulo : Edusc, 2000, p.21.
100 PRIORE, Mary Del. História das mulheres : as vozes do silêncio. In : FREITAS, Marcos Cezar de (Org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo : Contexto, 1998, p. 217.
101 GOMES, Ângela de Castro. A título de Prólogo. In : GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si e
escrita da História. Rio de Janeiro : FGV, 2004, p. 11.
102 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 89.
103 HIIL, Bridget. Para onde vai a história da mulher ? História da mulher e história social juntas ou
separadas ? Varia Historia, Belo Horizonte, n.14, p. 17, set./1995.
104 VIEZZER, Moema. Se me deixam falar. Entrevista com Domitila Barrios de Chungara. SP : Símbolo,
1979.
105 AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira, 2003, p. 22.
106 AZEVEDO, Francisca L. Nogueira de. Carlota Joaquina na Corte do Brasil. Rio de Janeiro : Civilização
Brasileira, 2003, p. 25.
107 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador dos diamantes : o outro lado do mito. São
Paulo : Companhia das Letras, 2003. Não deixa de ser curioso o fato de que ambas se tornaram tema de filme :
Chica da Silva dirigido por Cacá Diegues, de 1976, e Carlota Joaquina, Princesa do Brasil, de Carla Camurati,
de 1995.
108 FURTADO, Júnia Ferreira. Família e relações de gênero no Tejuco : o caso de Chica da Silva. Varia
Historia, Belo Horizonte, n. 24, p. 44, jan./2001.
109 A descrição densa aproximaria o trabalho do historiador daquele desenvolvido pelo etnógrafo preocupado
em seu trabalho de campo, não apenas em descrever as tradições de um “ país estranho ” ( “ os cavaleiros
berberes, os comerciantes judeus, os legionários franceses ” ), mas em interpretá-lo em sua “ teia de
significados ” . GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro : LTC, 1998, Capítulo I.
110 GONÇALVES, Andréa Lisly. As margens da liberdade : práticas de alforrias em Minas Gerais colonial e
imperial. São Paulo : USP, 2000. (Tese de doutorado).
111 PAIVA, Eduardo França. Escravidão e universo cultural na colônia ; Minas Gerais, 1716-1789. Belo
Horizonte : Ed. da UFMG, 2001 e Escravos e libertos nas Minas Gerais do século XVIII ; estratégias de
resistência através dos testamentos. São Paulo : Anablume, 1995.
112 DERMALE, Marie-Claire Hoock. Ler e escrever na Alemanha. In : Duby, Georges ; PERROT, Michelle.
Histórias das mulheres no Ocidente. Porto : Afrontamento, 1991, p. 192.
113 ROQUETE, José Inácio. Código do bom-tom : ou Regras de civilidade e de bem viver no século XIX. São
Paulo : Companhia das Letras, 1997. Organização de Lilia Moritz Schwarcz, p. 270.
114 FRANÇA, Antônio O. Pinto de (Org.). Cartas baianas, 1822-1824. São Paulo : Companhia Editora
Nacional, 1980.
115 CLÉMENT, Catherine ; KRISTEVA, Julia. O feminino e o sagrado. Rio de Janeiro : Rocco, 2001, p. 9.
116 MELLO, Evaldo Cabral de. O fim das casas grandes. In : NOVAIS, Fernando A. (Coord.) ;
ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da vida privada no Brasil. Império : a corte e a modernidade
nacional. São Paulo : Companhia das Letras, 1997, p. 386.
117 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 130.
118 GAY, Peter. A experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo :
Companhia das Letras, 1988, p. 61.
119 FRANK, Joseph. Dostoievski : as sementes da Revolta (1821 a 1849). São Paulo : Edusp, 1999, p.377-378.
120 COUTO DE MAGALHÃES, José Vieira. Diário íntimo. São Paulo : Companhia das Letras, 1998.
Organização de Maria Helena P. T. Machado.
121 CASTRO, Celso. O diário da Bernardina. In : GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si e escrita da
História. Rio de Janeiro : FGV, 2004, p. 237.
122 MORLEY, Helena. Minha vida de menina. São Paulo : Companhia das Letras, 1998.
123 CASTRO, Celso. O diário da Bernardina. In : GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si e escrita da
História. Rio de Janeiro : FGV, 2004, p. 237.
124 O fato de saberem ler não parecia entusiasmar o comerciante inglês Luccock : “ estava assentado que o
saber ler para elas não devia ir além do livro de rezas, pois isso lhes seria inútil ” . LUCCOCK, John. Notas
sobre o Rio de Janeiro e as partes meridionais do Brasil (1813). Belo Horizonte : Itatiaia ; São Paulo : Edusp,
1975, p. 75.
125 MAUD, Ana Maria ; MUAZE, Mariana. A escrita da intimidade : história e memória no diário da
viscondessa do Arcozelo, p. 204. In : GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si e escrita da História. Rio
de Janeiro : FGV, 2004, p. 202.
126 MAUD, Ana Maria ; MUAZE, Mariana. A escrita da intimidade : história e memória no diário da
viscondessa do Arcozelo. p.204. In : GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de si e escrita da História. Rio
de Janeiro : FGV, 2004, p. 204.
127 Todas as informações que se referem ao Código do Bom-Tom foram extraídas de ROQUETE, José Inácio.
Código do bom-tom : ou Regras de civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo : Companhia das
Letras, 1997. Organização de Lilia Moritz Schwarcz.
128 Código do Bom-Tom foram extraídas de ROQUETE, José Inácio. Código do bom-tom : ou Regras de
civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo : Companhia das Letras, 1997. Organização de Lilia Moritz
Schwarcz, p. 357.
129 Código do Bom-Tom foram extraídas de ROQUETE, José Inácio. Código do bom-tom : ou Regras de
civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo : Companhia das Letras, 1997. Organização de Lilia Moritz
Schwarcz, p. 131.
130 Código do Bom-Tom foram extraídas de ROQUETE, José Inácio. Código do bom-tom : ou Regras de
civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo : Companhia das Letras, 1997. Organização de Lilia Moritz
Schwarcz, p. 148.
131 PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo : UNESP, 1998, p. 41.
132 Código do Bom-Tom foram extraídas de ROQUETE, José Inácio. Código do bom-tom : ou Regras de
civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo : Companhia das Letras, 1997. Organização de Lilia Moritz
Schwarcz, p.209.
133 Código do Bom-Tom foram extraídas de ROQUETE, José Inácio. Código do bom-tom : ou Regras de
civilidade e de bem viver no século XIX. São Paulo : Companhia das Letras, 1997. Organização de Lilia Moritz
Schwarcz, p. 210.
134 GAMA, Padre Lopes. O carapuceiro : crônicas de costume. São Paulo : Companhia das Letras, 1996.
Oganização de Evaldo Cabral de Mello.
135 AGOSTINI, Ângelo, CAMPOS, Américo ; REIS, Manoel dos. O Cabrião. Semanário humorístico. São
Paulo : Unesp/Editora Oficial do Estado, 2000. (Edição fax-similar).
136 Na abordagem que realizou dos discursos sobre o suicídio, relacionados à questão do gênero na ótica dos
especialistas internacionais do século XIX, Flávio Henrique Lopes destacou que as conclusões mais correntes
eram a de que “ os homens se suicidavam mais por serem mais corajosos e mais persistentes que as mulheres ;
por sofrerem as pressões da vida pública, ao contrário dos limites impostos pelo espaço doméstico. Assim,
estabelece-se que as mulheres não teriam força necessária para o suicídio. Fracas, tornam-se loucas, não
suicidas. Os homens, fortes e mais decididos, tornam-se suicidas, utilizando os meios considerados mais
violentos ” . LOPES, Flávio Henrique. Suicídio masculino ou feminino : as atribuições de gênero. Anais do
Encontro Nacional da Anpuh, Paraíba, 2003, p. 9.
137 As informações sobre os tratados que abordam a sexualidade oitocentista foram retiradas de GAY, Peter. A
experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo : Companhia das Letras,
1988, p.117-124.
138 As informações sobre os tratados que abordam a sexualidade oitocentista foram retiradas de GAY, Peter. A
experiência burguesa : da rainha Vitória a Freud. A educação dos sentidos. São Paulo : Companhia das Letras,
1988, p. 108.
139 As considerações que se seguem baseiam-se em CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras,
brasileiras e escandinavas : loucuras, folias e relações de gênero no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo,
Rio de Janeiro, n. 5, p. 181-215, 1988.
140 CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras, brasileiras e escandinavas : loucuras, folias e
relações de gênero no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, n. 5, p. 204, 1988.
141 FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral. Belo Horizonte : Fundação João Pinheiro ; Rio de Janeiro :
Fundação Oswaldo Cruz, 2002. Organização de Júnia Ferreira Furtado. 2 volumes.
142 FIGUEIREDO, Betânia Gonçalves. A arte de curar : cirurgiões, médicos, boticários e curandeiros no
século XIX em Minas Gerais. Rio de Janeiro : Vício de Leitura, 2002, p. 21.
143 FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral. Belo Horizonte : Fundação João Pinheiro ; Rio de Janeiro :
Fundação Oswaldo Cruz, 2002. Organização de Júnia Ferreira Furtado, p. 688, v. 2 e 444, v. 1,
respectivamente. Grifo meu.
144 LE GOFF, Jacques. Profissões lícitas e profissões ilícitas no Ocidente Medieval. Para um novo conceito de
Idade Média : tempo, trabalho e cultura no Ocidente. Lisboa, Estampa, 1979, p. 86.
145 FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral. Belo Horizonte : Fundação João Pinheiro ; Rio de Janeiro :
Fundação Oswaldo Cruz, 2002. Organização de Júnia Ferreira Furtado, p. 688, v. 2.
146 Sertões do Rio das Velhas e das Gerais : vida social numa frente de povoamento 1710 1733. Maria Odila
Leite da Silva Dias. In : FERREIRA, Luís Gomes. Erário Mineral. Belo Horizonte : Fundação João Pinheiro ;
Rio de Janeiro : Fundação Oswaldo Cruz, 2002. Organização de Júnia Ferreira Furtado, p. 88, v. 1.
147 COELHO, Ronaldo Simões. O Erário Mineral divertido e curioso. In : FERREIRA, Luís Gomes. Erário
Mineral. Belo Horizonte : Fundação João Pinheiro ; Rio de Janeiro : Fundação Oswaldo Cruz, 2002.
Organização de Júnia Ferreira Furtado, p. 166-167, v. 1.
148 PEDRO, Joana Maria. Tabu centenário. Nossa História, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional, n. 17, ano 2,
março de 2005, p. 21.
149 PRIORE, Mary Del. História das mulheres : as vozes do silêncio. In : FREITAS, Marcos Cezar de (Org.).
Historiografia brasileira em perspectiva. São Paulo : Contexto, 1998, p. 227.
150 SAMARA, Eni de Mesquita. O discurso e a construção da identidade de gênero na América Latina. In :
SAMARA, Eni de Mesquita ; SOIHET, Rachel ; MATOS, Maria Izilda S de. Gênero em debate : trajetória e
perspectiva na historiografia contemporânea. São Paulo : Educ, 1997. p. 31.
151 FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas : acumulação de pecúlio e transmissão de bens de mulheres forras
nos sudeste escravista (sécs. XVIII e XIX). In : SILVA, Francisco Carlos Teixeira da, MATTOS, Hebe Maria ;
FRAGOSO, João (Orgs.). Escritos sobre História e Educação. Homenagem a Maria Yedda Leite Linhares. Rio
de Janeiro : Mauad/Faperj, 2001, p. 292.
152 ENGEL, Magali Gouveia. Paixão, crime e relações de gênero (Rio de Janeiro, 1890-1930). Topoi, Rio de
Janeiro, n. 1, p. 154.
153 PAIVA, Clotilde Andrade. População e economia nas Minas Gerais do século XIX. São Paulo : FFLCH :
USP. 1996. Tese de doutorado.
154 DUBY, Georges ; PERROT, Michelle (Orgs.). Escrever a história das mulheres. História das mulheres no
Ocidente. Lisboa : Afrontamento, 1991, p. 7.
155 HIIL, Bridget. Para onde vai a história da mulher ? História da mulher e história social juntas ou
separadas ? Varia Historia, Belo Horizonte, n. 14, set./95, p. 54.
156 HIIL, Bridget. Para onde vai a história da mulher ? História da mulher e história social juntas ou
separadas ? Varia Historia, Belo Horizonte, n. 14, set./95, p. 60.
157 PERROT, Michelle. Mulheres públicas. São Paulo : UNESP, 1998, p. 86.
158 LEITE, Miriam Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro. São Paulo : Hucitec ; Brasília : INL,
1984.
159 LEITE, Miriam Moreira. A condição feminina no Rio de Janeiro. São Paulo : Hucitec ; Brasília : INL,
1984, p.141.
160 EXPILLY, Charles. Mulheres e costumes do Brasil. Belo Horizonte : Itatiaia, 2000.
161 LANGSDORFF, E. de. Diário da Baronesa de Langsdorf relatando sua viagem ao Brasil por ocasião do
casamento de S. A. R. o Príncipe de Joinville : 1842-1843. Florianópolis : Ed. Mulheres ; Santa Cruz do Sul :
EDUNISC, 2000, p. 14.
162 LANGENDONCK, Madame van. Uma colônia no Brasil. Florianópolis : Ed. Mulheres ; Santa Cruz do
Sul : EDUNISC, 2002.
163 CUNHA, Maria Clementina Pereira da. De historiadoras, brasileiras e escandinavas : loucuras, folias e
relações de gênero no Brasil (século XIX e início do XX). Tempo, Rio de Janeiro, n. 5, 1988, p. 181-215.
Considerações finais
Um balanço do caminho percorrido pela história das mulheres e de gênero desde sua
emergência, em finais da década de 1960 até os dias atuais, sugere os desafios a ser
enfrentados pelos estudiosos do tema em um momento em que profundas transformações
afetam a produção historiográfica. A começar pela necessidade de que aqueles estudos
concretos, formulados a partir de ampla base empírica, sejam organizados com vistas a se
formularem sínteses com maior poder de explicação, sem que, contudo, em nome da
abrangência, se desconheçam as descontinuidades que marcam esse campo de estudo que
abriga experiências sociais radicalmente distintas. Outro desafio parte do reconhecimento de
que, ao avanço das pesquisas sobre a história das mulheres, não correspondeu o mesmo esforço
no sentido de estabelecer as relações entre as experiências femininas e o universo masculino,
compreendidas ambas em suas múltiplas pluralidades.
Não menos importante, e não obstante os esforços feitos nessa direção por boa parte dos
estudiosos, ainda não parecem definitivamente superadas as visões essencialistas (e muitas
vezes naturalizadas) sobre as mulheres conquanto sujeitos históricos, da mesma forma em que
os questionamentos de que a produção do conhecimento histórico se assentara até muito
recentemente sobre a falsa noção de um sujeito que só era universal (o homem branco), porque
as relações de poder assim o definiram, não foram suficientemente exploradas a ponto de
suscitarem completa reorientação das abordagens históricas.
Se o desvendamento das relações de gênero foram de suma importância para o
entendimento da história da família, da sexualidade, da infância, resta agora – e não são poucas
as iniciativas nesse sentido – introduzir essas relações na história política, econômica e militar,
campos considerados até então como impermeáveis ao reconhecimento da atuação da mulher,
assim como a religião.
Sobre esse último assunto, cabe mencionar, novamente, a importante iniciativa levada a
efeito pela psicanalista e crítica literária Julia Kristeva e pela antropóloga Catherine Clément,
que, entre novembro de 1996 e setembro de 1997, mantiveram animada correspondência, o que
resultou num encontro fecundo entre a Antropologia e a História, a Psicanálise e a Literatura, o
gênero e a história das mulheres. A troca de cartas foi a forma que as consagradas autoras
elegeram para a realização de um projeto que talvez fosse adiado para um futuro incerto dadas
as dificuldades de se encontrarem para realizar algo “ presencial ” a quatro mãos.
Kristeva e Clément travaram um debate cujo ponto de partida resumia-se à questão de que
se haveria uma vivência particular do sagrado, entendido como a relação do humano com a
divindade, não subordinado ao religioso com seus ritos e regras, determinada pelo gênero. Em
termos gerais, a questão formulada pelas autoras era a de que o sagrado seria um território
próprio ao feminino – idéia inversa àquela sugerida pela própria palavra femina composta de
fides e minus, o que quer dizer “ fé de menos ” – ainda que a noção de “ feminino ” não se
confinasse, estritamente, a um único gênero. Apesar de responderem afirmativamente à
questão, as autoras não o fizeram pelos mesmos motivos. Não seria o caso de desenvolver a
longa argumentação sustentada pelas autoras, o que exigiria um trabalho à parte. Vale destacar,
porém, as formulações apresentadas no texto que introduz a publicação das cartas :
Questões inquietantes, que a história das mulheres, de gênero e a nova dinâmica dos
movimentos feministas têm contribuído para refletir. Da capacidade de suas respostas,
certamente depende o encaminhamento das complexas questões multiculturais que se
acentuam no século XXI, reatualizando o potencial essencialmente político e, porque não,
subversivo, como insistem várias autoras que se dedicaram a esse campo do conhecimento, da
história das mulheres e de gênero.
164 KRISTEVA, Julia ; CLÉMENT, Catherine. O feminino e o sagrado. Rio de Janeiro : Rocco, 2001, p.8
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