História Da Alfabetização e Suas Fontes
História Da Alfabetização e Suas Fontes
História Da Alfabetização e Suas Fontes
Equipe de Realização
História da alfabetização
e suas fontes
Universidade
Federal de Editora da Universidade
Uberlândia Federal de Uberlândia
www.edufu.ufu.br
7 Prefácio
Cecilia Maria Aldigueri Goulart
11 Fragmentos históricos da formação continuada do alfabetizador no Brasil
Juliano Guerra Rocha
Sônia Maria dos Santos
Marília Villela de Oliveira
23 O ensino da leitura nas províncias do norte do Brasil: Primeiro Livro de Leitura, de Augusto Ramos Pinheiro
Maricilde Oliveira Coelho
Francisca Izabel Pereira Maciel
39 O campo da História da Alfabetização e sua relação com as fontes
Isabel Cristina Alves da Silva Frade
55 Cartilhas na historiografia da alfabetização: fontes, evidências e produções no Brasil
Cancionila Janzkovski Cardoso
Lázara Nanci de Barros Amâncio
77 Fontes orais para a historiografia da alfabetização
Sônia Maria dos Santos
Michelle Castro Lima
89 As iconografias na história da alfabetização
Juliano Guerra Rocha
Silvia Aparecida Santos de Carvalho
123 Imprensa na historiografia da alfabetização: uma andorinha só não faz verão
Betânia de Oliveira Laterza Ribeiro
Elizabeth Farias da Silva
137 Os livros de leitura na historiografia da alfabetização
Ilsa do Carmo Vieira Goulart
155 Os periódicos na historiografia da alfabetização: temas abordados no período de 1944 a 2009
Márcia Campos Moraes Guimarães
Armindo Quillici Neto
171 Reconstrução do passado através dos vestígios dos documentos oficiais: evidências sobre o ensino de leitura em
Minas Gerais na Reforma Afonso Pena, 1892
Gabriela Marques de Sousa
Rogério Justino
187 A história da cartilha como objeto da cultura material escolar: um percurso metodológico
Vanessa Lepick
Tânia Rezende Silvestre Cunha
Andréia Demétrio Jorge Moraes
201 Sobre os autores
Prefácio
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e hierarquização social, de vários modos; considerar também, em nível pessoal, o lugar variado que a escrita
ocupa na vida de diferentes sujeitos, com diferentes formações, ações, profissões, ocupações, interesses,
necessidades. E as implicações dessa perspectiva se vinculam à concepção de modos de entender o processo
de alfabetização. Aí a dimensão histórica é fundamental.
Não estamos, professores, alunos e outros profissionais envolvidos no trabalho escolar, ensinando
e aprendendo a escrita, partindo do nada para definir ações alfabetizadoras, “tirando o coelho da cartola”.
Estamos tratando de uma linguagem, portanto um arquivo vivo de conhecimentos, que vêm de longe,
coberta e recoberta de muitos sentidos, muitos valores, pensando no horizonte bakhtiniano. Os sentidos e
valores não são descolados desse objeto cultural, se optamos, por exemplo, pelo be-a-bá. Não. Eles continuam
dinâmicos, remetendo a uma história, a um tempo, em que não tínhamos o conhecimento que temos hoje
sobre o campo, sobre a escrita, mas remetendo também à tradição da escola de lidar com conhecimentos de
forma estrutural e, com os alunos, de forma comportamental, assujeitando-os.
Não estou desconsiderando o be-a-bá, que fique claro. O be-a-bá é uma das dimensões da prática
alfabetizadora, mas não lhe é suficiente. Não se aprende a língua oral nem a escrita sem analisá-las em suas
unidades constitutivas. A questão é refletir sobre quem realiza a análise ou como promovemos situações
pedagógicas que provoquem crianças, jovens e adultos a analisar a língua. Ações que os levem a pensar,
discutir, conjecturar sobre como a língua produz sentido, compreendendo como ela se organiza em suas
determinações e indeterminações (cf. Franchi, 1992). Para tanto, é preciso fazer análises, entendendo o
que Franchi destacou muito claramente no prefácio ao livro Portos de passagem (Geraldi, 1991): não existe
discurso sem língua, mas também não existe língua sem discurso.
É no texto que a língua produz sentido e é por meio de textos também, conversando, expondo,
discutindo, ouvindo, contrapondo que, nas classes de alfabetização, isso acontece. E textos vêm de longe.
Não inauguramos a língua quando começamos a utilizá-la; entramos na corrente histórica da língua, da
sociedade. Daí podemos dizer que, na alfabetização que postulamos, a escrita é aprendida em importantes
diálogos com a história. E muito dessa historicidade é carreada pela/na fala dos aprendizes, nos diferentes
sentidos que trazem de suas histórias de vida, suas origens, banhados na oralidade cotidiana de seus grupos
culturais. A riqueza das salas de aula se manifesta esteticamente no fluxo de valores que se aproximam, em
algumas situações, e se afastam, em muitas outras. Vozes sonantes e dissonantes com as vozes da escola; vozes
impregnadas de experiências históricas que nem sempre vivemos, mas que falam de nós, falam daqueles que
ocupam o espaço da sala de aula conosco.
É falando que aprendemos sobre a leitura e a escrita, é lendo e escrevendo que aprendemos a
ler e a escrever textos plenos de vida – da vida dos alunos, da vida social, de histórias de vida, de vidas
passadas e futuras, entre tantas outras possibilidades de vida. Ir ao encontro de histórias da História
da Alfabetização no nosso país nos encaminha para ampliar o conceito de alfabetização – projetar um
processo crítico de aprendizagem da leitura e da escrita... Que vá além do conhecimento da escrita e
da leitura de frases e textos simples... Que transborde em muito a aprendizagem do sistema alfabético
de escrita, para não restringir as possibilidades de transformação dos sujeitos, no que diz respeito a
Prefácio • 9
definidos a priori; ao contrário, sentidos e formas se constroem historicamente nos espaços-tempos mesmos
da enunciação, nos movimentos enunciativos dos sujeitos que são incessantemente renovados.
Uma concepção de alfabetização que não limite e empobreça os usos sociais da linguagem torna
possível fazer do ensino da escrita e da leitura na escola uma atividade criadora e emancipadora. A criação e
a emancipação são fundamentais em tempos de tantos assombros, para dar conta de urgências importantes
na construção e fortalecimento do campo da alfabetização, nos debates enfrentados, na divulgação e
produção de pesquisas na área e, sobretudo, na luta pela alfabetização como direito de todos.
Colegas professores e pesquisadores, eis um livro promissor para continuar nos instigando a refletir
sobre: novas formas de fazer pesquisa em História da Alfabetização; uma revisão nos cursos de formação
de professores; e a criação de alternativas de trabalho no processo de alfabetização que acontece nas salas
de aula. Trata-se de um período fundamental do tempo de escolarização, pela abrangência que as atividades
de falar, ouvir, ler e escrever possuem na escola e na vida em sociedades letradas. É nessa direção que as
políticas públicas voltadas para a escola básica devem ter como horizonte os processos de aprendizagem da
leitura e da escrita. A compreensão pelos professores do trabalho com a escrita na escola, na perspectiva
da práxis histórica da linguagem, faz muita diferença. E conhecer caminhos, vielas e igarapés trilhados no
passado para vivenciar o processo de alfabetização é parte da possibilidade de organizar uma interpretação
desse processo que não aprisione crianças, jovens e adultos, mas que os redimensione e fortaleça individual
e coletivamente como pessoas públicas que podem ser, participando de modo engajado dos processos
sociais. Vamos à leitura!
Referências
BAKHTIN, Mikhail/VOLOCHÍNOV. Marxismo e Filosofia da Linguagem. 4ª. ed. Tradução de Michel Lahud e Yara F.
Vieira. São Paulo: HUCITEC, 1988.
FRANCHI, Carlos. Prefácio. GERALDI, João W. Portos de Passagem. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
FRANCHI, Carlos. Linguagem - atividade constitutiva. Cadernos de Estudos linguísticos, Campinas, 22, 1992[1977],
p.9-39.
SOARES, Magda B. Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento. Brasília: MEC/INEP/REDUC, 1987.
SOARES, Magda B.; MACIEL, Francisca. Alfabetização. Brasília: MEC/INEP/COMPED, 2000. (Série Estado do Conhe-
cimento).
VOLOCHÍNOV, Valentin N. (Do Círculo de Bakhtin). A Construção da enunciação e outros ensaios. Organização, tra-
dução e notas de João Wanderley Geraldi. São Carlos, SP: Pedro e João Editores, 2013.
• 11
implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a Portaria do MEC (Ministério da Educação)
nº 826, de 7 de julho de 2017, que trata sobre o novo formato do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade
Certa (PNAIC), dentre outros acontecimentos que colocam em risco a democracia brasileira e o direito à
diversidade e livre expressão. Ocupando as frestas dos sistemas de educação e de suas políticas, como concebe
o educador Paulo Freire, reiteramos que ensinar não é um ato neutro e, por isso, tem um caráter político:
A prática educativa é tudo isso: afetividade, alegria, capacidade científica, domínio técnico a serviço
da mudança ou, lamentavelmente, da permanência do hoje. Daí sua politicidade, ou seja, a impossibilidade
de se separar educação e política. Aliás, uma tal separação entre educação e política, ingênua ou astutamente
feita, enfatizemos, não apenas é irreal, mas perigosa (Freire, 2001, p.172).
Essa politicidade intrínseca à educação encoraja o diálogo e a certeza da inconclusão do ser humano e, também,
“uma certa rebeldia no sentido mais humano da expressão” (Freire, 2002, p.38). Parte daí o objetivo deste capítulo:
indagar e refletir acerca dos programas de formação continuada destinados aos professores alfabetizadores no
Brasil, lançados a partir dos anos 2000. Vale frisar que não por acaso o objetivo está introduzido por dois verbos,
sendo o primeiro o verbo indagar, já que acreditamos “ser sempre necessário não ter certeza, isto é, não estar
excessivamente certo de ‘certezas’” (Freire, 2011, p.210).
A alfabetização é um problema secular no Brasil: como garantir que todas as crianças sejam
alfabetizadas? Qual o melhor caminho ou perspectiva ou método para se alfabetizar uma criança?
Nessas duas questões poderiam ser incorporadas diversas outras, privilegiadas por professores,
teóricos e/ou iniciativas governamentais. Não faltam perguntas e excedem dissonâncias na área da
alfabetização, o que exige de nós, “ainda que reconhecendo múltiplos SABERES e múltiplos FAZERES, não
nos fecharmos excessivamente cada um, cada grupo, na sua certeza, mas juntarmos as nossas certezas para
realizarmos o nosso QUERER para a alfabetização” (Soares, 2014, p.35).
Embora os dados estatísticos revelem que vem crescendo o número de alunos matriculados e
frequentando a escola, em contraposição atestam que as crianças e adolescentes não conseguem concluir os
ciclos do ensino fundamental dominando, com fluência, as habilidades de leitura e escrita. Como assevera
Mortatti (2016, p.169), “se temos tantas crianças que não conseguem ler e escrever, há algo de errado com
o sistema de ensino”. Aqui, temos um ponto a ser pensado e recorrentemente problematizado: onde está
concentrada a dificuldade da escola em alfabetizar?
Consideramos que as políticas neoliberais no Brasil, sobretudo a partir da década de 90 do século XX,
retomaram o velho e ainda usual discurso de que estaria na figura do professor a grande responsabilidade pelo
fracasso no processo de ensino e aprendizagem. Essas políticas deram destaque isolado ao professor e à sua
formação; contraditoriamente, Soares (2008) adverte que o que vimos foi uma precarização, esvaziamento e
aligeiramento de conteúdos nos processos de trabalho e formação docente.
12 • Juliano Guerra Rocha | Sônia Maria dos Santos | Marília Villela de Oliveira
Em contraste, entendemos que a formação continuada dos professores é uma questão essencial, mas
que, sozinha, não é suficiente para garantir a alfabetização de todas as crianças. Há que se investir em tantas
outras políticas de educação, dispondo de materiais impressos e digitais, aprimorando a infraestrutura
escolar, garantindo a gestão democrática, melhorando as condições de trabalho, jornada e salário dos
professores, e uma série de medidas e ações para a efetivação de um sistema educacional democrático, que
alcance os princípios já promulgados pela Constituição Federal de 1988 e pela Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
Cientes da integração necessária entre as áreas das diferentes políticas de educação, que também
precisam dialogar com as políticas públicas de outros setores, refletiremos, doravante, sobre três programas
de formação continuada, lançados a partir dos anos 2000, destinados aos professores alfabetizadores de
todo o território brasileiro: o PROFA (Programa de Formação de Professores Alfabetizadores), o PRÓ-
LETRAMENTO – Mobilização pela Qualidade da Educação (Programa de Formação Continuada de
Professores dos Anos/Séries Iniciais do Ensino Fundamental) e o PNAIC (Pacto Nacional pela Alfabetização
na Idade Certa).
Esses programas se originaram tanto da valorização do saber docente quanto do discurso da
educação como fator estratégico de desenvolvimento social e econômico. Atualmente, esse discurso é
recontextualizado, sendo a ênfase central das reformas educacionais não mais a expansão da escolarização,
praticamente alcançada no Brasil na educação básica, mas a equidade, entendida como a oferta eficiente e
eficaz do ensino, de modo a garantir condições de aquisição de habilidades e informações que permitam
competir no mercado profissional. Essas políticas, com seus discursos de valorização do professorado e de
seus saberes, trazem também a responsabilização e práticas gerencialistas e performativas.
O primeiro programa, o PROFA, surgiu no processo de desenvolvimento de outro programa
implantado pelo Governo Federal, o “PCN em Ação”. Esse último foi criado em 1999, pelo Ministério da
Educação, por meio da Secretaria de Ensino Fundamental (SEF), com o objetivo de divulgar e estudar os
referenciais curriculares,1 a partir de encontros, trabalhos coletivos e trocas de experiências nas escolas.
O público alvo eram professores da Educação Infantil, Ensino Fundamental (1ª a 8ª série), Educação
Indígena, Educação de Jovens e Adultos e os professores que atuavam nas classes “de alunos portadores
de necessidades especiais, em função de deficiência auditiva, visual, física ou mental” (Brasil, 1999, p.9).
Como resposta a uma demanda, detectada através dos relatórios de avaliação do “PCN em ação”,2 por
formação específica e aprofundada sobre alfabetização, foi criado o PROFA. Tendo como teoria de base a
Psicogênese da Língua Escrita, formulada por Ferreiro e Teberosky (1985), e sob supervisão da Professora
Telma Weisz, o PROFA foi implantado em 2001,3 com o objetivo central de “combater a repetência e
1
Principalmente, os PCNs – Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL, 1997) e os RCNEIs – Referenciais Curriculares
Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 1998).
2
Os coordenadores do “PCN em Ação”, nos municípios, enviavam à SEF regularmente um relatório das atividades rea-
lizadas nos encontros de formação. Alguns desses relatórios estão disponíveis na internet.
3
O lançamento do PROFA ocorreu em 25 de abril de 2001; na ocasião, esteve presente Emilia Ferreiro, homenageada
pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, que também reconheceu a influência do pensamento de Ferreiro no Brasil:
(1) a implantação de uma política nacional, a começar, em 2003, com o incentivo à formação continuada dos
professores dos ciclos ou séries iniciais do ensino fundamental; (2) a ampliação do atendimento escolar, por meio
da extensão da jornada e da duração do ensino fundamental; (3) o apoio à construção de sistemas estaduais de
avaliação da educação pública, também focalizando, em 2003, o alunato dos ciclos ou séries iniciais do ensino
fundamental; (4) a implementação de programas de apoio ao letramento da população estudantil (BRASIL,
2003a, p.6, grifos nossos).
“quero então, terminar essas brevíssimas palavras, dizendo que pessoas como a Senhora que, realmente, inovaram e
que deram uma colaboração no seu país de nascimento, no seu país de adoção, nos países como o Brasil, são pessoas
que merecem todo o nosso reconhecimento. Essa medalha é uma pequeníssima expressão desse reconhecimento”
(CARDOSO, 2001, p.249).
4
Após os seis primeiros meses de existência do PROFA, o Relatório da Gestão Financeira (exercício 2011), da Secretaria
de Ensino Fundamental do MEC, apontava que eram 169 núcleos de formação, organizados em 1.188 municípios bra-
sileiros (BRASIL, 2001a, p.16).
5
Sobre isso, cf. a pesquisa realizada por Leal et al. (2014).
14 • Juliano Guerra Rocha | Sônia Maria dos Santos | Marília Villela de Oliveira
No trecho, percebemos dois enfoques importantes: o primeiro está na ênfase dada à formação dos
professores das séries iniciais, justificada pela realidade brasileira daquele momento: “mais da metade das
crianças com 10, 11 ou 12 anos de idade não sabem ler direito, apesar de terem frequentado a escola por,
no mínimo, quatro anos” (Buarque, 2003, p.3). O segundo foi o destaque dado ao termo letramento, o
que provocou uma entrada dessa terminologia nos documentos oficiais do MEC, e à compreensão do
que é aprender e ensinar a ler e escrever. Apesar de os Parâmetros Curriculares Nacionais e os cadernos
de formação do PROFA já trabalharem com o conceito de letramento, aqui o vemos oficializado como
norteador de uma política.
Como resposta ao programa “Toda Criança Aprendendo”, em 9 de junho de 2003 o MEC publicou
a portaria nº 1.403, que gerou diversas polêmicas, sobretudo pela implementação do Exame Nacional de
Certificação de Professores. Nessa mesma portaria, estava prevista a criação de uma Rede Nacional de
Centros de Pesquisa e Desenvolvimento da Educação (artigo 1º, inciso III), “constituída com o objetivo
de desenvolver tecnologia educacional e ampliar a oferta de cursos e outros meios de formação de
professores” (Brasil, 2003b, p.1). Com a posse do novo Ministro da Educação, Tarso Genro, essa portaria
foi revogada e substituída por outra, a nº 1.472, de 6 de maio de 2004, que instituía o Sistema Nacional de
Formação Continuada de Professores da Educação Básica.
Esse Sistema foi incorporado ao Plano de Qualidade para a Educação Brasileira, proposto por Tarso
Genro e aprovado no Senado Federal em março de 2005. Neste plano, estava incluída a criação do programa
PRÓ-LETRAMENTO, cujo objetivo se centrava na formação continuada de professores das séries iniciais
para “melhoria da qualidade de aprendizagem de leitura, escrita e matemática nos anos ou séries iniciais do
ensino fundamental” (Brasil, 2012a, p.1).
A formação oferecida no PRÓ-LETRAMENTO (PL) estava organizada em dois volumes: o de
Alfabetização e Linguagem e o de Matemática. Cada volume correspondia a 120 horas de formação,
distribuídas em 84 presenciais e 36 à distância. Em 2007, o PL foi incorporado a outras estratégias para
consecução do Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação (Decreto nº 6.094, de 24 de abril
de 2007), que previa a meta: “alfabetizar as crianças até, no máximo, os oito anos de idade, aferindo os
resultados por exame periódico específico”. A Provinha Brasil,6 aplicada pela primeira vez em abril de 2008,
surgiu como resposta a essa demanda.
Logo, o PL, na trajetória dos programas de formação destinados aos professores alfabetizadores,
balizou algumas tentativas para a implantação de uma proposta nacional de currículo e avaliação nas séries
iniciais. O volume sobre Alfabetização e Linguagem (BRASIL, 2008) trazia uma sugestão de currículo,
6
A Provinha Brasil era uma avaliação formulada pelo Ministério da Educação e aplicada no 2º ano do Ensino
Fundamental. Composta pelos testes de Língua Portuguesa e de Matemática, tinha por objetivo diagnosticar o nível de
alfabetização das crianças. Era aplicada duas vezes ao ano, no primeiro e segundo semestres. Foi extinta em 2017, por
meio do Ofício nº 127/2017/GAB-INEP, de 16 de fevereiro de 2017, assinado pela Presidente Substituta do Instituto
Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP), Eunice de Oliveira Ferreira Santos, com a justi-
ficativa de que haveria necessidade de revisão da matriz de referência da Provinha Brasil, devido às mudanças previstas
pela BNCC.
Artigo 1º: A Formação Continuada de Professores Alfabetizadores tem como objetivo apoiar todos
os professores que atuam no ciclo de alfabetização, incluindo os que atuam nas turmas multisseriadas e
multietapa, a planejarem as aulas e a usarem de modo articulado os materiais e as referências curriculares e
pedagógicas ofertados pelo MEC às redes que aderirem ao Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa
e desenvolverem as ações desse Pacto (Brasil, 2012c, p.15).
Não diferente de outras tantas reformas/leis da educação nacional, o PNAIC reafirma, no seu cerne,
a proposta de uma articulação – para não dizer padronização – dos modos de se ensinar nas salas de aula
com as referências curriculares e pedagógicas do MEC.
Até a conclusão de escrita deste capítulo, o PNAIC está em funcionamento.8 Em 2013, o foco foram os
estudos em alfabetização em língua portuguesa; em 2014, matemática; em 2015 e 2016, a tônica foi a integração
entre as áreas de conhecimento na alfabetização e letramento das crianças.9 A formação de caráter presencial foi
amparada pelos cadernos de formação do PNAIC, que trouxeram, desde 2013, a proposição de um currículo
do ciclo de alfabetização organizado através de direitos de aprendizagem. A ênfase na estrutura de um ciclo de
alfabetização, com a garantia de 600 dias letivos para a criança se alfabetizar, foi reiterada pela perspectiva de
introduzir, aprofundar e consolidar habilidades nas diversas áreas do conhecimento, durante o 1º, 2º e 3º anos
do Ensino Fundamental.
7
Em relação às regras de concessão de bolsas de estudo e pesquisa no modelo do PL, o PNAIC ampliou a oferta, conce-
dendo bolsas de incentivo à formação aos professores alfabetizadores, no valor de duzentos reais.
8
“De acordo com dados disponíveis no Sistema Informatizado de Monitoramento do PNAIC (SisPacto), em 2013,
foram capacitados, em Linguagem, 313.599 professores alfabetizadores em curso com carga horária de 120 horas; em
2014, foram 311.916 profissionais e a ênfase da formação foi em Matemática, em curso com carga horária de 160 horas;
em 2015, foram capacitados 302.057 professores em temáticas como Gestão Escolar, Currículo, a Criança do Ciclo de
Alfabetização e Interdisciplinaridade; e, em 2016, foram 248.919 alfabetizadores e 38.598 coordenadores pedagógicos
atendidos em cursos com carga horária mínima de 100 horas e com ênfase em leitura, escrita e letramento matemático”
(BRASIL, 2017b, p.3-4).
9
Para mais informações acerca do PNAIC 2017, cf. Documento Orientador PNAIC 2017 (BRASIL, 2017b).
16 • Juliano Guerra Rocha | Sônia Maria dos Santos | Marília Villela de Oliveira
No contexto do PNAIC, foi instituída, em 2012, a Avaliação Nacional da Alfabetização (ANA),10
destinada aos estudantes do 3º ano do Ensino Fundamental, ano em que haveria o fechamento do ciclo de
alfabetização e, por isso, a conclusão do processo de alfabetização. Desse aspecto emana o slogan do PNAIC:
“Todas as crianças alfabetizadas até os 8 anos de idade”.
No que se refere ao seu conteúdo (concepções teóricas e metodológicas que o embasaram),
percebemos uma aproximação entre as propostas do PL e do PNAIC. Essa aproximação foi declarada
no Caderno de Apresentação do PNAIC (Brasil, 2012d), ao afirmar que a concepção de alfabetização,
já definida pelo PL, seria retomada na formação. Sob as terminologias do alfabetizar letrando ou da
alfabetização e letramento ou da alfabetização numa perspectiva do letramento, notamos que os conceitos
de alfabetização e letramento seguiram as contribuições da teoria desenvolvida, sobretudo, por Magda
Soares. A base construtivista é evidenciada em ambos os programas, e foi retomada, especialmente, na
teorização do aprendizado do sistema de escrita alfabética e das hipóteses de aquisição da escrita, como
percebemos no excerto abaixo:
Como discutido nos outros cadernos desta unidade, além de inserir o aluno nas situações de letramento, é
necessário levá-lo a refletir sobre os princípios do Sistema de Escrita Alfabética (SEA). O aluno precisa
compreender o que a escrita nota e como deve acontecer essa notação. Embora acreditemos que a reflexão
sobre tais princípios deve ser aprofundadas no ano 1, não é difícil encontrarmos situações em que o professor se
depara com alunos que chegam ao ano 3 sem o domínio inicial do SEA. Nesse sentido, é importante desenvolver
estratégias de trabalho que possibilitem o avanço dessas crianças, a fim de que, ao término do ano, estejam, pelo
menos, no nível alfabético de escrita e tenham aprendido muitas das correspondências letra-som de nossa língua
(Brasil, 2012e, p.7, grifos nossos).
Por fim, não podemos negar que, apesar de haver críticas aos programas de formação continuada
oferecidos pelo MEC e voltados aos alfabetizadores, o Brasil começou, na última década, a arquitetar uma
política pública nacional de alfabetização, o que, por si, já é um avanço. Porém, consideramos que a formação
docente não pode seguir modelos hegemônicos emoldurados no ponto de vista de que o professor em sala
de aula “não sabe” e que a formação irá ensiná-lo a “fazer certo”. À vista disso e alertados por Maciel (2014)
de que a temática da formação do professor alfabetizador tem se tornado um objeto crescente de pesquisas
em teses e dissertações, faz-se necessário constituir um panorama de como os programas de formação
continuada dos alfabetizadores estão sendo retratados nas pesquisas sobre alfabetização, de modo a observar
o que essas investigações têm compreendido acerca da realidade brasileira, “para que, compreendendo-a, se
possa nela intervir, alterá-la, mudá-la” (Soares, 2006, p.471). Eis o convite.
10
A ANA (Avaliação Nacional da Alfabetização) compõe o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e tem por
objetivo: “1) avaliar o nível de alfabetização dos educandos no 3º ano do ensino fundamental. 2) Produzir indicadores
sobre as condições de oferta de ensino. 3) Concorrer para a melhoria da qualidade do ensino e redução das desigualda-
des, em consonância com as metas e políticas estabelecidas pelas diretrizes da educação nacional” (BRASIL, 2013, p.7).
Os alunos são avaliados em leitura, escrita e matemática. Em 2016 foi realizada a terceira edição da ANA.
No Brasil, os anos de 1980 foram marcados pela divulgação de teorias no campo da alfabetização
que incitaram um movimento de rupturas de paradigmas. Desde então, duas perspectivas, notadamente,
tiveram maior influência na formulação de concepções e políticas de educação: a primeira, a psicolinguística,
de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky; e a segunda com enfoque mais social, desenvolvida por Magda
Soares. Nessa mesma década, começava também a circular a proposta discursiva de alfabetização, de base
sociointeracionista, pensada por Ana Luiza Bustamante Smolka (1988).11
No entanto, embora as ideias de Smolka tenham influenciado uma geração de pesquisadores, a
dimensão discursiva da alfabetização foi pouco explorada nos documentos oficiais do MEC, a citar, os
cadernos produzidos para subsidiar a formação dos professores alfabetizadores no âmbito dos programas
federais analisados neste capítulo.
A faceta eminentemente política da alfabetização, as denúncias feitas sobre uma escola que segrega,
exclui e desconsidera os conhecimentos dos alunos, bem como o embate com os modelos hegemônicos de
se pensar a aquisição da escrita talvez tenham feito com que a proposta de Smolka não fosse considerada
pelos poderes públicos, provocando um ofuscamento de suas conjecturas. Mas, não tardiamente, vemos
uma atual efervescência das ideias da autora, nas resistências aos modos de se ensinar e aprender a leitura e a
escrita, que desconsideram a alfabetização como processo, retendo-a como resultado e um fim em si mesma.
A proposta discursiva considera que, na sua gênese, a alfabetização baseia-se na constituição de
sentidos, sendo, portanto, imprescindível propagar a noção de que a criança é repleta de conhecimentos,
aprende pelas experiências, pela ação coletiva e individual, e, deste modo, não há pré-requisitos para se
alfabetizar e a aprendizagem não se dá por níveis/fases/escalas de evolução, que enquadram e normalizam
os saberes na infância.
Consideramos que a criança, desde a mais tenra idade, é autora e leitora de textos. Por meio das
interações e da função transformadora da linguagem, a leitura e a produção textual vão se aperfeiçoando.
Acreditamos, também, que a criança atribui sentidos às coisas ao seu redor, através da fala, escuta,
gestos e tantas outras formas de manifestação. Logo, não é repetindo incisivamente letras e palavras soltas
que conseguirá apreender a dimensão viva da língua.
Diante dessas crenças e refletindo sobre os fragmentos históricos relacionados no decorrer desse
trabalho, expandimos o diálogo já iniciado por Andrade (2017) acerca da concepção discursiva de
formação de professores alfabetizadores.
Defender essa natureza da formação docente passa, necessariamente, pela convicção de
que a proposta discursiva de alfabetização tem muito a contribuir nas práticas pedagógicas e no
desenvolvimento de uma escola verdadeiramente inclusiva e, por isso, verdadeiramente alfabetizadora.
11
O livro A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo, de Smolka, foi lançado em 1988 e
corresponde à versão da tese de doutorado da autora, defendida em 1987 (SMOLKA, 1987).
18 • Juliano Guerra Rocha | Sônia Maria dos Santos | Marília Villela de Oliveira
Ao mesmo tempo, reconhecemos que não se trata de defender uma proposta em detrimento de outras,
mas de envidar esforços na tentativa de dialogar, de buscar consensos, pois, como Freire (1987, p.46)
nos ensina, a “autossuficiência é incompatível com o diálogo”. Claro que a busca de consensos não
significa o silêncio por parte de um dos interlocutores, pelo contrário, os pontos de vista precisam ser
reavaliados durante o debate, para que, como Soares (2014, p.34) orienta, haja um “entendimento, entre
os que defendem diferentes teorias, de que a sua teoria não esgota o processo de alfabetização”.
Destarte, a partir de nossas experiências, gostaríamos de refletir em relação a três pontos da formação
continuada dos alfabetizadores nos moldes discursivos, apoiando-nos no encontro entre a perspectiva
freireana e a do círculo bakhtiniano. O primeiro ponto é sobre a fala e a escuta nessa proposta dialógica. O
segundo, do inacabamento do sujeito. E, o terceiro, da consciência crítica da práxis.
Na constituição do diálogo, Bakhtin e Freire concordam que há controvérsias, lutas de classe e que
a polêmica instaurada ocasiona um julgamento de valores, fruto de um posicionamento ideológico dos
envolvidos. Essas contradições são a força motriz das correntes de pensamento e do avanço das ciências.
Para tanto, as vozes dos interlocutores não se dão num sistema de opressor versus oprimido, ou de quem
sabe versus quem vai aprender, ao contário, elas se relacionam dialogicamente entre fala e escuta:
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22 • Juliano Guerra Rocha | Sônia Maria dos Santos | Marília Villela de Oliveira
O ensino da leitura nas províncias do norte do Brasil:
Primeiro Livro de Leitura, de Augusto Ramos Pinheiro
Maricilde Oliveira Coelho
Francisca Izabel Pereira Maciel
C artilhas e primeiros livros de leitura constituem uma fonte documental privilegiada para a
reconstrução dos itinerários percorridos pela História da Alfabetização, seja por permitir o estudo das ideias
e das práticas de leituras, seja para compreender a circulação e processos editoriais de um instrumento,
considerado importante, que permite o acesso à “cultura letrada”. Este capítulo trata do ensino da leitura
e da escrita por meio de um livro que circulou nas províncias do norte do Brasil no final do século XIX e
nas primeiras décadas do século XX, período histórico de crescimento gradual das escolas elementares,
articulado a uma política cultural do Estado para disseminar o saber letrado. O objetivo deste texto é analisar
o Primeiro Livro de Leitura, organizado pelo professor Augusto Ramos Pinheiro e primeiro livro/cartilha de
uma série graduada de livros de leitura composta por três livros. Várias séries graduadas de leitura surgiram
a partir da década de 70 do século XIX no Brasil, no cerne do movimento de nacionalização dos livros
escolares. Estas séries são resultantes do trabalho de uma mesma autoria em uma coleção, composta de 3 ou
até 6 livros, que observa a idade e o grau de conhecimento da criança e trata os assuntos gradualmente, de
acordo com o nível de dificuldade e/ou escolaridade.
Ao escolher um primeiro livro de leitura como fonte para a História da Alfabetização, é preciso
definir o que constitui um livro para alfabetizar. A denominação cartilha ou primeiro livro de leitura, que a
princípio abarcaria aquelas obras concebidas com a intenção de serem usadas no processo inicial de ensino
e aprendizagem da leitura e da escrita, caracterizada por sua estrutura didática interna e por seu conteúdo,
pode se tornar anacrônica para os livros da escola brasileira do século XIX. Naquele tempo, a escola não
estava estabelecida como a principal instituição educativa e os livros se destinavam prioritariamente à
família, responsável por contratar um instrutor para “educar” os filhos. Havia, entre os materiais impressos
utilizados na instrução, desde as cartas de ABC e as cartilhas, até impressos de uso social diversificado, como
• 23
os livros de oração e a Constituição, mas que tiveram seu uso adaptado para o ensino da leitura, tanto no
espaço doméstico quanto nas escolas.
A longa transição dos modos antigos de ensinar a leitura e a escrita durante o século XIX decorreu
tanto da orientação jurídico-institucional emanada pelo sistema político do Império quanto das condições
materiais vivenciadas por uma grande parcela da sociedade brasileira. Diferentes agentes se ocuparam
de transmitir o ensino da leitura e da escrita, como bem ilustra a fala de Francisco José de Souza Soares
D’Andrea, representante do Estado Imperial como presidente da Província do Pará, sobre o modo de ensinar
e aprender os primeiros rudimentos da escrita e da leitura:
Pelo uso antigo de se aceitar para ensinar os primeiros rudimentos a um menino, uma velha ou um homem
qualquer, e sem muito escrúpulo, se tem conservado o abuso de entender que se bastam para mestres de
primeiras letras homens que mal sabem ler, e de modo nenhum escrever certo, e ainda mesmo contar (Província
do Grão Pará, 1838, p.3).
As estruturas prescritivas e regulamentares do Estado pela lei imperial de 15 de outubro de 1827 ainda
estavam distantes da realidade vivenciada na Província do Pará. Antonio Ladislau Monteiro Baena, um dos cinco
cidadãos encarregados pelo Presidente da Província, Bernardo de Souza Franco, da reorganização e composição
da estatística da Província em 1831, em inspeção realizada em 24 vilas, 3 lugares, 4 freguesias e 2 missões
contempladas com o sistema de instrução e escolas públicas, informa que estavam sem mestre 14 vilas, 3 lugares,
3 freguesias e as 2 missões. Por esse tempo, a Província do Pará era composta por 44 vilas, 61 lugares, 10 freguesias
e 7 missões. A maioria, portanto, “desfalecida de escolas de primeiras letras” e seu povo “privado dos princípios
essenciais de que depende sua felicidade individual, e aos quais têm igual direito como indivíduos sujeitos a um
mesmo governo” (Baena, 2004, p.207).
Baena (2004, p.204) cita a existência de seis escolas de primeiras letras na comarca de Belém:
uma localizada no bairro da Sé e outra no bairro da Campina, ambas de ensino lancasteriano;1 e mais
quatro, sendo três de meninos e uma de meninas, que adotavam o método de ensino individual,2
porém não estavam funcionando por falta de professores. No Convento Santo Antônio havia duas
escolas: uma gratuita de Gramática Latina e outra de ensino mútuo, paga pela Tesouraria da Província.
O primeiro pavimento da Casa de Aula de Artilharia também abrigava duas escolas, uma de primeiras
1
O método lancasteriano surgiu na Inglaterra nos últimos anos do século XVIII promovido pelo Dr. André Bell,
ministro da Igreja Anglicana, e Joseph Lancaster, da seita dos Quaker. Baseia-se no ensino dos alunos por eles mesmos
sob a direção de um mestre, reunidos em classe, em geral seis, divididas por nível de conhecimento, desenvolvem um
programa de escrita, leitura e aritmética sob a orientação de um monitor. O método lancasteriano foi adotado em vários
países da Europa, territórios africanos, Índia, Austrália, Estados Unidos e Canadá. No Brasil, esse método foi adotado
oficialmente a partir da lei de instrução de 1827. No livro A escola elementar no século XIX – o método monitorial mútuo
(1999), Maria Helena Câmara Bastos e Luciano Mendes Faria Filho organizaram uma coletânea de artigos sobre o
método lancasteriano ou monitoral mútuo na França, Portugal, Argentina e Brasil no século XIX.
2
A principal característica do método individual é a atenção que o professor dispensa individualmente para cada aluno,
o que, para Pierre Lesage (1999, p.6), ocasionava facilmente distração nos outros alunos.
Em data de 16 de maio a diretoria recebeu por intermédio da presidência, 333 1º Livros de leitura, 90 2º Ditos,
90 3º Ditos, 488 gramáticas portuguesas e 57 francesas, e no corrente mês 2000 gramáticas portuguesas. Todos
esses livros foram oferecidos pelo Sr. Dr. Abílio Cezar Borges, que também ofereceu 1000 1º Livros de leitura,
600 2º e 400 3º que ainda não foram recebidos. Aquelas obras vão sendo distribuídas pelas escolas, conforme a
sua frequência e estado dos alunos (Pará, 1877, XLV).
No ano de 1892, o professor Felisberto Rodrigues de Carvalho publicou o Primeiro Livro de Leitura, o
Segundo Livro de Leitura e o Terceiro Livro de Leitura e, em 1895, lançou o Quarto Livro de Leitura e o Quinto
Livro de Leitura. O Primeiro Livro de Leitura, da série graduada organizada por Felisberto de Carvalho
3
Sobre a circulação de romances no Brasil colonial, organismos de censura, modos de ler e pessoas que habitavam o
mundo dos livros, ver: Abreu (2003); Neves (1999); Villalta (1999; 2005); Vasconcelos (2005).
O ensino da leitura nas províncias do norte do Brasil: Primeiro Livro de Leitura, de Augusto Ramos Pinheiro • 25
alcançou, em 1934, a 119ª edição, o que confirma sua grande utilização nas escolas brasileiras (Oliveira,
2000). José Veríssimo (1892), quando Diretor Geral da Instrução Pública do Estado do Pará, recomendou,
para uso na escola primária, as cartilhas Cartilha Maternal, de João de Deus, e Cartilha Nacional, de Hilário
Ribeiro, e os primeiros livros de leitura de Dr. Freitas, Dr. Abílio e do professor Pinheiro.
Em nível regional, surgiu, em 1870, o Primeiro Livro de Leitura para uso das crianças da Província
do Pará, de Joaquim Pedro Correia de Freitas. O Diccionario Bibliographico Brazileiro confirma que a oitava
edição da série graduada de leitura de Joaquim Pedro Correia de Freitas é “de Paris, 1882, in 8º. São três
volumes ou três livros, contendo o ultimo diversas biographias e um mappa colorido do Brazil com 284
páginas” (Blake, 1893, p.222). A 2ª edição saiu em 1872; a 9ª foi lançada em 1883, publicada por A. L.
Garraux, em Paris. A edição localizada na seção de obras raras da Biblioteca Pública do Pará é a 44ª lançada
em 1910 e seu título foi modificado para Ensaio de leitura – terceiro livro para uso das escolas da Amazônia e
não mais da Província do Pará, como aparece nas primeiras edições. Nesta edição encontra-se reproduzida
a Advertência da primeira edição datada de quatro de outubro de 1881, podendo-se supor que esta data seja
provavelmente a do ano de lançamento da primeira edição.
O ensino da leitura nas províncias do norte do Brasil: Primeiro Livro de Leitura, de Augusto Ramos Pinheiro • 27
Fonte: Revista de Educação e Ensino, v. 4, número 10, outubro de 1894.
Quanto ao primeiro livro, o livro por excelência do menino de escola, o que mais se recomenda pelo seu mérito
real, é o organizado pelo professor Augusto Ramos Pinheiro: é um verdadeiro mimo à infância.
Entre tantos livros do mesmo gênero admitidos em nossas escolas, é o que se acha mais vulgarizado, por isso
não precisamos justificar a nossa escolha. Eliminamos todas as outras que tratam dessa matéria (Parecer, 1893).
As iniciais A. P., do autor do artigo, poderiam ser de Augusto Pinheiro, o mais interessado em manter
a hegemonia de seu livro. No artigo, o autor apontou vários motivos para a adoção de um único livro para
as escolas públicas do Pará. Entre eles, a dificuldade do aluno que muda de uma escola para outra que adota
um livro diferente do já usado, causando o aumento de despesas ao pai que “faz o sacrifício de mandar
educar seus filhos”. Porém, a maior defesa na adoção de um único livro, explica A. P., está no resultado
embaraçoso que um professor alcançaria trabalhando com diferentes compêndios de diferentes métodos.
A série graduada de leitura, organizada em três livros pelo normalista Augusto Ramos Pinheiro,
alcançou várias edições. Moreira (1989) informa que o Primeiro livro de leitura teria tido um total
de 33 edições, o Segundo livro de leitura, 19 edições e o Terceiro livro de leitura, com o subtítulo
Escola, pátria e família, alcançou quatro edições. Estes livros foram impressos e publicados em Belém,
capital do Estado do Pará, pela Livraria Clássica. As informações sobre a impressão dos livros em
Belém são importantes porque nos permitem dialogar com Chartier (1994, 2002), Darnton (1992,
2010) e Hébrard (2001, 2002), que afirmam, em seus estudos, ser o livro, escolar ou não, objeto que
conforma a tecnologia gráfica possível no momento histórico e no espaço geográfico de sua produção,
expressa valores, normas e conhecimentos de uma sociedade numa determinada época e depende das
interferências materiais e comerciais do contexto sociocultural em que surge.
Produzida e lançada num momento histórico de expansão do mercado editorial, que vai encontrar
na escola um público consumidor para seus produtos, a série graduada de leitura de Augusto Ramos
Pinheiro também foi adotada na escola primária do Estado do Amazonas.Carlos Humberto Côrrea (2006),
na pesquisa que realizou sobre os livros oficialmente adotados nas escolas primárias do Amazonas entre
1852 e 1910, informa que o Primeiro livro de leitura da série graduada de leitura organizada por Augusto
Ramos Pinheiro foi adotado entre 1900 e 1905, sendo que, em 1904 e 1905, aparece também na lista de livros
escolares seu Segundo livro de leitura.
A documentação levantada não nos permite precisar o ano da primeira impressão do primeiro
livro da série de leitura graduada de Augusto Ramos Pinheiro. Uma notícia no jornal O Democrata,
datada de 27 de novembro de 1891, informa que o escritório daquele jornal recebeu de Augusto Ramos
Pinheiro um exemplar da “obrinha” Primeiro livro de leitura. Na seção Notas, do jornal Folha do Norte,
em 10 de maio de 1896, o professor Francisco Vilhena Alves parabeniza Augusto Ramos Pinheiro pela
5ª edição do livro. Nos anúncios de venda do Primeiro livro de leitura, encontrados em jornais diários
e revistas pedagógicas de Belém, entre 1894 e 1896, foi-lhe acrescentada a palavra Novo, ficando com o
título Novo Primeiro livro de leitura. Para este estudo foi consultado o livro localizado na seção de obras
raras da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, que data de 1912, em sua 24ª edição publicada por J.B.
O ensino da leitura nas províncias do norte do Brasil: Primeiro Livro de Leitura, de Augusto Ramos Pinheiro • 29
dos Santos, livreiro-editor e proprietário da Livraria Clássica, de Belém, e com o título alterado de Novo
para Novíssimo Primeiro livro de leitura.
A capa da vigésima quarta edição do livro de Augusto Ramos Pinheiro traz ao leitor uma informação
importante: “obra approvada unanimemente pelo Conselho Superior da Instrucção Publica do Estado e
unica mandada adoptar nas escolas elementares e complementares”. A seguir são reproduzidos a aprovação
do livro pelo Conselho de Instrução Pública e o parecer recebido pelos conselheiros Theodolinda de C.
Jesus, Perciliano Ferro e Silva e Ricardo J. O. Santos. No prólogo, datado de 1899 e reproduzido no livro
pesquisado, Augusto Ramos Pinheiro admite seu esforço para melhorar o “modesto livro organizado para
as crianças de nossa Pátria” e adaptá-lo às reformas do ensino necessárias aos “benefícios da infância que
se instrui”. Ao justificar as alterações que realizou no livro, Augusto Ramos Pinheiro torna visíveis os traços
reguladores de “editores\as, fornecedores\as, examinadores\as, professores\as, etc., que, por sua vez, foram
influenciados\as por prescrições governamentais, valores e hábitos culturais mais, ou menos, partilhados”
(Trindade, 2004, p.179).
O livro apresenta no total 52 páginas, sendo as três primeiras destinadas às lições com a apresentação
do alfabeto maiúsculo, o alfabeto minúsculo e o alfabeto maiúsculo e minúsculo. Na sequência são
apresentadas as “famílias silábicas” que compõem a escrita da língua portuguesa.
Depois de apresentar as letras maiúsculas e minúsculas do alfabeto, são apresentadas sílabas e palavras
em que se utiliza o recurso do hífen para separá-las em sílabas, numa mesma página. A apresentação obedece
à ordem convencional do alfabeto: b; c; d; f; h; j; k; l; m; n; p; s; t; v; x; z. As letras g, q e r são apresentadas
posteriormente. Ao apresentar sílabas e palavras, o autor do Primeiro livro de leitura segue as indicações de
Almeida (1892), considerando que:
As sílabas por si nada significam e nada dizem à inteligência da criança, por conseguinte nenhum interesse lhe
inspira; assim cada lição deve ser acompanhada de exercícios de aplicação por meio de palavras em que entrem
elementos já conhecidos, de frases curtas, de fácil compreensão, que lhe deem a conhecer a utilidade da leitura
(Almeida, 1892, p.102).
O ensino da leitura nas províncias do norte do Brasil: Primeiro Livro de Leitura, de Augusto Ramos Pinheiro • 31
Fonte: Biblioteca Nacional.
A seguir o livro mostra as sílabas gu e qu, palavras separadas em sílabas, e as sílabas, na mesma
ordem anterior acrescentadas de ai; ei; oi; ui.
Sempre observando a ordem do alfabeto, o livro apresenta sílabas e palavras com vogais e consoantes;
consoantes e consoantes; consoantes dobradas; transformações fonéticas de certas letras e sinais de
pontuação. Sempre são apresentadas diferentes palavras silabadas, o que permite fazer correspondência
entre as letras e os diferentes sons que elas podem ter nas palavras.
O ensino da leitura nas províncias do norte do Brasil: Primeiro Livro de Leitura, de Augusto Ramos Pinheiro • 33
Os pensamentos e os textos do livro possuem conteúdo moral e cívico e clara finalidade patriótica,
revelando que os primeiros livros de leitura e as cartilhas também contribuíram para a construção de uma
identidade nacional pela valorização de sinais universais que legitimavam o regime político republicano.
Estes textos correspondem aos momentos finais do aprendizado da leitura, e na última página do livro
o autor escreve para a criança leitora, a quem chama de “meu amiguinho”, uma carta de incentivo à
continuidade dos estudos, que devem sempre ser realizados com “interesse, esforço e gosto” para “lucro do
Brasil e do Estado do Pará”. Aqui, mais uma vez, ficam explícitos a destinação e uso deste livro no Estado
do Pará, diferentemente de outras obras contemporâneas à de Augusto Ramos Pinheiro, que tinham uma
perspectiva territorial mais abrangente, tais como a série de Hilário Ribeiro, Feliciano de Carvalho e de
Abilio Cesar Borges.
A lição, em forma de carta, com que Augusto Ramos Pinheiro encerra o Primeiro livro de leitura,
reflete os elementos de virtude moral alcançados por quem aprendeu a habilidade de ler, alguém
que passou a ser “capaz de emitir um julgamento bom ou razoável, já que o gosto e o julgamento
de uma pessoa alfabetizada dependiam do acesso a uma tradição escrita – um conjunto de textos –
que reflete séculos de experiência coletiva” (Cook–Gumperz, 1993, p.11). Em outras palavras, possuir
a capacidade de ler e escrever exercitava aptidões socialmente aprovadas e aprováveis, necessárias à
sociedade republicana que iniciava.
No interior de disputas que pretendiam impor a imagem do livro ideal para o ensino da leitura,
observa-se a questão do método de ensino, afinal “quem sabe ler, diz Decho, sabe a mais difícil de todas as artes.
Ora, se aprender a ler é coisa difícil, ainda mais difícil é quando não há método de ensino” (Almeida, 1892,
p.101). O Primeiro livro de leitura acompanhou o movimento histórico das tematizações e normatizações
sobre o ensino da leitura presente nas primeiras cartilhas brasileiras, baseando-se nos métodos de marcha
sintética (processo de soletração e silabação).Quanto à organização do livro, percebe-se que há uma ordem
crescente de dificuldades, pois inicia pela apresentação das letras do alfabeto e termina com pequenos textos,
seguindo a orientação do método intuitivo como peça central para assegurar a aprendizagem da leitura:
Já dissemos que as diversas classes em que a matéria é dividida devem ser dispostas em uma ordem racional
e progressiva. O espírito humano está sujeito, em seu desenvolvimento, a leis regulares, com as quais o ensino
deva conformar-se. Assim, para acomodá-lo as necessidades da inteligência é preciso que as dificuldades se
sucedam em uma ordem sistemática, indo do simples para o composto, do mais fácil para o mais difícil, de
maneira que o espírito caminhe sem transições bruscas, apropriando-se no que sabe para chegar ao que ainda
ignora. Só depois de ter o menino aprendido a ler palavras que todas as letras se pronunciem, é que deve entrar
no conhecimento das que admitem letras que tem apenas valor etimológico. De sorte que todo o sistema de
nossa língua escrita vai-se desenvolvendo e completando progressivamente (Almeida, 1892, p.101-102).
O método intuitivo foi considerado por muitos intelectuais brasileiros um modelo de ensino que
possibilitava desenvolver a instrução de maneira científica e foi difundido na Europa desde a segunda
O ensino da leitura nas províncias do norte do Brasil: Primeiro Livro de Leitura, de Augusto Ramos Pinheiro • 35
Fonte: Revista de Educação e Ensino, v. 5, número 7, julho de 1895.
No anúncio do livro de Augusto Ramos Pinheiro, datado de outubro de 1894, aparecem informações
sobre a boa qualidade de papel e das magníficas ilustrações, que o autor é professor e que o livro foi aprovado
e mandado adotar pelo Conselho Superior de Instrução Pública do Estado. Na propaganda do mesmo livro
que encontramos em julho de 1895, é divulgada a venda da novíssima edição do Primeiro livro de leitura,
que, além de aprovado, foi o único livro que o Conselho Superior de Instrução Pública mandou adotar nas
escolas elementares.
Outras informações importantes dadas pela leitura dos anúncios são o acréscimo do termo Novo ao
título original e o conhecimento de que o livro possuía 144 páginas. Para este estudo foi consultado o livro
localizado na seção de obras raras da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, que data de 1912, em sua 24ª
edição, publicada por J.B. dos Santos, livreiro-editor e proprietário da Livraria Clássica, de Belém, com 52
páginas e com o título de Novíssimo Primeiro livro de leitura.
Confirmar as informações sobre a diminuição do número de páginas do Primeiro livro de leitura,
infelizmente, esbarrou na dificuldade que tivemos de localizar os livros e analisar as primeiras e sucessivas
edições. Muitas vezes, a ausência de conservação de livros escolares faz com que sejam localizados somente
em acervos não especializados, onde em geral não estão catalogados. No próprio livro consultado não
aparecem referências quanto ao número e à data das edições e das tiragens, o que restringe saber qual a
repercussão do livro no meio educacional, tanto regional quanto nacionalmente. A edição encontrada na
Biblioteca Nacional é a 24ª e data de 1912, o que confirma a longevidade do livro organizado pelo professor
Augusto Ramos Pinheiro para a escola brasileira. O acréscimo do termo Novo ao título original, alterado
depois para o termo Novíssimo configura as disputas e tensões entre o que era considerado tradicional
e ultrapassado e a proposição de inovação, quando os termos “novo” e “novíssimo” adquirem sentidos
distintivos e valorativos de melhor.
O estudo do conteúdo do Primeiro livro de leitura, de Augusto Ramos Pinheiro, se insere nos estudos
que pretendem compreender a importância das tendências metodológicas que as cartilhas\primeiros livros
de leitura trazem para a constituição dos processos de alfabetização no Brasil. Entretanto, lembramos que
o livro não carrega em si apenas um método de ensino, ele sobrevém de um ciclo de produção, circulação e
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T endo como proposta considerar a História da Alfabetização em relação às fontes, escolhi discutir
relações possíveis a partir de perguntas importantes que determinariam o próprio campo da alfabetização.
Para a sua constituição e no que tange à sua autonomia frente aos estudos de história da educação, história do
livro, história da leitura e história da cultura escrita, o campo da História da Alfabetização, no Brasil,precisa
se perguntar: qual é o nosso objeto, qual a sua abrangência e que correlações são possíveis entre esse campo
e os outros campos jáconsolidados?Nesse sentido, ao mesmo tempo em que precisamos isolar o fenômeno,
para dar-lhe especificidade,também não podemos separá-lode outros fenômenos culturais envolvendo os
usos da escrita e seu funcionamento na sociedade.
Essa perspectiva inspira retomar algumas perguntas de Justino Magalhães (2001, p.99), quando
discute os limites e possibilidades metodológicas do trabalho com assinaturas encontradas em documentos
testamentários:
O que procura o historiador da alfabetização? O que significa ser alfabetizado? Estas duas questões ganham
sentido no contexto da cultura escrita, designadamente no âmbito das representações simbólicas e materiais,
constituídas pela leitura e pela escrita e, concomitantemente,seus usos e suas práticas.
Num texto em que discuti minha trajetória de pesquisa nessa área, para minha própria compreensão,
busquei um tipo de definição desse campo, indicando
• 39
dos materiais que estão em jogo na sua apropriação; das práticas empreendidas pelos sujeitos e grupos sociais
em torno do processo de aquisição inicial da escrita e de seus efeitos sociais e culturais na sociedade.
1
BURKE, Peter. O que é história cultural?. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
Tratarei, neste tópico, da leitura e da escrita como conhecimentos que ajudam a recortar o fenômeno
e selecionar fontes. O que distingue a alfabetização de outras aprendizagens? Como recortar a alfabetização
pelo que se ensina e se aprende no tempo de aquisição? Esta é uma boa pergunta para se pensar sobre o
que estamos investigando e com quais fontes, mas não podemos perder de vista o fato de que os conteúdos
parecem estáveis, mas as expectativas ou resultados da alfabetização em cada sociedade envolvem operações
simbólicas, práticas e materiais diferenciadas.
A leitura
Há fontes que descrevem as formas de ler e os conteúdos da leitura? Nos mapas de desempenho
que localizamos no Arquivo Público Mineiro2 é possível identificar como um professor ou um examinador
estabelece diferenciações entre o que determinado aluno lê, em função do seu desempenho. Em meados do
século XIX, essa descrição é feita em torno do que o aprendiz decifra, com detalhes sobre as letras e sílabas
e genericamente o termo “Lê”. Os registros vão se modificando para os períodos posteriores e é preciso mais
investigações para ver como estas habilidades vão sendo incorporadas ou substituídas no ensino escolar da
leitura e se a descrição sobre o que se lê aparece. Assim as habilidades de leitura para iniciantes têm que ser
historicizadas ao se estudar fontes semelhantes, como mapas e diários.
Talvez pela facilidade do recorte do conteúdo da alfabetização e pela suposta ligação entre conteúdo e
destinatário, o iniciante, é que sejam tão utilizadas como fontes os livros para alfabetizar em pesquisas sobre
a História da Alfabetização e da leitura neste período, mas, analisando os livros, vemos muita complexidade
até para considerar o que seria objeto de ensino da leitura.
No caso da leitura, por exemplo, embora apareçam no manual destinado ao professor as intenções
de ensinar os rudimentos da escrita, nos livros, os métodos partem de unidades linguísticas diferentes,
o que traz algumas complexidades para compreender o seu conteúdo linguístico: abecedário e silabários
no método alfabético, fonemas representados por letras no método fônico, sílabas no silábico e, para os
chamados analíticos, o texto, a frase, a palavra. No entanto, o refinamento do método de cada autor e sua
2
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Alfabetização, escolarização e cultura escrita em Minas Gerais no século XIX. In:
MARINHO, Marildes; CARVALHO, Gilcinei T. (Orgs.). Cultura Escrita e Letramento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010,
p.249-278.
3
A respeito da relação entre cartilhas e catecismo há vários estudos, destacando-se a pesquisa deVOJNIAK, Fernando.
O império das primeiras letras: uma história da institucionalização da cartilha de Alfabetização no século XIX. Curitiba:
Editora Prismas. 2014.
4
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Cartilha Analytica publicada pela Francisco Alves: aspectos da materialidade
entre ordenamentos pedagógicos e editoriais. In: 2004, Rio de Janeiro. I Seminário Brasileiro sobre livro e história
editorial. Rio de Janeiro: Fundação Casa Rui Barbosa/ Universidade Federal Fluminense, 2004, p.1-17. Este mesmo
texto foi publicado em FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Cartilha Analytica publicada pela Francisco Alves:
aspectos da materialidade entre ordenamentos pedagógicos e editoriais. In: BRAGANÇA, Aníbal (Org.). Rei do Livro.
Francisco Alves na história do livro e da leitura no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2016, p.207-224.
5
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Livros para ensinar a ler e escrever: uma pequena análise da visualidade de
livros produzidos no Brasil, em Portugal e na França, entre os séculos XIX e XX. In: ABREU, Márcia; BRAGANÇA,
Aníbal (Orgs.). Impresso no Brasil. Dois séculos de livros brasileiros. São Paulo: Editora UNESP. 2010, p.171-190.
6
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Cartilha Proença e Leitura do Principiante de Antonio Firmino de Proença:
configurações gráficas e pedagogia. In: RAZZINI, Márcia (Org.). Antonio Firmino de Proença: professor, formador,
autor. São Paulo. Porto das Ideias Editora. 2010.
7
RAMIL, Chris de Azevedo. A coleção didática Tapete verde: do projeto à sua produção gráfica (década de 1970 – Rio
Grande do Sul). Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal de Pelotas. 2013.
NASCIMENTO, Luiz Augusto. O design dos livros de leitura da Editora Francisco Alves (1900-1938): Felisberto de
Carvalho e seus contemporâneos. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal
de Minas Gerais. 2017.
8
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Uma genealogia dos impressos para o ensino da escrita no Brasil, no século XIX.
Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v.15, n.44, p.264-281, maio/ago, 2010.
9
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Des Supports pédagogiques pour apprendre à lire dans le Brésil post-colonial:
héritages et innovations (1840-1960). Histoire de L’Éducation (Paris. 1978), p.69-94, 2014.
10
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva; MACIEL, Francisca Izabel (Orgs.). História da Alfabetização: produção, difusão
e circulação de livros (MG/RS/MT – Séc. XIX e XX). Belo Horizonte: UFMG/FAE, 2006.
11
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. História da Alfabetização e da cultura escrita: discutindo uma trajetória de
pesquisa. In: MORTATTI, Maria do Rosário Longo. Alfabetização no Brasil: uma história de sua história. São Paulo:
Cultura Acadêmica; Marília: Oficina Universitária, 2011.
12
Um estudo inovador, que escapa desses formatos e pretendeu historicizar o gênero abecedário, que pode ter uma
circulação para além da escola ecaminha entre o gênero didático e literário, foi desenvolvido por Pereira (2015).No estudo
a autoradescreve sua materialidade e possíveis usos deste impresso: SOUZA, Mariana Venafre Pereira de. Abecedários,
Brasil: contribuições à história dos impressos e sua circulação nos anos de 1936 a 1984. Dissertação (Mestrado em
Educação) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul. 2015.
A escrita
Uma pergunta relacionada a conteúdos da alfabetização refere-se à distinção entre o que é conteúdo
da leitura e o que é conteúdo da escrita e como estes conteúdos se apresentam na História da Alfabetização.
O termo método de leitura, identificado em alguns títulos de livros para iniciantes nos primeiros
anos da educação escolar é, por exemplo, um indicador de que o aprendizado inicial é marcado com um
ritual de passagem específico para leitura e não necessariamente para a escrita. A questão de o ensino
escolar iniciar-se pela leitura é um fenômeno da História da Alfabetização relatado em outras pesquisas
e relaciona-se a aspectos pedagógicos, mas, sobretudo, a questões materiais13. Trecho de mapa do século
XIX, relativo à cidade Ouro Preto, de 12 de maio de 1844, mostra que a escrita é dependente de uma
materialidade quase inexistente, do ponto de vista do que se prescrevia:
O Mestre ensina a 44 p.ª 45 annos, 26 annos particulares, e publico a 19, é muito bom. Mestre a sua custa fornece
de papel, tinta, e pennas aos meninos, nunca recebeu socorros, que a nação da para tal fim. Existem nas rossas os
meninos por que seus pais não podem os ter na Escolla da Villa. Existem nesta Villa três escollas particulares. 1º
Mestre Joaquim Francisco D’ Aquiar com 11 annos. 2ª Mestra Edivirge Rodrigues Cora 3 a 4 meninas. 3ª Mestra
Maria Castorina, tem algumas menina. O Mestre estava vestido com decencia. Ouro Preto 12 de maio de 1844.
Fonte: APM (PP 1/42. Envelope 07. Caixa 14. Grifos nossos).
Analisando materiais e práticas, descobrimos que nem sempre as práticas de leitura e de escrita aparecem
juntas no ensino inicial, em alguns momentos da história. O Primeiro Livro de Leitura de Abílio Cesar Borges,
publicado em 1867, traz uma observação quanto a não se ensinar a escrever a crianças com menos de sete anos,
pois “é trabalho seco, de pouco proveito e penoso demais para mãosinhas tão pequenas” (p.7).
Por outro lado, embora a leitura não deixe vestígios, o que temos é um discurso sobre como deve
ser feita e o conteúdo da própria leitura que ficou nos livros. Assim, é possível que ainda tenhamos mais
indícios de fontes sobre a leitura do que sobre a escrita, uma vez que o ato de escrever está relacionado à
posse de instrumentos ou domínio de seu uso e seu estudo é dependente da escrita conservada em arquivos
13
VIDAL, Diana G.; ESTEVES, Isabel de Lourdes. Modelos caligráficos concorrentes: as prescrições para a escrita na
escola primária. In: PERES, Eliane; TAMBARA, Elomar (Orgs.). Livros escolares e o ensino da leitura e da escrita no
Brasil (séculos XIX – XX). Pelotas: Seiva, 2003.
14
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Suportes, instrumentos e textos de alunos e professores em Minas Gerais:
indicações sobre usos da cultura escrita nas escolas no final do século XIX e início do século XX. História da Educação,
Pelotas, n.29, p.29-55, set./dez. 2009.
15
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva.Alfabetização, escolarização e cultura escrita em Minas Gerais no século XIX. In:
MARINHO, Marildes; CARVALHO, Gilcinei T. (Orgs.). Cultura Escrita e Letramento. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2010,
p.249-278.
16
Para um estudo sobre diários e outros materiais de escrituração escolar ver problematizações feitas por: AMÂNCIO,
Lázara N. B; CARDOSO, Cancionila J. História da Alfabetização em Mato Grosso. A contribuição dos diáriosde classe
como fonte documental. In: MORTATTI, Maria do Rosário Longo (Org.). Alfabetização no Brasil: uma história de sua
história. São Paulo: Cultura Acadêmica; Marília. Oficina Universitária, 2011.
17
FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. Instrumentos e suportes de escrita no
processo de escolarização: entre os usos prescritos e os não convencionais (Minas Gerais, primeira metade do século
XX). Revista Brasileira de História da Educação, v.16, p.297-334, 2016.
No que tange ao uso de instrumentos, no período imperial, em 1862, por exemplo, a análise da
publicidade veiculada no Almanaque Laemmert nos mostra como são mencionadas certas competências
18
PERES, Eliane. Um estudo da História da Alfabetização através de Cadernos Escolares (1943-2010). Cadernos de
História da Educação (UFU. Impresso), v.11, p.93-106, 2012.
19
Um estudo exemplar sobre os discursos sobre a alfabetização que circularam na imprensa é encontrado em:VELOSO,
Geisa Magela. A missão desanalfabetizadora do jornal Gazeta do Norte, em Montes Claros (1918-1938). Tese (Doutorado
em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. 2008.
20
Sobre as relações entre literatura e história e história daescolarização e também da alfabetização, ver o interessante
artigo de: PERES, Eliane T.; BORGES, Francine. Relações entre história e literatura: a obra de Cora Coralina e as questões
do ensino e dos processos de escolarização no final do século XIX e início do século XX. Revista Brasileira de História
da Educação, v.15, p.23-54, 2015.
Considerações finais
21
Trabalhos sobre os censos têm sido empreendidos por Alceu Ferraro, numa perspectiva mais sociológica e tomando
como dados os censos dos estados. Ver: FERRARO, Alceu Ravanello. História inacabada do analfabetismo no Brasil. São
Paulo: Cortez: 2009. No entanto, a entrada no censo de cada cidade envolve uma pesquisa ainda pouco desenvolvida
nos estudos sobre História da Alfabetização.
22
GALVÃO, Ana Maria; FRADE, Isabel Cristina Alves da Silva. Cultura escrita em Minas Gerais nas primeiras décadas
republicanas. Capítulo de livro História Geral da Educação em Minas Gerais: da colônia à República. Coordenação Geral
de CARVALHO, Carlos Henrique e FARIA FILHO, Luciano Mendes de (no prelo).
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Instituições pesquisadas
Arquivo Público Mineiro.
Museu da Escola Ana Maria Casasanta Peixoto.
Enfim, dizem os pesquisadores da linguagem, em crescente convicção: aprendemos a ler lendo. Eu diria vivendo.
Isso faz pensar que o aprendizado de Tarzan não seja pura obra da imaginação de Edgar Rice Burroughs. Aos
dez anos, remexendo nos escombros da cabana de seu falecido pai, o garoto-macaco topou com alguns livros, e
teve seus primeiros contatos com a palavra impressa, através de uma cartilha (Martins, 1990, p.14).
• 55
século passado, as últimas décadas do século 19 e início do século 20 “correspondem a um período de
transição importante: o da nacionalização da literatura didática e do aperfeiçoamento sensível do conteúdo
e dos métodos de ensino” (Pfromm et al., 1974, p.160).
De 1970 até nossos dias, muita coisa mudou em termos do campo de estudo da alfabetização e das
cartilhas. Talvez este seja o momento de nos questionarmos sobre a importância da cartilha como objeto central
numa História da Alfabetização brasileira, pelo menos numa história que foi orquestrada desde o princípio
da colonização até meados da última década do século XX. Nesse período, esse recurso era considerado, na
maioria das salas de aula brasileiras, o grande protagonista do ensino e aprendizagem da leitura e da escrita.
Por meio das lições das cartilhas e de certos métodos (analíticos, sintéticos, mistos, fônicos ou outros que
se desdobravam dessas nomenclaturas), a língua escrita era apresentada às crianças que, de letra em letra,
de sílaba em sílaba, iam se apropriando não apenas de elementos da língua escrita, como também de um
modo de ler e se comportar na escola. Dia após dia, dependendo da intervenção e da criatividade (ou não!)
das professoras (e muitas vezes da ajuda de familiares em casa), o/a aluno/aluna adquiria aos poucos seu
estatuto de leitor.1 Muitos deles, conforme atestam as estatísticas educacionais, passavam anos a fio repetindo
o processo no esforço de superar a barreira do que era chamado de fracasso escolar no início da escolarização,
tema exaustivamente debatido nas duas últimas décadas do século XX, no Brasil.
O termo cartilha,2 de acordo com Boto (2004), vem de cartinha, que se referia aos textos manuscritos
que eram utilizados em Portugal, até o século XIX, para ensinar a ler escrever e contar. O uso de cartinhas
e, depois, de cartilhas, foi trazido para o Brasil junto com os colonizadores, pois as cartilhas brasileiras
surgiram somente no final do século XIX (Mortatti, 2000). Corrêa e Silva (2006) também se detêm na
explicitação do vocábulo cartilha e na análise de materiais usados para alfabetização nas escolas primárias.
Recorrer a textos manuscritos foi uma prática bastante comum no Brasil, especialmente nas últimas décadas
do século XIX.3 Outro recurso muito usado foram as Cartas ABC, não apenas no século XIX, mas por boa
parte do XX, na maioria das regiões brasileiras.
O que se constata é que o tema cartilhas tem vínculo indissociável com a História da Alfabetização
(seus materiais, seus métodos, suas práticas) e, na produção acadêmico-científica contemporânea, tem sido
bastante debatido em nosso país.
Este artigo é um recorte de uma investigação mais ampla na área da História da Alfabetização, campo
de conhecimento que, no Brasil, vem se constituindo nas últimas décadas. Nesse sentido, destacam-se os
esforços de sistematização, materializados nos trabalhos de diversos pesquisadores que, nas últimas décadas,
vêm produzindo pesquisas históricas colaborando para a construção desse campo.
1
Sobre o uso e espaço das cartilhas na sala de aula infantil, ver Amâncio (2002).
2
A palavra cartilha comporta mais de um significado, no entanto, aqui será utilizada conforme definição no dicionário
Harris e Hodges, 1999, p.51: “Cartilha s. f. 1. um livro para iniciantes usado no ensino da leitura: mais especificamente, o
primeiro livro didático formal de um programa de leitura basal, geralmente precedido de um livro de preparação e de uma
ou mais pré-cartilhas.”
3
Sobre o assunto ver Corrêa e Silva (2006, p.10-11), que tratam de materiais de leitura para a infância amazonense, no
final do século XIX, e Amâncio (2008), que apresenta dados escolares de Mato Grosso, no mesmo período.
Reflexões sobre o recurso didático cartilha não podem ser empreendidas à revelia de uma discussão
sobre o significado de livro didático ou livro escolar, área em que se situa, em função de sua natureza. Esse
artefato cultural, o livro, somente nos últimos trinta anos tem sido objeto de estudo e tem merecido as mais
diferentes abordagens de análise e críticas, tanto em nível internacional, como nacional. Para nossa reflexão,
tomaremos, de início, alguns autores que se destacam por suas preocupações relacionadas ao livro escolar.
Lajolo e Zilberman (1996) abordam a questão do livro didático, afirmando que talvez esse
instrumento seja uma das modalidades mais antigas de escrita, visto que se constitui em uma condição
para o funcionamento da escola. Ilustrando, as autoras mencionam a Poética de Aristóteles (século IV a.C.)
e a Institutio Oratoria de Quintiliano (século 1 d.C.) como ancestrais do livro didático. De acordo com as
autoras, o livro didático, apesar do berço ilustre, é o primo-pobre da literatura, tendo em vista sua natureza
descartável, com “prazo de validade” determinado (Lajolo; Zilberman, 1996, p.120). Todavia, é o primo-rico
das editoras, altamente vendável, com mercado cativo sempre crescente. Vender livros para o Ministério
da Educação é um excelente negócio para qualquer editora, pois os livros didáticos são adotados em todas
as etapas de escolaridade e é grande a quantidade de alunos a serem atendidos. Nada mais rendoso, para
autores e editoras, do que atender as exigências das políticas públicas que definem as regras de produção,
compra e distribuição de livros didáticos.
4
O Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), no formato atual, foi criado em 1985 e teve suas características
bastante alteradas a partir de 1996 devido, em especial, à instituição de um processo de avaliação prévia dos livros, que
se orienta por critérios de natureza conceitual, política e metodológica (BATISTA; COSTA-VAL, 2004).
Essas características abrem incontáveis possibilidades de estudo deste objeto da cultura escolar.
A seguir, nos deteremos na sistematização dos trabalhos acadêmico-científicos sobre cartilhas
encontrados em dois dos principais bancos de dados do Brasil.
5
Lembramos aqui relatos de alguns memorialistas, como Graciliano Ramos (1955) e José Lins do Rêgo (1986). E de
alguns estudiosos do tema em pauta, como: Cagliari (1998), especialmente capítulo 4; Betthelheim, Zelan (1984),
terceira parte; Macedo (1985); Dietzsch (1990, p.35-44). Até a figura cômica de Mafalda, usada por Quino (1989, p.112-
113), apresenta crítica a essa linguagem.
Esta parte do texto apresenta resultados de pesquisa bibliográfica, do tipo estado do conhecimento, com
vistas ao levantamento e sistematização dos trabalhos acadêmicos realizados no Brasil que tematizam cartilhas.
Consideramos que as pesquisas de caráter bibliográfico, que têm como objetivo inventariar e
sistematizar a produção intelectual existente e disseminada em determinada área do conhecimento,
apresentam contribuição importante, pois viabilizam uma cartografia de determinada área/tema, em
termos dos investimentos em estudos já feitos, tendências teóricas privilegiadas e resultados obtidos,
entre outros aspectos. Essa sistematização do conhecimento pode contribuir para o avanço científico,
também apontando lacunas a, ainda, serem exploradas.
Para a condução de uma pesquisa de tipo “estado do conhecimento”, concordamos que a metodologia
utilizada “[...] caracteriza-se como um levantamento e uma avaliação da produção acadêmica e científica
sobre o tema, à luz, primordialmente, de categorias que identifiquem, em cada texto e no conjunto deles, as
facetas sob as quais o fenômeno vem sendo analisado” (Soares; Maciel, 2000, p.9).
Assim, iniciamos a pesquisa definindo o tema e o caminho geral que iríamos trilhar:
1. Considerar a produção acadêmico-científica sobre cartilhas, existente no Brasil, na área da
Educação, representada por Dissertações e Teses;6
2. Definir as bases de dados a serem consultadas: a) Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Ensino Superior (CAPES); b) Biblioteca Digital Brasileira de Dissertações e Teses (BDTD);
3. Eleger os descritores privilegiados: cartilha; cartilhas; cartilhas escolares; cartilhas de
alfabetização;
4. Trabalhar, notadamente, com os títulos, resumos e palavras-chave dos trabalhos;
5. Construir um instrumento de coleta de dados com as informações gerais sobre os estudos.
São conhecidos os limites ou percalços deste tipo de pesquisa, anteriormente apontados por alguns
autores. Dentre estes, destacamos André (2001), que indicou a variação no formato dos resumos como uma
das dificuldades da análise, já que alguns são muitos sucintos e outros confusos ou incompletos, faltando
informações sobre o tipo de pesquisa e os procedimentos adotados, ou, mais grave ainda, os que sequer
deixam claros os objetivos do trabalho. Também Ferreira (2002) aponta que a consulta aos catálogos apresenta
dificuldades, pois muitos dos títulos são difusos, não revelando indicações do tema da pesquisa. Em nosso
caso, acrescentamos a escolha das palavras-chave pelos autores, que nem sempre refletem todos os temas
abordados e, ainda, trabalhos que têm acesso restrito, inviabilizando uma consulta mais detalhada, para além
do resumo, justamente por causar dúvida em suas abordagens.
6
Trata-se de pesquisa em andamento “Cartilhas escolares no Brasil: mapeamento e sistematização da produção
acadêmico-científica (1967-2017)”, da qual, neste artigo, apresentamos os dados da produção acadêmico-científica
encontrada em dissertações e teses. Na continuidade da pesquisa recensearemos artigos científicos, livros e principais
eventos da área.
A análise do conteúdo dos resumos foi realizada com base em uma ficha que continha as seguintes
informações: base de dados, título, autor, data de defesa, palavras-chave, instituição, objetivo geral,
fundamentação teórica, cartilhas analisadas, orientador, grau.
O quadro 1 evidencia o esforço de rastreamento feito e chama a atenção para o grande número
de trabalhos que mencionam os descritores eleitos, em especial, cartilhas de alfabetização (CAPES),
evidenciando que essas estão presentes nos discursos sobre práticas alfabetizadoras, leitura e escrita,
formação de professores, memórias, entre outros temas. No entanto, o número de trabalhos que efetivamente
se debruçam sobre este objeto/fonte pode ser considerado pequeno, se comparado à quantidade de registros:
um total de 57 trabalhos, sendo 42 dissertações e 15 teses.
CAPES BDTD-IBCT
Número de Número de
Descritores Com Filtros Com Filtros
Registros Registros
Cartilhas de alfabetização 900.682 6.940 35 11
Cartilhas escolares 15.842 7.004 69 22
Cartilhas 293 149 325 22
Cartilha 528 16 325 -
7
Selecionados 49 8
Dissertações 42
Teses 15
Total Selecionado 57
Fonte: Dados elaborados pelas autoras.7
7
Neste cômputo estão apenas os trabalhos novos, ou seja, não se encontram os trabalhos que se repetiram em relação
ao Banco de dados da Capes, primeiro banco consultado.
Notamos que na década de 1970 apareceu um único trabalho (dissertação), na década de 1980, dois
trabalhos (teses) e, na década de 1990, dois trabalhos (dissertação e tese). A produção ganha força na década
de 2000, especialmente a partir de 2006, chegando a um total de seis trabalhos (dissertações) em 2010. O
crescimento continua nos anos seguintes (2011-2016), atingindo seu ápice em 2013, com dez trabalhos (seis
dissertações e quatro teses).
O crescimento da produção pode ser atribuído ao aumento do número dos Programas de Pós-
Graduação, em especial Mestrados, aliado ao interesse dos pesquisadores que, dadas as demandas da CAPES
para avaliação dos Programas de Pós-Graduação, passam a se organizar mais articuladamente em grupos de
pesquisa e, sobretudo, às novas abordagens históricas que se dedicam à cultura material escolar.
Assim, observa-se que, de 2006 em diante, não há mais lacunas na representação gráfica da produção
acadêmico-científica, pois todos os anos, até 2016, estão representados por, pelo menos, um trabalho.
Um olhar para as Instituições de origem dos trabalhos nos fornece o seguinte panorama:
UFES 5 4 9 16%
UNESP-Marília 5 1 6 11%
UFMT 6 6 11%
UFU 3 1 4 7%
UFPel 4 4 7%
PUC-SP 1 3 4 7%
UFPE 3 3 5%
USP 1 2 3 5%
UNICAMP 1 1 2 4%
s
Outra 8 13 3 16 28%
Total geral 42 15 57 100%
Fonte: Dados elaborados pelas autoras.
8
Neste item encontram-se as 16 instituições que contribuíram com 1 trabalho cada uma: UFMG; UFC; UniUbe; UFRGS;
UFSM; UNISINOS; UFPB; UFMS; UDESC; UFRJ; UFSC; UnoChapecó; UFMA; UFG; UNESC; UEPG.
9
Infelizmente, os bancos de dados consultados não incluem pesquisas de Livre Docência e de Pós-Doutorado.
10
Nesse sentido, ver Mortatti (2011, p.69-94) em que a autora apresenta parte de sua produção e de seus orientandos.
em primeiro lugar, [...] articular e re-construir a História da Alfabetização em seis estados brasileiros; em
segundo lugar, [...] estabelecer vínculos e dissonâncias entre os pressupostos teóricos presentes nos manuais, nos
programas oficiais dos estados e na prática pedagógica dos professores e, em terceiro lugar, evidenciar outros
aspectos relacionados às práticas editoriais ligadas à materialidade do impresso (Frade, 2011, p.7-8).17
Ressaltamos o papel dessas duas redes, na medida em que os dados evidenciam que quatro
das universidades associadas na pesquisa interinstitucional (UFES, UFMT, UFPel e UFMG), e mais
especificamente os grupos acima referidos, respondem pela orientação de 17 trabalhos (29,8%) da produção
do período analisado18 e o GPHELLB responde pela orientação de 6 trabalhos (10,5%). A produção dessas
duas redes totaliza 23 trabalhos, ou seja, 40,3% do total do período.
Outros grupos de pesquisa que também se dedicam à história da educação, da leitura, dos livros
escolares e/ou da alfabetização ou estudam estes temas na perspectiva contemporânea (PUC/SP, UFU, USP,
UNICAMP, UFPE) produziram 16 trabalhos (28,0%).19 O restante da produção – 16 trabalhos (28,0%) - está
distribuído em 16 instituições.
Essa análise nos leva diretamente para o tipo de abordagem contida nos 57 trabalhos deste corpus: 7
se vinculam à perspectiva contemporânea e 50 à perspectiva histórica.
11
Representado por Isabel Cristina Alves da Silva Frade (coordenadora geral da pesquisa) e Francisca Isabel Pereira
Maciel.
12
Coordenado por Eliane Teresinha Peres.
13
Representado por Cancionila Janzkovski Cardoso e Lázara Nanci de Barros Amâncio.
14
Representado por Cláudia Maria Mendes Gontijo e Cleonara Maria Schwartz.
15
Representado por Cecilia Maria Aldigueri Goulart.
16
Carlos Humberto Alves Corrêa.
17
Sobre a produção desses pesquisadores e grupos de pesquisa de diversas regiões, envolvidos na construção desse
campo de conhecimento, ver, especialmente, as obras organizadas por Frade e Maciel (2006), Schwartz, Peres e Frade
(2010). Sobre a produção de diferentes grupos, ver também Mortatti (2011) e Mortatti e Frade (2014).
18
Além desses, há mais três trabalhos oriundos da UFES, UFPel e UFMT que foram orientados por outros grupos de
pesquisa, não participantes dessa rede em questão.
19
Vale lembrar que a maior parte desses grupos, além de pesquisar, organiza e cuida de acervos de livros escolares e
outras fontes.
Quadro 2 – Estudos que focam o uso de cartilhas, tendo-as como centrais no processo ensino-aprendizagem
Esses estudos tematizam o uso das cartilhas em Campinas-SP (Freitas), Minas Gerais (Pernambuco),
Paraná (Alvarenga), Mato Grosso (Amâncio) e em uma rede de ensino não identificada pelo autor (ABRÃO)
com foco em sua adequação teórica e metodológica e no papel exercido na formação de novos leitores.
Dois trabalhos mais recentes representam a segunda categoria da perspectiva contemporânea:
estudos que tematizam cartilhas, tendo-as como secundárias no processo ensino-aprendizagem,
conforme Quadro 3:
Esses dois trabalhos mais atuais evidenciam outro lugar para as “antigas” cartilhas, bem mais
modesto que o ocupado por elas até a década de 1990. Novos saberes, novos conteúdos, novas políticas
são tematizados.
Soares e Maciel (2000, p. 63) apontaram a quase inexistência de estudos históricos sobre alfabetização,
que se estendia pelas três décadas por elas analisadas (1960-1980), já que, “[...] apenas uma pesquisa se
caracteriza como pesquisa desse tipo, na produção acadêmica e científica sobre alfabetização.” No entanto,
as autoras lembram que
é inegável a importância de investigar o processo de construção, ao longo do tempo, do saber sobre alfabetização
e do fazer alfabetização, no Brasil, desvendando as relações entre esse saber e esse fazer e o econômico, o político
e o social, em cada momento histórico (Soares; Maciel, 2000, p.63).
Ao que tudo indica, essa observação, aliada a outros fatores já aludidos anteriormente, encontrou eco
entre a comunidade acadêmica, que intensificou os estudos históricos sobre alfabetização, nos quais o tema
cartilhas aqui focado é apenas um dos aspectos privilegiados.
Em que pese a existência de 50 estudos em perspectiva histórica, há diferentes abordagens e a
escolha de diferentes conceitos e autores para embasá-los. No entanto, não faremos essa discussão neste
texto, optando por mapear os modos de olhar/organizar as fontes cartilhas, os quais sistematizamos em 4
categorias, descritas a seguir.
Nesse grupo de 10 trabalhos, que representa 20,0% das produções em perspectiva histórica, cada
um centra a atenção em uma única cartilha ou série graduada. Ainda assim, essa categoria poderia ser
desmembrada em subcategorias, pois há trabalhos que: reconstroem a história de uma cartilha regional
(Collares e Carneiro); tematizam mais fortemente um método (Gazoli); estudam cartilhas com vistas
a compreender propostas de ensino de leitura (Oriani) e/ou propostas de ensino elaboradas para um
grupo especial: jovens e adultos (Barbosa) e educação rural (Messenberg); analisam as relações de poder
no espaço escolar primário (Castro); elaboram um mapeamento dos autores e autoras escolhidos para
Quadro 5 – Trabalhos de análise (por vezes comparativa) de dois ou mais títulos cartilhas
Quadro 6 – Trabalhos em que a cartilha aparece como fonte complementar, entre outras
Esta categoria é representada por três trabalhos, que correspondem a 6% dos títulos em perspectiva
histórica. Dois deles se dedicam a inventariar cartilhas que circularam nos estados de Minas Gerais
(Campelo) e Rio Grande do Sul - em uma classe unidocente da zona rural de Pelotas (Vieira). O terceiro
trabalho se dedica a inventariar a produção e circulação dos livros de um único autor: Thomaz Galhardo.
Nesta categoria temos apenas uma produção (2%), que não analisa cartilhas, mas as prescrições que
nortearam a produção, seleção e uso de livros de leitura de primário e cartilhas no Estado de São Paulo, de
1935 a 1960 (Gonçalves).
É importante assinalar a linha tênue que delimita as categorias propostas e que atinge, em especial, o
grupo de estudos da terceira categoria. A maioria deles tem uma proposta abrangente de objeto de estudo,
valendo-se de diferentes fontes, o que resulta em inúmeros tópicos relacionados à alfabetização. Por exemplo,
alguns trabalhos dessa categoria fazem repertórios, apresentam listas e quadros de cartilhas que circularam
ou que foram mais utilizadas em determinados lugares e, em alguns casos, até fazem uma breve análise de
cartilhas20. No entanto, seu objetivo principal não era repertoriar títulos de cartilhas, diferentemente dos
três trabalhos apresentados na quarta categoria, sendo, portanto, agrupados na categoria em que a cartilha
é uma dentre outras fontes estudadas.
Por fim, notamos que, dentre os 50 trabalhos em perspectiva histórica, encontram-se cinco
que estudam o objeto cartilha voltado para a alfabetização de jovens e adultos e apenas um se detém na
alfabetização matemática. Os demais tematizam a cartilha voltada para o ensino da leitura e para crianças
do ensino primário.
Considerações finais
É relativamente recente o interesse dos pesquisadores pelo campo de estudo da história da leitura
e dos livros escolares. Segundo Choppin (2009), apenas a partir da década de 80, do século passado, a
comunidade científica inaugura um tipo de reflexão mais crítica, em relação a estudos anteriores, a respeito
dos manuais escolares. Como vimos, no Brasil, só a partir do final da década de 1990, livros e cartilhas
escolares ganham atenção dos pesquisadores, que ampliam significativamente este campo de estudo.
A proposta deste capítulo foi a de refletir sobre as cartilhas como fontes para a historiografia da
alfabetização, a partir de um mapeamento dos trabalhos acadêmicos brasileiros – dissertações e teses – que
estudam as cartilhas escolares.
20
A exemplo de Lázara Nanci de Barros Amâncio (2008), que apresenta repertórios de cartilhas mais utilizadas em Mato
Grosso, e Dulcinéia Campos Silva (2013), que apresenta uma cartilha regional do Espírito Santo.
Referências
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2005.
AMÂNCIO, Lázara Nanci de Barros. Cartilhas, para quê? Cuiabá: EdUFMT: Comped, 2002.
AMÂNCIO, Lázara Nanci de Barros. Ensino de Leitura e Grupos Escolares (Mato Grosso, 1910-1930). Cuiabá: EdUFMT,
2008.
ANDRÉ, Marli. A pesquisa sobre formação de professores no Brasil – 1990-1998.In: CANDAU, Vera M. (Org.). Ensinar
e aprender: sujeitos, saberes e pesquisa. 2. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001, p.83-100.
BATISTA, Antônio Augusto; COSTA-VAL, Maria da Graça (Org.). Livros de Alfabetização e de Português: os professores
e suas escolhas. Belo Horizonte: CEALE: Autêntica, 2004.
N este trabalho realizamos uma reflexão sobre a importância das fontes orais para a produção
da História da Alfabetização nos últimos 15 anos. Temos privilegiado, em nossas pesquisas, as fontes
orais como opção metodológica, pois percebemos que as pesquisas sobre História da Alfabetização foram
construídas ao longo dos últimos estudos a partir dos documentos oficiais e bibliográficos. Escolhemos
articular, como baliza teórica, a História Cultural, pois ela “tem como principal objecto identificar o modo
como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é dada a ler” (Chartier, 2002, p.61). De
acordo com Chartier (2002), na História Cultural é importante considerar “o consumo cultural ou intelectual
como uma produção, que constitui representações nunca idênticas às que o produtor, o autor, ou o artista
investiram na sua obra” (Chartier, 2002, p.61). Destarte, não existem objetos históricos fora de suas práticas
nem discursos e realidades definidas, fixas em cada situação histórica. Assim, a relação do texto com o real
é construída segundo modelos discursivos e delimitações intelectuais, próprios de cada situação escrita.
A publicação da revista Annales d’histoire économique et sociale, em outubro de 1929, expressou uma
nova tendência da historiografia francesa, erguendo-se contra a dominação da Escola Positivista. As ideias
e ideais da revista apontam outras formas de pesquisa que consideravam diferentes fontes, aproximando,
assim, a História das outras ciências humanas.
Ao propor que o homem fosse apreendido em sua totalidade, a Escola dos Annales aponta aos
historiadores novas possibilidades para o desenvolvimento das pesquisas, ampliando o campo de trabalho
do historiador em relação aos atores e aos temas, e a seus objetivos. Assim, é necessária uma História aberta
às ciências humanas, conforme afirmaram Bourdé e Martin (2003):
• 77
Erguendo-se contra a dominação da Escola Positivista, uma nova tendência da historiografia francesa
exprime-se bastante discretamente em ‘A Revista de Síntese’ durante os anos 1920, mais francamente na
‘Revista Les Annales’ durante os anos 1930. A corrente inovadora (Annales) despreza o acontecimento e
insiste na “longa duração”; deriva a sua atenção da vida política para a atividade econômica, a organização
social e a psicologia coletiva (Bourdé; Martin, 2003, p.119).
Segundo um dos idealizadores desse movimento, Lucien Febvre, a História não deve ser o registro da
sequência de acontecimentos que parte apenas dos documentos escritos, mas deve se utilizar de documentos
não escritos e fazer apelo a outras ciências, abordando todos os aspectos da atividade humana. Assim, “[...]o
stock de documentos de que a história dispõe não é limitado; sugere não utilizar exclusivamente documentos
escritos e recorrer a outros materiais [...]” (Bourdé; Martin, 2003, p.125).
Até 1968, Fernand Braudel dirigiu a Revista dos Annalles de forma incontestável e, a partir daquele ano,
formou um comitê para auxiliar na publicação e direção da revista. Esse comitê era formado por intelectuais
como Jacques Le Goff, E. Le Roy Ladurie e M. Ferro. Com essa nova direção, novos problemas e novos objetos
começaram a emergir, e esboçaram-se novas abordagens, explicitadas na enciclopédia intitulada A Nova História,
dirigida por Le Goff, em 1978.
A partir da publicação da coleção de ensaios, editada por Le Goff, a expressão Nova História ficou
conhecida. Dessa forma, enquanto a Escola dos Annales interessava-se pela Europa Ocidental e por suas
dependências, a Nova História procurou compreender os grandes espaços e as grandes massas históricas.
Ao contrário do Positivismo, ela revela outras possibilidades de fontes para as pesquisas.
A Nova História tem como um de seus pressupostos a compreensão de que a realidade é social e
culturalmente construída e, por isso, o pesquisador deve se preocupar com a análise das estruturas, abrindo-
se para novos objetos de pesquisa e, por consequência, buscar novas fontes para suplementar os documentos
oficiais, como a fonte oral, as evidências das fontes iconográficas e as estatísticas.
Nesse contexto, a história deixa de ser historicizante para se tornar uma história problematizadora
do social, preocupada com as massas anônimas, seus modos de viver, sentir e pensar. Nessa direção, foram
excluídas as concepções de viés marxista, que entendiam a Cultura como integrante da superestrutura,
como mero fluxo da infraestrutura, e também a concepção de Cultura como manifestação superior do
espírito humano e, portanto, domínio das elites. A Nova História propõe um olhar cuidadoso sobre a
Cultura, segundo Pesavento (2004),
Não mais como uma mera história do pensamento, onde estudavam-se os grandes nomes de uma dada corrente
ou escola. Mas, enxergar a cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens
para explicar o mundo (Pesavento, 2004, p.15).
Dentro dessa nova ótica historiográfica, focamos nossas pesquisas e estudos em auxiliar a difícil
construção da História da Alfabetização no Brasil, a partir das práticas e métodos pedagógicos utilizados
Um dos principais aspectos da cultura que se constitui objeto de ensino na escola é precisamente
a linguagem/língua, que nos precede, ultrapassa, institui e constitui como seres humanos e sujeitos sócio-
históricos. Podemos considerar que a publicação da revista Annales d’histoire économique et sociale descerrou
a possibilidade para as pesquisas sobre História da Alfabetização, já que proporcionou diferentes visões para
a pesquisa historiográfica.
Diante das novas possibilidades de pesquisa advindas da Escola dos Annales, e por se tratar de análises
qualitativas, nossas pesquisas têm utilizado fontes orais nos últimos quinze anos; assim, nos apropriamos
das narrativas das alfabetizadoras, colhidas por meio de entrevistas individuais. A cultura escolar muito nos
interessa como uma dimensão da história cultural, pensando a Cultura como um modo de vida e tendo,
como parâmetro, o conceito de cultura escolar elaborado por Julia (2001):
É necessário, justamente, que eu me esforce em definir o que entendo aqui por cultura escolar; tanto isso é
verdade que esta cultura escolar não pode ser estudada sem a análise precisa das relações conflituosas ou pacíficas
que ela mantém, a cada período de sua história, com o conjunto das culturas que lhes são contemporâneas:
Nossos estudos buscam, por meio das práticas das alfabetizadoras brasileiras, evidenciar indícios
que possibilitem compreender e dar visibilidade ao processo que ocorreu no espaço escolar. Ainda que
a documentação fosse escassa ou estivesse danificada, foi possível reconstruir diferentes representações
culturais, a partir de sinais, oferecidos por essas fontes, indicadores da relação da entidade escolar com a
sociedade, do professor com o aluno e suas contribuições para a formação da cultura escolar.
Nessa perspectiva, o método do paradigma indiciário1 tem contribuído para nossas pesquisas,
uma vez que seu apego ao detalhe revelador não deixa de estabelecer o diálogo entre a parte e o todo,
salvaguardando o pesquisador de cair na armadilha da descrição positivista, ingênua e romântica.
1
Para mais informações, consultar: Ginzburg, Carlo. Mitos, Emblemas e Sinais: morfologia e história. São Paulo: Cia das
Letras, 1989.
Assim, na base de qualquer lembrança haveria o chamamento a um estado de consciência puramente individual
que chamamos de intuição sensível – para distingui-lo das percepções em que entram alguns elementos do
pensamento social (Halbwachs, 2006, p.42).
Nossas lembranças estão sempre ligadas a uma base social, misturadas a imagens, com pensamentos
ligados a outras pessoas e aos grupos que nos rodeiam. Por isso, não nos lembramos da nossa primeira
infância, porque nossas impressões não se ligam a nenhuma base social. Sendo assim, nossa memória não
se apoia na história aprendida, mas na história vivida.
A lembrança corresponde a um acontecimento distante no tempo, a um momento de nosso passado:
“é o que Bergson chama de reconhecimento em imagem, ou a sensação do déjà vu” (Halbwachs, 2006, p.55);
ademais,
Quando dizemos que a recordação de certas lembranças não depende da nossa vontade, é porque a nossa
vontade não é forte o suficiente. A lembrança está ali, fora de nós, talvez dispersa entre muitos ambientes. Se a
reconhecemos são as forças que a fizeram reaparecer e com as quais sempre mantivemos contato (Halbwachs,
2006, p.59).
Assim, não há memória coletiva que não aconteça em um contexto espacial. Ora, o espaço é uma realidade que
dura: nossas impressões se sucedem umas às outras, nada permanece em nosso espírito e não compreenderíamos
que seja possível retomar o passado se ele não estivesse conservado no ambiente material que nos circunda
(Halbwachs, 2006, p.170).
Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência de que tudo opõe uma à outra. A memória
é vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética
da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e
manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a construção sempre
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido
no eterno presente; a história, uma representação do passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se
acomoda a detalhes que a confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes,
particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censura ou projeções. A história, porque
operação intelectual e laicizante, demanda análise e discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado,
a história a liberta, e a torna sempre prosaica (Nora, 1981, p.9).
Ao construirmos uma História das práticas das alfabetizadoras, é importante compreender o papel e
a importância da memória como possibilidade de revelar as histórias a partir das entrevistas. As narrativas
podem trazer contribuições significativas à pesquisa, na medida em que podem revelar fatos pessoais que,
em sua maioria, não foram documentados.
As histórias orais narradas têm um valor extraordinário e, por isso, não devem ser reduzidas a um
mero documento adicional, já que toda história precisa de sua finalidade social. Assim, os fatos coletivos
ficam evidentes com a história oral, pois, com o seu auxílio, podemos cruzar os depoimentos de várias pessoas
de diferentes camadas sociais, envolvidas nas vivências e experiências, bem como cruzar os depoimentos
com a fonte documental, iconográfica ou bibliográfica.
A partir do início do século XX, os relatos orais vão, gradativamente, assumindo o patamar de
fontes, contando com a contribuição das concepções advindas da Nova História. Segundo Thompson
(1998), muitas vezes, quando uma pessoa é entrevistada, ela percebe a relevância de sua perspectiva, o que é
capaz de despertar forças; de igual modo, a recuperação de lembranças acaba promovendo sentimentos que
podem renovar suas vidas.
Utilizar a fonte oral nos estudos é uma das formas de valorizar quem vivenciou determinados
contextos e pode nos relatar detalhes que, provavelmente, nunca seriam escritos nos documentos oficiais.
Thompson expõe, em a Voz do Passado (1998), o quanto perdemos ao acreditar que apenas o que está escrito
O domínio da palavra escrita sobre a oral sempre existiu e desde o princípio impôs uma guerra entre os dois
códigos. Já nos registros das sociedades antigas, começando pelos egípcios com os chamados escribas, a palavra
escrita passou a ganhar valor em detrimento da oral, que passava a ser recurso vulgar e território da comunicação
comum e da transmissão da memória (Meihy, 2000, p.42).
Há algumas qualidades essenciais que o entrevistador bem-sucedido deve possuir: interesse e respeito pelos
outros, como pessoas, e flexibilidade nas reações em relação a eles; capacidade de demonstrar compreensão e
simpatia pela opinião deles: e, acima de tudo, disposição para ficar calado e escutar (Thompson, 1998, p.254).
A entrevista é um processo muito importante, no qual se deve tomar cuidado especial com as perguntas.
Thompson (1998) propõe alguns princípios a serem observados durante a preparação das perguntas:
As perguntas devem ser sempre tão simples e diretas quanto possível, em linguagem comum. Nunca faça
perguntas complexas ou de duplo sentido [...] evite induzir a uma resposta... E sempre que possível evite
interromper uma narrativa [...] (Thompson, 1998, p.260-263).
Outro fator importante é o local onde a entrevista é realizada, pois ele pode alterar os resultados,
modificando o discurso do entrevistado, motivo pelo qual faz-se necessário que aquela ocorra em um local
no qual esse se sinta aconchegado.
De acordo com Meihy (2005), a entrevista passa por três procedimentos, que são transcrição,
textualização e transcriação:
1. Transcrição: processo rigoroso, longo e exaustivo de passagem inicial do oral ao escrito. Para
alguns pesquisadores, trata-se de operação de caráter puramente técnico, por vezes relegado a
Durante a entrevista, a gravação é um processo de confiança e que retrata o que realmente foi dito,
transparecendo marcas de humor, incertezas, dialetos. Deste modo, a gravação é diferente do registro
escrito, pois o registro escrito não deixa transparecerem estas marcas.
a memória é marcada e estruturada pelos tipos de papéis sociais desempenhados, diversificando-se constituem
no confronto de muitas variáveis, tais como o meio social, o nível de estudos, a participação política, a faixa
etária, as quais por sua vez interferem na recuperação do passado (Bueno; Catani; Souza, 1998, p.46).
Sendo assim, quem transcreve uma narrativa tem a responsabilidade de preservar o que foi dito. Logo
vimos, ao iniciar o trabalho, que, para alguns entrevistadores, o objeto da pesquisa estava mais claro que para
outros, daí algumas entrevistas ficarem mais coerentes com o tema e o objetivo da pesquisa e fornecerem mais
elementos para análise.
Constatamos que um entrevistador, para fazer seu trabalho de campo, deve compreender qual é o
problema que desencadeou a pesquisa, bem como os objetivos que a norteiam. Dessa forma, seu trabalho
será direcionado, o que possibilitará atingir os fins propostos. Durante a entrevista e a transcrição, devemos
ter clara a concepção da metodologia da História Oral, pois a falta de objetividade sobre a pesquisa e a
metodologia pode reduzir a entrevista a uma técnica.
ARAÚJO, Osmar Ribeiro de; SANTOS Sônia Maria dos. História Oral: Vozes, Narrativas e Textos. Cadernos de História,
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E m tempos de selfie e da expansão da tecnologia, a imagem se tornou uma linguagem comum e ágil
na comunicação. No whatsApp, há os conhecidos emojis que expressam sentimentos, substituem objetos,
palavras, expressões, locais etc. Esses ícones constituem, na contemporaneidade, uma língua universal.
O aparelho celular é um dos artefatos que permitiu ao campo visual ganhar cada vez mais espaço,
modificando costumes, posturas e modos de interação e socialização. Na “linha do tempo” das redes sociais,
o ambiente privado se tornou cada vez mais público; compartilhamos sentimentos, curtimos fotografias,
comentamos os vídeos e conhecemos, a cada postagem, a vida do outro, sem sair de casa. Todas essas
circunstâncias provocam debates acerca do uso das tecnologias de informação e comunicação. Ainda que
de forma tímida, no Brasil, as discussões geraram a aprovação da lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014, que
estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da internet, além de modificar, por exemplo, os
editais do PNLD (Programa Nacional do Livro Didático)1 e do Prêmio Jabuti2 (CBL – Câmara Brasileira do
Livro). O primeiro edital incentivou, a partir de 2012, as editoras a inscreverem obras didáticas acompanhadas
de conteúdos multimídia, seja audiovisual, jogo eletrônico educativo, simulador e/ou infográfico animado; já o
segundo edital permitiu a inscrição, desde 2015, de livros digitais na categoria denominada de “infantil digital”.
1
Programa Federal voltado à distribuição de obras didáticas aos estudantes da rede pública de ensino brasileira.
Atualmente, o PNLD abrange a educação básica, excetuando a etapa da Educação Infantil.
2
Prêmio organizado pela CBL (Câmara Brasileira do Livro), é “o mais tradicional e prestigiado prêmio literário do
Brasil, conferindo aos vencedores o reconhecimento da comunidade intelectual brasileira” (CÂMARA BRASILEIRA
DO LIVRO, 2016, p.1).
• 89
Acompanhando esse progresso, a baliza entre o hábito de descartar e preservar ficou ainda mais
tênue. Baús, álbuns de fotografias, armários foram substituídos pelos bytes das memórias dos celulares, dos
discos rígidos (HDs). Quando estas memórias estão cheias, o jeito é apagar os arquivos obsoletos. Logo,
em contexto de multiletramentos, escutamos frequentemente que a veloz evolução digital instaurou uma
crise. Nora (1993) nos adverte que a aceleração da História, própria da atualidade, colocaria em risco a
Memória, o que nos impele a um esforço na produção de “lugares de Memória”. O autor acrescenta que
a esses lugares são atribuídos três sentidos coexistentes, o material, o simbólico e o funcional, fundando
os museus, arquivos, cemitérios, coleções, exposições, festas, comemorações cívicas, monumentos, lendas,
cantigas, álbuns, dentre outros.
Diante disso, podemos questionar: Quais serão os desafios dos historiadores do futuro quanto ao
estudo das recordações do tempo presente? Como terão acesso aos documentos históricos de hoje, se
estão criptografados em nuvens e o acesso a programas, serviços e arquivos está aprisionado em senhas e
códigos de entrada? Essas perguntas são questões que merecem atenção da historiografia moderna e nos
motivam a refletir sobre o futuro da disciplina histórica e do ofício do historiador.3 Distante de cumprir
esse desafio, mas ciente dessas imperativas provocações, neste trabalho discutiremos o uso da imagem
como evidência histórica, legitimamente, como “lugares de Memória”.
O uso da imagem no campo historiográfico remonta aos antiquários e aos seus colecionadores: as
inscrições nas moedas e nos vasos de cerâmicas são representações de eventos do passado muito utilizadas
nos estudos históricos; a compreensão da vida e cultura das primeiras civilizações foi realizada também a
partir de imagens nas pedras, cavernas, túmulos, construções etc. Essa tradição, contudo, foi rejeitada pela
pesquisa histórica que, a partir do século XIX, em busca do objetivismo científico, garantiu a supremacia das
fontes escritas. A hegemonia do positivismo e do historicismo e o advento da escola metódica silenciavam
todo e qualquer documento que não fosse inscrito sob a égide da neutralidade e da objetividade. A análise
de um documento restringia-se à sua crítica externa e interna.
A partir do início do século XX, sobretudo, o trabalho empreendido por Febvre e Bloch, na fundação
dos Annales d’histoire économique et sociale, insatisfeitos com os rumos e a preeminência da História Política,
possibilitou a plasticidade das fontes documentais. Há que se considerar que o movimento conhecido por
Escola dos Annales integrou as diferentes áreas das ciências e incentivou a inovação temática. A História
passa a ser vista como ciência “dos homens, no tempo” (Bloch, 2001, p.55) e os documentos são resultados
da seleção e do questionamento do historiador:
O historiador os reúne, lê, empenha-se em avaliar sua autenticidade e veracidade. Depois do que, e somente
depois, os põe para funcionar... Uma infelicidade apenas: nenhum historiador, jamais, procedeu assim.
3
Sobre isso, Burke afirma que “nos próximos anos, será interessante observar como os historiadores de uma geração
exposta a computadores, bem como à televisão, praticamente desde o nascimento e que sempre viveu num passado
saturado de imagens vai enfocar a evidência visual em relação ao passado” (BURKE, 2004, p.16). Para aprofundar as
reflexões acerca da intersecção entre História e Informática, ver: Figueiredo (1997) e Tavares (2012).
A natureza que fala à câmara não é a mesma que fala ao olhar; é outra, especialmente porque substitui a um
espaço trabalhado conscientemente pelo homem, um espaço que ele percorre inconscientemente. Percebemos
em geral, o movimento de um homem que caminha, ainda que em grandes traços, mas nada percebemos de
sua atitude na exata fração de segundo em que ele dá o passo. A fotografia nos mostra essa atitude, através dos
seus recursos auxiliares: câmara lenta, ampliação. Só a fotografia revela esse inconsciente ótico [...] (Benjamin,
1987, p.94).
Sabemos que o universo iconográfico é demasiadamente extenso, envolve inúmeros tipos de imagens
e grande quantidade de técnicas usadas para sua produção. Dada a amplitude das iconografias, e diante dos
diversos recursos audiovisuais disponíveis hoje no mercado, focaremos, neste trabalho, apenas as imagens
visuais planificadas. Portanto, ao nos referirmos às iconografias, no contexto desse artigo, empregaremos
essa palavra como sinônima de desenhos, pinturas, fotografias.
Feitas essas considerações, este texto objetiva compreender a história do ensino de leitura e escrita,
especialmente no estado de São Paulo, no final do século XIX e início do século XX, direcionando nosso
olhar ao uso das iconografias como fonte na historiografia e instrumento para condução dos métodos de
alfabetização no Brasil.
O trabalho está organizado em três tópicos, inspirados nos versos do poema “Procura da Poesia”, de
Carlos Drummond de Andrade:
Do mesmo modo que esse poema suscita a descoberta das faces secretas das palavras, que se
escondem sob a expressão neutra, aparente e usual dos signos linguísticos, no primeiro tópico deste texto,
intitulado “Penetra surdamente no reino das imagens: o uso das iconografias nas pesquisas em História
da Alfabetização”, evidenciamos, por meio de um levantamento no Banco de dados da Capes, como a
imagem tem sido explorada nas teses e dissertações do campo temático da História da Alfabetização,
ao mesmo tempo que apresentamos os principais cuidados do pesquisador no tratamento e crítica da
iconografia; no segundo tópico, “Chega mais perto e contempla: as imagens na alfabetização do início
do Século XX”, apresentamos os argumentos que sustentaram o uso da imagem em cartilhas destinadas
ao ensino de leitura e escrita,4 produzidas no início do século XX, constituídos no debate empreendido
nos artigos da Revista de Ensino – Órgão da Associação Beneficente do Professorado Público de São
Paulo, entre os anos de 1902 e 1918, acerca de qual seria o melhor método de ensino de leitura e escrita
para a formação do cidadão republicano; por fim, em “Palavras finais: trouxeste a chave?”, refletimos
sobre a potencialidade do uso da imagem nas pesquisas históricas do ensino primário, em especial, do
ensino inicial de leitura e escrita.
Estudar imagens, assim como qualquer outro documento, requer do pesquisador saber localizá-
las, tratá-las e analisá-las. Saindo da esfera pública dos arquivos, museus e dos outros lugares públicos
de memória, há várias imagens testemunhas oculares do cotidiano escolar, que se escondem nos álbuns
familiares; estão em locais mais privados – gavetas, caixas, baús –, embaladas de afeto e repletas de
resistência ao modelo oficial de escola. Essas iconografias ainda precisam ser descobertas, e mesmo às
que já estão expostas e acessíveis, se requer um olhar mais sensível, ao estilo que Chauí (2000) tão bem
caracterizou: um olhar reflexivo e despido de convenções, de modo que “a visão depende de nós, nascendo
em nossos olhos – e em sua passividade – a visão depende das coisas e nasce lá fora, no grande teatro do
mundo” (Chauí, 2000, p.34).
4
Embora o termo que impulsionou a coleta de dados no Banco da Capes tenha sido História da Alfabetização,
esclarecemos que as fontes utilizadas nas análises aqui empreendidas estão situadas num período em que a terminologia
usual era ENSINO DE LEITURA E ESCRITA. Para compreender o surgimento do termo alfabetização, ver: Mortatti
(2004).
O levantamento de teses e dissertações sobre um determinado tema tem se tornado uma costumeira
etapa nas produções acadêmicas. A compreensão do estado do conhecimento acerca de um objeto de estudo,
em um dado período, possibilita a percepção de tendências, paradigmas e lacunas das pesquisas científicas.
No campo da alfabetização, a publicação da pesquisa Alfabetização no Brasil: o estado do conhecimento,
realizada por Soares (1989), e, posteriormente, por Soares e Maciel (2000), evidenciou a existência até 1989 de
apenas um estudo brasileiro que abordava a alfabetização numa perspectiva histórica. Longe de propormos
um levantamento exaustivo, o que fugiria aos objetivos desta obra coletiva, o que pretendemos é apresentar
neste tópico dados sobre as investigações em História da Alfabetização, olhando especificamente para o uso
das fontes iconográficas, no intuito de perceber o quanto e como têm sido exploradas na historiografia do
ensino inicial de leitura e escrita.
O presente levantamento foi realizado no Banco de Teses e Dissertações da Capes, por entendermos
que esse portal reúne trabalhos que têm a finalidade de gerar impactos científicos e sociais, e não apenas
conferir uma titulação acadêmica.5 Uma busca com o termo “História da Alfabetização”, em dezembro de
2016, gerou 87 registros. Vale salientar que reconhecemos as limitações dessa procura, já que há outros
trabalhos que contribuem para a História da Alfabetização e não estão inscritos sob essa terminologia,
portanto localizá-los demandaria uma pesquisa mais exaustiva e sistemática.
Um olhar sobre as teses e dissertações mostra-nos que as duas últimas décadas, no Brasil, constituíram,
fortaleceram e demarcaram o campo da História da Alfabetização como autônomo e interdisciplinar. A partir
da leitura dos resumos dos trabalhos e análise do seu conteúdo, identificamos que, dos 87 registros, somente
45 eram trabalhos de natureza histórica. Notamos que a busca com o termo “História da Alfabetização”
também detectou dissertações e teses vinculadas a projetos de pesquisa que carregavam essa expressão,
no entanto algumas das produções tratavam sobre questões contemporâneas do ensino e aprendizagem de
leitura e escrita.
As pesquisas cobriram temáticas variadas: alfabetização de crianças e adultos; alfabetização de
surdos; cartilhas; concepções e práticas pedagógicas de ensino de leitura e escrita em determinadas
épocas; grupos escolares e práticas de alfabetização; culturas escolares e alfabetização; educação formal
e informal, com destaque para alfabetização no lar; métodos e manuais de ensino; programas/projetos/
políticas de alfabetização, bem como iniciativas governamentais de combate ao analfabetismo, tanto em
esfera federal e estadual, quanto municipal/local etc.
5
Ver trabalhos que fazem um balanço crítico da produção acadêmica brasileira sobre alfabetização: Maciel (2014);
Mortatti (2014); Mortatti, Oliveira e Pasquim (2014).
O primeiro estudo catalogado no Banco de Teses e Dissertações da Capes, com o termo História
da Alfabetização, é de 1996. Conforme demonstrado na tabela, o número dos trabalhos ainda é esparso,
concentrando-se 80% em dissertações de mestrado, e apenas 20% em teses de doutorado, o que revela
a necessidade de investimento em pesquisas de doutoramento, já que, pela própria regulamentação
dos cursos de pós-graduação stricto sensu no Brasil, o tempo para conclusão do doutorado é maior
que o do mestrado, o que possibilita pesquisas mais densas, com um aparato teórico-metodológico
ampliado, e, ao pesquisador, um conhecimento mais profundo do seu objeto de estudo. Por meio desses
dados, podemos constatar que, a partir do início do século XXI, houve uma expansão significativa
das pesquisas, o que coincide com a maior divulgação de artigos sobre alfabetização nos periódicos
científicos,6 com a criação da ABAlf – Associação Brasileira de Alfabetização,7 com o aumento da
6
Mortatti (2014) realiza um levantamento de artigos sobre alfabetização, publicados entre 1972 a 2012, em 78 periódicos
consultados na base SciELO.
7
Mortatti (2015) faz um registro da memória da criação e consolidação da ABAlf, utilizando “documentos (impressos e
em mídias eletrônicas), produzidos desde o início da história da ABAlf, em 2009, até julho de 2014, quando se encerrou
10
Esta expressão está sendo empregada de acordo com as pressuposições da teoria da complexidade na educação,
conforme elaboração de Morin (2005; 2015).
A imagem, bela, simulacro da realidade, não é a realidade histórica em si, mas traz porções dela, traços, aspectos,
símbolos, representações, dimensões ocultas, perspectivas, induções, códigos, cores e formas nela cultivadas.
Cabe a nós decodificar os ícones, torná-los inteligíveis o mais que pudermos, identificar seus filtros e, enfim,
tomá-los como testemunhos que subsidiam a nossa versão do passado e do presente, ela também, plena de
filtros contemporâneos, de vazios e intencionalidades (Paiva, 2006, p.19).
As legendas das imagens também nos chamaram atenção. Embora seja regra da Associação
Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) a presença de um título/legenda e da fonte em desenhos, esquemas,
fluxogramas, fotografias, gráficos, mapas, organogramas, plantas, quadros, retratos, figuras e imagens no
geral, em 23% das produções analisadas não apresentam legenda e/ou fonte. Além da não presença desses
elementos, que compõem a apresentação de uma iconografia na produção acadêmica, percebemos o quanto
é necessário conhecer as características basilares de um título/legenda na composição textual, verbal ou
não verbal. Muitas das legendas não cumprem a sua função de descrever, de forma curta, a ilustração ou
fornecer uma informação sobre a imagem, tão somente anunciam o ano da figura ou, tendenciosamente,
generalizam, a partir de uma imagem, toda a cultura escolar de uma região.11 É imprescindível, pois, que
se faça “a reconstrução analítica da intricada rede de relações microscópicas, que cada produto artístico,
mesmo o mais elementar pressupõe” (Ginzburg, 1989, p.24).
Parte, da perspectiva de Ginzburg, outra questão que gostaríamos de abordar. A análise de uma
imagem requer um diálogo com o seu contexto de produção, circulação e consumo. Nesses aspectos,
considera-se o autor, sua rede de relações sociais, as condições de produção, o público a que se destina, o
regime político da época, os fatores culturais e históricos da imagem etc. Sem refletir sobre esses pontos, a
análise da gravura fica isolada das convenções sociais que a sustentam e ela paira sobre um abstrato campo
de ilusões ópticas. Por esse ângulo, observamos que os trabalhos analisados – teses e dissertações – não
contemplam essa prerrogativa; a imagem, quando considerada, é tratada por ela mesma, dentro de seus
limites pictográficos. Os pesquisadores deixam de lado os conflitos, contradições e as lacunas que estão
evidenciadas nas iconografias. Tal como Ginzburg (2006), em O queijo e os Vermes, retoma o caso de
Menocchio para apresentar toda uma rede de relações na Itália do século XVI, o historiador, na análise
de uma ilustração, pode conectá-la a uma conjuntura de fios, em diferentes escalas de observação, que
11
Notamos que essa questão estava presente em alguns textos como um todo, e não somente nas legendas das imagens.
Alguns pesquisadores da área generalizavam questões pertencentes a uma microesfera escolar, como se representassem
toda uma concepção de educação numa determinada macroestrutura geográfica.
Diálogos e silêncios permeiam nossa relação com as imagens. O que elas dizem em suas iconografias nos é
relativamente inteligível. É por trás da aparência, porém, no ato de sua concepção e ao longo de sua trajetória,
naquilo que ela tem de oculto, em seus silêncios, que residem as histórias secretas dos objetos e dos seres,
das paisagens e dos caminhos. São os mistérios que encobrem o significado dos conteúdos gravados nesses
pequenos pedaços de papel. O próprio aparente se carrega de sentido na medida em que recuperamos o ausente
da imagem (Kossoy, 2005, p.41).
Por fim, o balanço do uso das iconografias em pesquisas da História da Alfabetização no Brasil
permitiu cogitar sobre dois elementos que merecem destaque na análise das imagens em investigações de
cunho histórico.
O primeiro está na ênfase excessiva na descrição da imagem, em detrimento de um diálogo entre
fontes documentais e de uma perspectiva analítica. O que observamos é uma aparente repetição do que
está visível, uma simples transposição do não verbal para o verbal. Para consubstanciar uma linha analítica,
faz-se necessário que o pesquisador conheça com propriedade o tempo histórico e o contexto da época em
que a imagem foi feita. Esse conhecimento permitirá enxergar além do visual. Em consonância, Barthes
(1990, p.25) nos lembra que a leitura de uma imagem “depende estreitamente da minha cultura, do meu
conhecimento de mundo”.
O segundo elemento faz parte dos “encantos da imagem”. Na intenção de interpretar o que está posto,
corre-se o perigo de inventar significados que não existem, conferindo à imagem um sentido que não está
evidente, e que mais atende à intenção do pesquisador em sustentar sua tese, do que em um compromisso
com o rigor científico e com a produção de conhecimento. O pesquisador age de modo falacioso e comunica
mensagens que o artista não pretendeu repassar/ensinar com sua obra, perpetuando um antagonismo aos
princípios da História e da Memória.
Na História do ensino de leitura e escrita, mais especificamente no final do século XIX e início do
XX, em São Paulo, a constituição do debate em torno dos métodos para ensinar a criança ler e a escrever,
a partir da atuação de Silva Jardim e da defesa que fez do “método João de Deus”, presente na Cartilha
maternal ou arte da leitura, configura a inauguração de uma tradição, já apontada por Mortatti (2000), de
que o ensino de leitura e escrita está fundamentalmente relacionado a uma questão de método.12
Na Revista de Ensino – Órgão da Associação Beneficente do Professorado Público de São Paulo –, podemos
identificar, conforme Carvalho (2016), em trinta e dois artigos publicados entre os anos de 1902 e 1918, como se
constituiu esse debate, os atores envolvidos e os argumentos que apresentaram na defesa dos métodos analíticos
pela sentenciação e pela palavração, e dos métodos sintéticos pela soletração e pela silabação.
12
Para melhor compreender a atuação de Silva Jardim na configuração desse debate, ver: Mortatti (2000).
1ª Série
Leitura
Cópia de palavras da lição da leitura, letras do alfabeto e algarismos
Escrita arábicos. Os exercícios deveriam ser feitos no quadro-negro pelo
professor e copiados pelo aluno.
2ª Série
1º livro de leitura, soletração, palavras de formação regular dadas
Leitura no quadro-negro ou livro, exercícios orais, sentenças sobre coisas
que usam, que vestem, que comem etc.
Escrita Letras do alfabeto, pequenas sentenças copiadas do quadro-negro.
Hábitos de ordem, comportamento na escola, em casa, na rua e em
lugares públicos, deveres para com os pais e superiores, iguais e in-
feriores, tratamento adequado aos animais, máximas que desenvol-
Educação Moral e Cívica
vam boas qualidades, nomes das principais autoridades do lugar, do
estado e do país, leitura de palavras que despertem ideias nacionais
tais como: cidadão, soldado, exército.
Fonte: Elaborado pelos autores com base no Decreto nº 248 – 26/07/1894, publicado
na Coleção das Leis e Decretos do Estado de São Paulo – 1889-1920.
13
A respeito do impacto dos argumentos utilizados em defesa dos diferentes métodos de ensino de leitura sobre as
determinações legais, ver: Carvalho (2016).
14
Para a compreensão do conteúdo dos Programas de Ensino determinados na legislação, ver: São Paulo, Leis e Decretos
– Coleção de Leis e Decretos do Estado de São Paulo – 1889-1920.
15
Conforme o Decreto nº 144-B, de 10 de dezembro de 1892, as Escolas Preliminares são aquelas que se encontram sob
regência de professores normalistas (diplomados pela Escola Normal de São Paulo).
Processos:
Quer seja empregado o processo de silabação, quer seja o de palavração, o professor esforçar-se-á para
obter dos alunos a maior expressão e naturalidade na leitura, assim como o conhecimento do trecho
lido. Fará também explicação sobre o sentido real ou figurado das palavras encontradas no livro de
leitura. Nenhuma palavra poderá ser ensinada sem que a criança tenha ideia clara de sua significação.
Leitura
Programa:
Palavras e o que elas representam, sons e letras, sentenças formadas de palavras familiares, conexão com
a pronúncia, livro apropriado à idade e ao desenvolvimento do aluno, sinais de pontuação.
Lições auxiliares:
Cópia de pequenas sentenças do livro de leitura, formação de palavras com cartões de letras.
Processos:
Despertar a atenção da classe para fatos instrutivos e morais. Corrigir os defeitos da pronúncia e os
vícios de linguagem.
Programa:
Linguagem
Palestras sobre diversas disciplinas para o desenvolvimento da linguagem, sentenças sobre coisas que as
crianças usam, vestem, comem, nomes de animais e coisas.
Lições auxiliares:
Cópias de nomes de animais e coisas.
Processos:
Os exercícios de caligrafia acompanham as lições de leitura, assim os alunos começarão, desde o primei-
ro dia de aula, a copiar letras, palavras e pequenas sentenças. Ao professor incumbe corrigir a posição
dos dedos e do corpo. No primeiro ano, os exercícios serão feitos no primeiro semestre nas ardósias e no
segundo semestre serão feitos no papel com lápis. Do segundo ano em diante serão usados os cadernos
e letra norte-americana, completando este ano com o ensino da letra de fantasia.
Caligrafia
Programa:
Cópia de letras, palavras, algarismos arábicos e romanos e pequenas sentenças do livro de leitura, ou
escritas no quadro negro pelo professor.
Lições auxiliares:
Exercícios rápidos, dirigidos pelo professor, tendentes a obrigar o aluno a escrever letras e palavras sem
levantar o lápis ou pena do papel. Cópia de lições do livro de leitura.
Continua na página 102
16
Para organizar a distribuição das escolas pelas diversas localidades do Estado, a Lei nº 169, de 07 de agosto de 1893,
autoriza o Conselho Superior da Instrução Pública a fazer funcionar em um só prédio as escolas preliminares que,
em virtude da densidade demográfica, estão funcionando em maior número que o permitido em raio fixado para a
obrigatoriedade. Esses prédios são denominados de Grupos Escolares, pelo Decreto nº 248, de 26 de julho de 1894.
17
As Escolas-Modelo são criadas com o Decreto nº 27, de 12 de março de 1890, com o intuito de oferecer o ensino
preliminar ministrado por alunos do 3º ano da Escola Normal da capital.
Processos:
A instrução moral é ensinada principalmente pelo exemplo. A disciplina deve ser um grande auxiliar. A
Instrução
vida escolar deve ser o seu principal assunto.
Cívica e
Programa:
Moral
Não figura dos horários. Constitui o assunto de lições de linguagem: trechos morais, trechos cívicos,
adágios populares, pequenas poesias, historietas.
Fonte: Elaborado pelos autores com base no Decreto nº 1217 – 29/04/1904, publicado
na Coleção das Leis e Decretos do Estado de São Paulo – 1889-1920.
Ler, primeiro no quadro negro e depois no livro, palavras fáceis e entrelaçadas em sentenças sob
Leitura a forma enunciativa, interrogativa e exclamativa. Exercícios sobre palavras similares e rimas.
Análise das palavras em seus elementos, sílabas e letras.
Palestras com os alunos sobre coisas em cenas de fácil observação, relativas ao lar, à rua, à escola
Linguagem Oral e ao campo. Enumeração. Exercícios de comparação, forma, tamanho, cor e serventia. Repro-
dução de fatos sugestivos, lidos, ou melhor, contados pelo professor.
Copiar: nomes de objetos, animais, flores e frutas; sentenças do quadro-negro e do livro de
leitura; nomes de colegas, dias da semana, dos meses, das estações etc.
Completar sentenças escritas no quadro-negro e que já tenham sido lidas no livro.
Linguagem Escrita Construir sentenças em resposta a outras escritas pelo professor no quadro negro.
Exercícios retrospectivos de palavras escritas rapidamente e de memória pelos alunos, sob apos-
ta.
Ditado de sentenças do livro de leitura.
Cópia de sentenças escritas pelo professor no quadro-negro, onde apareçam palavras formadas
de letras de elementos simples. Cópia de sentenças escritas pelo professor no quadro-negro,
Caligrafia onde apareçam palavras formadas de letras com haste para cima.
Cópia de sentenças escritas pelo professor no quadro-negro, onde apareçam palavras formadas
de letras com haste para baixo.
Fonte: Elaborado pelos autores com base no Decreto nº 2005 – 13/02/1911,
publicado na Coleção das Leis e Decretos do Estado de São Paulo – 1889-1920.
18
Com o Decreto nº 2004, de 13 de fevereiro de 1911, estabelece-se que, anexas à Escola Normal de São Paulo, deveriam
funcionar duas Escolas-Modelo Isoladas sob sua diretoria, uma para cada sexo, com a finalidade de aperfeiçoar os
métodos e processos de ensino que deveriam ser adotados no ensino público preliminar do Estado e servir para a prática
dos alunos da Escola Normal de São Paulo. Este Decreto também determina que o curso dessas escolas deveria ser
dividido em três seções, sendo que a primeira corresponderia ao ensino da leitura e escrita propriamente dito.
O exame dos conteúdos prescritos nos Programas de Ensino de Leitura e Escrita indica elementos
significativos para os propósitos de análise aqui explicitados anteriormente.
O primeiro deles concentra-se na visibilidade dos impactos incidentes nas determinações legais, e
observáveis nesses programas, em um cenário de disputa, travada entre os defensores dos diferentes métodos,
pela oficialização de um método de ensino, a ser conferida pela Diretoria Geral da Instrução Pública.
Nos artigos da Revista de Ensino, os autores não economizavam argumentos para justificar sua
escolha metodológica como a melhor para a formação do cidadão republicano, especialmente os defensores
do método analítico, oficializado em 1911. Se é do todo para a parte, procedendo a análise, que se adquire
o conhecimento das coisas, é fundamental que se comece o ensino pelo todo, que é a sentença, e nela é
importante que se veicule uma certa moralidade, uma certa mentalidade, um corpo de condutas compatíveis
19
Conforme determinação do Decreto nº 2368, de 14 de abril de 1913, as Escolas de Bairro são Escolas Preliminares
situadas em centros agrícolas, povoados ou distritos de paz e são classificadas em duas categorias; as de 1ª categoria são
aquelas situadas a uma distância menor de 20 km de uma estação de estrada de ferro e as de 2ª categoria são as demais. O
curso dessas escolas é divido em dois anos, subdivididos em duas seções, sendo que a primeira corresponde ao ensino da
leitura e escrita proprimente dito.
As imagens não têm sentido em si, imanentes. Elas contam apenas – já que não passam de artefatos, coisas
materiais ou empíricas – com atributos físico-químicos intrínsecos. É na interação social que produz sentidos,
mobilizando diferencialmente (no tempo, no espaço, nos lugares e circunstâncias sociais, nas gentes que
intervêm) determinados atributos para dar existência social (sensorial) a sentidos e valores e fazê-los atuar
(Meneses, 2003, p.28).
Sempre fomos inimigos do methodo de palavração americana introduzido por Miss Marcia Browne e posto em
pratica, a principio, em nossas escolas-modelo; isso não por espirito rotineiro mas pela convicção inabalavel de
seu improficuo resultado [...]
Eis que apparece a – Cartilha Moderna – baseada tambem no methodo de palavração e vimo-nos obrigados, pela
observação que fizemos, a acceital-a como uma das melhores, porquanto é baseada num methodo de palavração
racional, lógico, sendo impossível, pela disposição dos elementos das lições, a decoração tão usada e abusada
principalmente em tal methodo. As palavras aprendidas por meio de gravuras são logo empregadas em sentenças
e historietas, além de serem decompostas em seus elementos. De maneira que apos a synthese vem a analyse,
como uma prova a verificar si a lição foi comprehendida ou sabida. Alem disso, a disposição das palavras é feita de
tal modo que se torna impossível a decoração. Depois, as difficuldades apparecem em doses homeopathicas que
a creança quasi não as percebe e, atrahida pelas gravuras e pelas historietas que lê, desde o começo, considera a
Cartilha como um livro agradável [...] (Brito, 1902, p.322-323).
20
As imagens apresentadas neste texto referem-se a gravuras, figuras, ilustrações e desenhos, cuja denominação era
utilizada na época em que foram produzidas, conforme identificamos nos artigos da Revista de Ensino, utilizados para
a análise aqui empreendida.
Experiente como tipógrafo e desenhista, Dordal, na defesa que fez da presença da imagem no
processo de ensino pelo método analítico de palavração, parecia também interessadamente propagandear
sua cartilha como a mais adequada para o ensino de leitura e escrita. Com os argumentos apresentados em
seu artigo, consolida a ideia de que a cartilha deveria conter ilustrações, imagens de figuras e ou desenhos
nítidos de objetos, coisas e animais que seriam do conhecimento da criança ou que ela deveria conhecer. A
presença da imagem na cartilha conferia à obra a qualidade de “moderna”, necessária para a aplicação de um
ensino considerado progressista.21
21
Para melhor compreender sobre a obra de Ramon Roca Dordal, conferir: Mortatti (2000) e Pasquim (2015).
Nessa primeira lição, as crianças devem inicialmente olhar e descrever as gravuras e assim são
encorajadas a ler as palavras acompanhadas de cada desenho. Qual terá sido então a reação das crianças
ao olharem para a figura que apresenta um menino nascendo do ovo? Como terão descrito essa imagem?
O que teriam dito e pensado? Que significados eram conferidos pelo autor a essa figura? Uma significação
científica teria sido cogitada em contraposição a uma outra de natureza religiosa? Essas gravuras deveriam
cumprir um papel de estimuladoras da leitura e estavam visivelmente impregnadas de uma conotação
religiosa, sobretudo, cristã. Os símbolos pascais (ovo, cálice, uva) evidenciaram a presença dos preceitos
religiosos católicos. Embora a Constituição Federal de 1891, em vigor na época, apregoasse a laicização do
Estado, e consequentemente do ensino, a Igreja Católica ainda tinha uma presença marcante no modelo de
cidadão republicano, que se pretendia formar na escola.
Nessa outra lição, a observação da imagem constitui parte essencial para a aplicação do método
analítico, porque é a partir de sua observação que o processo de ensino se inicia. A elaboração da historieta
depende da observação da imagem.
A Cartilha Moderna reunia, segundo Dordal, todos os requisitos necessários para o ensino adequado
da leitura e da escrita. João Köpke, no artigo intitulado “Ensino da Leitura (Carta aos Professores J. de Brito
e R. Roca Dordal)”, publicado na Revista de Ensino, edição de outubro de 1902 (ano I, n.4), apresenta os
argumentos que justificarão o seu modo de aplicação do método analítico de palavração, recolocando o
lugar e importância da imagem na aplicação do referido método:
A confutação que trago a este fundamento de rejeição é tão simples quanto decisiva: eu nunca fiz do
conhecimento do desenho pelo professor uma condição para o uso do processo. Abram os meus caros
collegas a minha conferencia e, à pagina 18, ahi lerão: Cada mestre – e este é o ideal – póde, com os
elementos do meio, compor, á vista da classe, a sua historia. [...] Á apresentação do conto, porém, deve
22
Para melhor compreender a respeito do Ensino Simultâneo na instrução elementar, ver: Faria Filho (2000).
Com uma historieta elaborada a partir da observação das imagens, Köpke propõe a sua versão de aplicação do
método analítico de palavração. O que terá pretendido, ao tratar explicitamente da figura que apresenta um menino
nascendo do ovo? Terá aderido a uma forma velada, moralmente aceita para explicar como as crianças nascem?
A instrução moral e cívica, como vimos, foi determinada nos Programas de Ensino desde os primeiros
anos da República recém-proclamada. E nos argumentos apresentados no debate acerca de qual seria o
método de ensino de leitura e escrita capaz de melhor formar o cidadão republicano, foi parte importante
na aplicação e escolha oficial do método analítico23 porque, se o ensino de leitura e escrita pelo método
analítico deveria começar pela observação da imagem e esta por sua vez deveria inspirar a elaboração de
uma historieta, com a determinação oficial de uma instrução moral e cívica atrelada ao ensino de leitura e
escrita, o conteúdo moral deveria ser veiculado por meio dessas ações, a fim de garantir a formação de uma
almejada mentalidade republicana.
23
Para compreender melhor os argumentos expostos na Revista de Ensino, que sustentaram a superioridade e oficialida-
de do método analítico, ver: Carvalho (2016).
24
Para melhor compreender a configuração textual e a influência no ensino de leitura e escrita da Cartilha Analytica,
nas escolas primárias do Brasil ao longo da primeira metade do sec. XX, ver: Bernardes (2008). Conforme a autora, a
Cartilha Analytica teve sua 1ª edição, provavelmente, em 1909 e a última em 1967, na 74ª edição, pela Editora Francisco
Alves – RJ. Na cópia do exemplar a que tivemos acesso, não foi possível identificar a edição e a data.
Comportamento cordial e gentil são retratados nessa outra imagem e acompanham a descrição do
conteúdo de instrução moral que prescreve os deveres das crianças para com os seus colegas. Inspirando
o conteúdo a ser explorado na historieta, conforme prescreve a execução do método analítico, a imagem
deverá motivar a criança para o exercício da leitura. O texto que segue dialoga com a figura e pede a
observação dela. O menino está colhendo rosas para a menina, comportamento cortês valorizado pelo novo
ideário de nação republicana.
Comportamento adequado com os parentes mais velhos também foi prescrito nos conteúdos de
Educação Moral e Cívica. Nessa imagem, descrita no texto que vem logo em seguida, o menino tira o boné
para cumprimentar seu tio em sinal de respeito. O texto que segue também se relaciona com a figura e pede
a sua observação, seguindo as regras de execução do método analítico.
Na imagem abaixo, o menino observa um ninho de passarinhos no galho de uma árvore. De acordo
com a indicação de aplicação do método analítico, a observação dessa imagem poderia sugerir um debate
acerca da melhor atitude – de acordo com o ideário republicano de respeitos aos animais – que deveria ser
adotada pelo garoto em relação ao ninho. As crianças, a partir da observação da imagem, comporiam a
historieta com o conteúdo moral a ser seguido.
Ideias nacionais de soldado e exército foram manifestadas nessa outra imagem. A valorização do
espirito patriótico, o respeito aos símbolos nacionais, como a bandeira, o hino nacional, o amor à pátria,
foram apontados e teriam a função de, a partir de sua observação, motivar as crianças para o conteúdo
moral descrito no texto que segue à imagem.
Evidentemente, a análise aqui proposta não abarca a pretensão de um estudo aprofundado sobre as
imagens contidas na Cartilha Analítica, de Arnaldo de Oliveira Barreto, e na Cartilha Moderna, de Ramon
Roca Dordal. Reconhecemos essa necessidade de análise nas cartilhas e livros de leitura do período. Contudo,
As imagens têm também os seus mistérios, que sorrateiramente enganam os observadores. Os efeitos
visuais provocam uma falsa impressão de que tudo é perceptível pelo olhar. Tal como para abrir a porta é
necessário encontrar a chave própria, ao fazer a análise de uma iconografia, o historiador precisa perscrutar
cuidadosamente o material, cogitando percepções para além do campo visual.
No decorrer deste trabalho, observamos que as imagens, nas cartilhas destinadas ao ensino de leitura e
escrita, não cumprem apenas a função lúdica de ilustração do texto escrito. Elas concretizam o pensamento da
época, atendem às premissas da legislação em vigor, revelando modos de agir, ser, conviver e alfabetizar. Logo, as
iconografias são fontes inesgotáveis para a historiografia da alfabetização, já que podem demonstrar diferentes
aspectos do tempo histórico em que foram produzidas, as políticas nacionais de educação, ideologias, as tendências
da produção editorial, o método de ensino, as ideias pedagógicas imperantes, dentre outras questões, que estão
muito além da exterioridade.
A análise conduzida com as imagens da Cartilha Moderna, de Ramon Roca Dordal, e da Cartilha
Analítica, de Arnaldo de Oliveira Barreto, dialogou com outros documentos, afinal “é óbvio que as fontes
iconográficas devem ser confrontadas com o resto da documentação de todos os tipos a que se puder ter
acesso, mas esta também é uma regra geral aplicável a quaisquer fontes” (Cardoso, 1990, p.17).
Muitos ainda são os desafios do uso da imagem para a escrita de uma História da Educação
Primária, sobretudo do ensino inicial de leitura e escrita. A imagem tem uma sintaxe própria, e, para
compreender sua mensagem, é necessário conhecer a sua morfologia e sua semântica, afinal o que ela
transmite não é a realidade em si, e sim seu analogon.25 As ilustrações retratam o que seus autores queriam
eternizar e é necessário mergulhar em seu reino secreto e impreciso, ao mesmo tempo tangível nos traços,
cores e texturas. As fotografias escolares, por exemplo, transmitem aquilo que a escola queria perpetuar de
si mesma para as próximas gerações. Esse caráter na modernidade perdeu o sentido; antes, as fotografias
tinham um caráter futurista, perenizando, nos álbuns, as tradições de família, de um povo, de uma
instituição etc. Hoje, a imagem, como já assinalado, tem um caráter muito instantâneo. No entanto, essas
contradições da contemporaneidade não diminuem suas potencialidades, ao contrário, proporcionam
25
Expressão utilizada por Barthes (1990, p.13) ao se referir ao estudo e à análise da fotografia: “a imagem não é o real;
mas ela é pelo menos seu perfeito analogon, e é precisamente esta perfeição analógica que, para o senso comum, define
a fotografia. Surge assim o estatuto particular da imagem fotográfica: é uma mensagem sem código, proposição de que é
necessário extrair imediatamente um corolário importante: a mensagem fotográfica é uma mensagem contínua”.
Referências
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2008.
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BARTHES, Roland. Lo obvio y lo obtuso: imágenes, gestos, voces. Buenos Aires: Paidós, 1990.
BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. 3ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1987.
BERNARDES, Vanessa Cuba. Um estudo sobre a Cartilha Analytica de Arnaldo de Oliveira Barreto (1869-1925). Revis-
ta de Iniciação Científica da FFC, v.8, n.1, p.1-17, 2008.
BERTOLETTI, Estela Natalina Mantovani. Lourenço Filho e a alfabetização: um estudo de Cartilha do povo e da cartilha
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BLOCH, Marc. Apologia da História ou O ofício do Historiador. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BORGES, Maria Eliza Linhares. História & Fotografia. 2ª edição. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.
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CÂMARA BRASILEIRA DO LIVRO. Regulamento do Prêmio Jabuti, 2016. Disponível em: <http://premiojabuti.com.
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CARDOSO, Cancionila Janzkovski; AMÂNCIO, Lázara Nanci de Barros. Políticas educacionais e práticas pedagógicas
em alfabetização: um estudo a partir da circulação de cartilhas em Mato Grosso – 1910-2000. In: LEAHY-DIOS, Cyana
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CARDOSO, Ciro Flamarion S. Iconografia e história. Artigos & Ensaios, Campinas, n.1, p.9-17, 1990.
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DORDAL, Ramon Roca. Methodos de leitura – Cartilha Moderna. Revista de Ensino – Orgam da Associação Beneficente
do Professorado Publico de São Paulo, São Paulo, Anno I, n.4, p.214-215, 1902.
FARIA FILHO, Luciano Mendes. Instrução Elementar no século XIX. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO,
Luciano Mendes (Orgs.). 500 anos de Educação no Brasil. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
1
Este artigo é decorrente da pesquisa denominada “Educação, pobreza, política e marginalização: formação da for-
ça de trabalho na nova capital de Minas Gerais (1909-1927)”, aprovada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico (CNPq), e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) e tam-
bém de um estágio Pós-doutoral, efetivado na Universidad Nacional de Colombia – sede em Medellín e na Universidad
Autónoma del Estado de Morelos (UAEM) – sede em Cuernavaca.
• 123
cuyo curso puede ser inteligiblemente interpretado por medio de la “comprensión” […] Como se ha dicho
con frecuencia, “uno no necesita ser César para entender César”. De otro modo, toda la historiografía sería
un sinsentido. […] La sociología, como la historia, comienza interpretando “pragmáticamente”, es decir, a
partir de los contextos racionalmente comprensibles de la acción.2
Nesta mesma obra póstuma, “Economía y Sociedad”, Weber já indica e assume o politeísmo de
valores e a “visão de mundo” por parte de quem pesquisa. Para esta opção metodológica, dada pelo autor,
o processo e a dinâmica de conhecimento científico, também, calcaram trajetórias e rupturas. Entre
Campanella e Weber, em relação ao que se denominou conhecimento científico, encontram-se marcos,
principalmente, no que se refere às ciências naturais, assim, entre o século XVIII e meados do século XIX,
o conhecimento, vinculado à verdade e à certeza, desconhecia a concepção de objetividade científica.
A verdade estava relacionada à natureza e as pessoas elaboravam “tipos” para melhor reproduzi-la, em
muitos casos artista e cientista unindo-se para uma reprodução mais elaborada. Com o surgimento
da fotografia, reelaborou-se a concepção de reprodução, iniciou-se a objetividade mecânica (Daston;
Galison, 2012). A partir de Kant e a correspondente proposição de subversão entre subjetividade e
objetividade, tem-se a tessitura do que seria praticado, em termos metodológicos, até a virada do século
XX. Descartes utilizava o conceito “objetivo” relacionado “[...] com uma representação do espírito”3.
Para Kant “[...] o universal e o necessário” é o objetivo; e o subjetivo seria “a simples sensação”4. A torção
dada pelo filósofo Kant tem como corolário a separação entre sujeito e objeto, e a elaboração da persona
científica e o que Foucault denominou “técnicas de si”5. A elaboração do tipo de persona científica e a
necessidade peremptória de um conhecimento universal, sem lugar determinado de enunciação, foram
reforçadas em congressos e encontros internacionais: “Le soi scientifique devait être doté d´une vigilance
et d´une conscience à toute épreuve, nécessitant non seulement une formation extérieure, mais aussi une
autodiscipline des plus rigorouses” (Daston; Galison, 2012, p.146).6
No início do século XX, entretanto, o modus operandi da prática científica foi abalado com a
teoria da relatividade e a nova física abriu uma maior fissura entre as pessoas que praticavam ciência.
No mundo subatômico, as leis da física moderna para o mundo macro não funcionavam e a pessoa
que analisava este mundo intervinha no observado (Silva; Nopes; Bao, 2015). Com o mundo da física
2
A conduta humana (externa ou interna) dá mostras tanto de contextos relacionais como de regularidades em seu
desenvolvimento, do mesmo modo que aparece em todo acontecer. Entretanto, específicas ao comportamento humano
(quando menos em seu sentido mais pleno) são as conexões e regularidades cujo curso podem ser inteligentemente
interpretados por meio da “compreensão” [...] Como se diz com frequência,” não se necessita ser César para entender
César”. De outro modo, toda a historiografia seria sem sentido. [...] A sociologia, como a história, começa interpretando
“pragmaticamente”, isto é, a partir dos contextos racionalmente compreensíveis da ação. Tradução livre. Grifos nossos.
3
DASTON; GALISON, 2012, p.241.
4
Ibid., p.242.
5
Ibid., p.232.
6
O fazer científico deve ser dotado de uma vigilância e de uma consciência a toda prova, necessitando não somente uma
formação exterior, mas também uma auto disciplina das mais rigorosas. Tradução livre.
Uma das justificativas para se debruçar sobre o pensamento educacional de Condorcet está em ser ele o autor
base dos dois primeiros projetos de instrução pública do Brasil independente. O primeiro é a Memória de
Martim Francisco Ribeiro d’Andradas Machado, apresentada à Comissão de Instrução Pública durante os
A imprensa foi importada da China, no século XV, pela Europa, onde, anteriormente, as notícias eram
manuscritas. Com a imprensa, o material utilizado no processo de impressão refinou-se, entretanto a leitura
de notícias via o giornale/journal ficava restrita aos letrados e àqueles com possibilidades aquisitivas. O termo
gazeta, também designativo para jornal, é proveniente de gazette, nome de uma moeda de baixo valor com a qual
as pessoas sem a quantidade necessária para comprar o jornal impresso alugavam-no para tomar conhecimento
das notícias. Não obstante, neste primeiro momento da imprensa na Europa, o livro mais impresso foi a Bíblia.
Segundo Ortiz (1991, p.107-108), no século XIX e no início do século XX, a tiragem de jornais na
Europa chegou a um milhão de exemplares. Na capital francesa, prosperou o jornalismo de massa, cujo teor
textual levou as elites “letradas” a reconhecerem nele um sentido de degradação. No Brasil, a tiragem de
um milhão meio de exemplares somente foi alcançada em 1997 pelo Jornal Folha de São Paulo, conforme
o periódico online BRASIL247.
Segundo Ribeiro; Silva e Silva (2014, p.228):
No Brasil, a prensa tipográfica chegou em 1808, com a família real portuguesa fugindo das tropas napoleônicas.
Outros territórios americanos como a cidade do México já imprimiam tipograficamente desde 1533. A imprensa
chegou para cumprir fins do Estado, a exemplo da publicação de um jornal oficial, feito na Tipografia Real: a
Gazeta do Rio de Janeiro, que começou a ser impresso em 10 de setembro de 1808.
Vale destacar que a imprensa esteve interditada, formalmente, no atual território brasileiro, até
aquela data. O jornal impresso como fonte, seja o popularizado e barateado com a publicidade, seja o oficial,
como, no caso do Brasil, os diários oficiais de âmbito federal, estadual e municipal, são fontes recentes para
a História da Educação e consequentemente para a Historiografia.
Saviani (2006, p.28, 29) apresenta o que seria fonte, com duas acepções:
Fonte é uma palavra que apresenta, via de regra, duas conotações. Por um lado, significa o ponto de origem, o
outro lugar de onde brota algo que se projeta e se desenvolve indefinidamente e inesgotavelmente. Por outro
lado, indica a base, o ponto de apoio, o repositório dos elementos que definem os fenômenos cujas características
se busca compreender. Além disso, a palavra fonte também pode se referir a algo que brota espontaneamente,
“naturalmente” e algo que é construído artificialmente. Como ponto de origem, fonte é sinônimo de nascente
que corresponde também a um manancial o qual, entretanto, no plural, já se liga a um repositório abundante
de elementos que atendem a determinada necessidade.
Apesar de os programas de pós-graduação terem iniciado no final da década de 1960, foi a partir dos anos da
década de 1990 que a produção, materializada em dissertações e teses efetivamente concluídas e defendidas,
sofreu significativo incremento. Alguns dados possibilitam entender, um pouco melhor, a construção dessa
produção junto aos programas de pós-graduação. Entre 1971 e 1996, a produção dos alunos dos programas
de pós-graduação em Educação constituiu um total de 8.416 trabalhos, sendo 7.609 (90,41%) dissertações de
mestrado e 807 (9,59%) teses de doutoramento.
Portanto, a maior parte das pesquisas efetuadas em História da Educação no Brasil já foi e é feita com
os referenciais flexibilizados nos termos de fontes.
Em 1996, o Estado brasileiro aprovou a sua terceira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDB). A partir de então, Decretos ou Leis (de âmbito federal) ou mesmo a Lei de n. 12.796 de 4 de abril
de 2013, que modificou a própria LDB, poderiam fazer clamar, assim como Hamlet, uma pessoa docente
em sala de aula, alfabetizando crianças na virada do século XX, no Brasil: “O mundo está desarticulado.
Maldito destino. Sob o qual nasci para consertar” (Shakespeare, 2007, p.48). Como exemplos, destacam-se
a Lei n. 12.796 de 4 de abril de 2013; a Lei n. 11.340 de 7 de agosto de 2006; e o Decreto n. 5.051 de 19 de
abril de 2004.
A Lei de n. 12.796 de 4 de abril de 2013, em seu artigo IV, item III, aponta que: “[...] atendimento
educacional especializado gratuito aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento
e altas habilidades ou superdotação, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades, preferencialmente
na rede regular de ensino”. Esses apontamentos, inseridos na lei maior sobre educação, subvertem o
estabelecido no espaço da escola pública do Brasil, no tocante ao processo de formação de docentes e,
consequentemente, à dinâmica da alfabetização, uma vez que estes são indicativos de um deslocamento
marcante no que se refere aos referenciais teóricos e de visão de mundo em relação aos seres sociais que
devem ser alfabetizados na rede de ensino.
A concepção de cérebro foi deslocada e a palavra-chave na sala de uma alfabetizadora deixa de ser
uma cidadania homogeneizante e passa a ser uma cidadania para a diversidade. Conforme, Armstrong
(2016, p.20):
Se ha dicho que quién acunó verdaderamente este término [diversidade neurológica] fue Judy Singer, […]
que en el año 1999 escribió un libro […] Singer escribió: “En mi opinión, el significado clave de ‘espectro
autista’ subyace en su propio nombre y en que se anticipa a una política de la diversidad neurológica, o lo
O autor ainda acrescenta: “Mi propia definición de la palabra incluye un análisis de lo que durante
mucho tiempo se han considerado trastornos mentales de origen neurológico, pero que pueden representar
formas alternativas de las diferencias humanas naturales”8 (Armstrong, 2016, p.21).
Em seus estudos, esse pesquisador vai além e sua concepção de cérebro humano subverte a
construção do cérebro humano como uma máquina “Saber que todos estamos conectados a los demás
como ecosistemas significa que hemos de mostrar una mayor tolerancia hacia aquellos cuyos sistemas
neurológicos están organizados de una forma diferente a la nuestra.9” O autor concebe o cérebro como
um ecossistema, sendo que “La competencia del ser humano se define a partir de los valores de la cultura
a la que pertenece”10 (Armstrong, 2016, p.25). Vale observar que Carniel (2013) corrobora a posição de
Armstrong (2016), a partir de sua pesquisa sobre a invenção pedagógica da surdez.
Ora, esta perspectiva se esvanece, reduzindo-se nos termos conceituais o que se tinha como
estabelecido, isto é, o ser humano como “normal”, inclusive a conceituação de cultura letrada é atingida
em seu cerne nesta nova dimensão. O que na virada do século XX era uma preocupação – a esfera da
educação relacionada com a cultura letrada –, por exemplo, a do estado de Minas Gerais, pois, segundo
Ribeiro e Silva (2003, p.17), “Os republicanos em Minas Gerais sob o novo federalismo consideravam
a educação uma prioridade para o revigoramento de Minas” e tinham, os republicanos, um sentido
mentado distinto daquele a que a Lei de n. 12.796 de 4 de abril de 2013 se referia.
Em relação a esta perspectiva diferente, questiona-se: Como a alfabetizadora, em sala de aula, a
recebe? A nova geração que está sendo formada como docente nos cursos de Pedagogia nas Universidades
já recebe como “naturalizada” esta nova concepção de cérebro? Como seu “olhar” se distingue das antigas
gerações de docentes em relação à neurodiversidade? Como os cursos de Pedagogia estão trabalhando as
discussões que ocorrem no âmbito interno da “Comunidade de surdos” sobre o implante coclear?
A Lei de n. 11.340 de 7 de agosto de 2006, conhecida nos periódicos como a Lei Maria da Penha,
7
Diz-se que quem cunhou verdadeiramente este termo [diversidade neurológica] foi Judy Singer […] que no ano de 1999
escreveu um livro […] Singer escreveu «em minha opinião, o significado chave do ‘espectro autista’ subentende em seu
próprio nome e em que se antecipa a uma política da diversidade neurológica, ou o que prefiro chamar neurodiversidade.
Os neurologicamente diferentes representam uma nova incorporação para as categorias políticas conhecidas de classe/
gênero/raça e aumentará a perspectiva do modelo social de descapacidade”. (Tradução livre, grifos do autor).
8
Minha própria definição da palavra inclui uma análise do que durante muito tempo se considerou transtornos mentais
de origem neurológica, porém que podem representar formas alternativas das diferenças humanas naturais. (Tradução
livre.)
9
Saber que todos estamos conectados com os demais como ecossistemas significa que temos de mostrar uma maior
tolerância para aqueles cujos sistemas neurológicos estão organizados de uma forma diferente da nossa. (Tradução
livre).
10
A competência do ser humano define-se a partir dos valores da cultura a que pertence (Tradução livre).
1. Os programas e os serviços de educação destinados aos povos interessados deverão ser desenvolvidos
e aplicados em cooperação com eles a fim de responder às suas necessidades particulares, e deverão
abranger a sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas suas demais
aspirações sociais, econômicas e culturais. 2. A autoridade competente deverá assegurar a formação de
membros destes povos e a sua participação na formulação e execução de programas de educação, com
vistas a transferir progressivamente para esses povos a responsabilidade de realização desses programas,
quando for adequado. 3. Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem
suas próprias instituições e meios de educação, desde que tais instituições satisfaçam as normas mínimas
Segundo Novaro (2011, p.11), “La mayor parte de lo que sabemos acerca de la experiencia
escolar de los ninõs de familias indígenas en América Latina, proviene de estudios realizados en grupos
mexicanos, centroamericanos y brasileños11”. Entretanto, antes de 1989, a autora Galeano Lozano (2015),
em sua pesquisa, já abordava sobre a constituição de escola, em 1977, para crianças na região de Cauca, na
Colômbia, por parte de Povos Indígenas da área e seus embates com o sistema educacional estatal e com
docentes encarregados da escola. Novaro (2011, p.11,13) aponta os entraves e a discriminação de uma
socialização secundária para estes discentes específicos, quando a diretiva do Estado argentino moderno
encaminhava-se para o nacionalismo associado à identidade nacional, deixando patente que as “[...] políticas
educativas argentinas [...]” foram, historicamente, orientadas para a consecução de “[...] una nación cultural
y lingüísticamente homogénea.”
Com o Decreto de n. 7.387 de 9 de dezembro de 2010, que institui o Inventário Nacional de Diversidade
Linguística, problematiza-se, de forma complexa, a questão da identidade nacional para o Brasil e uma língua
nacional, uma das características do Estado-Nação e por consequência uma identidade para a escola pública.
Em suma, o Decreto n. 5.051 de 19 de abril de 2004 põe em cheque os Estados que aceitaram as
diretrizes de 1989, da Convenção dos Povos Indígenas e Tribais, pois, até então, considerava-se o que
Montemayor (2008) denominou o Estado “etnocrático”. A categoria Povos para os Indígenas desmorona
o que se constituiu como, no caso do Brasil, de povo brasileiro, tornando invisíveis outras denominações
de povos no território do país. A categoria indígena e não índio redimensiona o passado e o que fora
transmitido, em aulas de História, para as alfabetizadoras, uma vez que o conceito de indígena traz à tona
um passado de sofrimento, genocídio, escravização, negação do outro como ser social com seus saberes,
seus sagrados e visão de mundo distinta daquela subjacente ao único conhecimento reconhecido pela
Modernidade. (Silva; Nopes; Bao, 2015).
A partir dos estudos de José Martínez Cobo (s.d.), Bengoa (2016, p. 13) trabalha com o conceito de
indígena como povos originários da América Latina, isto é,
Las poblaciones indígenas están constituidas por los descendientes actuales de los pueblos que habitaban el
presente territorio de un país total o parcialmente, en el momento que llegaron a él personas de otra cultura
u origen étnico provenientes de otras partes del mundo y que los dominaran y los redujeron, por medio de la
conquista, asentamiento u otros medios a condición no dominante o colonial; que viven hoy más en conformidad
con sus particulares costumbres y tradiciones sociales, económicas y culturales […].12
11
A maior parte do que sabemos sobre a experiência escolar das crianças de famílias indígenas na América Latina
provém de estudos realizados em grupos mexicanos, centro-americanos e brasileiros. (Tradução livre)
12
As populações indígenas estão constituídas pelos descendentes atuais dos povos que habitavam o presente território
de um país total ou parcialmente, no momento que chegaram pessoas de outra cultura ou origem étnica provenientes de
outras partes do mundo e que os dominaram e os reduziram, por meio da conquista, assentamento ou outros meios, a
Imagem 1 – Desfile Cívico realizado pelos alunos do Grupo Escolar César Bastos - 1959
El colonialismo, la colonialidad y la explotación, son tres fenómenos asociados al antihaitianismo que sectores
de la población dominicana despliegan hoy abiertamente como expresión de un nacionalismo fanatizado y mal
entendido. Para algunos, constituye una postura y práctica a la que llegan por convencimiento, como vía para
reafirmar el status quo, mientras que para la gran mayoría se trata de un guion aprendido que repiten por inercia
tras años sometidos a la propaganda y los discursos de las distintas instituciones de poder: las élites, el sistema
educativo, los medios de comunicación, sectores de la iglesia católica y las entidades del Estado, entre otras13.
condição não dominante ou colonial; que vivem hoje mais em conformidade com seus particulares costumes e tradições
sociais, econômicas e culturais (Tradução livre).
13
O colonialismo, a ‘colonialidad’ e a exploração, são três fenômenos associados ao antihaitianismo que setores da
população dominicana disseminam hoje abertamente como expressão de um nacionalismo fanatizado e mal entendido.
Para alguns, constitui uma postura e prática a que chegam por convencimento, como via para rearfirmar o status quo,
enquanto que para a grande maioria se trata de um refrão aprendido que repetem por inércia após anos submetidos à
propaganda e aos discursos das distintas instituições de poder: as elites, o sistema educativo, os meios de comunicação,
setores da igreja católica e as entidades do Estado, entre outras (Tradução livre, grifo do autor).
Uso a palavra “imaginário” no sentido de Edouard Glissant [...] ‘o imaginário não se confunde com o sentido
lacaniano [...] que opõe o Imaginário ao Simbólico e ao Real’. [...] o imaginário inclui todas as formas pelas quais
uma cultura percebe e concebe o mundo. Consequentemente, cada cultura humana terá seu próprio imaginário
[...] ‘o imaginário’ é a construção simbólica mediante a qual uma comunidade (racial, nacional, imperial, sexual,
etc.) se define a si mesma.
Neste caso, sobre a questão da laicidade e do “regime de laicidade” (Arredondo; Villarreal, 2013,
p.49-56), específico do Brasil, poderia ser feita a seguinte pergunta: Como neste imaginário, no caso dos
Povos Indígenas do Brasil, reafirmando seus respectivos referenciais de sagrado, ficaria a problematização
deste eixo para a História da Educação e a Historiografia? Uma outra trajetória, provavelmente, deveria ser
pautada.
Explicita-se, também, que estas Leis e Decretos foram produtos de resistências, transgressões e
organizações que, após anos e anos de mortes e prisões, conseguiram alcançar o Estado e flexibilizar os seus
limites, conforme já havia assinalado Weber (2014, p.7) com sua sensibilidade sociológica:
Los intereses materiales e ideales, y no las ideas, dominan directamente la acción de los hombres. Pero muy a
menudo las “imágenes del mundo” (Weltbilder), creadas por las “ideas”, han determinado como guardagujas
(Weichensteller) los rieles sobre los que la acción viene impulsada por la dinámica de los intereses.14
Considerações finais
14
Os interesses materiais e ideais, e não as ideias, dominam diretamente a ação dos homens. Porém, com frequência
as ‘imagens do mundo’, criadas pelas ‘ideias’, determinaram como manobreiro os trilhos sobre os que a ação vem
impulsionada pela dinâmica dos interesses (Tradução livre, grifos do autor).
Referências
ARREDONDO, Adelina.; VILLARREAL, Roberto González. La educación laica en las reformas constitucionales, 1917-
1993. Inventio. La génesis de la cultura universitaria en Morelos. Año 8, Núm. 16, 16 de septiembre – marzo 2013. Cuer-
navaca/Morelos/México: Universidad Autónoma del Estado de Morelos, 2013, p.49-56.
ARMSTRONG, Thomas. El poder de la neurodiversidad. Las extraordinarias capacidades que se ocultan tras el autismo,
la hiperactividad, la dislexia y otras diferencias cerebrales. Colombia: Paidós, 2016.
BENGO, José. La emergência indígena em América Latina. 3. ed. Chile: FCE, 2016.
Mas o gesto que liga as ideias aos lugares é, precisamente, um gesto de historiador [...].
Michel de Certeau (2010)
• 137
história cultural. Tais pesquisas apresentam um caminho teórico e metodológico possível para a compreensão
da complexidade que envolve o ato de ensinar e aprender, em diferentes tempos e lugares.
Outras pesquisas direcionam-se para os modos de produção, para a autoria e análise de livros de leitura,
coleções ou séries de livros de leitura graduada, em sua materialidade, como Panizzolo (2006), Razzini (2006,
2010), Batista e Galvão (2009), Goulart (2012, 2013), Toledo (2001), Abreu (2009), Valdez (2003, 2004), Gazoli
(2010), Cunha (2011), Oriani (2010), Oliveira (2011), Messemberg (2012), entre outros trabalhos.1
Dentre as pesquisas citadas, por contribuír para a compreensão e configuração do cenário de fontes
na historicidade a respeito da literatura didática brasileira, o trabalho de Valdez (2003, 2004) dialoga com a
reflexão proposta neste trabalho, ao questionar o papel da literatura didática, especificamente dos livros de
leitura, na historiografia brasileira.
De acordo com Valdez (2003, 2004), o livro de leitura é fonte privilegiada e complexa para a
historiografia, haja vista que se trata de um objeto que pode provocar inúmeras leituras. Seja pelas escolhas
que determinam a configuração gráfica da obra, seja pela intencionalidade da produção e circulação, ele traz
representações das concepções de educação, dos pressupostos teóricos e metodológicos, sinaliza marcas de
influências externas, como movimentos editoriais de simplificações, adaptações, reduções e também lacunas
dispostas na materialidade do impresso, tornando-se, afinal, “[...] fonte, legitimada como guardiã, constitui-se
em um lugar de memória privilegiado, pois através de seus textos e imagens consolida conceitos no imaginário
social, construindo uma representação globalizadora e ordenada da sociedade” (Valdez, 2004, p.7).
Para os historiadores que pretendem, segundo Certeau (2010, p.66), encarar a história tomando como
inspiração a operação historiográfica, existe a certeza de que descrevê-la e analisá-la trata-se, por vezes,
de uma ação limitada, por envolver um “lugar”, um “procedimento” e um “texto”; dito de outro modo, a
historiografia articula-se a um lugar de produção, seja ele político, econômico, social ou cultural, lugar que se
configura na própria materialidade dos livros de leitura, decorre de um procedimento metodológico, de ações
sistemáticas de busca, investigação, levantamento, catalogação, entre outras possibilidades,concretizando-se
em uma “textualidade”, que é organizada e apresentada por escrito.
Desta forma, ao considerarmos que os materiais de leitura permitem uma operação historiográfica
e que estes artefatos podem trazer marcas de um determinado tempo e espaço, este texto apresenta como
objetivo identificar e sinalizar as possibilidades de ações investigativas a partir da análise de livros de leitura
como fontes historiográficas.
Ao procurar identificar de que modo os livros de leitura podem contribuir para a pesquisa
historiográfica na alfabetização, o trabalho destaca duas dimensões argumentativas. Uma dimensão
se mostra viabilizada pela representação disposta na materialidade impressa dos livros, conforme
descreve Chartier (1994, 2002, 2003, 2009), e outra entende que essa materialidade pode ser indicadora
1
Em Oriani (2010), é possível encontrar um levantamento das publicações que contribuem para a formação da história
do livro didático no Brasil, mais precisamente em relação à alfabetização. Cf. ORIANI, Angélica Pall. Série «Leituras
Infantis» (1908-1919), de Francisco Vianna, e a história do ensino da leitura no Brasil. 2012, 288f. Dissertação (Mestrado
em Educação). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”,
Marília, 2012.
Os livros de leitura recreativa, ou de literatura, devem ser agradáveis e interessantes, moraes sem preocupação
ostensiva de pregar a moral, de fórma literária o mais perfeita e mais bella possivel, de acordo com o grau de
mentalidade das crianças a que se destinem. As figuras, de preferencia coloridas, devem ser cheias de vida,
reaes, bem desenhadas; são indispensáveis nos livros destinados aos primeiros anos e serão mesmo quase
exclusivamente de figuras os que sirvam para alumnos que ainda não saibam ler. O assumpto deve ser: contos
Nota-se que até a qualidade textual é pontuada pelo Programa de Linguagem, ao estabelecer que a
obra didática deve ter o conteúdo exposto com clareza, contendo uma metodologia agradável e interessante,
devendo ainda ser escrito com linguagem simples e correta. A composição física do livro deve ser de
ótima “feitura material”, não desmerecendo as dificuldades que isso acarretaria em termos econômicos;
deve contentar-se em apresentar uma “[...] boa impressão typografica, isto é, sem erros e nítida, papel não
transparente, linhas não muito juntas, typo graúdo para as classes inferiores e gradativamente menor, até o
normal, sem chegar nunca a ser miúdo”.3
Uma denominação oficializada para livro didático ocorre quando o Ministério da Educação e
Saúde, sob a responsabilidade de Gustavo Capanema no período entre 1934 a 1945, destaca-se pela
implementação das reformas educacionais, elaboração de currículos e normas de controle, tanto
ideológicas quanto pedagógicas, demarcadas pela instituição de regulamentos e decreto-lei. Com isso, a
preocupação com a produção de obras didáticas contribui para a regulamentação do Decreto-lei 1.006, de
1938. Neste decreto, o Capítulo I apresenta uma classificação mais delineada para os “livros didáticos”. No
Art. 2, parágrafo 1.º, descreve que os “compêndios” se referem aos livros que expõem, de forma integral
ou parcial, os conteúdos das disciplinas de acordo com os programas escolares; no parágrafo 2.º delimita
que os “livros de leitura” são aqueles que correspondem aos livros frequentemente utilizados para a
realização de leituras em classe.4
Outra obra publicada próximo a este período refere-se à “Escola Moderna – conceitos e práticas”,
da autora Maria dos Reis Campos, 3.ª edição de 1946, que, ao escrever sobre os modos de uso dos livros,
também recorre à iniciativa de classificar as obras escolares em dois grandes grupos: um dos “Didáticos”, que
se refere aos livros de texto (científicos), ou de estudo de maneira geral, e outro de “Literatura”.
Para esta autora, os livros denominados “Didáticos”, de forma semelhante à classificação do Programa
de Linguagem, são aquelas obras consideradas como meio auxiliar para a concretização do ensino, são
materiais a que o professor recorre, todas as vezes em que se percebe impossibilitado de oportunizar uma
observação direta da realidade. A autora defende a ideia de que vários materiais podem ser considerados
didáticos por proporcionarem e auxiliarem a observação direta de uma informação, como os mapas, visto
2
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO. Programa de Linguagem. Directoria Geral de Instrucção Pública. Rio de Janeiro.
Série C. Programas. N.º 1, 1934.
3
Idem.
4
BRASIL. Decreto-lei n.º 1.006, de 30 de dezembro de 1938, Capítulo I, artigo 1.º e 2.º.
Tomando como apoio a proposição de Darnton (1990, p.130) de que a “palavra impressa” influencia
ou altera a maneira de se compreender a própria condição humana, neste tópico a reflexão sedimenta-
se sob duas premissas, que se encontram e se articulam de modo interdependente. A premissa inicial
considera a ideia do livro de leitura como um “dispositivo temporal”. Segundo nos aponta Larrosa (2009),
o livro pode ser compreendido como uma espécie de espaço singular, um “dispositivo temporal”; nele se
fundem e se confundem diferentes tempos, bem como se promove uma mobilidade temporal: sai-se de
um tempo e ingressa-se em outro. Ao olhar para o livro como um espaço carregado de temporalidade,
deve-se, de acordo com o autor, cuidar para não se ter a pretensão de querer transformar esse tempo em
História; ele ainda esclarece que:
Los libros son máquinas del tiempo que no pueden tratarse desde ese perspectiva que consiste en convertir
tiempo en Historia, desde esa perspectiva historizadora o historizante que los hombres inventaran con la
pretensión de dominar y domesticar el tiempo, con la pretensión de impornele una dirección, un argumento,
una lógica, una trama, un sentido (Larrosa, 2009, p.6).
E, ao falar da relação entre o livro e o tempo, o autor explicita que os espaços geográficos estão contidos
no tempo, sendo denominados de “dispositivos temporais”; por aparecem habitados por homens, podem
ser definidos como espaços humanizados; se o tempo em que estão habitados encontra-se encarnado por
homens, e se o livro se define, de certa forma, como uma espécie de espaço, logo ele pode ser considerado
um “dispositivo temporal”.
O argumento do livro como espaço concreto de uma temporalidade pode ser compreendido por
estar nele contido, depositado e retido um “tempo histórico” sobre o qual se construíram relações sociais
e ideários humanos. Essas características propiciam e orientam o desenvolvimento da pesquisa, tendo em
vista que o livro permite o acesso a um determinado tempo e lugar históricos.
A segunda premissa considera o livro de leitura como objeto concreto de uma “cultura material escolar”.
Uma concepção que se consolida ao tomar como referência de estudo o livro didático, especificamente o de
leitura, como um “dispositivo temporal”, visto que a pesquisa se colocará diante de uma dada localidade de
uso e aplicabilidade deste material, que foi e ainda permanece sob a tutela da instituição escolar.
A escola como instituição educativa constitui-se tanto de uma estrutura física, concreta e edificada,
quanto de uma estrutura humana, que é formada e construída a partir de ações, relações e de interações entre
pessoas e entre a pessoa e o conhecimento; Viñao Frago (1995, p.68), ao falar sobre cultura, organização e
escola, ressalta que esta última, por ser uma instituição, não está constituída por apenas uma “cultura escolar”,
mas por “culturas escolares”, as quais são definidas por ele como o “conjunto de aspectos institucionalizados”,
aspectos estes formados por vários elementos e por diferentes níveis:
A cultura escolar é composta não apenas de práticas, ações, condutas, ideias, modos de fazer e de
pensar, como também de uma materialidade física de corpos e de objetos. Na formação de uma cultura
escolar não há uma predileção ou uma hierarquia de valoração entre esses aspectos; todos esses elementos
juntos, organizados e em interação é que a constituem e a definem.
Viñao Frago (1995, p.69) elege três dimensões ou aspectos da cultura escolar, vistos como merecedores
da atenção, do aprofundamento de estudos e de análises; são eles: “[...] el espacio, el tiempo y el lenguaje
o modos de comunicación”. O espaço físico é compreendido como aquele local apropriado, o território
disposto e habitado, considerado uma construção social, que por se constituir de relações humanas não
é neutro, mas é um símbolo das condições e das relações de quem o habita. O espaço, segundo o autor,
comunica, e, por isso, participa do processo de educação. Institui uma linguagem através da materialidade
que se põe à leitura, a partir dos usos e das formas distintas de se ocupar e empregar tal ambiente; das relações
interpessoais, ritos e representações sociais que ali são gerados ou que se estabelecem como proximidade/
distância, comunicação/emudecimento, contato/conflito; das disposições dos corpos e dos objetos e da
organização e hierarquização.
Outra dimensão explorada pelo autor é a do tempo escolar, que, assim como o espaço, é visto
como social e humano, múltiplo e plural, características que lhe conferem a denominação de construção
social. Esta ação implícita de construir deve-se à relação de temporalidade entre o antes, o depois e o agora
(presente/passado/futuro), de “[...] una determinada temporalización de la experiencia em relación com um
presente también concreto” (Viñao Frago, 1995, p.72).
Para o autor, o tempo é compreendido como uma relação e não como um fluxo de horas/dias/
meses, sendo definido como um “ato de representação”, por ser uma capacidade de síntese e de relações que,
juntamente com a memória, cria e conecta o espaço de experiências e expectativas. São essas experiências
que atribuem à consciência temporal um caráter plural e diverso, configurando-se por uma perspectiva
social e por uma percepção individual, as quais trazem as marcas da influência da linguagem, das maneiras
de medir esse tempo e de percebê-lo, como também uma memória cultural de uma determinada sociedade.
Uma pesquisa que se integra a uma proposta de estudo a respeito da cultura escolar encontrar-se-á
diante de uma esfera ampla de análise, por trabalhar com imagens e representações de uma determinada
realidade e tudo o que ela envolve. Assim,
cuando el historiador recupera una imagen real de la tradición escolar, también busca una identificación
de los lugares en que aquella se construyó. En torno a aquel acotado territorio-institución se articulan
Escolano Benito (2000) concebe que a reconstrução da realidade e da imagem do espaço escolar pode
ser feita através de dois registros etnográficos, que ele denomina de “lugar o escenario” e de “representación
o textualidad”. O autor trabalha com a ideia de um lugar projetado para o ensino e a aprendizagem, que
aparece dotado de representação e de significado; assim, analisa e descreve o espaço escolar constituído de
uma arquitetura e textualidade:
La arquitectura escolar, además de diseñar espacios educativos desde presupuestos funcionales, ordenados a
servir de soporte al conjunto de acciones que constituyen la mise en scène del proceso de enseñanza-aprendizaje,
constituye en sí misma una escritura, esto es, un texto dotado de significaciones. En cuanto forma de escritura,
la arquitectura puede ser examinada, a este respecto, como una textualidad conformada a ciertas reglas
constructivas que comportan sentido en sus propias estructuras, o como un orden que transmite, a través de sus
trazados y símbolos, una determinada semántica, es decir, una cultura (Escolano Benito, 2000, p.5).
Nesta mesma perspectiva, Vidal (2009) colabora com esta discussão ao defender que a cultura escolar
se tornou uma importante ferramenta para compreender a relação entre a escola e a cultura, o que permite
destacá-la como produtora de uma cultura específica e como um espaço de convivência de outras culturas,
sejam elas infantil, juvenil, familiar, religiosa, entre outras; este ponto de vista também é partilhado por
outros autores, além de Vidal. Perscrutar a cultura escolar visa a uma aproximação das relações interpessoais
ali construídas; são estudos que, através da “[...] percepção de tensões e conflitos no ambiente escolar e nas
formas como a escola exterioriza na sociedade vêm matizando a visão homogeneizadora da instituição
escolar como produção social” (Vidal, 2009, p.26).
A partir dessa argumentação, a autora destaca, de acordo com sua percepção, três questões das
investigações acadêmicas sobre o trabalho do professor no interior da sala de aula: uma que reflete sobre a
conservação e a inovação na educação; outra que trata sobre a atenção à cultura material como elemento
constitutivo das práticas escolares e, por fim, a terceira, que diz respeito à valorização dos sujeitos como
agentes sociais.
Em relação à conservação e à inovação de práticas na educação, utilizando imagens do interior
da sala de aula, Vidal (2009) destaca várias mudanças na estrutura física, material e comportamental,
Tendo em vista que o livro de leitura pode ser considerado um objeto concreto de uma cultura
material escolar por encontrar-se ali um espaço, uma temporalidade e uma linguagem específica, a pesquisa
volta-se para o modo de estruturação da materialidade das obras, especificamente da configuração das
capas, procurando entender o que se diz, como se diz, sobre e para quem se diz.
Em relação à configuração da parte física do livro escolar, o trabalho de Oliveira (1986, p.79)
baseia-se em pesquisas americanas que apontam uma forma idealizada para a confecção dos livros;
assim, aconselhava-se que “[...] a capa seja durável, flexível, não quebradiça, tenha aspecto atraente, com
distribuição harmoniosa do título, nome do autor, editora, em cor agradável e firme. Se for ilustrada, revele
sempre gosto artístico”.
Os exemplares disponíveis para a realização da pesquisa são de autoria de Luís Gonzaga Fleury5 – da
63ª edição, de 1949, de Meninice Primeiro Grau, da 92ª edição, de 1948, de Meninice Segundo Grau, da 86ª
edição, de 1948, de Meninice Terceiro Grau, e da 34ª edição, de 1948, de Meninice Quarto Grau – e trazem
na capa dura que envolve os livros a mesma ilustração e os mesmos dispositivos gráficos, alterando-se o
colorido, como forma de diferenciá-los entre si. As figuras recebem um contorno de tonalidade avermelhada
e uma variação na cor de uma das peças do vestuário (bermuda) da figura de um dos meninos, a mesma cor
predominante na capa.6
Na capa, em consonância com o título MENINICE, a ilustração está composta por três crianças: dois
meninos e uma menina. As crianças estão bem vestidas (sapatos, meias, roupas apresentáveis) e usam calças
curtas, insinuando que estariam cursando as séries iniciais de escolarização. A menina traz um laço de fita
na cabeça, indicando cuidado, zelo, asseio, bom aspecto físico.7 O conjunto formado pelas ilustrações indica
uma ideia de infância, de um tempo de “meninice”, de inocência, de ingenuidade e de descontração.
A ilustração representa uma cena em que uma das crianças segura um livro aberto; aparentemente
todos os personagens estão satisfeitos e felizes, enquanto realizam a leitura das páginas do objeto-livro. O
olhar dos personagens se mostra fixo para o interior do livro, indicando uma expressão facial de absorção
5
Nascido em Sorocaba, SP, Luiz Gonzada de Camargo Fleury, dedicou-se à carreira do magistério. Além de professor,
diretor e inspetor, foi chefe do Ensino Primário Paulista de 1936 a 1938. Para maior aprofundamento da biografia,
conferir a pesquisa de Goulart (2013, 2015).
6
Os quatro livros que compõem a série Meninice trazem os mesmos recursos tipográficos e o mesmo tamanho (19,5 cm
x 13 cm), diferenciando-se apenas no colorido externo da capa e no uso de uma numeração ordinal, 1º/2º/3º/4º, visto
como um dispositivo tipográfico para se fazer uma relação direta ao nível escolar ao qual o livro estará direcionado: o 1º
livro apresenta na capa a cor azul, o 2º, laranja, o 3º, amarelo e o 4º, verde.
7
Cf. ROCHA, Heloísa Helena Pimenta. A higienização dos costumes: educação escolar e saúde no projeto do Instituto de
Hygiene de São Paulo (1918-1925). Campinas: Mercado de Letras, 2003.
Imagem 2 –Capa da Série graduada de leitura Meninice Quarto Grau (1936) e Terceiro Grau (1936)
A publicação da série graduada de leitura Meninice pela Companhia Editora Nacional alterou os
dispositivos gráficos de apresentação da obra. A primeira edição do terceiro livro da série Meninice, datada
em 1937,9 ressalta em sua materialidade aspectos totalmente distintos dos da edição de 1936, pela Livraria
Editora Record. O movimento de alteração dos elementos tipográficos se mostra uma estratégia editorial
de distinção e, deste modo, inaugura outra faceta representativa na publicação da obra, que parece estar
8
Em aproximação com o discurso presente no artigo de Charenton, publicado na secção “Educação profissional do mestre”,
intitulado De como desenvolver o gosto pela leitura, publicado na secção “Educação profissional do mestre”, em 1911.
9
Esta obra também foi identificada no acervo da Biblioteca do Livro Didático da Universidade de São Paulo, em pesquisa
realizada em janeiro de 2011, pela própria pesquisadora.
10
Como descreve o artigo de Silva (1915) sobre os modos de posicionamento e utilização do livro de leitura em sala de
aula: “A leitura será sempre feita de pé: a posição erecta, corpo firme, descansando igualmente nas duas pernas, cabeça
bem equilibrada, espaduas horizontaes, calcanhares unidos, ponta dos pés abertas. O livro será sustentado pela mão
esquerda, diante do peito, a uma altura conveniente, 25 centimetros dos olhos, o braço direito cahido naturalmente”. Cf.
SILVA, José Pedro Cardoso da. Assumptos pedagógicos. O livro escolar e alguns conselhos hygienicos. Caderno Geral.
Jornal O Estado de São Paulo. Edição de 22 de fevereiro, 1915, p.2.
a esta escrita que invade o espaço e capitaliza o tempo opõe-se a palavra que não vai longe e que não retém.
Sob o primeiro aspecto ela não deixa o lugar de sua produção. Dito de outra maneira, o significante não é
destacável do corpo individual ou coletivo. Não é, portanto, exportável. A palavra é, aqui, o corpo que significa.
O enunciado não se separa nem do ato social da enunciação nem de uma presença que se dá, se gasta ou se perde
na nominação (Certeau, 2010, p.217).
Em cada época de sua existência histórica, a obra é levada a estabelecer contatos estreitos com a ideologia
cambiante do cotidiano, a impregnar-se dela, a alimentar-se da seiva nova secretada. É apenas na medida em
que a obra é capaz de estabelecer um tal vínculo orgânico e ininterrupto com a ideologia do cotidiano de uma
determinada época, que ela é capaz de viver nesta época (é claro, nos limites de um grupo social determinado).
Rompido esse vínculo, ela cessa de existir, pois deixa de ser apreendida como ideologicamente significante
(Bakhtin, 2006, p.122).
Assim, cada imagem, palavra ou expressão posta nos livros de leitura representa uma pequena arena
em que se entrecruzam valores sociais e perspectivas ideológicas, políticas e culturais, tendo em vista que
“[...] a palavra revela-se, no momento de sua expressão, como o produto da interação viva das forças sociais”
(Bakhtin, 2006, p.66).
Conclusão
Referências
ABREU, Raquel. A série de leitura graduada Pedrinho (1953-1970) e a perspectiva de socialização de Lourenço Filho. 2009.
259f. Dissertação (Mestrado em Educação). Centro de Ciências da Educação, Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis, SC, 2009.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
______. Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2006.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes. Um Objeto Variável e Instável: Textos, Impressos e Livros Didáticos. In: ABREU,
Márcia (org.). Leitura, História e História da Leitura. Campinas: Mercado das Letras, 1999. p.529-575.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes. O conceito de “livros didáticos”. In: BATISTA, Antônio Augusto Gomes; GALVÃO,
Ana Maria de Oliveira. Livros escolares de leitura no Brasil: elementos para uma história.Campinas: Mercado de letras,
2009.
BATISTA, Antônio Augusto Gomes; GALVÃO, Ana Maria de Oliveira; KINKLE, Karina. Livros escolares de leitura:
uma morfologia (1866-1956). Revista Brasileira de Educação. n.20, p.27-47, maio/ago. 2002. Disponível em: <http://
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BRASIL. Decreto-lei n. 1.006, de 30 de dezembro de 1938.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Livro didático e conhecimento histórico: uma história do saber escolar. 1993,
369f. Tese (Doutorado em História Social). Faculdade de Filosofia, Letras, Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 1993.
CAMPOS, Maria dos Reis. Escola Moderna – conceitos e práticas, da autora, 3. Ed. de 1946.
P ara fazer história, é fundamental que o historiador se utilize de documentos, pois, sem eles, não
há pesquisa. Dessa forma, todas as pesquisas são documentais, o que as distingue é a ênfase dada a cada
documento. O documento é a memória e não a materialidade.
Saviani (2004, p.5-6) afirma que:
As fontes estão na origem, constituem o ponto de partida, a base, o ponto de apoio da construção historiográfica
que é a reconstrução, no plano do conhecimento, do objeto histórico estudado. Assim, as fontes históricas
não são a fonte da história, ou seja, não é delas que brota e flui a história. Elas, enquanto registros, enquanto
testemunhos dos atos históricos, são a fonte do nosso conhecimento histórico, isto é, é delas que brota, e nelas
que se apoia o conhecimento que produzimos a respeito da história.
Na visão de Le Goff (1990), a história é a forma científica da memória coletiva, à qual se aplicam dois
tipos de materiais, os documentos e os monumentos. O que sobrevive não se restringe apenas ao conjunto
do que existiu no passado, mas trata-se de uma escolha feita pelas forças que operam no desenvolvimento
temporal do mundo e da humanidade, ou pelos historiadores. Assim, os materiais de memória podem se
apresentar como “os monumentos, herança do passado, e os documentos, escolha do historiador” (Le Goff,
1990, p.535, grifos do autor).
De acordo com Le Goff (1990, p.535), o monumento “é tudo aquilo que pode evocar o passado,
perpetuar a recordação, por exemplo, os actos escritos” e tem como característica “o ligar-se ao poder de
perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado a memória colectiva) e
o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos” (Le Goff, 1990, p.536).
• 155
Já o termo documento evoluiu para o significado de prova, sendo bastante utilizado no vocabulário
legislativo. No final do século XIX e início do século XX, foi tido como fundamento do fato histórico,
pela escola histórica positivista, apresentando-se como prova, mesmo sendo resultante da escolha do
historiador. Sua objetividade opõe-se à sua intencionalidade e afirma-se, fundamentalmente, como
testemunho escrito. Na visão positivista, o documento passa a equivaler-se ao texto, o que se encaminha
para o domínio do documento sobre o monumento.
A escola positivista concede o triunfo ao documento, que passa a ser recurso indispensável a todo
historiador: mais especificamente, “não há história sem documentos”. Caso os fatos históricos não estejam
registrados em documentos, gravados ou escritos, se perderiam, portanto o documento era sobretudo um
texto. Contudo, já se percebia o limite desta definição nas palavras de Fustel de Coulanges, que especificam
que, na ausência do documento escrito, “deve a história demandar às línguas mortas os seus segredos...
Deve escrutar as fábulas, os mitos, os sonhos da imaginação... Onde o homem passou, onde deixou qualquer
marca da sua vida e da sua inteligência, aí está a história [ed. 1901, p.245]” (citado por Le Goff, 1990, p.539).
Era uma ilusão pensar que os documentos, desde que fossem autênticos, seriam suficientes para “remontar”
o passado. O modelo positivista de fazer história instituiu, ao historiador, o rigor e os trâmites para trabalhar
com os documentos e contribuiu para com os princípios e métodos de se fazer história, como, por exemplo, a
identificação da autenticidade dos documentos. Todavia, “o historiador não deve ser apenas capaz de discernir
o que é ‘falso’, avaliar a credibilidade do documento, mas também saber desmistificá-lo” (Le Goff, 1990, p.110).
Vale considerar também as palavras de Certeau (2003, p.82), ao afirmar que não basta apenas fazer
falar o documento, dando voz ao silêncio, o que “significa transformar alguma coisa, que tinha sua posição
e seu papel, em alguma outra coisa que funciona diferentemente”.
Com o surgimento da Escola dos Annales, a história que se encontrava pronta nos documentos
e que também privilegiava o campo político foi questionada. Surge, no início dos anos 1930, uma nova
configuração de história, que passa a priorizar o social em detrimento do político, como era, até então,
praticada. Afloram as discussões acerca das intenções por trás dos documentos, ou seja, inicia-se um
processo de interpretação e de compreensão da história no seu aspecto social.
Novos pressupostos de análise da história emergem com a Escola dos Annales e, consequentemente,
novos documentos/fontes são requisitados. Ocorre uma ampliação na área dos documentos, que a história
tradicional antes restringia aos textos e aos produtos da arqueologia. Deixa-se de considerar apenas os
grandes homens e heróis, abre-se espaço para os acontecimentos cotidianos, para as minorias sociais, que
passam a ser vistas como sujeitos do processo histórico.
Embora tenha ocorrido uma revolução documental, tanto quantitativa como qualitativa, influenciada
pela revolução tecnológica e pelo advento do computador, a crítica à noção de documento, tido antes como
material bruto, objetivo e inocente, aflora. Na perspectiva de Le Goff (1990), tanto para os documentos
conscientes, como para os inconscientes, aqueles que foram produzidos sem intenção de legar um testemunho
à posteridade, é imprescindível um estudo minucioso das suas condições de produção. O historiador precisa
repensar a própria noção de documento. Sua posição perante a escolha deles ainda é menos “neutra” do que
1
A Scientific Electronic Library Online - SciELO é uma biblioteca eletrônica que abrange uma coleção selecionada de
periódicos científicos brasileiros. A SciELO é o resultado de um projeto de pesquisa da FAPESP - Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo, em parceria com a BIREME - Centro Latino Americano e do Caribe de Informação
em Ciências da Saúde. A partir de 2002, o Projeto conta com o apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico. O Projeto tem por objetivo o desenvolvimento de uma metodologia comum para a preparação,
armazenamento, disseminação e avaliação da produção científica em formato eletrônico. Disponível em: <www.scielo.
com.br>. Acesso em: 15 maio 2016.
constituem uma instância privilegiada para a apreensão dos modos de funcionamento do campo educacional
enquanto fazem circular informações sobre o trabalho pedagógico e o aperfeiçoamento das práticas docentes,
o ensino específico das disciplinas, a organização dos sistemas, as reivindicações da categoria do magistério
e outros temas que emergem do espaço profissional. Por outro lado, acompanhar o aparecimento e o ciclo
de vida dessas revistas permite conhecer as lutas por legitimidade, que se travam no campo educacional. É
possível analisar a participação dos agentes produtores do periódico na organização do sistema de ensino e
na elaboração dos discursos que visam a instaurar as práticas exemplares.
Uma das análises que se pode, em primeira instância, realizar com as revistas de educação é a
predominância ou recorrência temática. Evidentemente, este é apenas o ponto de partida para a localização
de informações que poderão subsidiar pesquisas sobre a história da educação. Isto é o que apresentaremos
a seguir, tendo como fonte cinco periódicos de circulação nacional, veiculados no período de 1944 a 2009.
2
Cf. Soares (2004).
Diante dessa gama de perspectivas, abre-se também um leque de possibilidades com relação às fontes
de pesquisa que podem ser utilizadas. Neste estudo, a ênfase será dada aos periódicos, posto que “permitem
acompanhar o percurso de certo fenômeno social e podem [...] fornecer informações múltiplas reunidas e
organizadas cronologicamente sobre vários momentos e acontecimentos de dada época” (Carvalho, 2010, p.14).
Com base nessa premissa, pretendemos mostrar a multiplicidade de enfoques que se desnudam por
meio da análise dos resumos de 5 periódicos. Todavia, como já abordamos, caberá ao pesquisador discernir
quais poderão subsidiar suas investigações, considerando que,
Ao avaliar as provas, os historiadores deveriam recordar que todo ponto de vista sobre a realidade, além de ser
intrinsecamente seletivo e parcial, depende das relações de força que condicionam, por meio da possibilidade
de acesso à documentação, a imagem total que uma sociedade deixa de si. Para “escovar a história ao contrário”
(die Geschichte gegen den Strich zu bursten), como Walter Benjamim exortava a fazer, é preciso aprender a ler os
testemunhos às avessas, contra as intenções de quem os produziu. Só dessa maneira será possível levar em conta
tanto as relações de força quanto aquilo que é irredutível a elas (Ginzburg, 2002, p.43).
A escolha dos 5 periódicos para o estudo em questão foi pautada na relevância que possuem no campo
científico, resultante de estudos e pesquisas que contribuem para o desenvolvimento do conhecimento
educacional, e no fato de nenhum deles ter tido a publicação interrompida desde sua primeira edição.
A primeira revista selecionada para análise foi a Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos (RBEP),3
lançada em 1944, com periodicidade quadrimestral. Publica artigos inéditos de natureza técnico-científica,
resultantes de estudos e pesquisas que contribuam para o desenvolvimento do conhecimento educacional
e que possam oferecer subsídios às decisões políticas na área. Seu público leitor é formado por professores,
pesquisadores e alunos de graduação e pós-graduação, técnicos e gestores da área de educação.
A segunda revista eleita foi Cadernos de Pesquisa, da Fundação Carlos Chagas, criada em 1971, de
publicação quadrimestral. A revista é dedicada a divulgar a produção acadêmica sobre educação, gênero e
etnia. Veicula amplo espectro interdisciplinar de temas emergentes e de estudos e pesquisas que propiciam
o debate ao abordar temas como trabalho, família, socialização de crianças, relações étnicas e de gênero.
3
As informações referentes a este periódico e aos outros quatros analisados em seguida estão disponíveis na Rede
SciELO.
Tabela 1 – Número de artigos sobre alfabetização de crianças, encontrados nos cinco periódicos, no período
de 1944 a 20095
4
A Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo foi fundada em 1969.
5
Apesar de a pesquisa ter-se encerrado em 2009, a avaliação Qualis não sofreu alteração até o fim do ano de 2016.
Cadernos de Pesquisa
Educação e Pesquisa
Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos
Periódicos Revista Brasileira
de Educação
(USP)
Total
Temas
Concepção de alfabetização 01 02 01 04 04 12
Língua oral/Língua escrita - - 03 02 06 11
Caracterização do alfabetizador - - - 02 04 06
Formação do alfabetizador 01 - 01 02 02 06
Proposta didática - - - 05 01 06
Método 01 01 03 05
Continua na página 162
Educação e Sociedade
Cadernos de Pesquisa
Educação e Pesquisa
Revista Brasileira de
Estudos Pedagógicos
Revista Brasileira
Periódicos
de Educação
(USP)
Total
Temas
Após a análise dos resumos e apresentação das temáticas encontradas, organizamos os dados por
décadas, conforme apresentados na Tabela 3, que se inicia na de 1940 e finda na de 2000. O propósito
foi verificar se havia a predominância deste ou daquele tema, ao longo das décadas, sendo as discussões
apresentadas a seguir.
Assunto
Quant.
Quant.
Quant.
Quant.
Quant.
Quant.
Quant.
%
%
Concepção de
- - - - 01 12,5 03 13 04 16 04 19 12 15
alfabetização
Língua oral/Língua
01 20 - - 03 37,5 01 4 03 12 03 14 11 13
escrita
Formação do
- - - - - - 01 4 02 8 03 14 06 7
alfabetizador
Caracterização do
- - - - - - 01 4 04 16 01 5 06 7
alfabetizador
Prontidão 01 20 - - 01 12,5 - - 01 4 - - 03 7
Cartilhas - - - - - - 01 4 02 8 01 5 04 5
Método 01 20 01 100 - - 02 8 01 4 - - 05 6
Proposta didática - - - - - - 04 17 02 8 - - 06 6
Sistema fonológico/
- - - - 01 12,5 03 13 - - 01 5 05 6
Sistema ortográfico
Determinantes de
- - - - 01 12,5 02 8 01 4 - - 04 5
resultados
Dificuldades de
02 40 - - - - 01 4 - - 01 5 04 5
aprendizagem
Conceituação de
- - - - - - 01 4 01 4 01 5 03 4
língua escrita
Avaliação - - - - - - 02 9 - - 01 4 03 4
Produção de texto - - - - - - - - 01 4 - - 01 4
Leitura - - - - - - - - 02 8 - - 02 2
Letramento - - - - - - - - - - 04 19 04 2
Políticas Públicas - - - - 01 12,5 02 8 01 4 01 5 05 1
Totais 05 100 01 100 08 100 24 100 25 100 21 100 84 100
Fonte: Dados elaborados pelos autores.
6
Cf. Soares (2004).
Nessa relação entre a linguística e a alfabetização, muitos pontos passaram a ser questionados
nas pesquisas sobre alfabetização. As cartilhas foram analisadas, colocando em voga sua fragilidade e
inconsistência teórica e metodológica, bem como a descontextualização dos textos utilizados por elas. Os
livros de literatura infantil direcionados às crianças em processo de alfabetização também não escaparam
às críticas. O paradigma cognitivista se apresentava no Brasil por meio das pesquisas e estudos sobre a
psicogênese da língua escrita, divulgada por Emilia Ferreiro. Nessa perspectiva, a concepção do processo
de construção da representação da língua escrita pela criança se alterou: deixou de depender de estímulos
externos (concepção presente nos métodos de alfabetização) e passou a ser sujeito ativo da aprendizagem9.
Aos professores foi requerido que compreendessem as hipóteses que as crianças elaboram durante o
7
Cf. Lima (2007).
8
Cf. Esposito (1992).
9
Cf. Soares (2004).
A visão de que, no quadro da nova concepção de aprendizagem da língua escrita, a criança se apropria da
escrita de forma quase espontânea e independentemente de intervenção é, além de ingênua, inteiramente falsa:
certamente muito mais que as concepções que a precederam, esta nova concepção exige uma direção e uma
orientação pedagógicas que só podem ser exercidas se fundamentadas em um seguro conhecimento tanto do
processo de aprendizagem quanto do objeto desse objeto – a língua escrita. O grande desafio atual é socializar,
entre os professores, esse conhecimento (Soares, 1997, p.75, grifo da autora).
Na concepção construtivista, os erros das crianças são considerados erros construtivos, ou seja,
preciosos indicadores do processo de construção do sistema de escrita que a criança vivencia. Por meio deles
é possível verificar a hipótese de escrita em que a criança se encontra, portanto, elementos fundamentais no
processo de ensino e aprendizagem da língua.
Ainda no final da década de 1970 e início da década de 80, apresentam-se também os referenciais
sociointeracionistas, despontando as considerações de Vygotsky sobre o papel do professor no ensino,
que deixa de ser um mero transmissor de conteúdos para ser um mediador do conhecimento. Na teoria
sociointeracionista de Vygotsky, a visão de desenvolvimento humano baseia-se na ideia de um organismo
ativo, cujo pensamento é constituído em um ambiente histórico e cultural. Por meio dos processos
interativos que se dão ao longo do tempo, a criança reconstrói internamente uma atividade externa. Para
o sociointeracionismo, o desenvolvimento se produz tanto por meio da soma de experiências, como na
vivência das diferenças.
A década de 1990 foi marcada pelo paradigma sociocultural, considerado por Soares (2004) mais
como um aprimoramento do paradigma cognitivista do que propriamente uma mudança paradigmática.
Nessa década, foram efervescentes as discussões sobre a melhor opção para alfabetizar. As mudanças de
paradigmas colocaram em cheque os métodos tradicionais, as propostas surgiam com o foco na criança
10
Cf. Freitag (1990).
Em seu balanço, Warde (1993, p.69) buscou mostrar que a dispersão e a variação temáticas ainda prevaleciam
como traços predominantes sobre a unidade e a continuidade que seriam desejáveis. Salientou, simultaneamente,
que a diversidade identificada não era aquela que se deve cultivar como traço positivo a ser conquistado e
preservado pelos pesquisadores do campo, mas aquela da fragmentação dos temas em uma multiplicidade
de subtemas ou assuntos, da pulverização dos campos temáticos e da descontinuidade no trato dos assuntos
(Tiballi; Nepomuceno, 2006, p.20-21).
Essa pulverização dos campos temáticos é claramente percebida na análise realizada. O que falta é a
articulação dos conhecimentos produzidos, é preciso fazer uma análise “qualitativa” dessa grande massa de
dados para que se possa privilegiar os aspectos relevantes das propostas apresentadas. Afinal,
não faz sentido desenvolver pesquisas para reproduzir, recomprovando o que já se sabe, é necessário buscar delimitar
o que faz falta e demanda compreensão, como condição para formular o desejo de mudar e para as possibilidades da
mudança qualitativa desejada em relação a determinados problemas sociais (Mortatti, 2014, p.152).
Os estudos de natureza histórica sobre o ensino da leitura e da escrita podem contribuir para as
práticas de alfabetização na atualidade, posto que
Oferecem exemplos sobre o que foi feito, ampliando nosso repertório de práticas. Aguçam o interesse e o
respeito à alteridade. Evidenciam o hoje como fruto das ações dos sujeitos nas diversas injunções a que estão
submetidos. Mas destacam também que há sempre oportunidade para a criatividade e a invenção humanas.
Suscitam reconhecer que a nossa relação com o ontem é simultaneamente de continuidade e ruptura, atribuindo
várias camadas de temporalidade ao passado. Instigam-nos, por fim, a perscrutar os modos como atribuímos
sentido ao mundo e significamos nossa experiência pretérita e atual, levando em consideração a materialidade
da vida (Vidal, 2014, p.13).
Considerações finais
Por meio das discussões apresentadas, constatamos que a alfabetização é um tema bastante complexo
e que sofreu várias mudanças de concepção. Passamos de indivíduo alfabetizado, aquele a que bastava
Referências
Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a reconstruir as formas e
movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos,
plumas emaranhadas, odores estagnados. Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar as pistas
infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no
interior de um denso bosque ou numa clareira de ciladas (Ginzburg, 1989, p.151).
S em fontes, não há escrita histórica. Ponto de partida da pesquisa – “[...] o ponto de apoio da
construção historiográfica que é a reconstrução, no plano do conhecimento, do objeto estudado [...]”
(Saviani, 2006, p.29) –, elas são os registros dos fatos, que permanecem calados se o historiador não souber
questionar, e exprimem, em suas entrelinhas, uma história a ser revelada. São os vestígios de um tempo que
já passou, em sua dimensão diacrônica. Esse último aspecto diferencia a ciência histórica das outras ciências
humanas que estão “[...] interessadas, de perto ou de longe, pelos homens que vivem em sociedade [...]”
(Prost, 2008, p.95).
As fontes históricas devem ser compreendidas como produções humanas, uma vez que foram
constituídas com alguma finalidade, de maneira intencional ou não, ficando a cargo do historiador
reconstruir o passado do qual não fez parte, ou seja, “em contraste com o conhecimento do presente, o do
passado seria necessariamente ‘indireto’” (Bloch, 2001, p.51). Essa ideia esteve associada ao movimento1
1
Consideramos que o termo “movimento dos Annales” é mais apropriado que Escola dos Annales, corroborando a
posição de Burke (1991, p. 8), que atribui, ao termo “escola”, a concepção frequente de um grupo monolítico, com
práticas históricas uniformes, quantitativa no que tange ao método, determinista em suas concepções, hostil, ou, até
• 171
dos Annales, em que a crença sobre o alargamento das fontes contribuiu para a problematização da história,
assinalando uma nova possibilidade de se compreender o passado e dando um novo sentido para o papel
do historiador.
Igualmente, a proposta historiográfica vinculada aos Annales não rejeitou o método do uso das
fontes documentais, mas reconheceu que a reconstrução do passado se faz no tempo presente, a partir dos
vestígios2 deixados ao longo da existência do homem (Bloch, 2001, p.68). O historiador, nesse contexto,
assume o papel de observador, incapaz de reproduzir novamente os fatos acontecidos, devendo se apegar
aos testemunhos deixados pelos sujeitos que viveram naquele contexto. Esses testemunhos, apontados
por Bloch (2001), são de natureza escrita, elevados ao status de fontes, e, portanto, importantes para as
novas interpretações feitas pelos historiadores dos Annales.
As proposições do movimento dos Annales surgiram em contraposição a uma história historicizante
e à cientificidade das verdades dos fatos, colocadas a partir da perspectiva positivista da história. Os
percursores da revista tinham, como preocupação central, os “modos de pensar e sentir”, propondo uma
história problematizadora, o que os levou a compor o princípio da história-problema,
preocupada com as massas anônimas, seus modos de viver, sentir e pensar. Uma história de estruturas de
movimentos, com grande ênfase no estudo de vida material, embora sem qualquer reconhecimento da
determinância do econômico na totalidade social, à diferença da concepção marxista de história. Uma história
preocupada não com a apologia de príncipes e generais, em feitos singulares, senão com a sociedade global, e com
a reconstrução dos fatos em série passíveis de compreensão e explicação (Vainfas, 2002, p.17, grifos do autor).
Embora a revolução dos Annales tenha sido significativa para os estudos históricos, a inovação não
está ligada ao método, mas aos objetos e às questões formuladas, isto é, “as normas da profissão foram
integralmente respeitadas por L. Febvre e M. Bloch: o trabalho a partir dos documentos e a citação das fontes
[propôs] uma história amplamente aberta, uma história total, empenhada em assumir todos os aspectos da
vida humana” (Prost, 2008, p.39). Tratava-se, então, de compreender o todo e a parte.
Sendo o historiador aquele que procura saber algo (Le Goff, 1984), cabe-lhe compreender o passado
para tentar atribuir significações ao presente, em um movimento pendular, em que o primeiro é buscado
para entender o segundo. Assim, “a história é filha do seu tempo”, como dizia Febvre, “[...] cada época
elenca novos temas que, no fundo, falam mais de suas próprias inquietações e convicções do que de tempos
memoráveis [...]” (BLOCH, 2001, p. 6). Essa nova postura adotada diante da história reverberou na análise
mesmo, indiferente à política e aos eventos, entendendo que esse estereótipo ignora tanto as divergências individuais
entre seus membros quanto o desenvolvimento no seu tempo.
2
Diferente de Ginzburg (1991), que compreende a existência dos vestígios históricos dentro do documento, cabendo ao
historiador estar atento às entrelinhas para entender os detalhes de determinado fato, para Bloch (2001), os documentos
se constituem como o próprio vestígio do passado, com indicação de pistas daquilo que ocorreu, ficando a cargo
do historiador compreendê-lo através do seu tempo, modificando as análises historiográficas e, consequentemente,
produzindo novos conhecimentos de determinado período.
era uma “estrutura em progresso” [e] o mais claro e complacente dos documentos não fala senão quando se sabe
interrogá-lo. É a pergunta que fazemos que condiciona a análise e, no limite, eleva ou diminui a importância de
um texto retirado de um momento afastado (Bloch, 2001, p.6).
Desse modo, por mais longínquo que seja o passado, as fontes não representam a totalidade ou
a veracidade do acontecido, mas parte dele, sendo possível utilizá-las independentemente do momento
em que foram produzidas. No caso das fontes oficiais, dentre as quais consideramos as produzidas por
órgãos oficiais do Estado, entendemos que elas compõem a parte de um todo, ou seja, tais documentos
são fruto do pensamento de uma época, embebecidos da “verdade” defendida por cada grupo que estava,
momentaneamente, no poder; logo, suas marcas são importantes para a compreensão do todo.
Por meio dos documentos oficiais podemos entender algumas das estratégias políticas adotadas
pelo governo. No ensino primário, por exemplo, saber ler e escrever, durante a Primeira República, eram
os elementos essenciais para levar a sociedade brasileira ao progresso e à civilização, e a educação era
entendida como o remédio necessário para afastar o Brasil das moléstias do atraso (Nagle, 1971). Ao mesmo
tempo, a utilização das cartilhas, nos processos de ensino-aprendizagem, nesse período, funcionou como
um importante instrumento para a concretização de métodos e conteúdo de ensino atrelados ao ideário
republicano, “contribuindo significativamente para a criação de uma cultura escolar e para a transmissão
da(s) tradição(ões)” (Mortatti, 2000; 2006).
Neste trabalho, preocupamo-nos, no primeiro momento, em evidenciar quais as ferramentas que
disponibilizam esses documentos oficiais, demonstrando que a maneira de fazer história acompanhou as
novas tecnologias que estão à nossa disposição, isto é, de que forma o surgimento de banco de dados online,
responsável pela digitalização, compilação e divulgação de fontes, contribui para a escrita da história. Assim,
ao lado de cartilhas, fontes orais, manuais, entre outros, a História da Alfabetização tem-se munido de fontes
para corroborar seus conhecimentos no campo mais amplo da História da Educação Brasileira.
Em segundo lugar, este capítulo objetiva demonstrar como os documentos oficiais produzidos pelo
Estado contribuem para a compreensão do ensino de leitura em Minas Gerais, durante a Primeira República.
Para tanto, elegemos duas fontes da primeira fase do sistema republicano brasileiro: a primeira, o Relatório
da Instrução Pública, Correios e Telegraphos, publicada em maio de 1891; e a segunda, em âmbito estadual,
a Lei nº 41, de 03 de agosto de 1892.
O trabalho está dividido em dois momentos: o primeiro trata da localização dos documentos oficiais
e o segundo busca fazer apontamentos sobre as potencialidades e limites das fontes oficiais, a partir de um
ensaio sobre tais documentos, que influenciaram as práticas de leitura instituídas nas escolas primárias
mineiras no início da Primeira República.
Os sinais, os vestígios, os indícios deixados pelos homens durante sua existência necessitaram de
cuidados específicos para armazenamento, na tentativa de preservar a memória de tempos passados. A
criação do primeiro Arquivo Nacional, após a RevoluçãoFrancesa, em 1789, é um marco referente à criação
de lugares para a guarda de documentos importantes para a sociedade. Segundo Le Goff (1984), essas
instituições sugiram ao longo do século XVIII, na Europa; o Decreto de 25 de junho de 1794, promulgado
na França, foi o responsável por uma nova fase para os arquivos e, também, para a disponibilização dos
documentos da memória nacional.
Esses documentos, considerados oficiais pelo Estado, tinham o intuito de marcar um período
de transição entre o novo e velho, ou seja, a ruptura com o passado e a criação de uma nova sociedade
(Schellenberg, 2006). No que tange ao Brasil, o primeiro Arquivo Nacional foi regulamentado pelo
artigo 70, da Constituição Imperial, publicada em 25 de março de 1824, sendo criado, em 1838, o
Arquivo Público Imperial, através do Regulamento nº 2, em 02 de fevereiro daquele ano. O advento da
República, em 15 de novembro de 1889, transformou o Arquivo Público Imperial em Arquivo Público
Nacional que
Durante muitas décadas [...] exerceu as funções de recolhimento, guarda, classificação e conservação da
documentação produzida pela administração pública, unicamente por força de sua tradição. Nesse sentido,
foi estruturado e legalmente incorporado ao poder público através de uma série de leis, decretos e portarias
ministeriais que visavam à definição de suas funções e organização interna (Franco; Bastos, 1986, p.9).
Os arquivos se configuraram como os locais de “memória oficial” de uma sociedade, pois, em sua
gênese, estaria a responsabilidade de acondicionar quaisquer documentos expedidos pelos órgãos oficiais
do Estado. Principalmente por correntes ditas positivistas, essas fontes foram consideradas as únicas que
davam legitimidade ao passado, constituindo uma história de grandes personagens e fatos pontuais, cabendo
ao historiador “tirar dos documentos tudo que eles contêm e em não lhes acrescentar nada do que eles não
contêm” (Fustel, 1888, apud Le Goff, 1984, p.527, grifos do autor).
Se, para a escola positivista, o documento triunfa e sua utilização é indispensável para a escrita
da história (Le Goff, 1984), o alargamento das fontes, ao longo do século XX, pelos Annales, causou uma
transformação na compreensão desse tipo de fonte, passando a ser entendido sobretudo como texto, que
representa uma das maneiras de manifestação dos homens. Associada a essa ideia, a memória, pouco a
pouco, retorna às discussões das pesquisas historiográficas, passando a ser entendida como ferramenta
da história para se compreender o passado, uma vez que “[...] tudo que pertence ao homem, depende do
homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a presença do homem, a atividade, os gostos e as
maneiras de ser do homem” (Le Goff, 1984, p.540) interessa aos estudos historiográficos.
Assim, o salto quantitativo e qualitativo na revolução documental, a partir dos anos 1960, tendeu
a memória coletiva valoriza-se, institui-se em patrimônio cultural. O novo documento é armazenado e manejado
em bancos de dados. Ele exige uma nova erudição que balbucia ainda e que deve responder simultaneamente
às exigências do computador e à crítica da sua sempre e crescente influência sobre a memória coletiva (Le Goff,
1984, p.542).
Paralelamente a esse processo, os Arquivos Públicos passaram a armazenar não apenas os documentos
oficiais do Estado, mas, também, foi introduzido, em seus acervos, um conjunto de jornais, periódicos,
revistas, fotografias, documentos pessoais e familiares etc. Ou seja, todo resquício que pudesse dar indícios
das ações humanas, não falando por si mesmo, mas por meio das indagações feitas, elevando aquele objeto
ao status de fonte.
Igualmente, em consonância com as transformações ocorridas por meio do alargamento das fontes,
associadas à introdução das novas tecnologias, com a criação da internet e das novas bases de dados, as
estruturas dos arquivos públicos têm-se modificado, como com a disponibilização de várias fontes em
plataformas online. Para exemplificar essa questão, destacamos a existência de duas ferramentas importantes
que colaboram para o acesso e consulta a esses documentos.
O primeiro é o Center for Research Libraries (CRL),3 responsável pela preservação e disponibilização
de fontes de várias partes do mundo, inclusive do Brasil, em que é possível consultar mensagens presidenciais,
relatórios de presidentes de províncias e mensagens ministeriais, deliberadas durante a Primeira República
até a instauração do Estado Novo. O segundo é a Hemeroteca da Biblioteca Nacional (HBN)4 que, em seu
acervo online, conta com jornais e periódicos de todo o país, no qual é possível a realização de busca por
termos específicos que serão localizados nos próprios documentos.
No que se refere à historiografia da alfabetização brasileira, essas plataformas online contribuem
para compreender de que maneira os ideais da, e/ou as ideias sobre, educação nacional e sobre os métodos
de ensino de leitura e escrita circularam e foram empreendidas nas diversas localidades do país. É possível
localizar, por meio de jornais e periódicos – no caso da HBN –, como foram propagados os métodos na
sociedade; e, ainda, entender, através dos documentos oficiais do Estado – no caso do CRL –, como ocorreu
sua legitimação.
Assim, as consultas desses documentos apresentam “n” possibilidades de pesquisa, não só visando
aos conhecimentos sobre a educação, mas, também, podendo abranger outras áreas do conhecimento.
No entanto, mesmo que reconheçamos que o acesso a esses documentos de forma online favorece futuras
investigações, Chartier (2002) adverte que não devemos substituir as fontes pelas suas digitalizações,
causando um outro problema: a destruição da materialidade. Então, como pesquisadores, historiadores,
3
http://www-apps.crl.edu/brazil/provincial
4
http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx
Ainda assim, independentemente de ser possível, para uma parte desses documentos, a consulta
“ao vivo” de modo online, obviamente nem todos eles seriam disponibilizados a qualquer hora e lugar, de
maneira que o pesquisador não necessitasse várias idas e vindas aos acervos dos arquivos públicos. Se sem
fontes não há a escrita da história, sem as jornadas aos arquivos não há como descobri-las. Logo, o fazer do
ofício do historiador se dá apenas por meio das fontes.
Tendo em vista as facilidades possibilitadas pelo avanço das mídias digitais, entre elas o acesso fácil a
documentos, destacamos que, para as análises feitas nesta pesquisa, não consultamos os originais. Optamos
por utilizar as fontes oficiais do Estado brasileiro e mineiro que estavam disponíveis online. Entretanto,
reconhecemos que o cuidado histórico para obter acesso aos originais é importante, pois a materialidade
da fonte muda a forma como olhamos e entendemos o documento. Isto é, o suporte muda o documento:
analisar um documento em um monitor, após ser digitalizado, selecionado, tratado por uma determinada
instituição, é diferente de olhar um documento esquecido em uma gaveta.
Ao elegermos o Relatório de Instrução Pública, Correios e Telegraphos, de 1891, e a Lei nº. 41, de
03 de agosto de 1892, para as análises desta investigação, remetemo-nos às observações de Le Goff (2003),
no que tange às reflexões documento-monumento, em que se tornam questionáveis os motivos de tais
documentos estarem arquivados por instituições que não se vinculam oficialmente ao Estado brasileiro e
mineiro.5 Isso, de certa forma, revela a intencionalidade de guardar e erigir o monumento em determinada
memória, diferente de outras que o tempo cuidou de apagar.
Nesse sentido, o documento que irá iniciar a busca já possui um lugar de memória reservado;
podemos, com isso, considerar que aqueles que o produziram e o guardaram tinham a intenção de evidenciar
a importância da fonte para as memórias constituídas por outras gerações, de modo que aprendessem sobre
aquele monumento, afastando o entendimento de que esses documentos foram guardados aleatoriamente. A
manutenção, ou a não preservação, seleciona para o futuro o que o passado escolheu, reservando, aos herdeiros,
ler e interpretar esses sentidos.
A memória oficial é um desejo pela lembrança, mediada pelas relações de força do momento em que
aquela é preservada. Assim, destinatários e produtores devem ser investigados: os destinatários, formatos e
suportes mudam de acordo com a forma como se escreve e o que se escreve (Chartier, 2002). A partir dessas
concepções, apresentamos, no próximo tópico, os referidos documentos, identificando o lugar ocupado
pelo ensino de leitura na educação primária mineira, a partir das fontes oficiais do Estado de Minas Gerais.
5
Isto porque, mesmo acreditando na autenticidade das fontes selecionadas, destacamos que o Relatório de Instrução
Pública, Correios e Telegraphos, de 1891, está disponível no CRL; e a Lei nº 41 está no acervo do Grupo de Pesquisa de
História da Escola Primária, da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita”
– Campus Araraquara.
Saber interrogar as fontes documentais se constitui como importante orientação referente às análises
historiográficas (Bloch, 2001). Analisar um documento é um exercício constante de atenção às pistas. Ele não
é uma “prova da verdade”, mas se configura como um substrato para confirmação ou negação das teses ou
hipóteses levantadas pelo pesquisador, funcionando como elemento para dialogar com as perguntas feitas,
cabendo a esse observar e permanecer atento aos caminhos que a fonte indica. Para que estes elementos não
se percam, deve-se também ter atenção ao tempo em que foi produzido, sob a égide da concepção de que as
produções humanas são resultado dos sujeitos que as produziram, permeados pelo tempo em que viviam, e
carregam, em si, essas marcas.
Como um exercício de análise, escolhemos investigar, de forma preliminar, as origens das
regulamentações oficiais do ensino primário, após a proclamação da República brasileira, em 15 de novembro
de 1889. E também sua reverberação no ensino primário no Estado de Minas Gerais, mais precisamente
através da Reforma Afonso Pena, de 1892.
Em consonância com as acepções de Prost (2008) de que o conhecimento histórico deve ser
delimitado, nosso propósito foi selecionar duas fontes oficiais expedidas pelo governo brasileiro e mineiro.
Com isso, buscamos evidenciar de que maneira as transformações no caráter da educação nacional causaram
transformações no ensino primário de Minas Gerais, no que se refere à leitura.
Optamos por demarcar essa investigação a partir da proclamação da República, em 1889, apoiando-nos
em Fausto (2011), Schwarcz (2007) e Schwarz (2000). Entretanto, é pouco provável que façamos uma pesquisa de
tipo puro, ou seja, sem cruzamento de elementos e diferentes tipos de fontes, o que, em verdade, torna o trabalho
mais robusto.
A pesquisa bibliográfica é elemento essencial para a pergunta motivadora feita em primeiro plano. O
trabalho de investigar as origens das regulamentações oficiais do ensino primário no Brasil republicano foi,
inicialmente, provocado pela leitura de bibliografia clássica da História do Brasil e da História da Educação
brasileira, como Saviani (2008), Veiga (2007), Nagle (1971), Araújo (2008), entre outros.
Ao fazermos buscas pelas pesquisas desenvolvidas por esses autores, visamos a procurar indícios
que nos mostrassem o caminho para iniciar a busca pelas fontes. Assim, essas investigações evidenciaram
a existência de dois documentos importantes que nos chamaram a atenção, com a menção aos constantes
relatórios produzidos oficialmente e compartilhados entre os órgãos governamentais, que teceram
considerações sobre o ensino primário brasileiro e deram norteamento para a promulgação da Lei nº 41, de
03 de agosto de 1892.
O Relatório da Instrução Pública, Correios e Telegraphos, publicada em maio de 1891, dois anos
após a proclamação da República, foi produzido por João Barbalho Uchôa Cavalcanti, filho de um senador
do Império, que, após a instauração do regime republicano, ingressou na carreira jurídica, percorrendo a
mesma trajetória política de sua família de origem pernambucana, traçada ainda no período anterior. Uchôa
Assim, justificava-se a necessidade de um órgão para encarregar-se dos assuntos educacionais, mesmo que não
fosse de forma exclusiva, legitimando a existência de certa independência para a administração da instituição.
Essa preocupação prenunciava os ensejos dos escolanovistas e da gestão técnica da educação brasileira, em anos
posteriores. Igualmente, a constatação da situação precária da instrução pública emerge da necessidade de que
haja um corpo que se responsabilize pelos rumos da educação nacional:
Infelizmente não é ainda lisonjeiro o estado d´esse ramo da administração publica.
O antigo regimen monarchico delle descurou de modo sensível a ponto de podermos asseverar que, longe de
progredir, em certo sentido temos retrogradado.
Esse descuramento se agrava, e compulsados os ultimos relatorios do extincto Imperio, mostram elles todos o
conhecimento de tão infeliz verdade (Relatório da Instrução Pública, Correios e Telegraphos, 1891, p.11).
O regime republicano, que emergiu da necessidade de causar uma ruptura entre o novo e velho, entre
o Império e a República, continuou permeado pelas estruturas oligárquicas e imperiais. Dessa maneira, no
que se refere à educação republicana, nos seus primeiros anos, esta não sofreu mudanças estruturais, mas
uma transformação em seu caráter, sendo destinada à formação de um novo homem, norteado pela razão e
cultivado na cultura escrita.
As mudanças prometidas pelo novo regime não aconteceram de forma efetiva no que tange à
estrutura, organização e métodos do ensino primário, perdurando a importação dos modelos europeus
de ensino e a propagação dos métodos por meio das escolas normais (Araújo; Freitas; Lopes, 2008). As
escolas primárias republicanas continuaram precárias, com falta de materiais, permanecendo os métodos
associados às cartas de “ABC”. Segundo Mortatti (2000, p.5), o ensino de leitura na Primeira República ainda
era baseado nos métodos de marcha sintética, com a “apresentação das letras e seus nomes (método de
soletração/alfabético), ou de seus sons (método fônico), ou das famílias silábicas”, sempre partindo do fácil
O ensino primario, e como consequencia a Escola Normal e o Pedagogium, são dependencias da futura
constituição do Districto Federal, sob cuja direcção terão de ficar, á vista da Constituição que nos rege.
O zelo da administração desenvolverá por certo o ensino primario já em melhores condições, á vista do
Regulamento approvado pelo Decreto n. 981 de 8 de Novembro de 1890, e continuará assim a mostrar que,
longe de lamentar o atrazo, como outr’ora, seguirá o trilho apontado pelo meu ilustrea antecessor, desenvolvendo
e aperfeiçoando o que já encontra no Regulamento em vigor (Relatório da Instrução Pública, Correios e
Telegraphos, 1891, p.11).
Entretanto, mesmo que essa fonte enunciasse a necessidade de centralização, fica evidente, através do
Decreto nº. 981, de 08 de novembro de 1890, que a educação nacional permaneceria descentralizada. Assim,
ficaria a cargo das províncias a organização e sistematização do ensino primário, bem como das escolas
normais, responsáveis pela formação do professor a ele destinado.
Esse decreto foi promulgado durante o governo provisório, um ano antes da publicação da
Constituição, o que evidencia a preocupação do Estado em conduzir a educação, uma vez que esta era
compreendida como uma das ferramentas para criar o cidadão republicano (Carvalho, 1998), nas trincheiras
da escola, conforme preconizou Nagle (1971).
Nesse sentido, o decreto anunciou a aprovação do regulamento da Instrução Primária e Secundária
do Distrito Federal:
O Generalissimo Manoel Deodoro da Fonseca, Chefe do Governo Provisorio, da Republica dos Estados Unidos
do Brazil, constituido pelo Exercito e Armada, em nome da Nação, resolve approvar, para o Pedagogium da
Capital Federal da Republica dos Estados Unidos do Brazil, o regulamento que a este acompanha, assignado pelo
General de brigada Benjamin Constant Botelho de Magalhães, Ministro e Secretario de Estado dos Negocios
da Instrucção Publica, Correios e Telegraphos, que assim o faça executar (Decreto n. 980, 08 nov. 1890, p.01).
Art. 73. São escolas ruraes as escolas estabelecidas em localidade, cuja a população é inferior a 1.000 habitantes
ou 150 meninos de ambos os sexos, de 7 a 13 annos completos, na area abrangida pelo perimetro escolar.
Art. 74. São escolas districtaes as escolas estabelecidas nas séde dos districtos administrativos e em localidade,
cuja a população na area abrangida pelo perimetro escolar (não sendo cidade ou villa) é superior a 1.000
habitantes ou 150 meninos de ambos os sexos, de 7 a 13 annos completos.
Art. 75. São urbanas as escolas estabelecidas nas cidades ou villas (Lei n.41, 03 ago. 1892, p.55).
Essa divisão refletiu nos próprios conteúdos que deveriam conter os programas de ensino das
escolas primárias, estabelecidos pelo Art. 88, da mesma lei, compreendendo o ensino primário como aquele
que buscaria promover a leitura e escrita, a partir da prática da língua materna, em particular ortografia,
construção de frases e redação (Lei n.41, 03 ago. 1892, p.56). Do mesmo modo, o Estado sinalizou a
preferência pelo método intuitivo, quando expôs, facultativamente, “lições de cousas” na letra A do Art. 88
da referida lei.
Dessa maneira, consideramos que, ao assumir a lição de coisas como método de ensino, o Estado
deixa implícito seu entendimento sobre como deveria ensinar a ler e a escrever, ou seja, assume o caráter
do ensino das primeiras letras. Essas normativas seriam norteadoras para todo o ensino primário mineiro,
tanto nas escolas rurais, quanto nas distritais e urbanas. O que as diferenciava eram os conteúdos que
nelas deveriam ser ministrados (conforme Quadro 01), ficando evidente a preocupação do governo com a
escolarização nas áreas urbanas.
Embora o objetivo deste texto seja apenas de fazer apontamentos sobre os rumos do ensino
primário de Minas Gerais por meio dos documentos oficiais, no que se refere, principalmente, ao ensino
de leitura, acreditamos que se faz importante compreender de que maneira a organização do ensino
primário influenciou a sistematização da educação mineira. Ela foi classificada conforme o surgimento das
escolas, de forma que atendesse a população de cada localidade; logo, o ensino de leitura esteve presente
Quadro 01 – Classificação das escolas primárias de Minas Gerais e seus respectivos conteúdos.
Os métodos pelos quais aprendemos a ler não só encarnam as convenções de nossa sociedade em relação
à alfabetização – a canalização da informação, as hierarquias de conhecimento e poder -, como também
determinam e limitam as formas pelas quais nossa capacidade de ler é posta em uso (Manguel, 2002, p.85).
Destarte, o ensino de leitura em Minas Gerais, durante os primeiros anos da República, foi
caracterizado por uma busca pela formação pré-estabelecida, dando um sentido tanto para o professor
quanto para o aluno, no âmbito escolar. A leitura foi entendida pela Reforma Afonso Pena como aquela
que possibilitaria não só o conhecimento do novo regime, mas também poderia imprimir, no homem, seus
princípios e valores.
Entretanto, se a construção historiografia não acontece perante uma única fonte, como
defendiam os Annales, aqui, encontramo-nos nos limites impostos pelos documentos oficiais, nos
quais não conseguimos compreender a dimensão da implantação da referida lei. Isto é, entre o que
estava previsto pela Reforma Afonso Pena e o modo como ela foi incorporada. Ou seja, existe um
abismo acerca da sua efetividade no sistema educativo mineiro, que as fontes oficiais não dão conta de
responder, uma vez que há uma limitação natural desse tipo de documento.
Portanto, é necessário entender qual a rede em que essa fonte estava inserida, uma vez que, na
interpretação histórica do documento, ele estabelece interlocução com outros, sendo indispensável a sua
busca para constituir uma parte da história. Grosso modo, um dos ofícios do historiador/pesquisador é, a
partir de uma bibliografia escolhida, levantar dados e percorrer, “no interior de um denso bosque ou numa
clareira de ciladas” (Ginzburg, 1989, p.151), a tentativa de observar as variáveis e as peculiaridades do objeto
estudado.
Para estudos longitudinais sobre o ensino de leitura no estado de Minas Gerais, durante a Primeira
República, temos que considerar a importância desse tipo de fonte, sem perder de vista aquelas que colaboram
para uma pesquisa sistematizada das nuanças que envolvem a problemática do objeto. Nesse sentido, apesar
de oficialmente as questões relativas aos rumos da educação – sobretudo o ensino de leitura – estar presente
nos discursos do Estado, as críticas sugerem que as mudanças não ocorreram necessariamente no ritmo
desejado, o que só poderia ser compreendido com o cruzamento de outras fontes.
Considerações finais
Referências
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Cavalcanti, ministro de Estado dos Negócios da Instrução Pública, Correios e Telegraphos em maio de 1891. Rio de Janeiro,
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NAGLE, Jorge. Educação e Sociedade na Primeira República. 2 Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 1971.
A história da alfabetização no Brasil pode ser construída através de diversas fontes; uma delas é o livro didático.
Os livros de alfabetização, sobretudo as cartilhas, são representativos de práticas e ideários pedagógicos, assim
como de práticas editoriais e, historicamente, vêm se constituindo como primeira via de acesso à cultura do
impresso, uma vez que, em nossa sociedade, grande parcela da população aprende a ler dentro do espaço escolar,
e a cartilha é o primeiro livro a que os alunos têm acesso (Frade; Maciel, 2003, p.2).
• 187
Os livros didáticos, também chamados de manuais escolares ou livros escolares, são artefatos que desde há
muito tempo ocupam o cenário escolar, a ponto de conjuntamente a professores e alunos consubstanciarem,
perante a sociedade, o que há de mais fundamental no universo escolar (Gatti Júnior, 1997, p.31).
Como nos revelam Frade e Maciel, a construção de uma história das cartilhas é importante, pois
ainda há escassez de pesquisas realizadas sob a ótica da história acerca de ideários e práticas educacionais
e sociais representadas por esse objeto. Além disso, ainda se faz necessária a realização de pesquisas que
contribuam, de forma significativa, para a edificação da história do livro, da leitura e das práticas editoriais
no Brasil, tendo em vista que “se trata de impressos que passam por um ciclo de produção, circulação e
divulgação, dependentes de necessidades pedagógicas e comerciais, e sofrem interferências dos contextos
socioculturais” (Frade, Maciel, 2003, p.2).
A origem e manutenção dos diversos impressos escolares, como cartilhas, manuais de ensino ou
livros didáticos, estão vinculadas ao poder instituído. A produção didática é, em boa parte, direcionada
ao sistema educacional público e, por isso, atende ao que é estabelecido pelo Estado. Mesmo quando são
produzidos para o sistema privado, cumprem as exigências do mercado e as normas estabelecidas pelo
Estado. Nas palavras de Bittencourt, a confecção dos livros didáticos “segue os princípios do sistema de
avaliação, obedecendo às normas definidas pelo poder estatal, que assim interfere indiretamente na sua
produção e é o principal comprador desse material” (Bittencourt, 2008a, p.311).
Corrêa afirma que “provavelmente, nenhum material escolar sofreu tanto as influências das leis de
mercado quanto esse. Fundamentalmente, porque as políticas do livro escolar mantiveram conectados os
interesses estatais e privados” (Corrêa, 2000, p.22). Percebemos, pois, que esse tipo de produção cultural se
distingue dos demais livros, em cuja elaboração há menor nitidez da interferência de agentes externos.
Como defende Fonseca (1999), não é possível separar o livro didático e a educação formal da
conjuntura político-cultural e das relações de dominação, considerando que, constantemente, são
instrumentos empregados para manutenção e “legitimação de sistemas de poder, além de representativos de
universos culturais específicos” (p. 204); ou seja, “atuam, na verdade, como mediadores entre concepções e
práticas políticas e culturais, tornando-se parte importante da engrenagem de manutenção de determinadas
visões de mundo” (Fonseca, 1999, p.204).
Corrêa (2000) argumenta que o uso do livro didático como fonte de pesquisa permite apreender qual
é o projeto de formação social exercido pela escola. “Isso é permitido por meio das interrogações que podem
ser feitas, quer em termos do conteúdo, quer de discurso, sem deixar de levar em consideração aspectos
referentes a temporalidade e espaço” (p. 13); e, dessa forma, propicia questionar “a que e a quem serviu como
um dos instrumentos da prática institucional escolar” (Corrêa, 2000, p.13).
Antes de realizar um estudo sobre a cartilha, precisamos compreendê-la como um objeto permeado
por uma diversidade de aspectos técnicos, materiais, comerciais, sociais, culturais, políticos e educacionais.
As cartilhas trazem consigo informações como tendências metodológicas de um determinado
período, através das questões ideológicas que carrega. A concepção de educação e de alfabetização em que
188 • Vanessa Lepick | Tânia Rezende Silvestre Cunha | Andréia Demétrio Jorge Moraes
o professor acredita, ou o sistema educacional apregoa, está impressa no livro adotado em sala de aula.
Isso posto, a pedagogia da alfabetização e produção editorial se cruzam nas páginas de um livro didático,
mesmo que o alfabetizador não tenha consciência desse “cruzamento” e não saiba analisar a concepção
educacionalque impregna ostextos e as atividades propostas no impresso. Segundo as autoras Frade e Maciel
(2006), a análise dos elementos de um livro (texto, conteúdo, ordenamento linguístico ou metodológico,
exercícios, imagens e outros recursos do mundo editorial) ou da relação deles entre si
permite compreender que o resultado final é fruto dos recursos expressivos provenientes do processo de
fabricação do livro e também da sua proposta didática. Assim Pedagogia cruza-se com edição. E a Pedagogia da
alfabetização é que marca a diferença entre livros que visam uma aquisição inicial da escrita e da leitura, com os
livros de leitura que visam o desenvolvimento da leitura (Frade; Maciel, 2006, p.3108).
O campo metodológico da historiografia que permite o estudo das cartilhas é a Nova História Cultural,
com ênfase em um de seus domínios de estudo, a história da cultura material escolar. Entendemos que este
campo da história tem contribuído para as pesquisas em história da educação, por seus procedimentos e sua
estrutura interdisciplinar. Para Abreu Jr. (2005),
os trabalhos de investigação na área de cultura material escolar caracterizam-se pelo enfoque interdisciplinar e
complexo, com realce ao esforço de interpretação historiográfica, antropológica, sociológica e pedagógica. Esse
trabalho interdisciplinar pode ser feito tanto a partir de uma dessas áreas tratadas em destaque, mas utilizando
recursos subsidiários de uma ou outra, como através de propostas conjuntas em que não há decisão prévia
de privilegiar alguma dessas áreas do conhecimento. Sem dúvida que, em qualquer desses procedimentos,
as questões de tratamento metodológico devem ser bastante amplas para aceitar a diversidade dos enfoques
adotados e a complexidade inerente a essa adoção (Abreu Jr., 2005, p.146).
Definir “cultura” é algo difícil, devido à pluralidade e complexidade que o termo envolve. Percebemos
que não existe unanimidade entre os autores sobre o seu significado, tendo este variado também no tempo
e no espaço e de acordo com a compreensão de cada sociedade. Segundo Burke,
o termo cultura costumava-se referir às artes e às ciências. Depois, foi empregado para descrever seus
equivalentes populares – música folclórica, medicina popular e assim por diante. Na última geração, a palavra
passou a se referir a uma ampla gama de artefatos (imagens, ferramentas, casas e assim por diante) e práticas
(conversar, ler, jogar) (Burke, 2004, p.43).
Considerando essa dificuldade de estabelecer um conceito consensual de “cultura”, Falcon afirma que
essa problemática acaba por se estender também à definição de quais objetos culturais poderiam constituir a
matéria-prima da história cultural. Assim, uma das maneiras utilizadas pelos historiadores da cultura para
A história da cartilha como objeto da cultura material escolar: um percurso metodológico • 189
contornar as discussões sobre esta questão “foi, ou tem sido, a de pensar a história cultural como uma certa
forma de abordagem do real histórico e, ao mesmo tempo, encarar a dimensão ou perspectiva cultural como
alguma coisa que está presente na economia, na política e na sociedade como um todo” (Falcon, 2006, p.334).
Sobre o conceito de cultura, Vidal (2009) aponta que este já foi compreendido de várias maneiras, “ora
em contraste à natureza ou à civilização; ora percebida como própria expressão humana (fato intelectual,
artístico ou religioso); ora tomada na acepção ampla de modo de vida” (p.104); finalmente, passa a ser
entendida como sistema de significações e, então, sob a batuta de estudiosos de várias áreas (sociólogos,
antropólogos e historiadores) a cultura alcança a “convergência apenas na afirmação de seu caráter
dinâmico, historicamente constituído e constantemente objeto de disputa” (p.104); ou seja, é justamente “no
que comporta de tensão e conflito que ela permite a análise da homogeneização, ainda que provisória, da
sociedade” (Vidal, 2009, p.104).
Vidal também explica que o uso da categoria cultura favorece a interdisciplinaridade e provoca “a sensação
de que, imersos em um universo cultural, os pesquisadores são, eles também, objeto e sujeito da análise” (Vidal,
2009, p.104).
Devido à multiplicidade dos objetos culturais que podem ser estudados no âmbito da Nova História
Cultural, e, ainda, às diversas instâncias que fazem parte da cultura, a educação encontra seu espaço, tanto
como objeto a ser estudado quanto como um dos campos que a permeiam. Segundo Thomas (2000),
“os valores educacionais de um período histórico são muito instrutivos, já que não só revelam o tipo de
pessoas que são aí criadas, como também os próprios valores daquela cultura” (Thomas, apud Palhares-
Burke, 2000, p.130).
A Nova História Cultural rompe com a forma tradicional de fazer história, propondo novos problemas,
abordagens, objetos de estudo, fontes, impondo um novo ordenamento no campo disciplinar. Nunes e
Carvalho (1993) apontam que a repercussão da história cultural da sociedade possui grande complexidade,
principalmente no âmbito da história das instituições escolares. Isso ocorre sobretudo “porque a massa de
estudos produzida sobre questões de produção, circulação e apropriação culturais abre novas perspectivas
e põe novos problemas à investigação” (p. 49). Implica a divulgação dos resultados dos estudos realizados,
permitindo a sua apropriação, quando necessário, e enseja que “os procedimentos de análise sejam refinados
de maneira a que se dê conta do modo pelo qual as práticas escolares funcionam enquanto dispositivos de
transformação material de outras práticas culturais e de seus produtos” (Nunes; Carvalho, 1993, p.49-50).
Se definir “cultura” não é uma tarefa fácil, o mesmo ocorre em relação à expressão “cultura escolar”,
novamente devido à pluralidade de aspectos que ela abrange. Assim, buscamos como referências para
compreender a cultura escolar as abordagens defendidas por historiadores e antropólogos, como Dominique
Julia, Roger Chartier, Jean-Claude Forquin, Antonio Viñao Frago, dentre outros.
Conforme Julia (2001), não podemos estudar a cultura escolar sem analisar as “relações
conflituosas ou pacíficas que ela mantém, a cada período de sua história, com o conjunto das culturas
que lhe são contemporâneas: cultura religiosa, cultura política ou cultura popular” (p. 10). Para ele “a
cultura escolar [é] um conjunto de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar,
190 • Vanessa Lepick | Tânia Rezende Silvestre Cunha | Andréia Demétrio Jorge Moraes
e um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses
comportamentos” (Julia, 2001, p.10).
O conceito de cultura escolar, para Viñao-Frago (1995), é “um conjunto de aspectos institucionalizados
que caracterizam a escola como uma organização que inclui as práticas e comportamentos, estilos de vida,
hábitos e ritos” (p.68). Ainda, segundo o autor, essa expressão compreende o que faz parte da história
cotidiana da escolaridade, ou seja, objetos materiais, considerando sua “função, uso, distribuição no
espaço, materialidade física, simbologia, introdução, transformação, desaparecimento... – e modos de
pensar, bem como significados e ideias compartilhados” (p.68). Em síntese, a cultura escolar, para Viñao,
pode ser compreendida como “toda a vida escolar: todos os fatos e ideias, mentes e corpos, objetos e
comportamentos, modos de pensar, dizer e fazer” (Viñao-Frago, 1995, p.68).
Destacamos, ainda, a visão do sociólogo Forquin (1993), que conceitua cultura escolar como “o
conjunto de certos conteúdos cognitivos e simbólicos, que selecionados, organizados, normatizados
e rotinizados, sob o efeito dos imperativos de didatização, constituem habitualmente o objeto de uma
transmissão deliberada no contexto das escolas” (Forquin, 1993, p.167).
De acordo com Abreu Junior (2012), na esfera da cultura escolar “circulam ações tanto dentro da
escola quanto no território de irradiação e de ressonância do que se passa na escola, mas que têm nessa
um ponto forte de influência” (p.170). Dessa maneira, as ações aí compreendidas “portam valores, saberes,
práticas e estratégias específicas das atividades sociais de natureza escolar em que professores e alunos, os
demais profissionais da escola, os responsáveis pelos alunos e a comunidade escolar realizam nesse âmbito”
(p.170). Além disso, a cultura material escolar se constitui em um campo favorável às investigações, visto que
possui produção conceitual diversificada e complexa, e por este motivo desperta o interesse para pesquisas
em diversas áreas, como história da educação, sociologia, antropologia, filosofia e psicologia da educação e
pedagogia (Abreu Jr., 2012, p.170).
Apesar de esses autores conceituarem, de formas diferentes, a cultura escolar, seus conceitos não se
opõem e, como observam Gatti Júnior e Pessanha (2005), todos acreditam que um dos componentes da cultura
escolar, o conhecimento, tem um papel determinante das necessidades e forças sociais, incluindo as escolares.
Como já mencionamos anteriormente, a história da cultura material escolar segue como um dos
domínios da Nova História Cultural. Ela tem sua origem, como o próprio nome sugere, na História Cultural
e essa, por sua vez, é herança do movimento dos Annales. Segundo Pesavento, a Nova História Cultural
proporciona uma nova maneira de estudar a cultura sem estar atrelada à História do Pensamento ou à
História Intelectual. Ultrapassa a forma de pensar a História da Cultura da maneira antiga, que priorizava
somente as grandes correntes de ideias e seus nomes mais expressivos: “Trata-se, antes de tudo, de pensar a
cultura como um conjunto de significados partilhados e construídos pelos homens para explicar o mundo”
(Pesavento, 2005, p.15).
Nos últimos anos, a expressão cultura material escolar passou a ser adotada em História da
Educação, como nos explica Souza (2007), devido aos estudos realizados sobre a cultura escolar que
surgem a partir da renovação instigada pela Nova História Cultural. E, também, em resposta ao aumento
A história da cartilha como objeto da cultura material escolar: um percurso metodológico • 191
da preocupação dos historiadores em preservar as fontes de pesquisa e de memória educacional, o que
então era relegado a segundo plano. Infelizmente, a perda, por armazenamento de forma indevida,
ou mesmo por descarte, de materiais educacionais ocorre em muitas instituições escolares, o que, em
muitos casos, dificulta as pesquisas.
Essa questão foi discutida por Peixoto (2001), em seu texto “Memória em Minas Gerais: entre o
descarte a preservação”. De acordo com a autora, as instituições escolares, em vários casos, preservam apenas
o próprio prédio e alguns móveis antigos e raramente documentos escritos. Assim, os diversos materiais
pedagógicos como, por exemplo, os livros escolares, diários de classe, planos de aula, cartazes de leitura,
atas de reunião e outros, por serem considerados como material já superado, ou não existem mais na escola,
ou estão em estado de preservação deplorável. “Esse material tem ficado em porões, mal-acondicionados,
sujeitos a todo tipo de intempéries, apresentando alto e rápido nível de deterioração” (p.195). Isso se deve,
principalmente, ao fato de as instituições escolares, de forma geral, não enxergarem esse tipo de material
como fontes históricas, não se preocupando, portanto, com sua preservação. Desta forma, a “falta de local
adequado nos estabelecimentos, a ausência de funcionários especializados para a organização de papéis
propiciam a conceituação de ‘papel velho’, seguido de descarte prematuro” (p.195). E, diante da vontade
de modernizar as escolas, ou até de abrir espaços para outros fins, acabam por se desfazer “de documentos
preciosos sobre seu passado” (Peixoto, apud. SBHE, 2001, p.195).
Souza defende ainda que, ao especificar um domínio próprio para a cultura material, ou seja, para
o universo de artefatos e contextos materiais relativos à educação escolarizada, ampliamos a expressão.
Por conseguinte, seu significado passa a contemplar não apenas as edificações, o mobiliário, os materiais
didáticos, os recursos audiovisuais, as chamadas novas tecnologias do ensino, como também a “intrínseca
relação que os objetos guardam com a produção de sentidos e com a problemática da produção e reprodução
social” (Souza, 2007, p.170).
Portanto, realizar pesquisas sobre os objetos que fazem parte da cultura material escolar vai muito
além da descrição de seu aspecto físico, uma vez que eles só têm algo a nos dizer se considerarmos as
práticas sociais que são realizadas com eles e a partir deles. Nesse sentido, Meneses (1998) afirma que,
ao considerarmos os atributos intrínsecos dos artefatos, esses se restringem somente às propriedades de
natureza físico-química, como forma geométrica, peso, cor, textura, dureza, etc. Entretanto, os atributos de
sentido não são imanentes: “o fetichismo consiste, precisamente, no deslocamento de sentidos das relações
sociais – onde eles são efetivamente gerados – para os artefatos, criando-se a ilusão de sua autonomia e
naturalidade” (p. 91). Isso posto, compreendemos que “tais atributos são historicamente selecionados e
mobilizados pelas sociedades e grupos nas operações de produção, circulação e consumo de sentido. Por
isso, seria vão buscar nos objetos o sentido dos objetos” (Meneses, 1998, p.91).
Todavia, Veiga (2000) nos alerta sobre o risco de concebermos o estudo da cultura material como mero
estudo dos objetos utilizados na escola, uma vez que a cultura material escolar não é formada unicamente
por objetos concretos, mas também compreende a relação existente entre os múltiplos significados dos
objetos e o contexto em que estão inseridos. Diante disso, a autora argumenta que
192 • Vanessa Lepick | Tânia Rezende Silvestre Cunha | Andréia Demétrio Jorge Moraes
os modos de uso dos objetos, sua escolha, a receptividade, ausências e presenças de utensílios, o preço, os
processos de aquisição e procedência, entre outros, são elementos que participaram ativamente da criação,
operação, manutenção e/ou desativação das experiências escolares (Veiga, 2000, p.4).
É nesse sentido que Souza (2007) nos remete à concepção de que os artefatos são produtos do
trabalho humano que possuem duas funções distintas: uma, que se refere à sua utilidade prática, e outra,
simbólica: “significa considerar que os artefatos são indicadores de relações sociais e como parte da cultura
material atuam como direcionadores e mediadores das atividades humanas, o que confere aos objetos um
significado humano” (Souza, 2007, p.169).
Portanto os objetos pertencentes à escola têm muito a nos dizer sobre a cultura material escolar, desde
que sejam considerados em seus aspectos físicos, sociais, pedagógicos, técnicos, econômicos, históricos,
enfim, os diversos aspectos culturais que os revestem de significados.
Conforme aponta Gatti Júnior (2004), o livro didático, e consequentemente a cartilha, pode ser, ao
mesmo tempo, considerado:
Material impresso, estruturado, destinado ou adequado a ser utilizado num processo de aprendizagem ou
formação; materiais caracterizados pela seriação dos conteúdos; mercadoria; depositário de conteúdos
educacionais; instrumento pedagógico; portador de um sistema de valores; suporte na formulação de uma
História Nacional; fontes de registros de experiências e de relações pedagógicas ligados a políticas pedagógicas
da época; e ainda como materiais reveladores de ângulo do cotidiano escolar e do fazer-se da cultura nacional
(Gatti Júnior, 2004, p.35)
A história da cartilha como objeto da cultura material escolar: um percurso metodológico • 193
alfabetização. Para muitas alfabetizadoras, sua presença é que garantiria a concretização do aprendizado
da leitura e da escrita. Conforme Amâncio (2002), “a cartilha é um recurso didático que foi incorporado ao
processo de ensino da leitura e da escrita como algo natural” (Amâncio, 2002, p.14).
Rocha e Somoza (2012) relatam que os manuais escolares e as cartilhas fazem parte dessa categoria,
são “objetos culturais que encarnam em sua materialidade uma multiplicidade de intenções, objetivos,
regulações” (p.28) e, ao empregá-los como fontes, permitem revelar “valores partilhados em uma determinada
época; sobre as representações sociais; e sobre as práticas escolares” (Rocha; Somoza, 2012, p.28).
A cartilha, como um objeto da cultura material escolar, será observada a partir de vários aspectos:
materialidade do objeto, produção intelectual do autor, material didático definidor de uma concepção
pedagógica e epistemológica da escola e do alfabetizador, objeto do aluno, reprodutor de valores cívicos e
sociais, produto editorial, além das funções e usos do objeto.
A materialidade do objeto se traduz na sua constituição e caracterização: a configuração gráfica,
tamanho, formato da capa, quantidade de páginas, tipo de impressão, imagens etc. Para Frade (2012), a
materialidade das cartilhas, ou livros de alfabetização, precisa ser considerada quando o tomamos como
objeto de análise. A própria qualidade do material pode indicar para que público a cartilha foi pensada,
produzida e destinada. Diante do exposto, “essa é uma dimensão que nos envia para outras materialidades,
pois não podemos esperar de livros dirigidos a uma educação pública as mesmas qualidades materiais de
livros luxuosos, dirigidos a classes abastadas ou à burguesia” (Frade, 2012, p.186). Ademais,
livro como objeto material não pode ser relacionado apenas a uma pedagogia para ensinar a ler; é preciso
interrogar sobre o modo como esse objeto aparece no horizonte de leitores que vão conviver com a cultura
gráfica e material de um período. Essa representação construída pela forma da encadernação, tipo de impressão
e papel e pela configuração gráfica tem um peso maior quando pensamos que esse pode ter sido, para muitos, o
primeiro material em forma de livro manuseado pelos leitores (Frade, 2012, p.187).
A cartilha, como objeto de produção intelectual do seu autor, foi criada a partir das suas concepções
epistemológicas sobre a educação, alfabetização e visão de mundo. Por conseguinte, será reveladora do
método de alfabetização que o autor propõe, através de conteúdo e atividades. Diante disso, Magalhães
entende que os manuais, sejam eles de autoria de um cientista, de um literato, de um professor, “informam
e enformam diferenciadamente a leitura, perspectivando visões de mundo, igualmente diferenciadas”
(Magalhães, 2006, p.8).
Entretanto, conforme argumenta Bittencourt (2004), o autor de livros escolares não é livre para
escrevê-lo somente seguindo suas crenças educacionais, sem considerar vários outros aspectos, como a
pressão do Estado, das editoras, da sociedade e do mercado:
O autor de uma obra didática deve ser, em princípio, um seguidor dos programas oficiais propostos pela política
educacional. Mas, além da vinculação aos ditames oficiais, o autor é dependente do editor, do fabricante do seu
194 • Vanessa Lepick | Tânia Rezende Silvestre Cunha | Andréia Demétrio Jorge Moraes
texto, dependência que ocorre em vários momentos, iniciando pela aceitação da obra para publicação e em
todo o processo de transformação do seu manuscrito em objeto de leitura, um material didático a ser posto no
mercado (Bittencourt, 2004, p.479).
Ainda sobre a questão das pressões que autores das cartilhas sofrem, Bittencout relata que os conflitos
políticos interferem até na opção pelo método de alfabetização a ser utilizado no livro, que não é definido,
então, somente por questões didáticas, como se constata em suas palavras:
A escolha do método analítico para a alfabetização, em oposição ao usual método sintético, representava a
posição dos grupos de educadores defensores de uma escola laica. Os seguidores do método analítico eram,
em sua maioria, republicanos, com o discurso voltado para uma democratização do saber escolar e contrários
ao espírito tradicional de educação, cujo ensino era calcado em métodos da Igreja (Bittencourt, 2004, p.484).
Além disso, ao ser analisada como um material didático utilizado na escola, a cartilha será reveladora
das concepções educacionais e pedagógicas dessa escola, bem como das relações sociais por ela estabelecidas.
Constitui, também, um suporte de conhecimentos escolares propostos pelos currículos educacionais.
Segundo Corrêa (2000), ao considerarmos o aspecto da circulação e do uso dos materiais escolares na escola,
é possível estabelecer “relações entre estes aspectos e as compreensões epistemológicas sobre a educação, a
aprendizagem escolar, a didática e metodologia de ensino, no sentido de entendê-las através das práticas
escolares, meios de seus desdobramentos concretos nessa instituição” (Corrêa, 2000, p.14).
Mortatti, em sua pesquisa sobre o uso das cartilhas de alfabetização nas escolas brasileiras e sua relação
com a cultura escolar, argumenta que, ao escolher os materiais, principalmente a cartilha, como o principal
instrumento para guiar o trabalho de alunos e professores, o que a escola tem oferecido aos estudantes é o
acesso a uma determinada cultura escolar, “que forma nossas crianças, no sentido da constituição de um
modo de pensar, sentir, querer e agir relacionado com a imagem idealizada de linguagem/língua e com
modelos equivocados de leitura, escrita e texto” (Mortatti, 2000, p.51).
Por outro lado, Corrêa (2000) discute que a escola não é a única responsável pela escolha dos
materiais educacionais utilizados no ensino. Tendo isso em vista, devemos considerar que “o livro escolar, ao
fazer parte da cultura da escola, não integra essa cultura arbitrariamente. É organizado, veiculado e utilizado
com uma intencionalidade, já que é portador de uma dimensão da cultura social mais ampla” (p.19). Por
conseguinte, a autora aponta que, ao analisar esse tipo de material, é possível perceber “a ‘mediação’ que a
escola realiza entre a sociedade e os sujeitos em formação, o que significa interpretar parte de sua função
social” (Corrêa, 2000, p.19).
Da mesma forma, a cartilha desvela as concepções epistemológicas, didáticas e de mundo do
alfabetizador, visto que ele fará um uso da cartilha de acordo com suas crenças e valores. A forma como
a utiliza em sala pode variar: pode ou não ter usado a cartilha proposta, pode tê-la utilizado como
suporte único, ou como complemento da sua prática, enfim, pode fazer usos diferenciados. Outra questão
A história da cartilha como objeto da cultura material escolar: um percurso metodológico • 195
importante diz respeito ao fato de que muitas cartilhas, assim como outros livros didáticos, foram e ainda
são produzidos por professores.
Como um objeto do aluno, a cartilha deve ser observada com um objeto único, visto que o significado
a ela conferido, o uso que dela é feito, suas marcas e lembranças são únicas:
Anotações, desenhos e até páginas ou figuras recortadas, quando não arrancadas, fornecem indícios de uso
e convidam a esse processo de estranhamento que transforma o objeto usual num bem de valor único e
insubstituível. Um manual escolar não é, simplesmente, uma reprodução em série de um conjunto do qual
só se identifica por um número de impressão. Ele é um objeto pessoal e singular, e não se confunde com os
exemplares do mesmo manual pertencentes aos outros colegas da classe (Abreu Jr., 2005, p.154).
Há de se considerar, ainda, que a cartilha é um objeto editorial e, como tal, tem suas marcas de produção
que perpassam pela questão das relações entre a escola e o mercado, pela veiculação de valores e formação
de condutas aceitas socialmente, e, principalmente, pela questão econômica. Conforme Corrêa (2000),
“a relação entre livro didático, comercialização e lucro exige uma maior abrangência. Justamente porque,
somadas às normas educativas e sociais, acham-se as de mercado. Elas incidem sobre critérios comerciais”
(p.22). Por conseguinte, considerando a forma como uma parte do conhecimento foi disseminada na escola,
percebemos que a forma como o livro escolar foi organizado diz menos a respeito de critérios pedagógicos
e mais sobre o que o torna vendável, como, por exemplo, títulos, ilustrações e tipo de papel (Corrêa, 2000).
Vários autores destacam a questão mercadológica como fator importante para a compreensão dos estudos
sobre livros didáticos, como é o caso de Bittencourt (1993), Gatti Júnior (1997), Munakata (2012) e outros. Para
Bittencourt, o livro didático é “um produto do mundo da edição que obedece à evolução das técnicas de fabricação
e comercialização pertencentes à lógica do mercado” (Bittencourt, 1998, p.71). Gatti Júnior destaca que
entre as determinações mais fortes está a questão econômica, pois, se o livro didático for tomado como uma
entre outras mercadorias produzidas na sociedade, não se pode deixar de considerá-lo como um bem vendável,
feito para gerar lucro, acumular capital financeiro etc. (Gatti Júnior, 2004, p.159).
seja pelo aparato burocrático em que mergulham no decurso dos processos de produção, legitimação, aprovação
e leccionação, seja pela sua centralidade no interior da cultura e da acção escolares, uma das marcas sócio-
culturais mais relevantes quando se analisam os manuais escolares é a explicitação de juízos sobre conteúdos,
lugares, figuras ou personagens. Subjazem aos manuais escolares lógicas de autoridade e de verdade que não são
comuns a outros livros ou produtos culturais, mesmo no interior da cultura escolar. O manual escolar, mais que
um meio de aculturação e de alteridade, é factor de afirmação e de dominação cultural (Magalhães, 2006, p.10).
196 • Vanessa Lepick | Tânia Rezende Silvestre Cunha | Andréia Demétrio Jorge Moraes
Como mencionado, a produção de impressos didáticos, como a cartilha e outros materiais escolares,
é vinculada ao poder instituído, atendendo, assim, ao que é estabelecido pelo Estado. A esse respeito,
Bittencourt (2008) sublinha que, com o intuito de transformar “um material didático no produto de maior
consumo da cultura escolar, os editores associaram-se ao Estado, engendrando atuações conjuntas em suas
formas de circulação” (Bittencourt, 2008b, p.78).
Entretanto, como elucida Choppin (1992), a relação do mercado de livro didático com o Estado
não é igual em todos os países. Segundo ele, os manuais, em países totalitários, “geralmente impostos pela
administração, repercutem o discurso oficial e, com isso, reforçam a ação das outras mídias (p.60)”. Mas,
em outros países, como por exemplo, na França, onde, “há mais de um século, a produção dos manuais está
assegurada por uma pluralidade de editoras e sua escolha livremente exercida pelos professores, esse risco é
bem menor” (Choppin apud Munakata, 2012, p.60).
Diante das várias abordagens que o estudo da cartilha permite, uma das questões importantes a ser
considerada é a das fontes de pesquisa que serão adotadas, bem como a metodologia de trabalho. Assim,
como nos apresenta Corrêa (2000), os livros escolares que guiaram o trabalho de muitos professores são
“testemunhos de conteúdos de naturezas diversas no que tange a valores morais, éticos, sociais, cívicos e
patrióticos” (p.11). No entanto, para desvendá-los se faz necessário considerar dois aspectos: primeiramente,
se são materiais que junto a outras fontes escritas, orais e iconográficas contribuem significativamente para a
história do pensamento e das práticas de educação; o segundo aspecto refere-se ao fato de que são portadores
de “conteúdos reveladores de representações e valores predominantes num certo período de uma sociedade
que, simultaneamente à historiografia da educação e da teoria da história, permitem rediscutir intenções e
projetos de construção e de formação social” (Corrêa, 2000, p.11).
No trabalho com a História da Cultura Material Escolar, Meneses (2003) esclarece que não é
possível considerar apenas as fontes materiais, visto que isso resultaria no empobrecimento da pesquisa,
pois restringir-se à história de artefatos ou de contextos materiais, como sua produção, circulação e uso,
não faz sentido. Para serem interessantes para a História, os objetos devem ser pensados no contexto de
uma História da sociedade. Assim, para bem compreender “como as sociedades, seu funcionamento e suas
transformações constituem problema da maior complexidade, é que se torna necessário estabelecer cortes
e enfoques para dar conta de aspectos relevantes, articulados ao todo social” (p.26).Desta forma, pode-
se utilizar a cultura material como uma das plataformas de observação. Entretanto, para que possamos
alcançar uma observação eficaz, se faz necessária a utilização de todas as fontes disponíveis, sejam materiais,
escritas, orais, hábitos corporais etc., “ainda que as materiais possam predominar. É, contudo, a dimensão
material da produção/reprodução social que está sendo estudada” (Meneses, 2003, p.26).
Para finalizar, ao trabalhar com estudos culturais, precisamos lembrar que esse tipo de investigação
não possui uma metodologia diferenciada, que possa se definir como própria. Com efeito, este tipo de
pesquisa faz uso de outros métodos. De acordo com Nelson, Treichler e Grossberg (1995), sua metodologia
pode ser denominada como bricolage, ou melhor, “sua escolha da prática é pragmática, estratégica e auto-
reflexiva. A escolha das práticas de pesquisa depende das questões que são feitas, e as questões dependem de
seu contexto” (Nelson, Treichler, Grossberg, 1995, p.09).
A história da cartilha como objeto da cultura material escolar: um percurso metodológico • 197
Desta forma, o que nos permite, de fato, estudar as cartilhas como artefato cultural é
compreendê-las como objeto multifacetado, que precisa ser analisado no contexto de determinada
época, determinada sociedade e que possui determinada cultura. Assim, temos condições de, por meio
deste objeto da cultura material escolar e de muitas outras fontes que compõem esse universo da escola,
construir uma história da alfabetização.
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200 • Vanessa Lepick | Tânia Rezende Silvestre Cunha | Andréia Demétrio Jorge Moraes
Sobre os autores
• 201
Cancionila Janzkovski Cardoso
Doutora em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Titular da Universidade Federal
de Mato Grosso, campus Rondonópolis. Pesquisadora vinculada aos grupos de pesquisa: “Alfabetização no
Brasil: o estado do conhecimento” (UFMG); “ALFALE – Alfabetização e Letramento Escolar” (UFMT);
“CEALE – Centro de Alfabetização, Leitura e Escrita” (UFMG).
Vanessa Lepick
Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia. Pesquisadora vinculada aos grupos de
pesquisa: “História da Alfabetização: Lugares de formação, Cartilhas e Modos de fazer” (UFU); “Grupo de
Pesquisa em História e Historiografia da Educação Brasileira” (UFU).