04 - MACÊDO, Muirakitan. A Câmara Municipal Da Vila
04 - MACÊDO, Muirakitan. A Câmara Municipal Da Vila
04 - MACÊDO, Muirakitan. A Câmara Municipal Da Vila
h i s t ó r i a & m e m ó r i a da
CÂMARA MUNICIPAL DE CAICÓ
Organizadores:
Muirakytan K. de Macêdo
Almir de Carvalho Bueno
Helder Alexandre Medeiros de Macedo
Juciene Batista Felix Andrade
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE Revisão e Design
Márcio Xavier Simões
Reitora
Ângela Maria Paiva Cruz
Vice-Reitor
José Daniel Diniz Melo
Diretoria Administrativa da EDUFRN
Luis Álvaro Sgadari Passeggi (Diretor)
Wilson Fernandes de Araújo Filho (Diretor Adjunto) Coordenação
Judithe da Costa Leite Albuquerque (Secretária) Muirakytan K. de Macêdo e
Helder Alexandre Medeiros de Macedo
Conselho Editoral
Luis Álvaro Sgadari Passeggi (Presidente)
Ana Karla Pessoa Peixoto Bezerra
Anna Emanuella Nelson dos S. C. da Rocha
Anne Cristine da Silva Dantas
Christianne Medeiros Cavalcante
Edna Maria Rangel de Sá
Eliane Marinho Soriano
Fábio Resende de Araújo
Francisco Dutra de Macedo Filho
Francisco Wildson Confessor
George Dantas de Azevedo
Maria Aniolly Queiroz Maia
Maria da Conceição F. B. S. Passeggi
Maurício Roberto Campelo de Macedo
Nedja Suely Fernandes
Paulo Ricardo Porfírio do Nascimento
Paulo Roberto Medeiros de Azevedo
Regina Simon da Silva
Richardson Naves Leão
Rosires Magali Bezerra de Barros
Tânia Maria de Araújo Lima
Tarcísio Gomes Filho
Teodora de Araújo Alves
Inclui Bibliografia.
Modo de acesso: <https://repositorio.ufrn.br/jspui/handle/1/6223>
ISBN: 978-85-425-0659-4
Muirakytan K. de Macêdo
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social e econômica que, desde o alicerce municipal, se articulou para não
ser engolida pelo Leviatã monárquico e seus tentáculos provinciais.
A Lei de 1º de outubro de 182861 foi legislação necessária para apro-
fundar e detalhar o que se desenhou na Constituição de 1824. Foi a Lei
Regulamentar prevista pela Carta Constitucional, esculpida para dar cla-
reza formal ao novo papel das câmaras:
Art. 167. Em todas as Cidades, e Vilas ora existentes, e nas mais, que para
o futuro se criarem haverá Câmaras, as quais compete o Governo econô-
mico, e municipal das mesmas Cidades, e Vilas.
Art. 168. As Câmaras serão efetivas, e compostas do número de Vere-
adores, que a Lei designar, e o que obtiver maior número de votos, será
Presidente.
Art. 169. O exercício de suas funções municipais, formação das suas Postu-
ras policiais, aplacação das suas rendas, e todas as suas particulares, e uteis
atribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar.62 (grifos nossos)
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Constitucional de 184064 tiraram essa autonomia e subordinaram as mu-
nicipalidades à governança provincial, no caso do Rio Grande do Nor-
te, com sede em Natal. Neste modelo de subordinação, as Assembleias
Legislativas Provinciais ficaram com o monopólio da criação de cargos,
assim como sua extinção e nomeação dos funcionários públicos munici-
pais. No entanto, a persistência camarária, desde o período colonial, na
vida política-administrativa do Brasil, fez com que, mesmo tolhidas de
alguns movimentos, sua autonomia não pudesse ser totalmente açam-
barcada pelo poder central. As câmaras do Rio Grande do Norte também
reagiram a essa tentativa de esfumaçamento de sua atividade. A historia-
dora Juliana Teixeira Souza, estudando este contexto, afirma que
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primeira Junta, sobre a qual pesavam suspeitas de ilegalidade. A Câmara
da Vila da Princesa (Assú), contando com o apoio das Vilas de Portalegre
e Príncipe (Caicó), bradou em comunicação enviada ao governo eleito:
[...] e fiquem V. Sas. de uma vez entendidos que o Senado desta Vila e seu
termo composto de homens e não de ovelhas que seguem para onde as
conduz o pastor, ainda de má fé; e os habitantes deste termo, assim como
sabem obedecer às leis e superiores legítimos, também têm coragem para
repelir e castigar a facciosos que ofendem a El-rei, às Cortes e à nação.66
O governo instalado no dia 7 [fevereiro de 1822] pela força armada é ile-
gítimo, rebelde e criminoso, a quem não obedecemos, e só reconhecemos
por nosso legítimo ao repelido dessa capital pela força, pois que foi eleito
segundo o decreto das Cortes pelos votos dos eleitores, representantes dos
povos das paróquias, com toda a liberdade e franqueza. Isto é o que se
chama povos, e não a tropa e uma pequena porção de indivíduos facciosos
dessa capital que não têm direito algum de assumir aí os direitos e vontades
de milhares de habitantes e das autoridades de toda a mais província, e o
contrário é quererem aqueles com o nome de cidadãos iludir-nos, porém o
tempo dos presídios está passado e a ideia que V. Sas. fazem dos sertanejos
é mui contrária dos seus procedimentos.
[...] Podemos asseverar a V. Sas. que nós contamos com a união das duas
vilas vizinhas de Portalegre e do Príncipe, porque os seus habitantes, nos-
sos irmãos e amigos, são dos mesmos sentimentos e defensores dos di-
reitos da Nação e das Ordens das Cortes e de El-rei Constitucional, que
66 Vale lembrar que nesta primeira Junta figurava o Capitão Manuel Medeiros
Rocha, do Acari, tio de Tomaz Araújo Pereira (3o), único eleitor do Prínci-
pe (Caicó), portanto representante do interior da capitania. “O verdadeiro
decreto constitutivo da Junta devia ser o de 29 de setembro de 1821 e não o
de 1o de setembro de que fora dirigido apenas para Pernambuco. Nas Capi-
tanias subalternas, como a do Rio Grande do Norte, o número de membros
era de cinco e não de sete. (...) Atarantada, a Junta resolveu sacrificar os dois
membros menos votados, Manuel Antônio Moreira e Manuel de Medeiros
Rocha.” Cf. CASCUDO, Luís da Câmara. Uma História da Assembleia Legis-
lativa do Rio Grande do Norte. Natal: Fundação José Augusto, 1972, p. 144.
Ver também LIRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 2ª ed.
Brasília: Centro Gráfico do Senado Federal, 1982. p. 210-219.
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severamente castigam, como esperamos, aos autores do referido excesso
praticado nessa capital.67
Vereadores eleitos
67 LIRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 2a ed. Brasília: Centro
Gráfico do Senado Federal, 1982. p. 217.
68 Cf. MEDEIROS FILHO, Olavo de. Caicó cem anos atrás. Natal: Sebo Verme-
lho, 2004. p. 48.
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cia da lei era estreitada pelos inúmeros impedimentos. Não poderiam
participar do pleito: menores de 25 anos solteiros, bacharéis formados,
clérigos de ordens sacras, filhos dependentes dos pais, criados de servir,
administradores de fazendas rurais e seus fábricas (vaqueiros livres). Ao
fim, o golpe de misericórdia do Artigo 91, V: “Os que não tiverem de
renda líquida anual cem mil réis por bens de raiz, indústria, comércio,
ou Empregos.”69 Ou seja, a maioria da população! A lei não se refere
aos escravos, pois pela lógica jurídica, a condição servil privava-os, por
definição, do usufruto da política formal. Por outro lado, estavam fora do
processo todas as mulheres, mesmos as brancas livres e ricas, pois eram,
em seu conjunto, tomadas como incapazes de autonomia, portanto, não
poderiam deliberar com isenção e não poderiam votar e, muito menos,
serem votadas.
Pelo menos quinze dias antes da votação, o Juiz de Paz70 do lugar afi-
xava na igreja matriz a lista dos aptos a votarem e serem votados. Quem se
achasse excluído ou incluído indevidamente, poderia recorrer à comissão
eleitoral. No dia da eleição, os votantes qualificados entregavam ao Pre-
sidente da mesa eleitoral uma cédula com os sete nomes de sua escolha.
Não era uma votação secreta. A cédula deveria vir assinada pelo votante
ou, caso não soubesse ou não pudesse assinar, com uma assinatura de
alguém a seu rogo. Votava-se também no Juiz de Paz e em seu suplente.
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A eleição também ocorria na igreja, construção que podia abrigar todos
os eleitores, que não eram muitos. Escrevendo em 1876, Manoel Ferreira
Nobre observa com fundamentação legislativa que
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vereadores eram chamados de “edis curuis”. Na Vila do Príncipe, este há-
bito é comprovado pela descrição de uma despesa da Câmara em 1830,
quando foi realizado pagamento “a Francisco de Paula para pintar e dou-
rar as Varas para os Vereadores”75.
Funcionários camarários
A vereança não era paga, pois não era uma casta de funcionários pú-
blicos, tinha mandato eletivo. No período imperial na Vila e na futura
Cidade do Príncipe, sob as ordens do Presidente da Câmara, estavam ao
dispor da municipalidade como funcionários pagos: secretário ou escri-
vão, porteiro, procurador, alcaide e juiz de paz.
O secretário da câmara era encarregado de assentar por escrito os
registros oficiais da rotina da vereação. Além da ata das sessões, os se-
cretários deveriam anotar nos livros obrigatórios em uma Câmara: livro
para registro das posturas em vigor e outro que deveria colecionar cópias
manuscritas de todas as leis que poderiam ter repercussão na vida do
município. Sobre a atribuição desse funcionário, o Artigo 79 do “Regi-
mento” das Câmaras, vigente em todo império instituía que
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pertencer ao arquivo, pelo que receberá uma gratificação anual, paga pelas
rendas do Conselho. Será conservado, em quanto bem servir. Os Escrivães
atuais servirão de Secretários durante os seus títulos.76
| 69
Monteiro
Eutropio
Vieira Costa
Baptista de Morais77
70 |
Funções municipais
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sessão ficava a posto a figura do secretário. Escrivão da câmara, este fun-
cionário lavrava a ata que deveria ser fiel à coreografia dos argumentos
e proposições dos edis. Tudo era anotado. Ao fim, o relato deveria ser
assinado pelo Presidente e vereadores presentes na sessão.
Vereadores que faltassem com o decoro (“ordem e civilidade”) deve-
riam ter a censura do Presidente, se não o fizesse, qualquer vereador po-
deria requerer as medidas cabíveis, que deveriam ser homologadas pelo
voto de cada um. O acusado não poderia votar em sua própria causa. Este
impedimento se estendia a qualquer assunto de seu particular interesse,
mais ainda, não poderia deliberar sobre assuntos de seus ascendentes,
descendentes, irmãos e até cunhados.
Em uma situação que escapasse ao controle, a Câmara poderia re-
correr ao Presidente da Província. E foi uma denúncia de falta de lisura
na arrematação de impostos pela Câmara em 1886, que fez com que o
Presidente da Província do Rio Grande do Norte interviesse severamente,
conforme escreveu em seu relatório anual à Assembleia Provincial:
83 RIO GRANDE DO NORTE. Relatório com que o Exm. Sr. Dr. José Moreira
Alves da Silva Presidente da Província do Rio Grande do Norte passou a
administração ao 2° Vice-Presidente o Exm. Sr. Dr. Luiz Carlos Lins Wan-
derley em 30 de outubro de 1886.
72 |
Não sabemos as circunstâncias do fato e a defesa dos vereadores
envolvidos, pois esta investigação não caberia nos prazos e limites para a
confecção desse capítulo introdutório à história da Câmara do Príncipe.
Mas o fato é que o Presidente tomou partido dos denunciantes e deu cré-
dito em sua “representação documentada”.
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vilas do Príncipe e Acari são nos pavimentos térreos das casas das respec-
tivas câmaras municipais, e têm divisão para homens e mulheres, havendo
ali urgência de alguns reparos e outros melhoramentos para segurança e
salubridade das prisões. 85
85 RIO GRANDE DO NORTE. Relatório que o exm. sr. dr. José Bento da
Cunha Figueiredo Junior, Presidente da Província do Rio Grande do Norte,
apresentou a respectiva Assembleia Legislativa Provincial, na sessão ordiná-
ria de 1861. Natal: Ouro Preto Typographia Provincial, 1862.
74 |
No dia 10 de maio de 1812 o capitão Tomás de Araújo Pereira entregou ao
senado da Câmara as chaves da casa que serve de cadeia e de Câmara desta
cidade, declarando ter sido construída pelo povo e oficiais das guardas, e
que ofereciam grátis, com a única condição de não pagar carceragens - os
que nele trabalharam, quando porventura fossem presos! 86
Posturas municipais
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decidir sobre o que se fazer dos indigentes, loucos, órfãos e doentes po-
bres, assim como fiscalizar a prática da medicina e boticas, as escolas em
seus anos iniciais e o uso correto de pesos e medidas. Deliberou também
sobre o funcionamento de lugares onde o ar infectado por animais e ve-
getais em decomposição poderiam contaminar os cidadãos ao “corrom-
per a salubridade da atmosfera”88. Foi com esta intenção que opinou so-
bre a localização e higiene dos cortiços, mercados, matadouros, cadeias,
currais, hospitais e cemitérios.
Tais posturas municipais, chamadas no início de “Posturas Policiais”,
fundamentaram a gestão municipal no século XIX, ao disciplinarem os
atos dos cidadãos no uso do espaço urbano e suas adjacências. Foram
várias posturas confeccionadas ao longo do século XIX, cabendo ainda
muita pesquisa para o detalhamento do foco delas. Nos limites desse ca-
pítulo cabe-nos, pelo menos, abrir uma pequena fresta nessa janela, para
que incitemos os historiadores a continuarem na rica senda da pesquisa.
Vejamos, portanto, alguns exemplos que podemos pinçar no tempo, para
que ilustremos as práticas legislativas do disciplinamento urbano e rural
através dessas posturas municipais.
Animais
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inquestionável centralidade na economia que advinha do período colo-
nial, e não cessou durante todo o século XIX e XX.89
Por esta razão, a Postura da Câmara Municipal da Vila do Príncipe,
aprovada com 23 artigos pela Assembleia Legislativa Provincial do Rio
Grande do Norte em 30 de setembro de 1837, destinou 10 artigos a ques-
tões que envolviam o gado bovino, equino e miúdo (porcos, ovinos etc.).
Ou seja, quase metade nos itens das posturas!
Dois artigos das Posturas obrigavam que:
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No livro que nos anos de 1829 a 1832 contabilizou a receita e despesa
da Câmara da Vila do Príncipe há registros que para a sensibilidade eco-
lógica de hoje causaria arrepios. Na sessão de Contas Credoras anotou-se
nos anos de 1831 e 1832, respectivamente: “De vários multados por não
darem Cabeças de pássaros daninhos....4$360”; “Idem de pássaros dani-
nhos... 8$600”92. Não temos as posturas municipais que regulavam esta
passagem, mas por analogia com outros documentos da época podemos
inferir o que estava ocorrendo. Nas posturas municipais da vila cearense
de Lavras, em documento de 1845, lemos um mandamento que se repe-
tiu em outras vilas daquela província:
92 Idem, ibidem.
93 Cf. CAMPOS, Eduardo. A invenção do discurso ambiental. Fortaleza: Casa
de José de Alencar, 1998. p. 78.
78 |
ao secretário da Câmara passar recibo ao condutor, para sua ressalva, to-
mando seu nome em assento.94
94 Idem, ibidem.
95 Na verdade, era um costume que tinha ecos na legislação do Império por-
tuguês setecentista. Em Postura do ano de 1757, na vila Calheta, Ilha de São
Jorge nos Açores, podemos ler: “Em sete de Maio, nomearam a Bartolomeu
Machado e Pedro Luís, para caçadores de toda a casta de pássaros dani-
nhos, vendam ao povo os bicos e, os que lhe não comprarem os tragam a
esta Câmara para lhe serem pagos cinquenta reis por cada meio cento”. Cf.
CUNHA, Climaco Ferreira da. Leis multas e fintas do século XVIII. Calheta
S. Jorge, 2010. Disponível em: https://sites.google.com/site/climacoferreira/
assuntos-seculo-passado/41-leis-multas-e-fintas-do-seculo-xviii. Acesso
em 11 de agosto de 2016.
96 NASCIMENTO, Geraldo Maia do. Subsídio para a história de Mossoró.
Mossoró, 21 de mar. 2012. Disponível em: <http://www.blogdogemaia.com/
geral.php?id=783#>. Acesso em: 11 de agosto de 2016. O fato se repetia em
outras Vilas como a Patos na Paraíba: “Todo dono de casa habitada nas ter-
ras de agricultura apresentará anualmente, no mês de setembro, cem bicos
de pássaros daninhos (tendo escravos) e cinquenta (não os tendo). E nas
terras de criar os donos de escravos apresentarão cinquenta e os que não
possuírem escravos, vinte e cinco, sendo isentas as pessoas que a autoridade
competente julgar impossibilitadas.” Cf. FRANÇA, Marcos Antonio Pessoa
de. Um curioso artigo de 1845. Disponível em: <http://culturapopular2.blo-
gspot.com.br/2010/03/um-curioso-artigo-de-1845.html>. Acesso em: 11 de
agosto de 2016.
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dades, além de vigiar pelos tributos e dotar de verniz civilizado as ruas e
logradouros da urbe. Para assegurar esta meta sanitária, o fiscal da câma-
ra percorria o passeio público e periferia da cidade em busca de desvios
da norma. Na Postura Municipal de 1837, da Vila do Príncipe, estava
prescrito que
Toda a pessoa, que cortar carne nos Açougues do dito Município, [...] apre-
sentará ao Fiscal, ou a qualquer Autoridade Policial, uma nota do Juiz de
Paz, ou Inspetor do Distrito, ou Quarteirão do seu domicílio, pela qual
mostre, que a carne não é de rês, morta de carbúnculo, ou de outra qual-
quer moléstia, sob pena de seis mil réis de multa, e na falta de moeda prisão
a mil réis por dia.97
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Esta decisão da Câmara estava afinada com o antigo “Regimento”
das Câmara de que tratamos anteriormente. Nele já estava determinado
que:
Açougue
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por trinta anos a construção de uma casa de açougue público”.101 Meses
depois o permissionário encaminhou petição para formalizar o contrato
em 12 de abril de 1877, pedindo urgência, pois o material de construção
que deixara na proximidade do futuro prédio estava sendo extraviado.102
O privilégio mencionado no documento pode ter sido referen-
te ao monopólio da comercialização das carnes que deveria ocorrer no
açougue sob a administração de Egydio Gomes. Em outro documento103
Egydio Gomes pede, em maio de 1878, que sejam tomadas providências
sobre a fiscalização de carnes que estão sendo vendidas fora do estabele-
cimento público. Ele perderia com isso, pois deixava de cobrar a taxa de
comercialização, fonte de seu lucro.
O açougue público sob administração privada, através de contrato,
não cessou de mostrar-se problemático. Uma resolução de 1887 enviada
pela Câmara do Príncipe à Assembleia Legislativa Provincial, pedia que
fosse indenizado por quebra de contrato por parte da municipalidade,
Pacífico Florêncio de Azevedo, permissionário do açougue à época. O go-
verno provincial se negou a pagar. Justificou que esta falta era responsabi-
lidade da Câmara.104 Interessante que um dos membros da comissão que
redigiu a resolução era o mesmo Egídio Gomes de Brito já mencionado!
Outros historiadores terão aí material para entender uma palpitante rede
de intrigas e de interesses.
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Cemitério
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ou privados se disseminassem nessas ocasiões, para além do interior das
igrejas. Na segunda metade do século XIX o cemitério saiu dos templos
e ganhou o campo aberto, periférico e a sotavento (direção para onde so-
pra o vento) da cidade. Foi também o momento em que a administração
cemiterial passou das mãos do clero católico para as mãos seculares da
Câmara Municipal.
O texto da correspondência acima citada recorda o valor civiliza-
cional dos cemitérios públicos fora das igrejas, argumentando com a re-
ferência à Europa, mundo em que o Brasil deveria se espelhar. De fato, as
motivações mais urgentes eram duas. Primeiro, as frequentes epidemias
que enfermavam a província. Surtos da varíola e da cholera morbus (có-
lera) afligiam as cidades e vilas com uma mortalidade inaudita. Segun-
do, havia a convicção de que os gases emanados por matérias putrefatas
causavam e propagavam doenças. Era a “teoria dos miasmas” que o mais
famoso médico do Brasil da época definia como
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1856, com a nova pressão da epidemia da cólera, foi criado um espaço
para o sepultamento de sãos e coléricos, sob os auspícios da municipa-
lidade. Somente em 1874 foi aprovado o primeiro do Regulamento do
Cemitério da Cidade do Príncipe108 com texto elaborado pela Comissão
da Câmara Municipal109.
A partir dessa data o cemitério público estava sob pleno domínio
da municipalidade, embora que, para funcionar como um campo santo,
tivesse que receber as bênçãos do sacerdote católico. A Câmara, por seu
turno, teria que efetuar os pagamentos dos funcionários públicos da ne-
crópole, o administrador do cemitério e o coveiro. Pela petição abaixo,
encaminhada à Câmara, podemos perceber que a municipalidade nem
sempre cumpria com suas obrigações:
diz José Vieira de [...], coveiro do Cemitério Público desta cidade, que a
bem dele precisa que V.S.a lhe mande pagar o seu ordenado do trimestre
do 1º de julho do último de setembro do corrente ano (..). Cidade do Prín-
cipe 1º de outubro de 1877. 110
Pesos e medidas
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justos. Cuidava desse expediente o fiscal da Câmara, que verificava se a
medição estava sendo realizada de maneira correta. Afinal, os tributos re-
colhidos pela Câmara dependiam da regulamentação do comércio. Para
isso a Postura Municipal de 1837, em seu artigo 22, caracterizava os pesos
e medidas e sua obrigatoriedade:
Qualquer indivíduo, que na Vila [que] tiver taberna pública, deverá ter
um terno de medidas, de flandres para molhados, um de pau de quarta a
quarteirão para secos, assim como um terno de pesos de bronze, ou ferro
de libra à meia quarta, sob pena de quatro mil réis pela falta da alguma
peça dos ternos, e na falta de moeda prisão a mil réis por dia111. (grifos
nossos)
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jardas, polegadas ou côvados, e o peso das mercadorias calculado em li-
bras e arrobas. Além delas, havia ainda no Brasil, em 1872, uma grande
variedade de outros pesos e medidas, tais como a braça, a légua, o feixe, o
grão, a onça, o quintal e muitos outros padrões, aos quais a população es-
tava acostumada porque vinham sendo utilizados desde muitas gerações.
Em razão do enraizamento desse costume, a tentativa de implanta-
ção do novo sistema métrico no país provocou revolta em diversas pro-
víncias do Norte (atual Nordeste). No Rio Grande do Norte treze vilas se
rebelaram. Cinco eram da região do Seridó: Acari, Currais Novos, Flores,
Jardim e Príncipe.
Fazendeiro em Currais Novos, Laurentino Bezerra de Medeiros
anotou em seu livro de assentos:
Em fim de 74 para entrada deste ano o povo sublevou-se por causa dos
pesos e medidas pelo novo sistema métrico, ouve a revolução chamada
quebra quilos, isto em Currais Novos, ouvi faciosos, o governo mandou
tropas, botou-se colete de couro114 em muita gente, o chefe aqui foi Cypria-
no de Manoel Eugenio.115
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silha de medidas – que, além disso, deveriam ser alugados ou comprados
à Câmara Municipal.
Na Vila do Príncipe, a feira e o mercado foram invadidos em 05 e
12 de dezembro de 1874. Pesos e medidas foram quebrados e atirados no
Poço de Santana116. Foram preservadas a coletoria e a Câmara, ao con-
trário de outras vilas sediciosas. Os amotinados foram convencidos pelo
líder político do Príncipe, José Bernardo de Medeiros, a não destruírem
os papeis de ambas instituições.117 Dado a gravidade dos eventos, a revol-
ta foi alvo de inquérito policial e processo crime em 30 de março de 1875.
Foram ouvidas oito testemunhas. Fiquemos com duas delas. Joa-
quim Francisco de Vasconcelos, 52 anos, comerciante declarou que seus
“kilogramas foram tomados pelos sediciosos e quebrados, como também
os litros”. Ele afirmava ter visto uma multidão violenta e armada invadin-
do a “casa do comércio” (mercado público), e parecia a ele que os sedicio-
sos pretendiam tomar a Coletoria e roubar todos os livros que estavam
lá. Manoel Theodoro, 53 anos, negociante e fiscal da Câmara Municipal,
“respondeu que João Lopes e Francelino, pedreiros, moradores nesta ci-
dade foram os cabeças do grupo sedicioso do dia cinco de dezembro do
ano passado nesta cidade, acompanhados de uma porção de meninos”.118
A despeito dos arroubos populares e do processo judicial se desenrolar
com tensão, os culpados pela revolta não foram punidos, pois a justiça
finalizou a ação julgando improcedente a denúncia.119
116 Cf.: MONTEIRO, Eymard L’E. Caicó: subsídios para a história completa do
município. Natal: Sebo Vermelho, 1999. [Fac-símile]. p. 87.
117 Idem, ibidem.
118 COMARCA DO PRÍNCIPE. Processo Crime. Quebra-kilo. 1875. LABOR-
DOC. Fundo da Comarca de Caicó. Diversos. Cx. 07.
119 Cf.: Foi alegado que o movimento do dia 12 de dezembro continha, “todos
os elementos constitutivos de crime de sedição” e exigia-se que os “cabe-
ças” do motim deveriam ser punido nos conformes do Código Criminal do
Império. O promotor reclamou, ao final do processo, da decisão da Justiça
Pública que absorveu os réus acusados de turvarem a ordem pública. No
entanto, em julho de 1875, o Juiz Interino da Comarca do Seridó novamente
88 |
Sossego, trânsito e ruas
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Também nas estradas deveria imperar o livre fluxo. Era de respon-
sabilidade dos particulares conservarem as estradas e caminhos públicos
que por suas terras passassem. A Postura de 1837 determinava e aprazava:
90 |
Interessava à municipalidade que esta estrada fosse aberta, pois poderia
por ali escoar a sua produção de gado para as “oficinas de carne secas”
próximas às salinas.126
Também era responsabilidade da Câmara zelar pela qualidade das
águas e fontes destinadas ao gado e às pessoas. Havia, pelo menos desde
1837, veemente reprovação da poluição das águas para consumo animal.
Dois artigos da Postura Municipal de 1837 asseveravam:
Sobre esta matéria foram multados sete anos antes, em 1830, Antô-
nio Pereira de Araújo e José Ferreira dos Santos por haverem “tinguijado
um poço”. Ambos pagaram, aos cofres da Câmara, 4$000, cada. A casca
de angico usada nos curtumes soltava o tanino que poderia contaminar
| 91
as fontes. Da mesma forma, tinguijar era o termo genérico para o envene-
namento das águas com algum vegetal tóxico. Os índios usavam o tingui
ou timbó nos rios para doparem os peixes com a finalidade de pescá-los
facilmente, daí a origem do verbo.
Quanto ao cuidado com as fontes de água é interessante o caráter
lúdico que foi dado ao Poço de Santana. Este poço, que armazena águas
no braço direito do Rio Seridó, esteve desde o início da história da cidade
ligado ao abastecimento de água potável à população urbana. Certamen-
te já não mais poderia comportar a demanda e deveria ser preservado
com o fim recreativo. Assim assegurava a Postura Municipal de 1871 em
seu artigo 25: “O Poço denominado de ‘Sant›Ana’ nesta Cidade fica con-
siderado um recreio público e ninguém poderá pescar de tarrafa, lavar
roupa, fatos, e nem cercá-lo [...].129”
O nível de detalhes a que chegavam as posturas dependiam das no-
vas demandas urbanas, sendo assim, com o crescimento da cidade, pen-
sou-se também no aformoseamento urbanístico. No artigos e parágrafos
da Postura Municipal de 1871 podemos assistir ao grau de intervenção
que a municipalidade queria dar às construções privadas:
Art. 5:
Parágrafo 1º - As casas [...] terão portas com 11 palmos de altura e 5 1/2 de
largura; as janelas 8 de altura e 5 1/2 de largura.
Parágrafo 2º - As calçadas terão 12 palmos de largura nas ruas e 6 nos
becos. [...]
92 |
Sabemos que nem com estas determinações e inúmeras multas es-
tabelecidas nas leis municipais, a paisagem urbanística se transformou
segundo o ideal da municipalidade. Mas ali estava um marco de onde
poderia ser construída e preservada uma cidade nos sertões do Seridó,
com todos os consensos e conflitos de uma sociedade de hierarquia social
moldada pelo escravismo e pela representação política elitista.
Até o final do império as funções da Câmara da Cidade do Príncipe
seguiam ainda com a inspiração colonial, modificara-se o caráter eletivo
de seus vereadores e seu poder de articulação política para as campa-
nhas de deputados provinciais. Era uma instituição que demonstrava sua
força, pois ancorava-se no chão sobre o qual os munícipes viviam. Esta
proximidade e seu poder de intervenção imediata nos problemas locais
foram virtudes que desenharam o passaporte para o outro regime que era
partejado em fins do século XIX. A República estava às portas e deman-
daria por um desenho camarário que espelhasse a nova realidade.
REFERÊNCIAS
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BRASIL. Lei de 1º de outubro de 1828. Ibidem.
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RIO GRANDE DO NORTE. Discurso pronunciado na abertura da segunda ses-
são da terceira legislatura da Assembleia Legislativa Provincial do Rio Grande
do Norte no dia 7 de setembro de 1841, pelo ex.mo Vice-Presidente da Provincia
o Coronel Estevão José Barboza de Moura. Pernambuco, Typ. de M.F. de Faria,
1841. Disponível em: http://www.crl.edu/brazil/provincial/rio_grande_do_nor-
te. Acesso em: 13 fev. 2014.
RIO GRANDE DO NORTE. Relatório com que o Exm. Sr. Dr. José Moreira Al-
ves da Silva Presidente da Província do Rio Grande do Norte passou a adminis-
tração ao 2° Vice-Presidente o Exm. Sr. Dr. Luiz Carlos Lins Wanderley em 30
de outubro de 1886.
RIO GRANDE DO NORTE. Relatório que o exm. sr. dr. José Bento da Cunha Fi-
gueiredo Junior, Presidente da Província do Rio Grande do Norte, apresentou a
respectiva Assembleia Legislativa Provincial, na sessão ordinária de 1861. Natal:
Ouro Preto Typographia Provincial, 1862.
RIO GRANDE DO NORTE. Relatório que o exm. sr. dr. José Bento da Cunha
Figueiredo Junior, Presidente da Província do Rio Grande do Norte, apresentou
a respectiva Assembleia Legislativa Provincial, na sessão ordinária de 1861. Na-
tal: Ouro Preto Typographia Provincial, 1862. Disponível em: http://www.crl.
edu/brazil/provincial/rio_grande_do_norte. Acesso em: 14 de agosto de 2016.
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VILA DO PRÍNCIPE. “Documentos de 1829,1830,1831 e 1832 rearquivados por
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b) Sítios eletrônicos
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Jorge, 2010. Disponível em: https://sites.google.com/site/climacoferreira/assun-
tos-seculo-passado/41-leis-multas-e-fintas-do-seculo-xviii. Acesso em 11 de
agosto de 2016.
França, Marcos Antonio Pessoa de. Um curioso artigo de 1845. Disponível em:
http://culturapopular2.blogspot.com.br/2010/03/um-curioso-artigo-de-1845.
html. Acesso em: 11 de agosto de 2016.
c) Bibliografia
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ARAÚJO, Avohanne Isabelle Costa de. Curar, fiscalizar e sanear: as ações médico-
-sanitárias no espaço público da Cidade do Natal (1850-1889). 2015. Dissertação
(Mestrado em História) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal,
2015.
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GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. O Império das províncias: Rio de Janeiro,
1822-1889. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
LIRA, A. Tavares de. História do Rio Grande do Norte. 2a ed. Brasília: Centro
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MATTOS, Ilmar Rohloff de. O tempo saquarema. 4ª ed. Rio de Janeiro: Access,
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