Judas, o Obscuro - Thomas Hardy PDF
Judas, o Obscuro - Thomas Hardy PDF
Judas, o Obscuro - Thomas Hardy PDF
Sobre a obra:
Sobre nós:
Romance
TRADUÇÃO E INTRODUÇÃO DE
OCTÁVIO DE FARIA
Geração Editorial
Coleção Redescoberta
Vol. I
Judas, o Obscuro
Título original em inglês: Jude the Obscure 1ª edição — Setembro de 1994
Tiragem — 3.000 exemplares
Editor: Luiz Fernando Emediato
Capa: Susana Kakovicz
Diagramação e Editoração Eletrônica:
Alan Cesar S. Maia
Revisão: Ana Maria de Oliveira Mendes Barbosa Dados Internacionais de
Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Hardy, Thomas, — 1840-1928
Judas, o obscuro / Thomas Hardy. — Tradução e nota preliminar Octávio de
Faria. São Paulo : Geração Editorial, 1994
Reimpressão acrescida de prefácio de Fábio de Souza Andrade 1. Romance
inglês I. Faria, Octávio de, 1908-1980. II. Título 94-2406
CDD-823
Indices para catálogo sistemático:
1.Romances: Literatura inglesa 823
Todos os Direitos Reservados
GERACÃO DE COMUNICAÇÃO INTEGRADA COMERCIAL LTDA.
Rua Cardoso de Almeida, 2188 — CEP 01251-000 — São Paulo — SP —
Brasil Tel. (011) 872-0984 — Fax: (011) 62-9031
1994
Impresso no Brasil
Os anos de aprendizagem
OCTÁVIO DE FARIA
Um romance assim, como e por que não teria sido traduzido em português até
hoje? A censura e a estranheza, imediatas, exigem reflexão mais apurada. Não
há dúvida que é estranho e de certo modo mesmo imperdoável que não se tenha
cuidado disso quando temos visto, traduzidos da mesma língua (senão do mesmo
país de origem) um sem-número de romances cujo valor literário é, no mais das
vezes, perfeitamente nulo. No entanto, já não estranharemos tanto a omissão, se
atentarmos nas dificuldades da tare fa. Jude the Obscure é justamente
considerado uma das “barreiras” da língua inglesa. A ri-queza do vocabulário,
certas expressões locais, o aprofundado e, muitas vezes mesmo, o rendilhado das
comparações, a vivacidade do diálogo, fazem com que de boa vontade se recue
ante a temeridade da aventura. Não espanta, pois, que os tradutores franceses (F.
W. Laparra — edição do “Cabinet Cosmopolite”, Stock, 1931, e Firmin Roz —
edição Albin Michel, meramente uma adaptação) tenham fugido tanto ao texto
do romance. Embora aqui e ali nos apoiando na versão de Laparra, (agradável e
fluente, porém tantas vezes inexata) preferimos guardar menos distância do texto
inglês, na medida do possível, talvez um pouco em detrimento dos encantos da
forma literária. Pareceu-nos que um estilo tão pessoal, aliado a um pensamento
tão cioso de pequenos detalhes, merecia de nossa parte um maior espírito de
fidelidade — a humanidade nos parecendo dever ser, nesses casos, a qualidade
fundamental do tradutor. Permitir ao leitor brasileiro que não sabe inglês seguir,
movimento por movimento, as curvas e as reviravoltas da imaginação e do poder
descriti-vo do mestre inglês — isso, naturalmente, aliado ao máximo de correção
vernácula —, eis o nosso supremo objetivo na tradução da obra-prima de
Thomas Hardy.
O. F.
Primeira Parte
Em Marygreen
ESDRAS
I
NÃO OBSTANTE a sua constituição fraca, Judas Fawley levou os dois baldes
cheios de água até a choupana sem parar nem um momento para descansar. Na
porta, via-se um pequeno retângulo de cartão azul, no qual se lia, pintado em
letras amarelas: “Drusila Fawley, padeira”. Por detrás dos pequenos quadrados
de vidro cercados de chumbo — pois era uma das raras casas antigas da aldeia
— apareciam cinco bocais de bombons e três bolinhos num prato de flores.
Enquanto esvaziava os baldes atrás da casa, Judas podia ouvir uma conversa
entre sua tia-avó, a Drusila da tabuleta, e algumas outras moradoras da aldeia.
Tendo assistido à partida do professor, comentavam as peripécias do
acontecimento e abundavam em previsões sobre o futuro do viajante.
— E quem é este? — indagou uma delas, (mais ou menos uma estrangeira
em relação à aldeia) quando Judas entrou.
— Não é sem razão que a senhora o pergunta! É o meu sobrinho-neto,
chegado aqui depois que a senhora esteve, da última vez.
A dona da casa era uma mulher alta e magra que falava de modo trágico das
coisas as mais banais e se dirigia sucessivamente a cada um dos seus auditores.
— Veio de Mellstock, do sul do Wessex, há cerca de um ano — infelizmente
para ele, Belinda (disse virando-se para a direita), seu pai lá vivia. E lá viveu até
que foi acometido de tremores mortais e sucumbiu ao fim de dois dias, como
você bem sabe, Carolina (virando-se para a esquerda). Teria sido uma bênção
para esse pobre ser inútil, se Deus Todo-Poderoso o houvesse levado junto com o
pai e a mãe dele. Mas eu o trouxe para viver comigo, até resolver bem o que se
pode fazer dele. Naturalmente, vejo-me obrigada a fazer com que ganhe todo o
dinheiro que possa ganhar. Ainda agora, anda espantando pássaros por conta do
fazendeiro Troutham. Pelo menos, durante esse tempo, não faz tolices. Por que
você está nos dando as costas, Judas? — continuou ela, pois o menino, sentindo
todos aqueles olhares lançados sobre ele como bofetadas, voltara a cabeça para
trás.
A lavadeira replicou que talvez fosse uma esplêndida ideia da senhorita ou da
senhora Fawley (chamavam-na indiferentemente assim) guardar o menino com
ela “para lhe fazer companhia na sua solidão, buscar água no poço, fechar as
janelas à noite, ajudar a fazer o pão”.
A senhora Fawley duvidava que assim fosse.
— Por que você não pediu ao professor que te levasse para Christminster
para fazer de você um erudito? — prosseguiu ela, brincando em tom áspero. —
Melhor discípulo ele não poderia ter encontrado. O garoto tem loucura por livros!
Seguramente que o tem! E é coisa de família. Segundo me disseram, Sue, prima
dele, é igualzi-nha. Mas há anos que não vejo essa menina e, no entanto, ela aqui
nasceu, entre essas quatro paredes. Minha sobrinha e o marido, depois de
casados, não tiveram casa própria antes de um ou dois anos.
Além disso, eles não ficaram… Mas, na verdade, não vou contar toda essa
história! Judas, meu filho, não case nunca, você. Para um Fawley, não vale a
pena tentar. Essa menina, filha única, era como uma filha, para mim, Belinda,
até o dia da briga. Pobre pequena! Triste é que tenha assistido a tais mudanças!
Vendo que a atenção geral ia se concentrar nele, Judas saiu da padaria para
comer o bolo que sempre lhe davam pela manhã. Estava findo o seu momento
de folga. Escalando a grade do fundo do jardim, tomou a direção do norte e
chegou a uma depressão solitária que existia na parte plana da colina e onde se
havia semeado trigo.
Era ali que trabalhava para Troutham.
À sua volta, a massa escura do campo subia reta para o céu e se perdia na
névoa que escondia os seus bordos, reforçando assim a impressão de solidão. As
únicas coisas que rompiam a monotonia da paisagem eram uma meda da
colheita passada que se erguia nas terras aradas, as gralhas que levantavam voo à
sua aproximação e o caminho que vinha da aldeia. Por esse caminho, muitos dos
membros da sua família haviam transitado, mas as pessoas que agora o
trilhavam, Judas mal as conhecia.
— Como isso aqui é feio! — murmurou ele.
Os sulcos ainda frescos pareciam as raias de uma peça de belbutina nova e
davam à vasta extensão do campo um aspecto mes-quinhamente utilitário.
Estavam desaparecidos, agora, todos os acidentes do terreno. Nem mais o menor
vestígio de história, a não ser o dos últimos meses. No entanto, a cada torrão de
terra, a cada pedra, associavam-se inumeráveis recordações — ecos de cantigas
ouvidas durante as colheitas passadas, palavras ditas, fatos e gestos auda-ciosos.
Em cada polegada de terreno, quantas manifestações de energia ou de alegria,
quantos jogos brutais, quantas brigas não haviam tido lugar? Em cada metro
quadrado, grupos de respigadores se haviam encurvado sob o sol. Os casamentos
de amor que tinham povoado a aldeola vizinha, era ali que haviam sido ajustados,
entre a última foiçada e a recolha do trigo. Sob a cerca que separava o campo de
uma distante plantação, moças se haviam entregue a apaixonados que, na
colheita seguinte, nem mesmo tinham voltado a cabeça para olhá-las. No trigal,
mais de um homem havia feito juras de amor a uma mulher: na primavera
seguinte, depois do casamento, a voz dessa mesma mulher como não o tinha feito
estremecer pelo seu tom acre e autoritário! Mas, com tudo isso não se
preocupavam nem Judas nem as gralhas que o rodeavam. Viam apenas um
terreno vazio que, aos olhos do primeiro, possuía a qualidade de ser um bom
campo de trabalho e, aos das segundas, o de ser um bom celeiro de provisões.
O menino estava na meda de que falamos e, de dois em dois ou de três em
três segundos usava a sua matraca. A cada golpe, as gralhas cessavam de bicar o
trigo e alçavam voo lentamente, sacudindo as asas lustrosas como cotas de
malhas. Depois, davam voltas em torno dele, olhando-o com cautela, para pousar
a uma respeitosa distância e recomeçar a refeição.
Judas sacudiu a matraca até seu braço doer e, por fim, acabou sentindo no
coração uma grande simpatia pelos desejos contrariados dos pássaros. Parecia-
lhe que, tal como ele, as gralhas viviam num mundo hostil. Por que assustá-las?
Cada vez mais assumiam aos seus olhos a aparência de amigos, de protegidos —
os únicos amigos aos quais parecia inspirar um pouco de interesse, pois sua tia
frequentemente lhe havia dito que, a ela, ele não inspirava nenhum. Assim, parou
com o barulho e os pássaros voltaram ao solo.
“Queridos passarinhos” — disse Judas alto — “vocês hoje terão um jantar,
assim o quero eu. Aqui há bastante alimento para nós todos. O fazendeiro
Troutham pode bem suportar que eu dê um pouco a vocês. Comam, pois,
queridos passarinhos, e fartem-se!”
Quais pequenas manchas negras sobre a terra cinzenta, as gralhas realmente
comiam e Judas se alegrava com o apetite que demonstravam. Um mágico fio
de camaradagem unia-as a ele; suas vidas tristes e desprezíveis assemelhavam-
se muito à dele.
Judas acabou por jogar longe a matraca como um objeto vil e abjeto,
ofensivo para os pássaros e para ele próprio, posto que era amigo deles. De
súbito, porém, sentiu um violento puxão na sua calça, seguido de um forte
barulho que anunciou aos seus sentidos estupefatos que a matraca se tornara o
instrumento de agressão usado. Pássaros e Judas estremeceram ao mesmo
tempo, e os olhos esgazeados deste último reconheceram o fazendeiro, o grande
Troutham ele próprio, de faces avermelhadas luzindo diante dele e brandindo a
matraca.
— Com efeito! Realmente!: “Comam, meus queridos passarinhos!”. Espera
um pouco, vou esquentar o fundo das suas calças e vamos ver se você ainda diz:
“Comam, meus queridos passarinhos!”.
E você ficou vagabundando em casa do professor, em vez de vir para cá, não
foi? É assim que você ganha dinheiro espantando as gralhas?
Ao mesmo tempo que debitava essa retórica apaixonada às orelhas de Judas,
Troutham segurara a sua mão esquerda e, fazendo girar sobre si mesmo o
pequeno corpo débil, dava-lhe palmadas com a parte chata da matraca. E em
pouco ecoavam no campo os gritos do menino:
— Não faça, não faça por favor! — gritava ele, tão impotente diante dessa
impulsão centrífuga impressa ao seu corpo quanto um peixe suspenso num anzol
e balançado na extremidade da linha. Da posição em que estava, avistava a
colina, a meda, o campo, o caminho e as gralhas volteando por sobre ele num
terrificante voo circular — Eu… eu… eu pensei somente… havia tantos grãos no
campo… vi quando os semearam… que as gralhas podiam comer alguns… sem
que isso prejudicasse o senhor… e o professor Phillotson me recomendou que
fosse bom para os pássaros… Ai! Ai! Ai!
Esta explicação verídica pareceu exasperar o fazendeiro ainda mais do que
se Judas houvesse negado tudo com energia. Continuava a bater e a rodar o
menino no ar. O barulhos da matraca se propagavam através do campo até os
ouvidos dos camponeses dis-tanciados, de modo que estes deduziram que Judas
trabalhava com grande ardor. Chegava mesmo, através da névoa, até a torre da
igreja, recém-construída e para cuja edificação o fazendeiro contribuíra,
querendo assim testemunhar o seu amor por Deus e pelo próximo.
Por fim, Troutham se cansou de bater, colocou o menino no chão e deu-lhe o
salário do dia, dizendo-lhe que fosse para casa e nunca mais se deixasse ver em
qualquer uma de suas propriedades.
Judas tratou de se pôr fora do alcance de seus braços e tomou o caminho de
casa chorando — não de dor, embora estivesse sentindo muito as pancadas, nem
tampouco por ter descoberto uma brecha no sistema do universo: o que era bom
para os pássaros de Deus era mal para o seu jardineiro — mas pelo fato terrível
de se sentir desonrado antes de ter habitado a aldeia por um ano e de se ter
tornado um fardo, para a vida inteira, lançado sobre os ombros da tia.
Com esse peso na cabeça, naturalmente não pensava em aparecer na aldeia
e tomou um longo desvio, seguindo uma cerca elevada, através de um pasto. O
caminho estava semeado de minhocas enlaçadas, como era habitual naquela
época do ano. Era impossível avançar normalmente sem esmagá-las a cada
instante.
Embora o fazendeiro Troutham tivesse acabado de magoá-lo bastante, Judas
era um menino incapaz de ferir a quem quer que fosse.
Jamais trouxera para casa um ninho de passarinhos sem que o remorso o
tivesse mantido acordado parte da noite seguinte e frequentemente os recolocara
no lugar, na manhã subsequente. Não podia mesmo suportar que se desbastassem
árvores, pela suposição de que isso as fizesse sofrer. E o espetáculo da poda
tardia, quando a seiva subia e começava a transbordar, constituíra um verdadeiro
sofrimento para a sua infância. Essa possível fraqueza de caráter indicava nele
uma dessas espécies de homens que nasceram para suportar grandes sofrimentos
até que a queda da cortina, ao fim de suas inúteis vidas, lhes restituía a paz
perdida. E por isso é que ele andava cuidadosamente nas pontas dos pés por entre
as minhocas, sem esmagar nenhuma delas.
Ao entrar na choupana, encontrou sua tia vendendo dois pãezinhos a uma
menina. Quando esta saiu, ela perguntou:
— Bem, por que voltou você assim para junto de mim, no meio da manhã?
— Fui despedido.
— Como?!
— O senhor Troutham me despediu porque deixei as gralhas comerem
alguns grãos de trigo. E eis aqui o meu salário — o último que jamais receberei.
E, com ar trágico, atirou o dinheiro em cima da mesa.
— Ah! — disse a velha Fawley, com a respiração cortada. E, em seguida,
iniciou um sermão, declarando que não o iria suportar, durante toda a primavera,
sem ele estar fazendo nada. — Se você não consegue nem mesmo espantar
pássaros, para que serve você? E agora não me venha com essa cara! Afinal de
contas, o fazendeiro Troutham não vale mais do que eu. De qualquer modo, é
como Job disse: “Agora, os mais jovens que eu zombam de mim, mas eu não
teria permitido a seus pais tocarem sequer nos cães do meu rebanho”. O pai de
Troutham era empregado do meu e fui louca em deixar que você trabalhasse
para ele. O que eu queria, unicamente, era evitar que você fizesse tolices.
Mais zangada pelo fato de Judas a ter diminuído diante dos outros do que
propriamente pela falta cometida, ela o censurou primeiro sob aquele ângulo e só
depois abordou a falta moral:
— Não que você devesse deixar as gralhas comerem o trigo do fazendeiro
Troutham! Certamente você errou nisso; Judas, Judas, por que você não foi com
o seu professor para Christminster ou para qualquer outra parte? Mas não, pobre
desgraçado, ninguém nunca fez, nem nunca fará, nada de bom na tua família!
— Onde fica essa cidade tão bonita, esse lugar para onde o senhor Phillotson
foi? — perguntou o menino, depois de ter refletido em silêncio.
— Meu Deus, você devia saber onde Christminster fica! A umas vinte milhas
daqui. Mas, fique certo de que é um lugar bom demais para que lá você possa
fazer alguma coisa.
— E o professor Phillotson ficará lá sempre?
— Como é que eu posso saber?
— Não poderei ir vê-lo?
— Meu Deus, não! Vê-se bem que você não é daqui. Senão, jamais pediria
uma coisa dessas. Nunca tivemos nada a ver com o pessoal de Christminster,
nem eles nada conosco.
Judas saiu e, sentindo mais do que nunca a inutilidade da sua vida, deitou-se
de costas num monte de palha junto ao chiqueiro. A névoa se espessara e deixava
perceber, através dela, a forma do sol. O
menino abaixou sobre os olhos o chapéu de palha e, olhando pelos interstícios
a claridade esbranquiçada, começou a refletir. Considerou que a idade trazia
responsabilidades. Os acontecimentos não su-cediam exatamente como ele
imaginava. A lógica da natureza era, para ele, por demais horrível para que se
preocupasse com ela.
Essa ideia de que aquilo que é compaixão em relação a certas criaturas se
torna crueldade em relação a outras, essa ideia destruía nele qualquer sentimento
de harmonia. Percebia que, ao crescer, as pessoas se sentiam no centro da vida e
não mais sobre um ponto da circunferência, como quando eram pequenas. E isso
o fazia estremecer. À sua volta, parecia-lhe que existiam coisas brilhantes,
pomposas, ensurdecedoras. E esses resplendores e esses barulhos atingiam a
pequena célula que se chama a vida, sacudiam-na, queimavam-na.
Ao menos, se pudessem se impedir de crescer! Não queria ser um homem.
Por fim, como um menino que era, esqueceu a sua melancolia e, de um
salto, pôs-se de pé. Durante o resto da manhã, ajudou sua tia e, à tarde, não tendo
mais nada para fazer, foi à aldeia. Lá, perguntou a um homem de que lado
ficava Christminster.
— Christminster? Ora, fica para lá, mas eu, por mim, nunca lá estive. Nunca
tive nada que fazer em lugares desta espécie.
O homem indicava o nordeste, na direção mesmo em que ficava o campo no
qual Judas tinha ficado desacreditado. De início, a coincidência lhe pareceu
desagradável, mas o caráter terrificante dessa constatação só fez aumentar a sua
curiosidade pela cidade. O fazendeiro dissera que não tornasse a se deixar ver
naquele campo. Contudo, era por ali o caminho de Christminster e era uma via
pública.
Assim, deixando furtivamente a aldeia, Judas passou pelo mesmo lugar que
fora testemunho do seu castigo, não se afastando nem uma polegada do caminho.
Depois, do outro lado do campo, subiu a encosta íngreme e atingiu, perto de um
grupo de árvores, a estrada principal. Ali acabavam as terras aradas. E, diante
dele, estendia-se a planície nua, exposta a todos os ventos.
III
NEM UMA única alma nesse caminho principal, despido de qualquer cerca
de um lado e de outro: a estrada branca parecia subir e se es-treitar até atingir o
céu. No topo, um caminho cheio de erva cruzava-a em ângulo reto. Era a antiga
via romana que atravessava o dis-trito. Esta velha trilha corria de leste para oeste,
durante milhas e milhas, e tanto quanto a memória humana se recordava, havia
servido para a condução dos rebanhos ao mercado. Agora, porém, estava
abandonada e a erva do mato a invadira.
Nunca o menino se aventurara tão longe da pequena aldeia acolhedora onde,
alguns meses antes, o depositara, numa noite sombria, o correio de uma estação
vizinha. Até o presente momento, não suspeitara da existência daquela imensa
planície, vazia e nua, tão perto da sua região, cheia de elevações. Um grande
semicírculo se estendia diante dele, entre o leste e o oeste, numa vasta extensão
de quarenta a cinquenta milhas. Lá devia se encontrar, evidentemente, uma
atmosfera bem mais azul e úmida do que a que respirava.
Não muito longe da estrada, encontrava-se um celeiro de tijolos e telhas
vermelho-escuras, exposto à inclemência dos ventos. A gente do lugar o
chamava: a Casa Escura. Judas ia passar por ela, quando avistou uma escada
encostada à parede. A ideia de que, quanto mais alto estivesse, mais longe veria,
fez com que parasse e ficasse olhando a escada. No teto do celeiro, dois homens
consertavam as telhas.
O menino tomou um atalho e se aproximou do celeiro.
Depois de ter olhado com inveja os homens por algum tempo, tomou
coragem e subiu a escada até se aproximar deles.
— Vamos, menino, que é que você quer aqui?
— Eu queria saber onde é a cidade de Christminster, por favor.
— Christminster fica lá embaixo, perto daquele grupo de árvores. Você a
pode ver daqui — ou, pelo menos, num dia claro. Mas, não, agora é impossível.
O outro telhador, radiante com aquela diversão na monotonia do trabalho,
também se virara para olhar na direção indicada:
— Com um tempo desses, você não verá nada — disse ele. — Somente
quando o sol descia numa auréola de chamas foi que vi a cidade. E então ela se
assemelhava a… não sei bem o que…
— A uma Jerusalém celeste — sugeriu o menino num tom sério.
— Sim. Mas, eu nunca teria pensado nisso sozinho… Hoje, po-rém, não vejo
nada de Christminster.
Judas esbugalhou os olhos também, igualmente sem nada conseguir ver da
longínqua cidade. Desceu da escada e, renunciando a Christminster com a
versatilidade da sua idade, prosseguiu pelo caminho, procurando o que poderia
encontrar de interessante.
Quando tornou a passar pelo celeiro, na sua volta para Mary green, observou
que a escada continuava no mesmo lugar, mas que os homens, tendo terminado o
trabalho, haviam partido.
O dia declinava. Ainda havia névoa, porém clareava um pouco, exceto nas
regiões mais úmidas da vizinhança e ao longo dos córregos. Judas pensou de novo
em Christminster e desejou, já que se afastara duas ou três milhas da casa da tia
com essa intenção, ter visto logo de uma vez a tão atrativa cidade de que lhe
haviam falado.
Contudo, mesmo que esperasse ali, era pouco provável que a atmosfera
clareasse antes da queda da noite. Mas não conseguia se decidir a deixar aquele
lugar, pois, bastava que se afastasse algumas centenas de metros para que toda a
planície ficasse fora do alcance de sua vista.
Tornou a subir na escada para lançar um olhar sobre o luar que os homens
haviam designado e empoleirou-se no último degrau, inclinado sobre as telhas.
Provavelmente, não poderia voltar àquela altura por vários dias. Talvez, se
rezasse, o seu desejo de ver Christminster viesse a ser satisfeito. Ouvira dizer que,
algumas vezes, as orações eram atendidas, mas que, certas vezes também, não o
eram. Lera numa pequena brochura que um homem que começara a construir
uma igreja e se vira sem dinheiro para terminá-la, se ajoelhara para rezar e,
pelo correio seguinte, chegara o dinheiro. Um outro, em circunstâncias idênticas,
fora menos feliz, mas logo descobrira que as calças que usava, quando se
ajoelhara, haviam sido feitas por um judeu malvado. Nada disso era
desacorçoador. Portanto, valendo-se da escada, ajoelhou-se no terceiro degrau e,
apoiando-se nos degraus superiores, rezou para que a névoa se dissipasse.
Em seguida, sentou-se de novo e esperou. Ao fim de mais ou menos dez ou
quinze minutos, a névoa se espessou no horizonte, a leste, do mesmo modo como
já havia acontecido por toda parte. Aproximadamente um quarto de hora antes
do pôr do sol, as nuvens se afastaram a oeste, deixando ver o sol cujos raios
fulgiram entre duas nuvens cor de ardósia. Judas olhou imediatamente na direção
de Christminster.
Lá no fim da extensão dos campos, alguns pontos luminosos res-plandeciam
como topázios. A transparência do ar aumentava a cada instantes e logo os
topázios se transformaram em cataventos, janelas, tetos, pontos brilhantes nas
torres, cúpulas, casas de pedra e outras silhuetas que vagamente se adivinhavam.
Sem nenhuma dúvi-da, era Christminster — a cidade ela própria, ou uma
miragem refletida naquela estranha atmosfera.
O nosso espectador ficou mergulhado nessa contemplação até que as janelas
e os cataventos deixaram de brilhar, extinguindo-se quase que de súbito, como
velas que tivessem sido apagadas. A vaga aparição se envolveu em bruma.
Voltando-se para o oeste, o menino percebeu que o sol caíra. Os primeiros planos
da paisagem haviam se tornado de uma obscuridade fúnebre e os objetos
próximos assumiam tons e formas quiméricas.
Judas desceu da escada cheio de ansiedade e tomou o caminho de casa
correndo, esforçando-se para não pensar em gigantes, em Hermes, o caçador,
em Apolly on estendido no chão à espera de 31
Christiano, ou no capitão de fronte ensanguentada, rodeado de cadáveres que,
todas as noites, se amotinam a bordo do navio enfeitiçado.
Sabia bem que já tinha deixado de acreditar em todos aqueles horrores e, no
entanto, sentiu-se aliviado quando avistou a torre da igreja e as luzes nas janelas
das choupanas, muito embora não se tratasse da sua terra natal nem sua tia se
importasse muito com ele.
Foi ao redor dessa “loja” da velha Vawley, por detrás daqueles vinte e quatro
quadrados de vidro cercados de chumbo (alguns deles tão oxidados pelo tempo
que se podia apenas distinguir, no interior, os artigos de qualidade muito ordinária
e tão numerosos que um homem de certa força bastaria para carregá-los) que
Judas viveu a sua vida interior durante um longo e monótono espaço de tempo.
Mas seus sonhos eram tão gigantescos quanto era pequeno aquilo que o
rodeava.
Atrás da sólida barreira de colinas que o separava do norte, parecia ver
sempre uma cidade maravilhosa — aquela da qual fazia, em espírito, uma nova
Jerusalém. Contudo, ao contrário do autor do Apocalipse, sua imaginação era
mais a de um pintor que a de um mercador de diamantes. E a cidade se tornou
uma coisa tan-gível, permanente, influente na sua vida, principalmente por-que
lá morava o homem cuja ciência e cujos projetos tanto respeito lhe ins-piravam.
E também porque lá vivia rodeado pelos mais brilhantes e profundos pensadores.
Nas estações tristes e úmidas, devia também chover em Christminster. Mas
dificilmente Judas podia acreditar que chovesse tão lugubremente como ali em
Mary green. Sempre que podia se afastar da aldeia por uma hora ou duas, o que
não acontecia muito frequentemente, corria para a Casa Escura e lá escancarava
os olhos re-nitentemente. Algumas vezes com a recompensa da vista de uma
cúpula ou de um campanário, outras com a de uma leve fumaça que tinha, aos
seus olhos, o valor místico do incenso.
E, enfim, um dia chegou em que lhe veio subitamente a ideia de que, se
subisse ao seu posto de observação depois da caída da noite ou, possivelmente, se
fosse uma ou duas milhas mais adiante, veria as luzes noturnas da cidade. Teria
de voltar só, mas essa consideração não o deteve, pois por certo era capaz de
mostrar uma atitude viril.
Este projeto foi devidamente executado. Ainda não era tarde quando chegou
ao seu posto, exatamente depois do crepúsculo. Mas o céu, muito negro na
direção do nordeste, de onde soprava um vento frio, dava ao todo um aspecto
suficientemente escuro. Foi recom-pensado, mas não viu, como esperava,
lâmpadas em fila. Não se distinguia nenhuma luz individual, apenas um halo,
uma névoa luminosa, uma abóboda clara num céu sombrio, e a cidade só
parecia distar dali mais ou menos uma milha.
Judas se perguntava em que ponto exato dessa luminosidade poderia estar o
professor — ele que não tinha mais comunicação com ninguém em Mary green,
ele que era agora como um morto para eles todos. Parecia-lhe estar vendo
Phillotson passear à vontade pela névoa luminosa como uma sombra na fornalha
de Nabucodonosor.
Aprendera que o vento caminha com uma velocidade de dez milhas por hora
e isso lhe veio então ao espírito. Entreabriu os lábios, voltando-se para o nordeste
e aspirou a brisa como se fosse um esplêndido licor.
“Você” — dizia ele se dirigindo à brisa em tom acariciante — “você esteve
na cidade de Christminster há uma hora ou duas, você correu pelas ruas fazendo
girar as ventoinhas, tocando a face do professor Phillotson, você foi respirada por
ele e, agora, está aqui, respirada por mim — e você é absolutamente a mesma.”
De súbito alguma coisa chegou até ele, trazida pelo vento — uma mensagem
da cidade, de alguma das almas que lá deviam residir.
Seguramente era a voz dos sinos — a voz da cidade, fraca e musical, que lhe
gritava: “Aqui, nós somos felizes!”.
Judas perdera completamente o sentido da realidade durante essa espécie de
êxtase e só voltou a si graças a uma brusca chamada.
Alguns metros abaixo do alto da colina onde parara, apareceu uma parelha
de cavalos atrelados. Os animais haviam subido durante uma meia hora, por uma
série de caminhos que serpenteavam, desde a base da imensa declividade.
Puxavam um carregamento de carvão — combustível que só por aquele único
caminho podia chegar àquelas paragens. Ao lado deles, caminhava o carreiro,
um outro homem e um menino que estava agora empurrando com o pé uma
pedra enorme para calçar as rodas, de modo a permitir aos animais estafados
um longo repouso. Enquanto isso, os homens tiraram do carro uma garrafa e
começaram a beber.
Eram homens de idade, com vozes sonoras. Judas se dirigiu a eles, indagando
se vinham de Christminster.
— Com uma carga dessas, Deus nos livre disso! — disseram eles.
— A cidade de que falo é aquela que se avista lá embaixo.
Judas estava se tornando tão romanticamente enamorado de Christminster
que, tal como um jovem apaixonado que alude à sua amada, se sentiu
envergonhado ao mencionar mais uma vez o seu nome. Indicou a luminosidade
no céu — apenas visível para os olhos deles mais idosos.
— Sim. Parece bem que há um ponto mais brilhante nessa dire-
ção. Mas, por mim mesmo, não o teria notado. Certamente deve ser
Christminster.
Nesse momento, um pequeno livro de contos que Judas trouxera consigo,
debaixo do braço, para ler pelo caminho, antes do entardecer, escorregou e caiu
no chão. O carreiro observou o menino enquanto o apanhava e endireitava as
páginas amassadas.
— Ah, meu menino, será preciso virarem a sua cabeça de trás para diante,
antes que você possa ler os livros que eles leem lá.
— Por quê? — indagou Judas.
— Ora, porque não leem nunca nada do que as pessoas como nós podem
compreender — continuou o carreiro para encher o tempo. —
Unicamente línguas estrangeiras de antes do Dilúvio, quando não havia duas
famílias que falassem a mesma. E leem esse gênero de coisas com a mesma
rapidez com que voa um corvo noturno. Lá tudo é ciência — e nada a não ser
ciência, com exceção da religião. E também esta é uma ciência, pois não pude
nunca compreender nada a respeito dela. Sim, seguramente é uma cidade
austera. Não que não se encontrem mulheres nas ruas, à noite… Por certo você
não ignora que lá eles educam pastores do mesmo modo como se criam rabane-
tes numa horta, não? E ainda que se consumam — quantos anos, Bob? — cinco
anos para transformar um pesadão e gaguejante campônio num solene pregador,
sem pecados nem paixões, eles o conseguem, quando é possível conseguir. Eles
são bem polidos, como bons operários que são, e mandam-no de volta com o
rosto comprido, vestido com um grande casaco e um colete pretos, chapéu e
colarinho de padres, exatamente como era de costume usar no tempo das
Escrituras. Assim vestidos, nem sempre suas mães os reconheceriam. Mas esse é
o ofício deles, e cada um tem o seu.
— Mas, como é que o senhor sabe disso?
— Vamos, não me interrompa, menino! Nunca interrompa um mais velho.
— Bob, empurra o cavalo da frente, alguém está chegando. — Lembre-se que
estou falando da vida nos colégios. Vivem num nível superior, não há como
negar, ainda que, pessoalmente, não faça muito caso disso. Do mesmo modo
como nós aqui estamos num terreno elevado, assim está o espírito deles lá —
espíritos sem dúvida muito elevados — alguns deles — capazes de ganhar
fortunas, só pensando alto. E outros são sujeitos fortes e moços que podem
ganhar quase tanto quanto o produto da venda das taças de prata que recebem
como prêmio. E quanto à música, há linda música, e por toda parte, em
Christminster. Você pode ser religioso ou não, mas o que não pode é deixar de
juntar sua voz à deles. E há uma rua lá — a rua principal — que não tem igual
em nenhuma parte do mundo. Como você vê, sei bastante coisas sobre
Christminster!
Enquanto isso, os cavalos haviam descansado e puxavam de novo seus
arreios. Lançando um último olhar de admiração para o halo longínquo, Judas se
pôs a caminhar ao lado daquele amigo tão conhecedor do assunto que não fez
nenhuma objeção, enquanto andavam, em informá-lo sobre a cidade, suas
torres, colégios e igrejas. O carro virou num atalho. Então Judas agradeceu
calorosamente ao carreiro suas palavras, dizendo-lhe que desejava apenas poder
falar de Christminster com metade do acerto com que ele falara.
— Na verdade, foi somente o que me contaram — respondeu modestamente
o carreiro. — Nunca estive lá, exatamente como você.
Mas, aqui e ali, ouvi muitas coisas e fico muito contente que você se aproveite
delas. Quando se gira pelo mundo como eu, a gente se mistura com todas as
classes e aprende-se muito. Um amigo meu limpava sapatos no hotel Crozier, em
Christminster. Pois bem, conheci-o na sua velhice tão bem quanto meu próprio
irmão.
Judas seguiu sozinho, tão profundamente absorto na sua reflexão que
esqueceu de sentir medo. Sentia-se subitamente mais velho. De todo o seu
coração aspirava encontrar alguma coisa na qual pudesse se apoiar, se agarrar
— alguma coisa que pudesse considerar admirável.
Encontrá-lo-ia nessa cidade, se lá conseguisse chegar? Poderia então, sem o
temor dos fazendeiros, sem obstáculos, sem ridículos, observar, esperar, e depois
se lançar nalguma grande empresa, como os homens de outrora de que ouvira
falar? Tal como o halo luminoso que contemplara uma hora antes, agora a cidade
resplandecia no seu espírito, enquanto caminhava pela estrada escura.
“É uma cidade de luz” — dizia ele a si próprio.
“Lá a árvore da ciência cresce” — acrescentou, passos adiante.
“É de lá que vêm os que dirigem os homens e é para lá que eles vão.”
“É o que se poderia chamar um castelo forte guardado pela ciência e pela
religião.”
Depois dessa imagem, Judas ficou um momento silencioso e, por fim,
acrescentou:
“É justamente o que me convém”.
IV
NO DIA seguinte, um domingo, Arabela retomou o trabalho por volta das dez
horas e, lembrando-se da conversa da véspera, voltou-lhe o mesmo humor
intratável.
“Deve-se estar dizendo, em Mary green, que peguei você no meu laço.
Grande presa você era, na verdade!” Tendo-se excitado com esses pensamentos,
Arabela viu alguns dos clássicos muito queridos de Judas sobre uma mesa onde
não deviam estar. “Não quero ver livros fora do lugar!”, exclamou com
impaciência e, tomando-os um por um, atirou-os ao chão.
— Deixa meus livros quietos! — disse Judas. — Você poderia tê-los afastado,
se assim quisesse, mas é vergonhoso sujá-los desse modo!
Ao fazer derreter a banha do porco, as mãos de Arabela se haviam
impregnado de gordura quente, de modo que seus dedos tinham deixado marcas
insofismáveis sobre as capas dos livros. No entanto, continuou a atirá-los
deliberadamente ao chão, até o momento em que Judas, exasperado, agarrou-a
pelo braço para que ces-sasse. Assim fazendo, prendeu seus cabelos que se
desmancharam e caíram sobre as orelhas.
— Deixe-me! — gritou ela.
— Prometa, então, não tocar mais nos livros. Arabela hesitava.
— Deixe-me! — repetiu.
— Promete?
Depois de um instante, Arabela exclamou:
— Prometo.
Judas a soltou. Então, com expressão decidida, Arabela atravessou o quarto,
saiu pela porta e ganhou a estrada. Aí, caminhou lentamente, indo numa direção
e noutra, embaraçando perversamente os cabelos e arrancando diversos botões
do vestido. Era uma bela manhã de domingo, clara, seca e fria. A brisa vinha do
norte. Ouviam-se os sinos de Alfredston. Pessoas passeavam pelo caminho —
principalmente namorados, como acontcera a Judas e a Arabela, meses
antes, quando trilhavam a mesma estrada. Essas pessoas se voltavam para
contemplar o espetáculo extraordinário que Arabela estava lhes oferecendo, com
a cabeça ao vento, os cabelos desgrenhados, a blusa aberta, as mangas dobradas
acima dos cotovelos e as mãos repelen-tes, em consequência das nódoas de
gordura derretida. Uma dessas exclamou, simulando horror:
— Que o Senhor nos proteja!
— Veja como ele me trata!, gritou Arabela. — Obriga-me a trabalhar no
domingo de manhã, quando eu devia estar na igreja, arranca meus cabelos e
rasga meu vestido!
Judas ficara exasperado e logo saíra para obrigá-la a voltar para a casa. No
entanto, de súbito se acalmou. Iluminado pela impressão de que tudo estava
acabado entre eles, de que pouco importava o que ele ou ela acaso pudessem
fazer, ficou tranquilo, olhando-a.
Suas vidas — pensou ele — estavam estragadas. Estragadas pelo erro básico
da união matrimonial que haviam contraído. Estragadas pelo fato de terem
baseado um contrato permanente sobre um sentimento que não tinha nenhuma
relação com as afinidades que, somente elas, tornam tolerável a vida em
comum.
— Você vai me maltratar por princípio, como seu pai maltratou sua mãe e a
irmã de seu pai ao marido dela? — perguntou Arabela. — Vocês são todos
maridos estranhos.
Judas fixou Arabela com olhar surpreso. Mas Arabela não disse mais nada e
só cessou de se agitar quando se sentiu cansada. Judas a deixou e, depois de ter
andado ao caso, partiu na direção de Mary green. Aí, foi procurar sua tia-avó,
cujas enfermidades aumen-tavam a cada dia.
— Minha tia, é verdade que meu pai maltratou minha mãe e minha tia ao
marido? — perguntou bruscamente, sentando-se ao pé da lareira.
Ela ergueu seus olhos cansados de debaixo do gorro antiquado que continuava
a usar e perguntou:
— Quem disse isso a você?
— Ouvi dizer e quero saber de tudo.
— É o seu direito, creio eu. Mas sua mulher — e tenho certeza que foi ela —
foi uma idiota de ter falado nisso! Afinal, não há grande coisa a contar. Seu pai e
sua mãe não se entendiam bem e se separaram. Foi de volta do mercado de
Alfredston — você nessa época era um bebê —, na colina, perto do celeiro da
Casa Escura, que tiveram a última briga e se separaram de uma vez. Sua mãe
morreu pouco depois. Em poucas palavras: ela se afogou e seu pai partiu com
você para o sul do Wessex, nunca mais tendo voltado aqui.
Judas se lembrou do silêncio do pai sobre o Wessex setentrional e sobre sua
mãe. Até o dia de sua morte, nunca falara nem de um nem de outro.
— Sucedeu o mesmo com a irmã de seu pai. O marido a ofendeu e, depois
disso, foi-lhe tão penoso viver com ele que partiu para Londres com a criancinha
que tinham. Os Fawley não nasceram para o casamento. Conosco, nunca dá
certo. Há qualquer coisa no nosso sangue que não aceita fazer por obrigação o
que livremente faríamos de boa vontade. Eis por que você deveria ter me
escutado e não ter se casado.
— Onde foi que meu pai e minha mãe se separaram? Perto da Casa Escura,
não foi?
— Um pouco mais longe, ali onde o caminho de Fensworth bifurca, perto de
um poste informativo. Antigamente, havia uma forca nesse lugar.
No crepúsculo dessa noite, Judas saiu da casa de sua tia-avó como se fosse
para casa. Mas, assim que chegou às dunas, tomou a direção de um grande
tanque circular. Continuava a gelar, ainda que menos intensamente, e acima de
sua cabeça surgiam estrelas grandes e luzentes. Pôs um pé, depois o outro, sobre
o gelo que rachou com o seu peso, continuando a caminhar até o centro, não
obstante o barulho seco do gelo que rachava. Chegando o meio do tanque, olhou
em torno e, depois, saltou. Novas rachas se produziram. Contudo, o gelo não
cedeu. Tornou a pular, sem que nenhuma racha se produzisse.
Então, voltou para a borda do tanque e subiu a ribanceira.
Estranho, pensou ele. Que lhe reservava o destino? Acreditava não ser uma
pessoa suficientemente importante para se suicidar. A morte liberadora não o
queria como súdito. Não o levaria consigo.
Que poderia fazer de mais baixo? Que existiria de menos nobre, de mais
adequado à sua situação degradante? Poderia se embebedar.
Evidentemente, era a solução e ainda não pensara nisso! Beber era o recurso
normal, estereotipado, dos seres indignos e desesperados. Co-meçava a
compreender por que homens iam se embebedar nos cabarets.
Descendo a colina na direção do norte, chegou a uma estalagem humilde.
Entrou e, vendo numa parede a imagem de Sansão e Dalila, reconheceu o lugar
onde estivera com Arabela no dia do primeiro encontro. Tomou um licor
bebendo por mais de uma hora.
Nessa noite, voltou para casa cambaleando. Liberto do seu sentimento de
depressão e com a cabeça bastante livre, pôs-se a rir rui-dosamente, imaginando
como Arabela o receberia debaixo daquele novo aspecto. Quando chegou, a casa
estava imersa na obscuridade.
E, dado o seu estado, precisou de um certo tempo para arranjar luz.
O quarto fora limpo, restando apenas alguns sinais de gordura. Um envelope
velho, sobre o qual Arabela escrevera algumas palavras, estava pregado por um
alfinete no assoprador da lareira. Leu: “Fui ter com meus amigos. Não voltarei”.
No dia seguinte, não saiu de casa e mandou a carcaça do porco para
Alfredston. Em seguida, arrumou a casa, fechou a porta, pôs a chave num lugar
onde Arabela a pudesse encontrar, se voltasse, e, depois, foi para a sua alvenaria,
em Alfredston.
À noite, ao voltar, percebeu que Arabela não entrara em casa. E assim
aconteceu no dia seguinte. E no outro também. Depois, chegou uma carta de
Arabela
Que se cansara dele, Arabela o admitia francamente. Ele era um atrasadão e
ela não queria saber do gênero de vida de que ele gostava. Nem havia
possibilidade de melhoria, nem para ele nem para ela, na vida que levavam.
Acrescentava ainda que seus pais, tal como Judas devia saber, desde algum
tempo acariciavam o projeto de emi-grar para a Austrália, a criação de porcos
não oferecendo mais senão medíocres resultados. Tinham enfim se decidido a
partir. E ela se propunha acompanhá-los, caso Judas não visse nenhum
inconveniente nisso. Uma mulher como ela teria maiores possibilidades lá do que
naquela região estúpida.
Judas respondeu que não fazia a menor objeção. Achava mesmo que era
uma resolução muito boa, já que ela desejava partir e que disso poderiam advir
vantagens para ambos. Juntava à carta o dinheiro proveniente da venda do porco,
acrescido de tudo quanto possuía, o que, aliás, não era muito.
Desde esse dia, não soube mais nada acerca de Arabela, a não ser
indiretamente. Seu pai e os comensais de casa não partiram imediatamente,
esperando a venda dos bens que possuíam. Quando Judas soube que iria haver
leilão em casa dos Donn, empacotou tudo o que tinha em casa, e enviou-o a
Arabela, para que o juntasse ao resto dos bens da família Donn.
Em seguida, alugou um quarto em Alfredston. Um dia, numa vitrina, viu o
anúncio da venda dos bens do seu sogro. Tomou nota da data. Contudo, ela
chegou e passou sem que se aproximasse do local indicado e sem que notasse
que o tráfego, ao sul de Alfredston, aumentara por causa do leilão. Alguns dias
mais tarde, entrou numa loja de antiguidades na rua principal da cidade e, de
permeio com uma série de caçarolas, cavaletes, candelabros de cobre, espelhos
e outros objetos, evidentemente provenientes de um leilão, deparou com uma
pequena fotografia enquadrada, que não era outra senão o seu próprio retrato.
Oferecera essa fotografia a Arabela no dia em que se haviam casado. Fora
tirada por um fotógrafo local e por ele mesmo enquadrada em madeira de ácer.
Nas costas, ainda se podia ler: “Judas a Arabela”, com a data. Arabela devia tê-
la juntado ao resto dos objetos do leilão.
— Ó — disse o antiquário, ao vê-lo apanhar o quadro, e sem perceber que
era o seu retrato. — É um lote de velharias que me coube num leilão que teve
lugar lá para os lados de Mary green. O quadro pode ser bem útil, se o senhor
tirar a fotografia. Por um xelim, pode levá-lo.
A morte completa de toda e qualquer ternura, por parte de sua mulher,
materializada aos seus olhos naquela prova muda e involuntária, foi o pequeno
golpe decisivo que aboliu em Judas qualquer vestígio de sentimento. Pagou o
xelim, levou consigo a fotografia e queimou-a, junto com o quadro, quando
chegou em casa.
Dois ou três dias mais tarde, soube que Arabela e seu pais haviam partido.
Escrevera, oferecendo-lhe um encontro para um adeus de pura forma, porém
Arabela respondera dizendo que não valia a pena, uma vez que estava decidida a
partir.
Na noite do dia seguinte ao da partida dos Donn, Judas saiu depois do jantar e
errou, à luz das estrelas, ao longo da estrada tão familiar em direção à colina
onde passara pelas maiores emoções de sua vida. Parecia-lhe que o lugar voltara
a ser seu.
Perdendo consciência de si mesmo, acreditava-se ainda um meninote,
apenas um dia mais velho do que quando sonhara no topo da colina, abrasado
pela primeira vez pela ideia de Christminster e da ciência. “No entanto, sou um
homem” — pensava ele. — “Tenho uma mulher. Fui mais longe mesmo: não
estou mais de acordo com ela, brigamos e nos separamos.”
Lembrou-se então que não era muito longe dali o lugar onde se dizia que tinha
ocorrido a separação entre seu pai e sua mãe.
Um pouco abaixo, ficava o ponto culminante de onde Christminster, ou aquilo
que tomara pela cidade, se tornara visível.
Agora como antes, um marco existia no bordo do caminho. Judas se
aproximou dele e sentiu pelo tato, mais do que leu, a distância em milhas dali à
cidade. Lembrou-se que, uma vez, ao voltar para casa, orgulhosamente gravara,
com o seu cinzel novo, uma inscrição na parte detrás do marco, materializando
suas aspirações. Fora durante o seu primeiro ano de aprendizagem, antes de ter
sido desviado do seu ideal por uma mulher que não lhe convinha. Judas se
perguntou se a inscrição ainda seria visível e, passando por detrás da pedra,
afastou a urtigas. À luz de um fósforo, pôde distinguir o que tão entusiasticamente
gravara tanto tempo antes.
PARA ALI
J. F.
Em Christminster
OVÍDIO
I
AS ÁRVORES tinham mudado três vezes de folhas desde que Judas rompera
a sua grosseira e vulgar vida conjugal. Entrava ele então numa nova fase de sua
existência e, naquela noite, caminhava numa paisagem crepuscular em direção à
cidade de Christminster, distante, para o sudoeste, de uma ou duas milhas.
Livrara-se enfim de Mary green e de Alfredston. Tendo terminado seu
aprendizado, as ferramentas sobre os ombros, parecia bem preparado para essa
partida que esperava há dez anos, descontado o tempo durante o qual privara
com Arabela e vivera casado com ela.
Judas era agora um jovem de fisionomia enérgica, meditativa e séria, muito
antes do que bela. Tinha uma tez morena com a qual se harmonizavam bem seus
olhos negros. Usava uma barba bem-cuidada, mais longa do que comumente se
usava na sua idade, e espessos cabelos crespos que tinha grande dificuldade de
lavar e pentear, devido à poeira de pedra que, durante o trabalho, neles se
depositava.
Em Alfredston, tinham-lhe ensinado tanto a talhar pedras de monumentos
como a restaurar igrejas góticas ou a fazer qualquer trabalho de escultura. Em
Londres, provavelmente se teria especializado mais, chegando mesmo a
“estatuário”.
Naquela tarde, viera de carro de Alfredston até a aldeia mais próxima de
Christminster e percorria agora a pé as duas milhas que faltavam, antes por gosto
do que por necessidade. Sempre se imaginara chegando daquele modo na
cidade.
O último impulso que o decidira a vir tivera uma origem curiosa — mais
próxima do lado emotivo da sua natureza do que do lado intelectual, como sucede
frequentemente com os moços. Um dia que, de Alfredston, fora visitar sua tia-
avó em Mary green, notara, entre os candelabros de cobre da lareira, a fotografia
de uma moça com um grande chapéu que lhe fazia como que um halo à volta da
cabeça.
Perguntara quem era. A tia-avó lhe respondera, em tom brusco, que era sua
prima, Sue Bridehead, pertencente ao ramo inimigo da família. Depois de novas
perguntas, a velha acrescentara que a moça habitava Christminster. Não sabia
onde, nem o que estava fazendo.
A tia-avó não lhe quisera dar a fotografia. Ficara porém obceca-do por ela. E,
mais tarde, foi este um dos elementos que o impeliram a realizar o seu desejo
latente de ir ao encontro do professor Phillotson, seu amigo.
Estava agora parado, no aldo de um declive, e pela primeira vez contemplava
Christminster de perto. Ficava bem próximo da fron-teira do Wessex — dir-se-ia
quase mesmo que, nele, só pusera a ponta do dedo do pé —, no ponto mais
setentrional da imensa linha segundo a qual o Tâmisa, preguiçoso, acaricia os
campos daquele antigo reino. Os edifícios de pedra escura, com seus tetos
sombrios, descan-savam tranquilamente ao pôr-do-sol. Aqui e ali, um catavento
brilhava como uma centelha.
Judas desceu a planície e avançou entre salgueiros-chorões que se
projetavam sobre o crepúsculo. Em pouco, atingiu as primeiras luzes da cidade
— luzes que lançavam no céu o brilho glorioso que contemplara tantos anos
antes, nos seus dias de sonho. Com seus olhos amarelos, piscavam para ele em
tom de dúvida, como se, depois de tê-lo esperado tanto tempo, não o quisessem
mais agora, desapontadas pelo seu atraso.
Era como uma espécie de Dick Wittington, o espírito voltado para um
objetivo mais nobre do que o simples lucro material, e seguia as primeiras ruas
da cidade com o passo circunspecto de um explorador. Da verdadeira cidade,
nada viu nesse lado dos subúrbios.
Como, antes de mais nada, precisava de um quarto, examinou
cuidadosamente todos os lugares onde pensava poder encontrar, a preço módico,
um alojamento modesto. Depois de indagar muito, alugou um quarto num
subúrbio apelidado “Beersheba”, muito embora, nesse momento, ainda ignorasse
o apelido. Instalou-se, tomou uma xícara de chá e voltou para a rua.
Era uma noite sem lua, ventosa e cheia de murmúrios. Para encontrar o
caminho, abriu debaixo de um lampião o plano da cidade que trouxera consigo. A
brisa dificultava a consulta do mapa, mas Judas pôde ver o bastante para achar a
direção que o devia levar ao coração da cidade.
Depois de dar muitas voltas, chegou frente a um primeiro edifício gótico.
Através da grade, pôde adivinhar que se tratava de um colégio. Entrou, fez-lhe a
volta e penetrou nos recantos mais escuros, indevassados pela luz. Pegado a esse
colégio, encontrava-se outro. E, um pouco mais longe, ainda outro. Então, Judas
começou a se sentir rodeado por todos os lados pelo sopro e pelo espírito da
venerável cidade. Quando encontrava objetos em desarmonia com a sua
expressão geral, obrigava os olhos a passar por sobre eles como se não os visse.
Um sino começou a tocar, e Judas o escutou até que cento e uma badaladas
foram dadas. Devia ter-se enganado — pensou ele. — Deviam ter sido cem
badaladas.
Quando as grades se fecharam e não pôde mais penetrar nos pátios, errou ao
longo dos muros e das portas, apalpando com os dedos ornamentos e estátuas. Os
minutos passavam, o número dos transeuntes diminuía e ele continuava a vagar
entre as sombras. Não imaginara aquelas mesmas cenas durante os dez anos que
haviam transcorrido? Assim, que importava o repouso de uma noite? Ao longo de
alamedas obscuras, aparentemente não transitadas, no presente, por passos
humanos, e cuja existência parecia até mesmo esquecida, emergiam pórticos,
ogivas, entradas de portas de um góti-co rico e florido. E era a deterioração de
pedra que acentuava neles o caráter de antiguidade. Parecia impossível que o
pensamento moderno se abrigasse em tão velhas e decrépitas moradas.
Não conhecendo nenhum ser humano naquele lugar, Judas co-meçava a se
sentir impressionado pelo isolamento da sua própria pessoa, como se ela fosse o
seu espectro. Tinha a impressão de que andava, mas não conseguia se fazer ver
nem ouvir. Tomou uma respiração longa e, crendo-se quase um fantasma,
evocou os outros espectros que frequentavam aqueles recantos.
No espaço de tempo durante o qual preparara a sua vinda para Christminster,
em seguida à partida de Arabela, lera e aprendera quase tudo o que lhe fora
possível ler e aprender sobre os grandes homens que haviam passado suas
mocidades entre aqueles muros veneráveis e cujas almas os haviam visitado
com frequência na época da maturidade.
Alguns deles, mercê de casualidades de leituras, surgiram na sua imaginação
desmesuradamente grandes em relação aos demais.
Agora as ruas estavam desertas. Mas, devido àquelas presenças invisíveis,
Judas não podia voltar para casa. Poetas antigos e modernos erravam pela
atmosfera, desde o amigo e panegirista de Shakespeare até aquele que há pouco
passara ao silêncio e aquele músico que ainda vive entre nós. Filósofos o
rodeavam — e não filósofos carcomidos, de cabelos brancos, como nos retratos
enquadrados, mas filósofos saudáveis, esbeltos e ágeis como no tempo em que
eram moços. E, também, padres modernos com suas sobrepelizes — entre eles
os mais reais, para Judas, eram os fundadores da seita chamada Puseista ou
Tractariana. E ainda, o trio tão conhecido: o entusiasta, o poeta e o formalista,
cujos ecos de ensino o haviam influen-ciado na sua obscura morada. Parecia à
imaginação de Judas que um sobressalto de indignação o acometia à vista desses
outros filhos da cidade: o personagem de cabeleira postiça, o homem de estado
liber-tino, raciocinador e cético, o historiador de barba feita e tão irônico na sua
polidez em relação ao cristianismo. Outros ainda, com o mesmo temperamento
incrédulo, que conheciam cada claustro tão bem quanto os fiéis e tomavam
também a liberdade de mal-assombrá-los.
Judas contemplava os homens de estado nos seus diversos tipos, homens de
movimentos firmes e de aparência pouco sonhadora; contemplava o sábio, o
orador, o homem cujo espírito se alarga com os anos e aquele cujo espírito segue
o desenvolvimento inverso.
No seu espírito, seguiam-se os cientistas e os filósofos numa combinação
estranha e impossível — homens de fisionomias pensativas, de frontes enrugadas,
de olhos enfraquecidos, como os dos morcegos, em consequência de
intermináveis buscas; governadores gerais e vice-reis aos quais dedicava pouco
interesse; presidentes de tribunais, grandes chanceleres, vultos silenciosos de
lábios finos e dos quais apenas sabia os nomes. Dedicava um olhar mais atento
aos prelados, em virtude de suas esperanças passadas. Deles, conhecia um
grande grupo — alguns homens de coração e outros, mais intelectuais: o que
fazia a apologia da Igreja em latim, o santo autor do Hino da Noite. Junto a eles,
o grande predicador ambulante, zelador ardente, autor de hinos, cuja vida fora
obscurecida, como a dele, Judas, por dificuldades matrimoniais.
Pôs-se a lhes falar em voz alta, conversando com eles, tal como um ator de
melodrama que apostrofa o seu auditório. Mas, de súbito cessou, num sobressalto,
ao perceber o absurdo do que estava fazendo.
Talvez um pensador ou um estudante, sentado diante de sua lâmpada,
estivesse ouvindo, através dos muros, aquelas palavras incoerentes.
Talvez erguesse a cabeça, indagando que voz era aquela e o que pressagiava.
Judas percebia agora que ele era o único ser humano que estava gozando da
velha cidade, exceção feita de um ou outro transeunte retardatário. E, também,
de que estava apanhando um resfriado.
Uma voz chegou até ele do fundo da sombra e era uma voz real, humana:
— Moço, o senhor ficou sentado muito tempo nessa pedra. Que é que está
fazendo?
Era um guarda que observara Judas, sem que este o visse.
Judas voltou para casa e se deitou, depois de ter lido nos livros que trouxera
consigo algumas passagens referentes aos filhos da universidade e às diferentes
mensagens que endereçavam ao mundo.
Como se sentisse invadido pelo sono, pareceu-lhe ouvi-los murmurar algumas
dentre as suas memoráveis palavras — algumas distintamente, outras de modo
que não podia compreender. Um desses espectros (que, mais tarde, zombara de
Christminster como da “casa das causas perdidas”, embora Judas não se
lembrasse disso) apostrofava a cidade nestes termos:
“Cidade maravilhosa! Tão preciosa, tão bela, tão serena, poupa-da pela feroz
vida intelectual do nosso século!” “… Seu inefável encanto não cessa de nos
impelir para o nosso verdadeiro objetivo, para o ideal, para a perfeição!”
Uma outra voz, era a de um convertido à Lei do Trigo, cujo fantasma vira no
pátio onde se achava o sino grande. Considerou Judas que a sua alma poderia
repetir as palavras históricas do seu grande discurso:
“Meu senhor,
“Posso estar enganado, mas tenho a impressão de que o meu dever em
relação a um país ameaçado pela fome me obriga a recorrer agora ao remédio
habitual a todas as circunstâncias análogas — refiro-me à livre entrada do
alimento do homem de qualquer parte que venha…
Retirai-me o meu posto amanhã, não podereis nunca me privar da
consciência de não ter empregado, em momento algum, o poder que me foi
atribuído para um fim interesseiro, nem para servir minha ambição, nem para
auferir lucro pessoal”.
Vinha em seguida o astuto autor de um capítulo imortal sobre o Cristianismo:
“Como poderemos perdoar a indolente inatenção do mundo pa-gão ou
filosófico para com essas evidências (milagres) que eram apresentadas pela
Onipotência?… Os sábios da Grécia e de Roma desvia-ram o olhar desse
imponente espetáculo e pareceram ignorar as altera-
ções sobrevindas no governo físico e moral do mundo”.
Depois, a sombra do poeta, o último dos otimistas: Como o mundo é feito para
cada um de nós!
.........................................................
E na multidão, cada um ajuda a reanimar
A vida da raça em bem do plano geral.
Em seguida, vinha um dos três entusiastas que acabara de ver, o autor da
Apologia:
“Minhas razões eram… que a certeza absoluta, no que diz respeito à verdade
da teologia natural, é o resultado de um conjunto de probabilidades concordantes
e convergentes… que probabilidades que não atingem a uma certeza lógica
podem criar uma certeza moral”.
O segundo, nada tendo de um polemista, murmurava coisas tranquilas:
Por que perder o ânimo e por que o temor de viver só Já que sozinhos,
segundo a vontade dos céus, morreremos?
Ouviu também algumas frases pronunciadas pelo terceiro fantasma, o de
face pequena:
“Quando contemplo os túmulos dos grandes homens, morre em mim
qualquer sentimento de inveja. Quando leio o epitáfio dos que foram belos,
aplaca-se qualquer desejo desregrado. Quando assisto à tristeza dos pais diante de
túmulos queridos, enche-se de compaixão o meu coração. Quando vejo os
túmulos desses mesmos pais, medito sobre a vaidade de chorar por aqueles que
tão depressa devemos seguir”.
E, para terminar, a doce voz de um prelado recitou estes versos simples e
familiares, ricos em recordações de infância, ao som dos quais Judas
adormeceu:
“ Ensiname a viver de modo a que possa temer.
Tão pouco o túmulo quanto o meu leito.
Ensiname a morrer…”.
Judas só acordou pela manhã do dia seguinte. Os fantasmas do passado
haviam desaparecido e tudo falava agora do presente. Pôs-se de pé em cima da
cama, temendo ter dormido demais, e em seguida disse:
“Por Júpiter, esquecime completamente da minha linda prima e da sua
presença aqui… e também do meu velho professsor!” Ao falar do professor,
talvez suas palavras tivessem menos calor do que quando falava de sua prima.
II
Em Melchester
H. T. WHARTON — Sappho
I
QUANDO JUDAS voltou, Sue já estava vestida com a sua roupa habitual.
— Será que, agora, posso sair sem que ninguém me veja? — perguntou ela.
— A cidade ainda não despertou.
— Mas, você ainda não tomou café, já?
— Ora, não quero café algum! Receio que não devesse ter fugido daquele
colégio! As coisas parecem tão diferentes vistas sob a luz fria da manhã, não?
Nem sei o que o professor Phillotson vai dizer!
Foi por vontade dele que vim para cá. Ele é o único indivíduo no mundo que
me inspira respeito ou receio. Espero que ele me perdoe, mas sei que vai me
censurar terrivelmente!
— Irei a ele e explicarei… — começou Judas.
— Não, não, você não irá. Pouco me importo com ele. Poderá pensar o que
quiser. Agirei como bem entender!
— Mas, nesse momento mesmo você disse…
— Pois bem, mesmo que tenha dito, farei como bem entender!
Já pensei o que vou fazer. Vou para a casa de irmã de uma das minhas
colegas da Escola Normal que me convidou para visitá-la.
Ela tem uma escola, perto de Shaston, a dezoito milhas daqui e lá ficarei até
que tudo isso tenha se desfeito e possa voltar de novo para a Escola Normal.
Nos últimos instantes, Judas persuadiu Sue a tomar uma xícara de café que
lhe fizera num pequeno filtro que guardava no quarto de modo a ter alguma coisa
quente para beber de manhã cedo, antes de partir para o trabalho.
— Coma agora um pedaço de pão — disse Judas —, e partamos.
Você poderá tomar um café completo, quando chegar.
Saíram de casa sem fazer barulho e Judas acompanhou Sue até a estação. Na
rua, uma cabeça se debruçou cautelosamente numa janela e logo desapareceu.
Sue continuava a parecer lamentar a sua precipitação, desejando nunca se ter
revoltado. Disselhe que, assim que fosse readmitida na Escola Normal, avisaria.
Na plataforma da estação, permaneceram algum tempo com ar infeliz. Era
evidente que Judas estava com vontade de falar.
— Eu quero dizer a você alguma coisa… duas coisas — disse ele,
rapidamente, quando o trem entrou na estação. — Uma é reconfortante — a
outra, o contrário disso!
— Judas, disse Sue — sei qual é uma delas. E você não deve dizê-la!
— Que é?
— Você não deve me amar! Você deve apenas gostar de mim… e é só!
A fisionomia de Judas exprimiu tantos sentimentos complicados e sombrios
que a da moça assumiu uma expressão de simpatia, quando lhe disse adeus
através da janela do vagão. Então, o trem partiu e, acenando-lhe com a sua linda
mão, Sue desapareceu da vista de Judas.
Nesse domingo, depois da partida de Sue, Melchester pareceu lúgubre a
Judas. E a catedral, um lugar tão idoso que não assistiu a nenhum dos ofícios do
dia.
No dia seguinte, chegou uma carta de Sue. Com a sua vivacidade habitual,
escrevera-a assim que chegara à casa da amiga. Dizia-lhe que fizera boa viagem
e estava bem alojada e, em seguida, acrescentava:
“Meu caro Judas, se lhe escrevo, é para falar de determinada coisa que lhe
disse ao partir. Você foi tão bom para mim que, assim que ficou fora do alcance
da minha vista, compreendi quão cruel e ingrata fui lhe falando assim. E, desde
então, não cessei de me censurar por isso.
Se você quiser me amar, Judas, você o poderá. Não me importarei com isso.
E nunca lhe direi de novo que não o faça.
“Agora, não falarei mais acerca disso. Perdoará você, realmente, a sua
inconsiderada amiga, a sua crueldade? Não a torne miserável, afirmando o
contrário. Sempre sua.
SUE”.
Seria supérfluo dizer o que foi a resposta de Judas. E, muito mais, o que teria
feito se fosse livre, tornando assim desnecessária a Sue uma longa coabitação
com a sua amiga. Numa luta com o professor Phillotson pela posse de Sue, sentia
que desde cedo teria certeza da vitória pessoal.
Todavia, corria o perigo de dar ao bilhete impulsivo de Sue mais importância
do que realmente pretendia ter.
Depois de alguns dias, descobriu que estava esperando por uma carta. Nada
recebeu, porém. Na intensidade da sua solicitude, escreveu novamente, propondo
ir vê-la num daqueles domingos, a distância que os separava sendo, apenas, de
dezoito milhas.
Esperava por uma resposta dois dias depois. Nada veio, porém.
A terceira manhã passou sem que o carteiro sequer parasse. Era um sábado,
e Judas, num febril estado de ansiedade, enviou três breves linhas a Sue dizendo
que, certo de que alguma coisa acontecera, iria vê-la no dia seguinte.
A primeira ideia que lhe ocorreu, naturalmente, foi que, em consequência da
imersão no rio, Sue caíra doente. Mas, cedo se lembrou que, nesse caso, alguém
teria escrito em seu lugar. Todas essas conjeturas tiveram um fim quando da sua
chegada à escola da aldeia, perto de Shaston, numa bela manhã de domingo,
entre onze horas e meio-dia. Nesse momento, a aldeia estava vazia como um
deserto, pois a maior parte das pessoas estava no interior da igreja, onde, de
quando em quando, vozes podiam ser ouvidas em uníssono.
Uma menina abriu a porta.
— A senhorita Bridehead está lá em cima — disse ela. — O senhor quer fazer
o favor de subir?
— Ela está doente? — perguntou Judas precipitadamente.
— Um pouco apenas. Nada de sério.
Judas entrou em casa e subiu. Ao chegar ao patamar, uma voz lhe indicou a
direção a seguir — a voz de Sue, chamando-o pelo seu nome. Ao atravessar a
soleira do quarto, encontrou-a deitada numa pequena cama, num aposento de uns
doze pés quadrados.
— Ó Sue — exclamou Judas, sentando-se ao seu lado e tomando-lhe a mão
— que foi isso? Você não podia ter me escrito dizendo?
— Não, não foi isso! — respondeu ela. — Peguei um resfriado sério, mas, na
verdade, poderia ter escrito a você. Somente, não o quis fazer!
— Por que não? Me assustando desse modo!
— Era mesmo o que eu receava! Mas, tinha decidido não escrever nunca
mais a você. Sabe por quê? Porque não querem mais me receber na escola. E o
que mais me aborrece não é o fato em si, mas as razões apresentadas.
— Como assim?
— Não somente não me querem mais de volta, como me deram um último
aviso.
— Qual?
Sue não respondeu diretamente a pergunta.
— Judas, jurei não o dizer nunca a você. É tão vulgar e tão aflitivo!
— Alguma coisa a nosso respeito?
— Sim.
— Mas, por favor, conte logo!
— Pois bem, ouça: alguém mandou informações infundadas sobre nós e
dizem que, para o bem da minha reputação, devemos nos casar o mais depresssa
possível! Eis aí: agora, contei tudo e lastimo tê-lo feito!
— Pobre Sue!
— Não pensava em você desse modo! Apenas, ocorrera-me a possibilidade
de fazê-lo, mas não dei o menor passo nesse sentido.
Tive de reconhecer que a nossa relação de parentesco era apenas nominal, já
que, quando nos encontramos, éramos perfeitamente estranhos um ao outro.
Mas, casar com você, meu caro Judas… se eu pensasse nisso, certamente não
teria vindo visitar você com tanta frequência! E, antes de outro dia, nunca supus
que você pensasse em se casar comigo. Só então cuidei que você pudesse estar
gostando um pouco de mim. Talvez não devesse ter me tornado tão íntima de
você. Sempre a culpada sou eu!
Este pequeno discurso soou como um pouco forçado e irreal.
Por isso, os dois ficaram olhando um para o outro, cheios de aflição.
— Fui tão cega, de início! — continuou Sue. — Não compreendi em absoluto
o que você estava sentindo. Ó, você foi ruim em relação a mim! Foi sim, por me
olhar como namorada e não me dizer nada, deixando que eu descobrisse tudo
sozinha! Os outros compreenderam os motivos da sua atitude em relação a mim
e, naturalmente, julgam que agimos mal! Nunca confiarei em você de novo!
— Sim, Sue — disse Judas com simplicidade —, mereço ser censurado, e
mais ainda do que você o pensa. Até aquela noite, ainda esperava que você não
suspeitasse de nada. Concordo que nosso encontro, como estranhos, excluía
qualquer noção de parentesco e que era uma espécie de subterfúgio valer-me
dessa situação. Mas, você não acha que mereço um pouco de indulgência por ter
escondido meus sentimentos culpados, já que não podia me impedir de tê-los?
Sue volveu duvidosamente os olhos para ele e, depois, afastou-os como se
receasse ter de perdoá-lo.
De acordo com todas as leis da natureza e do sexo, um beijo era a única
resposta que convinha à situação. É provável que, sob sua influência, os
sentimentos de Sue em relação a eles tivessem mudado de natureza. Certos
homens teriam atirado os escrúpulos pela janela e tentado a aventura,
esquecendo os sentimentos neutros anunciados por Sue e o par de assinaturas do
registro da paróquia onde Arabela morava. Judas não o fez. Na verdade, viera
até ali, em parte, para contar a sua terrível história. Estava nos seus lábios.
Contudo, mesmo nessa hora de aflição, não pode descerrá-los. Preferiu ficar por
detrás das reconhecidas barreiras que entre eles dois existiam.
— Evidentemente, sei… sei que você não me quer de nenhum modo especial
— disse Judas em tom rouco. — Você não o deve fazer e está certa, agindo
assim. Você pertence ao… ao professor Phillotson.
Suponho que ele tenha vindo visitar você, não?
— Sim — disse rapidamente, mudando apenas um pouco de expressão. —
Mas, não pedi para que ele viesse. Naturalmente, você se sente contente por ele
ter vindo! Mas, pouco me importa se ele não tornasse mais a vir!
Judas não compreendia como Sue podia ficar aborrecida por ele aceitar
lealmente o seu rival, em consequência de rejeitar ela o seu amor. Começou a
falar de outra coisa.
— Querida Sue, tudo isso passará — disse ele. — As autoridades da Escola
Normal não representam o mundo inteiro. Certamente você poderá entrar para
uma outra instituição.
— Pedirei isso ao professor Phillotson — disse Sue em tom decidido.
Nesse momento, a amável proprietária da casa onde Sue morava voltou da
igreja e não pode mais haver intimidade na conversa. À tarde, Judas partiu,
terrivelmente infeliz. Contudo, vira Sue, ficara sentado ao seu lado. Teria de se
contentar com relações dessa natureza por todo o resto da sua vida. E essa lição
de renúncia era bom e necessário que ele, futuro pastor, a aprendesse.
No dia seguinte, porém, ao acordar, sentiu-se irritado em relação a Sue e
decretou que ela não era uma pessoa razoável, para não dizer que era
caprichosa. Então, como uma prova do que começara a descobrir ser um dos
característicos de Sue, chegou um bilhete que ela devia ter escrito quase
imediatamente após sua partida.
“Perdoe-me pela minha petulância de ontem. Fui horrível para com você. Sei
perfeitamente disso e, por isso, sinto-me terrivelmente infeliz. Foi tão bom de sua
parte não ter ficado zangado! Judas, por favor, e quaisquer que sejam meus
erros, considere-me sempre como sua amiga e companheira. Esforçar-me-ei
por não repetir nunca o que fiz ontem.
“Vou a Melchester sábado para apanhar as minhas coisas na Escola Normal.
Poderei passear com você durante uma meia hora. Sua arrependida.
SUE”
Judas a perdoou imediatamente e pediu-lhe que o viesse procurar no sábado,
no lugar onde trabalhava.
VI
NOTÍCIAS DE Sue, recebidas dois ou três dias depois, foram para Judas
como um verdadeiro furacão.
Antes de ler a carta, já estava inclinado a supor que se tratava de alguma
coisa de importante. Bastara, para isso, uma simples olhadela que lançara sobre a
assinatura. Sue assinara o seu nome inteiro, coisa que nunca tornara a fazer,
desde a sua primeira carta.
“Meu caro Judas — Tenho alguma coisa para lhe dizer que talvez não o
surpreenda, mas que, talvez, o choque por considerá-lo precipitado ou acelerado
(como as companhias de estrada de ferro dizem dos seus trens).
O professor Phillotson e eu vamos nos casar, breve — daqui a três ou quatro
semanas. Pretendíamos a princípio, como você sabe, esperar até que eu
houvesse terminado os meus estudos e obtivesse um diploma que me tornasse
apta a ajudá-lo, caso fosse necessário. Mas diz ele com generosidade que não vê
mais razão para que fiquemos esperando, uma vez que não estou mais na Escola
Normal. É realmente muito generoso da parte dele, uma vez que a falsidade da
minha situação foi ocasionada pelo meu erro de ser expulsa do colégio.
“Deseje-me felicidade. Lembre-se que você tem esse dever e não me pode
recusá-lo. Sua afeiçoada prima,
SUSANA FLORENCE-MARY BRIDEHEAD”.
Lendo essas palavras, Judas se sentiu cambalear. Nada pôde comer, bebendo
chá o tempo todo, pois sua boca estava seca. Enfim, retomou o seu trabalho com
o riso amargo de quem é posto à prova. Tudo parecia se transformar em sátira.
Contudo, que podia fazer a pobre moça? Foi o que ele se perguntou, sentindo-se
em estado pior do que se estivesse vertendo lágrimas.
“Ó Susana Florence-Mary !”, dizia ele, durante o trabalho.
“Você não sabe o que é o casamento!”
Seria possível que o despeito causado pela revelação do seu próprio
casamento tivesse impelido Sue àquela resolução? Exatamente do mesmo modo
como a impressão causada pela sua visita em estado de ebriedade decidira-a a
ficar noiva? Sem dúvida, pareciam existir outras razões, de ordem prática e
social. Mas, não era uma natureza interesseira, e Judas se via obrigado a pensar
que a ferida causada pela revelação do seu segredo levara Sue a ceder diante dos
prováveis argumentos de Phillotson. Por exemplo: que a melhor maneira de
provar quanto eram infundadas as suspeitas das autoridades da escola era casar
com ele, Phillotson, imediatamente. Na verdade, Sue fora desastradamente
acuada! Pobre Sue!
Judas resolveu fazer o papel de espartano, aceitando bem a sutuação e se
tornando um sustentáculo para Sue. Mas, não pôde enviar os votos de felicidade
pedidos, antes de um ou dois dias.
No intervalo, chegou uma nova carta da sua impaciente e querida Sue:
“Judas, quer você me levar pelo braço até o altar? Não conheço ninguém que
posssa desempenhar esse papel tão convenientemente quanto você, você sendo a
única pessoa casada que conheço neste lugar. E isso, mesmo que meu pai
estivesse disposto a fazê-lo, o que não acontece. Espero que você não julgue isso
uma massada. Li no meu livro de orações a parte relativa à cerimônia do
casamento e me parece muito humilhante que seja necessário alguém para me
entregar no altar ao meu futuro marido. De acordo com o texto do livro, meu
noivo me escolhe de sua livre vontade, por eleição. Mas eu não o escolho. Al-
guém me dá a ele, como uma cabra, uma asna ou um outro qualquer animal
doméstico. Abençoada seja a vossa elevada ideia da mulher, ó homem da
Igreja! Mas estou ne esquecendo que não tenho mais o direito de mexer com
você. Sempre sua,
SUSANA FLORENCE-MARIA BRIDEHEAD”.
Judas levou a sua coragem até o heroísmo e respondeu:
“Minha querida Sue, naturalmente desejo a você toda a felicidade. E
certamente também levarei você pelo braço até o altar. O que sugiro é que,
como você não tem casa própria, você se case estando morando na minha casa e
não na da sua amiga. Será mais próprio, creio eu, uma vez que sou, como você
mesmo o diz, o seu parente mais próximo nessa parte do mundo.
“Não compreendo por que você, agora, assina suas cartas dessa maneira
nova e tão terrivelmente convencional? Por certo, você ainda me quer um pouco,
não?! Sempre seu,
JUDAS”.
O que ferira Judas, mais ainda do que a assinatura, fora aquela pequena
alfinetada que deixara passar sob silêncio: a frase “única pessoa casada que
conheço”. Que espécie de idiota não ficava ele parecendo, como seu
apaixonado!? Se Sue tivesse escrito aquilo como sátira, dificilmente lhe
perdoaria. Sendo por sofrimento, então era outra coisa!
De qualquer modo sua oferta de alojamento agradou a Phillotson, pois ele lhe
mandou algumas palavras de caloroso agradecimento, aceitando a proposta. Sue
também agradeceu. Imediatamente, Judas mudou para quartos maiores, tanto
para afastar as espionagem da proprietária, que certamente fora uma das razões
da desagradável aventura de Sue, quanto por causa da exiguidade de espaço, no
antigo quarto.
Em seguida, Sue escreveu para avisá-lo da data do casamento. E Judas,
depois de tomar as devidas informações, decidiu que ela viesse morar com ele
no sábado seguinte, a fim de que residisse dez dias na cidade, antes da cerimônia,
o que bastava para representar uma residência nominal de quinze dias.
Sue chegou no dia marcado, pelo trem de dez da manhã. A pedido seu, Judas
não a foi buscar na estação. Não queria que ele perdesse o salário de uma manhã
de trabalho (se é que essa era a sua verdadeira razão). Mas, já agora conhecia
Sue tão bem que julgava possível que ela se tivesse deixado induzir pela
lembrança da sensibilidade excessiva e das crises emocionais de ambos, em
determinados momentos. Quando chegou para almoçar, Sue já tomara posse do
seu apartamento.
Morava na mesma casa que ele, mas num andar diferente. Viam-se pouco.
De quando em quando, jantavam juntos, e então a atitude de Sue era semelhante
à de uma criança que estivesse amedrontada.
Judas não sabia o que ela estava sentindo, e a conversa entre eles era
maquinal. Contudo, Sue não parecia nem pálida, nem doente.
Phillotson aparecia frequentemente, mas, ainda mais, quando Judas não
estava presente.
Na manhã do dia do casamento, Judas tendo tirado o dia de folga, os dois
primos tomaram café juntos, pela primeira e última vez durante aquele curto
prazo, no apartamento de Judas, na sala que alugara para o período de
permanência de Sue. Reparando, como nenhuma mulher deixaria de reparar, a
falta de jeito de Judas no arranjo das coisas, Sue se pôs a ajudá-lo.
— Que é que há, Judas? — disse ela, subitamente.
Judas estava sentado, os cotovelos apoiados na mesa, o queixo entre as mãos,
fixando um futuro que parecia desenhado na toalha.
— Ó, nada!
— Você é meu “papai”, sabe? É assim que se chama ao homem que conduz
a gente até o altar.
Judas poderia ter dito: “A idade de Phillotson lhe daria mais direito a esse
título!”. Contudo, não quis aborrecê-la com uma resposta tão vulgar.
Sue falava sem cessar, como se temesse as reflexões de Judas e, antes do fim
da refeição, já ambos estavam arrependidos da confiança que haviam
depositado no novo modo de ver as coisas, desejando ter tomado café cada um
pelo seu lado. O que oprimia Judas era que ele estava deixando a mulher que
amava cometer um erro análogo ao que ele próprio cometera, em vez de avisá-
la e implorar-lhe que nada fizesse. Estava nos seus lábios perguntar: “Você está
mesmo decidida?”.
Depois do café, saíram os dois e passearam, movidos pelo mesmo
pensamento: era a última oportunidade que tinham de gozar de uma boa e
simples camaradagem. Pela ironia da sorte e por essa curiosa tendência de Sue
de tentar a Providência nos momentos críticos, ela tomou o braço de Judas para
atravessar o caminho cheio de lama — coisa que nunca fizera ainda em toda a
sua vida. — A uma curva da rua, encontraram-se diante de uma igreja gótica de
pedra cinzenta e telhado baixo — a igreja de São Tomás.
— Eis a igreja — disse Judas.
— Na qual vou me casar?
— É.
— De verdade? — exclamou Sue, curiosa. — Como gostaria de entrar e ver o
lugar onde, daqui a pouco, vou me ajoelhar e me casar!
Ainda uma vez, Judas pensou: “Sue não compreende o que é o casamento”.
Acedeu passivamente ao seu desejo e entraram pela porta oeste.
A única pessoa existente na igreja sombria era uma mulher que estava
fazendo a limpeza. Sue continuava a segurar o braço de Judas, quase como se o
amasse. Na verdade, fora meiga e cruel durante toda aquela manhã. Mas a ideia
do castigo que ela merecia foi abrandada, no espírito de Judas, por uma dor:
“........ Não posso impedir que esse golpe a fira cruelmente, como fere os
homens, nem exija demais de sua natureza de mulher!”.
Avançaram os dois pela nave até a grade do altar que ficaram olhando em
silêncio. Em seguida, voltaram. Sue sempre apoiada no braço de Judas,
exatamente como um casal de recém-casados. Este por demais sugestivo
incidente, inteiramente provocado por Sue, quase descontrolou Judas.
— Gosto de fazer coisas como essa — disse Sue com a voz doce de uma
epicurista à cata de emoções e não deixando a menor dúvida quanto à
veracidade do que estava dizendo.
— Sei bem que você gosta! — disse Judas.
— São interessantes, porque provavelmente nunca foram feitas antes. Daqui
a umas duas horas, seguirei o mesmo trajeto com o meu marido, não?
— Certamente que sim!
— Aconteceu o mesmo quando você se casou?
— Meu Deus, Sue, não seja tão terrivelmente impiedosa! Não, querida, não
foi isso o que eu quis dizer!
— Ah, você está zangado! — disse Sue em tom de arrependimento e
fechando os olhos, agora úmidos. — E eu que prometera nunca mais fazer você
ficar zangado! Não lhe devia ter pedido que me trouxesse aqui. Não devia, não!
Agora é que estou vendo. É a minha curiosidade de sensações novas que sempre
me mete nesses embaraços. Perdoe-me. Você me perdoa, não, Judas?
Havia tanto remorso nesse apelo que os olhos de Judas estavam ainda mais
úmidos que os de Sue quando ele lhe pressionou a mão para dizer: “Sim”.
— Agora, vamos depressa embora e não farei isso nunca mais! — continuou
Sue, humildemente.
Saíram da igreja e Sue pretendia ir à estação receber Phillotson.
Mas, a primeira pessoa que encontraram na rua principal foi o professor,
cujo trem chegara mais cedo do que Sue esperava. Na verdade, nada havia de
repreensível no fato de ela estar apoiada no braço do primo, mas logo retirou a
mão, e Judas cuidou ver surpresa no olhar de Phillotson.
— Fizemos uma coisa tão engraçada! — disse Sue, sorrindo candi-damente.
— Fomos à igreja, como para um ensaio. Não foi, Judas?
Intimamente, ele lastimava o que considerava, apenas, como uma franqueza
inútil. Mas Sue fora longe demais para não explicar tudo, agora. E isso ela o fez
então, contando como tinham caminhado até junto do altar.
Vendo o ar perplexo de Phillotson, Judas disse o mais alegremente que pôde:
— Vou comprar para Sue um outro pequeno presente. Vocês querem vir os
dois à loja comigo?
— Não — disse Sue. — Vou para casa com o meu noivo — e, pedindo ao seu
apaixonado que não demorasse muito, partiu com o professor.
Judas os encontrou em casa, pouco depois, e começaram a se preparar para
a cerimônia. A escova passara e repassara sobre os cabelos de Phillotson e seu
colarinho estava mais duro do que em qualquer outra ocasião, durante os vinte
últimos anos. Apresentava um aspecto digno e grave e, ao mesmo tempo, um ar
de pessoa em quem não seria absurdo prever um bom e atencioso marido. Era
evidente que adorava Sue. E era também quase certo que ela achava não
merecer essa adoração.
Apesar de a distância ser curta, Phillotson alugara um coche do Leão
Vermelho e seis ou sete mulheres ou crianças estavam reunidas diante da porta,
quando eles saíram. Ninguém conhecia nem Sue nem o professor, mas Judas
começava a ser tido como um concida-dão. E o casal foi considerado como
parente de Judas, ninguém su-pondo que Sue tivesse sido, recentemente, aluna da
Escola Normal.
Na carruagem, Judas tirou do bolso o seu novo presente. Era o seguinte: dois
ou três metros de tule branco que pôs sobre o chapéu de Sue como um véu.
— Fica tão esquisito assim! — exclamou Sue. — Vou tirar o chapéu.
— Ora, não. Deixe assim mesmo — disse o professor. E Sue obedeceu.
Quando entraram na igreja e ficaram nos seus lugares, Judas cuidou que a
precedente visita à igreja diminuíra o rigor da cerimônia, mas, quando esta
estava no meio, já se arrependia, no fundo do coração, de ter aceito a função de
trazê-la até junto do altar. Como é que Sue tivera a temeridade de lhe pedir aquilo
— uma possível crueldade para com ela própria, tão bem quanto com ele?
Nesses assuntos, as mulheres são bem diferentes dos homens. Será porque são,
ao invés de mais sensíveis, como têm fama de ser, mais endurecidas pela vida e
menos românticas. Ou mais heroicas? Ou Sue seria, simplesmente, tão perversa
que se alegraria em provocar sofrimento nela tão bem quanto nele, pela volúpia
estranha e triste de se exercitar na dor e de ficar ternamente comovida em
relação a ele, depois de ter ela mesma provocado o sofrimento? Percebia que a
sua expressão estava tensa e quando, no momento crítico, ele teve que a entregar
nas mãos de Phillotson, Sue teve dificuldade em manter-se calma. E isso, ao que
parecia, mais por causa do que devia sentir o primo, que poderia muito bem não
estar ali presente, do que pela sua própria emoção. Talvez, na sua extraordinária
inconsequência, iria ela permanecer toda a vida a infligir tais sofrimentos e, em
seguida, a se enternecer pela suas vítimas.
Phillotson parecia nada perceber, como que rodeado por uma bruma que o
impedia de observar os outros. Assim que assinaram seus nomes, saíram,
cessando a tensão. Judas se sentiu aliviado.
A refeição que tomaram em casa de Judas foi muito simples e, às duas horas,
os dois partiram. Ao atravessar a calçada para subir na carruagem, Sue se voltou,
e havia nos seus olhos uma centelha de medo.
Seria que Sue cometera a loucura incrível de mergulhar no desconhecido
somente para afirmar sua independência em relação a ele, ou para puni-lo da
sua dissimulação? Talvez fosse tão imprudente para com os homens porque
ignorasse ainda, como uma criança, o lado da natureza deles que consome o
coração e a vida das mulheres.
Quando pôs o pé no estribo, ela se voltou, dizendo que esquecera alguma
coisa. Judas e a proprietária se ofereceram para ir buscá-la.
— Não — disse ela —, é o meu lenço e eu sei onde o deixei.
Judas a seguiu. Ela o encontrou e voltava, agora, trazendo-o na mão. Então,
fitou Judas nos olhos. Tinha os seus cheios de lágrimas e seus lábios se
entreabriram como se fossem falar. Contudo, passou.
E as palavras que desejara dizer ficaram impronunciadas.
VIII
Em Shaston
MILTON
I
M. ANTONINUS (LONG)
I
QUANDO SUE voltou para casa, Judas a estava esperando, a segurou pelo
braço e caminharam em silêncio, um ao lado do outro, como bons companheiros
frequentemente o fazem. Judas percebeu que ela estava preo-cupada e timbrou
em não lhe perguntar nada.
— Ah, Judas, falei com ela — disse, por fim, Sue. — Antes não o tivesse!
Todavia, é bom que certas coisas nos sejam lembradas.
— Espero que ela tenha sido polida com você.
— Foi sim. Eu… eu não posso deixar de gostar dela… um pouquinho, pelo
menos. Ela não é uma natureza privada de generosidade. E eu me sinto muito
contente que as suas dificuldades tenham acabado, assim subitamente. — Sue
explicou, em seguida, que Arabela fora chamada e poderia recobrar uma
posição honrosa. — Estava me referindo à nossa antiga questão. O que Arabela
me disse fez com que sentisse, ainda mais vivamente do que antes, quanto o
casamento legal é uma instituição desesperadoramente vulgar… uma espécie de
armadilha para agarrar um homem. Não posso suportar essa ideia. Gostaria de
não ter prometido a você deixar correr os proclamas, essa manhã.
— Ora, não se preocupe comigo. A qualquer momento, estará bom para
mim. Pensei apenas que você, agora, gostaria de liquidar isso de uma vez.
— Na verdade, não me preocupo mais com isso, agora, do que me
preocupava antes. Talvez, com um outro homem, ficasse um pouco ansiosa. Mas,
entre as muito poucas virtudes próprias à sua família e à minha, querido, creio
que posso citar a constância. Assim, não tenho o menor medo de perdê-lo, agora
que sou realmente sua e você é realmente meu. De fato, tenho o espírito mais
tranquilo, porque minha consciência está limpa em relação a Richard, que tem
agora direito à sua liberdade. Tinha impressão, antes, que estávamos enganando.
— Sue, quando você fala assim, mais do que uma simples cidadã de um país
cristão, parece ser uma daquelas mulheres de uma das grandes civilizações da
Antiguidade, das quais eu lia a história naqueles dias longínquos e inúteis durante
os quais me entregava ao estudo dos clássicos. Nesses momentos, fico na
expectativa de ver você dizer que acabou de conversar com uma amiga
encontrada na Via Sacra sobre as últimas novidades a respeito de Octávia ou de
Lívia, ou de ouvir a eloquência de Aspásia, ou de contemplar Praxíteles
esculpindo a sua última Vênus, enquanto Frineia se quei-xava de estar cansada de
servir de modelo.
Haviam chegado, nesse momento, à casa do sacristão. Sue recuou, enquanto
Judas se aproximava da porta. Sua mão já estava levantada para bater, quando
ela exclamou: — Judas!
Judas se voltou.
— Espera um instante, sim?
Ele voltou para junto dela.
— Reflitamos um pouco — disse Sue, timidamente. — Tive um sonho
terrível, uma noite… E Arabela…
— Que foi que Arabela disse a você? — perguntou Judas.
— Ó, ela me disse que, quando se está casado de fato, pode-se ser mais
eficazmente protegido pela lei quando o homem bate na gente… e que, em caso
de briga… Judas, acredita que, quando você tiver sobre mim um direito legal,
seremos tão felizes quanto somos, agora? Os homens e as mulheres da nossa
família são muito generosos, quando tudo depende da boa vontade deles, mas
resistem tremendamente quando constrangidos. Você não teme as atitudes que
insensivelmente resultem de uma obrigação legal? Não acha que isso possa vir a
destruir uma paixão cuja essência reside na sua gratuidade?
— Palavra de honra, querida, você também está começando a me
amedrontar com todas essas previsões! Pois bem, voltemos para casa e
reflitamos sobre o assunto.
A expressão de Sue clareou.
— Sim, é isso que devemos fazer — disse ela.
Afastaram-se da porta do sacristão, Sue segurando o braço de Judas e
murmurando durante o caminho de volta: Pode você impedir a abelha de voar
pelos ares Ou o pombo-bravo de mudar de cor?
Não! Nem o amor encadeado…
Continuaram a pensar no assunto, ou deixavam para pensar mais tarde. De
qualquer modo, adiaram tomar qualquer decisão e pareceram estar vivendo num
país de sonhos. Ao fim de duas ou três semanas, as coisas estavam no mesmo e
nenhum proclama correra em qualquer paróquia de Aldbrickham.
Enquanto continuavam de adiamento em adiamento, receberam de Arabela,
uma manhã, uma carta e um jornal. Reconhecendo a letra, Judas subiu para
prevenir Sue no seu quarto, e Sue, assim que se vestiu, desceu às pressas. Sue
abriu o jornal. Judas a carta. Depois de ter lançado um olhar, Sue estendeu a
Judas a primeira folha, indi-cando com o dedo um parágrafo. Judas, porém,
estava tão absorto com a carta que não levantou logo os olhos.
— Veja! — disse Sue.
Judas olhou e leu. Era um jornal que circulava apenas no Sul de Londres. O
aviso assinalado era, simplesmente, o anúncio de um casamento, na igreja de S.
João Waterloo Road, entre CARTLETT e DONN.
O par que se unia: Arabela e o dono do cabaret.
— Muito bem, é plenamente satisfatório — disse Sue com complacência. —
Mas, depois disso, parece-me bastante baixo fazer o mesmo e sinto-me
contente… Enfim, ela está garantida, agora, de certo modo, ao que imagino,
quaisquer que tenham sido os seus erros, pobre criatura! É mais agradável, para
nós, podermos falar assim do que nos sentirmos inquietos por ela. Talvez eu
devesse escrever a Richard para saber como ele vai indo, não?
Contudo, a atenção de Judas continuava absorvida pela carta.
Tendo apenas lançado um olhar sobre o anúncio do jornal, disse com uma voz
perturbada:
— Escute isso. Que devo responder ou fazer?
TRÊS CHIFRES, LAMBETH
“QUERIDO JUDAS — (Não sou bastante cerimoniosa para chamar você de
senhor Fawley ). Envio-lhe junto um jornal, por intermédio do qual você ficará
ciente de que me casei de novo, com Cartlett, terça-feira última.
Assim, a questão está definitivamente regulada. Mas aquilo sobre o que
escrevo hoje a você em particular é a respeito daquela questão íntima sobre a
qual queria falar, quando vim a Aldbrickham. Não podia, na verdade, tratar o
assunto a contento com a sua amiga, e teria preferido muito falar com você de
boca para boca. Teria sido mais fácil de explicar do que por carta. O fato, Judas,
é que, embora nunca lhe tenha dito antes, um menino nasceu do nosso
casamento, oito meses depois da nossa separação, quando eu vivia em Sy dney
com meus pais. E tudo isso é fácil de ser provado. Como me separei de você
antes de saber que isso ia acontecer, e eu estava longe e tínhamos brigado de um
modo violento, não julguei conveniente escrever a você avisando. Como estava
procurando arranjar uma boa situação, meus pais ficaram com o menino e,
desde então, cuidaram dele. Foi por isso que não falei nada, quando nos
encontramos em Christminster, nem durante o desenrolar do nosso processo de
separação. Ele está, agora, na idade da razão, e meus pais me escreveram, há
pouco tempo, dizendo que, como a vida lá está difícil para eles, e eu estou bem
arranjada por aqui, não veem motivo para continuarem sobrecarregados com o
menino, os pais dele estando vivos.
Poderia chamá-lo para junto de mim, mas ainda não tem bastante idade para
se tornar útil no serviço do bar, em qualquer coisa que seja, nem o terá tão cedo.
Assim, naturalmente, Cartlett o consideraria demais. De qualquer modo, eles o
mandaram, confiando-o a uns amigos que vinham para a Inglaterra. Assim,
tenho que pedir a você que o receba, quando chegar, pois não sei o que fazer
dele. Ele é legalmente seu filho, isso eu juro solenemente. Se alguém disser o
contrário, pode chamá-lo de um miserável mentiroso. Não importa o que eu
tenha feito antes ou depois, fui fiel a você desde o dia que nos casamos até o em
que parti. E permaneço sua etc…
ARABELA CARTLETT”.
O olhar de Sue foi de consternação.
— Querido, que é que você vai fazer? — perguntou ela, com voz fraca.
Judas não respondeu, e Sue o olhou ansiosamente, respirando com
dificuldade.
— É um golpe duro para mim! — disse Judas a meia voz. — Pode muito bem
ser verdade. Não tenho meio algum de verificar. Está claro, caso a idade seja
exatamente a que deve ser… Não posso compreender por que ela não me disse
isso, quando nos encontramos em Christminster e viemos aqui, naquela noite!…
Ah… lembro-me agora que ela falou qualquer coisa a respeito de algo que trazia
no coração e gostaria de me dizer, se algum dia tornássemos a viver juntos.
— Ninguém parece querer essa pobre criança! — replicou Sue, enquanto
seus olhos se enchiam de lágrimas.
Já então Judas caíra em si.
— Meu filho ou não, que ideia deve ter ele da vida! — falou. — Devo dizer
que, se estivesse numa melhor situação, não me deteria nem um só instante em
indagar se ele é realmente meu filho. Eu o receberia e educaria. Essa miserável
questão de paternidade… que significa ela, afinal? Que importa, quando se
reflete bem nisso, que uma criança seja do seu sangue ou não seja? Todos os
pequeninos entes do nosso tempo são coletivamente os nossos filhos — de nós,
adultos da mesma época — e são confiados ao nosso cuidado comum.
Essa excessiva afeição dos pais pelos seus filhos e a indiferença em relação
aos filhos dos outros não é, no fundo, tal como o sentimento de classes, o
patriotismo, a preocupação de salvar a própria alma e outras virtudes, senão uma
pequenez de alma exclusiva e egoísta.
Sue deu um pulo e beijou Judas com um apaixonado fervor.
— Sim… é isso mesmo, meu muito querido! E nós o receberemos aqui. E se
ele não for seu filho, ainda será melhor. Espero que não o seja… ainda que,
talvez, eu não devesse ter um sentimento desses! Se não o for, gostarei muito que
o recebamos como um filho adotivo.
— Pois bem, minha estranha pequena companheira, é só você supor a
respeito dele o que lhe for mais agradável! — disse Judas. — De qualquer modo,
parece-me que não gostaria de deixar esse pobre desgraçadinho abandonado.
Imagine a vida que teria num cabaret de Lambeth, com todas as más influências
imagináveis, com uma mãe que não quer saber dele e, na verdade, mal o viu até
hoje, e com um padrasto que não o conhece? “Que pereça o dia em que nasci e
a noite em que se disse: Uma criança foi concebida!” Isso é o que esse menino
— meu menino, talvez — descubra, por si mesmo, qualquer dia!
— Ó, não!
— E como fui o autor da petição, creio que é a mim que cabe legalmente a
custódia.
— De um modo ou de outro, devemos ficar com ele. Sinto isso.
Farei o máximo que puder para ser uma boa mãe, e podemos nos permitir tê-
lo em casa. Trabalharei um pouco mais. E me pergunto quando chegará.
— Sem dúvida, dentro de algumas semanas.
— Eu queria… Quando teremos coragem para nos casar, Judas?
— Quando você tiver, eu terei. Depende inteiramente de você, querida. Diga
uma palavra apenas, e pronto!
— Antes da chegada do menino?
— Certamente.
— Talvez isso torne o nosso lar mais normal para ele — murmurou Sue.
Então Judas escreveu, em termos puramente formais, pedindo que lhe
mandassem o menino assim que chegasse, não fazendo a menor observação
sobre a surpreendente revelação de Arabela, nem emitindo uma única palavra
de dúvida sobre a paternidade da criança, nem sobre o fato de que, se fosse
prevenido, teria podido adotar, em relação a ela, uma conduta diferente.
No dia seguinte, à noite, no trem que devia chegar em Aldbrickham cerca de
dez horas, podia-se ver uma fisionomia pálida de criança na semi-obscuridade de
um compartimento de terceira classe. Tinha olhos grandes e amedrontados e
usava um cachenê de lã branca, por cima do qual se via uma chave, suspensa no
seu pescoço por um fio de barbante comum. Algumas vezes a chave refletia a
luz da lâmpada, chamando assim a atenção dos viajantes. Na fita do chapéu,
haviam preso sua passagem. Seus olhos estavam fixos nas costas da cadeira da
frente e não se voltavam para a janela, nem mesmo quando o trem parava numa
estação. No outro lado do compartimento, estavam dois ou três viajantes, um dos
quais era uma operária que trazia nos joelhos uma cesta dentro da qual havia um
gatinho pintado. De quando em quando, a mulher levantava a coberta da cesta de
modo que o gatinho pudesse pôr a cabeça de fora e brincar um pouco. Ao que
todos os viajantes se punham a rir, a não ser o menino solitário que, olhando o
animal com os seus grandes olhos, parecia dizer mentalmente: “Todo riso vem de
um mal-entendido.
Se se olham as coisas como se devam olhá-las, nada há de risível debaixo do
sol”.
Nas paradas, o chefe do trem espiava no compartimento e dizia ao menino:
— Tudo certo, meu rapaz. Sua mala está em lugar seguro, no carro de
bagagens.
O menino respondia: “Está bem”, sem entusiasmo, e procurava sorrir sem
conseguir.
Ele era a idade, fantasiado de juventude e tão mal fantasiado que a sua
verdadeira personalidade transparecia através de cada fresta de seu disfarce.
Uma profunda vaga, vinda da noite dos anos, parecia aqui e ali levantar a criança
na sua vida nascente, e seu rosto como que fitava o oceano dos tempos, sem se
importar com o que estava acontecendo à sua volta.
Quando os outros passageiros, um por um, fecharam os olhos, e o próprio
gatinho se aninhou no fundo do cesto, cansado de brincar num espaço tão restrito,
o menino continuou exatamente na mesma posição. Parecia então duplamente
acordado, qual uma divindade escrava e ingênua, passivamente sentado, olhando
seus companheiros como se contemplasse o círculo de suas vidas, mais do que
suas figuras próximas.
Era o filho de Arabela. Com o seu habitual descuido, esta esperara a véspera
da chegada do pequeno para escrever a Judas, ainda que tivesse sido avisada
havia várias semanas e até mesmo fosse a Aldbrickham, tal como dissera, para
revelar a Judas a existência do menino e a sua iminente chegada. Assim, na noite
mesmo em que Arabela recebeu a resposta de Judas, a criança desembarcava
nas Docas de Londres. A família em companhia da qual o menino viajava
chamou um carro, introduziu-o nele, deu ao cocheiro o endereço de sua mãe,
disselhe adeus e seguiu o seu caminho.
Quando chegou ao albergue dos Três Chifres, Arabela o olhou com uma
expressão que parecia querer dizer: “Você é exatamente o que eu esperava que
fosse”. Tendo-lhe dado um bom jantar e um pouco de dinheiro, e apesar de já
ser tão tarde, enviou-o a Judas pelo próximo trem, desejando que seu marido
Cartlett, que estava fora, não o visse em casa.
O trem chegou a Aldbrickham e o menino foi deixado na plataforma vazia,
ao lado de sua mala. O agente apanhou o bilhete e, achando a situação anormal,
perguntou-lhe onde ia, sozinho, àquela hora da noite.
— Vou para a rua da Primavera — disse o garoto, impassível.
— Mas, é muito longe daqui. Fica quase no campo e lá, a esta hora, todo
mundo deverá estar deitado.
— Tenho que ir.
— Você deve arranjar um carro para transportar sua mala.
— Não. Terei de ir a pé.
— Nesse caso, é melhor deixar a mala aqui e mandá-la buscar depois. Há
um ônibus que leva até o meio do caminho, mas, depois, você terá de ir a pé.
— Não tenho medo.
— Por que seus amigos não vieram buscá-lo?
— Creio que não sabem da minha chegada.
— Quem são os seus amigos?
— Minha mãe não quer que eu o diga.
— Então, tudo o que posso fazer é guardar sua mala. E agora, vá o mais
depressa possível.
Sem dizer mais nada, o menino saiu para a rua, voltando-se para ver se
alguém o seguia ou observava. Depois de ter feito alguns passos, perguntou a
direção da rua para onde ia. Disseram-lhe que fosse reto em frente, até os
subúrbios da cidade.
O menino saiu numa marcha lenta, mecânica, que tinha qualquer coisa de
impessoal… uma espécie de movimento de brisa ou de nuvem. Seguiu
rigorosamente as indicações recebidas, sem lançar um simples olhar para parte
alguma. Podia-se perceber que suas ideias sobre a vida eram diferentes das
ideias dos meninos da região. As crianças principiam prestando atenção aos
detalhes, depois é que aprendem a considerar o geral. Começavam com o que os
rodeia, para depois, gradualmente, atingir o universal. O menino parecia ter
começado pelas generalidades da vida, sem nunca se ter preocupado com os
detalhes. As casas, os chorões, os campos obscuros não eram olhados por ele
como residências de tijolos, árvores, campos, mas como formas abstratas de
moradia humana, de vegetação, ou o vasto e sombrio universo.
Encontrou o caminho que levava à pequena viela e bateu à porta da casa de
Judas. Este acabara de subir para se deitar, e Sue estava prestes a entrar no
quarto contíguo, quando ouviu baterem e desceu.
— É aqui que meu pai mora? — perguntou o menino.
— Quem?
— Fawley … é assim que ele se chama.
Sue correu a avisar Judas e este veio, o mais depressa que pôde. Mas, na sua
impaciência, Sue achava que ele estava demorando muito.
— Como assim, já é ele…. tão cedo? — perguntou ela, quando Judas
apareceu.
Sue examinou as feições do menino e, de súbito, retirou-se para o pequeno
salão contíguo. Judas ergueu o menino até o seu nível de altura, olhou-o
atentamente com uma ternura cheia de tristeza. Disselhe, em seguida, que o teria
ido buscar na estação, se tivesse sabido da sua chegada imediata, sentou-o numa
cadeira e foi ter com Sue que, tal como previa, encontrou transtornada, tão viva
era a sua sensibilidade. Estava no escuro, inclinada sobre o espaldar de uma
cadeira de braços. Enlaçou-a vivamente e, colocando sua face à dela,
murmurou: — Que é que há?
— O que Arabela disse é verdade… perfeitamente verdade. Vejo você nele!
— Sim, enfim aí está uma coisa na minha vida que é como devia ser!
— Mas, a outra metade do menino é…! E é isso que não posso admitir. No
entanto, devo suportar… e me esforçarei por me habituar a isso. Sim, devo!
— Minha pobre e ciumenta Sue! Retiro tudo o que disse sobre a sua
assexualidade. Não se preocupe. O tempo acertará tudo… E, minha querida Sue,
tenho uma ideia! Nós o educaremos e instruire-mos visando a universidade. O
que não pude conseguir na minha própria pessoa, talvez o consiga nele. Como
você sabe, agora, estão fazendo maiores facilidades para os estudantes pobres.
— Sonhador! — disse Sue. E, segurando a mão de Judas, voltou com ele para
junto do menino. Este olhou para ela como ela o tinha olhado.
— É você que é, enfim, a minha verdadeira mãe? — perguntou ele.
— Por quê? Será que pareço ser a mulher de seu pai?
— Parece. Exceto que você parece gostar dele e ele de você. Posso chamar
você de mamãe?
Nesse momento, o menino teve um olhar implorante e começou a chorar. Ao
que Sue não pôde deixar de fazer, imediatamente, o mesmo, sendo por natureza
uma harpa que o menor sopro de emo-
ção, proveniente de um outro coração, fazia vibrar tão facilmente.
— Querido, você, se quiser, pode me chamar de mamãe! — disse Sue,
encostando a face na do menino para esconder as suas lágrimas.
— Que é que você tem, em volta do pescoço? — perguntou Judas, afetando
calma.
— A chave da minha mala que ficou na estação.
Ocuparam-se do menino, fizeram-no jantar e prepararam-lhe uma cama
provisória, na qual em breve pegava no sono. Ambos ficaram a olhá-lo dormir.
— Ele chamou você de mamãe duas ou três vezes antes de dormir —
murmurou Judas. — Não foi estranho que tivesse feito esse pedido?
— Foi bastante significativo — disse Sue. — Para nós, há mais coisas que
procurar nesse pequeno coração faminto do que em todas as estrelas do céu…
Suponho, querido, que devemos arranjar coragem e deixar de lado toda essa
cerimônia, não? Não adianta nada lutar contra a corrente e sinto-me englobada
em toda a espécie feminina. Ó, Judas, você me amará ternamente, depois, não
amará? Quero, realmente, ser boa para o menino. Quero ser mãe para ele. E,
talvez, o fato de tornarmos legal o nosso casamento me facilite a tarefa.
IV
A VIDA que o casal levava, que passara despercebida, começou, desde o dia
do casamento falhado, a ser observada e discutida por outras pessoas, além de
Arabela. Os habitantes da rua Primavera e os das circunvizinhanças não
compreendiam, e nunca poderiam ser levados a compreender, os sentimentos
particulares de Sue e de Judas, sua situação, suas emoções, seus temores. Os
fatos estranhos representados pela chegada de uma criança que chamava Judas
de papai e Sue de mamãe, e pela interrupção da cerimônia do casamento, junto
aos rumores que haviam circulado dos seus divórcios, só podiam ter uma única
significação para aquelas almas simples.
O Pequeno Pai do Tempo — pois, ainda que tivesse oficialmente recebido o
nome de Judas, o apelido tão adequado lhe ficara — ao voltar para casa da
escola, à noite, repetia as perguntas e as observações que lhe faziam os outros
meninos. E isso causava a Sue e a Judas, quando o ouviam, grande tristeza e
sofrimento.
O resultado foi que, pouco depois da tentativa falhada de casamento, o casal
se ausentou por alguns dias — para Londres, ao que se acreditava —, deixando
alguém tomando conta do menino. Quando voltaram, deixaram entender, com
uma indiferença completa e um ar de náusea, que estavam, enfim, legalmente
casados. Sue, que antes fora chamada de senhorita Bridhead, adotou então
abertamente o nome de senhora Fawley. Sua atitude triste, intimidada e inquieta,
pareceu, durante algum tempo, provar a veracidade do fato.
Mas o erro (como foi chamado) de se terem casado tão secretamente
manteve muita coisa do mistério de suas vidas. E eles verificaram que não
haviam progredido tanto, nas suas relações com os vizinhos, quanto esperavam.
Um mistério vivo não era menos interessante do que um escândalo morto.
O filho do açougueiro e do merceeiro que, antes, tiravam galantemente o
chapéu diante de Sue, quando vinham trazer compras, deixaram, desde essa
época, de lhe prestar essa homenagem. E as mulheres dos operários da
vizinhança olhavam fixamente o solo, quando passavam por ela.
Ninguém a molestava, é verdade. Mas uma atmosfera opressora começou a
cercar suas almas, principalmente depois da excursão à Feira, como se essa
visita os tivesse submetido a alguma influência diabólica.
E eles tinham um temperamento precisamente feito para sofrer dessa
atmosfera que não podia aliviar com declarações vigorosas e francas. A aparente
tentativa de reparação viera tarde demais para ser eficaz.
As encomendas de monumentos e epitáfios diminuíram. Dois ou três meses
mais tarde, quando veio o outono, Judas percebeu que teria de voltar a trabalhar
como diarista, contingência tão mais desgraçada quando não tinha ainda regulado
as dívidas contraídas para pagar as custas do processo de divórcio.
Uma noite, estava jantando com Sue e com o menino.
— Estou pensando — disse ele a Sue — que não continuarei mais aqui. É
certo que essa vida nos convém. Mas, se pudéssemos ir para um lugar onde não
fossemos conhecidos, sentiríamos o coração mais leve e teríamos melhores
possibilidades. Assim, receio muito que tenhamos de largar isso, por mais
maçante que seja para você, querida!
Sue ficava sempre muito comovida quando se via tratada como um objeto de
piedade. Uma lágrima lhe veio aos olhos.
— Na verdade, não me sinto zangada — declarou ela, ao fim de um instante.
— Sinto-me, apenas, muito deprimida pelo modo pelo qual me olham aqui. No
entanto, você manteve essa casa unicamente para mim e para o menino!
Pessoalmente, não faz questão disso e a despesa é desnecessária. Mas, qualquer
coisa que façamos, não importa onde tenhamos de ir, você não tirará o menino
de mim, não, Judas querido? Agora, não o posso deixar mais! A nuvem que
obscu-rece o espírito dele torna-o tão emocionante aos meus olhos! Espero, um
dia, ainda poder dissipá-la. E ele gosta tanto de mim! Você não o tirará de mim
não?
— Certamente que não, minha menina querida! Arranjaremos um bom
alojamento não importa onde formos. Provavelmente terei de mudar muito de
lugar… arranjando um emprego aqui, outro acolá.
— Também eu farei qualquer coisa, naturalmente, até… até que… Já que
não posso mais me tornar útil desenhando letras para você, forçoso será que volte
a minha atividade para um outro setor qualquer.
— Não se preocupe com empregos — disse Judas, num tom de lástima. —
Não quero que o faça. Na verdade, preferiria que não, Sue. Cuidar do menino e
de você própria já é suficiente.
Bateram à porta e Judas foi abrir. Sue pôde ouvir a conversa:
— O senhor Fawley está em casa?… Biles e Willis, empreiteiros, mandaram-
me saber se o senhor quer aceitar a tarefa de refazer o texto dos Dez
Mandamentos, numa pequena igreja que acabaram de restaurar, aqui na
vizinhança.
Judas refletiu um pouco e disse que podia aceitar.
— Não é um trabalho muito artístico — continuou o mensageiro.
— O pastor é um homem muito antiquado e recusou-se a permitir que se
fizesse alguma coisa mais na igreja, além de uma limpeza e de uns reparos
indispensáveis.
“Velho formidável!”, pensou Sue que, sentimentalmente, se opunha aos
horrores das restaurações excessivas.
— As tábuas dos Dez Mandamentos se encontram na extremidade leste da
igreja — continua o mensageiro — e é preciso que sejam refeitas, de modo a
ficar de acordo com o resto do muro, já que o pastor não quer que sejam levadas
como materiais velhos, a serem entregues ao empreiteiro, segundo o costume.
Resolveram a questão do preço e Judas foi para dentro de casa.
— Veja você — disse alegremente —, em qualquer caso, teremos a igreja
inteira para nós, já que o resto do trabalho está terminado. No dia seguinte, Judas
foi à igreja que distava apenas duas milhas. Verificou logo que era verdade o que
o empregado do empreiteiro lhe dissera.
As Tábuas da Lei Judaica lá estavam severamente encimando os
instrumentos da graça cristã como o principal ornamento do fundo do santuário,
no seu belo estilo frio do século passado. Dali não podiam ser retiradas para
conserto. Uma parte delas, comida pela umidade, exigia renovação. Quando isso
foi feito e o resto limpo, Judas recomeçou a inscrição. Na manhã seguinte, Sue
veio para ver em que podia ser útil e, também, porque ambos gostavam de estar
juntos.
O silêncio e a solidão da igreja lhes deram confiança e, de pé num andaime
seguro e baixo que Judas construíra, e onde, no entanto, hesitou em subir, Sue
começou a pintar as letras da Primeira Tábua, enquanto Judas fazia reparações
numa parte da Segunda. Sue se sentia muito satisfeita com a sua habilidade.
Adquirira-a quando pintava textos iluminados para a loja de objetos religiosos de
Christminster. Parecia que ninguém devesse vir perturbá-los. E o agradável
gorjeio dos pássaros, o fremir da folhagem de outubro, chegavam até eles por
uma janela aberta e se misturavam às suas palavras.
No entanto, não deviam ficar assim contentes e em paz por muito tempo.
Cerca de meio-dia e meia, ouviram passos lá fora. O velho vigário e o seu
fabriqueiro entraram e, vindo examinar o trabalho, mostraram-se surpresos por
verem que uma moça estava ajudando Judas. Passaram a uma outra ala da
igreja e, no mesmo momento, a porta se abriu de novo e surgiu uma nova
figura… pequena dessa vez, a do Pequeno Pai do Tempo, que estava chorando.
Sue lhe dissera onde a podia encontrar, caso o quisesse, no intervalo das aulas.
Ela desceu do andaime e perguntou:
— Que é que há, meu querido?
— Não pude ficar na escola, almoçando, porque eles disseram…
Contou, então, como alguns meninos tinham caçoado dele por causa da sua
mãe adotiva. E Sue, aflita, testemunhou sua indignação a Judas que continuava no
andaime. O menino foi para o pátio e Sue voltou ao seu trabalho. Nesse ínterim, a
porta se abriu de novo e a mulher que limpava a igreja entrou, de avental branco,
com ar ocupado. Sue a reconheceu, pois ela possuía amigos na rua da
Primavera, onde frequentemente ia. A limpadora olhou para Sue, abriu a boca e
levantou as mãos para o céu. Evidentemente, identificara a companheira de
Judas, tão bem quanto esta a reconhecera. Em seguida, vieram duas senhoras
que, depois de terem falado com a mulher, se aproximaram também e
contemplaram, de baixo, a mão de Sue traçando as letras, analisando, em tom
crítico, toda a sua pessoa que ficava em relevo sobre o muro branco. Por fim,
Sue ficou tão nervosa que tremia a olhos vistos.
Voltaram, depois, para onde os outros estavam, falando a meia-voz. Disse
uma delas, sem que Sue pudesse distinguir qual era: — Suponho que seja mulher
dele, não?
— Uns dizem que sim. Outros, que não — replicou a limpadora.
— Não? Mas, devia ser… ou de alguém mais… é claro!
— Só se casaram há algumas semanas, se é que se casaram.
— Estranho casal para pintar as Duas Tábuas! Espanto-me que Biles e Willis
tenham pensado em empregar pessoas assim!
O fabriqueiro sugeriu que Biles e Willis podiam nada saber de desfavorável a
eles, e a senhora que falara com a limpadora explicou o que quisera dizer,
quando chamara o casal de pessoas estranhas.
O assunto provável daquela conversa a meia-voz tornou-se evidente quando o
fabriqueiro, num tom que todo mundo podia ouvir na igreja, começou a contar
uma anedota, visivelmente inspirada pela situação momentânea: — Vejam, é
uma coisa curiosa, mas meu avô me contou uma história escabrosa, um caso
muito imoral que sucedeu quando estavam sendo pintados os Mandamentos
numa igreja de Gay mead… fica a um passo daqui. Nessa época, os
Mandamentos eram geralmente escritos em letras douradas, sob fundo negro, e
assim podiam ser vistos, na igreja de que falei, antes de ela ser reconstruída. Foi
há cerca de uns cem anos que esses Mandamentos foram gravados, exatamente
como os nossos sendo repintados, e tiveram que mandar buscar homens de
Aldbrickham para fazer o trabalho. Queriam que o serviço estivesse concluído
num determinado domingo e, por isso, os operários tiveram que trabalhar até
tarde no sábado à noite, a contragosto, pois as horas suplementares não eram
pagas, então, como o são hoje. Não havia verdadeira religião no país, nessa
época, nem entre pastores, nem entre clérigos, nem no povo, e assim, para
manter os homens no trabalho, o vigário teve de dar-lhes muita bebida durante a
tarde. Como a noite avançasse, mandaram buscar eles próprios mais bebida,
principalmente rum. Já era muito tarde e os operários estavam cada vez mais
bêbados, até que, por fim, instalaram suas garrafas e copos sobre a mesa da
Comunhão, avançaram um ou dois bancos, instalaram-se neles confortavelmente
e serviram-se, ainda, copiosas doses. Segundo narra a história, assim que haviam
esvaziado o primeiro copo, caíram todos sem sentidos. Quanto tempo ficaram
nesse estado, não o sabem dizer. Mas, quando voltaram a si, havia lá fora uma
tempestade terrível e pareceu-lhes ver, na obscuridade, uma sombria silhueta, de
pernas finas e pés estranhos, em pé na escada, terminando o trabalho deles.
Quando o dia raiou, puderam verificar que a tarefa estava realmente terminada
e que nada mais tinham a fazer ali. Voltaram para casa. Pouco depois, souberam
que houvera um grande escândalo na igreja, naquela manhã de domingo: quando
o ofício começou, os presentes viram que os Dez Mandamentos estavam pintados
sem nenhum dos “Nãos”. As pessoas de bem não quiseram mais assistir ao
serviço e o bispo teve de ser chamado para consagrar de novo a igreja. Essa é a
história, tal como eu a ouvi na minha infância. Aceitem-na como quiserem, mas,
como já disse, o caso de hoje fez-me rememorá-la.
Os visitantes lançaram um último olhar, como para ver se Judas ou Sue
tinham também omitido os “Nãos” e, em seguida, saíram da igreja, a limpadora
por último. Judas e Sue, que não haviam cessado de trabalhar, mandaram o
menino de volta para a escola e ficaram sem dizer palavra, até que, olhando para
Sue de perto, Judas percebeu que ela estivera chorando em silêncio.
— Não se importe, camarada! — disse ele. — Sei bem o que isso é.
— Não posso suportar que essas pessoas… que todo mundo ache os outros
culpados, só porque escolheram viver a seu modo! São realmente esses
julgamentos que perturbam as pessoas mais bem-intencionadas e terminam por
torná-las imorais!
— Não se deixe abater! Era apenas uma narração engraçada.
— Sim, mas fomos nós que a sugerimos! Vindo aqui, receio ter prejudicado
você, Judas, em vez de ter ajudado!
Terem evocado uma história como aquela certamente não era muito
agradável, se considerassem seriamente a posição em que estavam. No entanto,
depois de alguns instantes, Sue pareceu ver o lado cômico de tudo aquilo e,
enxugando os olhos, pôs-se a rir.
— É engraçado, apesar de tudo — disse ela — que, entre todas as pessoas do
mundo, sejamos nós dois, com a nossa estranha aventura, que tenhamos
arranjado este trabalho! Você, um réprobo… e eu… nas minhas condições!… Ó
meu Deus!
Com a mãos tapando os olhos, Sue riu de novo, em silêncio e sem parar, até
que as forças lhe faltaram para continuar.
— Assim é melhor — disse Judas alegremente. — Estamos de novo prontos
para recomeçar, não estamos, querida?
— Sim, mas, de qualquer modo, é sério — suspirou Sue, retomando o pincel.
— Mas, você vê, eles acham que não somos casados. Eles não querem acreditar
nisso! É formidável!
— Pouco me importo que acreditem ou não — disse Judas. — E não farei o
menor esforço para que acreditem.
Sentaram-se para almoçar. Tinham trazido a comida para não perder tempo
e, assim que terminaram a refeição, preparavam-se para retomar o trabalho,
quando um homem, no qual Judas reconheceu o empreiteiro Willis, entrou na
igreja. Fez um sinal para Judas e falou-lhe à parte.
— Veja, acabo de receber uma reclamação a seu respeito disse Willis, num
tom bastante atrapalhado. — Não quero discutir o fundo da questão —
naturalmente, não sabia o que se passava —, mas receio ter de pedir a vocês dois
para cessar o trabalho e deixar que um outro o acabe! Será melhor, para evitar
qualquer espécie de aborrecimento. Pagarei a sua semana inteira, do mesmo
modo.
Judas era por demais altivo para reclamar. Assim, o empreiteiro lhe pagou e
foi embora. Judas juntou os seus utensílios e Sue limpou o seu pincel. E, então,
seus olhares se encontraram.
— Como fomos nós… bastante ingênuos… para imaginar que pudéssemos
fazer esse trabalho! — disse Sue, com o seu costumeiro acento trágico. —
Naturalmente, não devíamos… eu não devia… ter vindo!
— Não tinha a menor ideia que alguém pudesse vir se intrometer num lugar
tão solitário e nos visse! — replicou Judas. — Bem, querida, nada podemos
contra isso. E eu não desejo trazer prejuízo ao negócio de Willis, permanecendo
aqui.
Ficaram passivamente sentados por alguns segundos, depois saíram da igreja
e, apanhando o menino na escola, retomaram, pensativos, o caminho de
Aldbrickham.
Judas se interessava sempre por tudo que dizia respeito à educação e,
naturalmente, dela se ocupava ativamente, na limitada medida dos seus meios,
todas as vezes que a ocasião se apresentava. Fazia parte de uma Sociedade de
Progresso Mútuo para Artífices, estabelecida na cidade mais ou menos no
momento da sua chegada.
Seus membros eram jovens de todos os credos, inclusive pastores,
congregacionistas, batistas, unitaristas, positivistas e outros. Dos agnósticos apenas
se começava a ouvir falar, nessa época — o desejo comum de alargar o espírito
sendo suficiente para promover a união entre eles. A cotização era pouco elevada
e o lugar de reunião acolhedor. A atividade de Judas, seus conhecimentos acima
do comum e, mais que tudo, sua especial intuição do que devia ser lido e do
melhor modo de aproveitá-lo — adquirida durante os anos de luta contra o
destino adverso — fizeram com que fosse escolhido para a comissão diretora.
Poucas noites depois de ter sido despedido, e antes de ter encontrado novo
trabalho, compareceu a uma reunião da citada comissão. Quando lá chegou, era
tarde. Todos os outros membros já tinham chegado e, quando entrou, olharam-no
desconfiadamente e mal lhe deram uma palavra de boas-vindas. Adivinhou que
qualquer coisa a seu respeito havia sido discutida. Depois de ter regulado algumas
questões sem importância, descobriu-se que o número de subs-crições diminuíra
subitamente, naquele bairro. Um dos membros — na verdade um homem justo e
bem-intencionado — pôs-se a falar, por enigmas, sobre determinadas causas
possíveis. Tornava-se necessário examinar com cuidado os regulamentos.
Porque, se a comissão não era respeitada e não tinha, apesar das diferenças de
opiniões, pelo menos uma linha de conduta comum, a instituição não poderia
resistir. Nada mais foi dito em presença de Judas, mas ele compreendeu o que
aquilo significava. Aproximando-se da mesa, escreveu um bilhete pedindo
demissão do lugar que ocupava.
Assim, o casal por demais sensível cada vez mais se sentia impelido a partir.
Acumularam-se contas e um problema se colocou: que fim poderia Judas dar à
velha e pesada mobília de sua tia, se deixasse a cidade para viajar daqui para ali
e dali para mais adiante? Isso e a necessidade premente de dinheiro compeliram
Judas a fazer um leilão, apesar de preferir muito guardar aqueles móveis
veneráveis.
O dia do leilão chegou e Sue preparou, pela última vez, o almoço dos três, na
casa que Judas mobiliara. Aconteceu ser um dia de chuva. Além disso, Sue não
se sentia bem e não queria abandonar o seu pobre Judas em tão tristes
circunstâncias, pois ele devia permanecer, por algum tempo, em casa. Seguiu,
pois, o conselho do leiloeiro e fechou-se num quarto do andar superior, de onde
tinham sido tirados os móveis. Foi aí que Judas a descobriu. E, junto com o
menino, algumas poucas malas, cestas, embrulhos, e mais duas cadeiras e uma
mesa que não figuravam no leilão, ficaram sentados, conversando e meditando.
Ouviram-se em breve os passos na escada dos que chegavam para examinar
os móveis, alguns dos quais eram tão antigos e curiosos que adquiriam o valor
adventício de objetos de arte. Duas ou três vezes tentaram abrir a porta do quarto
onde estavam e, para se proteger contra qualquer tentativa de intrusão, Judas
escreveu “Privado” num pedaço de papel e colocou-o do lado de fora.
Dentro em breve, Sue e Judas perceberam que os supostos compradores não
se ocupavam com os móveis, mas com a própria história deles dois, discutindo o
passado de ambos de um modo inesperado e absolutamente intolerável. Foi só
então que descobriram quanto se haviam enganado vivendo como que em sonho
e se julgando ignorados por todos. Sue segurou em silêncio a mão do
companheiro e, de olhos fixos um no outro, ouviram as diversas observações dos
que passavam — a personalidade estranha e misteriosa do Pequeno Pai do
Tempo constituindo uma espécie de tema fundamental em todas aquelas alusões
e insinuações. Por fim, o leilão começou na sala de baixo, de onde lhes chegava
o barulho da adjudicação: os objetos familiares passavam um por um, os mais
apreciados por eles se vendendo mal e aqueles aos quais não davam grandes
valor atingindo preços inesperados.
— As pessoas não nos compreendem — suspirou Judas pesa-damente. —
Sinto-me contente por termos decidido partir.
— Mas o problema é saber para onde ir.
— Devia ser para Londres. Lá cada um pode viver como quer.
— Não, querido, Londres não! Conheço bem a cidade. Poderemos ser
infelizes lá.
— Por quê?
— Você não sabe por que?
— Porque Arabela está lá?
— Essa é a principal razão.
— Mas, no interior do país, recearei sempre que se repita a nossa última
experiência. E não me interessa, para diminuir esse risco, ter de explicar, entre
outras coisas, a história desse menino. Para fazer com que esqueça o passado,
resolvi guardar silêncio. Fiquei desgostoso em relação ao trabalho em igrejas e
não gostaria de aceitá-lo, se me oferecessem.
— Você deveria ter estudado escultura clássica. Afinal, o gótico é uma arte
de bárbaros. Pugin estava errado e Wren certo. Lembre-se do interior da
catedral de Christminster — quase o lugar em que nos vimos pela primeira vez.
Debaixo do pitoresco dos detalhes normandos pode-se adivinhar a infantilidade
grotesca de um povo inculto que ensaia imitar as formas romanas desaparecidas,
conser-vadas apenas por uma vaga tradição.
— Sim, você já quase me converteu a esse ponto de vista, pelo que me disse
anteriormente. Mas pode-se trabalhar numa coisa e, ao mesmo tempo, desprezá-
la. Tenho que trabalhar em algo, seja escultura gótica ou não!
— Desejaria que encontrássemos, ambos, uma ocupação na qual não se
levassem em conta questões íntimas — disse Sue, sorrindo tristemente. — Estou
tão desqualificada para o ensino quanto você para a arte religiosa. Você terá que
se atirar sobre as estações, pontes, teatros, music-halls, hotéis, enfim, sobre tudo
que não tenha nada a ver com a boa conduta.
— Não é muito o meu gênero… Deveria ter-me tornado padeiro.
Como você sabe, fui criado numa padaria, com minha tia. Mas, mesmo um
padeiro tem que se submeter às convenções, se quiser ter fregueses.
— A não ser que estabeleça uma barraca de doces e pães de mel nas feiras e
nos mercados, lugares onde se é de uma indiferença perfeita por tudo quanto não
é a qualidade das mercadorias.
Foram arrancados desses pensamentos pela voz do leiloeiro:
— Agora, este banco de carvalho antigo… exemplar único do velho
mobiliário inglês e que merece a atenção de todos os colecionadores.
— Era de meu bisavô — disse Judas. — Gostaria de ter podido guardar essa
pobre velharia!
Um por um, os móveis partiam, enquanto a tarde passava. Judas, Sue e o
menino começavam a ficar cansados e a ter fome. Mas, depois das conversas
que tinham ouvido, sentiam-se envergonhados de sair, antes de os compradores
terem ido embora. Por fim, chegou a vez dos últimos lotes. Tornava-se
necessário sair, dentro em pouco, apanhando chuva, de modo a levar as coisas de
Sue para o alojamento provisório.
— Agora, o último lote: dois casais de pombos, todos vivos e gordos… com
que fazer um ótimo pastelão para o próximo domingo.
Essa venda constituiu a mais dura prova de toda a tarde. Eram os favoritos de
Sue, e o fato de não poder guardá-los foi para ela mais penoso do que a perda de
toda a mobília. Procurou reter as lágrimas, quando ouviu o preço insignificante
no qual avaliaram os seus queridos pombos e que subiu, por pequenas etapas, até
a adjudicação. O comprador era um vendedor de aves da vizinhança. Deviam,
pois, sem sombra de dúvida, morrer antes do próximo dia de mercado.
Vendo que Sue procurava esconder sua tristeza, Judas a beijou e disse que já
estava na hora de ele ir ver se os quartos alugados estavam prontos. Iria com o
menino e logo viria buscá-la.
Tendo ficado sozinha, Sue esperou pacientemente, mas Judas não voltou. Por
fim, partiu, o caminho já estando livre. Passando diante da casa do vendedor de
aves, viu o pombos num cesto, junto à porta.
A emoção de vê-los, junto à obscuridade crescente da noite, fez com que
tivesse um gesto impulsivo: olhando rapidamente à volta de si, puxou a cavilha
que prendia a coberta do cesto. Em seguida, continuou o seu caminho. Logo a
coberta foi levantada de dentro para fora e os pombos voaram fazendo um
barulho de asas que trouxe o vendedor à porta da casa, onde se pôs a reclamar e
a lançar imprecações.
Sue chegou, toda trêmula, ao quarto que Judas e o menino procuravam tornar
confortável.
— Os compradores pagam antes de levar o que compram? — perguntou,
sem poder respirar.
— Creio que sim. Por quê?
— Porque, nesse caso, fiz uma coisa muito má! — E Sue contou tudo com
um arrependimento cheio de amargor.
— Deverei pagar ao vendedor de aves, caso ele não agarre os pombos —
disse Judas. — Mas, não se preocupe. Não se aborreça com isso, querida.
— Foi tão tolo de minha parte! Mas, por que a lei da natureza tem de ser
sempre a matança mútua?
— É sempre assim, mamãe? — perguntou o menino atento.
— É! — disse Sue com veemência.
— Pois bem, eles agora vão jogar a sua sorte, pobres coitados! — disse Judas.
— Assim que tiver recebido o dinheiro do leilão e tiver pago nossas contas,
partiremos.
— Para onde iremos? — perguntou o Pequeno Pai do Tempo, inquieto.
— Devemos partir com destino ignorado, para que ninguém nos possa
seguir… Não deveremos ir para Alfredston, nem para Melchester, nem para
Shaston, nem para Christminster. Fora esses, poderemos ir para qualquer outro
lugar.
— Por que não devemos ir para esses lugares, papai?
— Por causa de uma nuvem que se formou sobre nossas cabeças, embora
não tenhamos prejudicado ninguém, corrompido ninguém, enganado ninguém!
Talvez por isso tenhamos feito aquilo que, aos nossos próprios olhos, parecia justo
fazer.
VII
NUNCA MAIS, a partir daquele dia, Judas Fawley e Sue foram vistos em
Aldbrickham.
Ninguém sabia para onde tinham ido e ninguém se preocupava em sabê-lo.
Quem tivesse a curiosidade de indagar o paradeiro daquele obscuro casal,
poderia descobrir, sem grande dificuldade, que se haviam aproveitado da grande
habilidade profissional de Judas para abraçar uma vida de constantes mudanças,
quase nômade, que não deixava de apresentar atrativos, por algum tempo.
Onde quer que Judas ouvisse falar em possibilidade de trabalho, para lá se
dirigia, escolhendo, de preferência, lugares bem distantes daqueles em que já
estivera com Sue. Apegava-se a uma tarefa, longa ou curta, e trabalhava até
terminá-la. Depois, seguia adiante.
Assim se passaram dois anos e meio. Às vezes, era encontrado consertando
as esquadrias de uma casa de campo, outras vezes colocando o parapeito de um
edifício público, ou ainda pavimentando um hotel em Sandbourne, ou um museu
em Casterbridge, outras vezes bem mais longe, em Exonbury, ou mesmo em
Stoke-Barehills. Depois, ainda esteve na próspera cidade de Kennetbridge, que
distava cerca de doze milhas de Mary green, e esse foi o máximo que se
aproximou da aldeia onde era conhecido. Porque tinha uma aversão doentia pela
ideia de que aqueles que o haviam conhecido, na época da sua mocidade ardente
de estudos e promessas e na de sua rápida e infeliz experiência conjugal,
pudessem questioná-lo sobre sua vida e situação.
Em alguns desses lugares, detinha-se meses a fio, em outros apenas algumas
semanas. A estranha e súbita aversão por qualquer trabalho religioso, quer
episcopal, quer não-conformista que nele despertara quando sofria por se sentir
incompreendido, permanecera depois que recobrara seu sangue frio, não tanto
pelo receio de uma nova censura, como por um exagero de escrúpulos que lhe
impedia de ganhar a vida das mãos daqueles que condenavam seu procedimento.
E, também, devido à contradição existente entre sua crença primitiva e sua atual
religião. Restavam-lhe apenas vestígios daquela fé que o levara até Christminster.
Estava se aproximando do estado de espírito em que Sue se encontrava, quando a
conhecera.
Numa noite de sábado do mês de maio, quase três anos depois do dia em que
Arabela reconhecera Judas e Sue na Feira Agrícola, alguns daqueles que ali se
tinham visto encontraram-se novamente.
Era a Feira da Primavera, em Kennetbridge, e, embora esta festa tradicional
tivesse perdido muito da sua antiga importância, a rua, comprida e reta,
apresentava uma aspecto festivo, por volta do meio-dia. Nesse momento, um
leve carrinho, vindo do norte, entrou na cidade e se dirigiu, em meio a outros
veículos, até a porta de um café que não servia bebidas. Duas mulheres saltaram
dele. A que viera dirigindo era uma camponesa de aparência vulgar; a outra, de
corpo esbelto, usava um longo véu de viúva. Seu costume, preto e bem talhado,
destoava um pouco naquele ambiente agitado de feira de província.
— Vou procurar informar-lhe do lugar exato, Anny — disse a viúva à sua
companheira, depois que um homem se aproximara para levar o cavalo e o
carrinho — e, em seguida, voltarei para encontrar você aqui. Então, entraremos
para tomar alguma coisa. Estou começando a me sentir como se fosse desmaiar.
— Com todo prazer — replicou a outra —, embora tivesse preferido muito ir
ao Checkers ou ao Jack. Não se consegue grande coisa nesses cafés que não
servem bebidas.
— Ora, não se deixe levar pela gula, minha filha — disse a viúva, em tom de
reprovação. — Este é o lugar que nos convém. E está entendido: encontrar-nos-
emos dentro de meia hora, a menos que venha comigo procurar onde fica a nova
capela.
— Não faço questão de ir. Depois você poderá me contar tudo.
As duas companheiras se separaram. A de luto seguiu num passo firme,
indiferente à multidão. Indagou de uns e de outros e, por fim, chegou a um
tabique de madeira, onde escavações indicavam os alicerces de uma construção.
Em um ou dois grandes anúncios afixados na madeira, podia-se ler que a pedra
fundamental da capela seria lançada naquela tarde, às três horas, por um
pregador de Londres, muito famoso no seu meio.
Ciente disso, a viúva, coberta de longos véus, voltou sobre seus passos e pôs-se
a observar o movimento da feira. No fim de um certo tempo, sua atenção foi
chamada por uma pequena barraca de pães e bolos, em meio a outras mais
pretensiosas com estacas e toldos. Cobria-a um pano imaculado e, atrás do
balcão, estava uma mulher, jovem, aparentemente com pouca experiência
daquele negócio, e que era ajudada por um menino com aspecto de um velho.
— Juro por minha alma! — murmurou a viúva para si mesmo. — Esta é Sue,
mulher dele… é ela mesmo! — Aproximou-se da barraca.
— Como está, senhora Fawley ? — disse docemente.
Sue ficou lívida, ao reconhecer Arabela através do véu de luto.
— Como vai, senhora Cartlett? — respondeu secamente. Mas, em seguida, e
a despeito de si mesma, reparando no vestuário de Arabela, sua voz tomou um
tom mais amigo. — O que, a senhora perdeu…
— Meu pobre marido. Sim. Morreu de repente, há seis semanas, não me
deixando em muito boa situação, embora tivesse sido sempre bom para mim. No
negócio de licores, os lucros, quaisquer que sejam, vão sempre para quem os
fabrica e não para quem os vende… E você, meu menino, imagino que não me
conheça, não é?
— Conheço sim. A senhora é a mulher que eu pensava que era minha mãe,
até que soube que não era — replicou o Pequeno Pai do Tempo, em cuja fala já
se reconhecia, bem espontânea, a pronúncia do Wessex.
— Está bem, não importa. Sou uma amiga.
— Judazinho — chamou Sue subitamente —, vai até a estação com esta
bandeja que, eu creio, ainda há um trem por chegar.
Depois que o menino se retirou, Arabela prosseguiu:
— Pobre pequeno, nunca conseguirá ser uma beleza, não é verdade?! Saberá
ele que sou sua verdadeira mãe?
— Não, apenas desconfia que há algum mistério a respeito de seu
nascimento. Quando crescer mais um pouco, Judas lhe contará toda a verdade.
— Mas, por que razão você está nesse ramo de negócio? Sinto-me surpresa.
— Trata-se de uma ocupação passageira. Uma fantasia nossa, enquanto
estamos atravessando um mau momento.
— Então você ainda vive com ele?
— Sim.
— Casada?
— Claro!
— Tem filhos?
— Dois.
— E, pelo que vejo, um terceiro, para breve.
Sue padecia com este questionário direto e seco. Sua boca suave e pequenina
se pôs a tremer.
— Deus meu, que motivo há para você chorar? Muitos pais se orgulhariam
disso.
— Não pense que estou envergonhada. Pelo menos, não pelo motivo que
você está pensando. Mas, parece-me tão trágico… tão pretensioso… trazer
criaturas ao mundo, que às vezes me pergunto se temos o direito de agir assim.
— Não leve a coisa assim tão a sério, minha cara. Mas, você ainda não me
disse por que motivo exerce este ofício. Antigamente, Judas era um homem
orgulhoso, que mantinha, em qualquer situação, a sua superioridade.
— É possível que meu marido tenha mudado um pouco, daquela época para
cá. Não estou certa de que tenha deixado de ser orgulhoso — e os lábios de Sue
tremeram novamente. — Estou aqui porque ele apanhou um golpe de ar, no
começo desse ano, quando estava trabalhando na fachada de pedra de um teatro
de variedades em Quartershot. A obra tinha de estar concluída em determinado
dia e ele teve de trabalhar debaixo de chuva. Agora, já está melhor, mas foi um
período longo e exaustivo. Quem esteve nos ajudando a atravessar essa crise foi
uma velha amiga nossa que é viúva. Mas vai partir dentro em breve.
— Bem, também eu me tornei respeitável, graças a Deus e, desde a perda
que sofri, tenho um modo de pensar muito sério. Por que você escolheu vender
pães de mel?
— Foi por simples acaso. Judas foi educado numa padaria e, então, lembrou-
se de tentar esse ofício que pode exercer sem sair de casa. Nós os chamamos de
bolinhos de Christminster. Têm muita saída.
— Nunca provei nenhum tão gostoso. Há uns que têm forma de janelas,
torres, pináculos. Asseguro-lhe que são muito bem feitinhos.
Arabela se serviu de um bolinho e pôs-se a mastigá-lo sem cerimônia.
— Sim, são reminiscências dos Colégios de Christminster. Veja, janelas
góticas e claustros. Judas teve a ideia de reproduzi-los nos pãezinhos.
— Sempre a mesma coisa: Christminster… até mesmo nos pães! — caçoou
Arabela. — Isso é bem de Judas! Subjugado por uma paixão. Que criatura
estranha ele é, e sempre será!
Sue suspirou e deixou entrever sua tristeza por ouvir alguém criticá-lo.
— Você não é dessa opinião? Ora, vamos, você concorda comigo, embora o
ame muito!
— É certo que Christminster é uma espécie de obsessão que o acompanha e
na qual suponho que nunca deixará de crer. Ele ainda a considera como um
grande centro de ideias elevadas e inovadoras, em vez de vê-la tal qual é, ou
seja: um ninho de medíocres professores, cuja característica essencial é um
tímido servilismo em relação à tradição.
Arabela estava fazendo pouco de Sue, não tanto pelo que dizia, como pela
maneira de falar.
— Como é estranho ouvir uma mulher que vende bolinhos falar assim! —
disse Arabela. — Por que você não volta a tomar conta da escola?
Sue abanou a cabeça.
— Eles não me querem lá.
— Por causa do divórcio, imagino, não?
— Por isso e por outras coisas mais. E não há razão para que deseje voltar
para lá. Renunciamos a qualquer ambição, e nunca tínhamos sido tão felizes até o
dia em que ele caiu doente.
— Onde é que você está morando?
— Não sinto vontade de dizer.
— Aqui em Kennetbridge?
Pelo jeito de Sue, Arabela verificou que tinha acertado.
— Aí está de volta o menino — prosseguiu Arabela —, filho meu e de Judas.
Os olhos de Sue fuzilaram.
— Você não tinha necessidade de me atirar isso na cara! — exclamou.
— Está certo. Embora me pareça que gostaria de tê-lo algum tempo comigo.
Mas, meu Deus, não quero tirá-lo de você… — que pecado falar tão
profanamente assim!… embora julgue que, para vocês, já devem bastar os que
têm. Sei que está em muito boas mãos e não sou mulher para achar errado aquilo
que o Senhor determinou. Passei a ser uma alma resignada.
— Deveras? Quisera eu ser assim!
— Você deve tentar — respondeu a viúva do alto da serena convicção da sua
superioridade, não apenas espiritual, mas, também, social. — Ainda que não faça
alarde de minha volta à religião, não sou mais o que era. Uma vez, depois da
morte de Cartlett, ia passando pela capela que fica na rua seguinte à nossa e fui
obrigada a entrar para me refugiar de uma pancada de chuva. Depois da perda
que tinha sofrido, sentia necessidade de ajuda moral, e, achando que era
preferível à bebida, passei a ir ali regularmente e encontrei lá um grande
consolo. Mas, como você sabe, agora não estou mais em Londres e, no
momento, moro com minha amiga Anny, em Alfredston, para ficar perto da
minha velha região natal. Hoje não vim aqui para assistir à feira. Um pregador
de Londres, muito famoso, vai lançar, esta tarde, a pedra fundamental de uma
nova capela e vim com Anny até aqui. Agora, preciso voltar para me encontrar
com ela.
Arabela se despediu de Sue e partiu.
VIII
NAQUELA TARDE, Sue e todas as outras pessoas que passeavam pela feira
de Kennetbridge ouviram um canto vindo do interior de uma paliçada existente
na extremidade da rua. Aqueles que espiaram para dentro dela viram um
agrupamento de pessoas com vestes es-peciais, um livro de cânticos nas mãos, à
volta dos alicerces da nova capela. Arabela Cartlett, com o seu véu de viúva,
estava de pé entre eles. Possuía uma voz possante, clara, que se podia facilmente
distinguir no meio das outras. E seu busto farto subia e descia, conforme o tom
dos cânticos se elevava ou diminuía.
Naquele mesmo dia, duas horas depois de terem tomado chá no Hotel da
Liga Antialcoólica, Anny e a viúva Cartlett se puseram em marcha, de volta para
casa, através da planície que se estende entre Kennetbridge e Alfredston.
Arabela estava pensativa.
Mas seus pensamentos não se relacionavam com a nova capela, como Anny
julgou, a princípio.
— Não, não se trata disso — disse por fim Arabela, em tom aborrecido. —
Vim hoje aqui pensando apenas no pobre Cartlett, ou então nessa nova capela que
foi começada esta tarde e que tem por fim pro-pagar a nossa fé. Mas aconteceu
uma coisa que modificou bastante o fio de minhas ideias. Anny, ouvi falar dele e,
quanto a ela, via-a hoje.
— Quem?
— Tive notícias de Judas e vi a sua mulher. E, a partir desse momento, não
obstante cantasse os hinos com todo o fervor, não pude deixar de ficar pensando
nele. Como membro da nossa igreja, não tenho direito de agir assim.
— Será que você não poderá fixar sua atenção no que o pregador de Londres
disse hoje e, assim, ficar livre dessas constantes imaginações?
— Posso. Mas, a despeito de mim mesma, meu coração culpado me
arrastará.
— Ah, sei bem o que é ter-se uma imaginação incontrolável! Se eu lhe
contasse o que às vezes sonho, contra a minha vontade, você veria que passei por
duras lutas! (Anny também só passara a levar vida séria um pouco tarde, quando
o amante a largara.)
— Que poderei fazer? — perguntou Arabela, em tom mórbido.
— Você poderia, com uma mecha de cabelos de seu defunto marido, mandar
fazer um broche de luto e olhar para ele todas as horas do dia.
— Não conservei nem um fio! E, mesmo que o tivesse feito, isso não daria
resultado algum. Apesar de tudo quanto se diz a respeito do conforto da religião,
bem quisera ter Judas de volta para mim!
— Você deve repelir energicamente esse sentimento, já que Judas pertence a
outra pessoa. Também ouvi dizer que, quando uma viúva é assaltada por desejos
voluptuosos, deve ir, ao cair da noite, até a sepultura do marido, e ali ficar muito
tempo de pé, com a cabeça inclinada.
— Qual! Sei tão bem quanto você o que devo fazer. Apenas, não o faço.
As duas mulheres ficaram em silêncio, enquanto o carrinho seguia pela
estrada reta até que, um pouco além, à esquerda, Mary green surgiu no horizonte.
Tendo vindo pela estrada principal, chegaram à encruzilhada onde se tomava o
caminho da aldeia, e já se avistava, através do vale, a torre da igreja. Quando se
aproximaram mais e passaram pela casa abandonada onde Arabela e Judas
haviam vivido seus primeiros anos de casados, e onde se dera o episódio da
matança do porco, Arabela não se controlou mais.
— Ele é mais meu que dela! — exclamou. — Gostaria de saber que direitos
tem sobre ele! Se pudesse, tirá-lo-ia dela!
— Puxa, Abby ! E seu marido que morreu há apenas um mês! Reze para
afastar essa tentação!
— O diabo me carregue, se eu fizer isso! Sentimentos são sentimentos! Aí
está, não quero mais ser hipócrita!
Arabela tirou precipitadamente do bolso o que restava de um maço de
folhetos que trouxeram para distribuir na feira. Enquanto falava, lançou esses
remanescentes por sobre a cerca.
— Tentei esse gênero de cura, mas não deu resultado. Preciso ser tal qual
nasci!
— Cale-se. Você está se exaltando, querida. Agora, vá para casa sossegada,
tome uma xícara de chá, e que não se fale mais sobre Judas. Não passaremos
mais por esta estrada, que conduz até ele, pois isso excita você demais. Breve se
sentirá novamente bem.
Arabela foi se acalmando aos poucos e atravessaram a estrada. Quando iam
descendo a comprida e íngreme encosta, depararam com um homem alto, de
idade avançada e fisionomia pensativa, andando com certa dificuldade. Levava
um cesto nas mãos. Seu ar um pouco descuidado, junto a qualquer coisa de
indefinível na sua aparência, fazia pensar num homem que fosse para si próprio,
ao mesmo tempo, sustentáculo, dono de casa, confidente e amigo, visto não
possuir ninguém no mundo que pudesse fazer todas essas coisas por ele. O resto
da jornada que as mulheres tinham para fazer era todo de caminhos planos. E
elas, calculando que o velho também se dirigisse para Alfredston, ofereceram-
lhe um lugar no carrinho, convite que ele logo aceitou.
Arabela o olhou e tornou a olhar, até que afinal falou:
— Se não me engano, estou falando com o senhor Phillotson, não?
Foi a vez de o viajante olhar para Arabela.
— Sim, chamo-me Phillotson — respondeu ele. — Mas, não a estou
reconhecendo, minha senhora.
— Lembro-me bem de si. Fui sua aluna, quando o senhor era professor, em
Mary green. Eu morava em Crescombe, mas, como lá não tínhamos senão uma
professora, e o senhor ensinava melhor, ia todos os dias à escola de Mary green.
Todavia, o senhor não podia nunca se lembrar de mim… como me lembro do
senhor. Sou Arabela Donn.
O professor sacudiu a cabeça negativamente.
— Não — disse ele com delicadeza —, não me recordo desse nome.
E dificilmente poderia reconhecer, na respeitável matrona de hoje, a frágil
menina que a senhora deve ter sido.
— Bem, sempre fui farta de carnes. Falando de outro assunto: estou morando
atualmente com uns amigos. Suponho que o senhor saiba com quem me casei.
— Não.
— Com Judas Fawley, também seu aluno… do curso noturno, pelo menos… e
por algum tempo apenas, não? E, depois, foi conhecido seu, se não me engano.
— Deus meu, Deus meu! — disse Phillotson, abandonando a sua rigidez. —
Você é a mulher de Fawley ?! É isso mesmo, ele tinha mulher! E ouvi dizer que
ele…
— Divorciou-se, tal como o senhor. Por melhores razões, talvez…
— De fato?
— Bem, talvez ele tenha agido certo assim… e isso, em benefício de nós.
Pois, logo me casei de novo e tudo correu muito bem até que meu marido
morreu, faz pouco tempo. Mas, o senhor, não há dúvida que errou!
— Não! — disse Phillotson, num ímpeto de mau humor. — Embora
preferisse muito não conversar sobre isso… estou convencido de ter agido bem, e
de um modo justo e decente. Meus atos e opiniões têm me causado muitos
sofrimentos, mas eu os sustento ainda. A perda de Sue foi uma real perda para
mim sob mais de um aspecto.
— Por causa dela, o senhor perdeu sua escola e uma boa renda, não foi?
— Não desejo falar sobre isso. Faz pouco que voltei para cá… quero dizer,
para Mary green.
— O senhor continua a se ocupar da escola de lá, como antigamente?
A tristeza pesou sobre Phillotson e forçou-o a falar:
— Estou lá. Não exatamente como antes Toleram-me, simplesmente. Era um
último recurso… alguma coisa de pequeno para a qual voltar, após minha
tentativa de alçar voo e minhas esperanças tanto tempo alimentadas… uma volta
ao marco zero, com todas as inevitáveis humilhações. Mas é um refúgio. Gosto
do isolamento do lugar. E o vigário, que me conhecera antes que meu… por
assim dizer… estranho procedimento para com minha mulher tivesse estragado
minha reputação como professor, aceitou meus préstimos, quando todas as outras
escolas me recusavam. E, embora ganhe aqui apenas cinquenta libras por ano,
depois de ter ganho mais de duzentas em outros lugares, prefiro isso a correr o
risco de ouvir pessoas me lançarem no rosto meus desastres conjugais, o que
certamente aconteceria se fosse para outro lugar.
— O senhor tem razão. Um espírito satisfeito consigo mesmo é uma eterna
festa. Ela não se saiu melhor que o senhor.
— Você quer dizer que Sue não está em boa situação?
— Encontrei-a hoje, por acaso, em Kennetbridge, e os negócios não
pareciam estar andando muito bem. O marido está enfermo e ela, muito aflita. O
senhor cometeu um erro louco em relação a ela, repito-o eu. E, se me perdoar a
liberdade, direi que mereceu bem seu castigo por ter coberto de lama o próprio
ninho.
— Como assim?
— Ela era inocente.
— Loucura sua! Eles nem sequer quiseram se defender, quando do processo
de divórcio!
— Isso foi porque não se importaram. Ela não tinha culpa alguma na questão
que deu ao senhor a sua liberdade. Eu a vi logo após e, conversando com ela,
fiquei convencida disso.
Phillotson se agarrou à beirada do carrinho e mostrou-se muito impressionado
e inquieto com a informação.
— No entanto, ela quis partir… — disse.
— Sim, mas o senhor não deveria ter deixado. É a única maneira de agir
certo com essas mulheres complicadas… sejam inocentes ou culpadas. Com o
tempo, teria voltado às boas. Todas nós voltamos!
O hábito é mais forte! No final, tudo se resolve da mesma maneira!
Entretanto, creio que ela ainda gosta dele, não importa o que ele seja para
ela. O senhor foi muito precipitado em relação a ela. E eu nunca deveria tê-la
deixado partir! Devia tê-la feito ficar à força… e seu espírito de revolta em
pouco tempo se teria submetido. Não há nada melhor do que a servidão e um
mestre inflexível para nos dominar, a nós, mulheres. Além do mais, o senhor
tinha as leis a seu favor. Moisés sabia bem o que fazia. O senhor não se lembra do
que ele dizia?
— Sinto, mas, no momento, creio que não, minha senhora.
— O senhor, um professor! Quando eu ouvia essas palavras na igreja, elas
me impressionavam muito e ficava pensando nelas: “En-tão o homem será
inocente, mas a mulher suportará o peso da sua iniquidade”. Isso é duro para nós,
mulheres. Mas, devemos nos conformar. Ah! Ah!… Ela teve o que mereceu!
— Sim — disse Phillotson, com amarga tristeza no tom. — A crueldade é a lei
que rege a natureza e a sociedade. Mesmo que quiséssemos, não poderíamos nos
libertar!
— Bem, não deixe de lembrar-se disso na próxima ocasião, meu amigo.
— Não sei o que lhe responder, minha senhora. Nunca soube muita coisa a
respeito de mulheres.
Tinham chegado à várzea, na entrada de Alfredston e, ao atravessar os
subúrbios, passaram por um moinho. Phillotson declarou que tinha um negócio a
tratar ali. Então, elas pararam o veículo e ele desceu, desejando-lhes boa-noite,
com ar preocupado.
Enquanto isso Sue, embora estivesse vendendo bastante na Feira de
Kennetbridge, perdera a alegria que logo de começo a dominara ao verificar o
sucesso que estava tendo no seu negócio. Quando se esgotou a sua provisão de
“bolinhos de Christminster”, apanhou o cesto vazio, o pano que estivera cobrindo
a barraca de aluguel e, dando o resto das coisas para o menino carregar, pôs-se
com ele a caminho de casa. Andaram meia milha até que encontraram uma
mulher idosa levando ao colo uma criança de vestidinho curto e puxando outra
pela mão.
Sue beijou a criança e perguntou: — Como ele está passando agora?
— Está melhor! — respondeu a viúva Edlin alegremente.
— Não tenha medo que, antes de você dar à luz, seu marido estará de novo
bem.
Seguiram juntas e chegaram a umas casinhas de telhado escuro, cercadas de
jardins com árvores frutíferas. À porta de uma delas, entraram sem bater,
levantando a tranca, e logo se acharam na sala de estar. Ali se dirigiram a Judas,
que estava sentado numa cadeira de braços. A finura ainda mais acentuada de
suas feições, de comum já delicadas, e seu olhar infantil e ansioso, bastavam
para indicar que acabava de atravessar um grave período de doença.
— O quê! — Venderam todos? — disse ele, e uma chama de interesse lhe
iluminou o rosto.
— Sim. Janelas, pináculos, torres, tudo! — Sue mostrou o resultado pecuniário
apurado e, depois teve uma hesitação. Por fim, quando ficaram sós, contou-lhe
seu inesperado encontro com Arabela, explicando-lhe que estava viúva.
Judas se mostrou perturbado.
— O quê! Ela está morando aqui? — perguntou.
— Não, em Alfredston — disse Sue.
A reação de Judas permanecia secreta.
— Pensei que era melhor contar isso a você — continuou Sue, beijando-o
com sofreguidão.
— Pois é claro!… Santo Deus! Arabela aqui, e não nos confins de Londres!
Daqui a Alfredston, são pouco mais de umas doze milhas. Que é que ela faz lá?
— Ela vai muito à igreja — acrescentou Sue — e fala em consequência.
— Bem — disse Judas —, talvez tenha sido bom termos decidido partir. Estou
hoje me sentindo muito melhor e creio que, dentro de uma ou duas semanas,
estarei pronto para viajar. Então, a senhora Edlin poderá voltar para casa. Que
boa alma e quão querida! A nossa única amiga neste mundo!
— Para onde você pretende ir? — indagou Sue, com lágrimas na voz.
Então, Judas confessou seu plano. Disselhe que a surpreende-ria, talvez,
depois de ter evitado firmemente, por tanto tempo, voltar aos velhos lugares. Mas
uma coisa e outra o tinham feito pensar muito em Christminster ultimamente e,
se ela não se opusesse, gostaria de voltar para lá. Que lhes importava serem
conhecidos? Era um exagero, da parte deles, preocuparem-se tanto com isso.
Quanto ao trabalho, se não encontrassem outro, poderiam continuar a vender
pãezinhos. Não se envergonhava de ser pobre. E, quem sabe, não tornaria a ficar
tão forte quanto antes, e poderia se dedicar, novamente, a talhar pedra por sua
própria conta.
— Por que faz tanta questão de Christminster? — disse Sue, pensativa. —
Christminster não se importa a mínima com você, meu querido!
— Mas eu me importo com Christminster. E não há nada a fazer.
Amo aquela cidade, embora saiba como ela odeia homens como eu, esses de
quem se diz que “se fizeram às próprias custas”; como despreza todas as coisas
que aprendemos com esforço, quando devia ser a primeira a respeitá-las; como
se ri de nossos passos em falso, de nossos erros, quando devia ser a primeira a
dizer: “Como você precisa de au-xílio, meu amigo!” … Não obstante, ela é, para
mim, o centro do Universo, por causa dos meus sonhos de infância. E nada pode
alterar isso. É possível que ela acorde em breve e se mostre generosa. Assim
seja! Gostaria de morar outra vez, quiçá de morrer lá. Creio que, dentro de duas
ou três semanas, poderei partir. Será então o mês de junho e há um determinado
dia que gostaria de passar em Christminster.
Sua esperança de melhorar de saúde era tão bem fundada que, no fim de três
semanas, chegavam à cidade das santas recordações. E seu pés pisavam aquele
solo, e a luz do sol, caindo sobre os muros em ruínas, se refletia neles.
Sexta Parte
De Novo em Christminster
ESTHER (Apoc)
R. BROWNING
I
O HOMEM que Sue, na sua reviravolta mental, considerava agora como seu
inseparável marido, continuava a viver em Mary green.
Na véspera do dia da tragédia das crianças, Phillotson os tinha visto, Judas e
ela, no momento em que, debaixo da chuva, esperavam pela passagem do
cortejo. No momento nada disse ao seu companheiro. Era um amigo velho,
Gillingham, que viera passar alguns dias com ele, e que tinha sugerido a excursão
a Christminster.
— Em que é que você está pensando? — perguntou Gillingham, quando
voltaram para casa. — No diploma da universidade que nunca conseguiu?
— Não, não — disse Phillotson asperamente. — Estou pensando em alguém
que vi ainda há pouco. — E ao cabo de alguns momentos, acrescentou: —
Suzana.
— Também eu a vi.
— E não disse nada.
— Não queria chamar sua atenção para ela. Mas, já que a viu, deveria ter
dito: Como vai você, minha querida ex-mulher?
— É. Poderia. Mas, que é que pensa disso: tenho boas razões para supor que
ela era inocente quando nos divorciamos… e que estava errado. Sim, de fato! É
estranho, não é?
— De qualquer modo, parece que ela teve o cuidado de dar razão a você
depois, não?
— Hum!… É fácil gracejar com essas coisas. O fato é que eu,
indiscutivelmente, deveria ter esperado.
No fim da semana, depois que Gillingham voltou para a sua escola, que
ficava perto de Shaston, Phillotson foi, como costumava, ao mercado de
Alfredston. Ruminava sempre as notícias dadas por Arabela, enquanto descia a
encosta que tinha conhecido muito antes de Judas, se bem que não se tivessem
desenrolado ali os momentos mais patéticos de sua vida. Chegando à cidade,
comprou o jornal de costume, e sentando-se num café para refrescar um pouco
a garganta antes de recomeçar as cinco milhas de volta, tirou o jornal do bolso e
pôs-se a lê-lo. A notícia do “estranho suicídio dos filhos de um entalhador de
pedras” chamou sua atenção.
Apesar de ser calmo por natureza, ficou terrivelmente impressionado e
surpreso, pois não compreendia como o menino mais velho podia ter a idade que
lhe atribuíam. No entanto, via-se bem que a notícia do jornal era verdadeira, pelo
menos por alguns lados.
— O cálice de sofrimento deles está agora cheio! — disse ele.
E pensou e repensou em Sue, no que tinha ganho deixando-o.
Arabela morando agora em Alfredston e vindo o professor ao mercado todos
os sábados, nada de extraordinário havia em que, algumas semanas depois, se
encontrassem de novo. Fora logo em seguida à volta de Arabela de Christminster,
onde se tinha demorado mais do que pensava, vigiando Judas com um olho bem
interessado, apesar de ele não a ter tornado a ver. Phillotson voltava para casa,
quando encontrou Arabela que estava chegando à cidade.
— Gosta de passear neste caminho, senhora Cartlett? — perguntou ele.
— Estou recomeçando a passear agora — respondeu Arabela. — Foi aqui
que vivi solteira e casada, e tudo o que tem valor para mim, no meu passado, está
mais ou menos ligado a este caminho. E essas coisas estão muito vivas em mim,
pois estou voltando de Christminster. Pois é. E estive com Judas.
— Ah! E como é que eles estão suportando a grande desgraça?
— De uma maneira estranha. Muito estranha. A mulher não está mais
vivendo com ele. Só soube disso pouco antes de partir, se bem que tivesse
desconfiado de que as coisas estavam caminhando para esse lado, quando estive
com eles.
— Não está vivendo com o marido? Como assim? Pensei que isso fosse até
uni-los mais.
— Ele não é marido dela, afinal. Nunca se casaram, apesar de terem vivido
como marido e mulher por tanto tempo. E agora, em vez de essa desgraça ter
feito com que fossem depressa legalizar a situação, ela apareceu com umas
ideias religiosas estranhas, mais ou menos como as que tive, quando perdi
Cartlett. Somente as dela são muito mais histéricas que as minhas. Diz — assim
me disseram — que é sua mulher perante o Céu e a Igreja. Só sua. E que não
pode ser de ninguém mais, por nenhum poder humano.
— Ah! sim?… Então, estão separados?
— Você sabe, o menino mais velho era meu filho…
— Ah! seu!
— Pois é, coitadinho, nascido legalmente, graças a Deus. E talvez ela sinta,
acima de tudo mais, que era eu quem devia estar no seu lugar. Não sei. Quanto a
mim, não ficarei por muito tempo aqui. Tenho que me ocupar de meu pai e não
podemos ficar neste buraco. Espero breve entrar de novo no serviço de algum
bar de Christminster ou de qualquer outra cidade maior.
Separaram-se. Phillotson tendo feito alguns passos na ladeira, parou e voltou,
chamando Arabela:
— Qual é o endereço deles?
Arabela o deu.
— Obrigado e boa tarde.
Arabela retomou seu caminho com um sorriso feio. Continuou a se exercitar
em fazer covinhas no rosto, desde o ponto em que começaram os salgueiros
decepados até onde principiam os hospitais velhos, na primeira rua da cidade.
Enquanto isso, Phillotson subia para Mary green, fazendo pela primeira vez,
depois de tanto tempo, planos para o futuro. Chegando à altura das grandes
árvores que sombreavam a humilde escola, a qual fora reduzido, parou,
imaginando Sue saindo da porta para recebê-lo. Nenhum homem, cristão ou
pagão, jamais sofreu tanto da própria caridade como Phillotson, quando permitiu
que Sue partisse. Tinha caído de seu pedestal, empurrado pelas mãos dos homens
virtuosos, quase morrera de fome e, agora, dependia inteiramente do ordenado
mínimo que lhe proporcionava a escola daquele lugarejo (e, assim mesmo, todo
mundo tinha falado mal do pároco que lhe dera aquela situação). Lembrou-se,
várias vezes, da opinião de Arabela que lhe tinha dito que deveria ter sido mais
severo para com Sue, que seu espírito recalcitrante acabaria por se dobrar. Mas o
pouco caso ilógico e obstinado que tinha da opinião dos outros e dos princípios nos
quais havia sido criado era tal que nunca tivera a menor dúvida de ter agido, em
relação à mulher, exatamente como devia.
Princípios que os sentimentos podem abalar num determinado sentido estão
arriscados a uma catástrofe semelhante, em sentido oposto. O instinto que o tinha
levado a dar a Sue a sua liberdade permitia agora que considerasse sem grande
importância o tempo que Sue vivera com Judas. Ele a desejava ainda, de acordo
com o seu estranho modo de desejar, se bem que não a amasse, e
independentemente de qualquer interesse, gostaria de tê-la de novo a seu lado,
contanto que viesse por sua própria vontade.
Sabia que era preciso muito artifício para lutar contra o sopro frio e inumano
do desprezo do mundo. E ali estavam materiais prontos para facilitar essa luta.
Tornando a receber Sue, casando-se de novo com ela, sob o respeitável pretexto
de que tinha havido um erro no julgamento e de que, portanto, o divórcio era
nulo, poderia voltar a uma vida mais fácil, retomar seus antigos estudos, talvez
mesmo retornar à escola de Shaston, ou, quem sabe, entrar no clero, como
licenciado.
Pensou em escrever a Gillingham para saber sua opinião, e se achava bem
que ele escrevesse a Sue. Gillingham respondeu, naturalmente que, se ela tinha
ido embora, o melhor era deixá-la sossegada, pois que, realmente, se era mulher
de alguém, era do homem a quem tinha dado três filhos, e com quem tivera
aventuras tão trágicas. Provavelmente, já que ele parecia gostar tanto dela, o
estranho casal acabaria por legalizar sua união e tudo estaria certo, em ordem,
perfeitamente decente.
“Mas não o farão! Sue não quererá fazê-lo!”, exclamou Phillotson para si
mesmo. Gillingham tem ideias antiquadas. Sue está impres-sionada e
influenciada pelo espírito de Christminster. Imagino muito bem as suas ideias
acerca da indissolubilidade do casamento e sei de onde elas vêm. Não são as
minhas, mas vou me servir delas para chegar ao meu fim.
Escreveu uma carta-resposta a Gillingham: “Sei que estou completamente
errado, mas não concordo com você. Quanto a ela ter vivido com ele e dele ter
tido três filhos, acho que embora não possa dar nenhum argumento moral ou
lógico em favor de meu modo de ver, isso pouco mais fez do que completar sua
educação. Vou escrever a Sue para saber se o que essa mulher disse é verdade
ou não”.
Como já tinha decidido agir assim, antes de escrever ao amigo, não havia
realmente razão para essa carta. No entanto, era da natureza de Phillotson
proceder assim.
Em consequência, escreveu a Sue uma cuidadosa e bem pensada carta e,
conhecendo o seu temperamento emotivo, deixou transparecer aqui e ali uma
severidade peremptória, escondendo cuidadosamente suas opiniões heterodoxas,
para não amedrontá-la. Tendo sabido como suas ideias haviam mudado, achou-
se na obrigação de lhe dizer também como as dele se tinham modificado, depois
dos acontecimentos que se haviam seguido à sua partida. Não lhe podia esconder
que a paixão pouco tinha a ver com a sua comunicação. Provinha de um desejo
de fazer de suas vidas, senão um sucesso, pelo menos um desastre menor do que
estava sendo por culpa do erro que tinham cometido pensando agir por princípios
de caridade, justiça e razão.
Tinha percebido que ninguém pode, sem perigo, numa civilização velha
como a nossa, se deixar levar a um sentimento instintivo e descontrolado de
justiça e de direito. Era necessário agir de acordo com uma noção artificial
adquirida, se se queria gozar uma parte razoável de vida fácil e honrada, e deixar
a misericórdia de lado.
Sugeria que viesse morar com ele, em Mary green.
Pensando melhor, suprimiu o penúltimo parágrafo. E, tendo recopiado a
carta, enviou-a imediatamente, esperando o resultado com alguma excitação.
Alguns dias depois, viu-se uma forma avançando no meio do ruço que
envolvia o subúrbio de Beersheba, dirigindo-se para a casa onde Judas Fawley
morava desde que se separara de Sue. Bateu timidamente à porta.
Como era de noite, Judas estava em casa. E, como se adivinhas-se, ergueu-se
e correu ele mesmo para abri-la.
— Você pode sair comigo? Prefiro não entrar. Eu queria… conversar e ir
com você ao cemitério.
Sue dissera estas palavras com voz trêmula. Judas pôs o chapéu na cabeça.
— Está um tempo terrível para você ficar na rua — disse ele. — Mas, se
prefere não entrar, não me importo.
— Prefiro sim. Não reterei você por muito tempo.
Judas estava emocionado demais para falar logo. Também Sue não era senão
um feixe de nervos e parecia incapaz de qualquer iniciativa. Avançavam no meio
do ruço como sombras vindas do Aquerão, silenciosas, sem um gesto.
— Queria dizer a você — começou enfim Sue com voz às vezes precipitada,
às vezes lenta — para que não venha a saber disso por acaso. Vou voltar para
junto de Richard. Ele consentiu… tão magnanimamente… em perdoar tudo.
— Você vai voltar? Como pode você…
— Ele vai tornar a se casar comigo. Isso será pela forma, para satisfazer ao
mundo, que não vê as coisas como elas são. Mas, naturalmente, eu já sou sua
mulher. Nada pode mudar isso.
Judas se voltou para Sue com uma angústia quase feroz.
— Mas, você é minha mulher! Sim, é! E sabe disso! Sempre lastimei a farsa
que representamos quando nos ausentamos para fingir que tínhamos legalmente
casado, só para salvar as aparências. Eu gostava de você, você gostava de mim,
vivíamos bem um com o outro, e é isso que faz o casamento. Ainda nos amamos
— eu tão bem quanto você — e eu sei disso, Sue! Portanto, nosso casamento não
está desfeito.
— Sim, bem sei o que pensa a respeito — disse Sue, fazendo o possível para
conter seu desespero. — Mas vou me casar de novo com ele, Judas, chame você
isso como quiser. E, para falar francamente — perdoe-me de lhe dizer isso! —
você deveria receber de novo… Arabela.
— Devia? Deus meu! E depois? E que faria você, se nos tivéssemos casado
legalmente, como estivemos a ponto de fazer?
— Sentiria exatamente a mesma coisa: que nosso casamento não era um
casamento. E voltaria para Richard, sem repetir o sacramen-to, se tal fosse a
vontade dele. Mas o mundo e a opinião das pessoas têm um certo valor, suponho,
e por isso não me oponho a repetir a cerimônia… Não me esmague com sua
ironia e suas sátiras, Judas, peço por favor! Fui mais forte que você, em tempos,
e talvez o tenha tratado cruelmente. Mas, Judas, pague o mal com o bem! Sou a
mais fraca, agora. Não me pague na mesma moeda. Seja bom. Bom para mim,
uma pobre e má mulher que está experimentando se tornar melhor!
Judas balançou a cabeça com desespero, os olhos cheios de lágrimas. A
desgraça que tinha caído sobre ela parecia ter destruído todas as suas faculdades
de raciocínio. A visão tão nítida que tinha tido das coisas parecia ter-se
obscurecido.
— Tudo isso está errado, errado! — disse ele. — Erro… perversidade. Isso
me enlouquece. Você sente alguma coisa por ele. Você gosta dele? Você bem
sabe que não. Será uma prostituição por fana-tismo… Deus me perdoe —, mas é
exatamente o que vai ser.
— Eu não gosto dele… tenho que reconhecer, apesar do remorso que sinto.
Mas experimentarei aprender a amá-lo, obedecendo-lhe.
Judas discutiu, suplicou, implorou. As convicções dela eram mais fortes que
tudo. Parecia ser a única certeza que possuía neste mundo. E sua persuasão
àquele respeito tirava-lhe toda a firmeza em qualquer outro assunto ou desejo
que acaso pudesse ter.
— Pensei bastante e resolvi dizer a verdade, dizê-la eu mesma — continuou,
num tom seco — para que você não se considerasse ofendido, se viesse a saber
do ocorrido por outros. Cheguei mesmo a concordar que não gosto dele. Mas
nunca pensei que você fosse tão duro comigo. Ia mesmo pedir-lhe que…
— Deixasse você ir?
— Não, que me mandasse minhas malas… se você quisesse. Mas, suponho
que não esteja disposto, não?
— Claro que estou. Mas, o quê? Então ele não a vem buscar aqui? Não se
casa com você aqui? Não condescende em fazer isso?
— Não, eu não o permitiria. Vou ter com ele voluntariamente, exatamente
como saí de junto dele. Teremos que nos casar na igrejinha de Mary green.
Sue era tão tristemente doce, no que Judas chamava sua teimo-sia, que mais
de uma vez não pôde deixar de se sentir com lágrimas nos olhos, com pena dela.
— Nunca vi uma mulher capaz de se infligir, voluntariamente, tais
penitências, Sue! Apenas a gente imagina que você vai seguir pelo caminho em
frente, que é a única solução, e já vai você dobran-do na primeira esquina!
— Não importa, deixe estar! … Judas, tenho que lhe dizer adeus. Mas, quero
que você vá ao cemitério. Quero dizer adeus a você lá, diante do túmulo dos que
morreram para me fazer compreender o meu erro.
Saíram na direção do cemitério e fizeram abrir o portão. Sue tinha estado lá
tantas vezes que achou o caminho no escuro. Diante do túmulo, ficaram imóveis.
— É aqui que quero me separar de você — disse Sue.
— Pois seja.
— Não me julgue dura porque agi de acordo com minhas convicções. A sua
dedicação por mim não sofre paralelos. Seu insucesso na vida, se houve
insucesso, está a seu crédito e não em seu desfavor. Lembre-se que os melhores
e os maiores neste mundo são os que não atingem os bens terrestres. Todo
homem que consegue algum sucesso torna-se mais ou menos um egoísta. Os
generosos, falham… “A caridade não procura o próprio benefício”.
— A esse respeito, estamos de acordo, meu bem sempre querido, e, neste
ponto, separamo-nos amigos. O que você citou sempre lhe parecerá certo,
mesmo quando o resto do que você chama religião tiver desaparecido.
— Bem, não discutamos a respeito. Adeus, Judas, meu companheiro no
pecado e meu melhor amigo!
— Adeus, minha pobre mulher que está no erro, adeus!
V
CHEGOU E PASSOU o dia de São Miguel. Judas e Arabela, que não tinham
passado senão pouco tempo, depois do casamento, em casa do senhor Donn,
alojaram-se no último andar de um prédio que ficava perto do centro da cidade.
Judas tinha podido trabalhar durante dois ou três meses depois do grande
acontecimento, mas sua saúde não se mantivera boa e tornara-se, agora, muito
precária. Estava sentado em uma cadeira de braços, em frente à lareira, tossindo
muito.
— Fiz um alto negócio casando-me com você de novo! — dizia Arabela. —
Vou ter que sustentá-lo… foi isso o que arranjei! Terei que fazer salsichas e
linguiças, e vendê-las no meio da rua, para sustentar um marido inválido que não
tinha a menor necessidade de aguentar. Por que não conservou sua saúde e me
enganou deste jeito? Você estava bastante bem, quando me casei.
— Ah! sim! — disse Judas, rindo com amargura. — Estive pensando nos
meus sentimentos absurdos acerca daquele porco que você e eu tivemos que
matar, depois de nosso primeiro casamento. Acho que o maior serviço que me
poderiam prestar seria o de me fazer aquilo que fiz àquele bicho.
Era nesse tom que conversavam, agora, cotidianamente. O dono da casa, que
ouvira dizer que eles eram um casal esquisito, tinha duvi-dado até que fossem
casados, especialmente por ter visto Arabela beijar Judas numa noite, em que
tinha bebido um pouquinho, e já estavam disposto a mandá-los embora, quando,
por sorte, escutou Arabela, uma noite, brigando com Judas, em termos violentos,
e acabando de jogar-lhe um sapato na cabeça. Reconhecendo a maneira de ser
habitual dos casais, concluiu que deviam ser respeitáveis, e nada mais disse.
Judas não melhorou. E, um dia, com grandes hesitações, pediu a Arabela
para fazer-lhe um serviço. Ela perguntou, com indiferença, de que se tratava.
— Escrever a Sue.
— Para que quer você que eu lhe escreva?
— Para saber como ela vai e se quer vir me ver porque estou doente e queria
vê-la… uma vez ainda.
— É bem seu insultar sua mulher legal, pedindo-lhe uma coisa dessas!
— Foi justamente para não afrontá-la que resolvi pedir isto. Você sabe que eu
gosto de Sue. Não quero insistir no assunto: há um fato, e esse fato é que eu gosto
dela. Poderia achar uma dúzia de meios de lhe mandar uma carta, sem que você
soubesse. Mas quero ser muito leal com você e com o marido dela. Uma carta
sua, pedindo-lhe que venha, estaria livre de qualquer cheiro de intriga. Se ela
tiver conservado qualquer coisa de seu, virá.
— Você não tem o menor respeito pelo casamento, seus direitos e seus
deveres.
— E o que é que importa minha opinião — a opinião de um pobre coitado
como eu? Poderá ter importância para alguém neste mundo quem acaso venha
me visitar por uma meia hora, a mim que estou aqui já com um pé no túmulo!…
Por favor, Arabela, escreva! — implorou ele. — Pague minha franqueza com
um pouco de generosidade!
— Certamente que não!
— Nem por uma vez, só uma? Ó! faça, por favor! — Judas sentia que sua
fraqueza física tinha lhe tirado toda a dignidade.
— Para que é que você quer que ela saiba como está? Ela não quer vê-lo. Ela
é como o rato que foge do navio que soçobra!
— Não diga isso… não diga.
— E eu me agarrar em você… a mais tola fui eu!… Receber essa prostituta
em minha casa, engraçado!
Ainda bem as palavras não tinham sido pronunciadas, logo Judas saltou de sua
cadeira e, antes que Arabela soubesse onde estava, jogou-a de costas num
sofazinho que ficava perto, imprensando-a com um joelho:
— Diga uma outra palavra destas — murmurou —, e eu lhe mato, aqui, já!
Tenho tudo a ganhar com isso, minha própria morte não sendo a parte menos
considerável. Portanto, não pense que o que eu disse não tem sentido!
— Que é que você quer que eu faça? — arquejou Arabela.
— Prometa nunca mais falar dela!
— Muito bem. Prometo.
— Aceito sua palavra — disse com desprezo, enquanto a soltava —, mas não
sei bem o que vale.
— Você não podia matar o porco, mas podia ter-me matado!
— Ah! aí é que você me vence! Não, não poderia te matado você, nem
mesmo num acesso de paixão. Saía daí com seus insultos!
Judas começou então a tossir muito. Arabela parecia avaliar, com o ar de
quem conhecia o assunto, o que lhe restava de vida, vendo-o desfalecer, pálido
como um morto.
— Direi para ela vir — murmurou Arabela —, se você consentir em que eu
fique no quarto, com vocês, todo o tempo que ela estiver aqui.
O lado fraco de sua natureza, o desejo de ver Sue, tornou-o incapaz de resistir
ao oferecimento mesmo agora, insultado como fora.
Respondeu, quase sem poder respirar: — Consinto. Mande-a chamar, porém.
De noite, perguntou se tinha escrito.
— Sim — disse ela —, escrevi um bilhete dizendo que você estava doente e
pedindo-lhe que venha amanhã ou depois. Mas, ainda não o enviei.
No dia seguinte, Judas cuidava se ela teria ou não posto a carta na caixa, mas
não lhe perguntou nada. Contudo, a esperança louca, que vive de uma gota de
água e uma migalha, trazia-o numa expectativa desassossegada. Conhecia o
horário dos trens possíveis e escutava ansiosamente qualquer barulho que pudesse
representar um sinal de Sue.
Sue não veio. Contudo, Judas não falou mais nisso a Arabela.
Esperançoso, aguardou todo o dia seguinte, mas Sue não apareceu, nem veio
nenhuma carta em resposta. Então, Judas concluiu que Arabela, embora tivesse
realmente escrito, não tinha posto a carta na caixa. Havia qualquer coisa no jeito
dela que lhe revelava isso. Sua fraqueza era tal que chorava lágrimas de
desapontamento quando Arabela não estava presente. As suas suspeitas eram de
fato bem fundadas. Arabela, como todas as enfermeiras, achava que o seu dever
para com o doente era apaziguá-lo, por todos os meios, e não agir de acordo com
seus caprichos.
Nunca lhe disse uma palavra a respeito de seu desejo e de sua suspeita. Uma
resolução secreta e irrefletida cresceu dentro dele e deu-lhe, senão forças, pelo
menos calma e tranquilidade. Uma tarde, quando, depois de uma ausência de
uma hora ou duas, Arabela voltou, achou a poltrona vazia.
Deixou-se cair sentada na cama, pensando: “E agora? Com todos os diabos,
para onde é que este homem pode ter ido?".
Uma chuva de nordeste tinha caído, com algumas intermitências, durante
toda a manhã. Olhando pela janela as goteiras que pingavam, parecia impossível
acreditar que um homem doente se aventu-rasse a sair, expondo-se a uma morte
quase certa. Arabela, porém, logo se convenceu de que ele tinha saído,
convicção que se transformou em certeza depois de ter inspecionado a casa toda.
— Se ele é tão louco assim, deixe-o! — disse — Nada mais posso fazer.
Nesse momento, Judas estava no trem que se aproximava de Alfredston.
Estranhamente vestido, lívido como uma estátua de alabastro, era olhado com
insistência pelos outros passageiros. Uma hora mais tarde, seu pálido vulto,
envolto num sobretudo enrolado num chale que tinha trazido, mas sem guarda-
chuva, podia ser visto na estrada longa, de cinco milhas, que leva a Mary green.
Sua face estampava um propósito firme que era a única força que o sustenta-va,
mas a que sua fraqueza dava bem pobres alicerces. Quando chegou ao cimo da
encosta, estava exausto, porém continuou e, às três e meia, chegou a Mary green,
junto do poço que lhe era tão familiar. A chuva retinha todo mundo em casa.
Judas atravessou o gramado em direção à igreja sem ser observado, e achando-a
aberta, entrou. Aí ficou, olhando a escola lá fora, donde podia ouvir as vozes
cantantes das crianças, vozes de criaturas que ainda não tinham aprendido os
gemidos da criação.
Esperou até que um meninozinho saísse da escola — um menino que,
provavelmente, tinha sido autorizado a sair mais cedo, por uma razão qualquer.
Judas lhe fez um sinal com a mão e o menino veio.
— Por favor, vá à escola e peça a senhora Phillotson se pode ter a bondade
de vir à igreja, por uns poucos minutos.
O menino partiu e Judas o ouviu bater na porta da casa. Judas avançou um
pouco mais dentro da igreja. Tudo era novo, exceto umas poucas esculturas,
salvas do antigo edifício que tinham sido encastoadas nas paredes novas. Ficou
perto delas. Eram os representantes de todos os mortos da aldeia, seus avós e
avós de Sue.
Um passo leve, que podia ser tomado por um barulho de chuva mais forte,
ressoou no pórtico. Judas se voltou.
— Ó, nunca pensei que fosse você! Nunca pensei! Judas! — Sua respiração
se entrecortava várias vezes. Judas avançou, mas ela depressa se recompôs e
recuou.
— Não vá embora, não vá embora! — implorou Judas. — É pela última vez!
Achei que era menos indiscreto aqui do que entrar em sua casa. E nunca mais
voltarei. Não seja cruel. Sue, Sue, estamos agindo segundo a letra e “a letra
mata”!
— Ficarei, não quero ser má! — disse. Sua boca tremia e as lágrimas
corriam, enquanto permitia que ele se aproximasse. — Mas, por que é que você
veio e fez uma coisa tão errada, depois de ter feito uma tão certa?
— Que coisa certa?
— Tornar a se casar com Arabela. Estava no jornal de Alfredston. Ela nunca
foi de outro, senão sua… em verdade. Portanto, você fez muito bem… ó, tão
bem… em reconhecer isso e… trazê-la de novo para junto de você.
— Deus do céu! E foi isso o que eu vim aqui ouvir?! Se há alguma coisa em
minha vida mais degradante, imoral, contra a natureza, do que as outras, é esse
contrato ignóbil com Arabela, que você classifica de coisa certa! E você
também… você se diz a mulher de Phillotson! Mulher dele! Você é minha
mulher!
— Não me faça fugir! Não posso suportar muita coisa! Mas, nesse ponto,
estou decidida.
— Não posso compreender como é que você fez isso…como é que você
pensa assim… Não posso!
— Não pensei nisso. Phillotson é um bom marido para mim e eu… eu lutei,
me debati, jejuei e rezei. E quase consegui do corpo uma submissão completa. E
você não deve… por favor… acordar.
— Ó, minha menina tão louca e tão querida! Onde está o seu raciocínio?
Você parece que perdeu as suas faculdades mentais. Dis-cutiria com você, se
não soubesse que uma mulher, no seu estado de espírito, é surda a qualquer apelo
que se faça à sua compreensão. Ou será que está se mistificando a si mesma,
como fazem tantas mulheres nestas questões, e que atualmente já não acredita
no que diz acreditar, comprazendo-se apenas na volúpia da emoção que lhe dá
esta suposta convicção.
— Volúpia! Como é que você pode ser tão cruel!
— Pobre, querida, doce, triste e tão melancólica ruína de uma das
inteligências mais promissoras que me foi dado conhecer! Onde foi parar seu
desprezo pelas convenções? Em seu lugar, eu morreria sem abandonar a luta!
— Você me aniquila, me insulta até, Judas! Vá se embora! — disse Sue,
voltando-se rapidamente.
— Vou, sim. E não voltarei nunca mais para vê-la, mesmo se tiver forças
para isso, o que não terei mais. Sue, Sue, você não merece o amor de um
homem!
— Não posso suportar que me diga isso! — gritou Sue. Seu peito arfava e,
tendo fixado os olhos nele um instante, voltou-se, impulsivamente: — Não me
despreze! Ó! Beije-me, beije-me… uma porção de vezes e diga que não sou
uma covarde, uma desprezível mistificadora… Porque isso, não o posso suportar!
— Correu para ele, e, com a boca colada à dele, continuou: — Preciso dizer a
você… preciso… meu amor querido! Foi apenas um casamento na igreja… um
casamento aparente, quero dizer! E foi ele quem sugeriu, desde o princípio, que
assim o fosse!
— Como assim?
— Quero dizer que foi apenas um casamento nominal. Não houve nada mais
entre nós, depois que voltei para ele!
— Sue! — disse Judas. E, apertando-a contra ele, esmagou seu lábios com
beijos. — Se a miséria pode conhecer a felicidade, tive neste instante um
momento de felicidade! Agora, em nome de tudo o que é sagrado para você,
diga-me a verdade, não minta: Você ainda gosta de mim?
— Gosto! Você sabe disso perfeitamente! Mas não devo fazer isso! Não devo
retribuir seus beijos, como quereria!
— Mas beije!
— Você me é tão querido… E parece tão doente…
— Você também… Ainda mais um, em memória de nossos filhinhos
mortos… seus e meus!
Essas palavras feriram Sue como um flecha. Baixou a cabeça: — Não pode
ser, não devo continuar nisso! — arquejou. — Mas, está aí, retribuo todos os seu
beijos, retribuo… E, agora, vou me odiar por ter cometido esse pecado!
— Não! Deixe-me fazer o meu último apelo. Escute: casamo-nos, ambos,
em privação de sentidos. A mim, me embebedaram. Você, da mesma maneira.
Eu estava bêbado de álcool, você de dogmas. As duas formas de intoxicação
fazem com que desapareça qualquer vi-são mais nobre… Deixemos de lado
nossos erros e fujamos juntos!
— Não, uma vez mais, não!… Judas, por que me tenta dessa maneira? É falta
de piedade demais! … Mas, agora, já me dominei de novo… Não me siga, não
olhe para mim. Deixe-me ir, por piedade!
Correu para o outro lado da igreja e Judas acedeu ao seu pedido.
Não virou sequer a cabeça, apanhou o chale, que Sue nem tinha visto, e saiu
logo. Quando passou por detrás da igreja, Sue, de dentro, ouviu o barulho da tosse
dele, misturado ao da chuva que batia nas janelas. Num último instinto de
humanidade, que nenhum grilhão conseguia dominar, ergueu-se para ir em
socorro dele. Mas, de novo caiu de joelhos, tapou os ouvidos com as mãos até
que não fosse possível ouvir nenhum sinal dele.
Judas, nesse momento, estava no lugar de onde saía o pequeno caminho que
cortava os campos nos quais, quando criança, espanta-va as gralhas. Voltou-se, e
olhou para trás mais uma vez, para a igreja onde Sue estava. Depois, partiu,
sabendo bem que seus olhos nunca mais veriam aquele espetáculo.
Há lugares glaciais no Wessex, durante o outono e durante o inverno, porém,
o mais frio de todos, quando sopra o vento norte ou o vento leste, é o topo da
colina, perto da “Casa Escura”, onde a estrada de Alfredston cruza com o
caminho velho de Ridge. É aí que caem, no inverno, as primeiras neves. É aí que
fica o gelo, até mais tarde, na primavera. E era aí que, mordido pelo vento do
nordeste, açoitado pela chuva, Judas prosseguia seu caminho, encharcado até os
ossos, andando, por causa de sua fraqueza, devagar demais para conseguir se
aquecer. Chegou ao marco de pedra, e, apesar da chuva, estendeu o chale e
deitou-se para descansar. Antes de retomar seu caminho, apalpou a pedra para
sentir, atrás, a inscrição que nela tinha gravado. Lá estava, embora meio
destruída pelo limo. Passou pelo lugar onde tinha sido levantada a forca para o
antepassado de ambos, seu e de Sue, e desceu a colina.
Já era escuro quando chegou a Alfredston, onde tomou uma xícara de chá,
não podendo suportar mais o arrepio mortal que sentia invadir-lhe os ossos. Para
voltar para casa, teve que tomar ainda dois trens e um carrinho, a vapor, tendo
esperado muito tempo numa das correspondências. Só chegou a Christminster
depois das dez horas.
IX
FIM
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2014