TSVIETAIEVA. O Poeta e o Tempo
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O poeta e o tempo
Mar i na Tsvi e tai e va
Tr ad u ç ão
O poeta e o tempo 1
«Amo a arte, mas não a arte contemporânea» – palavras que podem ser ditas não
apenas por um leigo, mas também, em algumas ocasiões, por um grande artista, mas que
invariavelmente se referem a um campo diferente da actividade artística. Um pintor pode
proferi-las a propósito da música, por exemplo. No seu campo, o grande artista é inevita-
velmente contemporâneo, e a razão – vê-la-emos mais adiante.
Não amar uma obra, em primeiro e primordial lugar, é não a reconhecer: não reco-
nhecer nela – o já conhecido. A primeira causa para registar uma obra é a falta de preparação
para ela. A gente do campo, quando se encontra na cidade, demora muito a apreciar os nossos
pratos. Tal como as crianças – recusam os novos sabores. Viram a cabeça espontaneamente.
Não vejo nada (neste quadro) e por isso não quero olhá-lo – e para o ver é preciso olhá-lo, para
descobrir algo nele – há que olhá-lo bastante tempo. Esperança equívoca do olho habituado
a ver à primeira vista – ou seja, a ver como antes, a ir na esteira dos olhos alheios. Não chegar
a ver: descobrir. Nos velhos, o cansaço (que é o atraso); no leigo a prevenção, a prudência; no
pintor que não ama a poesia contemporânea – a imobilidade (da cabeça e de todo o seu ser).
Nos três casos o medo do esforço, coisa perdoável – desde que não se emitam opiniões.
1 [ Nota da editora ] Com exceção desta, todas as notas deste texto são do tradutor. A primeira
publicação desta tradução foi em: O Poeta e o Tempo. Tsvietaieva, Marina. Lisboa, Hiena,
1993. Optamos por manter a transliteração do nome de Marina como se apresenta na referida
edição. A editora agradece ao tradutor pela autorização para esta publicação.
2 o poeta e o tempo (Poet i Vremia) saiu nos números 1 a 3 da revista Volie Rossii (Praga,
1932), e Tsvietaieva lera um texto semelhante a 21 de Janeiro desse ano de 32, em Paris, du-
rante um serão literário. Numa carta a Anna Teskova afirma: «No dia 17 [de Janeiro de 1932]
lerei uma conferência (a primeira vez na minha vida!): O poeta e o tempo [...]. Talvez receba
cerca de 300 francos, se Deus quiser. Serguei Iakovlevitch está outra vez desempregado e a
situação é desesperada... ». E de novo a Anna, a 27 de Janeiro: «No dia 21 teve lugar a minha
conferência O poeta e o tempo. Na sala não havia nenhum lugar vazio, o público esteve muito
bem disposto, embora eu tenha dito verdades cruéis».
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O único caso digno de respeito, quer dizer, a única recusa legítima de uma obra, é
a recusa com plena consciência. Sim, conheço-a; sim, li-a; sim, reconheço-a – mas prefiro
(suponhamos) Tiutchev em vez de Marina Tsvietaieva, quero o meu sangue e as minhas
ideias, quero aquilo que comigo tem mais afinidades.
Cada qual é livre de escolher os seus preferidos; melhor dizendo, ninguém é livre de
escolhê-los: encantar-me-ia (suponhamos) amar o meu século mais que o século passado,
mas não posso. Não posso nem sou obrigada. Ninguém é obrigado a amar, mas quem não
ama é obrigado a conhecer: primeiro – o que não ama; segundo – por que não o ama.
Tomemos o caso mais extremo: a rejeição da própria obra por parte do artista. A
mim, a minha época pode parecer-me repugnante, eu mesma posso dar-me náuseas, visto
que sou a minha época. Direi até mais (já que sucede!): uma obra alheia, pertencente a um
século que não seja o meu, pode tornar-se mais querida que a minha própria obra – e não
pela sua força, mas sim pela sua afinidade; uma mãe pode gostar mais do filho de outra
mulher que do próprio filho, parecido com o seu pai (a sua época), mas eu estou conde-
nada ao meu filho – ao filho do meu tempo – e por mais que desejasse, não poderia parir
outro. É a fatalidade. Não posso amar este século mais do que o século passado, mas tam-
bém não consigo criar um século diferente do meu: não é possível criar o já criado, apenas
se cria em direcção ao futuro.
Não nos é permitido escolher os nossos filhos: nem os que nos são dados nem os
que nos são atribuídos.
«Amo a poesia, mas não a poesia contemporânea» – também esta afirmação, como
qualquer outra, tem a sua contra-afirmação, a seguinte: «Amo a poesia, mas somente a
poesia contemporânea». Comecemos pelo caso menos interessante e mais frequente: o do
homem vulgar e corrente, para chegar ao mais interessante: o do grande poeta.
«Abaixo Pushkin!» é o grito de resposta do filho perante o grito do pai: «Abaixo
Maiakovski!» – do filho que vocifera não tanto contra Pushkin, como contra o próprio pai.
O grito «Abaixo Pushkin!» é o primeiro cigarro fumado às escondidas do pai (que deixou
de fumar), e fumado não tanto pelo próprio prazer como para desgostar o pai. Pertence
à classe de desavenças familiares que terminam – em amizade (na essência, nem ao filho
nem ao pai os preocupam Maiakovski ou Pushkin). É o grito das gerações em conflito.
O segundo autor do miserável grito «Abaixo Pushkin! » é o pior dos autores: a moda.
Nesta autora não nos deteremos: medo de atrasar-se, quer dizer, admissão da própria con-
dição de ovelha. Mas o que se pode exigir de um leigo quando a essa condição de ovelha se
encontram expostos os próprios escritores, os mais atrasados? Cada contemporaneidade
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universal é aquela que na tradução para outra língua e outro século (e na tradução para
a língua de outro século) perde menos – não perde nada. Depois de ter dado tudo ao seu
século e ao seu país, dará de novo tudo a todos os países e a todos os séculos. Depois de
ter revelado ao máximo o seu país e o seu século, mostra ilimitadamente tudo o que é o
não-lugar e o não-tempo: o para sempre.
Não existe arte não contemporânea (que não revele o seu próprio tempo). Existe a
restauração, ou seja, não-arte, e existem indivíduos solitários que deram um salto para a
frente, digamos de cem anos (n. b.: nunca para trás!), quer dizer, de novo contemporâneos,
se bem que não do seu próprio tempo, mas não estando fora do tempo.
O génio? Que nome pronunciamos quando pensamos no Renascimento? Leonardo
da Vinci. O génio dá nome à época, a tal ponto ele é a época, mesmo que ela disso não
esteja consciente. Mais simplesmente: « a época de Goethe » é uma definição que cobre
todos os mapas – o histórico, o geográfico e mesmo o astronômico – daquele dado mo-
mento. (« Nos dias de Goethe », quer dizer, quando as estrelas ocupavam no céu uma po-
sição determinada. Ou então, de um modo absolutamente certo: «O terramoto de Lisboa»,
quer dizer, quando Goethe duvidou pela primeira vez da providência divina. A dúvida de
Goethe de sete anos imortalizou esse terramoto – superou-o).
O gênio dá nome à época, a tal ponto é ele a época, ainda que não seja de todo
consciente (não seja sempre consciente, acrescentaremos, posto que Leonardo, Goethe ou
Pushkin o foram). Mesmo nos tratados: «Goethe e o seu tempo» (isto é, o substantivo
colectivo e o seu conteúdo). O génio pode dizer sobre o tempo, com todo o direito, aquilo
que Luís XIV (sem ter nenhum) disse do Estado: Le temps c’est moi (e toda a plêiade: Le
temps – c’est nous). Isto a propósito do gênio, que sempre se antecipa. A respeito dos que
supostamente levam um atraso de um ou três séculos, citarei um só exemplo: o do poeta
Hölderlin, que pelos temas tratados, pelas fontes e até pelo vocabulário é um poeta da
Antiguidade, ou seja, chegou ao século XVIII com um atraso não de um século, mas sim
de dezoito. Hölderlin, que só agora começa a ser lido na Alemanha, depois de terem pas-
sado mais de cem anos, foi adoptado pelo nosso século e decerto que não é antigo. Depois
de ter chegado ao seu século com um atraso de dezoito, veio a revelar-se contemporâneo
do nosso século XX. Que significa este milagre? Significa que na arte é impossível che-
gar tarde; que, não importa de que se alimente ou o que procure ressuscitar, a arte é em
si própria avanço. Que na arte não há retorno, que ela é movimento contínuo, quer di-
zer irreversível. Não irreflectido, mas sim irreversível. Ao voltar a cabeça para trás, como
o viajante, não olhar senão as verstas percorridas. Também é possível avançar de olhos
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fechados – com uma bengala de cego – e até mesmo sem bengala. As pernas, por si só,
vão-nos conduzindo, mesmo se graças ao pensamento nos encontramos do outro lado do
mundo. Olhar para trás e caminhar em frente.
5 «Leskov...» – Nikolai S. Leskov (1831-1895), autor de obras em prosa (como p. ex. O Clero da
Catedral), não terá sido suficientemente valorizado pelos seus contemporâneos (na opinião de
Tsvietaieva). De qualquer modo, veio a ter, talvez, mais repercussão no século XX, inspirando
algumas pesquisas da prosa russa nas épocas pré e pós-revolucionária.
Poderia nomear dezenas de poetas não contemporâneos vivos hoje em dia, mas
que já não são poetas ou jamais o terão sido. Foram abandonados não pelo sentido do seu
próprio tempo, que talvez nunca tenham possuído em estado puro; foram abandonados
pelo talento, graças ao qual num certo momento sentiam – revelavam – criavam. Não
ir para a frente (em poesia – como em tudo) é ir para trás, quer dizer, ausentar-se. Ao
trunfo da literatura da emigração 8 sucedeu-lhe o mesmo que com o leigo a partir dos
trinta anos: transforma-se em contemporâneo da geração passada, ou seja, neste caso, da
sua própria individualidade artística de há trinta anos. Ficou atrasado não em relação
aos outros caminhantes, mas em relação a si mesmo, pois deveria ter caminhado para
diante. A razão pela qual x não aceita a arte contemporânea é que ele próprio deixou de
criá-la. x não é contemporâneo não porque não aceite a arte contemporânea, mas porque
se deteve no seu itinerário criativo, que é o único acto a que o criador não tem direito. A
arte avança, os artistas param.
Não contemporâneos – exceptuando quem pela sua neutralidade não é contempo-
râneo de nenhum tempo – são unicamente os lesionados: os inválidos, título honorífico,
visto que pressupõe ter existido validez no passado. O meu único desafio ao tempo:
Porque fora do tempo
Nasci. São vãs as tuas exigências
Todas. Soberano por um momento! –
– Tempo! Para mim não existes.9
– é o grito do meu tempo: é – através dos meus lábios – o contra-grito do tempo contra
si próprio. Se eu tivesse vivido há cem anos, quando os rios corriam tranquilos... A contem-
poraneidade de um poeta é a sua condenação ao tempo. Condenação a ser conduzido por ele.
É impossível sair-se da História. Se Esenin tivesse compreendido isso, teria can-
tado tranquilamente não apenas a sua aldeia, mas também a árvore da sua casa rústica, e
nenhum machado teria podido derrubar essa árvore e afastá-la da poesia do século XX.
8 «... literatura de emigração» – É provável que a autora esteja a referir-se ao já citado Ivan
Bunin.
9 «... não existes» – Versos extraídos do Elogio do Tempo, um poema de Tsvietaieva surgido
na recolha Depois da Rússia (Paris, 1928).
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E ao eco de Erre-Ésse-Efe-Ésse-Erre 10
responde todo o meu coração
como se eu tivesse sido oficial
nos dias mortais de Outubro.
Há algo na poesia mais importante do que o seu significado – o seu som. E os sol-
dados da Moscovo de 1920 não se enganavam: estes versos, na sua essência, falam muito
mais do oficial vermelho (e até do soldado) que do branco, que nem sequer os teria acei-
tado, que (1922-1932) não os aceitou.
Sei o que digo, pela sensação de alegria e de confiança com que lá os pude ler –
lançava-os aos inimigos como se os lançasse contra algo bastante querido – e pela sen-
sação (timidez e impressão de estar fora do lugar) com que os leio aqui, algo como um:
«Perdoai-me, pelo amor de Deus.» «O quê?» «É que escrevo acerca de vós» – assim, e não
de outra maneira: com as vozes de lá, com as vozes deles; honro-vos na língua do inimigo:
na minha língua! E em geral: perdoai-me, pelo amor de Deus, por ser – poeta, porque se
eu escrevesse de tal modo que não tivésseis de perdoar-me e pudésseis reconhecer-vos em
tudo o que escrevo – não seria o que sou – um poeta.
Quando numa ocasião li o meu Acampamento de Cisnes num ambiente de todo
inadequado, um dos presentes disse: «Não está mal. Afinal de contas, você é um poeta
revolucionário. Tem o nosso ritmo.»
Na Rússia perdoava-se-me tudo por ser poeta, aqui perdoam-me o ser poeta.
Também sei que o verdadeiro público do meu Perekop 11 não são os oficiais da
Guarda-Branca a quem, com absoluta pureza de coração, gostaria, de cada vez que leio o
poema, contar-lho em prosa – não são eles, mas os cadetes do Exército Vermelho, a quem
todo o poema, incluindo a prédica do sacerdote antes do ataque, chegaria – chegará. Se
entre o poeta e o povo não estivessem os políticos!
E ainda outra coisa: os meus poemas russos 12 , apesar de todo o meu isolamento,
e por sua própria vontade e não minha, estão concebidos – para as multidões. Aqui as
multidões fisicamente não existem, há grupos. Tal como, em vez de anfiteatros e tribu-
nas na Rússia, aqui há pequenas salas; em vez do acontecimento ético da literatura lida
em público – serões literários; em vez do insubstituível ouvinte anónimo da Rússia – um
ouvinte com nome e mesmo com título. Falamos de literatura e não da vida. Diferentes
dimensões, diversas respostas. Na Rússia – tanto nas estepes como no litoral – há sempre
onde e para onde dirigir a própria voz. Assim fosse permitido falar.
Mas em geral as coisas são simples: aqui está uma certa Rússia, esta Rússia, e lá está
toda a Rússia. Para quem vive aqui, o passado é contemporâneo na arte. A Rússia (falo da
Rússia, não de quem detém o poder), a Rússia, o país dos avançados, exige que a arte guie; a
emigração, país dos atrasados, exige que a arte se detenha juntamente com ela, ou seja, que
retroceda de maneira irresistível. Na ordem que impera aqui, eu sou a desordem. Lá não
me publicariam – mas ler-me-iam; aqui publicam-me – mas não me lêem (Aliás, já deixa-
ram de me publicar). O mais importante na vida de um escritor (na sua segunda metade)
11 «...do meu Perekop» – Este nome é o do istmo que liga a península da Crimeia ao resto da
Ucrânia, e foi o cenário da resistência do Exército Branco nessa região. Assim se intitula um
ciclo poético de Tsvietaieva publicado postumamente em 1957.
12 «...poemas russos»... – Tsvietaieva refere-se a poemas cuja génese radica em temas pop-
ulares russos, contos tradicionais, fábulas fantásticas, etc. (p. ex. O Valente, Sobre a Cavalo
Vermelho, Ruelas, etc.).
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é escrever. Não ter êxito, ter tempo. Aqui ninguém me impede de escrever e não mo impe-
dem duplamente, já que não só mo impede a hostilidade, mas também a fama (o amor).
Mas também a Rússia, apesar disso, não é suficiente. Todo o poeta é por essência
um emigrante, mesmo na Rússia. Um emigrante do Reino dos Céus e do paraíso terrestre
da natureza. O poeta (todos os artistas, mas sobretudo o poeta) leva sempre a marca es-
pecial do descontentamento, graças à qual mesmo na sua própria casa é possível reconhe-
cê-lo. É um emigrante da Imortalidade no tempo, um exilado do seu céu. Peguemos nos
poetas mais diversos e coloquemo-los mentalmente em fila: no rosto de quem veremos
a presença? Tudo está ali. A sua pertença a uma terra, a um povo, a uma nação, a uma
raça, a uma classe – e até a própria contemporaneidade, que eles criam –, mas tudo isso
é apenas a superfície, a primeira ou a sétima camada da pele, da qual o poeta só procura
escapar. «Que horas são?» – perguntaram-lhe aqui. E ele respondeu com um curioso: «A
eternidade» – Mandelstam propósito de Batiushkov; ou: «Queridos, que milénio temos aí
13 «...a ir lá» – Possível alusão à viagem que Rilke fez à Rússia em 1899-1900, acompanhado
por Lou Andreas Salomé.
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E atormentava-me no mundo,
repleta de um maravilhoso desejo.
E os tristes cantos desta terra
não podiam substituir os cantos do céu.14
o seu coetâneo, o septuagenário Balmont, como um jovem de vinte anos, e até à data ou
lutam contra ele, ou o «perdoam» como a um neto. Outros mais jovens, todavia, são ou
já foram contemporâneos deste Igor Severianin16 , quer dizer, da sua própria juventude (Há
pouco tempo, houve um serão literário de Igor Severianin e a emigração acorreu para se
ver a si mesma, como era há uns tempos – ver pessoalmente a sua própria juventude, sentir
como então cantava, e a juventude – que inteligente! – cresceu e deixou de cantar, fê-lo uma
única vez – com um sorriso trocista nos lábios – gozando connosco e consigo própria...). Os
últimos, finalmente, começam a descobrir Pasternak (a admitir que existe): Pasternak, que
desde há quinzer anos (1917: Minha Irmã a Vida) é o melhor poeta da Rússia, e que publica
há mais de vinte anos. Amam e conhecem Pasternak, ou seja, são os verdadeiros contempo-
râneos de Boris Pasternak, não os seus coetâneos, que têm cerca de quarenta anos, mas os
seus filhos, que por sua vez também se deixarão ficar para trás, que se tenderão e cristaliza-
rão precisamente naquele Pasternak, se não forem mais atrás, até Blok ou ainda mais longe,
à terra dos seus pais, esquecendo-se de que no seu tempo essa foi a terra dos seus filhos. E
em algum lado, protegido pelas cores do anonimato, deambula entre nós um poeta, aquele
poeta futuro que seria enormemente amado pelos seus contemporâneos de vinte anos se o
conhecessem. Mas não o conhecem. E nem ele próprio se conhece, considera-se o último
dos poetas. Conhecem-no apenas os deuses e – o seu caderno de apontamentos em branco,
com as vincadas marcas dos seus cotovelos. A ninguém foi dado conhecer o Boris Pasternak
de vinte anos.
De tudo o que foi dito se toma evidente que o traço distintivo da contempora-
neidade do poeta não está na precocidade do seu reconhecimento geral, e, portanto, não
está na quantidade, mas na qualidade desse reconhecimento. O reconhecimento geral de
um poeta pode ser póstumo. Mas a sua contemporaneidade (a faculdade de influenciar a
qualidade do seu tempo), essa, dá-se sempre em vida, já que em questões de arte apenas a
qualidade se leva em conta.
«On ne perd rien pour attendre» – Pasternak não perdeu nada, mas quem sabe
se aquele russo suicida tivesse apanhado uns aguaceiros pasternakianos, e se tivesse sa-
bido suportar esse choque (compreendê-lo artisticamente) não se teria lançado do Arco do
Triunfo (em resposta a: a minha amada a morte – Minha irmã a vida!).
Haveria que perguntar a esses que foram para a guerra com os livros de Pasternak
e de Blok no bolso.
num poeta-revolucionário; que eu não o seja não significa que me tenha convertido num
poeta-conservador. Poeta da revolução (le chantre de la Révolution) e poeta revolucioná-
rio são coisas diferentes. Fundiram-se apenas numa ocasião na pessoa de Maiakovski. E
fundiram-se ainda com mais força devido a Maiakovski ser um revolucionário-poeta. Por
isso ele é o milagre dos nossos dias, a sua máxima harmonia. Mas existem também os
contra-milagres: Chateaubriand, que não estava com a Revolução, mas sim contra ela, pre-
parou na literatura a revolução do Romantismo, que não se teria dado se a Revolução o
tivesse obrigado a escrever panfletos políticos (N. B.: geniais em Maiakovski, mais pode-
rosos que toda a sua força lírica, que sufocou dentro de si).
Segundo e mais importante ponto: não importa que aceites, recuses ou repudies a
Revolução –de qualquer modo já está em ti – desde sempre (o elemento natural) e desde
o ano de 1918 russo, que, quer queiras quer não – existiu. A Revolução poderia deixar no
poeta tudo o que fosse antigo, menos o tempo e as suas dimensões.
«E o velho Sologub com as suas bergeries18 escritas antes de morrer?» Precisamente
– escreveu-as o velho Sologub. Agudo como documento humano (de um poeta velho
aquando da Revolução), irritante como imagem (de um ancião que perdeu tudo e...); mas
as bergeries não são arte; e do mesmo modo: as bergeries – não são Sologub! Nas bergeries
Sologub, graças à torrente sombria do seu talento, é absolvido – deixado nas margens da
Arcádia. No também velho Kuzmin19, no seu bizantino São Jorge (1921), ouve-se o ritmo
da Revolução; se um estrangeiro o escutasse, diria: é o combate. É desta «revoluciona-
riedade» que falo. Para o poeta não há outra. Ou então (exceptuando o milagre único de
Maiakovski) não há poeta. Pasternak não é revolucionário por ter escrito O Ano de 1905,
mas sim por ter descoberto uma nova consciência poética e a sua inevitável consequên-
cia – a forma. É bem significativo que o ano de 1905 não encontrasse – entre os seus nessa
altura grandes contemporâneos – o seu cantor, e entre os seus então grandes poetas não
encontrasse o seu contemporâneo. Há só um ano de 1905 – o de Pasternak, mais de vinte
anos depois. Donde se depreende que todo o sucesso – como todo o poeta e todo o po-
ema – podem por vezes esperar, não só sem nenhum prejuízo para si mesmos, como até
18 «...Sologub com as suas bergeries...» – Fiodor Sologub (1863-1927), autor da novela O Diabo
Mesquinho, publicou em 1922 O Caramelo, uma série de vinte e sete poemas líricos inSpirados
na poesia pastoral francesa do século XVIII.
para seu bem. Os acontecimentos são uma grande lição criativa de paciência também para
aqueles que procuram precipitar os acontecimentos.
Não existe um só grande poeta russo contemporâneo cuja voz não tenha vacilado e
crescido depois da Revolução.
O tema da Revolução é uma exigência do tempo.
O tema da exaltação da Revolução é uma exigência do partido.
Poderá porventura um partido político – até o mais poderoso, ou o que tenha maior
futuro no mundo – ser todo o seu tempo, e poderá em nome do seu tempo distribuir ordens?
Esenin morreu porque tomou um encargo alheio (do tempo – à sociedade) como
seu (do tempo – ao poeta); tomou um dos encargos por encargo único. Esenin morreu
porque permitiu a outros que o conhecessem por ele, esqueceu que era ele mesmo o fio
condutor: o fio condutor mais directo!
A missão política (não interessa qual) atribuída ao poeta é uma missão equívoca;
arrastar o poeta pelos vários Turksib 20 é um erro, os comunicados poéticos são pouco con-
vincentes; arrastá-lo na senda da política é inútil.
Por isso a tarefa política confiada ao poeta não é uma exigência do tempo, que or-
dena sempre sem intermediários. É uma tarefa não do tempo presente, mas simplesmente
da actualidade. A essa actualidade do dia de ontem devemos a morte de Esenin.
Esenin morreu, porque se esqueceu de que era ele próprio um intermediário,
arauto e guia do tempo – era o seu tempo pelo menos na medida em que o eram os outros,
esses por quem se deixou desviar e destruir em nome do tempo.
O escritor, se é apenas
uma onda, e a Rússia – o oceano,
não pode deixar de sentir-se agitado
quando estão agitados os elementos.21
20 «...pelos vários Turksib...» – O Turksib era a linha férrea que ligava as regiões do Turquestão
russo (actual Turquemenia) à Sibéria do sudoeste.
O escritor, se é apenas
o nervo de um grande povo,
não pode deixar de sentir-se derrotado
quando é derrotada a liberdade.
— quer dizer, o próprio nervo da criação.
Não escrevam contra nós, porque vocês são a força. Aqui está o único pedido legí-
timo de qualquer governo ao poeta.
Se vocês me disserem: «Em nome do futuro...» – Do futuro recebo eu as incumbên-
cias directamente.
O que é toda essa pressão (da igreja, do estado, da sociedade) perante a outra, a
interior!
Direi mais – que Perekop tenha saído bem deve-se exclusivamente ao facto de o
ter escrito sem me sentir perturbada por nenhuma alegria interessada, na mais absoluta
ausência de qualquer tipo de simpatia, e aqui na emigração, como poderia, de igual modo,
Caderno de Leituras n.66 o p o e ta e o t e m p o M a r i n a T s v i e ta i e va 17
escrevê-lo na Rússia. Sozinha contra todos – incluindo contra os meus próprios heróis,
que não compreendem a minha língua. Numa dupla renúncia: a da cause perdue dos
Voluntários Brancos e a da cause perdue do poema dedicado a eles.
Toda a simpatia interessada – de grupo ou de partido – é a morte. A única simpatia
possível é a do povo, mas vem depois.
Os deveres que o tempo me impõe são o meu tributo a ele próprio. Se toda a criação,
ou seja, toda a encarnação, é um tributo à natureza humana, é esse o maior tributo à na-
tureza e, como tal, o maior pecado diante de Deus. A minha única salvação (e a da minha
obra) é que o encargo que o tempo me deu resultou de uma ordem da consciência, que é
eterna. De consciência por todos esses puros do coração, que foram assassinados e nunca
enaltecidos, que não podem ser enaltecidos. Na minha obra a ordem da consciência preva-
lece sobre os deveres do tempo, e isso garante que nela o amor prevaleça sobre o ódio. Eu,
ao contrário de toda a Moscovo contra-revolucionária e da emigração, nunca odiei tanto os
Vermelhos como amei os Brancos. Crueldade do tempo, penso, que em parte é expiada com
este amor.
Aqueles que na Rússia soviética são designados por «compagnons de route» – ou
que por modéstia assim se denominam a si mesmos – são, pelo contrário, guias. Criadores
não apenas da palavra, mas também das visões do seu tempo.
Até mesmo na imortal troika gogoliana não vejo o poeta como um simples cavalo
de reforço.
Não se trata de «acompanhar na estrada», mas sim de criarmos juntos na solidão.
E quando o poeta serve melhor o seu tempo é quando lhe permite que fale pela sua voz,
quando lhe permite manifestar-se. O poeta serve melhor o seu tempo quando se esquece
completamente dele (quando se esquecem completamente dele). Não quem grita mais alto,
mas sim, às vezes, quem cala mais.
22 «O poema de Pushkin Ao Mar...» – Este poema de Pushkin (1824) é uma presença repetida
ao longo dos escritos de Marina Tsvietaieva.
Caderno de Leituras n.66 o p o e ta e o t e m p o M a r i n a T s v i e ta i e va 18
O contemporâneo não é todo o meu tempo, da mesma maneira que toda a contem-
poraneidade não é um dos seus fenómenos. A época de Goethe é simultaneamente a época
de Napoleão e a de Beethoven. A contemporaneidade é o conjunto do melhor.
Mesmo se admitíssemos que o comunismo, como tentativa de uma melhor organi-
zação da vida terrestre, fosse um bem, seria apenas ele – o bem?, seria apenas ele – todos
os bens?, englobaria e determinaria todos os outros bens e forças como a arte, a ciência, a
religião, o pensamento? Inclui-os, exclui-os ou – a par disso – convive com eles.
Eu, em nome de todos os outros bens, insisto neste último ponto. Como uma
das forças motrizes da contemporaneidade, e precisamente como organizador da vida
terrestre cada vez mais desordenada – seja bem-vindo! Mas assim como a organização
da vida terrestre não é mais importante que a da espiritual, e assim como a ciência da
convivência humana não é mais importante que o acto heróico da solidão – também o
comunismo, organizador da vida terrestre, não é mais importante que todas as forças
motrizes da vida espiritual, que não é nem super- nem infra-estruturas. A terra não é
tudo, e mesmo que o fosse – a organização da convivência humana não é toda a terra. A
terra vale e merece mais.
Sê bem-vindo! – digo-lhe eu, como a qualquer um que saiba ocupar o seu lugar.
Estou agora muito perto de dar a resposta para mim mais difícil: será Rilke um ex-
poente do nosso tempo? Rilke, esse homem distante — entre os distantes, sublime – entre
os sublimes, solitário – entre os solitários, se também Maiakovski (e quanto a ele não há a
menor dúvida) é expoente do nosso tempo?
Rilke não é nem encargo nem demonstração do nosso tempo – é o seu contrapeso.
A guerra, os massacres, a despedaçada carne da discórdia – e Rilke.
Por Rilke o nosso tempo será perdoado à terra.
Por oposição, ou seja, como necessidade e antídoto do nosso tempo, Rilke apenas
pôde ter nascido nele.
Caderno de Leituras n.66 o p o e ta e o t e m p o M a r i n a T s v i e ta i e va 19
És o mais belo
de quanto ouvi.
Com quem corre pode-se correr, mas quando compreendemos que não corre para
nenhum lado, que corre sempre, corre só porque corre, corre por correr... Que a sua cor-
rida é o seu objectivo, ou – o que é pior ainda – que é uma fuga de si próprio: de si – de
uma ferida, um rasgão para onde conflui tudo o que escorre.
«Diese Strecke lauf enwir zusammen» 23 – no melhor dos casos, um mau compa-
nheiro de viagem, que nos leva a todas as tabernas, que nos envolve em todas as brigas,
que nos faz perder de vista a nossa meta, mesmo se for a mais humilde, e ao fim e ao cabo
(um fim que chega muito, muito cedo) abandona-nos, deixando-nos a carteira e a cabeça,
vazias. Se nós, tornando a dianteira, não o tivermos abandonado primeiro.
Servir o próprio tempo é cumprir um encargo por desespero. O ateu apenas tem
este momento exacto do seu século, essa medida de peso. Também existe a outra face fa-
miliar: «desfruta o dia presente», goza-o, já que mais além está o fim. O reino da terra para
quem perde a esperança no reino dos céus.
O movimento para diante, mas não até ao fim – logro, antes pelo contrário até ao
fim – destruição. E se uma geração após a outra de deuses terrestres ensinasse o planeta,
de algum modo, a não acabar, se o protegesse do não-ser? O fim ou a eternidade da vida
terrestre, igualmente terrível por ser igualmente vã.
O «por tão pouco não vale a pena o esforço», de Lermontov 24 , não se refere ao
amor, mas sim ao próprio tempo: é o tempo que não vale o esforço.
epí-logos
Depois de ter colocado o ponto final – depois de ter escrito a palavra Amor –, na
noite desse mesmo dia li num jornal:
Asieiev 26
, amigo e discípulo de Maiakovski, leu um relatório sobre a poesia. Depois
começaram os debates, que se prolongaram ao longo de três dias. A sensação dos debates
foi a intervenção de Pasternak, que logo afirmou em primeiro lugar:
– Há certas coisas que a Revolução não destruiu...
Depois acrescentou que:
– O tempo existe para o homem e não o homem para o tempo.
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1069 /2014