História Da Historiografia
História Da Historiografia
História Da Historiografia
dezembro • 2013
História da
Historiografia
revista eletrônica quadrimestral
História
da Historiografia
issn 1983-9928
Conselho Executivo
Arthur Alfaix Assis (UnB . Brasília . DF . Brasil)
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Conselho Editorial
Arthur Alfaix Assis (UnB .Brasília . DF . Brasil)
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Rebeca Gontijo (UFRRJ . Seropédica . RJ . Brasil)
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Flávia Florentino Varella (UFRGS . Porto Alegre . RS . Brasil)
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Realização
Sociedade Brasileira de Teoria e História da Historiografia (SBTHH)
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual Federal do Rio de Janeiro (UNIRIO)
Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
Contato
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www.historiadahistoriografia.com.br • historiadahistoriografia@hotmail.com • (31) 3557-9400
Missão
História da Historiografia publica artigos, resenhas, entrevistas, textos e documentos historiográficos de
interesse para os campos da história da historiografia, teoria da história e áreas afins. Tem por missões divulgar
textos de teoria da história e história da historiografia, e promover o intercâmbio de ideias e resultados de
pesquisas entre investigadores dessas duas áreas correlatas. Num momento em que, no cenário brasileiro,
o crescimento do número de periódicos científicos apenas espelha (se bem que de forma algo distorcida) a
ampliação dos programas de pós-graduação, é consenso que o próximo passo a ser dado é o da verticalização
e especialização do perfil das publicações. HH foi fundada em 2008 exatamente a partir desse diagnóstico, e
pretende estabelecer-se como uma referência para os estudiosos das áreas de teoria da história e história da
historiografia no mundo de língua portuguesa. O periódico é uma publicação da Sociedade Brasileira de Teoria
e História da Historiografia, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro e do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto.
Ficha Catalográfica
História da Historiografia. Ouro Preto / Edufop, 2013, número 13, dezembro, 2013, 281 p.
Quadrimestral
ISSN 1983-9928
1. História - Periódicos
CDU 930(05)
EDITORIAL
EDITORIAL 8
DOSSIÊ
DOSSIER
A história em questão: diálogos com a obra de Manoel Luiz Salgado Guimarães
History in question: dialogues with the work of Manoel Luiz Salgado Guimarães
Apresentação
Introduction
Temístocles Cezar e Rodrigo Turin
11
Aristóteles e a história, mais uma vez
Aristotle and History Once More
François Hartog
14
24
Indagações sobre um método acima de qualquer suspeita
Doubts on a method beyond suspicion
Francisco Murari Pires
Compilação e plágio: Abreu e Lima e Melo Morais lidos no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
Compiling and plagiarizing: Abreu e Lima and Melo Morais in the reading of the Brazilian
Historical and Geographical Institute
Pedro Afonso Cristovão dos Santos
45
O historiador enquanto leitor: história da historiografia e leitura da história
The historian as a reader: history of historiography and the reading of history
Fernando Nicolazzi
63
História da historiografia e memória disciplinar: reflexões sobre um gênero
History of historiography and disciplinary memory: reflections on a genre
Rodrigo Turin
78
A lição da pedra: usos do passado e cultura material
The lesson of the stone: uses of the past and material culture
Francisco Régis Lopes Ramos e Aline Montenegro Magalhães
96
Diálogos históricos e historiográficos: séculos XIX e XX
Historical and historiographical dialogues: 19th and 20th centuries
Marcia Naxara
114
Historiografia, memória e ensino de história: percursos de uma reflexão
Historiography, memory and history teaching: pathways of a reflection
Maria da Glória de Oliveira
130
Um Mestre de Rigor: Manoel Luiz Salgado Guimarães e a delimitação do campo de estudos de
historiografia no Brasil
One Master of Rigor: Manoel Luiz Salgado Guimarães and the delimitation of the field of studies in
historiography in the Brazil
144
Durval Muniz de Albuquerque Júnior
ARTIGOS
ARTICLES
Desarraigo e ironía al filo de las nuevas historias: Últimos días coloniales en el Alto Perú (1896) de
Gabriel René Moreno
Uprooting and irony on the edge of new stories: Gabriel René Moreno’s Últimos días coloniales en
el Alto Perú (1896)
155
Sergio Mejía
172
Causa diz-se em quatro sentidos: sobre a hermenêutica droyseana e a teoria da causalidade aristotélica
The four meanings of “cause”: on Droysen’s Hermeneutics and Aristotle’s Theory of Causality
Renata Sammer
220
Questioning the historiography of Brazilian cordel literature
LUCIANO, Aderaldo. Apontamentos para uma história crítica do cordel brasileiro. Rio de
Janeiro; São Paulo: Edições Adaga; Luzeiro, 2012, 96 p.
Geraldo Magella de Menezes Neto
235
Lazarus of paper: on the art of reviving manuscripts
GREENBLATT, Stephen. A virada: o nascimento do mundo moderno. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012, 291 p.
Marcos Antônio Lopes
246
After all, what is history for?
NICOLAZZI, Fernando; MOLLO, Helena Miranda; ARAUJO, Valdei Lopes de (orgs.). Aprender
com a história? O passado e o futuro de uma questão. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011, 256 p.
João Couvaneiro
260
Luis de Gusmão against the theoretical hybris
GUSMÃO, Luis de. O fetichismo do conceito: limites do conhecimento teórico na investigação
social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012, 258 p.
Sérgio da Mata
Debates historiográficos
Historiographical debates
HAHN, Fábio André; MEZZOMO, Frank Antonio; MYSKIW, Antônio Marcos. Ensaios historiográficos:
temas, tendências e interpretações. Campo Mourão: Editora da FECILCAM, 2010, 226 p.
Surama Conde Sá Pinto
268
Introduction
______________________________________________________________________
Temístocles Cezar
t.cezar@ufrgs.br
Professor associado
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Av. Bento Gonçalves, 9500 - Agronomia
Caixa-postal: 91501970
91509-900 - Porto Alegre - RS
Brasil
Rodrigo Turin
rodrigoturin@gmail.com
Professor adjunto
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Escola de História
Av. Pasteur, 458 - Urca
22290-240 - Rio de Janeiro - RJ
______________________________________________________________________
Brasil
Which is to say, I guess, that in the end I come back to Aristotle’s insight
that history without poetry is inert, just as poetry without history is vapid
Hayden White (2010, p. XI).
11
Aquele “probleminha” que Aristóteles causou a alguns historiadores
durante muito tempo em decorrência do que escreveu no capítulo IX de a
Poética – a ideia de que a poesia era superior à história por tratar do geral
enquanto a história tratava apenas do singular – não afetava muito nosso
Manoel. Até onde sabemos nunca perdeu o sono por causa disso. Ao contrário,
seus escritos e aulas revelavam um professor e pesquisador aberto às formas
eruditas de existência, nas quais os gêneros ficcionais e a história conviviam,
como se não tivessem sido afetadas pelo anátema aristotélico, muito menos
pelo estatuto cientifico da história adquirido no século XIX.
Manoel Luiz Lima Salgado Guimarães (1952-2010) foi um exemplo
de incentivo à diferença, respeito à pluralidade temática e à tolerância
teórica. De muitos foi professor, e de muitos se tornou amigo. Daqueles
com os quais podíamos contar. Desde o empréstimo de um livro difícil de
se conseguir na biblioteca até o conselho solidário e maduro. Manoel foi
um parceiro intelectual de primeira hora. Acima de tudo um acadêmico
rigoroso, que acreditava na pesquisa e em certa capacidade regenerativa
do conhecimento histórico. Expliquemos: Manoel acreditava que a história
poderia ser útil para alguma coisa: para a crítica constante de sua própria
evidência; e para a vida!
Referências bibliográficas
GUIMARÃES, Manoel Salgado. Historiografia e Nação no Brasil (1838-
1857). Rio de Janeiro: EdUERJ, 2011.
LEMINSKI, Paulo. Quarenta clics em Curitiba (1976). In:______. Toda poesia.
13
Companhia das Letras: São Paulo, 2013.
WHITE, Hayden. The fiction of narrative: essays on history, literature and
theory (1957-2007). Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 2010.
Resumo
O objetivo deste artigo é o de analisar algumas questões e desdobramentos para a escrita
da história provenientes da chamada virada liguística na história. Mais do que reconstituir os
percursos que caracterizam essa virada, ou delimitar seus contornos, nos propomos a observar
o ponto de oscilação ou o contra-ataque brusco marcados pela publicação, em 1992, do livro
Probing the Limits of Representation, editado por Saul Friedländer, colocando em paralelo os
estudos mais recentes de Paul Ricœur e Carlo Ginzburg e destacando suas respectivas leituras
das obras clássicas de Aristóteles, a Poética e a Retórica, mediadas pela leitura de Hayden White.
Palavras-chave
14 Giro linguístico; Historiografia; Escrita da história.
Abstract
This article aims to analyze some questions and developments for the writing of History stemming
from the so-called linguistic turn in History. More than re-establishing the paths which define this
turn, or circumscribing its outlines, we propose to observe the unsteadiness or the harsh counter-
attack indicated in the publication of the book Probing the Limits of Representation, edited by Saul
Friedländer in 1992, by making a parallel with recent works of Paul Ricoeur and Carlo Ginzburg,
and to emphasize their own readings of the classic pieces of Aristotle, the Poetics and the Rethoric,
mediated by Hayden White’s reading.
Keywords
Linguistic turn; Historiography; History writing.
*
Entre o Brasil, a Alemanha e a França, Manoel Salgado circulava. Ele soube, no espaço de alguns anos,
tecer fortes laços. Durante suas estadas em Paris, ele passava pelo meu seminário, e sua conversa simples e
amigável muito me ensinou sobre a história do Brasil e no Brasil. Quando eu estive no Rio, na UFRJ, para um
workshop com doutorandos, ele soube fazer deste encontro um belo momento de camaradagem intelectual. A
última vez que o vi, foi em São Paulo. Ele estava cheio de entusiasmo, de sorrisos e de projetos. Depoimento
de François Hartog. Paris, 22 de outubro de 2013.
Este artigo foi publicado originalmente em Critique, Paris, juin-juillet, 2011, p. 540-552. Agradecemos ao
professor Hartog e aos editores da revista a autorização para a presente tradução, realizada por Eliane Misiak
(FURG). Agradecemos também a Eliete Lúcia Tiburski pela formatação final e ajuste do texto às normas,
e a Marina Araújo pela tradução do resumo. Agradecemos, finalmente, à Direção do IFCH da UFRGS pelo
financiamento que viabilizou a tradução. Revisão técnica de Temístocles Cezar.
1
“A virada linguística acabou”. Todas as expressões em línguas estrangeira seguem de acordo com o original
(Nota do revisor).
16 complexo, corre-se o risco de, como dizia Péguy, não mais compreender do que
se falava, quando Roland Barthes, por exemplo, escrevia que “o fato tem tão
somente uma existência linguística”. Caso contrário, o propósito, retirado de
seu contexto, oscila entre trivialidade e absurdidade (BARTHES 1984).
2
Ver seu prefácio à Natalie Zemon Davis, Le retour de Martin Guerre, reeditado em anexo em Le fil et les Traces.
3
Uma menção à “ambiciosa obra de P. Ricœur, Temps et récit” (GINZBURG 2010, p. 459). Trata-se do prefácio
à obra Le retour de Martin Guerre, publicado em 1984.
4
“Procurei mostrar que o sentido da palavra [retórica] em Aristóteles era muito diferente do que entendemos
hoje pelo termo retórica” (GINZBURG 2003, p. 52).
5
Tucídides não emprega a palavra historia nem no sentido de Heródoto nem no sentido que será aquele
de Aristóteles.
22 para o outro. Por certo, o poeta não está interessado no que aconteceu, mas
apenas na medida em que se reconhece nisso uma organização de acordo
com o verossímel e o possível, enquanto que o historiador é requisitado,
primeiramente, por aquilo que aconteceu (que isso seja da ordem do verossímel
ou do possível, ou mesmo necessário, não é, literalmente, seu problema). Para
Aristóteles, o historiador não é um “mestre de intrigas” e, no século II de
nossa era, Luciano de Samósata o repetirá, a sua maneira: as únicas questões
às quais ele deve responder são aquelas da escolha dos genomenas e da
maneira de dizê-los.
Evidentemente, outra é a direção de Ricœur. Pois, para validar sua grande
hipótese, segundo a qual o tempo pensado somente existe quando narrado, ele
deve provar “o caráter, em última análise, narrativo da história”, começando
por examinar essa história que pretendia, de forma um pouco precipitada, ter
renunciado à narrativa. Ele não pode, portanto, partir da separação inicial de
Aristóteles que, ao excluir a história da mimesis e da poiesis, resolvia brutalmente
a questão. Ele concederá, assim, à história toda a poiesis que for possível, sem,
entretanto, comprometer o “primado” de sua intenção referencial. Aqui está
todo o desafio do conceito de representância.
6
Diferentemente da citação anterior da Poética de Aristóteles, Hartog não se serve aqui da tradução de M.
Casevitz, mas da tradução de R. Dupont-Roc e J. Lallot, publicada pela Editora Seuil, em 1980. Para a citação
em português de a Poética nos servimos tanto nessa passagem quanto na anterior, bem como da citação de
Tucídides, da tradução brasileira da obra de Hartog, A história de Homero a Santo Agostinho, realizada por
Jacyntho Lins Brandão, publicada em 2011 pela Editora da UFMG (Nota do revisor).
Referências bibliográficas
ARISTOTE. Rhétorique. Paris: Gallimard, 1998.
BARTHES, Roland. Le discours de l’histoire:le bruissement de la langue.
Essais Critiques IV. Paris: Éd. du Seuil, 1984.
BENVENISTE, Émile. Problèmes de linguistique générale. Paris: Gallimard, 1966.
BLANCHOT, Maurice. Après Coup. Paris: Éd. de Minuit, 1983.
BYNUM, Caroline W. Perspectives, Connections, Objects: What’s Happening in
History Now?, Daedalus, vol. 138, nº 1, hiver 2009, p. 71-86.
FRIEDLÄNDER, Saul. Probing the Limits of Representation: Nazism and the
“Final Solution”. Cambridge (Mass.): Havard University Press, 1992.
GINZBURG, Carlo. Le Sabbat des sorcières. Tradution Monique Aymard. Paris:
Gallimard, 1992.
______. Rapports de force. Paris: Gallimard, 2003.
______. Le fil et les traces: vrai faux fictif. Tradution Martin Rueff. Lagrasse :
Verdier, 2010. 23
HARTOG, François. L’histoire, d’Homère à Augustin. Préfaces des historiens
et textes sur l’histoire, réunis et commentés par François Hartog. Tradution
par M. Casevitz. Paris: Éd. Le Seuil, 1999.
MOMIGLIANO, Arnaldo. The History Rhetoric and Rhetoric of History: on Hayden
White’s Tropes. Settimo contributo alla storia degli studi classici e
del mondo antico. Rome: Ed. di storia e letteratura, 1984, p. 49-59.
PEETERS, Benoît. Derrida. Paris: Flammarion, 2010.
RICŒUR, Paul. Temps et Récit. Tome I: l’intrigue et le récit historique. Paris:
Éd. Seuil, 1983.
______. Temps et Récit. Tome III: les temps raconté. Paris: Éd. Seuil, 1985.
______. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris, Éditions du Seuil, 2000.
SPIEGEL, Gabrielle M. The task of the historian. American Historical Review,
vol. 114, nº 1, fév. 2009, p. 1-15.
Resumo
Este ensaio coloca algumas indagações questionando a inconsistência da trama argumentativa
porque Carlo Ginzburg concebeu os fundamentos de sua proposição do paradigma indiciário.
Um primeiro movimento reflexivo dessa interpelação questionadora intriga a exploração de
algumas considerações porque o espectro da bibliografia crítica avaliou a tese de Ginzburg.
Consequente a ele, desdobra-se o segundo movimento porque a reflexão crítica toma por
foco o eventual diálogo da proposição epistemológica de Ginzburg com o congênere conceito,
originalmente tucidideano, de indiciamento (tekmérion) como procedimento metodológico de
veracidade factual, diálogo este, senão totalmente silenciado, efetivamente elidido pela (des)
consideração com que Ginzburg o irreleva.
24 Palavras-chave
Carlo Ginzburg; Tucídides; Metodologia da história.
Abstract
This essay casts some doubts on the consistency of the argumentative plot on which Carlo Ginzburg
founded his evidentiary paradigm. A first moment of this reflective questioning will address the
way Ginzburg’s thesis was assessed by the critical literature. A second step will then focus on
the interrelations between Ginzburg’s epistemological considerations and the Greek notion of
indictment (tekmérion), as originated in Thucydides’ work. For Thucydides, as also for Ginzburg,
indictment is the methodical procedure that guarantees the factual accuracy in historiography.
The essay suggests that Ginzburg disregarded his dialogue with Thucydides, not simply by being
entirely silent about it, but rather by eliding it.
Keywords
Carlo Ginzburg; Thucydides; Methodology of history.
Paradigma indiciário
Pelo último quarto do século XX adentrando a primeira década do
novo milênio, Carlos Ginzburg elaborou, em uma série de artigos e ensaios,
proposições de teses porque intentasse dar uma resolução a um velho dilema,
algo fantasmagórico, que há bom tempo já assombra a (des)confiança na
história: comporta essa modalidade de conhecimento respeitante aos modos
porque atuam os homens no mundo diferenciados e específicos fundamentos
metodológicos que lhe assegurem singular estatuto de (alguma) cientificidade?
A atualidade do velho dilema vinha de ser (re)ativada pelos então recentes
ares epistemológicos pós-modernistas que instigaram atualizadas intrigas de
mazelas querelantes. Intrigas agora mais graves porque, ao que argumentaram
Arnaldo Momigliano e Carlo Ginzburg na sua esteira, insuflavam teses de
revisionismo histórico, especialmente agudas por (re)avivarem as chagas do
1
Os desvios e deslizes mais equívocos porque descai a reflexão nos termos em que a perpetra Ginzburg são
agudamente clarificados pela crítica argumentada por Jacques Rancière em seu ensaio (2011, p. 476-484).
Detalhes
A epígrafe com que Ginzburg encima a reflexão do ensaio Sinais por
que aponta o sentido sintético de seu alcance cognitivo diz: “Deus está nos
2
Não deixa de ser irônico que a pretensão de operar a interpretação mais axiologia metodológica proclamando-a
pela hierarquia invertida a assim apreender a história pelo lado do “baixo”, “inferior”, “marginalizado” como
o declaram as proposições ginzburgianas tenham encontrado estranhamentos, senão rejeições, justo da
parte dos agentes e sujeitos mesmos que ativam as razões dos oprimidos: vejam-se as manifestações do
revolucionário mais as da feminista a esse respeito, plenas naquele e parciais nesta, ambas integradas no
artigo de Stephanie Jed (JED 2001, p. 372-384).
3
“Se não posso mover os deuses superiores, moverei o Acheronte”.
4
No original: “Mais en entrant dans les détails, nous risquons à notre tour d’être le jouet de quelque petit
diable aimant à se moquer de nous derrière notre dos. Nos ancêtres disaient, quand quelque chose leurs
filai des mains et qu’ils ne parvenaient pas à l’attraper: Regardez! c’est le diable qui joue ... L’enquête est
fatigante, on ne parvient pas toujours au but du premier coup. Les détectives et les savants, qui dans la
recherche du coupable, qui celle de la vérité relative à leur enquête, s’embrouillent souvent dans de fausses
pistes: la proie ne se laisse pas facilement piéger”.
5
Emblemático o parágrafo no prefácio do livro Sinais em que, apresentando espécie de mimesis de daimon
socrático dada à guisa de argumento, o Autor intriga (con)fusão de (ir)reflexão (dis)simulada de autocrítica
com sua negligência (GINZBURG 1989, p. 10-11).
6
Para indicações das partes submersas que descobrem as insuficiências mais deficiências pontuais das
argumentações de Ginzburg porque se possa suprir aquelas e concertar estas, confiram-se: VEGETTI 1980,
p. 8-10; VATTIMO 1980, p. 23-24; ROVATTI 1980, p. 36-37; VALERI 1982, p. 141-143; HARTOG 1982, p. 25;
LaCAPRA 1985, p. 45-69; BURKE 1990, p. 108, 110; DUMÉZIL 1985, p. 985-989; ZAMBELLI 1985, p. 983-
999; BLACK 1986, p. 67-71; CARRIER 1987, p. 76-77; BARTLETT 1991; MARTIN 1992, p. 613-626; SCHUTTE
1992, p. 576; STRUEVER 1995, p. 1203; BUTTI de LIMA 1996, p. 8-9; UZEL 1997, p. 28, 31-32; EGMOND-
MASON 1999, p. 241, 244-245, 247-250; AYA 2001, p. 151-152; JED 2001, p. 372, 373-374; COHEN 2003,
p. ix; HARTOG 2005, p. 228-229; BORGHESI 2006, p. 110-111, 114, 118-119, 121-126; THOUARD 2007,
p. 12-13, 16-17; BERTOZZZI 2007, p. 33; MOST 2007, p. 63, 65, 67-68, 70, 73; HAMOU 2007, p. 190-194;
COHEN 2007, p. 222-223; DOJA 2007, p. 93-94); PAPE 2008, p. 1; OGAWA 2010; SIMON-NAHUM 2011, p. 2;
VOUILLOUX 2011, p. 2-3, 4, 6, 7-8, 9-10; RANCIÈRE 2011, p. 474-484; HARTOG 2011, p. 540-552; BOULAY
2011.
7
No original: “Readers are likely to finish each essay with their heads full of unanswered questions. If such
abundance is a fault, it is one which is all too rare in historical writing today”.
8
No original: “The essays are so far-ranging, so rich, and so provocative that a full review would likely be
longer than the book itself”.
9
No original: “One wishes Ginzburg had added a few more pages to clarify the dark, still undefined sides of
his formulation. He ventured into this issue in subsequent forays. But, if one were to judge by the response
of some of his critics, he did not do so satisfactorily”.
10
No original : “Carlo Ginzburg déaploie un savoir qui n’appartient qu’à lui, osant des analogies et des
rapprochements dont les dehors fortuits masquent la prodigieuse érudition sur laquelle elles reposent”.
11
No original: “There are many problems with the essay, which has arguably been overused and undercritiqued:
one might question the stifling of the autobiographical voice throughout the essay, so that the implied author
himself becomes a “despised detail” and his works become unreflective examples of the “lower” method
rather than controlled applications of it; and one might want to inquire into the meaning of Ginzburg’s curious,
unscientific attempt to exclude from the domain of science what he describes as the intention to observe
without theorizing”.
12
Aliás diversamente (re)criados de modo a conjugar diferenças de indícios assinalados conforme as variantes
dos contos narrados correspondentes aos nexos imaginativos que distinguem cada versão (MÉSSAC 2011,
p. 37-46).
13
Afinal, alguém viu o animal (na origem cognitiva da codificação categorizadora de suas pegadas) pois quem
seria capaz de identificar pegadas de animal que jamais foi visto?
14
A (con)fusão Sherlock Holmes por Conan Doyle é ou indireta ou alusivamente apontada já pelos comentários
de Marcelo Truzzi: “a grande maioria das inferências de Sherlock não resiste a um exame lógico. Ele as conclui
satisfatoriamente pelo simples motivo que o autor das histórias o permite” (1991, p. 79) e de Umberto Eco:
“Como ele [Sherlock Holmes] tem o privilégio de viver em um mundo construído por Conan Doyle que,
adequadamente, se encaixa em suas necessidades egocêntricas, então, ele não carece de provas imediatas
de sua perspicácia” (1991, p. 241). Considere-se ainda o que diz Umberto Eco sobre a estrutura teleológica
do juízo operado por Zadig ao partir do princípio de que os dados indiciários em que se baseia “fossem
harmoniosamente relacionados” (ECO 1991, p. 236), assim os sendo justo pela decisão criativa de Voltaire.
15
Emblemático nesse sentido a reflexão proposta em Rashomon de Akira Kurosawa/Ryunosuke Akutagawa.
Confira-se ainda a crítica que Robert Bartlett dirige ao “método associacionista” de “alegados indícios” operado
por Ginzburg em “Ecstasies” (BARTLETT 1991).
16
Confiram-se os relatos apresentados por Roger Méssac (2011, p. 37-46).
17
Confira-se o comentário de Méssac (2011, p. 39).
18
Confira-se, similarmente, a crítica de Dominick LaCapra ao livro de Ginzburg (O queijo e os vermes),
introduzida por alusiva referência ao “methodological populism” como uma tendência presente em variantes
da historiografia dos anos 1980 (LACAPRA 1985, p. 45-69).
19
Os nexos que imbricam o ensaio “Sinais” com as proposições da microhistória são apontados pelo próprio
Ginzburg no texto de 2007 “Refléxions sur une hypothèse vingt-cinq ans après” (GINZBURG 2007, p. 37-47).
20
“No seu aspecto crítico, o autor deixa para si mesmo muito pouco espaço para refinar seu contraste
básico entre dois modos de investigação - sua visão implícita ‘do’ método científico borra as distinções entre
experimentadores, observadores, entre outros, assim como não considera a possibilidade de que o que ele
denomina “divinação” é um elemento presente em toda pesquisa séria, mais do que ‘o’ método de pesquisa
em determinados campos”. No original: “On the critical side, the author allows himself too little space to
refine his basic contrast between two methods of inquiry- his implied view of “the” scientific method blurs the
distinctions between experimenters, observers, and so on and does not allow for the possibility that what he
calls “divination” is an element in all serious research, rather than “the” method of research in some fields”
(BURKE 1985, p. 109).
21
“A única saída que ele encontra é um sistema que vincula de algum modo ‘instinto, insight, intuição’, através
dos quais quer significar um processo não distinto de algumas definições oitocentistas do gênio, isto é, a
recapitulação iluminada de um processo racional’“. No original: “The only way out, he finds, is a system that
relies to some extent on “instinct, insight, intuition,” by which he means a process not unlike some eighteenth-
century definitions of genius, that is, “the lightning recapitulation of rational processes” (PAYNE 1992, p. 1176).
22
Confira-se: MURARI PIRES 2012 (no prelo).
23
No original: “We can conclude, therefore, that the tasks of both the historian and the judge imply the
ability to demonstrate, according to specific rules, that x did y, where x can designate the main actor, albeit
unnamed, of a historical event or of a legal act, and y designates any sort of action”.
24
A questão foi já incisivamente marcada por François Hartog (2011, p. 546-550). Em obra anterior também
a assinalamos ao analisar o diálogo justo contra a Poética porque Lorenzo Valla elabora sua apreciação da
escrita da história (MURARI PIRES 2007, p. 210-217).
25
Confira-se a resenha de Harry C. Payne (1992, p. 1176).
26
No original: “On peut s’étonner que C. Guinzburg, dans son article ‘Signes: traces, pistes, racines d’un
paradigme de l’indice’, ne s’arrête pas, à propos de la Grèce, à Thucydide”.
27
No original: “Étant entendu que pour Thucydide la connaissance par indice est fondamentalement
insatisfaisante”.
Valla tucidideano
28
No original: “on va du présent vers le passé (inférieur), em déployant un modèle d’intelligibilité qui relève
plus d’une théorie de la puissance que de l’histoire antiquaire”.
29
No original: “Aristotle’s Rhetoric, mediated by Quintilian, gave Valla the opportunity to escape from the
limitations of Ciceronian rhetoric. It is not by chance that in 1448 Valla started his translation of Thucydides, a
historian whom Cicero had despised for his obscurity, pointing to him as a negative model for orators to avoid”.
30
Para o e exame dessa questão, confira-se nosso ensaio “The Rhetoric of Method” (MURARI PIRES 1998).
31
“Lorenzo Valla on the Donation of Constantine”, publicado na coletânea de History, Rhetoric and Proof
(GINZBURG 1999, p. 54-70).
32
Carta de 31 de dezembro de 1443 a Aurispa.
33
No original: “Writing history is difficult, he said, as we can see from the divergences among eyewitnesses
speaking of a given event. In order to ascertain the truth, the historian needs as much accuracy and insight
as any judge or physician – a particularly intriguing double analogy”.
34
No original: “It is hard to see any contradiction between this emphasis on the factual, antiquarian side of history
and the statement, also made by Valla in the introduction to his Gesta Ferdinandi, that rhetoric is “the mother of
history. Aristotles’ Rhetoric, mediated by Quintilian, gave Valla the opportunity to escape from the limitations of
Ciceronian rhetoric. It is not by chance that in 1448 Valla started his translation of Thucydides, a historian whom
Cicero had despised for his obscurity, pointing to him as a negative model for orators to avoid (Orator 9.30-32)”.
40 Cícero, se caracterizava pela escrita antes “mais fortemente vigorosa, com suas
descrições bélicas como que soando as trombetas da guerra”. Valla reproduz
os dizeres de Cícero, (re)formulando-os em sinonímias: escrita de “curso mais
impetuoso, que ao falar das coisas da guerra parece ali estar presente, a emitir
os sinais de combate”. Às lembranças dos ditos ciceronianos, Valla então aduz
o juízo de Quintiliano (Institutio oratoria X, 1.73) que mais o avaliza, agora
expressamente citado e reproduzido em seu texto.
Tampouco os apontamentos marginais com que Valla ressaltou itens e
aspectos da história tucidideana, que dele reclamaram algum zelo elucidador,
indiciam uma especial atenção porque o humanista romano destacasse na
obra do historiador ateniense aquela ordem de reflexão (modernamente)
“metodológica” assimilada à que ele mesmo, Valla, similarmente operasse
em suas razões de ajuizamento crítico de textos históricos. Nas indicações
registradas junto aos célebres capítulos (ditos) “metodológicos” de Tucídides (I,
20-22), o foco do interesse de Valla marca que neles o ateniense polemizava
contra Heródoto, assim apenas reproduzindo notícias encontradas nas escolias
antigas.35 Também no desenvolvimento narrativo que Tucídides dá no livro VI
à reflexão externada no livro I (capítulo 20) em que denunciava as tradições
orais com que os atenienses equivocavam-se ao memorizar como tiranicídio
o atentado contra Hípias e Hiparco, a atenção de Valla não manifesta ter-se
impressionado com as virtudes de ajuizamento crítico do historiador ateniense
35
Confiram-se os comentários de Marianne Pade (2000, p. 272, 276).
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et les ruses de l’intelligence. In: THOUARD, Denis (éd.). L’interprétation des
indices: enquête sur le paradigme indiciaire avec Carlo Ginzburg. Villeneuve
d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2007, p. 25-36.
36
“Ideo tot uerbis de hac re loquitur Thucydides quia ipse a Pisistrato fuit oriundus” (PADE 2000, p. 279).
A provável fonte de que Valla deriva seu informe seria Marcelino, no entender de Fryde (1983, p. 90, 94).
Este crítico, entretanto, ao acusar a falha de juízo exegético do humanista romano naquela: “Valla was
guilty here of accepting uncritically an ancient authority who is most unlikely to have had any sources of
information unknown to us”, acaba (des)entendendo o comentário valliano, nele fazendo incidir sua própria
ordem metodológica de análise documental, assim (con)fundida com o de Valla.
37
Confira-se, por exemplo, como a atenção do crítico moderno, Edmund B. Fryde (1983, p. 94), destaca como
significativo que Valla acrescesse um apontamento, todavia apenas como glosa informativa traduzida de uma
escolia, respeitante ao mito da morte de Itys, o que atestaria os ecos da consciência crítica tucidideana de
ajuizamento histórico em Valla, quando, pelo contrário, naquelas passagens em que Tucídides expressamente
externa seus posicionamentos acerca dessa problemática que opõe a história ao mito, Valla nada tenha
assinalado no manuscrito de sua tradução! Sobre tal projeção operada pela crítica dos séculos XIX e XX que
faz aderir em Valla (ou Leonardo Bruni) a configuração de modernidade “metodológica” antes atinente a esta
(cons)ciência historiográfica atualizada, vejam-se nossos ensaios integrados em Modernidades Tucidideanas
(MURARI PIRES 2007).
38
Particularmente no que respeita aos desentendimentos das proposições da Retórica de Aristóteles aventados
pelas articulações argumentativas de Ginzburg vejam-se as precisas análises de François Hartog (2011, p.
549-550). Confiram-se igualmente as análises de Carlos Eduardo de Almeida Ogawa em sua dissertação de
Mestrado História, Retórica, Poética e Prova: a leitura de Carlo Ginzburg da Retórica de Aristóteles (2010).
44
S. Roth, MLN, 110.5, 1995, p. 1200-1204.
THOUARD, Denis. L’Enquête sur l’indice. Quelques préalables. In: ______ (éd.).
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Ginzburg. Villeneuve d’Ascq: Presses Universitaires du Septentrion, 2007, p. 9-21.
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Resumo
Retomando a perspectiva de Manoel Luiz Salgado Guimarães a respeito da escrita da história no
Brasil no século XIX como um campo de disputas em aberto, “um debate que se travava sem
que o vencedor estivesse definido a priori”, buscamos recuperar uma forma de escrita da história
relegada a segundo plano naquele contexto, presente em dois autores que tiveram obras suas
consideradas plágio no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro: José Inácio de Abreu e Lima
(1794-1869) e Alexandre José de Melo Morais (1816-1882). A leitura de plágio vinha da maneira
como ambos utilizaram suas fontes; é nossa hipótese que ambos realizaram uma historiografia
que se aproximava da compilação, gênero de longa duração, mas que seria descartado no século
XIX enquanto possibilidade de oferecer um modelo para a escrita da história do Brasil.
45
Palavras-chave
Historiografia brasileira; Escrita da história; Historiografia do século XIX.
Abstract
Inspired by Manoel Luiz Salgado Guimarães’ argument that the writing of history in nineteenth-
-century Brazil was an open field, “a debate without pre-defined winners”, this paper focuses on a
form of history writing that was much criticized in that context, that can be found in two authors
whose works were regarded as examples of plagiarism by the Brazilian Historical and Geographical
Institute: José Inácio de Abreu e Lima (1794-1869) and Alexandre José de Melo Morais (1816-
1882). Their works were considered to be copies of texts by other authors because of the way
they used their sources and bibliography. The paper’s hypothesis is that both authors produced
a kind of historiography that is rather close to the genre of compilation - an old historiographical
genre that was on the process of being rejected as valid model for the writing of history in
nineteenth-century Brazil.
Keywords
Brazilian historiography; History writing; 19th century historiography.
1
Oferecido por Abreu e Lima ao Instituto, em carta transcrita no tomo 5 da Revista Trimensal do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, 1843, p. 395-397.
2
A Corografia histórica, cronográfica, genealógica, nobiliária e política do Império do Brasil...., publicada
em cinco tomos entre 1858-1863, parece ter sido o grande projeto de Melo Morais relativo à história do
Brasil. Antes de ter de interromper a publicação por falta de recursos, Melo Morais conseguiu dar à luz cinco
volumes: o tomo I em 1858, os tomos II e III em 1859, o tomo IV em 1860, e o que chamou de segunda
parte do tomo I, em 1863. Um deputado de sua província natal, Alagoas, chegou a conseguir uma subvenção
do governo para mil exemplares da Corografia, que permitiria sua continuidade. O projeto passou na Câmara
e no Senado, mas a verba não foi liberada pelo ministério do Império, sob a alegação de que tinha de fazer
economias naquele momento, considerando alguns fatores que pesavam sobre o orçamento imperial, em
particular os gastos com a Guerra do Paraguai.
3
Como mostra Maria da Glória de Oliveira (OLIVEIRA 2010, p. 296-297), esse artigo de Fernandes Pinheiro
visa refutar a caracterização de Rego Barreto presente na História da Revolução Pernambucana (1840) de
Muniz Tavares.
Com efeito, o autor, na página 100 do tomo III, usa a expressão “continua
o padre José de Moraes”, para indicar de onde extrai seu relato. O relato parece
começar na página 18, com o título “Dos provinciais do Brasil, e reitores dos
colégios (crônica manuscrita)”. Não há referência direta, no início, a José de
Moraes. Melo Morais julga-se desculpado, entretanto, porque “previne” o leitor,
em momentos como a página 100, de que se trata deste autor. Por várias vezes
na Corografia seu procedimento é semelhante, sua narrativa confundindo-se
com a da fonte que utiliza, mas havendo alguma citação ao original.
Melo Morais responde a Norberto, evocando exemplos da historiografia
luso-brasileira:
Não me lembrei que plagiava, porque quem cita uma vez o nome da
fonte donde extrai, não pode ser considerado de [sic] plagiário, e, se
o Sr. Joaquim Norberto, apesar de ser membro do Instituto Histórico,
tivesse conhecimento de tudo, o que se tem escrito sobre o Brasil, havia
de se recordar (para se não expor), que o padre Santa Maria, transcreve
períodos inteiros no Santuário Mariano, e não menciona a Crônica da
Companhia do padre Simão de Vasconcelos, donde extraiu; que o padre
Aires do Casal, com tantos créditos, e que mereceu o título de pai da
Melo Morais exime-se do plágio alegando ter citado a fonte que utiliza; não
o fez em nota de rodapé, nem de margem, mas julgou cumprida sua tarefa/
obrigação de citação. Mostra exemplos da historiografia luso-brasileira em que
os autores não citam de onde extraem suas informações, o que não os impediu
de adquirirem reputação. Extrai, da situação, como que uma lei da escrita da
história: “as verdades históricas não se inventam, e podem ser reproduzidas
livremente”. Em raciocínio que nos parece semelhante ao de Abreu e Lima,
conforme veremos, defende aqui que o historiador deve buscar em alguma
parte as informações que formam sua obra, isto é, uma obra de história é
necessariamente formada de outras obras, cuja reprodução é livre (porque
necessária). Para Melo Morais, o importante é saber se as informações que
compõem a narrativa histórica são verdadeiras ou não.
Os exemplos que Melo Morais cita possuíam modelos de citação e referência
que de fato não dispunham as fontes ao leitor da forma como Joaquim Norberto
cobrara-lhe, em censura semelhante à que Varnhagen fizera a Abreu e Lima;
muito embora entre a declaração de princípios dos autores oitocentistas e sua
Pode dizer-se por isso que João Pedro Ribeiro inicia em Portugal o que
se chamará a “história metódica”, que passa por um notório labor de
análise paleográfica e diplomatista, focado sobretudo para a história da
Idade Média e da Época Moderna, que ficaria no centro quase exclusivo
das atenções de uma certa historiografia erudita. “Não basta escrever a
História em boa frase, mas é necessário que o fundo dela seja exacto” [...]
esta afirmação da Dissertação XV é a síntese da ânsia de rigor sempre
perseguido por João Pedro Ribeiro [...] (TORGAL; MENDES; CATROGA
51
1998, p. 34).
Historiadores compiladores
Retornando ao caso do Compêndio de Abreu e Lima, encontramos uma
possibilidade de compreensão para a forma de escrita da história que, malgrado
algumas diferenças, fizera tanto Abreu e Lima como Melo Morais serem
considerados plagiadores. Abreu e Lima define-se, no prefácio do Compêndio,
como um “compilador”, e defende, na sua Resposta a Varnhagen, que todo
historiador é um compilador, na medida em que escreve articulando textos de
terceiros (à exceção dos que tratam de história contemporânea, porque – ou
quando – a presenciaram):
Ouça bem, Sr. Varnhagen, pois já lho disse: os fatos não se inventam;
estão consignados na história já escrita por outrem, ou em documentos e
registros autênticos; servir-se pois da história antiga ou de documentos,
ou de uma e outra coisa, e vertê-los em linguagem nova, se assim se
quiser, ou copiá-los, eis aí o que se chama compilar; isto é, reunir em um
corpo ou livro coisas ou matérias extraídas de vários autores (LIMA 1844,
p. 37-38).
4
No original: “faire des extraits; puis les assembler”. Tradução minha.
5
No original: “It was my intention, that the concluding part of the History of Brazil should have contained
a Critical Account of all the Documents, printed or in manuscript, from which it has been compiled; but this
would have considerably enlarged a volume, which already far exceeds the usual size”. Tradução minha.
Ora, eu para minha instrução, nada mais tinha feito do que copiar,
quase fielmente, os diversos autores, que trataram dos negócios de
Pernambuco, servindo-me de guia a História do Brasil por Mr. Alphonse
de Beauchamp, do qual só me apartei, ou ampliando aquelas notícias
em que foi omisso, aproveitando-me para isto dos mesmos autores que
ele copiou, como Rocha Pita, Brito Freire, Fr. Rafael de Jesus, Joboatão
[sic], e outros; ou corrigindo a exposição d’alguns fatos, que combinada
com a dos escritores que ele seguiu, me pareceu carecer de exatidão.
Acrescentei porém às notícias que me deu Mr. Beauchamp as que colhi
nos Arquivos das Secretarias, nas Memórias de Monsenhor Pizarro, e
em vários manuscritos, e folhetos, que com muito trabalho, e alguma
despesa alcancei, para completar as Memórias Históricas de Pernambuco
até o fim do século passado.
Nas do século presente porém não segui autor algum na ordem dos fatos,
e até mesmo me apartei de vários escritores modernos: recopilei o que
54 me foi possível extratar dos Arquivos Públicos, consultei os jornais, e
muitos impressos, manuscritos, e cartas que encontrei entre os papéis de
meu pai o Sr. José Fernandes Gama, que Deus tem em Glória, e dando
também tratos à minha memória, descrevi os fatos como chegaram à
minha notícia, e alguns como vi suceder.
São pois os três primeiros tomos destas Memórias, pela maior parte um
plagiato, que eu evitaria, se não estivesse convencido de que dizer o
mesmo, que outros disseram (e disseram bem) por diferentes palavras
é pura, e inútil perda de trabalho. O 4o e o 5o tomos são todos meus
(FERNANDES GAMA 1844, p. VIII, grifos nossos).
6
“Para ajuizar os fatos é necessário que o historiador tenha erudição no assunto, crítica histórica, independência
de caráter, luzes gerais dos conhecimentos humanos e consciência: é necessário que seja grave, urbano, e
que tenha miras de bom estadista - Para ser compilador, e ainda melhor plagiário [do que acusava Abreu,
por ter compilado obra de Alphonse Beauchamp, autor francês que teria plagiado Robert Southey], basta
ter ido à escola e saber copiar traslados, e ter muito atrevimento, – como têm sempre os mais ignorantes”
(VARNHAGEN 1850, p. 400).
7
Melo Morais ficou órfão aos onze anos de idade, sendo criado por dois tios, um frei carmelita e um frei franciscano.
Biografia escrita por Pedro Paulino da Fonseca, publicada no Cruzeiro, de 23 de setembro de 1882, reproduzida
em FILHO 1886, p. 58. Abreu e Lima era filho de um padre, José Inácio Ribeiro de Abreu e Lima (1768-1817),
conhecido como Padre Roma, condenado à morte por seu envolvimento na Revolução Pernambucana de 1817.
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60 FERREIRA, Breno Ferraz Leal. Contra todos os inimigos. Luís Antônio Verney:
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IGLÉSIAS, Francisco. Historiadores do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira
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Resumo
Este ensaio parte de uma sugestiva colocação feita por Manoel Luiz Salgado Guimarães a respeito
dos procedimentos de pesquisa para a história da historiografia. Ao sugerir que a atenção voltada
para os textos e suas condições de produção supõe sempre a existência de um “certo tipo de leitor”,
o autor traz para o primeiro plano da investigação o tema da leitura da história. Nesse sentido,
partindo da hipótese de que a legitimidade do discurso historiográfico reside não apenas no
cumprimento dos protocolos de escrita efetivados pelo historiador, mas também no ato correlato da
leitura realizada por seus leitores, este texto oferece um estudo sobre as considerações a respeito
da leitura da história feitas pelo historiador e antiquário francês Claude-François Menestrier em
sua obra Les divers caracteres des ouvrages historiques, publicada em 1694.
Palavras-chave
63
História da historiografia; Erudição; Claude-François Menestrier.
Abstract
This essay has as its starting point a suggestive statement made by Manoel Luiz Guimarães
Salgado about the research procedures used in the history of historiography. By suggesting that
the attention usually given to historical texts and their conditions of production always presupposes
the existence of a “certain kind of reader”, the author brings to the foreground the issue of the
reading of history. Based on this assumption that the legitimacy of historiographical discourse lies
not only in the historian’s compliance with written protocols, but also in the intellectual performance
of readers, this text offers a study of the reflections on historical reading developed by the French
historian and antiquarian Claude-François Ménestrier in his work Les divers characters ouvrages
des historiques, published in 1694.
Keywords
History of Historiography; Historical Scholarship; Claude-François Menestrier.
__________________________________
*
Este ensaio se insere no projeto “Erudição, ceticismo, historiografia: a cultura histórica francesa no século
XVI (Bodin, Montaigne, La Popelinière)”, financiado pelo CNPq na modalidade de Bolsa de Produtividade
em Pesquisa. Agradeço aos amigos Rodrigo Turin e Pedro Telles da Silveira pela leitura e pelos comentários
feitos ao texto.
Nosso pobre pai, como vocês sabem – lamenta ela –, não se ocupava quase
nunca conosco. Tinha hábitos deploráveis [...] Eu, a história, estou obrigada
a dizer tudo e a não ignorar muitas coisas. Nosso pobre pai nunca estava
em casa. Nossa (pobre) mãe era muito infeliz. É necessário dizê-lo?, nosso
pai estava sempre em busca de aventuras. Sempre enredado em alguma
história de saias (PÉGUY 1961, p. 101).
talvez a própria ideia de narração tenha nascido pela primeira vez numa
sociedade de caçadores, a partir da experiência da decifração das pistas
[...] O caçador teria sido o primeiro a ‘narrar uma história’ porque era o
único capaz de ler, nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas
pela presa, uma série coerente de eventos (GINZBURG 1989, p. 152).
com base nos indícios que foram enunciados, entretanto, não erraria
quem, de modo geral, julgasse dessa maneira aquilo que eu expus e não
desse crédito maior nem ao que fizeram os poetas adornando seus hinos
com o intuito de engrandecê-los, nem ao que os logógrafos compuseram
visando ao que é mais atraente para o auditório de preferência ao que é
verdadeiro (Tucídides, Guerra I, XXI, 1).
1
Não se quer com isso criar uma falsa justaposição entre a história como “aquisição para sempre” e o modelo
ciceroniano de historia magistra vitae, ainda que aproximações entre elas sejam possíveis.
2
Na edição da Loeb Classical Library, é significativa a forma como o tradutor definiu o público ideal da história:
“those who will listen in the spirit of judges and indeed of fault-finders as well” (LUCIANO, Works VI).O leitor
aqui é também aquele ocupado em “encontrar os erros” (fault-finders) do registro lido.
3
Sobre a questão da crença na história, embora seguindo uma perspectiva que, se se aproxima desta em
alguns pontos, em outros se mostra bastante distante, remeto a HARTOG 2013.
4
Para um registro bio e bibliográfico sobre Menestrier, remeto à obra do historiador e arqueólogo Paul-Auguste
Allut, Recherches sur la vie et sur les oeuvres du P. Claude-François Menestrier de la compagnie de Jésus.
Suivies d’un recueil de lettres inédites de ce père à Guichenon, & de quelques autres lettres de divers savans
de son temps, inédites aussi, publicada em Lyon, no ano de 1856 (ALLUT 1856, p. 1-205).
5
Sobre o papel de Nanni de Viterbo como um dos primeiros críticos e, curiosamente, notório falsário da
historiografia moderna, ver GRAFTON 1990.
6
O termo não é dicionarizado em francês, inclusive não consta no dicionário de Furetière publicado em 1690
(FURETIÈRE 1690). Do mesmo modo, não encontrei menção à palavra em língua portuguesa.
74 clássica e outro que tenha escrito há apenas algumas décadas. É bem verdade
que não deixa de reconhecer a diversidade de épocas que separam os autores
modernos dos antigos, mas é relevante também notar que, por exemplo, a
mesma história universal que encontra Políbio como um de seus fundadores,
foi também praticada por Diodoro da Sicília, no século I a.C., e pelo Cardeal
Baronius, um dos encarregados dos Anais eclesiásticos publicados no final do
século XVI. Ou seja, ainda que a atenção cronológica seja um dos requisitos para
a atuação dos historiadores, o tempo não é um fator classificatório das histórias
para Menestrier. A plena compreensão da história implica, com isso, antes a
atividade de situá-la entre as espécies definidas (no espaço da classificação, por
assim dizer) do que colocá-la em perspectiva histórica (portanto, no tempo).
Por outro lado, talvez se possa enxergar na Introdução à leitura da
história um exemplo lapidar da pluralidade de histórias que somente a partir
da virada do século XVIII para o XIX vão assumir o estatuto de um “singular
coletivo” tal como sugerido por Reinhart Koselleck (KOSELLECK 2013; 2006;
1997). As diversas espécies de histórias elencadas não são apenas adjetivações
variadas de uma história singular. Em outras palavras, se a forma e a matéria
são princípios fundamentais do sistema elaborado pelo antiquário de Lyon, elas
não são apenas variantes de uma mesma e singular história; pelo contrário,
acabam por conformar uma pluralidade de histórias possíveis que, se assumem
o mesmo substantivo designador que a língua latina oferece (afinal, a obra
diz respeito à leitura d’a história), não deixam de se apresentar como práticas
profundamente variadas. Tal é a razão pela qual, ainda no entendimento de
7
Neste ensaio, como se percebe, a atenção não foi voltada ao estudo das características efetivas deste “certo
tipo de leitor”, pois isto implicaria em outros procedimentos de análise, sejam eles voltados para as formas
de recepção dos textos historiográficos, sejam voltados para os modos pelos quais os próprios historiadores
estabelecem, em seus textos, um leitor implícito.
76
GRAFTON, Anthony. Forgers and critics: creativity and duplicity in Western
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GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. Historiografia e cultura histórica: notas para
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Resumo
A partir das proposições de Peter Szondi a respeito de uma “poética histórica dos gêneros”, este
ensaio tem por objetivo interrogar os usos e os sentidos que configuram a história da historiografia
como gênero de escrita da história. A partir dessa interrogação da história da historiografia em
função de suas características enquanto gênero, procuro apontar para certos constrangimentos
sedimentados historicamente em sua forma e que incidem diretamente nas possibilidades e nos
limites de sua (re)definição como um campo de pesquisas e de reflexão.
78 Palavras-chave
História da historiografia; Manoel Salgado Guimarães; Gênero.
Abstract
The aim of this paper is to cross-examine, in light of Peter Szondi’s “historical poetics of genres”,
the uses and meanings that configure history of historiography as a genre of historical writing. By
doing so, this paper points out some constraints that were historically settled within the genre’s
form and that exert direct influence on the possibilities and restrictions for re(defining) the history
of historiography as a research field.
Keywords
History of historiography; Manoel Salgado Guimarães; Gender.
1
Como destacaram Temístocles Cezar e Paulo Knauss em sua apresentação à tese de Manoel Salgado: “As
pesquisas de Manoel Luiz Salgado Guimarães marcam um momento em que os historiadores (inicialmente
um pequeno grupo) dubruçam-se sobre a sua disciplina e passaram a estudar sua própria memória disciplinar
e os motivos de seus esquecimentos” (GUIMARÃES 2012, p. 15). Para uma análise de certas questões e
antinomias que orientavam a produção historiográfica à época em que Manoel Salgado produzia sua tese,
conferir ARAUJO (2012).
80
sua tese de doutorado, o problema centrava-se em reconstutir “a conexão
entre a consolidação do Estado nacional e o início da historiografia” brasileira
(GUIMARÃES 2011, p. 55), desvelando as funções legitimadoras da escrita da
história e seus efeitos no desenvolvimento histórico nacional; em seus trabalhos
posteriores, sem jamais abandonar a preocupação com a relação entre política
e história, Manoel Salgado passa cada vez mais a complexificar os instrumentos
de investigação sobre aqueles vínculos, assim como a fraturar a linearidade
narrativa de sua representação. Essa preocupação manifestou-se tanto em uma
maior problematização do objeto de pesquisa da história da historiografia – a
escrita da história –, em sua historicidade e em suas relações com diferentes
culturas históricas, como também no esforço de reinserir em suas análises a
indeterminação dos diferentes futuros que orientavam aquelas experiências
do passado. É o que se percebe, por exemplo, seja em suas reflexões sobre
tradições silenciadas pela memória disciplinar, como a dos antiquários, seja na
compreensão daquilo que ele denominou de “textos fundadores” como formas de
“disputas pelo passado” e pela própria normatização de uma história disciplinar
no Brasil oitocentista (GUIMARÃES 2000; 2007). De acordo com Manoel Salgado:
A historicidade do gênero
A proposta de uma abordagem a partir do gênero, aqui sugerida, faz
uso dos encaminhamentos hermenêuticos que Peter Szondi elaborou acerca
de uma “poética histórica dos gêneros” (SZONDI 2011; 2004).2 Para Szondi,
não é possível pensar os gêneros como formas autosuficientes que demandam
determinados tipos fixos de conteúdos (como o dramático, o épico, o lírico). A
descrição aristotélica dos gêneros e suas distintas recepções normativas entre
os séculos XV e XVIII estabeleceram relações estáveis e universais entre as
diferentes formas e seus conteúdos. Diferentemente dessa definição aristotélica
dualista, presente também em teóricos como Emil Steiger, Szondi retira da
estética hegeliana e do diálogo com as reflexões de Lukács, Benjamin e Adorno a
necessidade de pensar, ao mesmo tempo, a relação de identidade e a historicidade
2
Sobre Szondi, conferir os dossiês em Boundary (1983), Telos (2007).
3
Algumas analogias, e diferenças, poderiam ser traçadas com as propostas de White, a partir do esquema
desenvolvido por Hjelmslev, e sua afirmação da necessidade de elaboração de novas formas para lidar com
aquilo que denomina de “eventos modernistas” (WHITE 1987; 2010).
4
Algo também desenvolvido em sua obra posterior sobre o drama burguês, onde se destaca uma orientação
maior aos condicionamentos sociológicos da historicidade da forma.
5
“O conceito de círculo, de suma importância gnosiológica para a hermenêutica, tanto no que concerne
a seus fundamentos filosóficos como no que se refere a sua metodologia, desempenha na prática atual
da interpretação um papel que parece dispensar a hermenêutica da crítica de sua particular forma de
conhecimento” (SZONDI 2006, p. 45). Conferir igualmente BLUMENBERG 2011, p. 153-155.
6
Importante ressaltar que meu objetivo aqui é ensaiar uma primeira delimitação, em linhas gerais, dos
critérios históricos constitutivos do gênero. Com isso, em nome dessa generalidade, não priviligiarei as
especificadades que caracterizam as obras referidas, reconhendo que a homogeneidade produzida é um efeito
de escala da linguagem utilizada e que sua pertinência deve direcionar-se, em ultimo caso, à heterogeneidade
dos casos particulares e de seus contextos intelectuais. Afnal, como afirma Szondi: “As contradições entre
forma dramática e os problemas do presente não devem ser expostas de maneira abstrata, mas apreendidas
como contradições técnicas, ou seja, como ‘dificuldades’ no interior da obra concreta” (SZONDI 2011, p. 20).
7
Como destaca Grafton, ao contrário de Ranke, Whaler admirava a capacidade de descrição de Guicciardini
(GRAFTON 1998, p. 74).
8
No sentido proposto por White, a partir de Auerbach: “O modelo figural-cumprimento outorga a esta
‘conversão auto-justificatória’ com textos do passado o sentido de uma promessa sempre renovada e não-
-cumprida, na medida em que o estabelecimento de todo novo cânone inovador é um ato no qual se produz a
expropriação de textos do passado por um texto presente, sem que este último chegue jamais a ser ‘completo’
na realização da promessa em que foram constituídas as representações prévias. Sempre ‘permanecerá
aberto’ a futuras expropriações que construirão novos cânones que desafiarão as já cristalizadas” (MARTINI
2013, p. 141).
88 Com isso, surge outra característica que compõe aquilo que venho definindo
como “enunciado da forma” da história da historiografia: a orientação. Não por
acaso, Ranke intitulou o capítulo final de sua Zur Kritik neuerer Geschichtsschreiber
“O que ainda há por fazer” (apud GRAFTON 1998, p. 53) E é a partir de uma
questão análoga que Gabriel Monod inaugura a Revue Historique, em 1876, com
um texto sobre “O progresso dos estudos históricos na França”, justificando-o
como um trabalho necessário para bem definir a finalidade do novo periódico
(MONOD 1876). Para definir a sua finalidade (le but), a história da historiografia
retorna ao início (le début), amarrando-os, o final e o início, pela costura do
“meio”. Ou, como responderia o Rei de Copas à (im)prudente pergunta do Coelho
Branco sobre “onde começar”: “Comece pelo começo, continue até chegar ao
fim e chegando ao fim, pare”.9
Um século depois de Monod, por fim, Ernst Breisach retoma a questão em
seu livro sobre a história da historiografia ocidental. Diante do diagnóstico de
crise da disciplina, e movido pelo ceticismo de que a crise pudesse ser solucionada
no âmbito teórico, ele justifica sua obra (re)afirmando a vinculação necessária
entre a narrativa da história da “história” e a identificação da sua “natureza”:
“Apenas no contexto do conjunto do desenvolvimento da historiografia ocidental
é que podemos verdadeiramente sondar a função e a natureza da história como
um realização humana” (BREISACH 2007, p. XIV). É, portanto, nessa (re)
conciliação da disciplina com sua história, dos gregos aos modernos, nesse
9
A partir das belas considerações acerca da tradição da “História Antiga” por Francisco Murari Pires (PIRES 2012).
10
Algo que chama a atenção sobre as funções de orientação que a história da historiografia exerce, e que
mereceria ser melhor investigado, é essa relação, em um grau inexistente em outras disciplinas – cujas
definições se dão, comumente, a partir de justificativas eminentemente epistemológicas –, entre as “crises”
de legitimação da história e a busca de sua resolução pelo reordenamento narrativo de seu passado.
11
É importante frisar que a noção de diálogo aqui distingue-se da concepção gadameriana, que promove
certa hipostasiação da tradição. Se esta noção de diálogo tem sua validade, deve-se notar o seu caráter
essencialmente assimétrico (THOUARD 2012, p. 137).
12
Nesse sentido, podemos endossar – somando ao estético, o historiográfico – a conclusão de Franco
Moretti acerca de um gênero similar, mas não idêntico, a história da literatura: “uma história das formas
retóricas levada à sua conclusão lógica provocará, muito provavelmente, o desmembramento do campo
estético [historiográfico]. E esse desmembramento não assumirá mais a forma historicista de eliminar as
peculiaridades técnicas das obras para fundi-las num ‘Espírito de Época’ genérico. Em vez disso, é exatamente
da concretude da sua forma que a crítica deduzirá a necessidade teórica de ‘soltar’ as histórias da arte e da
literatura [e da historiografia], e reescrevê-las como mero componente de uma história dos valores, das
estruturas de pensamento nas quais esses valores se organizam e das instituições criadas para promovê-los”
(MORETTI 2007, p. 31). Conferir também PERKINS 1992.
92 Referências bibliográficas
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BOER, Pim den. History as profession. Princenton: Princenton University
Press, 1998.
13
No original: “Jusqu’où peut-on jouer avec l’institution, contre elle? C’est une question qu’il n’est pas aisé de
trancher”. Tradução minha.
The lesson of the stone: uses of the past and material culture
______________________________________________________________________
Francisco Régis Lopes Ramos
regisufc@hotmail.com
Professor
Universidade Federal do Ceará
Rua General Silva Júnior, 800/802 - Fátima
60411-200 - Fortaleza - CE
Brasil
Aline Montenegro Magalhães
alinemontenegro@gmail.com
Historiadora
Museu Histórico Nacional
Praça Marechal Âncora, s/n - Centro
20021-200 - Rio de Janeiro - RJ
______________________________________________________________________
Brasil
Resumo
Ao propor certas divisões entre o passado e o presente, a escrita da história na modernidade
também articula várias maneiras de fazer conexões entre o real e o que não é real. Uma possível
abordagem historiográfica é exatamente o estudo sobre a forma como essas conexões são
constituídas e legitimadas. Portanto, este artigo é uma abordagem historiográfica sobre os usos
96 do passado na cultura histórica vivida por Gustavo Barroso, a partir das proposições teóricas
e metodológicas de Manoel Luiz Salgado Guimarães. Relacionando a escrita de Barroso com
a produção de outros intelectuais, percebe-se o importante papel da cultura material para a
construção de certas formas de dar sentido ao passado, através das transformações de marcas e
traços em vestígios da passagem do tempo.
Palavras-chave
Escrita da História; Narrativas; Cultura material.
Abstract
By proposing certain divisions between past and present, modern history writing also articulates
various connections between what is real and what is not real. A viable historiographical approach is
exactly the study of the way these connections are structured and legitimized. Therefore, this article
investigates the uses of the past in historical culture as experienced by Gustavo Barroso. Based
on theoretical and methodological insights by Manoel Luiz Salgado Guimarães, it relates Barroso’s
writing to the production of other intellectuals. The paper aims at illustrating the significant role
material culture has in the shaping of certain ways of giving meaning to the past, more specifically
through the transformation of marks and traces into vestiges of the passage of time.
Keywords
History writing; Narratives; Material culture.
A pátina do tempo
José de Alencar escreveu que, diante das ruínas de Olinda, “interrogava
os muros do convento, como para arrancar-lhes o segredo de algum fato
interessante de que se perdera a tradição”. A vida, afinal, não passava para
sempre, deixava marcas e marcos: “Era justamente essa crônica do coração,
esquecida pelos analistas do tempo, que eu pedia àquelas ruínas” (ALENCAR
1953, p. 238).
A pedra era tanto a presença de uma ausência, quanto a ausência de uma
presença. Ao contrário do que pode parecer, não é simplesmente um jogo de
palavras. Para ser sentida, a ausência deve dar conta de alguma existência anterior.
A reverência diante do antigo vem desse sentimento: ali há muitas ausências,
sobrepostas e repostas. Sem imaginar que por ali muitas coisas se passaram,
perde-se o elo fundante da saudade. Não propriamente uma saudade de ausentes
conhecidos, mas a falta de algo que não se sabe bem o quê. Uma indefinição
propícia à imaginação. Daí a necessidade dessa presença radical de um existente
que não existe mais. Daí a necessidade de ver o aparentemente invisível.
Alencar pedia, perguntava, implorava, mas a matéria permanecia calada:
“os muros, lavados pela chuva e pelo vento, estavam descarnados; as pedras
já não conservavam os vestígios da mão do homem”. Os vestígios estavam
97
mudos e mutilados: “Quantas vezes não sondei esses destroços de alvenaria,
essas paredes nuas, procurando, nem sei o quê, uma memória, um nome, uma
inscrição, uma frase que me revelasse algum mistério, que me dissesse o epílogo
de alguma lenda que a imaginação completaria!” (ALENCAR 1953, p. 238).
Pedra boa era pedra riscada, ou melhor, acrescida por algum tipo de grafia.
Alencar procurava aquilo que Victor Hugo havia encontrado em uma parede de
uma catedral do medievo: uma inscrição. ´AN´ ATKH – foi essa a palavra que
fez Victor Hugo meditar, como ele mesmo escreveria depois: “Estas maiúsculas
gregas, enegrecidas pelo tempo e profundamente gravadas na pedra [...]
impressionaram vivamente o autor”. Daí, o romancista encontrou a sua matéria-
-prima, no mesmo dispositivo de criação que Alencar tentava pôr em prática:
a faculdade de imaginar a partir de indícios enigmáticos. Ali, diante das letras,
ele perguntou a si mesmo “qual teria sido a alma aflita, que não tinha querido
abandonar este mundo sem deixar aquele estigma do crime ou da desgraça na
fronte da velha igreja” (HUGO 2011, p. 6).
Diferentemente dos muros “lavados” onde Alencar buscava seu romance,
a Notre Dame tinha aquele pormenor significativo, que se via, por exemplo, nas
grafias em baixo relevo. Aqueles pequenos resíduos, lentamente entranhados
no sulco da letra, davam à pedra aquilo que somente o tempo poderia dar:
a impureza das camadas, a mistura das poeiras pacientes. Nada como esses
sedimentos que irritam o nariz: insistentes, as partículas vão fazendo a tintura
O espaço até pode ser copiado; o tempo, não. É nessa constatação que as
ruínas assumem um papel completamente insubstituível. Em outros termos: é
possível fazer com perfeição a cópia de uma casa de 300 anos, mas a cópia será
100 apenas do espaço. Jamais se terá a imitação dos 300 anos. O antigo só pode
ser atributo de um objeto se o tempo passa. Nunca será possível construir um
artefato de 300 anos em três dias. O romantismo lida com essa massa temporal,
adquirida em ritmo próprio, por tudo aquilo que envelhece.
Isso, na teoria. Na prática, a história é outra, porque foi nos primórdios
do romantismo que se espalhou o gosto pela reprodução de objetos históricos,
incluindo as próprias ruínas. A partir do século XVIII, não faltou criatividade
para quem quisesse ter a sua própria ruína, no lugar que desejasse. Alguns
arquitetos orientavam, por exemplo, que a melhor maneira era fazer construções
“medievais” com material de maior fragilidade, assim logo começariam a cair.
Outros já colocavam pedaços de muro cuidadosamente espalhados em um
jardim, à espera de lodo ou coisa parecida. Havia, também, os mais cuidadosos:
arrancavam pedaços de construções antigas e depositava-os no terreno a ser
decorado com o pretérito. Por fim, os radicais: erguiam castelos e, logo em seguida,
bombardeava-os. Da explosão é que surgiriam as ruínas projetadas. Como era
de se esperar, o artifício foi logo denunciado como artificialidade de mau gosto.
Na França, levantou-se a voz de Delille: “Aproveitem esses restos venerados de
capelas, fortalezas ou abadias respeitáveis ou comoventes, profanos ou sagrados;
mas mantenham-se afastados desses monumentos cuja fingida ruína imita mal a
inimitável marca do tempo...” (CARENA 1984, p. 199-120).
Em 1931, quando visitou Paris, Barroso fez algumas anotações sobre seu
deslumbre diante da fachada monumental de Notre Dame, misturando descrições
de detalhes da arquitetura, vistos no calor da hora, com divagações a respeito
Até onde? Até quando? Como parar uma construção que passou boa
parte da sua vida em reformas, reconstruções e reparos? Nem Victor Hugo
nem Barroso ignoravam a impureza do monumento. Sabiam que era impossível
marcar com precisão uma data de conclusão do templo, para daí estabelecer a
essência da estrutura. Não se deve, entretanto, procurar uma coerência nesse
sentido, porque não há nem poderia haver esse ordenamento esquemático do
tempo. O modo pelo qual os dois autores lidavam com o tempo pressupunha 101
tais camadas de acréscimos e perdas, ora lamentadas, ora louvadas, a depender
da circunstância. O vigor com que eles defendiam a preservação diante das
“modas” era radical, mas a degradação inevitável da matéria era conhecida e
reconhecida. Para o futuro distante, somente a literatura poderia salvar esses
monumentos. Primeiro, porque saberia evidenciar a “alma” que os sustentavam.
Segundo, porque o livro poderia ser reimpresso, e assim resistiria à passagem
dos séculos. Daí a ânsia pelo registro escrito, tanto em relatos de viagem, quanto
em romances. Daí, por exemplo, as quase intermináveis descrições de Victor
Hugo no meio da narrativa, revelando não somente o tempo no qual ocorre a
trama, mas sempre se reportando aos séculos anteriores, para mostrar algum
detalhe da “antiga Paris”, que o tempo havia levado.
Compunha a prática da escrita romântica a junção entre o lamento e a
revolta, entre contemplação e intervenção. Não é de se estranhar, portanto, as
divagações filosóficas de Barroso sobre o espírito sensível ao tempo incrustrado na
pedra. Nos seus escritos, vale destacar, o romantismo não era apenas assumido,
mas também se tornava matéria de reflexão e de combate aos que não sabiam
sentir. No meio das pedras veneráveis de Guimarães, em busca das imagens que
apareciam pela infusão do ambiente, ele pensou: “A semente do romantismo é a
mais difícil de extirpar do coração humano. Dentro do nosso coração canta sempre
uma balada. [...] E desgraçados de nós se assim não fosse, se só tivéssemos o
senso objetivo da triste e dura realidade” (BARROSO 1943, p. 104).
104
heráldicas, genealógicas e arqueológicas. Leitura de documentos, relatos de
cronistas e historiadores sobre a cidade. Ao final de toda essa operação a pedra
falou que ornamentou a fachada da casa de um fidalgo em princípio do século
XVIII. Chamado Marcos da Costa Fonseca, certamente nascido na cidade do Rio
de Janeiro, foi Capitão da Fortaleza de Santo Antônio da Praia da Barge. Depois
que seu imóvel passou para as mãos das freiras do Convento d’Ajuda, a pedra
foi retirada. Afinal, como o próprio Poliano argumentou “ela era uma marca de
posse que não mais se justificava”. Seu fim mais provável foi ter servido de
entulho para a abertura da rua Senador Dantas (POLIANO 1947, p. 171-172).
Nesse sentido, as pedras falavam no Museu Histórico Nacional. E não
apenas as pedras do Arsenal e do Morro do Castelo, mas aquelas também
vindas de outras cidades, outros lugares onde o progresso as fez virarem restos
de edificações derrubadas. Foi o caso da pia de água benta em mármore, da antiga
Sé da Bahia recolhida em 1934, após sua demolição. Seria mais um vestígio do
passado a virar escombro, mas que, ao ser coletado para integrar uma coleção
museológica, recebeu outra finalidade, outro valor e tornou-se testemunha de
mais uma construção colonial varrida pelas demandas da modernidade. Tornou-se
testemunha também desse distanciamento cada vez maior entre o espaço de
experiência e os horizontes de expectativa na forma de conceber a passagem do
tempo (Cf. KOSELLECK 2006). Sua preservação junto a tantos outros vestígios
de construções desaparecidas parecia contribuir para uma dupla realização do
luto: pela perda irreparável do passado como experiência (GUIMARÃES 2011,
p. 100) e pela perda irremediável de seus referenciais na paisagem urbana
Ouro Preto é uma Cidade Sagrada pela história, pela arte, pela tradição
e pela lenda. É um nobre patrimônio que se não pode perder (BARROSO
1944, p. 14). 105
Ao disparar artigos nos jornais clamando pela preservação de Ouro Preto,
Barroso recorria às suas vivências na cidade como forma de sensibilizar seus
leitores e, em especial, as autoridades públicas. Demonstrava assim, seu
fascínio pelas pedras com sua pátina a exibir sua história: “vi o maravilhoso
templo do Rosário […] enegrecido pelo mugre dos centenários, ferido do raio,
abandonado dos homens, solene e mudo sob a bênção do luar e o lume trêmulo
das estrelas” (BARROSO 1944, p. 10). Fascinava-o a pedra esculpida pelos
homens, mas também ferida pelos fenômenos da natureza. Suas marcas da
passagem do tempo falariam do passado do lugar, mas também do passado
nacional e apreensível aos sentidos: “Ouro Preto me atrai e me fascina, porque
ali não é somente o passado que sinto, palpo e respiro, porém, o passado de
minha terra, o passado de minha raça e o passado de minha língua” (BARROSO
1944, p. 12).
Sentir, palpar e respirar o passado era o que alimentava a imaginação. A
descrição de seu passeio pela cidade mostrava o quanto a atmosfera do lugar
podia nos reportar, a qualquer momento, para o século XVIII e colocar-nos
em contato com personagens e fatos da história. Assim ele narrava: “e ainda
sobrou tempo para rondar a Casa dos Contos, à espera de ver com os olhos
da minha imaginação superexcitada os vultos dos Inconfidentes, os juízes da
Alçada, a gente dos quintos do ouro e, na sua casaca de veludo azul, [...] o
Assim, além da frágil lembrança que lhe consagra o autor deste livro,
hoje já nada mais existe da palavra misteriosa gravada na sóbria torre
de Nossa Senhora de Paris, nada do fim desconhecido que ela tão
melancolicamente resumia. O homem que escreveu aquela palavra
naquela parede desapareceu, há muitos séculos, do meio das gerações,
a palavra, por sua vez, já desapareceu da igreja, e a própria igreja talvez
que bem cedo desapareça também da terra. Foi sobre essa palavra, que
este livro foi escrito. Fevereiro de 1831 (HUGO 2011, p. 5).
110 haja mais espaço para os que já e ainda estão vivos. É claro que a influência da
psicanálise nessa conclusão de Certeau é nítida. Mas, vale ressaltar, a elaboração
também se inspirou no romantismo de Michelet, em sua recorrente referência
ao trabalho do historiador como dever piedoso diante dos sepultados. Victor
Hugo e Alencar estão, nesse sentido, no mesmo barco, porém acreditam que o
fato deve ser tratado de uma maneira específica, ou melhor, em outra medida.
Qualquer descuido pode estragar a lápide: o romance se transforma em relato,
a forma se corrompe na fórmula, a excitação cai na explicação, e o sentimento
vira apenas sentido.
Uma antiga inscrição misteriosa destruída para sempre. Diante disso,
lamento, revolta, reverência, denúncia, homenagem. Tudo isso se envolve,
então, numa espécie de narrativa da perda duplicada: o próprio romance. Daí
tentativa de compor na ficção uma realidade perene, substrato que a pedra
não conseguiu dar à inscrição (que significa FATALIDADE, conforme o leitor
fica sabendo mais ou menos na metade do livro, já que a palavra em grego
não aparece somente na nota introdutória, entrando também na trama da
narrativa). A inscrição marcava a existência de algo, cuja mensagem tornava-se
praticamente indecifrável, mas o indício estava ali, como prova concreta do que
não mais existia. O escritor, nesse e em outros escritos, lutava pela preservação
de traços dos ausentes. Somente desse modo, os ausentes ganhariam lugar no
presente e no futuro, continuariam a mostrar que o tempo era denso: presente,
passado e futuro, em camadas interativas. Com o desaparecimento do rastro,
desapareceria a perda, deixando a vida na superficie. Assim pensando, o escritor
Está aí, portanto, uma lição que a pedra pode dar: “então, existiu”. A
mesma pedagogia da história em seu “trabalho de luto”? Em certo sentido, sim,
na medida em que estão em jogo maneiras de tornar o tempo compressível e
minimamente aceitável. Contudo, se o foco é especificamente as pedras aqui
expostas, a partir de diferentes dispositivos de escritas sobre o passado, seja a
escrita literária, a musológica ou a de preservação do patrimônio arquitetônico,
o que parece prevalecer, a depender da circunstância, é a “melancolia”. Há,
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CARVALHO, José Murilo de. Nação e Cidadania no Império: novos
horizontes. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 93-122.
Resumo
Procuro justapor as perspectivas de dois autores que, com pouco mais de um século de distância,
apresentaram distintas preocupações quanto ao conhecimento do Brasil e a escrita de sua história:
Henrique de Beaurepaire-Rohan (1812-1894) e Manoel Luiz Salgado Guimarães (1952-2010).
Para o primeiro, conhecer o país, seu território e sua formação era necessário à construção da
nacionalidade, considerando a relação entre o passado, o estudo do presente e as perspectivas de
futuro então abertas à jovem nação. Para o segundo, fundamental era o estudo dos procedimentos
historiográficos e o acompanhamento das discussões que envolveram a escrita da história de
um “ponto de vista nacional” no Brasil do século XIX. Trata-se, portanto, de um exercício de
aproximação (e afastamento) entre os objetivos do historiador de hoje, dedicado ao estudo de
textos fundacionais em circulação no Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB); e os
Palavras-chave
Historiografia; Manoel Luiz Salgado Guimarães; Henrique de Beaurepaire-Rohan.
Abstract
In this paper, I try to juxtapose the historiographical perspectives of two authors – Henrique
de Beaurepaire-Rohan (1812-1894) and Manoel Luiz Salgado Guimarães (1952-2010). In spite
of being intellectuals whose lives were separated by more than a century, both had strong
interests on knowledge about the writing Brazil’s history. For Beaurepaire-Rohan, cultivating
knowledge of Brazil’s geographical and historical constitution was needed for the larger task of
constructing the nation. Guimarães, on his side, used to dedicate special attention to the study of
historiographical procedures and to understanding the debates around the issue of how to write
history from a “national point of view” in nineteenth-century Brazil. The paper is thus an exercise
in approaching and distancing the aims of today’s historians to/from those of their nineteenth-
-century counterparts.
Keywords
Historiography; Manoel Luiz Salgado Guimarães; Henrique de Beaurepaire-Rohan.
Quais os meios de que se deve lançar mão para obter o maior número possível de
1841 documentos relativos à história e geografia do Brasil?
Rodrigo de Souza da Silva Pontes
1
Texto publicado em 1877, pela Tipografia Nacional e, na forma de artigo na Revista do Instituto Politécnico
Brasileiro, vol. 8, p. 1-36 (GUIMARÃES 2010, p. 188).
2
O presente volume constituiu parte de projeto amplo na perspectiva dos estudos de Guimarães, que visavam
a ampliação das reflexões de ordem historiográfica no presente e do conhecimento sobre a historiografia do
século XIX, como demonstra o conjunto de sua produção.
Parecer acerca das memórias sobre o modo pelo qual se deve escrever a
história do Brasil
1847
Comissão: Francisco Freyre Allemão; Monsenhor Joaquim da Silveira; Dr. Thomaz
Gomes dos Santos
3
Memória lida em 1838 e publicada, postumamente, em 1863 (GUIMARÃES 2007, p. 114).
4
Os mapas podem ser vistos com maior detalhe no volume A cartografia impressa do Brasil – 1506-1922. A
partir da delimitação de 100 mapas para a composição do volume, o autor escolheu os mapas impressos tendo
em vista sua maior circulação e, portanto, influência na divulgação do conhecimento neles condensados. Na
afirmação de Pedro Correa do Lago, foram mapas que “realmente fizeram diferença no conhecimento ampliado
do delineamento da costa brasileira e na identificação progressiva dos principais acidentes geográficos do
interior” (LAGO 2012, p. 10).
http://www.geheugenvannederland.nl/?/ http://www.4shared.com/all-images/0fu_
en/collecties/planos apOV/Mapas.html
Desse esforço, pode-se concluir, resulta uma busca mais do presente que
do passado, pautada pela procura do que se considerava necessário para se
perspectivar o futuro: delimitar o Império em termos de sua geografia, descrevê-
lo e representá-lo graficamente em seus inúmeros detalhes; explicitar suas
120 características por meio de códigos, traçados e dispositivos simbólicos. Reunir
elementos para avaliar possibilidades, conferindo organicidade e visualidade a
conhecimentos que se encontravam dispersos. Visualidade efetivada pela síntese
de conjunto proporcionada pelo mapa, cartografia que desenha e compõe o
traçado/contorno da paisagem Brasil, fundamental para definir a nação, alimentar
os sentimentos pátrios e estreitar os vínculos com a terra, para uns de nascimento,
para outros de adoção: o traçado delineia a costa e sugere as fronteiras interiores
por regiões menos conhecidas, realça a malha hídrica e demais acidentes notáveis
da sua topografia, destaca o conjunto da natureza e, também, as realizações que
resultam de sua ocupação pelos homens: áreas trabalhadas pela agricultura e
outras atividades, riquezas naturais, caminhos de ferro que comungam com os rios,
os recortes caprichosos de seu imenso litoral. No conjunto, representam imagem
que remete, na figuração e na imaginação, para a pátria que se quer nação, no
momento de tais investimentos. Entre outros conhecimentos, contribuiriam para
mobilizar sentimentos que vinculam a paisagem em seus inúmeros detalhes ao
país e nação a que se procura dar visibilidade pela cartografia. Imagens que se
formam a partir da vinculação pátria, país e paisagem, a que a Carta Geral do
Império confere unidade, suscitando o que Catroga (CATROGA 2008) denominou
“sentimentos quentes”, tendo em vista a mobilização de afetos pátrios, de forma
que o Brasil – com seu imenso e diferenciado território – torna-se perceptível pela
construção visível do contorno geográfico que lhe dá concretude e possibilita que
a imaginação seja lançada longe em termos de representações e, mesmo, da
http://www.4shared.com/all-images/0fu_apOV/Mapas.html
5
Beaurepaire-Rohan chama a atenção para a utilização, por Caminha, do “calendário juliano, que vigorava
no seu tempo”, de forma que o dia 22 de abril corresponderia, no calendário gregoriano, ao dia 3 de maio
(BEAUREPAIRE-ROHAN 1877/2010, p. 169).
6
Questão que aparece de forma bastante interessante no romance de Martius Frey Apollonio: um romance
do Brasil, escrito em 1831 e publicado somente na segunda metade do século XX, com tradução publicada no
Brasil, pela Brasiliense, em 1992 (NAXARA 1994, p. 251 et seq.).
7
Lucia Paschoal Guimarães assinala que ao longo da segunda metade do século XIX, foram publicados na
Revista do IHGB “somente três textos que faziam menção ao elemento negro” (GUIMARÃES 1995, p. 575).
Referências bibliográficas
4SHARED. http://www.4shared.com/all-images/0fu_apOV/Mapas.html. [Acesso
em 03/06/2013].
BEAUREPAIRE-ROHAN, Henrique de. Estudos acerca da organização da carta
geográfica e da história física e política do Brasil. In: GUIMARÃES, Manoel
Luiz Salgado. Livro de fontes de historiografia brasileira. Rio de
Janeiro: EdUERJ; FAPERJ, 2010 [1877], p. 157-191.
_____. O futuro da grande lavoura e da grande propriedade no Brasil. In:
Congresso Agrícola. Coleção de Documentos. Rio de Janeiro: Tipografia
Nacional, 1878, p. 242-252.
CATROGA, Fernando. Pátria, Nação, Nacionalismo. In: TORGAL, Luís
Reis; PIMENTA, Fernando Tavares; SOUZA, Julião Soares (coord.).
Resumo
Em um de seus últimos trabalhos, Manoel Luiz Salgado Guimarães abordou as tensões e os
paradoxos das relações entre a escrita e o ensino da história, entendendo ambas as operações
como marcas distintivas de duas dimensões indissociáveis, da construção do conhecimento
histórico e do próprio ofício do historiador. No presente artigo, proponho um retorno a textos por
ele publicados a partir do final dos anos 1990, através dos quais apontarei alguns dos problemas
teóricos que perpassaram as suas reflexões em torno da história escrita e da história ensinada
como formas de configuração de sentido e de usos do passado. O objetivo é situar as proposições
de Manoel Salgado acerca do ensino da história nos desdobramentos de suas proposições teóricas
sobre a historiografia.
130 Palavras-chave
Historiografia; Memória; Ensino de história.
Abstract
In one of his last published texts, Manoel Luiz Salgado Guimarães addressed the tensions and
paradoxes involved in the relationship between history writing and history teaching, and presented
both operations as constitutive of two inseparable dimensions of the construction of historical
knowledge and the historian’s craft. This article aims at revisiting the texts Guimarães published
from the late 1990s on, pointing to some of the theoretical problems that have permeated his
reflections on history education and writing as forms of meaning making, as well as ways of using
the past. My purpose is to show that Guimarães’ considerations on history teaching is one of the
unfoldings of his theoretical propositions about historiography.
Keywords
Historiography; Memory; History teaching.
1
O Seminário Ensino da História: Memória e Historiografia ocorreu entre 2 e 4 de junho de 2008, como parte
das atividades do projeto Culturas políticas e Usos do passado – Memória, Historiografia e Ensino de História,
que reuniu um grupo de professores de diferentes universidades do Rio de Janeiro. O evento deu origem ao
livro A escrita da história escolar: memória e historiografia, que reúne os trabalhos então apresentados, entre
eles, a conferência de abertura de Manoel Salgado (ROCHA; MAGALHÃES; GONTIJO 2009).
2
Nas palavras de Beatriz Sarlo, a história não acadêmica, mesmo aquela praticada por profissionais da área,
“escuta os sentidos comuns ao presente, atende as crenças de seu público e se orienta em função delas”,
conectando-se ao “imaginário social contemporâneo” (SARLO 2005, p. 15).
3
Publicado no primeiro volume da Revista Estudos Históricos, em 1988, como parte do dossiê “Caminhos
da historiografia”, “Nação e civilização nos trópicos: o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e o projeto
de uma história nacional” tornou-se um texto paradigmático e de ampla recepção para os estudos da escrita
histórica brasileira, consistindo no resumo dos argumentos da tese Historiografia e nação no Brasil (1838-1857),
defendida por Manoel Salgado no ano anterior, na Universidade de Berlim, sob a orientação de Hagen Schulze.
4
Para uma relação completa da produção bibliográfica de Manoel Salgado, ver GUIMARÃES 2011, p. 277-280.
134 cultura histórica: notas para um debate” (GUIMARÃES 2005). Nele, a contribuição
de José Honório será objeto não apenas de avaliação mais detida e aprofundada,
mas igualmente de uma problematização acerca de alguns pressupostos do seu
empreendimento historiográfico. Neste sentido, vale a pena nos desviarmos do
artigo de 1998, abrindo espaço para a passagem extraída do texto posterior, no qual
se evidencia uma inflexão importante nas análises de Manoel Salgado, na medida
em que ele reavalia a confecção de repertórios historiográficos, enfatizando, de
modo mais incisivo, o seu papel na construção da memória disciplinar:
5
Poderíamos acrescentar, a propósito, que essa tradição de estudos historiográficos, tal como assinalada
por Manoel Salgado, forjou-se a partir de escolhas que, de certa forma, pareciam contrariar as advertências
formuladas em 1914 pelo autor de um clássico das pesquisas do gênero, Eduard Fueter, quando postulou que
uma história da historiografia deveria ser “outra coisa do que um léxico de historiadores” (FUETER 1914, p.II).
6
Neste sentido, na proposta de ultrapassar a confecção de catálogos e balanços bibliográficos que,
tradicionalmente, se confundiram com os estudos de historiografia, se era imprescindível a demarcação dos
seus objetos, a formulação de problemas e de pautas específicas de investigação, igualmente se fazia necessário
o trabalho de edição crítica e comentada de textos como forma de se constituir um corpus de fontes possíveis
de pesquisa. Essa preocupação estava na base de um dos importantes projetos de Manoel Salgado, que se
concretizou postumamente com a publicação do Livro de fontes de historiografia brasileira, composto por
discursos, dissertações e memórias, publicados na revista do IHGB, ao longo do século XIX, transcritos em sua
ortografia e pontuação originais e acrescidos de elucidativas notas do seu organizador (GUIMARÃES 2011).
7
O texto de Certeau, citado por Manoel Salgado, corresponde à primeira versão, incluída na edição brasileira
da obra organizada por Jacques Le Goff e Pierre Nora, História: novos problemas, em 1976, dois anos após
a publicação no original francês Faire de l’histoire. O estudo, revisto e ampliado, reapareceu sob o título “A
operação historiográfica”, no livro L’Écriture de l’histoire, de 1975, cuja primeira edição no Brasil data de 1982.
8
Para uma análise do impacto teórico da virada linguística na história intelectual, ver PALTI 2012, p. 19-167.
136 eixos cruciais e mais profícuos das reflexões de Manoel Salgado desenvolvidas
em seus trabalhos posteriores. É nesta direção que, cinco anos mais tarde, ele
será incisivo em argumentar que “uma tarefa desmistificadora por excelência”
estava reservada à historiografia como campo de reflexão, na medida em uma
história da história, menos do que reconstituir mitos, pressupunha perceber a
escrita da história como sendo ela também “vítima das construções da memória”
(GUIMARÃES 2003, p. 22). Por essa perspectiva, chegava-se a uma circunscrição
mais abrangente para a historiografia, definida por ele como “investigação
sistemática acerca das condições de emergência dos diferentes discursos sobre
o passado”, o que significava reconhecer não somente a historicidade do próprio
ato da escrita histórica, mas igualmente percebê-la como resultado de disputas
entre memórias e como parte das lutas travadas nas sociedades pela atribuição
de sentido ao passado (GUIMARÃES 2003, p. 23).
Contudo, se na usual construção sistemática de balanços e inventários
historiográficos era possível detectá-la de modo mais explícito como um princípio
ordenador da seleção e canonização de autores e obras, como pensar o papel da
memória e do seu trabalho paciente e tantas vezes insidioso, no âmbito dessa
nova forma de abordar a historiografia, delimitada a partir de uma démarche
diversa, na qual os textos de história deixavam de ser meros pretextos para
9
O Colóquio, promovido pelo Instituto de Letras da UERJ, com coordenação de Dirce Cortes Riedel, consistia em
exposições de trabalhos, acompanhadas por comentários e debates. Entre os participantes estavam Benedito
Nunes, Bento Prado Júnior, Luiz Costa Lima, Ricardo Benzaquen, Nicolau Sevcenko, Francisco Iglésias e José
Américo Motta Pessanha. Os textos completos do evento foram reunidos em RIEDEL 1988.
10
Na elucidação dessa metáfora, vale retomar o conceito lapidar da teoria psicanalítica freudiana, tal como
formulado em Totem e Tabu [1913], onde Freud afirma que o narcisismo não é meramente um estágio
passageiro na história libidinal do sujeito, e sim uma estrutura permanente que continua a existir apesar das
reestruturações libidinais posteriores (FREUD 2006, p. 92). No conjunto de trabalhos de Manoel Salgado, uma
apropriação mais direta de textos do criador da psicanálise, como Totem e Tabu e Moisés e o monoteísmo,
encontra-se em uma parte do capítulo “O presente passado: as artes de Clio em tempos de memória”, quando
analisa o papel da evocação e da lembrança ritualizada como atos constitutivos e fundadores da vida coletiva
(GUIMARÃES 2007, p. 32-34).
11
Cabe destacar que, além do texto referido, ainda no ano 2000, Manoel Salgado publicou dois artigos que
se tornaram referências primorosas e seminais para a pesquisa em história da historiografia: “Reinventando
a tradição: sobre antiquariato e escrita da história” (2000b) e “História e natureza em von Martius:
esquadrinhando o Brasil para construir a nação” (2000c).
12
A esse respeito, é possível identificar uma aproximação das reflexões de Manoel Salgado daquelas formuladas
anteriormente por Afonso Carlos Marques dos Santos. Em artigo publicado em 1986, já assinalando uma
recepção dos argumentos de Pierre Nora, Santos questionava o papel da memória no debate teórico acerca de
uma historiografia que se pretendia crítica e renovadora e concluía que uma abordagem da produção histórica
ultrapassava o território específico dos historiadores, devendo se inscrever em um estudo crítico mais amplo
sobre a cultura (SANTOS 2007, p. 94). Para uma análise e avaliação da contribuição dos artigos de Afonso
Carlos na constituição da área de pesquisa em história da historiografia no Brasil, ver ARAUJO 2012.
Qual o sentido, nos tempos que correm, do exercício deste ofício, tão
recente em termos disciplinares, mas tão antigo como gênero de escrita,
uma vez que seu nascimento pode ser situado entre os gregos da polis
democrática no século V antes de Cristo? E, sobretudo como pensá-lo,
hoje, como prática pedagógica escolar e universitária? (GUIMARÃES
2000a, p. 34).
A história, desse ponto de vista, não deve e não pode confundir-se com
o simples aprendizado de conteúdos, mas deve perseguir a possibilidade
de adquirir competências específicas capazes de fundamentar uma
reelaboração incessante da experiência temporal com relação às
141
experiências passadas. Mais do que transmitir conteúdos através de
uma boa didática, esta teria que dar condições de criar as bases para
o estabelecimento de relações com o passado que são necessariamente
distintas segundo os presentes vividos (GUIMARÃES 2009, p. 49).
13
A esse respeito, ver RÜSEN 2007, p. 85-94. Sobre a recepção da teoria da educação histórica do historiador
alemão no Brasil, ver SCHMIDT; BARCA; MARTINS 2010, p. 11-21.
14
Para uma discussão da noção de Bildung como conceito aglutinador das ciências do espírito no século XIX,
ver GADAMER 2004, p. 44-55.
Referências bibliográficas
ARAUJO, Valdei Lopes de. O século XIX no contexto da redemocratização
brasileira: a escrita da história oitocentista, balanço e desafios. In:
OLIVEIRA, Maria da Gloria de; ARAUJO, Valdei L. de (org.). Disputas
Resumo
Texto de homenagem, ele trata de situar a importância da obra e do trabalho acadêmico de Manoel
Luiz Salgado Guimarães, historiador brasileiro falecido em 2010, para a consolidação do campo dos
estudos de historiografia na Universidade brasileira. Definindo-o como um mestre, e um mestre de
rigor, o texto procura avaliar os aspectos inovadores do trabalho desenvolvido pelo professor Manoel
Luiz Salgado Guimarães, bem como indicar os caminhos que foram abertos pela sua militância nos
campos do ensino e da pesquisa. Aborda as inúmeras facetas de seu trabalho e se esforça para
144 traçar um perfil, não só do acadêmico, mas do homem público, do cidadão, e porque não do amigo
que foi fundamental com seus escritos, com suas aulas, com suas atividades de orientação, para a
obra e a vida dos muitos que lhe conheceram. Este é um texto que busca fazer o luto, da melhor
maneira que é possível, fazendo da morte de alguém o estímulo para a vida, para a continuidade
de uma herança, instaurando a responsabilidade naqueles que ficaram de seguir a obra inacabada,
refundindo vida naquele que nos deixou vivo uma importante parte de si mesmo: o pensamento.
Palavras-chave
Campo historiográfico; Conhecimento histórico; Cultura historiográfica.
Abstract
Text of homage, it tries to situate the importance of the opus and the academic work of Manoel
Guimarães Luiz Salgado, Brazilian historian who died in 2010, to the consolidation of the field of studies
in the historiography of the Brazilian University. Defining him as a master, and a master of rigor, the
text seeks to evaluate the innovative aspects of the work developed by Professor Manoel Luiz Salgado
Guimarães as well as indicating the paths that were opened by his activism in the fields of teaching and
research. It addresses the many facets of his work and strives to draw a profile, not only the academic,
but the public man, the citizen, and why not, of the friend who was fundamental in his writings, with
their classes, with their orientation activities, for the work and lives of many who knew him. This is
a text that seeks to mourn, as best it is possible, making the death of someone stimulus for life, for
the continuity of an inheritance, providing responsibility on those who are supposed to continue the
unfinished work, recasting life in that who left us alive an important part of himself: his thought.
Keywords
Historiography Field; Historical knowledge; Historiographical culture.
1
Esta afirmação foi feita em conversa com o autor do texto.
148 em tudo aquilo que fazia, ele foi um mestre do viver. Ele em si mesmo servia
de ensinamento. Todos aprendemos com ele, não apenas lendo os seus textos,
ouvindo suas conferências, assistindo suas aulas, mas convivendo com ele. Com
ele aprendi, por exemplo, o que é ser amigo, o que é ser companheiro, o que
significa a amizade, o que significa gostar do outro apesar e por causa das
diferenças. Como todo mestre, o Manoel serviu de guia para muitos, talvez por
isso ainda hoje estejamos meio perdidos desde que ele partiu. Mas mestres não
morrem, porque seus exemplos quedam imorredouros na memória daqueles
que tiveram a sorte de serem seus aprendizes.
Dedicado como foi à arte de ensinar, o Manoel foi sempre um interessado
nas discussões em torno do ensino da história e do gesto pedagógico envolvido
na própria escrita da história (GUIMARÃES 2003b). Sua liderança política e
acadêmica entre os historiadores brasileiros deveu-se a sua disposição em
discutir não apenas a escrita da história, mas o ensino da história. Ensino onde
também fazia-se presente o mestre de rigor que ele se tornou. Quem foi seu
aluno sabe que essa era uma exigência constante e permanente do mestre,
assim como também viria a cobrar daqueles que se tornariam, mais tarde, seus
colegas de profissão. O rigor naquilo que se ensinava, a atenção para o detalhe, o
combate a negligência ou a leniência que alguns queriam que fosse uma atitude
típica da terra brasilis. Acima de tudo, tal como aprendeu com seus mestres,
o rigor conceitual, a precisão histórica e de sentido no uso de cada conceito, a
correção na análise das condições históricas em que cada texto foi produzido,
a interrogação sobre a pertinência de cada afirmação feita. Embora simpático
152 de tudo, lembrarmos que, além do rigor que o notabilizava, o Manoel sabia rir,
sabia rir de si mesmo, atitude de máxima sabedoria, pois evita o pedantismo
e a arrogância e mantém a humildade e a simplicidade necessárias para que
se continue ouvindo, respeitando e aprendendo com os demais; sabia rir das
situações que enfrentava; com aqueles com quem convivia; daquilo de muito
sério com que se ocupava; pois como proposto por Hayden White, a ironia é
o tropos que caracteriza o trabalho historiográfico em nossos dias, e o próprio
trabalho no campo da historiografia poder-se-ia dizer irônico, já que o texto de
historiografia visa por em suspeição e em suspenso às regras que produziram
dada escrita da história, ele visa suspender a adesão imediata, por em questão
a evidência do texto do historiador. O campo dos estudos de historiografia, do
qual ele foi um pioneiro, afirma-se à medida mesmo que se adota uma atitude
de distanciamento, de retorno irônico sobre aquilo que fazem os historiadores,
em dada época, em dada sociedade, em dado regime de historicidade (HARTOG
2013). O fato de ter sido um amante do riso talvez nos permita concluir que a
sua melhor definição poderia ser: Manoel Salgado, um mestre do ri(r)gor.
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ROCOEUR, Paul. A Memória, a História, o Esquecimento. Campinas: Ed. da
Unicamp, 2007.
Resumen
Este artículo es un comentario de Últimos días coloniales en el Alto Perú (1896-1901), del
historiador boliviano Gabriel René Moreno (1836-1908) y su objetivo, inscribir el libro en la
historia de la interpretación republicana americana en el siglo XIX. Aspiro a demostrar que su obra
trascendió el paradigma historiográfico americano del siglo XIX – el de las historias republicanas
monumentales – y que por su actitud ante el tema y ante la misma escritura de la historia, Moreno
superó a su tiempo y abrió nuevos horizontes a la interpretación americana. Explico esta libertad
intempestiva, adelantada a su tiempo, con la lectura detallada de la obra y con recurso a su
biografía, marcada por el desarraigo patriótico. 155
Palabras clave
América Latina; Acontecimiento; Historicismo.
Abstract
This paper is a commentary on Últimos días coloniales en el Alto Perú (1896/1901), a work by
the Bolivian historian Gabriel René Moreno (1836-1908). Its aim is to situate this historical text in
the context of nineteenth-century Latin American historiography. I set out to show that this work
transcended then prevalent historiographical paradigm – that of monumental republican histories
– and that, due to his attitude toward both his subject matter (clearly forwarded in the book
title) and historical writing in general, Moreno went ahead of his own time, thus opening new
horizons to republican interpretations of Latin American history. I interpret the work’s insightful
and untimely freedom with by means of a close-reading of Últimos días and with recourse to the
author’s biography, which was marked by patriotic distance.
Keywords
Latin America; Event; Historicism.
1
Moreno reunió y trascribió documentos inéditos que publicó en un segundo volumen (MORENO 1901).
Las cuatro quintas partes del libro fueron publicadas por entregas entre 1876 y 1898 en los Anales de la
Universidad de Chile, la Revista Chilena y la Revista de Artes y Letras, las tres de Santiago de Chile.
2
En este estudio Colmenares solo tuvo en cuenta a una selección de historias suramericanas, con exclusión
de haitianas, otras caribeñas, brasileñas, centroamericanas, mexicanas y norteamericanas.
3
Otras morenadas útiles, son las siguientes: MENDOZA 1951; SANABRIA FERNÁNDEZ 1961; SILES GUEVARA
1979; OVANDO SANZ 1996.
4
Barnadas omite el “impresionista” estudio de Emilio Finot, con anotaciones biográficas y el comentario a
pincel ligero de veinte de sus publicaciones (FINOT 1910).
158 del oriente boliviano. La Biblioteca Boliviana y la Biblioteca Peruana, son obras
fundamentales de referencia, índices elaborados por Arze Aguirre.
Mi contribución apunta a incluir la obra del historiador y erudito en un
estudio general de la historiografía republicana americana del siglo XIX. En
América aun no contamos con una reflexión general sobre la historiografía
republicana aparte del mencionado ensayo de Germán Colmenares. Si bien es
crítico, sugerente y por momentos profundo, Convenciones contra la cultura
no alcanza a sugerir la extensión y el ámbito propiamente americanos de la
historiografía republicana del siglo XIX. No fueron únicamente los nuevos
regímenes hispanoamericanos los que demandaron con urgencia la reflexión
histórica, sino también el de los Estados Unidos, el haitiano, el brasileño
(aunque su forma fue monárquica, era su emancipación la que demandaba
la narración y la justificación históricas), e incluso el canadiense, aunque sus
provincias permaneciesen leales al rey. Colmenares tampoco logra comentar
la evolución histórica del género mayor en la interpretación republicana en
el siglo XIX – el de las historias monumentales – y su libro es una suma
de ensayos monográficos sobre historias sudamericanas. Cierto que extrae
de su estudio una conclusión general: esas historias funcionaron como
“convenciones contra la cultura”, pues simplificaron la complejidad social de
las nuevas repúblicas en aras de producir discursos “nacionales”. En justicia,
es necesario decir que Colmenares intuyó la importancia de estas historias
monumentales y llamó a su estudio, que él mismo comenzó de una manera
amplia y ecuménica.
5
La primera publicación de Moreno vio la luz en Sucre en 1856, cuando tenía veinte años, en el periódico
La Nueva Era: se trató de un comentario a la biografía de Antonio José de Sucre que ese mismo año publicó
el neogranadino Manuel Ancízar. Publicó comentarios sobre la poetisa María Josefa Mujía, Daniel Calvo,
Manuel José Tovar, Ricardo Bustamante, Mariano Ramallo, Néstor Galindo y de su amigo neogranadino Arcesio
Escobar, traductor de Byron.
6
Moreno saluda este primer intento de historia de Bolivia, luego de las memorias sueltas de los protagonistas
de la independencia; se opone a la sentencia de Cortés, “los pueblos esclavos no tienen historia”; y llama al
estudio de la historia colonial. Existe reedición de este comentario en: MORENO 1955-1956, vol. 2, p. 177-216.
Como las mejores historias, Últimos días es un libro a dos niveles: una
susceptible de demostración con documentos y pruebas, y que debe restringirse
a un periodo breve y una pregunta clara. Y otro tema mayor, de impronta en
la cultura y la política, sobre el que concluye: en Charcas existió una sociedad
educada y floreciente, pero los caudillos de Bolivia la han sometido a la vergüenza
y al miedo. Moreno previó tres partes que tituló “Arzobispo nuevo”, “Rei nuevo” y
“Presidente nuevo”, de las que escribió solo las primeras dos. En ellas despliega las
interacciones de cinco grupos de personajes de la Chuquisaca colonial, “cuádruple
corte eclesiástica, forense, literaria y social” (MORENO 1896, p. 4). Del gremio
eclesiástico toma al arzobispo Benito María Moxó y Francolí; de la Audiencia, a
su presidente, Ramón García León de Pizarro; a sus primeros contendores, los
Moxó conoció en una ojeada que Pizarro era un septuagenario timorato, mui
injenuo i bueno de carácter, de intención recta i limitado entendimiento,
dócil al consejo i susceptible de ser dirijido. Era, por lo demás, un amigo
útil, por cuanto ejercía el real vice-patronato en todo el Alto Perú (MORENO
1896, p. 126).
162 intendencias, lo que le quitó sus principales facultades y la redujo “al carácter
de corte de alzadas o tribunal supremo de justicia”:
7
Moreno utiliza para esta descripción un retrato al óleo que colgaba en la Sala Capitular de la Catedral
Metropolitana de Chuquisaca.
Moxó ordenó una colecta patriótica en las provincias altas. Los oidores
vieron en ello un desacato contra su política de callar y no innovar. Moreno
concluye que fue entonces cuando “penetró claramente en el intelecto de la
plebe de Chuquisaca la idea cívica, por no darle otro nombre, sobre la existencia
de ciertos motivos que debían unir en comunidad jeneral esta provincia con
las demás del Alto Perú” (MORENO 1896, p. 233). Explica Moreno que los
doctores criollos observaban la madeja de la crisis mientras hacían aspavientos
164 de lealtad a Fernando VII. Entonces entro Goyeneche en la ciudad, y cuando
presentó sus pliegos el oidor regente, Antonio Boeto, objetó la legitimidad del
“gobierno provincial tumultuario que los había espedido” (MORENO 1896, p.
450). Goyeneche increpó que “andarse enredando en leyes” era rayano en
infidencia, a lo cual el regente se disparó en protestas a la voz de “¡Yo traidor,
yo traidor!” Goyeneche aclaró que tenía facultad de hacer presos y requirió la
guardia. Intervino el arzobispo para restituir la calma y entonces Goyeneche
entregó las cartas de Carlota Joaquina para Pizarro y Moxó. Con esta explosiva
reunión Moreno cierra su libro. Quedan pendientes las intrigas de los doctores
criollos y los movimientos populares de mayo en Chuquisaca y de julio en La
Paz. Si bien no las narra, Moreno dedica a las intrigas de los doctores “doscaras”
los comentarios finales del libro:
8
Sinforosa del Rivero, su madre, fue hija de Juan Rivero y “de padre no conocido”, como se lee en su partida
de bautismo publicada por Hernando Sanabria (Cf., ROCA 1988, p. 42-43).
166 Lycée National d’Haiti; director del periódico oficial del régimen de Soulouque,
Le Moniteur; ministro de educación en el régimen de Geffrard desde 1866.
Gustavo Adolpho Varnhagen fue cortesano de Dom Pedro II, miembro del
Instituto Histórico Geográphico Brasileiro e investido Vizconde de Porto Seguro
en el Imperio. En fin, el argentino Bartolomé Mitre fue presidente, el ecuatoriano
Federico González Suárez arzobispo y Barros Arana perito de límites, rector de
la universidad y eminencia gris de sucesivos regímenes. Moreno fue, como él
mismo decía, carga-papeles.
Fue nombrado bibliotecario interino de la Biblioteca del Instituto Nacional
de Chile en 1868, luego de la renuncia del titular (Mss. GRM 146, F.1). Interinos
fueron sus nombramientos como profesor de literatura en el Instituto Nacional
en julio de 1887 y en enero de 1888 (Mss. GRM 146, F.3). En febrero de 1892,
luego de la guerra civil que terminó con el suicidio del presidente José Manuel
Balmaceda, Amunátegui Solar publicaba en El Heraldo de Santiago una defensa
de la Biblioteca del Instituto y de su director (Mss. GRM 149). Afirmaba que “pocos
literatos americanos hai que conozcan más a fondo la vida social y política de estas
repúblicas y que fueran más capaces de narrarla con imparcialidad y elevación
de miras”. Como profesor, Moreno escribió un Manual de literatura preceptiva
que en 1892 era comentado por E. M. Hostos en el periódico La libertad electoral
como libro de “gran libertad y personalidad” (Mss. GRM 150). De su cátedra de
literatura en el Instituto Nacional, Moreno dijo que era el mayor logro y promoción
9
El asunto dio lugar a un folleto suyo contra el presidente boliviano: MORENO 1881.
[…] aquello era el único jirón de patria, la sola familia, el último refugio.
Representaba toda la herramienta y el material acumulado durante diez
años para un trabajo que comenzaba cuando estalló la guerra. Según esto
y en vista de lo salvado, ¿significa el desastre un perjuicio o una ruina?
Porque en verdad, si equivaliese a esto último, el desastre con él y con lo
que en la misma vía llevo padecido en otras partes, tengo ya lo suficiente
para notificarme del desahucio… Apelo a un pleno conocimiento de causa
antes de adoptar una solución definitiva (VARIOS AUTORES 1986, p.115).11
10
Carta de Rosalía Calvo Cruchaga de Aldunate Valdés a Julio Salmón, Santiago, ene. 1932, publicada por
VÁSQUEZ MACHICADO 1937.
11
Carta de Gabriel René Moreno a Daniel R. Vives, Buenos Aires, 8 de febrero de 1882, compilación e
introducción de José Luis Roca.
168 decidió agregar a su obra). Hacía décadas que la mayor parte de las historias
monumentales de las repúblicas americanas había sido escritas, habían llegado
a ser canónicas en la cultura escrita y habían dado lugar a historias temáticas
y, en los últimos años, a trabajos de erudición bibliográfica, como los del mismo
Moreno, los del mexicano Joaquín García Icazbalceta, de los venezolanos José
Félix Blanco y Ramón Azpurúa, del chileno José Toribio Medina o del colombiano
Eduardo Posada. Por entonces eran venerables historias de las revoluciones de
independencia como las de Carlos María Bustamante en México, José Manuel
Restrepo en Colombia o David Ramsay y Mercy Otis Warren en Estados Unidos.
También lo eran las historias generales de Haití por Thomas Madiou, de Brasil
por Francisco Adolpho Varnhagen, de Estados Unidos por George Bancroft o de
Ecuador por Federico González Suárez.
En fin, surgían por entonces las rimas y sones de una nueva sensibilidad.
En Chile, el hijo del presidente Balmaceda, Pedro, era anfitrión en la Moneda de
Rubén Darío y seguidor convencido de la estética de Azul, que el nicaragüense
había publicado en 1888. En Colombia, en 1896, año de publicación de Últimos
días, se suicidaba José Asunción Silva dejando inédita su novela De Sobremesa, sin
duda obra de catarsis en que el poeta imaginó la libertad moderna en la república.
En Montevideo, Rodó publicaba su Ariel cuando Moreno preparaba el volumen de
documentos que acompañó a Últimos días. En fin, no en vano Moreno era profesor
de literatura en el Instituto Nacional, y autor de una “preceptiva” sobre la materia.
El oficio de Moreno fue el de historiador, su fuerte la erudición y su
sensibilidad la del poeta. Vivió a plenitud la escritura histórica de su siglo y
Referencias bibliográficas
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Hispanic American Historical Review. Durham, Carolina del Norte,
1962. v. XLIII, n. 3, p. 333-384.
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bibliográfico del príncipe de las letras bolivianas. La Paz: Talleres Gráficos
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Universidad de San Francisco Xavier. Sucre, 1951. t. XVI, n. 39-40,
p. 553-613 (separata de la misma revista, 1954).
MENDOZA, Jaime. Dos entrevistas con Gabriel René Moreno. Revista de la
Sociedad Geográfica “Sucre”. Sucre, 26 feb. 1937, p. 100-108.
MORENO, Gabriel René. Biblioteca Boliviana: catálogo de la sección de Libros
y Folletos. Santiago: Imprenta Gutemberg, 1879, 889 p.
171
Moreno. La libertad electoral. Santiago, 1892. n. 1710, vol. 20.
Mss. GRM 165. Demostración del contenido, por volúmenes, de 81 cajas
que contienen la Biblioteca BOLIVIANO-AMERICANA de G. René
Moreno. Trece hojas mecanografiadas en tinta violeta, firmadas por
Aristides Moreno en Iquique el 4 de mayo de 1909, en que se especifica
el número de libros contenidos en cada una de las cajas.
Resumo
Este artigo concentra-se sobre a teoria da interpretação de Johann G. Droysen a fim de elucidar
alguns importantes aspectos de sua teoria da história (Historik). Procuraremos demonstrar como
a teoria da causalidade aristotélica, além de estruturar a segunda grande parte da Historik, a
Sistemática (Systematik) – onde encontramos “o modo histórico de existência”, nas palavras de
Hayden White –, pode ser relacionada às quatro etapas da teoria da interpretação droyseana.
Assim, ilustraremos como a filosofia metafísica de Aristóteles fundamenta uma singular
compreensão do pensamento histórico que, sem negar a sua qualidade representativa, abarca
172
o notório presentismo droyseano. Por fim, indicaremos como esta filosofia afina-se à proposta
formulada por Droysen ao longo da Historik de fundar a História na Ética.
Palavras-chave
Johann Gustav Droysen; Teoria da história; Ética.
Abstract
This article focuses on Johann G. Droysen’s theory of interpretation in order to elucidate some
important aspects of his theory of history (Historik). More specifically, it intends to show how the
Aristotelian theory of causality structures the second half of the Historik, the Systematik – where
we find the “historical mode of existence”, as defined by Hayden White –, and how it connects to
the four stages of Droysen’s theory of interpretation. It will be shown how Aristotle’s metaphysical
philosophy inspires a singular understanding of historical thinking, which without denying it as
a mode of representation also encompasses Droysen’s openly professed presentism. Finally, it
will be pointed out that this philosophy provides the main support for Droysen’s idea that History
should be founded upon Ethics.
Keywords
Johann Gustav Droysen; Theory of history; Ethics.
__________________________________
*
Esta pesquisa foi desenvolvida com o apoio financeiro da CAPES e do CNPq.
1
“[A] tarefa dos estudos históricos consiste em que se aprenda a pensar historicamente”. No original: “die
Aufgabe der historischen Studien ist, dass man historisch denken gelernt hat” (DROYSEN 1977, p. 5). As
demais traduções ao longo do artigo são, quando não indicadas, de nossa autoria. Para uma ampla discussão
sobre a questão cf. CALDAS 2004.
2
Como não deixa de notar Pedro Caldas: “a pretensão de dissolução do sujeito no objeto levaria, segundo
Gadamer, o historista a cometer os mesmos equívocos do iluminismo. A crítica ao racionalismo feita pelos
autores historistas não seria suficiente para encobrir o mesmo pressuposto de ambas as tendências de
conceitualizar a história, a saber: desconsiderar a temporalidade como produtora de sentido, buscando a
empatia ou a norma como ferramentas que superariam o fosso entre as épocas” (CALDAS 2006, p. 145).
Buscando dar conta da especificidade do pensamento de Droysen, Caldas propôs ultrapassar os “limites do
historismo” adotando o conceito de Bildung para a análise que faz da obra de Droysen (Cf. CALDAS 2006,
p. 139). A proposta é interessante, pois a Bildung, por ser “inconclusiva e potencialmente ativa” (CALDAS
2006, p. 149), traduz com propriedade a dimensão formativa da hermenêutica droyseana e o presentismo de
sua teoria. Como nota Caldas, Gadamer reduz a consciência histórica do século XIX ao historicismo adepto
de método empático (Einfühlung) conduzindo assim Droysen à obscuridade. Obscuridade esta mantida e
propagada por pesquisadores contemporâneos importantes como, por exemplo, Frank Ankersmit. Cf.
ANKERSMIT 2005, p. 193-241. Sobre a inesperada aproximação de Droysen a Heidegger cf. GADAMER 1976,
p. 48 apud WHITE 1987, p. 84.
174 Desta maneira, Droysen busca superar o debate tão fortemente vivenciado em
sua época entre os discípulos de Hegel – Heinrich Leo em particular – e a Escola
Crítica rankeana, apontando para uma dualidade intrínseca ao homem que o
coloca em contato direto e simultâneo com a experiência sensível e o pensamento
abstrato. A filosofia da história ética droyseana é dotada de um aspecto trágico
que pode ser sentido tanto na definição de natureza humana que propõe –
sensório-espiritual – quanto na maneira como evitará a resolução do conflito
que identifica entre as sabedorias prática e filosófica. Afinal, a manutenção
do conflito não apenas caracteriza, mas motiva a representação histórica. Na
manutenção do pensamento trágico em sua ética indissociavelmente relacionada
à dupla natureza humana reside toda a beleza da Historik.
Ao reconhecer Kant como o moderno iniciador de sua Historik, Droysen
contudo rejeita o dogmatismo de sua moral. É por isso que devemos distinguir na
tradução da Historik a moral kantiana da Sittlichkeit (eticidade) à qual Droysen
se refere ao descrever as esferas de atuação humana (sittliche Kreise). De fato,
há uma distinção fundamental a ser feita entre a ética antiga e a moral moderna,
3
Pedro Caldas, em um artigo recente dedicado à hermenêutica droyseana, reconheceu nas quatro formas de
interpretação identificadas por Droysen pretensões de sentido distintas - empírico, lógico, empático e ideal. Como
Caldas nota na introdução deste mesmo artigo, a hermenêutica droyseana nos coloca o desafio de relacioná-la
à ética. Em última instância nos caberia investigar como hermenêutica e Bildung se relacionam (CALDAS 2011,
p. 1). Desenvolvemos aqui o argumento de A. Assis que sublinha a manutenção de uma dimensão prática da
história na teoria droyseana, embora Droysen não mais opere com a concepção exemplar da história (Cf. ASSIS
2009, p. 22). Vale notar já de início que as quatro modalidades de interpretação identificadas por Droysen
podem perfeitamente coexistir sem que estabeleçam entre si uma relação de hierarquia, embora Droysen não
deixe de reconhecer o caráter criativo e portanto a distinção da interpretação das idéias.
4
“Com, efeito”, diz Aristóteles em sua Ética a Nicômaco, “essa é a razão porque não são todas as coisas
determinadas pela lei; pelo fato de haver alguns casos [e situações] em relação aos quais e impossível
estabelecer uma lei, é necessária a existência de um decreto especial; pois aquilo que é ele próprio indefinido
só pode ser medido por um padrão indefinido, como a régua plúmbea usada pelos construtores de Lesbos; tal
como essa régua não é rígida, podendo ser flexibilizada ao formato da pedra, um decreto especial é feito para
se ajustar às circunstâncias do caso” (Aristóteles, Ética a Nicômaco 1137b, 29-34).
5
Sobre a “flexibilidade” da filosofia crítica kantiana cf. “A faculdade de julgar, em geral, é a faculdade de
pensar o particular como compreendido no universal. Se o universal (a regra, o princípio, a lei) é dado, então
a faculdade de julgar que nele subsume o particular [...] é determinante. Se contudo, apenas o particular é
dado e ela deve encontrar o universal, então a faculdade de julgar é apenas de reflexão” (KANT 1790, B XX
VI). Tradução de Luiz Costa Lima apud COSTA LIMA 2000, p. 47.
6
Sobre a concepção grega do tempo Cf. ARENDT 1992. Assim escreve Hannah Arendt: “a humanidade
descobre [na história] a imortalidade potencial da espécie humana” (ARENDT 1992, p. 109).
7
Droysen identifica no “cosmos do mundo ético” (der Kosmos der sittlichen Welt) o objeto do historiador. Seria
este mundo ético-histórico um universo fechado, onde, apesar de sua historicidade, é possível identificar certa
constância, uma referência imutável – fundada na natureza política, sensório-espiritual, do homem dotado de
lógos – para a filosofia política exposta na Historik? Devemos notar que o reconhecimento do mundo ético-
-histórico como um cosmos é incompatível com a interpretação que faz O. G. Oexle do historismo de Droysen.
Reconhecendo nesse movimento a coexistência de ciências cujo objeto constitui um cosmos, e de ciências como
pesquisa que, iniciadas sobretudo com a “revolução kantiana” que inverte a relação do conhecimento – “da
razão aos objetos e não mais dos objetos à razão” –, Oexle vê no positivismo, no materialismo e no idealismo
histórico ciências fechadas em um cosmos, pois lidam com um objeto finito. Já Droysen e Weber, por exemplo,
teriam seguido a tradição kantiana e reconhecido que a ciência como pesquisa jamais alcança sua conclusão
reinventando sans cesse seus próprios objetos (OEXLE 2001, p. 9). Buscaremos ressaltar o kantismo moderado
de Droysen indicando na apropriação que faz da teoria da causalidade aristotélica uma possível definição do
campo do historiador, i.e., a referência que estará à base do próprio pensamento histórico.
8
to dia ti Cf. VLASTOS 1969, p. 294. G. Vlastos nota ainda que aition (em inglês “cause”) deveria ser
traduzido como “because”, pois respondem as perguntas iniciadas por um “por que”. Manteremos a tradução
já proposta de aition como “causas” uma vez que Droysen segue esta direção (Ursache). Inserindo-se na
tradição platônica de investigação do mundo natural tais questões podem ser assim exemplificadas: “por que
passam as coisas a existir? Por que deixam de existir? Por que existem?” (Platão, Phaedo 96a, 6-10). Mas
Platão teria atentado apenas para as causas material e formal, segundo Aristóteles (Metafísica I, VI, 7). Cf.
VLASTOS 1969, p. 293.
Ser, segundo a Metafísica aristotélica, não é apenas o que existe em ato, mas
é também o que pode vir-a-ser, a potência. A doutrina do ato-potência aristotélica
é vinculada na Metafísica a uma teoria da causalidade segundo a qual “causa” é
tudo o que contribui para a realidade de um ser. Inserida na tradição platônica, a
metafísica aristotélica pode ainda ser compreendida como uma crítica à Sofística.
Mas se Aristóteles não abrirá mão do questionamento sobre o ser ou sobre a 177
substância (ousía), ele reconhecerá a insuficiência da teoria platônica diante das
múltiplas facetas de seu objeto. Droysen lembra o exemplo fornecido pelo próprio
Aristóteles da feitura da estátua de um deus para o templo. Se na alma do artista
está a imagem – Michelangelo dizia bastar retirar dos blocos de mármore tudo o
que não era imagem – ele precisa da matéria na qual essa imagem será gravada.
A qualidade desta matéria – bronze, mármore, madeira – por sua vez condicionará
a imagem presente no artista: “sua concepção será diferenciada conforme se leve
a cabo no bronze, no mármore, na madeira” (DROYSEN 1977, p. 29). Pensamento
e matéria encontram-se aqui unidos, nota Droysen, dando origem a uma síntese
que será refletida na qualidade da obra. “Mas o artista (aquele que move)”,
continua Droysen, “não gravaria na pedra a forma que vive em seu pensamento
se a finalidade não o impulsionar para a ação: os objetos históricos seriam como o
espelho do acaso e do arbitrário se neles não se reconhecessem as determinações
de fim, que os move” (DROYSEN 1977, p. 30).
Ao contrário da interpretação tradicional inclinada a “platonizar” Aristóteles,
que vê a Metafísica como o tratado onde os primeiros princípios alcançam a
sua plenitude, buscaremos atentar para a sua fecundidade nela identificando
além de uma teoria dos princípios, uma original teoria da causalidade. Isto
é, os princípios cravados na ordem natural não mais limitam as causas do
ser tampouco satisfazem as perguntas que suscita. Assim compreendemos
também a interpretação droyseana da teoria da causalidade aristotélica: se o
9
Dada a importância da reflexão aristotélica para a teoria da história de Droysen, cito a passagem em sua
integridade: “causa significa (1) aquilo do que, enquanto material imanente, algo vem a ser, e.g. o bronze é a
causa da estátua e a prata a causa da travessa, [...]. (2) A forma ou a configuração, i.e. a definição da essência,
[...] (3) aquilo do qual a mudança ou a manutenção se inicia; e.g. o conselheiro é a causa da ação, e o pai a
causa da criança, e, em geral aquele que faz a causa do que foi feito e aquele que induz a mudança. (4) O fim,
i.e., aquilo pelo qual algo é; e.g. saúde é a causa da caminhada, Para a pergunta “porque alguém caminha?”
respondemos, “para que tenha saúde”; e assim falando pensamos ter dado a causa. A mesma coisa é verdadeira
para todos os meios que intervenham antes de um fim, quando alguma outra coisa colocou o processo em
movimento, [...]” (Metafísica V, 2). Uma versão semelhante pode ser encontrada na Física (II, 3).
10
As edições da Historik divergem quanto à subdivisão da Systematik. Na edição mais abreviada de 1983 a
Systematik é dividida segundo as quatro causas aristotélicas: “o mundo ético (sittlich) dever ser observado
historicamente: (1) de acordo com a matéria, na qual ele forma; (2) de acordo com as formas, nas quais ele
se constitui, (3) de acordo com os trabalhadores, através dos quais ele se constrói, (4) de acordo com os fins
que, através de seu movimento, se concretizam”. Esta divisão está também presente no Compêndio de 1882
sob o qual nos concentraremos. Já na mais recente edição de Leyh, 1977 (reconstituição do manuscrito de
1857), as três comunidades – naturais, práticas e ideais – dividem a primeira parte da Systematik – “As forças
éticas (sittliche Mächte)” - sendo a segunda e última parte – “o homem e a humanidade”. As comunidades
naturais, práticas e ideais que representam os estágios da dialética que se estabelece entre indivíduo e mundo
ético-histórico, entre necessidade e liberdade, e dão à história seu movimento surgem na edição de 1936
como partes de “(2) [o mundo ético] de acordo com as formas, nas quais ele se constitui”. Seguiremos aqui
o compêndio de 1882.
As 4 causas
Methodik Systematik
aristotélicas
A história segundo seus
Material Heurística
materiais
Formal Crítica ... suas formas
180 desta maneira a sua origem. Droysen descarta a discussão ao redor dos começos
possíveis por considerá-la infrutífera, uma entediante contenda ao redor do ovo
e da galinha. A adoção de “começos relativos” (relative Anfänge) deve servir
a concepção historiográfica que os estabelece: “cada consideração histórica
compreende apenas trechos de um encadeamento sem fim” (DROYSEN 1977,
p. 161). Começos não encerram a história, tampouco princípios são capazes de
satisfazer as questões sobre o ser. Lembremos aqui o pouco apreço que Droysen
tinha pela Escola Crítica que, a seu ver, limitava-se cegamente ao exame das
fontes. “A prática da Escola Crítica”, nota, “é incomparavelmente melhor que a
sua teoria” (DROYSEN 1977, p. 146).
Droysen reconhece quatro tipos de interpretação histórica: 1) A interpretação
pragmática (pragmatische Interpretation), 2) a interpretação das condições
(Interpretation der Bedingungen), 3) a interpretação psicológica (psychologische
Interpretation), e, 4) a Interpretação das idéias (Interpretation der Ideen).
“Fechar o círculo da compreensão” é considerar as quatro etapas acima como
etapas complementares, mesmo sucessivas, deste processo (DROYSEN 1977, p.
166). Embora Droysen não o faça explicitamente, é possível considerar também
estas quatro etapas à luz da teoria da causalidade aristotélica.
Sabemos que a primeira causa aristotélica é a causa material. A interpretação
pragmática droyseana lida diretamente com “a simples existência do material
histórico tal como se encontra ordenado pela crítica” (DROYSEN 1983, p. 185). A
11
No original: “das Wesen der geschichtlichen Methode ist forschend zu verstehen, ist die Interpretation”.
12
Cf. DROYSEN 1977, p. 205-08; CALDAS 2004, p. 131. Assim, para recuperar aqui o exemplo citato por
Droysen, Georg von Podiebrad defendeu o direito de Estado face às pretensões da Igreja, conquistando ainda
a independência nacional da Boêmia. Nele encontram-se, lembra Droysen, as idéias de Estado, Igreja e nação.
Contudo, a compreensão de seu presente passado só podemos alcançar ao identificar o “ponto histórico” onde
se encontra. Este “ponto” encontramos apenas ao cruzar a linha de seu presente com a linha das configurações
posteriores de Estado, nação e Igreja. Este mundo presente, conhecido, o mundo ético (sittlich) em sua mais
recente configuração, é o que nos auxiliará a formular a “pergunta histórica” (historische Frage) e assim
encontrar o “ponto histórico” a partir do qual poderemos, através de nossa interpretação produzir novo sentido.
182 Aspirar ao lógos pelo lógos, este é, afinal, o tema da Ética a Nicômaco. São
conhecidos os exemplos de Aristóteles: a finalidade de um flautista é tocar bem
a flauta e a do sapateiro é fazer bons sapatos (Aristóteles, Ética a Nicômaco
1097b25). Deste modo a finalidade do homem – esse animal político dotado de
lógos – é bem exercitar o lógos. A versão droyseana da teoria da causalidade
aristotélica aproxima-se da Ética ao reconhecer no lógos a finalidade da história:
“a finalidade da humanidade, o lógos, realiza-se construindo” (DROYSEN 1977,
p. 389). Assim reconhecemos no lógos, além da finalidade, o material da história:
O lógos, “que se quer cumprir e que se cumpre”, termina por constituir a própria
história, o “mundo ético em movimento” (DROYSEN 1977, p. 385).13
Deste modo, Droysen fecha o cosmos do mundo ético: nesta sucessão
de fins alcançados apresenta-se a história, tem o historiador o seu material.
Droysen estabelece assim uma relação de circularidade para a teoria da
causalidade aristotélica, semelhante à circularidade das deliberações éticas onde
fins alcançados tornam-se meios para novos fins.14 Caldas já identificou um
13
Embora a aproximação do lógos droyseano ao lógos aristotélico seja possível – e sugerida pelo próprio Droysen
-, vale lembrar as dificuldades que Dr. Fausto encontrara ao início do “Evangelho segundo João” – “No princípio
era o Verbo”. O lógos, na versão grega do evangelho, seria o Verbo, o Senso, a Potência ou a Ação? (GOETHE,
Faust IV, 1). Como veremos mais adiante, na teoria da história de Droysen, Deus, o sujeito da história, limita,
por estar oculto, o conhecimento do homem “por uma diferença ontológica” (CALDAS 2008, p. 115). Deste
modo é possível reconhecer uma ética historicista de inspiração antiga na teoria da história droyseana.
14
Um exemplo de como a metodologia estabelecida por Droysen para a história pode funcionar como uma
deliberação ética pode ser encontrado no comentário de Carlo Antoni sobre a obra de Droysen: “[...]; é por isso
que ele reverte o julgamento tradicional sobre Demóstenes, sobre Felipe da Macedônia e sobre a civilização
helênica – [...]. Demóstenes, diz ele, teria inutilmente patronado a defesa das liberdades atenienses, pois
a poeira de pequenos estados gregos, com sua política fechada, não teria chance alguma de sair vitoriosa
do grande duelo com o Oriente asiático. Pertenceria apenas à monarquia macedônica, monarquia militar, de
conquistar a Ásia e de transformar a civilização grega, ainda estreitamente municipal, em uma civilização
universal. Droysen fez da época alexandrina até então considerada como uma era de decadência e corrupção,
a grande época, a época decisiva para a história do mundo, aquela que possibilitou o encontro e a fusão
da civilização grega com a civilização asiática. A força, no caso, teria sido o instrumento indispensável da
cultura. É assim que a Prússia de Potsdam oferecia seus serviços à Alemanha de Weimar, aquela dos poetas
e dos filósofos. Em sua apologia à monarquia macedônica, Droysen não esquecera de louvar o corpo dos
oficiais macedônicos, tão ricamente providos do sentido de honra, instrumento da cultura grega no Oriente;
ele inaugurara assim esta aliança entre o corpo de professores e aquele dos oficiais, tão característica da
Alemanha oficial até a primeira grande guerra” (ANTONI 1963, p. 80).
15
No original: “Nur in diesem ethischen Zusammenhang ist es richtig, wenn der Dichter sagt, daß die
Weltgeschichte das Weltgericht sei“.
Referências bibliográficas
ANKERSMIT, F. Sublime Historical Experience. Stanford: University Press, 2005.
ANTONI, C. L’Historisme. Genebra: Librairie Droz, 1963.
ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva: 1972 [1961].
187
Resumo
Neste estudo, pretendemos demonstrar que as ideias teóricas de Fernand Braudel acerca da noção
de temporalidade se desenvolveram por oposição a algumas teorias da descontinuidade temporal
existentes no cenário filosófico francês da década de 1950. Embora tenha usado como exemplo
de apologia da descontinuidade o livro La Dialétique de la Durée (1936) de Gaston Bachelard,
Braudel esboça também uma crítica às noções de descontinuidade de Georges Gurvitch. Um
autor que estará nos bastidores deste breve estudo é o historiador Gaston Roupnel, que é citado
188 de modo elogioso tanto por Braudel quanto por Bachelard. À primeira vista, a rejeição das ideias
acerca da descontinuidade temporal por parte de Braudel parece ter sido antes o resultado de
uma atitude política do que a tradução de um consenso entre os historiadores do período.
Palavras-chave
Fernand Braudel; Gaston Bachelard; Descontinuidade.
Abstract
This study argues that Fernand Braudel’s theoretical ideas regarding temporality were developed
in contradistinction to a few theories of temporal discontinuity that were available in the French
philosophical landscape of the 1950s. Braudel mainly opposed Gaston Bachelard’s eulogy of
the discontinuity, as conveyed in La Dialétique de la Durée (1936), but also criticized Georges
Gurvitch’s notions of discontinuity. An author who will be behind the scenes of this short study
is the historian Gaston Roupnel, who is quoted, in a laudatory way, both by Braudel and by
Bachelard. At first sight, Braudel’s rejection of the notions of discontinuity seems to have resulted
rather from his own political attitude than from a historiographical consensus on the issue.
Keywords
Fernand Braudel; Gaston Bachelard; Descontinuity.
1
Acerca do tema dos embates teórico-metodológicos mais relacionados ao meio acadêmico francês, ver:
REVEL 2010.
2
No meio acadêmico brasileiro há uma considerável bibliografia que discute o tema. Ver: LOPES 2008; REIS
1994; 2004; 2008; RODRIGUES 2009; BARROS 2011.
3
Já tratamos deste assunto em outros estudos de modo mais detalhado, publicados entre 2010 e 2012
(VOIGT 2010; 2011; 2012).
Roupnel, como historiador minucioso, não podia ignorar que cada ação, por
simples que seja, rompe necessariamente a continuidade do devir vital.
Se observarmos a história da vida em seus pormenores, veremos que
ela é uma história como as outras, cheias de repetições desnecessárias,
anacronismos, esboços, fracassos e recomeços (BACHELARD 2007, p. 28).
4
Ver, para maiores informações, artigos anteriormente publicados acerca do tema (VOIGT 2010; 2011; 2012).
[…] Mas a maior satisfação que me traz este livro são ainda as páginas
densas, inteligentes, que põem em causa uma história de profundeza e
das massas: ela se intitula, mui honrosamente, de ‘história estrutural’.
A história de um povo, escreve ele, determina-se não pelos atos políticos
ou militares, mas ao nível do solo, da vida simples. A figura pública e
social de um país desenha suas feições sobre a imagem material dos
campos e da terra! (BRAUDEL 1944, p. 72).
Gaston Roupnel quer nos persuadir, apesar de tudo, que pensemos mais
ou menos como ele, nós que buscamos as leis, as explicações, as filosofias
da história do mundo, ou que cremos em um Progresso da humanidade,
ou em um ideal dominante, nós todos que, de formas diversas, não
aceitamos no domínio do humano o reino sem divisão do Acaso […]. É
um perigo de conciliar os inconciliáveis. Mas Gaston Roupnel não queria
escapar. Teria ele nos convencido? Esta é uma outra questão.
Quer-se bem acreditar, com ele, que os acontecimentos e os grandes
homens deslocam mal o Destino – estes, na estreita medida em que
usam seu livre arbítrio […] Eu sou bastante levado, reconheço, a não
superestimar a história acontecimental (BRAUDEL 1944, p. 76).
Notamos aqui, mais uma vez, um movimento típico dos membros deste
renomado periódico francês. Ao reconhecer a obra de um historiador, há um
cuidado minucioso para selecionar quais são os pontos de convergência que
o colocam à imagem e semelhança dos Annales, e há, do mesmo modo, um
significativo empenho em deixar bem claros os limites que o distanciam do
196 grupo, sobretudo quando sua perspectiva de história considera eminentemente
o papel dos acontecimentos e das descontinuidades. É importante esclarecer
que Ferdinand Lot publicou boa parte de sua obra durante as últimas décadas
do século XIX e as primeiras do século XX, fato que o distancia sobremaneira
do debate mais acalorado acerca do papel da descontinuidade temporal, como o
estabelecido pela leitura que Bachelard realiza de aspectos da obra de Roupnel.
Enfim, quando Lot considerou a possibilidade de publicar na revista Annales
um artigo/resenha de Histoire et destin como uma homenagem a Marc Bloch
– cuja intenção era colocar Bloch lado a lado com Roupnel, em uma apologia
à relevância dos acontecimentos e das descontinuidades na história –, Lucien
Febvre informa a Ferdinand Lot, em uma carta datada de 24 de janeiro de 1945,
que esta resenha já teria sido escrita por Fernand Braudel para a revista. Na
mesma carta, Febvre teve o cuidado de explicar as divergências entre Marc
Bloch e Roupnel, afirmando que “Bloch detestava a história de Roupnel” (LE
GOFF 1966, p. 1180, nota 3).
Além das observações colocadas aqui, podemos inferir um dado precioso
acerca da leitura da obra de Roupnel entre os historiadores: não havia um
consenso acerca de seu trabalho. Se ele foi realizado, deve-se à perpetuação
da leitura efetuada pelos principais historiadores ligados à revista Annales, que
dividiu a obra roupneliana em duas partes bem precisas: a) em seus livros “de
história”, Roupnel figura como um exemplo de abordagem dentro da história
social – relacionada às longas durações e à materialidade geográfica; b)
5
Podemos destacar um de seus trabalhos, Les tendances actuelles de la philosophie allemande: E. Husserl, M.
Scheler, E. Lask, N. Hartmann, M. Heidegger, publicado em Paris no ano de 1930, o qual foi prefaciado pelo
filósofo Léon Brunschvicg, com quem Gaston Bachelard mantinha constantes diálogos intelectuais. Disponível
em: http://www.worldcat.org/title/tendances-actuelles-de-la-philosophie-allemande-e-husserl-m-scheler-e-
lask-n-hartmann-m-heidegger/oclc/491101532. Acesso em: 21 set. 2012.
198 a história como unilineares. Contudo, em sua divisão temporal em três níveis,
não é possível vislumbrar – a partir dos próprios argumentos do autor – uma
perspectiva de unificação de todos os três no tempo longo, encravado na
superfície da terra, “quase fora do tempo” (BRAUDEL 1995, p. 25), tocando
na eternidade? Esta visão difere muito, destarte, da ideia de descontinuidade
levantada por outros autores.
Vamos, enfim, à visão de Gurvtich. Em artigo publicado na revista Annales
em 1957, intitulado Continuité et discontinuité en histoire et en sociologie,
o autor publica o artigo – oriundo de uma conferência – na seção Débats et
combats do periódico, em que expõe sua interpretação acerca do assunto. De
um modo bem distinto da afirmação levantada por Braudel, a argumentação
de Gurvitch parece bem cuidadosa. Em primeiro lugar, afirma que não se trata
de colocar, de modo simplista, que a história deva ser descontínua e tratar dos
acontecimentos e que a sociologia deva ser contínua e abordar as instituições.
Isto seria colocar uma alternativa falsa, pois história e sociologia possuem, para
o autor, o mesmo domínio, isto é, o que chama de fenômenos sociais totais –
um conceito central para a tese de Gurvitch (GURVITCH 1957, p. 73-74). Para
o autor, estes fenômenos são sempre “vulcânicos”, “ao lhes examinar a todos
os seus patamares em profundidade e sob todos seus aspectos e escalas, e
aos quais participam os homens totais, cuja divisão em homens econômicos,
políticos, morais, religiosos, etc., não faz sentido” (GURVITCH 1957, p. 73-74).
Ora, se a história e a sociologia têm o mesmo domínio, a diferença entre
ambas estaria, a princípio, no método. O autor explica esta diferença:
E conclui:
6
Ver os trabalhos: Essai sur quelques problèmes concernant le normal et le pathologique, publicado por
Canguilhem em 1943 (livro traduzido para o português a partir da edição francesa revisada de 1966, sob o
título de O normal e o patológico) e La connaissance de la vie, de 1952.
203
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar de que forma o romance Terra Sonâmbula (1992), do escritor
moçambicano Mia Couto, constitui-se como versão alternativa à historiografia a partir da própria
história que o romance conta e sobre a qual ele silencia. Para tanto, considero que a narrativa
coutiana assume um viés testemunhal, pois exprimiria a necessidade da “fala” por parte do autor
após dezesseis anos de guerra civil em Moçambique (1976-1992). Assim, interessa-me saber
a que leitor (que aqui substitui o ouvinte) o autor dirige sua narrativa para compreender os
meandros da história que ele escreve, levando também em consideração a posição ocupada por
Mia Couto na realidade de seu país. Percebo que o autor escreve sua versão da história a partir
de três tendências interligadas: (i) o dever de memória; (ii) a construção de uma africanidade; e
(iii) a perspectiva do futuro.
204 Palavras-chave
Escrita da história; Literatura; Mia Couto.
Abstract
The aim of this paper is to show how the novel Sleepwalking Land (1992), by the Mozambican
writer Mia Couto, can be seen as an alternative version to historiography based on both the story
that it actually tells and another one it silences about. For this, I consider Couto’s narrative as
a kind of eyewitness testimony, as the novel may be regarded as the result of the writer’s need
for “speaking out” after a sixteen-years long civil war (1976-1992) in his home country. I am
thus interested in the reader (who replaces the listener here) to whom the author addresses his
narrative in order to understand the intricacies of the story he writes. However, I’m also taking
into account the position occupied by Mia Couto in the reality of his country. I realize that the
author writes his version of history based on three interrelated trends: (i) the duty of memory, (ii)
the construction of Africanness, and (iii) the perspective of future.
Keywords
History writing; Literature; Mia Couto.
1
Segundo K. B. Wilson (1992, p. 560-561), os naparamas (também conhecidos como napramas, baramas ou
paramas) surgiram entre o final de 1989 e o início de 1990 na fronteira entre Nampula e Zambézia (províncias
situadas ao norte de Moçambique) e constituíram um movimento popular de caráter militar e religioso que
se opunha à Resistência Nacional Moçambicana. Até então, a RENAMO detinha o “monopólio” dos poderes
espirituais na guerra desencadeada contra a Frente de Libertação de Moçambique e utilizava os poderes
que supostamente tinha para aterrorizar e subjugar a população. Os naparamas eram liderados por Manuel
António, um homem de vinte e tantos anos, com pouca instrução formal, que declarava ter a missão divina de
acabar com a guerra e libertar a nação. Para tanto, ele e seus seguidores lutavam com armas brancas, como
as zagaias, e se diziam “vacinados” contra as balas.
2
O livro terminou de ser escrito em novembro de 1992, um mês após o fim da guerra civil em Moçambique.
206 político estadunidense Benedict Anderson sobre nação: “uma comunidade política
imaginada – e imaginada como sendo intrinsecamente limitada e, ao mesmo
tempo, soberana” (ANDERSON 2008, p. 32). Imaginada porque seus membros,
em sua totalidade, jamais se conhecerão; limitada porque possui fronteiras
finitas; soberana porque havia se libertado da dominação divina. No caso
africano, a soberania de Moçambique ocorreu à medida que o país libertou-se da
dominação metropolitana. Suas fronteiras, entretanto, permaneceram aquelas
delimitadas pela antiga metrópole, assim como a língua portuguesa, alçada à
língua oficial da então República Popular de Moçambique. O caráter popular da
nascente república deveu-se à autodeclaração do caráter socialista do Estado.
Essa orientação político-ideológica desencadeou, por seu turno, um movimento
contrarrevolucionário capitaneado pela RENAMO, a qual, apoiada pela África do
Sul, engendrou a guerra civil que perdurou por dezesseis anos.
Durante a guerra, o sentido de “comunidade” que define a nação havia sido
esfacelado. A “profunda camaradagem horizontal” a que se refere Anderson
(2008, p. 34) deu lugar a um sentimento semelhante ao de Tuahir: “Foi o que
fez esta guerra: agora todos estamos sozinhos, mortos e vivos. Agora já não há
país” (COUTO 2007, p. 153). Mia Couto foi perspicaz ao traduzir no romance a
solidão que perpassava os moçambicanos, então unidos em torno de uma causa
comum, expressa na luta pela independência do país. Mas o escritor não se
refere somente aos vivos: há também os mortos, outrora re-presentificados nas
narrativas, ritos e tradições que compunham uma história viva de Moçambique.
A escrita, como lembra Newitt, raramente foi utilizada pela raça humana, no
A perspectiva do leitor-historiador
É certo que Terra Sonâmbula surgiu como forma de Mia Couto exorcizar
seus demônios interiores despertados pela guerra (COUTO 2009a, p. 6), logo a
escrita literária funcionou, para o autor, como a necessidade contida no gesto
testemunhal. Não se trata aqui de encarar a narrativa como verdadeira, mas de
perceber nela o “desafio de estabelecer uma ponte com ‘os outros’, de conseguir
resgatar o sobrevivente do sítio da outridade” (SELIGMANN-SILVA 2008, p. 66).
Partindo do pressuposto de que a narrativa do autor assume esse viés,
interessa-me saber de que forma ela se constitui como versão alternativa à
historiografia a partir da própria história que ela conta e daquela sobre a qual
ela silencia. Para isso, questiono em que medida a posição ocupada por Couto
na realidade moçambicana intervém na produção de sua obra, o que pressupõe
uma breve digressão sobre o papel do leitor (-historiador) nessa relação.
O primeiro ponto sobre o qual vou discorrer é a influência ou não do contexto
histórico nas preferências literárias (e acadêmico-científicas) do leitor (-crítico-
-pesquisador). Já no segundo ponto, pretendo analisar se a literatura funciona
para o leitor como leitura de seu próprio eu, ao passo que, no terceiro, indago se o
Ouvíamos a baleia mas não lhe víamos. Até que, certa vez, desaguou na
praia um desses mamíferos, enormão. Vinha morrer na areia. Respirava
aos custos, como se puxasse o mundo nas suas costelas. A baleia
moribundava, esgoniada. O povo acorreu para lhe tirar carnes, fatias e
fatias de quilos. Ainda não morrera e já seus ossos brilhavam no sol.
Agora, eu via o meu país como uma dessas baleias que vêm agonizar
na praia. A morte nem sucedera e já as facas já lhe roubavam pedaços,
cada um tentando o mais para si. Como se aquele fosse o último animal,
a derradeira oportunidade de ganhar uma porção. De vez enquanto, me
parecia ouvir ainda o suspirar do gigante, engolindo vaga após vaga,
fazendo da esperança uma maré vazando. Afinal, nasci num tempo em
que o tempo não acontece. A vida, amigos, já não me admite. Estou
condenado a uma terra perpétua, como a baleia que esfalece na praia
Quando nos deparamos com uma situação adversa, não nos questionamos a
injustiça de estarmos naquela situação? Não indagamos a nós mesmos o porquê
das adversidades? Não nos inquirimos se nossos vícios e pecados seriam tão
atrozes que justificassem as dificuldades que enfrentamos? Não nos convencemos
em seguida que, a despeito de alguns deslizes que cometemos, procuramos agir
corretamente na maioria das vezes? Assim também procede Kindzu ao recapitular os
passos de sua vida. Desse modo, nós nos solidarizamos com o personagem porque,
aos nossos olhos, suas indagações passam a ser procedentes e seu sofrimento,
descabido. Tal qual o rapaz, sentimos o desespero por não encontrarmos respostas,
o que nos leva a uma espécie de hesitação: não seria melhor voltar ao que era
antes? Inquietações de Kindzu, inquietações nossas.
Devemos, portanto, concordar com Proust: “a emoção é mais ou menos
semelhante à que sentimos”. No entanto, o fato de nos identificarmos com
um jovem moçambicano cujas agruras nos provocam reações parecidas com
as dele é insuficiente para situar nosso papel de leitor. Porque as agruras que
Kindzu sofre fazem parte do “outro mundo” que Mia Couto nos conta. Esse
214 da nação. Mas, em plena guerra, que futuro poderia ser esse à medida que
um menino é desprovido de memória, enquanto outro abandona aquilo que se
constituía como vínculo com os antepassados? Pelas palavras de Kindzu,
A guerra crescia e tirava dali a maior parte dos habitantes. Mesmo na vila,
sede do distrito, as casas de cimento estavam agora vazias. As paredes,
cheias de buracos de balas, semelhavam a pele de um leproso. Os bandos
disparavam contra as casas como se elas lhes trouxessem raiva. Quem
sabe alvejassem não as casas mas o tempo, esse tempo que trouxera o
cimento e as residências que duravam mais que a vida dos homens. Nas
ruas cresciam arbustos, pelas janelas espreitavam capins. Parecia o mato
vinha agora buscar terrenos de que tinha sido exclusivo dono. Sempre me
tinham dito que a vila estava de pé por licença de poderes antigos, poderes
vindos do longe. Quem constrói a casa não é quem a ergueu mas quem
nela mora. E agora, sem residentes, as casas de cimento apodreciam como
a carcaça que se tira a um animal (COUTO 2007, p. 23).
Chorais pelos dias de hoje? Pois saibam que os dias que virão serão ainda
piores. Foi por isso que fizeram esta guerra, para envenenar o ventre do
tempo, para que o presente parisse monstros no lugar da esperança. Não
mais procureis vossos familiares que saíram para outras terras em busca
da paz. Mesmo que os reencontreis eles não vos reconhecerão. Vós vos
convertêsteis em bichos, sem família, sem nação. Porque esta guerra
não foi feita para vos tirar do país mas para tirar o país de dentro de vós
(COUTO 2007, p. 200-201).
No final, porém, restará uma manhã como esta, cheia de luz nova e
se escutará uma voz longínqua como se fosse uma memória de antes
216 Sua “última ponte com a família” é o que possibilita ao caçula humanizar-se
novamente. Nesse sentido, Mia Couto haveria de dizer, dezessete anos depois,
que a literatura ajuda a “manter vivo o desejo de inventar outra história para
uma nação e outra utopia como saída” (COUTO 2009a, p. 6). Com efeito, ele
recorre a utopias tangíveis em Terra Sonâmbula e projeta a expectativa de um
novo princípio para Moçambique em uma história por ser escrita.
Eu gostaria, dessa forma, de finalizar este artigo, retomando e reforçando
certos questionamentos. O primeiro é que estou longe aqui de encarar a literatura
como documento, tal qual a pretensão de quarenta anos atrás do professor
de Estudos Americanos R. Gordon Kelly, para quem “os documentos literários
podiam ser utilizados como evidência histórica” (KELLY 1974, p. 146). Logo, não
tenho a pretensão de reconstituir a história recente de Moçambique a partir do
romance de Mia Couto. Ao contrário, interessa-me saber de que modo o escritor
moçambicano relaciona-se com a história de seu país ao escrevê-la sob um
viés literário que lhe é próprio. A história da guerra que ele escreve em seu
romance aponta para um compromisso com a “pequena história”, como se o
romance pudesse restituir a voz àqueles que teriam sido silenciados. Sua versão
da história aponta, especialmente, para uma valorização da africanidade a partir
do respeito aos ancestrais e às tradições. Esse respeito implicaria, de certa forma,
uma recuperação do sentido de humanidade, em que residiria a esperança de um
futuro para o país. O segundo questionamento resvala para “o perigo da história
única” (the danger of a single story) a que se refere Chimamanda Adichie, pois
tendo o romance de Mia Couto caído nas graças da crítica literária europeia, ele
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CAMPOS, Josilene Silva. As representações da guerra civil e a construção
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217
Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-Graduação em História da
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sobre-africa-mocambique-beira-e-literatura. Acesso em: 22/02/2012.
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Digestivo Cultural, 14/09/2006b. Disponível em: http://www.
Palavras-chave
Crítica; História; Literatura de cordel.
Keywords
220
Criticism; History; Cordel literature.
222 chamados acrósticos na última estrofe dos poemas. Luciano aponta que, apesar
da autoria de Leandro ter sido restituída após várias pesquisas, “há estudiosos
que continuam caindo no engano, movidos pela pressa e pela desatenção”
(LUCIANO 2012, p. 73).
Luciano contesta, por exemplo, Irani Medeiros, que “comete erros tolos
e graves devido à falta de rigor”, pois considera “a poesia de Leandro como
sertaneja”, além de colocar na antologia de Leandro “textos de folhetos que
não são do criador do cordel” (LUCIANO 2012, p. 74). Assim como o livro de
Medeiros, Luciano aponta que a coleção da Editora Hedra, intitulada ‘Biblioteca
de Cordel’, também comete equívocos na atribuição da autoria de folhetos. Para
o autor, tais equívocos são resultados de “pesquisadores e estudiosos que não
têm vivência e se recusam a conhecer as nuanças, os detalhes, do cordel”
(LUCIANO 2012, p. 75), da “falta de averiguação das informações recebidas
por alguns pesquisadores” e, “muitas vezes, a preguiça de pesquisar de certos
estudiosos” (LUCIANO 2012, p. 77).
Para Aderaldo Luciano, o cordel deve ser estudado como uma literatura
brasileira, não como uma literatura ‘popular’ e ‘folclórica’. Luciano aponta que “os
estudiosos do cordel foram incapazes de oferecer-lhe sua verdadeira dimensão
literária” (LUCIANO 2012, p. 84). O autor adota o conceito de ‘gêneros literários’,
no qual o cordel é “uma forma fixa da poesia que pode manifestar-se de formas
distintas, sem pureza textual, com uma característica dominante: narrativo,
dramático, lírico, etc” (LUCIANO 2012, p. 82). Sendo assim, para o autor, o cordel
“é poesia e técnica, visto que forma fixa. O encontro da técnica e da poesia, do
1
Segundo Bruna Paiva de Lucena, a historiografia do cordel brasileiro responsável pelo cânone do cordel tem
por base as pesquisas da Fundação Casa de Ruy Barbosa, do estudioso francês Raymond Cantel e as que deram
origem ao Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancada, feitas por Átila de Almeida e José
Alves Sobrinho, bem como a campanha nacional em defesa do folclore. A partir desses estudos, passou-se
a “postular o conceito e os limites da ‘literatura de cordel’, também seus autores, seus meios legítimos de
publicação, entre outros aspectos.” No entanto, conforme observa Bruna Lucena, esse procedimento acabou
por deixar “muito do lado de fora, como os cordéis de autoria de mulheres” (LUCENA 2010, p. 14).
224 de seleção e exclusão, cujo objetivo é separar alguns textos, escritos por alguns
autores do conjunto de textos em circulação” (ABREU 2006, p. 39). Entretanto,
na maior parte das vezes, “não são critérios linguísticos, textuais ou estéticos
que norteiam essa seleção de escritos e autores”, mas sim “a difícil questão do
valor, que tem pouco a ver com os textos e muito a ver com posições políticas
e sociais” (ABREU 2006, p. 39).
Nesse sentido, o autor se contradiz, pois ao mesmo tempo em que
critica as antologias de cordel, afirmando que elas “são segregadoras,
arrastando cada vez mais o cordel para o gueto”, e de que devido a elas
“a academia fechou suas portas” (LUCIANO 2012, p. 9), ele age da mesma
forma, selecionando alguns poetas que considera como mais importantes
para a história do cordel brasileiro, e ‘fechando as portas’ para um grupo
considerável de outros poetas.
Apesar dessas ressalvas, Apontamentos para uma história crítica do cordel
brasileiro tem o mérito de estimular a reflexão nos pesquisadores, já que
questiona várias definições e generalizações sobre o cordel. A obra é quase como
um manifesto em favor dos poetas de cordel, o que demonstra o envolvimento
do autor com o seu objeto de estudo. Não sabemos se a pretensão do autor,
de “conduzir os estudos sobre o cordel norteando-os por sua filiação ao todo
poético brasileiro” (LUCIANO 2012, p. 8), irá se realizar, mas podemos dizer que
a obra é mais um livro importante que se soma à historiografia sobre o cordel
brasileiro, e que merece a atenção dos pesquisadores.
Palavras-chave
Acontecimento; Filosofia da história; Política.
Keywords
Event; Philosophy of history; Policy.
226
228 ele, tudo isso não era senão ideologia; caberia à ciência corrigi-la, retificá-la.
Nesse sentido, o althusserianismo foi, de certa forma, um mecanismo de poder
e de centralização teórica, visto que essa posição se confrontava diretamente
com a diversidade de tendências e a pluralidade de interrogações que então
existiam e que ficavam reduzidas à ideologia. No entanto, as reivindicações
que brotaram em 1968 eram, a partir desse ponto de vista, exclusivamente
de “ordem ideológica” e “iam totalmente de encontro ao marxismo que se
havia ao mesmo tempo aprendido e ensinado” (RANCIÈRE 2012, p. 37). Essa
compreensão althusseriana implicava, ao mesmo tempo, um corte, uma partilha
no mundo entre aqueles que possuíam e não possuíam a palavra da ciência,
entre sujeitos aptos a ela (neste caso, os intelectuais e os dirigentes do Partido
Comunista) e aqueles que apenas poderiam tomar parte nela como objeto. O
althusserianismo dizia pouco sobre a teoria de Marx e muito sobre a situação
então do marxismo.1 Maio de 68 marca o momento de um encontro inesperado
entre estudantes e operários e produz, dessa forma, um curto-circuito nessa
partilha ao mostrar que havia uma considerável distância entre o marxismo de
escola e a realidade do mundo operário. Essa ruptura e esse encontro marcaram
o devir filosófico rancieriano.
A reorientação do trabalho de Rancière, a partir de 1972, é um efeito desse
encontro. É a partir de então que ele inicia, ainda sem um objetivo definido, suas
1
Assinalemos de passagem que La leçon d’Althusser, originalmente publicada em 1974, acaba de ser reeditada
a partir do texto original. Ela recebeu, no entanto, um novo prefácio e notas explicativas que ajudam o leitor
a se situar em relação ao contexto de sua publicação (RANCIÈRE 2012).
230 Por isso, Rancière caracteriza seu trabalho como uma poética ou
teoria geral das multiplicidades. Não se trata de ontologizar a diferença e a
singularidade, mas de pensar que as cenas políticas se configuram a partir
de uma não-concordância entre o excesso de nomes e a multiplicidade de
corpos. Para ele, a literatura se constituiu precisamente nesse intervalo,
buscando tratar esse excesso e essa não-concordância: nesse traço reside
sua contradição fundadora. A constituição das identidades deve ser pensada
em relação às multiplicidades (de lugares, de pertencimentos, de experiências
possíveis) e não remetida ao enraizamento em um lugar e em uma cultura. É
aí que se situa a importância da noção de “palavra” (muda, errante, operária),
capaz de qualificar um acontecimento (por meio da auto-declaração), da
subjetivação nas palavras, i.e., a capacidade de se apropriar de uma palavra
que permite frasear de outro modo a experiência. Um acontecimento, assim,
não é uma ruptura em uma cadeia causal (o que pressupõe uma lógica
hierárquica), mas uma “alteração”, “uma reconfiguração de um campo de
possíveis” (RANCIÈRE 2012, p. 117; 119).2 Essa discussão leva àquela sobre
o estatuto da estética em seu pensamento, à definição da noção de revolução
estética, à relação entre a língua filosófica e a língua ordinária em sua escrita,
que toma distância do comentário filosófico tradicional, que prefere falar
em “processos de conceitualização” ou “de constituição de uma paisagem
2
Essa noção de acontecimento distancia-se daquelas de um Foucault ou de um Deleuze. A questão que seria
interessante considerar é como Rancière a articula com a história ou, dito de outro modo, como a explicitação
dessa noção permite acessar sua teoria da história.
234 leitura. É sobre o modo como ela é lida, sobre certas incompreensões, sobre
precisões necessárias ou conflitos de interpretação por ela gerados que esse
livro ressoa. Trata-se, antes de tudo, de um diálogo com seus leitores.
Referências bibliográficas
RANCIÈRE, Jacques. A noite dos proletários: arquivos do sonho operário.
Trad. Marilda Pereira. São Paulo: Cia. das Letras, 1988.
______. A partilha do sensível: estética e política. Trad. Mônica Costa Netto.
São Paulo: EXO experimental org.; ed. 34, 2005.
______. Chroniques des temps consensuels. Paris: Seuil, 2005.
______. Et tant pis pour les gens fatigués. Entretiens. Paris: Amsterdam, 2009.
______. La leçon d’Althusser. Paris: La Fabrique, 2012.
______. La parole ouvrière. Textes présentés para Jacques Rancière et
Alain Faure. Paris: La Fabrique, 2007.
______. Les écarts du cinéma. Paris: La Fabrique, 2011.
______. Les noms de l’histoire: essai de poétique du savoir. Paris: Seuil, 1992.
______. Moments politiques: interventions 1977-2009. Paris: La Fabrique, 2009.
______. O desentendimento: filosofia e política. Trad. Ângela Leite Lopes.
São Paulo: Editora 34, 1996.
Palavras-chave
Humanismo; Homem de letras; Renascimento.
Keywords
Humanism; Man of letters; Renaissance.
235
236 Inglaterra nos meados da segunda década do século XV? Nada menos do que
fazer ressurgir das cinzas o nobre cadáver da antiguidade. Aliás, tarefa por ele
considerada simples, bastando para o pleno êxito pôr as mãos sobre corpos de
letras trajando trapos de pergaminho ou papiro.
Além do texto de Lucrécio, Poggio Bracciolini retirou das trevas muitos
manuscritos em que foram fixados textos célebres da antiguidade. Conta-se,
entre suas “caçadas”, também ter encontrado o Institutas, texto do retórico
latino Quintiliano. A obra é reputada simplesmente como o mais genial conjunto
de ensinamentos sobre a arte da eloquência que já se escreveu no mundo
antigo. Como se referiu Stephen Greenblatt acerca do temperamento de
Bracciolini quando diante desses textos, ele “reagia a livros como se fossem
seres humanos vivos” (GREENBLATT 2012, p. 152). Quando em visitas à
bibliotecas de um mosteiro qualquer, seu propósito era libertar os livros como
se eles fossem almas nobres que se encontrassem sob ferros em calabouços. Os
textos por ele “desenterrados” eram vozes humanas que desejavam encontrar
um interlocutor, não simples manuscritos em decomposição. “O que emergia da
escuridão da biblioteca não era um elo numa longa cadeia de textos, um copiado
do outro”, diz Greenblatt. O texto era “... na verdade a coisa em si, trajando
vestes emprestadas, ou até o autor em si, amortalhado e cambaleante sob a luz”
(GREENBLATT 2012, p. 153). Para Bracciolini, esses “defuntos” eram capazes
de propiciar uma vida boa e honrada aos homens que vivem no presente, pois
os brindam com o patrimônio de sua eloquência e sabedoria. Talvez se possa
afirmar que, nos primórdios da Época Moderna, Poggio Bracciolini foi um herói
240 clássica, pode ser justamente retratado como um dos inventores do mundo
moderno; ao pôr em circulação um texto sepultado por mais de mil anos de
densa história, ele atuou decisivamente.
Em vista de tais argumentos, creio que o livro de Greenblatt sobre traços
fundamentais do humanismo renascentista pode ser lido com grande proveito,
e isso tanto por sua cativante história central quanto pelas intrincadas tramas
paralelas. Além da história de Bracciolini, a obra é também uma densa narrativa
sobre a vida particular de livros e autores célebres, uma interessante descrição
das técnicas de fabricação de livros na antiguidade e Idade Média, além de uma
detalhada exposição dos recursos utilizados no processo de circulação de textos,
desde os gregos antigos até a invenção da imprensa de caracteres móveis nos
meados do século XV. E isso sem deixar de fora considerações de relevo sobre
as regras da retórica e da eloquência na Roma antiga e na Itália dos inícios da
Renascença, além das práticas de leitura ao longo da história cultural do Ocidente
cristão. Quem se interessa por maquinações palacianas azeitadas com traições
e jatos de sangue também se sentirá bastante confortável diante da obra. Em
suma, A virada é um desses livros que possuem a virtude de instruir sem enfadar,
fundamento sempre digno de uma menção honrosa, mormente pelo alto grau de
dificuldade de se entregar ótimo conteúdo com excelente diversão.
Palavras-chave
Ética; Retórica; História dos conceitos.
Keywords
Ethics; Rhetoric; History of concepts.
241
242 não encontra material indigesto, mas estudo agudo orientado por um mesmo
conceito, que o título de Accetto e o subtítulo de Míssio nomeiam: dissimulação
honesta. Assim, A civilidade e as artes de fingir não é um estudo propriamente
sobre Accetto, mas sobre a matéria prima de seu tratado: matéria esta que ecoa
nos escritos de outros autores e que, também, é eco de concepções e conceitos
antigos que, reciclados, lhe deram nome e fundamento.
Edmir Míssio não descarta o costume do gênero e leva em consideração
os argumentos e articulações da arte accettiana. O primeiro capítulo lida com o
ethos do secretário, ofício do tratadista estudado, e com a técnica da escrita de
cartas, que o secretário deveria dominar. O autor estuda uma produção letrada
que Accetto muito provavelmente conhecia. No capítulo dois, encontramos
reflexões sobre o gênero epidítico (ou demonstrativo) e sobre o gênero do
tratado, o que requer do autor conhecimento de diversas referências antigas e
de figuras e procedimentos de elocução, como o uso de exemplos, analogias,
metáforas, ironias, citações, sentenças. Míssio mostra que, reciclando a tópica
da brevitas, Accetto recorre a uma escrita “baseada em um composto de clareza
e obscuridade análogo ao conceito formulado e à ação elogiada e preconizada”
(MÍSSIO 2012, p. 60). Em outras palavras, Torquato Accetto não apenas escreve
sobre a dissimulação honesta, mas dissimula honestamente ao longo de seu
tratado para mostrar, na prática, os elementos que prescreve.
No terceiro capítulo, Míssio retoma o conceito aristotélico de prudência
(phrônesis) e as categorias ciceronianas dissimulatio e honestas, com o
intuito de polir melhor o conceito “de” Torquato Accetto. Utilizo as aspas,
244 palavras do autor, “a quantidade das citações [em Accetto] não impediu a
qualidade do escrito, cujo entendimento da questão pôde ser verificado na
trama argumentativa” (MÍSSIO 2012, p. 176). Na introdução, por sua vez,
Míssio principia dizendo: “Da vida de Torquato Accetto muito pouco se sabe”
(MÍSSIO 2012, p. 13). A análise da trama argumentativa supre, em alguma
medida, a névoa que encobre a biografia de Accetto. Inversamente, esta mesma
névoa parece conferir certa liberdade à mente investigativa do autor do livro,
que busca conhecer, com lente de aumento, os argumentos e pressupostos do
tratado accettiano. Desta forma, Edmir Míssio não persegue a intencionalidade
do autor, pois Accetto não se define como subjetividade psicologicamente
expressiva: o que ele busca, na verdade, é sondar a emulação promovida
pelo secretário, que recicla auctores e preceitos que respaldam suas reflexões
sobre a dissimulação honesta. Este procedimento é profícuo na medida em
que não supõe que Accetto esteja por detrás da sua obra, mas sim nela, na
própria escrita. Em outras palavras, o autor é o estilo que ele comunica ao
leitor, e seu estilo é produto da emulação, da reposição de predicados que não
apenas o secretário domina, mas também o leitor discreto, capacitado a julgar
os méritos da imitação.
A brevidade não é somente procedimento accettiano, mas também uma das
características que se espera de uma resenha. Por esta razão, convém encerrar
esta por aqui: que o leitor preencha suas lacunas com prudência e acate, sem
mais delongas, o convite que ela efetua.
245
Palavras-chave
Conhecimento histórico; História da historiografia; Historia magistra vitae.
Keywords
246
Historical knowledge; History of historiography; Historia magistra vitae.
1
A este respeito vide: SILVA 2010. Este trabalho foi inicialmente orientado por Manoel Luiz Salgado
Guimarães e posteriormente, em função do agravamento do seu estado de saúde, passaria a ser orientado
por Jacqueline Hermann.
Referências bibliográficas
COTRIM, João Paulo; ROCHA, Miguel. Salazar: agora e na hora da sua morte.
Lisboa: A. M. Martins Pereira, 2006.
RÜSEN, Jörn. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-
história. História da Historiografia, n. 2, p. 163-209, maio 2009.
SILVA, Taíse Tatiana Quadros da. Maquinações da razão discreta: operação
251
historiográfica e experiência do tempo na Classe de Literatura Portuguesa
da Academia Real das Ciências de Lisboa (1779-1814), Tese (Doutorado
em História Social), Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1987.
______. Maus: e foi aí que começaram meus problemas. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1995.
Palavras-chave
Historiografia brasileira; Universidade de São Paulo; Cursos de história.
Keywords
252 Brazilian historiography; Universidade de São Paulo; History courses.
1
Interessante, senão instigante, é notar que o mesmo não acontece com as Ciências Sociais: da ampla e
importante História das Ciências Sociais no Brasil (MICELI 1989; 1995), na qual a FFCL-USP muito aparece, a
discussões mais específicas (apenas como exemplo: PONTES 1998; PULICI 2008), parece haver neste campo
uma preocupação muito maior (e mais crítica) com o processo de sua institucionalização.
2
Para se ressaltar a relevância da questão e, ao mesmo tempo, a importância de se tomá-la de modo
menos superficial, cabe citar o trabalho do sociólogo Claudinei Carlos Spirandelli, voltado às trajetórias das
Professoras do curso de Ciências Sociais da mesma FFCL entre 1934 e 1969 (SPIRANDELLI 2011).
3
Embora Roiz não avance nessa questão, é sugestivo descobrir que, “com a separação do curso de Geografia e
História, verifica-se uma maior incorporação de disciplinas históricas na grade curricular de Geografia, limitando-
-se no curso de História a apenas uma disciplina geral sobre o ‘conhecimento geográfico’” (ROIZ 2012, p. 74).
Alfredo Ellis Jr. esteve ligado à historiografia tradicional, nos moldes dos
4
Não há como deixar de observar aqui que um capítulo a respeito de Eurípedes Simões de Paula, formado na
primeira turma de Geografia e História da FFCL-USP e catedrático de História da Civilização Antiga e Medieval a
partir de 1946, completaria perfeitamente o quadro analítico montado por Roiz nesta segunda parte de seu livro.
258 ângulo tão marcante e, ao mesmo tempo, tão pouco conhecido da história
da historiografia brasileira. Reforço aqui, assim, o que escreveram Teresa
Malatian, Marieta de Moraes Ferreira e Ivan Aparecido Manoel em seus textos
de apresentação ao livro: trata-se de uma grande contribuição para pensarmos
o nosso ofício e, sobretudo, as condições em que ele pode se desenvolver nos
primeiros tempos da Universidade, momento que nos é cronologicamente tão
próximo e academicamente tão distante. Momento em que, fosse em São Paulo,
fosse em Cambridge, tudo era “caminho”, construído pelos próprios caminhantes.
Referências bibliográficas
HISTÓRIA da Historiografia. Dossiê “Os cursos de história: lugares, práticas
e produções”. Ouro Preto, n. 11, p. 10-171, abril 2013.
HOBSBAWM, Eric. Tempos interessantes: uma vida no século XX. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
MICELI, Sergio (org.). História das Ciências Sociais no Brasil. Volume 1.
São Paulo: Vértice; Idesp, 1989.
______ (org.). História das Ciências Sociais no Brasil. Volume 2. São Paulo:
Editora Sumaré; Idesp, 1995.
PULICI, Carolina. Entre sociólogos: versões conflitivas da “condição de
sociólogo” na USP dos anos 1950-1960. São Paulo: Edusp; Fapesp, 2008.
259
Palavras-chave
Ciências sociais; História; Explicação histórica.
Keywords
Social sciences; History; Historical explanation.
260
261
disponível em nosso mercado editorial, a esta tarefa – tanto mais porque ele é
também a expressão mais visível de uma nova atitude das ciências sociais em
relação à ciência histórica. Atitude pautada por uma vontade sincera de diálogo;
algo que, seja dito, não existia até bem pouco tempo. Estamos inclinados a ver
em O fetichismo do conceito um caso exemplar daquele gênero que, em outras
plagas, foi batizado de antissociologia. Gusmão se encontra numa situação similar
à de autores como Helmut Schelsky e Friedrich Tenbruck, os mais conhecidos
antissociólogos produzidos pela tradição sociológica alemã. Trata-se de um gênero
kamikase, onde a desmistificação das pretensões desmedidas da própria disciplina
confunde-se com a crítica dos intelectuais, e no qual a afinidade em relação ao
pensamento histórico é inegável. Até onde pude perceber, participando de um ou
outro debate, conversando com um ou outro colega, a reação ao livro de Gusmão
entre os sociólogos brasileiros foi de uma discreta simpatia, mais que de rejeição.
Isso valerá também para os historiadores? Quando da publicação da primeira
edição – que se esgotou rapidamente – deu-se uma acalorada discussão a seu
respeito nas “redes sociais”. Como sempre, entre nós, as polêmicas em torno de
uma obra são mais intensas quando ninguém teve ainda ensejo de ler o livro.
Esta resenha é resultado de minha tentativa de submeter as críticas de Gusmão,
duras muitas delas, a um escrutínio mais cuidadoso e sereno.
Primeira constatação: a sociologia de Gusmão não padece deste pecado
típico da juventude, a arrogância (e isso talvez descreva com relativa precisão
a atitude das disciplinas mais novas ante as mais velhas). Desde princípios do
século passado, passou-se a acreditar que esta vetusta senhora, a história,
262 e teses universitárias (o autor desta resenha receia ter de admitir que não foi
capaz fugir à regra). O automatismo em torno das “premissas teóricas” levou-
-nos a um ponto tal em que não mais se sabe onde termina o esforço analítico
e onde começa a mera observância das rígidas regras de composição do texto
acadêmico; onde termina a teoria e onde começa a retórica. As analogias
estruturais entre teoria e retórica, de resto, há muito foram postas às claras
por Hans Blumenberg. A retórica, como a teoria, é tudo o que resta “aquém da
evidência”. Sendo o efeito retórico a alternativa “à evidência que não se pode, ou
ainda não se pode obter, pelo menos aqui e agora” (BLUMENBERG 2001, p. 411-
412), fica claro por quê o “capítulo teórico”, via de regra, é posto na abertura
dos trabalhos acadêmicos. Cumpre-se uma obrigação e, então, finalmente se
pode passar ao que interessa. Se o leitor e o próprio autor do trabalho ainda se
lembram das premissas teóricas assumidas lá no início, já é outra história.
Gusmão entende que faríamos melhor em deixar de lado a parafernália
dos modelos e o jargão teoricista, pois “a leitura mais atenta, mais exaustiva
dos grandes teóricos sociais [...] não transforma, como num passe de mágica,
pessoas intelectualmente acanhadas em indivíduos de espírito” (GUSMÃO 2012,
p. 45). Significa assim colocar em campo, subrepticiamente, uma noção tornada
politicamente incorreta hoje em dia, mas que o nosso cotidiano não se cansa
de evocar e confirmar: a de talento. Talento, esse imponderável da vida, é sem
dúvida mais decisivo que a teoria.
O elogio que Gusmão faz da obra historiográfica de Tocqueville (GUSMÃO
2012, p. 93-94) expressa a sua rebelião contra as ilusões holísticas de autores
1
O Settembrini de A montanha mágica não estava tão longe assim de Tolstoi quando perguntava: “A arte é
moral na medida em que desperta. Mas o que sucede quando ela faz o contrário?”. A tentativa de depuração
moral da literatura me parece ainda menos factível que a da historiografia.
264 Nas duas primeiras partes do seu livro, Gusmão volta suas baterias contra o
teoricismo, como já foi dito. Na última parte, intitulada “Notas epistemológicas
sobre Sérgio Buarque de Holanda historiador” (GUSMÃO 2012, p. 172-336),
ele aplica as premissas ali desenvolvidas à análise de uma obra clássica de
nossa historiografia. O argumento central pode ser resumido em bem poucas
palavras: à medida em que se afasta de seu livro de estreia e amadurece como
historiador, Sérgio Buarque torna-se cada vez menos suscetível à tentação do
teoricismo. Seu famoso artigo de 1974 sobre Ranke tende a confirmar esta
leitura. O gradativo esvaecimento do “sociologismo” (o termo é de Gusmão) em
suas obras caminha par e passo com uma redescoberta, mesmo revalorização,
do historicismo.
Gusmão percorre Raízes do Brasil, Monções, Visão do paraíso e Do Império
à República à caça daqueles momentos em que o historiador deixa trair um
“sociologismo confuso” (GUSMÃO 2012, p. 201) ou que evidenciariam recaídas
no “dedutivismo” (GUSMÃO 2012, p. 258). Sua crítica à metafísica buarquiana
do ethos do aventureiro (GUSMÃO 2012, p. 242) são convincentes e ecoam
aquelas feitas por Jessé Souza (2000). É certo que, ao se colocar esta tarefa,
Gusmão não estava obrigado a se familiarizar – visto que sua intenção é de
natureza estritamente epistemológica – com uma vasta literatura produzida
2
Não evitarei esta palavra, sobre a qual a última palavra ainda não foi dita. Embora Gadamer tenha escrito
que o século XIX assistira a “apoteose” do gênio, Thomas Carlyle já acreditava presenciar o seu ocaso (se
subjaz uma deliciosa ironia a esse desacordo entre duas mentes brilhantes, que não se a impute a mim). Ver
a história do conceito de “gênio” em Joachim Ritter (1974).
Referências bibliográficas
BLUMENBERG, Hans. Anthropologische Annährung an die Aktualität der Rhetorik.
In: ______. Ästhetische und metaphorologische Schriften. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 2001, p. 406-431.
______. Conceptos en historias. Madrid: Sintesis, 2003.
HEINRICH, Dieter. Werke im Werden: Über die Genesis philosophischer
Einsichten. München: C. H. Beck, 2011.
KOSELLECK, Reinhardt. Über die Theoriebedürftigkeit der Geschichtswissenschaft.
In: SCHIEDER, Theodor; GRÄUBIG, Kurt (Hrsg.) Theorieprobleme der
267
Historiographical debates
Palavras-chave
Historiografia; Teoria da história; Metodologia.
Keywords
268
Historiography; Theory of history; Methodology.
270 opta por mergulhar no romance histórico Choque das Raças, de Monteiro Lobato,
para discutir a racialidade e a formação do caráter do brasileiro.
A segunda parte do livro reúne trabalhos específicos sobre o Paraná
abarcando diferentes temporalidades e temáticas. Falta entre a primeira e a
segunda parte uma maior relação, já que no segundo bloco os autores não
retomam as reflexões desenvolvidas no primeiro.
Abrindo essa seção, o capítulo assinado por Antônio Marcos Myskiw ao
mesmo tempo em que reafirma a importância da história regional produzida
nas universidades públicas do estado, como a UFPR, a UEM, a UEL a UNIOESTE
e o UNICENTRO, destaca a carência de reflexões em relação a essa produção.
Myskiw visa preencher nesse trabalho uma lacuna detectada na história do
Oeste do Paraná para o período compreendido entre as últimas décadas do
século XIX e as primeiras do século XX, explorando a potencialidade e riqueza
dos relatos de viagens, escritos e publicações entre os anos de 1876 e 1946. De
acordo com o autor, essas narrativas acabaram constituindo importantes fontes
na fundamentação de uma identidade regional paranaense.
O Oeste do Paraná também é trabalhado por Marco Aurélio Sella. O
enfoque, contudo, é voltado para a história das mulheres. No capítulo “Mulheres,
historiografia, gênero e o Oeste do Paraná”, num primeiro momento, Sella
discute questões que há muito povoam o universo dos debates empreendidos
1
Curioso é que o autor não tem a mesma visão de Falcon de que a história intelectual no Brasil há muito
caminha a passos lentos. Hahn é mais otimista.
272
1.1. Artigo inédito e original (entre 28.000 e 54.000 caracteres com espaço,
incluindo as notas e as referências bibliográficas).
1.2. Resenha de livro (máximo de 18.000 caracteres com espaço). As
resenhas devem ter título, seguido pela referência bibliográfica completa da
obra. Caso seja necessário, a bibliografia deve vir ao final da resenha, e as notas
devem seguir os padrões editoriais da revista. Recomenda-se que as resenhas
de livro escrito por um só autor apresentem uma avaliação crítica do trabalho à
luz da literatura previamente existente sobre o tema.
1.3. Textos e documentos historiográficos. Os documentos devem ser antecedidos
por um pequeno texto de apresentação, escrito pelo autor da submissão. O conjunto
(apresentação + documento) não deve ultrapassar os 80.000 caracteres com espaço.
Recomenda-se entrar em contato com os editores antes de preparar a submissão.
1.4. Entrevistas. Devem contar com um texto introdutório acerca do entrevistado.
O conjunto (apresentação + entrevista) deve conter de 27.000 a 54.000
caracteres com espaços. Recomenda-se entrar em contato com os editores
antes de preparar a submissão.
3) Os artigos devem conter, no início, resumo (de 700 a 1.050 caracteres com
espaço) e três palavras-chave, ambos seguidos de traduções para língua inglesa.
6) A contribuição deve ser original e inédita, não estar sendo avaliada por outra
publicação e não ter indicação de autoria. Os autores devem excluir todas as
informações do arquivo que possam identificá-los como tal.
15) Todos os textos deverão ser apresentados após revisão ortográfica e gramatical.
A revista publica contribuições em português, espanhol, inglês, francês e italiano.
17) A referência à textos clássicos também deve ser feita no corpo do texto,
com indicações do nome do autor, da primeira palavra do título da obra (em
itálico) e da seção e/ou as linhas citadas, tal como nos seguintes exemplos:
Aristóteles, Poética VII; Tucídides, História IV, 49. A referência completa à obra
citada deve aparecer ao final do texto, na lista da bibliografia utilizada.
Livro
KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos
históricos. Rio de Janeiro: Contraponto; Editora PUC-Rio, 2006.
Capítulo de livro
CASSIRER, Ernst. A linguagem. Introdução e exposição do problema. In: ______.
A filosofia das formas simbólicas. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 9-74.
Coletânea
CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (orgs.). Representações:
contribuições a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000.
Artigos em periódico
RIGOLOT, François. The Renaissance Crisis of Exemplarity. Journal of the
History of Ideas, v. 59, n. 4, p. 557-563, 1998.
Tese acadêmica
RIBEIRO, Tatiana O. A apódexis herodotiana: um modo de dizer o passado.
Tese (Doutorado em Letras Clássicas). Programa de Pós-Graduação em Letras
Clássicas, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2010.
Artigo de jornal
GLEISER, Marcelo. Newton, Einstein e Deus. Folha de S.Paulo, 13 jun. 2010.
Ilustrada, p. A23.
O resumo é um breve sumário do artigo. Ele não deve ser uma introdução do
texto, mas uma descrição completa e sintética do conteúdo do artigo, indicando
os objetivos e os aspectos centrais do argumento, a forma de abordagem do
tema e as conclusões e/ou hipóteses do estudo. As informações devem ser
expostas em um parágrafo, com narrativa contendo introdução (tema central
do estudo e objetivos), meio (forma de abordagem do tema e fontes utilizadas)
e fim (conclusões ou hipóteses principais).
2) Sobre as palavras-chave