BEAUVOIR. A Velhice - A Realidade Incomoda
BEAUVOIR. A Velhice - A Realidade Incomoda
BEAUVOIR. A Velhice - A Realidade Incomoda
A VELHICE
I. A Realidade Incômoda
Tradução de
H e l o y sa de L im a D a n t a s
Capa de
M a r ia n n e P e r e t t i
f
Título do òriginal:
La Vieillesse
(Le point de vue de Vextériorité)
1970
Copyright by
Librairie Gallimard, Paris
Direitos exclusivos para a língua portuguêsa:
Difusão Européia do Livro, São Paulo
INTRODUÇÃO
\
Ihice ê coisa que não existe. Existem apenas pessoas menos
jovens que outras, e pronto! A velhice surge aos olhos da
sociedade corno uma espécie de se credo vergonhoso do qual,
é indecente falar. Em todos os campos existe uma vasta
dáteratura versando sôhre a mulher, a crianca. o adolescente:
são extremamente raras as alusões h velhice^ íqjul d.os tra
balhos especializados. Üm autor de desenhos para histórias
'em quadrinhos foi obrigado a refazer uma série inteirinha
pelo fato de haver incluído um casal de avós entre os perso
nagens: “ Elimine os velhos!” foi a ordem que lhe deram ( 1).
A exclamação que ouço com maior frequência sempre que
menciono o fato de estar elaborando um ensaio sôbre a
velhice é a seguinte: “Que id éia!... Você não é nenhuma
velha!. . . Mas que assunto triste !...”
Ê exatamente esta a razão pela qual estou escrevendo
este livro: quebrar a conspiração de silêncio. Como observa
Marcuse, a sociedade de consumo substituiu uma consciên
cia infeliz por uma consciência feliz e reprova todo e qual
quer sentimento,de culpa. Ê necessário turvar semelhante
tranquilidade que, no respeitante às pessoas idosas, deixa de
ser apenas culpada para se tornar criminosa. Acobertada
pelos mitos da expansão e da abundância, a sociedade trata
os velhos como párias. Na França, onde a proporção de
velhos é a mais elevada do mundo — 12% da população já
ultrapassou os 65 anos de idade — êles se vêem condenados
à miséria, à solidão, às enfermidades e ao desespêro. Nos
Estados Unidos, êles não são mais afortunados. A fim de
conciliar semelhante barbárie com a moral humanista por
ela professada, a classe dominante toma a cômoda decisão
de não os considerar homens; sua voz, se fôsse ouvida,
forçá-la-ia a reconhecer que se trata de uma voz humana.
Obrigarei meus leitores a escutá-la. Descreverei a situação
que lhes é imposta e sua maneira de vivê-la; contarei aquilo
que — desfigurado pelas mentiras, mitos e chavões da cul
tura burguesa — realmente se passa em sua cabeça e em
seu coração.
■6
Ê, aliás, profundamente dúplice a atitude da sociedade
com relação ao velho. A velhice, em geral, não é por ela
encarada como uma classe de idade hem delimitada. A crise
da puberdade permite traçar entre o adolescente e o adulto
uma linha divisória que só passa a ser arbitrária dentro de
limites muitos estreitos: os jovens são admitidos à sociedade
dos homens logo que atingem 18 ou 21 anos. Esta promo
ção é quase sempre cercada de “rituais de transição” . Ê mal
definido o momento em que começa a velhice, variando de
acordo com as épocas e os lugares. Em parte alguma se
encontram “rituais de transição” que estabeleçam um nôvo
estatuto ( 2). Na política, o indivíduo conserva durante tôda
a existência os mesmos deveres e os mesmos direitos. O Có
digo Civil não estabelece distinção alguma entre um cente
nário e um quadragenário. Os juristas consideram tão in
tegral a responsabilidade penal de homens idosos quanto a
de jovens, salvo em casos patológicos ( 3). Na prática, êles
não constituem uma categoria à parte, coisa que aliás, não
desejariam; existem livros, publicações, espetáculos, emissões
de rádio e televisão destinados a crianças e adolescentes:
para os velhos, nada (4). Em todos êsses planos, êles se vêem
assimilados aos adultos mais jovens. No entanto, quando
se trata de seu estatuto econômico dir-se-ia que os conside
ramos como pertencentes a uma espécie estranha: não expe
rimentam nem as mesmas necessidades nem os mesmos sen
timentos que os outros homens já que nos é suficiente con
ceder-lhes uma mísera esmola para nos considerarmos deso
brigados a seu respeito. Economistas e legisladores endossam
tão cômoda ilusão quando lamentam o pêso que, para os
ativos, representam os inativos: como se os primeiros não
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a velhice. Quando interpelado a respeito de seu futuro,
os jovens, e sobretudo as moças, interrompem a vida aos
60 anos, no máximo. Afirmam algumas: “Não chegarei até
lá, morrerei antes.” E há as que chegam a dizer: “Matar-me-
-ei antes.” O adulto se comporta como se não devesse nunca
envelhecer. O operário, muitas vêzes, sente-se estupefato
quando soa a hora da aposentadoria, cuja data estava fixada
de antemão, era por êle conhecida e para ela devería estar
preparado. Na realidade — a não ser quando verdadeira
mente politizado — êste conhecimento lhe tinha permanecido
estranho.
Chegada a hora, e mesmo quando dela nos vamos apro
ximando, em geral preferímos a velhice à morte. A distância,
entretanto, é a esta última que consideramos com maior
lucidez. Ela faz parte de nossas possibilidades imediatas,
ameaça-nos em todas as idades; sucede até lhe escaparmos
por um triz, receamo-la muitas vêzes. Ao passo que ninguém
envelhece de repente: quando jovens ou em plena fôrça
da idade, não pensamos, como Buda, que em nós já habita
nossa futura velhice: esta se acha apartada de nós por um
lapso de tempo tão prolongado que se confunde a nosso ver
com a eternidade; êsse porvir tão longínquo se nos afigura
irreal. Além disso, os mortos não são coisa alguma; podemos
experimentar uma sensação de vertigem metafísica diante
dêsse nada mas êle, de certa forma, nos tranqüiliza, não
suscita nenhum problema. “ Eu não mais existirei” : minha
identidade se mantém neste desaparecimento (5). Imagi-
nar-me velha aos 20 ou aos 40 anos é o mesmo que imaginar
que sou outra. Em tôda metamorfose existe um elemento
assustador. Quando criança, sentia-me estupefata e até mes
mo angustiada sempre que me dava conta de que havería
de me transformar, um dia, em adulta. Entretanto, o desejo
de permanecer idêntico a si mesmo é geralmente compen
sado, na juventude, pelas consideráveis vantagens do esta
tuto do adulto. Ao passo que a velhice surge como uma
desgraça: mesmo entre os indivíduos considerados bem con
servados, a decadência física por ela acarretada patenteia-se
(5) Com ainda maior razão, esta identidade é garantida àqueles que
acreditam possuir uma alma imortal.
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à vista de todos pois é na espécie humana que são mais
espetaculares as alterações provocadas pelos anos. Os ani
mais emagrecem, debilitam-se, não se metamorfoseiam. Mas
nós, sim. Nosso coração se confrange quando vislumbramos
ao lado de uma bela jovem o seu reflexo no espelho dos
anos vindouros: sua mãe. Os índios Nambiquara, conta Lévi-
-Strauss, só dispõem de uma palavra para designar “ jovem
e belo” e uma para “velho e feio” . Permanecemos incrédulos
diante da imagem que, para nosso futuro, nos propõem as
pessoas idosas; dentro de nós, uma voz fica a murmurar de
maneira absurda que aquilo não acontecerá conosco: quando
acontecer, já não seremos mais nós mesmos. Antes de desa
bar sôbre nós, a velhice é coisa que só diz respeito aos outros.
Pode-se, assim, compreender que a sociedade consiga evitar
que enxerguemos semelhantes nossos nos velhos.
Deixemos de trapaças: o sentido de nossa vida está em
pauta no futuro que nos aguarda. Não poderemos saber
quem somos se ignorarmos quem seremos: devemo-nos reco
nhecer na pessoa dêste velho ou daquela velha. Não o pode
remos evitar se quisermos assumir nossa condição humana
em sua totalidade. Isto nos levará a deixarmos de aceitar
com indiferença o infortiínio da idade final; sentir-nos-emos
envolvidos, como de fato o somos. Êste desvalimento denun
cia de maneira eloqüente o sistema de exploração em que
vivemos. O velho incapaz de prover a suas necessidades
representa sempre uma carga. Entretanto, nas coletividades
onde predomina uma certa igualdade — no seio de uma
comunidade rural, entre alguns povos primitivos —, embora
a contragosto, o homem maduro se dá conta de que amanhã
sua condição será a mesma que êle hoje atribui ao velho.
É êste o sentido do conto de Grimm, cuja versão é conhecida
em tôdas as regiões rurais. Um camponês obriga o velho pai
a comer numa gamela e apartado da família; surpreende
um dia seu próprio filho entretido em juntar pedaços de
madeira: “isto é para você, quando ficar velho” , explica o
menino. O avô, depois disso, recuperou o lugar à mesa.
Os membros ativos da coletividade inventam situações de
acomodação entre seu interesse imediato e o interêsse a
longo prazo. Necessidades urgentes levam alguns primiti
vos a matar seus velhos pais, cientes de que mais tarde
10
;poderão sofrer o mesmo destino. Nos casos menos extremos,
a previdência e os sentimentos filiais amenizam o egoísmo.
O interêsse a longo prazo já não funciona no mundo capita
lista: os privilegiados, que decidem o destino das massas,
não receiam ter de compartilhá-lo. E os sentimentos huma
nitários, a despeito das tagarelices hipócritas, não intervém
em coisa alguma. A economia baseia-se no lucro, é pràtica-
mente a êle que está subordinada tôda a civilização: o mate
rial humano só desperta interêsse na medida em que pode
ser produtivo. Ê, em seguida, rejeitado. “ Num mundo em
processo de mutação, no qual as máquinas funcionam durante
períodos muito curtos, os homens não devem prestar serviços
durante um tempo longo demais. Tudo que ultrapassa os
55 anos deve ser pôsto de lado, como refugo” , afirmou recerí-
temente ( é) o Doutor Leach, antropólogo da Cambriclge,
durante um congresso.
A palavra “refugo” exprime claramente o que êle pre
tende dizer. Afirmam-nos que a aposentadoria constitui a
época da liberdade e dos lazeres; poetas têm enaltecido as
“delícias do porto” (67). Mentiras deslavadas. A sociedade
impõe à imensa maioria dos velhos um padrão de vida tão
miserável que a expressão “velho e pobre” quase chega a
ser pleonasmo; e vice-versa, a maior parte dos indigentes
é constituída de velhos. Os lazeres não oferecem possibili
dades novas ao aposentado: na hora em que se vê liberado
de constrangimentos, roubam-se ao indivíduo os meios de
utilizar sua liberdade. Condenam-no a vegetar na solidão e
no tédio, corno um legítimo refugo. O fato de ser um homem
reduzido à condição de “sobra”, de “resto” , durante os últi
mos quinze ou vinte anos de sua existência, comprova a
falência de nossa civilização: semelhante evidência nos deixa
ria interditos se considerássemos os velhos como sêres huma
nos, tendo às suas costas uma existência humana, e não
como cadáveres ambulantes. Aqueles que denunciam êste
nosso sistema mutilador deveríam chamar a atenção para
semelhante escândalo. Só se consegue abalar uma socie
dade através de uma concentração de esforços na questão
11
do destino dos menos favorecidos. Para demolir o sistema
de castas, Gandhi atacou a condição dos párias; para des
truir a família feudal, a China comunista emancipou a mu
lher. Exigir que os homens permaneçam homens quando
avançados em anos implicaria uma transformação radical.
Ê impossível chegar a este resultado através de algumas
reformas restritas que deixem o sistema intato: é a explora
ção dos trabalhadores, a atomização da sociedade, a miséria
de uma cultura apanágio de um mandarinato que levam a
essas velhices desumanizadas. Isto comprova a necessidade
de tudo rever, desde o princípio. E é por êste motivo que a
questão é tão cuidadosamente silenciada; é por isto que se faz
necessário quebrar êste silêncio; peço a meus leitores que
me ajudem a fazê-lo.
PREÂMBULO
13
cada um deles reage sobre todos os outros e é por êles afe
tado. É no movimento indefinido desta circularidade que
temos de apreendê-la.
É por este motivo que um estudo sôbre a velhice deve
procurar ser exaustivo. Sendo meu objetivo essencial focalizar
o que é hoje, no seio de nossa sociedade, o destino das pes
soas idosas, pode parecer estranho que eu dedique tantas
páginas à condição que lhes é imposta nas assim chamadas
comunidades primitivas, assim como àquela em que se viram
inseridas nas diferentes fases da história humana. Todavia,
muito embora seja a velhice, na sua qualidade de destino bio
lógico, uma realidade trans-histórica, ainda assim subsiste o
fato de que êste destino é vivido de maneira variável, segun
do o contexto social. Inversamente, o sentido ou o contra-
-senso que reveste a velhice no seio de uma sociedade,
coloca tôda esta sociedade em questão, visto que, através
dela, se desvenda o sentido ou o contra-senso de tôda a
vida anterior. A fim de poder julgar a nossa, torna-se neces
sária comparar as soluções por ela escolhidas com as que
foram adotadas *p o r outras coletividades, através do tempo e
do espaço. Esta comparação tornará possível apreender
os aspectos inelutáveis da condição do velho, descobrir em
que medida e por que preço seria possível paliar às difi
culdades e qual é, por conseguinte, a parte de responsabili
dade que cabe ao sistema em que vivemos, com relação
aos velhos.
Tôda situação humana pode ser encarada em exteriori-
dade — tal como se apresenta nos demais — ou em interio-
ridade, na proporção em que o sujeito a assume, ultrapas
sando-a. Para os demais, o velho constitui objeto de um
conhecimento; para si mesmo êle possui de seu próprio es
tado, uma experiência vivida. Adotarei o primeiro ponto de
vista, na parte inicial dêste livro. Examinarei a contribuição
que a biologia, a antropologia, a história, a sociologia con
temporânea trazem ao estudo da velhice. Na segunda parte,
procurarei descrever a maneira pela qual o homem idoso
interioriza seu relacionamento com o próprio corpo, com
o tempo, com os demais. Nenhuma dessas duas pesquisas
tornará possível definir a velhice; verificaremos, pelo contrá
rio que ela assume múltiplos aspectos, irredutíveis uns aos
outros. No decorrer da história, tal como hoje em dia, a luta
de classes determina a maneira pela qual um indivíduo se
torna presa da velhice; um abismo separa o velho escravo
e o velho eupátrida, um antigo operário que recebe uma
pensão miserável e um Onassis. A diferenciação das velhices
individuais ainda tem outras causas: saúde, família etc. São,
entretanto, duas categorias de velhos, uma extremamente
ampla e outra restrita à pequena minoria, e criadas pela
oposição de exploradores e de explorados. Qualquer alega
ção que pretenda referir-se à velhice em geral deve ser
recusada, visto constituir uma tentativa no sentido de mas
carar êste hiato.
15
O problema é simples quando, no homem, só se consi
dera o organismo. Todo organismo tende a subsistir. Para
isto, é-lhe necessário restabelecer o equilíbrio todas as vezes
que êste se vê comprometido, defender-se contra as agres
sões externas, apreender o mundo da maneira mais ampla e
mais firme. Em semelhante perspectiva, as palavras: favo
ráveis, indiferentes, prejudiciais, têm um significado muito
claro. Do nascimento até a idade de 18 a 20 anos, o desen
volvimento do organismo tende a aumentar suas probabili
dades de sobrevivência: fortifica-se, torna-se mais resistente,
crescem seus recursos, multiplicam-se suas possibilidades. O
conjunto das capacidades físicas do indivíduo se acha no ápice
da expansão, por volta dos 20 anos. Assim, considerada em
sua totalidade, a mutação do organismo é benéfica, durante
os primeiros vinte anos.
Algumas alterações não acarretam nem melhoria nem
diminuição da vida orgânica, são indiferentes: assim, a invo-
lução do timo que ocorre logo na primeira infância; a dos
neurônios cerebrais cujo número é imensamente superior às
necessidades,do indivíduo.
Muito cedo, produzem-se alterações desvantajosas. A
amplitude da margem de acomodação se reduz depois dos
10 anos. Já antes da adolescência baixa o limite da altura
de sons audíveis. A partir dos 12 anos, vai-se enfraquecendo
uma certa forma de memória bruta. Segundo Kinsey, a
potência sexual do homem decresce depois dos 16 anos.
Estas perdas, bastante limitadas, não impedem o desenvolvi
mento infantil e juvenil de prosseguir em sua linha as
cendente.
Depois dos 20 e sobretudo a partir dos 30 anos, tem
início uma involução dos órgãos. Dever-se-á falar em enve
lhecimento desde êsse momento? O corpo mesmo, no homem,
não é produto exclusivo da natureza. Perdas, alterações,
desfalecimentos, podem ser compensados por montagens,
automatismos, um conhecimento prático e intelectual. Não
se falará em envelhecimento enquanto as deficiências per
manecerem esporádicas e forem facilmente remediadas. Quan
do elas adquirem importância e passam a ser irremediáveis,
e o corpo se toma frágil e mais ou menos impotente, pode-se
afirmar, sem equívoco, que está declinando.
16
A questão se torna muito mais complexa quando consi
deramos o indivíduo inteiro. Começa-se a declinar depois
de se haver atingido um apogeu: onde situá-lo? Apesar de
sua interdependência, o físico e o moral não seguem uma
evolução rigorosamente paralela. O indivíduo pode sofrer
perdas morais consideráveis antes que tenha início sua degra
dação física; pode, ao contrário, suceder que no decurso
desta decadência êle consiga importantes ganhos intelectuais.
A qual dêles atribuiremos maior valor? Cada qual dará uma
resposta diferente, segundo valorize mais as aptidões corpo
rais ou as faculdades mentais, ou então um feliz equilíbrio
entre elas. É de acordo com opções desta ordem que os
indivíduos e as sociedades estabelecem uma hierarquia das
idades: não existe nenhuma universalmente aceita.
A criança vence o adulto pela riqueza de suas possibili
dades, pela imensidão de suas aquisições, pelo frescor de suas
sensações: será isto suficiente para considerar que se degrada
quuando avança em anos? Parece ter sido esta, até certo
ponto, a opinião de Freud: “Pense no contraste entristecedor
que existe entre a inteligência brilhante de uma criança sadia
e a fraqueza intelectual de um adulto médio” , escreveu êle.
É a idéia desenvolvida com freqüência por Montherland:
“Quando se extingue o gênio da infância, é para sempre.
Sempre se afirma que é de um verme que sai a borboleta;
com o homem, é a borboleta que se torna verme” , diz Fer-
rante em La Reine Morte.
Ambos tinham razões pessoais — que muito divergiam
de um para o outro — para valorizar a infância. Sua opi
nião não é geralmente compartilhada. A própria palavra
maturidade é um indício de que habitualmente se concede
ao homem feito uma proeminência sôbre a criança e sobre o
jovem: acumulou conhecimentos, experiência, capacidades.
Sábios, filósofos, escritores colocam em geral o apogeu do
indivíduo no meio da existência (1). Alguns consideram a
í
própria velhice como a época privilegiada: traz, julgam eles,
experiência, sabedoria e paz. A vida humana não conhecería
declínio.
Definir o que representa para o homem progresso ou
regressão, implica que nos estamos referindo a determinado
fim: porém nenhum é dado a priori, no absoluto. Cada so
ciedade cria seus próprios valores: é no contexto social que
a palavra declínio pode adquirir um sentido preciso.
JE stê discussão confirma o que eu havia afirmado antes:
/ã velhice só poderia ser compreendida em sua totalidade^
Vnão representa somente um fato biológico, é também um
fato cultural.
CAPÍTULO I
VELHICE E BIOLOGIA
19
mas aconselha-os também, a não interromperem suas ativi
dades.
Foram medíocres os sucessores de Hipócrates. Aristóteles
impôs seus pontos de vista, baseados na especulação e não
na experiência: a seu ver, a condição da vida era o calor in
terno e comparava a senectude a um resfriamento. Roma
herdou as noções pelas quais os gregos haviam explicado os
fenômenos orgânicos: temperamentos, humores, crase, pneu-
ma. Os conhecimentos médicos em Roma, no tempo de
Marco Aurélio, não estavam mais adiantados que os da
Grécia de Péricles.
Foi no século II que Galeno estabeleceu uma síntese
geral da medicina antiga. Considerou a velhice como um
intermediário entre a doença e a saúde. Ela não constituiría
exatamente um estudo patológico, contudo, tôdas as funções
fisiológicas do velho se veriam reduzidas e enfraquecidas.
Galeno explica êste fenômeno conciliando a teoria dos humo
res e a do calor interno. Êste é alimentado por aqueles: ex
tingue-se quando o corpo se desidrata e os humores se eva
poram. Em suâ Gerocomica êle oferece conselhos de higiene
que foram respeitados na Europa até o século XIX. Admite
que, segundo o princípio contraria contrariis, é preciso aque
cer e umedecer o corpo do velho: deve êste tomar banhos
quentes, beber vinho e manter-se ativo. Prodigaliza-lhe con
selhos pormenorizados sôbre dietética. Dá como exemplo
o velho médico Antíoco que, aos 80 anos, ainda visitava seus
pacientes e participava de assembléias políticas, assim como
o velho gramático Telefos que conservou uma excelente
saúde até quase os 100 anos.
Durante séculos, a medicina limitou-se a parafrasear sua
obra. Autoritário, certo de sua infalibilidade, êle triunfou
numa hora em que se achava mais prudente crer que dis
cutir. Viveu, sobretudo, numa época e num ambiente em
que o monoteísmo vindo do Oriente afirmava-se contra o pa
ganismo. Suas teorias são impregnadas de religiosidade.
Acredita na existência de um Deus único. Considera o corpo
instrumento material da alma. Os Padres da Igreja adota
ram seus pontos de vista, assim como os judeus e os árabes
do Islão. Isto explica porque foi quase nulo o desenvolvi
mento da medicina durante tôda a Idade Média: a velhice,
por conseguinte, permaneceu pouco conhecida. Entretanto,
20
um discípulo de Galeno — Avicena — fêz no século XI inte
ressantes observações sôbre as doenças crônicas e os distúr
bios mentais dos velhos.
Os escolásticos se aferraram à comparação da vida com
a chama alimentada pelo óleo de uma lâmpada: é uma ima
gem mística, tendo sido a alma freqüentemente representada
por uma chama, durante a Idade Média. No plano profano,
a preocupação primordial dos médicos era prevenir, mais do
que curar. A Escola de Salerno, onde se originou e se desen
volveu a medicina ocidental, empenhou-se em elaborar “re
gimes de saúde e longevidade” , tendo-se desenvolvido abun
dante literatura sôbre este tema. No século XIII, Roger
Bacon, que considerava a velhice uma doença (*), redigiu
para Clemente VI uma higiene da velhice na qual atribuía
uma parte bastante significativa à alquimia. Foi, entretanto,
o primeiro a quem ocorreu a idéia de corrigir a visão por
meio de vidros de aumento — (fabricados na Itália logo
após sua morte, em 1300; o uso de dentes postiços já era
conhecido entre os etruscos; durante a Idade Média iam-se
recolher os dentes dos cadáveres de jovens e de animais).
Até o fim do século XV, todos os trabalhos sôbre a velhice
eram tratados de higiene. A Escola de Montpellier também
redigiu “regimes de saúde” . No fim do século XV produziu-se
na Itália, paralelamente ao das artes, um renascimento da
ciência. O médico Zerbi escreveu uma Gerontocomia, que
foi a primeira monografia consagrada à patologia da velhice;
nada inventou, porém.
A anatomia foi o ramo da medicina em que se realizou
imenso progresso, no início da Renascença. Durante mil
anos fôra proibida a dissecação do corpo humano. Esta se
tornou possível, de maneira mais ou menos aberta, em fins
do século XV. É notável, embora não surpreendente, que
o criador da anatomia moderna tenha sido Leonardo da
Vinci; como pintor, êle se havia interessado de maneira
apaixonada pela representação do corpo humano e desejou
conhecê-lo com exatidão. “ Dissequei mais de dez corpos
humanos para deles obter um conhecimento pleno e verda
deiro”, escreveu êle. Na realidade, chegou a dissecar mais
21
de trinta cadáveres, até o fim de sua vida; e entre eles,
alguns corpos de velhos. Desenhou muitos rostos e corpos
de anciãos; também representou seus intestinos e artérias,
de acordo, com suas próprias observações. (Deixou, além
disso, anotações sôbre as alterações anatômicas que obser
vou; êsses textos, porém, só foram conhecidos muito mais
tarde.)
Continuam os progressos da anatomia com Vesálio,
seu grande mestre. As outras disciplinas, entretanto, per
manecem estagnadas. A ciência continua imbuída de me
tafísica. O humanismo tenta lutar contra a tradição mas não
consegue dela se libertar. No século XVI, Paracelso re
dige suas obras em alemão e não em Latim, por uma ques
tão de modernismo. Tem algumas intuições novas e extraor
dinárias porém mergulhadas em teorias complicadas, segun
do as quais o homem é um “composto químico” e a velhice,
conseqüência de uma autointoxicação.
Os trabalhos consagrados até então à velhice cuidavam
apenas da higiene preventiva; sôbre o diagnóstico e a tera
pêutica, enconfravam-se somente algumas indicações espar
sas. David Pomis, médico veneziano, foi o primeiro a tratar
dessas questões com método e clareza. Algumas de suas
descrições de moléstias senis são muito acuradas e exaus
tivas, sobretudo a da hipertensão arterial.
No século XVII, já se encontravam numerosos traba
lhos sôbre a velhice, todos eles, entretanto, desprovidos de
interesse. Galeno ainda conta com discípulos no século XVIII,
entre os quais, Gerard Van Swieten. Considera êste a
velhice como uma espécie de moléstia incurável; ridiculariza
os remédios inspirados pela alquimia ou pela astrologia, des
creve com exatidão algumas alterações anatômicas por ela
acarretadas. Entretanto, a ascensão da burguesia, o racio-
nalismo, o mecanicismo aos quais ela se prende dão ensejo
à criação de uma nova escola: a iatrofísica. Borelli, Baglivi
introduzem na medicina as concepções de La Mettrie: o
corpo é uma máquina, um conjunto de cilindros, de fusos,
de rodas. O pulmão é um fole. Voltam, assim, às teorias
mecanicistas da Antiguidade (2) sôbre a velhice: o orga
22
nismo se degrada, da mesma forma como se desgasta uma
máquina, após longo uso ( 3). Esta tese encontrou defensores
até o século XIX, época aliás, em que conheceu maior
voga. A noção de “usura” , no entanto, sempre permaneceu
bastante vaga. Por outro lado, Stahl inaugura a teoria
conhecida sob a designação de vitalismo: existiría no ho
mem um princípio vital, uma entidade, cujo enfraqueci
mento acarretaria a velhice, e seu desaparecimento, a morte.
Havia inúmeras e estéreis disputas entre os defensores
da tradição e os partidários dos sistemas modernos. A me
dicina enfrentava graves dificuldades teóricas. Não mais
a satisfazia a velha patologia dos humores e ainda não havia
descoberto novas bases. Achava-se num beco sem saída.
Continuava, entretanto, a progredir empiricamente. Tinharn-
-se multiplicado as autópsias, a anatomia progredira sensi
velmente. O estudo da velhice com isto se beneficiou. Na
Rússia, Fischer, diretor do Serviço de Saúde, rompeu com
Galeno e descreveu, de maneira sistemática, a involução
senil dos órgãos. Apesar das deficiências, seu livro marcou
época. A portentosa obra do italiano Morgagni, publicada
em 1761, teve também grande importância: estabelecia,
pela primeira vez, uma correlação entre os sintomas clínicos
e as observações feitas no decorrer das autópsias. Ã velhice
consagrava-se toda uma seção.
Sobre este assunto, apareceram no último decênio três
livros onde se viam antecipadas algumas descobertas dos
séculos XIX e XX. O médico americano Rush, publicou
alentado estudo fisiológico e clínico, baseado em suas obser
vações. O alemão Hufeland também reuniu num tratado
numerosas observações interessantes e gozou de grande po
pularidade. Era vitalista. Achava que todo organismo é
dotado de certa energia vital que se esgota com o tempo.
O trabalho mais importante, porém, foi o de Seiler, publi
cado em 1799: era inteiramente consagrado à anatomia
dos velhos e apoiava-se em autópsias. É desprovido de ori
ginalidade mas constituiu durante dezenas de anos um apre-
23
ciadíssimo instrumento de trabalho, tendo sido utilizado
até meados do século XIX.
No início do século XIX, os médicos de Montpellier
continuavam adeptos do vitalismo ( 4). Entretanto, o pro
gresso da fisiologia e de tôdas as ciências experimentais
começava a beneficiar a medicina. Os estudos sôbre a
velhice tornaram-se precisos e sistemáticos. Rostan estudou,
em 1817, a asma dos velhos, descobrindo sua relação com
um distúrbio cerebral. Em 1840, Prus escreveu o primeiro
tratado sistemático sôbre as enfermidades da velhice.
Foi a partir de meados do século XIX que a geriatria
— ainda não designada desta maneira — começou a real
mente existir. Viu-se favorecida na França pela criação de
vastos asilos onde se achavam reunidos numerosos velhos.
A Salpêtrière era o maior asilo da Europa; abrigava oito
mil doentes, dos quais dois ou três mil eram pessoas de
idade, cujo número também era elevado em Bicêtre. Tor
nou-se, portanto, fácil coligir fatos clínicos a êles referentes.
A Salpêtrière pode ser considerada o núcleo da primeira
instituição geriátrica. Charcot ali pronunciou célebres com
ferências sôbre a velhice, as quais, publicadas em 1886,
alcançaram enorme repercussão. Surgiram então muitos tra
tados de higiene, estereotipados e sem interêsse. Mas a
medicina preventiva, de modo geral, cedeu lugar à tera
pêutica: houve, daí por diante, a preocupação de curar os
velhos. Tanto mais que êstes foram se tornando cada vez
mais numerosos, primeiro na França e, depois, noutros
países: os médicos viram aumentar entre seus pacientes
o número de enfermidades degenerativas que se desenvol
vem em terreno senil. Já antes do livro de Charcot tinham
aparecido, em 1847, um trabalho de Pennock, em 1852, um
tratado de Reveillé-Parise em que eram estudados a fre-
qüência do pulso e o ritmo da respiração nas pessoas idosas.
Entre 1857 e 1860, Geist publicou uma boa síntese da lite
ratura geriátrica divulgada na Alemanha, na França e na
Inglaterra.
25
livro sobre o assunto; foi-lhe difícil arranjar um editor pois
a matéria tratada não era considerada interessante.
Desenvolveu-se recentemente, ao lado da geriatria, uma
ciência hoje denominada gerontologia. que não estada a
patologia da velhice mas sim o próprio processo do enve
lhecimento. No início do século, as pesquisas biológicas
sôbre a velhice não eram mais que subprodutos de outros
trabalhos: ao se examinar a vida das plantas e dos animais,
era-se levado, subsidiàriamente, a um interesse pelas alte
rações por êles sofridas com a idade. Enquanto a juventude
e a adolescência constituíam o objeto de inúmeros trabalhos
especializados, a velhice não era estudada de per si, devido,
em grande parte, aos tabus que já apontei ( 5). Tratava-se
de assunto desagradável. Entre 1914 e 1930, a única coisa
importante que suscitou foram os trabalhos de Carrel, cujas
concepções foram amplamente difundidas na França; vol
tava êle à idéia de que a velhice é uma autointoxicação
provocada pelos produtos do metabolismo das células.
A situação modificou-se depois. Nos Estados Unidos,
o número de peSsoas idosas havia dobrado entre 1900 e 1930,
e tornou a dobrar entre 1930 e 1950; a industrialização da
sociedade acarretou a concentração de grande número desses
velhos nas cidades, fato este que redundou em graves pro
blemas: realizaram-se numerosos inquéritos para buscar-lhes
alguma solução. Êsses inquéritos atraíram a atenção para
os velhos e começou-se a desejar conhecê-los. A partir de
1930, desenvolveram-se nos campos da biologia, da psicolo
gia, da sociologia, pesquisas que conheceram evolução se
melhante em outros países. Em 1938 realizou-se em Kiev
uma conferência nacional sôbre a senescência. No mesmo
ano, publicou-se na França a grande obra de síntese de
Bastai e Pogliatti, tendo aparecido na Alemanha o primeiro
periódico especializado. Em 1939 um grupo de sábios in
gleses a de professôres de medicina resolveu fundar um
clube internacional de pesquisas sôbre a velhice. Foi pu
blicado nos Estados Unidos o monumental livro de Cowdry,
Problems of ageing.
2fí
Durante a guerra, o ritmo dos trabalhos decresceu, ten
do sido retomado logo que ela terminou. Fundou-se uma
sociedade de gerontologia nos Estados Unidos em 1945 e,
em 1946, foi ali editado o segundo periódico consagrado à
velhice. Essas publicações multiplicaram-se em todos os
países. Na Inglaterra, Lord Nuffield criou a Nuffield Foun
dation que dispõe de créditos consideráveis e estuda a geria
tria, assim como a condição dos velhos na Grã-Bretanha. Na
França, estimulados por Léon Binet, os estudos sobre a
velhice tomaram nôvo alento. Criou-se em Liège, em 1950,
uma associação internacional de gerontologia que ali realizou
congressos naquele mesmo ano e, depois, em Saint-Louis,
do Misúri, em 1951, em Londres em 1954 e muitos outros
a seguir. Fundaram-se sociedades de estudos em muitos
países. Em 1954, um índice bibliográfico sobre a gerontolo
gia organizado nos Estados Unidos indicava 19 000 referên
cias. Segundo o Doutor Destrem, atualmente seria preciso
duplicar esse número. Quanto à França, a Sociedade Fran
cesa de Gerontologia foi fundada em 1958, tendo sido cria
do no mesmo ano o Centro de Estudos e Pesquisas Geron-
tológicas, dirigido pelo Professor Bourlière. Importantes
tratados foram editados na França: o de Grailly e Destrem
em 1953, o de Binet e Bourlière em 1955. A Revue fran-
çaise de Gérontologie foi fundada em 1954. Finalmente,
constitui-se em Paris uma comissão especial de higiene so
cial para enfrentar os problemas da velhice. Nos E .U .A .
a Universidade de Chicago publicou em 1959 e 1960 três
tratados que representam verdadeiras súmulas sôbre a ve
lhice, tanto do ponto de vista individual como social, na
América e na Europa Ocidental.
A gerontologia desenvolveu-se em três planos: o bio
lógico, o psicológico e o social. Em todos estes três campos,
ela se mantém fiel a um mesmo ponto de vista positivista:
não se trata de explicar por que motivo se produzem os
fenômenos, mas sim de descrever suas manifestações, de
maneira sintética e com a maior exatidão possível.
27
produção, a morte. As experiências realizadas com ratos ( 6),
por Mc Cay, inspiraram ao Doutor Escoffier-Lambiotte um
interessante comentário: “ O envelhecimento e, em seguida
a morte, não se acham pois em relação com um certo nível
de desgaste energético, com um dado número de batidas
do coração, mas sobrevêm quando um determinado pro
grama de crescimento e de maturação chega a seu têrmo.”
Quer dizer que a velhice não é um acidente mecânico; tal
como a morte que, segundo Rilke “ cada qual traz em si,
como o fruto ao seu caroço” , parece que cada organismo
contém, logo de saída, sua velhice, conseqüência inelutável
de sua realização ( 7).
Admite-se hoje que ela seja um processo comum a
todos os sêres vivos. Até pouco tempo atrás, acreditava-se
que as células fossem imortais: apenas as suas combinações
iriam sendo desfeitas no decorrer dos anos. Carrel susten
tara esta tese e julgava tê-la demonstrado. Mas experiências
recentes provaram que também as células se modificam
com o tempo. Segundo o biologista americano Orgel, a
idade acarretaria desfalecimentos no sistema que, habitual
mente, determina e planifica com precisão a produção das
proteínas celulares. Todavia, ainda estão pouco adiantadas
essas pesquisas de ordem bioquímica.
No homem, o que caracteriza fisiològicamente a senes-
cência é aquilo que o Doutor Destrem qualifica de “trans
formação pejorativa dos tecidos” . Diminui a massa dos
tecidos metabòlicamente ativos enquanto aumenta a dos
tecidos metabòlicamente inertes: tecidos intersticiais e fi-
broesclerosos, que são objeto de uma desidratação e de uma
degenerescência graxa. Verifica-se uma acentuada redução
da capacidade de regeneração celular. O progresso do te
29
se sabe com exatidão o que é que a provoca: desequilíbrios
hormonais, afirmam uns; tensão sangüínea exagerada, sus
tentam outros. Admite-se, geralmente, que a causa princi
pal seja um distúrbio do metabolismo dos lipídeos. Suas
conseqüências são variáveis. Atinge por vezes o cérebro; em
todo caso, a circulação cerebral se torna mais lenta. Os vasos
perdem a elasticidade, o rendimento cardíaco decresce, di
minui a velocidade da circulação, eleva-se a tensão. Obser
ve-se, aliás, que a hipertensão, tão perigosa para o adulto,
pode ser perfeitamente tolerada pelo homem idoso. Reduz-
-se o consumo de oxigênio pelo cérebro. A caixa torácica
se torna mais rígida e a capacidade respiratória que é de
5 litro^ aos 25 anos, cai para 3 litros, aos 85. Decresce a
força muscular. Os nervos motores transmitem as excita
ções com menos rapidez e as reações são mais lentas. Os
rins, as glândulas digestivas, o fígado entram em involução.
Os órgãos dos sentidos são atacados. Diminui a capacidade
de acomodação; a presbitia é fenômeno quase universal nos
velhos; a vista “ se cansa” , decai sua capacidade discrimi-
nativa. Assim somo a do ouvido, chegando com freqüência
até a surdez. O paladar, o tato, o olfato perdem a primi
tiva acuidade.
A involução das glândulas de secreção endócrina é uma
das conseqüências mais generalizadas e mais manifestas da
senescência; é acompanhada por uma involução dos órgãos
sexuais. Neste ponto, estabeleceram-se recentemente alguns
fatos precisos ( 8). No homem idoso, não se verifica nenhuma
anomalia especial dos espermatozóides; teoricamente, é in
definidamente possível a fecundação do óvulo pelo esperma
senil. Não existe nenhuma lei geral sôbre a interrupção
da espermatogênese, mas somente casos específicos. Entre
tanto, a ereção torna-se duas ou três vêzes mais lenta que
na juventude (as ereções matinais observadas mesmo em
idade bastante avançada não têm caráter sexual). Pode ser
conservada durante muito tempo sem ejaculação, devendo-se
êste controle tanto à experiência coital quanto à redução
da intensidade da resposta sexual. Depois do orgasmo, a
detumescência é extremamente rápida e o homem idoso
30
permanece muito mais tempo que o jovem refratário a
novas excitações.
A ejaculação se desenvolve entre os jovens em duas
etapas: a expulsão do fluido seminal na uretra prostática;
sua progressão através da uretra até o meato uretral e para
o exterior; na primeira fase, o indivíduo sente que a ejacula
ção vai se produzir inevitavelmente. O homem idoso, em
geral, não experimenta nada disso; as duas etapas se redu
zem a uma só e êle tem freqüentemente a impressão de
que está havendo antes um gotejar que uma expulsão.
As possibilidades de ejaculação e de ereção diminuem com
a idade e chegam a desaparecer. Mas a impotência nem
sempre acarreta a extinção da libido.
Na mulher, a função reprodutora é brutalmente inter
rompida relativamente cedo. Fato único no processo de
senescência que se desenvolve continuamente em todos os
outros planos, ocorre por volta dos 50 anos um súbito corte:
a menopausa. Há uma interrupção do ciclo ovariano e da
menstruação, os ovários se esclerosam, a mulher já não pode
ser fecundada. Desaparecem os esteróides sexuais ( 9) e os
órgãos sexuais entram em involução.
Os velhos dormem mal, segundo um preconceito bas
tante difundido. Em realidade, de acordo com um inqué
rito realizado nos asilos franceses em 1959, eles dormem
mais de sete horas por noite. Observam-se, entretanto,
perturbações do sono, em muitos deles. Ou custam a ador
mecer ou acordam cedo, ou seu sono é intercalado de breves
interrupções; os motivos de tais anomalias podem ser fisio
lógicos ou psicológicos. Depois dos 80 anos, quase todos
cochilam durante o dia.
O conjunto da involução orgânica do homem idoso
acarreta uma fatigabilidade a que nenhum escapa: o esforço
físico só lhe é permitido dentro de estreitos limites. Oferece
maior resistência às infecções que os jovens, mas seu orga
nismo depauperado defende-se mal contra as agressões do
mundo exterior: a involução dos órgãos reduz a margem de
segurança que permite a elas resistir. Certos médicos che
gam ao ponto de assimilar a velhice a uma doença; foi o
31
que íêz recentemente ( 101) a famosa geriatra romena, a
Doutora Aslan, em entrevista por ela concedida na Itália.
Não acredito que esta confusão seja legítima: a doença é
um acidente; a velhice constitui a própria lei da vida. En
tretanto, a expressão: “Velho e doente” , é quase um pleo-
nasmo. “ Esta enfermidade resumida, o envelhecimento” ,
escreveu Péguy. Samuel Johnson afirmou: “ Minhas doen
ças são uma asma, uma hidropisia e, o que é menos curável,
setenta e cinco anos de idade” . Um médico perguntou,
certa feita, a uma velha que usava óculos: “ Que tem a
senhora? presbitia ou miopia?” — “ É velhice, doutor.”
Existe uma relação recíproca entre velhice e doença;
esta acelera a senescência e a idade avançada, por sua vez,
predispõe a distúrbios patológicos, especialmente aos pro
cessos degenerativos que a caracterizam. Raramente se
encontra aquilo que se poderia denominar “velhice pura” .
As pessoas idosas sofrem de uma polipatologia crônica.
Consideremos uma centena de doentes idosos e uma
centena de jovens: a proporção daqueles que consultam
médicos ou compram medicamentos é muito mais elevada
entre os últimos. Por outro lado, os velhos constituem apro
ximadamente apenas 12% da população. Representam, en
tretanto, um têrço das entradas nos hospitais da França e,
em termos de permanência por dia, constituem mais da
metade dos doentes pois ali se demoram mais tempo que
os outros. Na América, em 1955, quando só constituíam
1/12 da população, ocupavam 1/5 dos leitos dos hospitais.
Um inquérito realizado na Califórnia em 1955 revelou que
o número de consultas médicas elevava-se com a idade.
Eram 50% mais numerosas entre os velhos que no conjunto
da população, e duas vezes mais freqüentes para as mulhe
res idosas, que constituem também a maioria entre os inter
nados em hospitais. Elas vivem mais que os homens, mas
no decorrer de sua existência adoecem com mais freqüência
que eles (“ ). No conjunto, o número de doentes crônicos
3 33
do trânsito pois se locomovem com dificuldade e enxergam
pouco. Muitos desistem de sair.
Certos inquéritos fornecem informações otimistas sôbre
a saúde dos velhos: seria necessário, entretanto, apurar qual
o sentido exato que os entrevistadores atribuem às palavras.
De acordo com o relatório elaborado nos Estados Unidos
em 1948 por Sheldon, em cada grupo de 471 pessoas de
mais de 60 anos, somente 29,3% situavam-se abaixo da
normalidade: entre estas contavam-se muitos octogenários
dos quais 2,5% estavam acamados, 8,5% não saíam de casa,
22% só se locomoviam nas circunvizinhanças, 46% eram
indivíduos inteiramente normais, sendo que 24,5% eram par
ticularmente vigorosos. Admitamo-lo. A que Norma porém,
se refere Sheldon? Será a que êle aplicaria a um quadra-
genário? Não, sem dúvida. Um inquérito realizado em
Sheffield em 1955 fornece-nos uma informação mais precisa:
entre 476 pessoas de mais de 61 anos, 54,9% das mulheres
e 71,2% dos homens ainda se achavam em plena atividade.
Encontraram-se resultados análogos em 1954 e 1957, na Ho
landa. A atividade implica, com efeito, uma certa dose
de saúde, porém muitas razões, tanto de ordem psicológica
como social, podem levar a prolongá-la mesmo em condi
ções físicas precárias.
Todas as observações têm salientado as importantes
diferenças existentes entre indivíduos de mesma idade. A
idade cronológica e a idade biológica estão longe de coinci
dir invariavelmente: a aparência física do número de anos
que contamos: êstes não pesam igualmente sôbre todos os
ombros. A senescência, afirma o gerontólogo americano
Howell, “não é uma ladeira que todos descem com igual
velocidade. É um lanço de degraus irregulares pelos quais
alguns se despencam mais depressa que outros” (13). Existe
uma enfermidade, a “progeria” , que provoca o envelheci
mento prematuro de todos os órgãos do paciente ( 14). No
dia 12 de janeiro de 1968, faleceu no hospital de Chatham,
34
no Canadá, uma menina de 10 anos que apresentava todas
as características exteriores de uma mulher de 90 anos. Um
de seus irmãos tinha sucumbido da mesma moléstia, aos
11 anos de idade. O Doutor Dénard-Toulet citou-me o
caso de uma mulher falecida aos 45 anos em conseqüência
da involução senil de seus órgãos. Excetuando-se esses ca
sos, extremamente raros, o declínio pode ser acelerado ou
retardado por diversos fatores: saúde, hereditariedade, am-
biência, emoções, antigos hábitos, padrão de vida. Assume
formas diferentes, de acordo com as funções que se degra
dam em primeiro lugar. É, por vezes, um processo con
tínuo; em alguns casos, o indivíduo, que até certo momento
mal aparentava a própria idade, quando não um pouco
menos, envelhece subitamente. Em caso de doença, de
stress, de luto ou de um sério percalço, não são os órgãos
que bruscamente se deterioram: o que desmorona é o arca
bouço que lhes dissimulava as insuficiências. Na realidade,
o corpo do indivíduo tinha sofrido a ação da involução
senil, mas havia conseguido compensá-la através de recor
rer a essas defesas, revelando-se então sua velhice latente.
Esta queda moral repercute nos órgãos e pode ocasionar a
morte. Citaram-me o caso de uma mulher de 63 anos, muito
bem conservada, que suportava corajosamente as dores vio
lentas devido às quais vinha sendo tratada; tendo-lhe um
interno revelado levianamente que jamais ficaria curada,
ela envelheceu vinte anos de uma hora para outra e as dores
se agravaram. Uma contrariedade muito forte, como a perda
de um processo, por exemplo, pode transformar um homem
de 60 anos num ancião, tanto física quanto moralmente.
Se nenhum choque desta natureza se produzir, se a
saúde continuar boa, pode suceder, ao contrário, que o indi
víduo consiga compensar até avançada idade, as capacidades
perdidas. Graças a uma técnica experimentada, no exato
conhecimento de seu corpo, alguns esportistas mantêm-se
em excelente forma durante muito tempo. Ted Meredith,
às internacional do futebol, aos 52 anos de idade ainda foi
indicado para uma seleção. Eugène Lenormand, aos 63
anos, fazia exibições de natação; aos 56 anos, Borotra era
campeão mundial de tênis.
Observava-se outrora, com freqüência, um contraste
flagrante entre a evolução mental do indivíduo e sua evo
35
lução física. Montesquieu lamentou semelhante divórcio:
“ Infeliz condição dos homens! Mal atinge o espírito o ponto
de maturidade e começa o corpo a enfraquecer!” Delacroix
observa em seu Diário: “ Esta singular discrepância entre a
força do espírito, conseqüência da idade, e o enfraqueci
mento do corpo, que dela também decorre, impressiona-me
sempre e parece-me uma contradição nos decretos da natu
reza!”
O progresso da medicina modificou esta situação. Pro
tegido contra inúmeros achaques e doenças, o corpo resiste
durante um tempo mais longo. Consegue-se habitualmente
manter a saúde física do indivíduo enquanto seu espírito
conserva equilíbrio e vigor. A saúde se estraga quando
baqueia o moral. E vice-versa: as faculdades mentais se
alteram quando a vida fisiológica se degrada sèriamente:
em todo caso, elas sofrem com as transformações corporais.
As mensagens são transmitidas com menor rapidez e defor
madas pela má qualidade dos receptores. O funcionamento
do cérebro é menos flexível; como já vimos, diminui seu
consumo de oxigênio: ora, o baixo teor de oxigênio no
sangue provoca uma redução da memória imediata e da
retenção, um retardamento dos processos ideativos, uma
irregularidade nas operações mentais simples, violentas rea
ções emocionais: euforia ou depressão. Pode-se considerar
a senescência como um exemplo da “ amputação difusa”
a que se refere Goldstein, a propósito dos acidentes cerebrais
póstraumáticos. Também nesse caso existe perda de células
cerebrais. Sendo elas muito abundantes, se a situação não
exigir do indivíduo um esfôrço excessivo, êle poderá facil
mente enfrentá-lo. Mas se houver desequilíbrio em sua
vida, estará exposto a catástrofes: de qualquer forma, can
sa-o qualquer esfôrço intelectual, reduz-se a capacidade de
trabalho e de atenção, pelo menos a partir dos 70 anos.
Em suas pesquisas sôbre a psicologia da velhice, os
gerontólogos adotam os "mesmos métodos que empregam
ao estudar-lhe a fisiologia. Tratam os indivíduos em exte-
rioridade, baseando-se essencialmente na psicometria, dis
ciplina que me parece muito contestável. O indivíduo sub
metido a um teste encontra-se em situação artificial e os
resultados obtidos são puras abstrações muito diferentes
da realidade prática e viva. As reações intelectuais de um
homem dependem, na verdade, do conjunto de sua situação:
sabe-se de sobejo que os conflitos familiares podem fazer
com que uma criança anteriormente precoce pareça obtusa.
Quando estudar mais adiante a psicologia dos velhos, eu o
farei dentro de uma perspectiva totalista, ligando-a a um
contexto biológico, existencial, social, segundo o princípio
de circularidade a que me referi. Por enquanto, visto dese
jar transmitir a meus leitores uma idéia exata dos trabalhos
realizados pelos gerontólogos, devo indicar seus métodos e
os resultados que julgam ter alcançado.
Em 1917, o exército americano pretendeu estabelecer
o nível mental dos candidatos a oficiais: com este objetivo,
inventaram-se os primeiros testes de inteligência, tendo-se,
em seguida, multiplicado os estudos deste gênero. Em 1927,
Willoughgby retomou alguns testes utilizados no exército
americano e aplicou-os a um grupo de famílias residentes
nos arredores da Universidade de Stanford. Jones e Conrad,
em 1925-1926 reuniram os resultados obtidos na Nova In
glaterra, após o exame de 1191 indivíduos. As pesquisas
prosseguiram na América, na Alemanha, na Inglaterra. Em
1955, na França, Suzanne Pacaud estudou as reações de
4 000 empregados de estradas de ferro, de 20 a 55 anos de
idade, e de aprendizes de 12 anos e meio a 15 anos e meio.
O Professor Bourlière organizou recentemente, em Sainte-
Périne, uma “bateria de testes” destinados às faculdades
intelectuais. Por exemplo, pede-se ao indivíduo que aponte
os erros numa série de desenhoS, que trace num labirinto
o trajeto mais rápido para a saída; que termine desenhos
inacabados, reúna ou dissocie elementos semelhantes e des
semelhantes; que assinale os sinônimos, indique as nuanças
que os diferenciam; será também solicitado no sentido de
manejar associações de letras e de algarismos (teste do có
digo), reproduzir de memória figuras geométricas; reagir
a um sinal; responde “ certo” ou “errado” a afirmações re
ferentes ao comportamento e à personalidade; fazer desenhos
diante de um espelho. Verifica-se que a memória imediata
não é nada atingida; a memória concreta (aplicada a dados
bem conhecidos) se reduz entre os 30 e os 50 anos, assim
como a memória lógica. A mais alterada é a memória que
implica a formação de novas associações como, por exemplo,
a aquisição de uma língua. Existem, aliás, grandes diferenças,
37
segundo o grau de cultura dos indivíduos. Testes de memó
ria, aplicados a 3 000 pessoas, em Groningue, revelaram que
ela decresce em todos com o avanço da idade, porém de
maneira menos acentuada entre os intelectuais que entre os
trabalhadores braçais, menos entre os operários especializados
que entre os não-especializados, menos entre as pessoas ativas
que entre as aposentadas.
As reações motoras são mais rápidas e mais precisas aos
25 anos: sua presteza e precisão diminuem a partir dos 35
anos e mais ainda depois dos 45. Quanto à rapidez das ope
rações mentais, verifica-se progresso até os 15 anos, estabili
zação dos 15 aos 35 e, em seguida, diminuição. O indivíduo
de mais de 60 anos reage mal a testes de inteligência em
que o tempo é medido: pode equiparar-se e até mesmo supe
rar o adulto quando não há limitação cronométrica. As pes
soas idosas adaptam-se com grande dificuldade a situações
novas: reorganizam fàcilmente as coisas conhecidas mas re
sistem às mudanças. Adquirir o que se denomina um set —
isto é, uma atitude, uma orientação de espírito — exige um
esforço muito grande de sua parte: são escravos de hábitos
anteriormente adquiridos, falta-lhes flexibilidade. Uma vez
adotado o set, dificilmente o abandonam. Agarram-se a êle,
mesmo diante de problemas nos quais já não convém de
modo algum. Suas possibilidades de aprendizagem se acham,
portanto, muito reduzidas. Tôda faculdade que implica adap
tação declina a partir dos 35 anos, sobretudo quando não é
alimentada: observação, abstração e síntese, integração, es
truturação. O cálculo mental, a organização espacial são
deficientes, assim como o raciocínio lógico. Quanto ao voca
bulário, são controversos os resultados dos testes. Empobrece
entre as pessoas incultas de mais de 60 anos, mantém-se e
chega por vezes a enriquecer entre as de nível intelectual
elevado. No conjunto, os conhecimentos bem assimilados,
o vocabulário, a memória imediata ou remota de palavras
ou algarismos, não sofrem alteração. Em suma, existem no
indivíduo um potencial fluido, adaptativo, que envelhece e
uma fração cristalizada, composta de mecanismos adquiridos,
que não envelhece.
Do conjunto de testes e estatísticas ressalta uma impor
tante conseqüência: quanto mais elevado o nível intelectual
do indivíduo, mais fraco e lento o decréscimo de suas facul
38
dades. Se continuar a exercitar a memória e a inteligência,
ser-lhe-á possível conservá-las intatas. Voltarei a esta ques
tão que só poderá ser explicada ligando-se a inteligência e
a memória de um indivíduo à atenção que presta à vida, a
seus interêsses neste mundo, ao conjunto de seus projetos.
Limitemo-nos por enquanto a observar que certas pessoas
muito idosas mostram-se mais eficientes que as jovens. Com
efeito, muitos trabalhos intelectuais são realizados sem limi
tação de tempo. A profissão, a técnica, o critério, a organiza
ção de tarefas podem suprir os lapsos da memória, a fadiga-
bilidade, a dificuldade de adaptação. Muitas pessoas idosas
se mantêm ativas e lúcidas até sua hora final.
Entretanto, à semelhança de seu organismo com o qual
se acha em ligação estreita, o psiquismo do velho é frágil:
os casos de doenças mentais são mais freqüentes nêle que
nos jovens (15). Segundo um relatório do Instituto Nacional
de Saúde Mental dos Estados Unidos, entre 100 000 indivíduos
pertencentes a um mesmo grupo etário, o número de doentes
mentais é de 2,3 abaixo de 15 anos, 76,3 entre 25 e 34 anos,
93 entre 35 e 54 anos, 236,1 entre os velhos. Na Suécia, em
7 milhões de habitantes há 9 000 casos de demência senil,
no sentido estrito do termo. Nos Estados Unidos, de um
modo geral, o número de doentes mentais quadruplicou entre
1904 e 1950, sendo que o número de admissões de velhos
em hospitais psiquiátricos tornou-se nove vêzes mais elevado:
isto se deve em parte ao fato de se hesitar menos em recor
rer a- êles. Não houve alteração na Suécia nos últimos vinte
e cinco anos.
Os velhos têm, hoje, menos handicaps que antigamente;
é menor o número de inválidos presos ao leito. Pode até
suceder quando se comparam vários grupos etários que se
encontre entre os mais antigos uma aparência de antideclínio,
devido ao fato de que, para viver tanto tempo, foi neces
sário de início um potencial de saúde excepcional. Via de
regra, entretanto, todo indivíduo se acha diminuído a partir
de certo momento. Quando se fala numa “bela velhice”
ou num “velho sacudido” quer-se dizer que o homem idoso
39
encontrou um equilíbrio físico e moral e não que seu orga
nismo, sua memória, sua capacidade de adaptação psicomo-
tora sejam iguais aos de um jovem. Homem algum, tendo
vivido muito tempo, pode escapar à velhice; é ela um fenô
meno inelutável e irreversível.
A velhice termina sempre com a morte. Mas é raro
que ela sozinha a acarrete, por si mesma e sem a intervenção
de algum elemento patológico. Schopenliauer afirma ter
conhecido pessoas extremamente idosas que se teriam extin
guido sem causa precisa. O Professor Delore narra a história
de uma centenária que chegou a pé ao hospital pedindo um
leito para nele morrer, pois se sentia muito cansada. Fa
leceu no dia seguinte e a autópsia não revelou nenhum
distúrbio orgânico. Trata-se, no entanto, de um fato quase
único. As chamadas mortes “naturais” — por oposição às
mortes por acidentes — são na realidade provocadas por
uma deterioração orgânica.
A longevidade do homem é superior à dos outros mamí
feros. Em fontes fidedignas só encontrei um caso de indiví
duo que houvesse ultrapassado os 105 anos: Antoine-Jean
Giovanni, de 108 anos ( 10) e vivendo em Grossa. Admite-se,
sem que haja certeza, que a hereditariedade desempenhe
algum papel, direto ou indireto, na longevidade: muitos
outros fatores intervém, a começar pelo sexo. Em todas as
espécies animais, as fêmeas vivem mais que os machos: a
média de sobrevivência feminina na França é sete anos maior
que a masculina. Vêm, a seguir, as condições de crescimento,
alimentação, ambiência, e as condições econômicas.
Estas exercem uma influência muito importante sôbre
a senescência. Os gerontólogos verificaram tal fato no decor
rer de inúmeros inquéritos. Aquele já aqui citado e realizado
em Sheffield demonstrou que a saúde depende, estreitamente,
do nível de vida. É também esta a conclusão que ressalta
do estudo levado a cabo pela equipe do Professor Bourlière
entre camponeses e pescadores bretões. Afirma-se que o cam-16
40
po produz muito mais velhices sadias que as cidades: na
realidade, todos os indivíduos examinados eram menos sau
dáveis que os parisienses de mesma idade bem situados na
vida ( 17).
O papel dos fatôres econômicos nos revela os limites da
gerontologia como ciência que busca definir biologicamente
a senescência individual. Os resultados a que chega são do
mais alto interesse: é impossível compreender a velhice sem
levá-los em conta. Mas não podem ser suficientes. No es
tudo da velhice, êles só representam um momento abstrato.
A involução senil de um homem sempre se produz no seio de
uma sociedade: depende muito da natureza desta e do lugar
que nela ocupa o indivíduo em questão. O próprio fator
econômico não poderia ser isolado das superestruturas sociais,
políticas, ideológicas que se lhe sobrepõem; encarado de
maneira absoluta, o nível de vida é ainda apenas uma abs
tração; com recursos idênticos, um homem será considerado
rico no seio de uma sociedade pobre e pobre no seio de uma
sociedade rica. Para compreender a realidade e o significado
da velhice é, portanto, indispensável examinar qual o lugar
nela atribuído aos velhos, qual a imagem que deles se tem
em diferentes épocas e em diferentes lugares. Como já disse,
êste confronto é de grande interêsse pois permitirá, senão
fornecer, pelo menos entrever uma resposta a esta questão
essencial: o que existe de realmente inelutável na condição
do velho? Em que medida é a sociedade responsável por
isto? Começaremos nosso exame pelas chamadas sociedades
sem história ou “primitivas” .
41
CAPÍTULO II
OS DADOS ETNOLÓGICOS
42
Achamos particularmente interessante observar o que se
passa entre os antropóides, os animais mais próximos de nós.
Em todas as hordas, o macho idoso desempenha um papel
de dominador junto às fêmeas e aos jovens. Às vêzes acon
tece que um grupo de machos exerce o poder e compartilhe
as fêmeas; às vêzes, o chefe é um só e concorda com a par
tilha. Nos dois casos, êles não suscitam agressividade alguma
e morrem de morte natural. Mas pode suceder que o macho
mais velho monopolize todas as fêmeas, das quais os jovens
só podem se aproximar clandestinamente e arriscando-se a
severos corretivos. Vigoroso ainda aos 50 anos, êle defende
as fêmeas e os filhotes contra os ataques das feras. Cres
cendo em idade e em força, os jovens contra êle se rebelam.
Espreitam-no. Êle vai enfraquecendo, quebram-se e apodre-
cem-lhe os dentes, que constituem sua arma mais temível.
Quando os jovens sentem chegado o momento, quer por
encontrar-se esgotado pela luta contra alguma fera, quer
pelo fato de submeter-se a seu destino, o mais velho lança-se
contra êle. Mata-o muitas vêzes ou fere-o mortalmente.
Mesmo quando apenas levemente ferido, o velho sabe que
está vencido, sente-se amedrontado. Afasta-se do grupo que
passa a ser governado pelo agressor e vai viver solitário.
É-lhe difícil alimentar-se e começa a definhar. Torna-se en
tão, freqüentemente, prêsa de animais ferozes ou adquire
doenças mortais, ou ainda se enche de achaques e fica in
capaz de prover a seu sustento, morrendo de fome. É ainda
vigoroso quando os jovens se descartam dêle. E não repre
senta um fardo para a comunidade, de um lado porque é
ainda ativo e, por outro lado, porque essa comunidade pode
ser considerada uma sociedade de abundância: levando-se
em conta a natureza tão rica no meio da qual evolui a horda
e a facilidade com que esta se desloca, o problema da ali
mentação não existe. Se o velho macho é maltratado — tal
como sucederá a seu substituto — é porque havia monopo
lizado as fêmeas e tiranizado os jovens. Em nenhum caso
as macacas idosas são mortas: a horda se encarrega delas.
Veremos que nas sociedades humanas, como em muitas
outras espécies a experiência e os conhecimentos acumulados
constituem um trunfo para os velhos. Veremos também que
êles são freqüentemente expulsos da coletivadade de maneira
mais ou menos brutal. Todavia, o drama da idade se dá,
43
não no plano sexual, mas sim no econômico. O velho não é,
como entre os antropóides, um indivíduo que se tornou inca
paz de lutar mas sim aquêle que já não pode trabalhar;
uma bôca inútil, portanto. Sua condição jamais depende
apenas dos dados biológicos: intervém também fatores cul
turais. Para o antropóide monopolizador de fêmeas a velhice
representa um mal absoluto que o põe à mercê de seus seme
lhantes e o impede de se defender contra as agresssões ex
teriores. Acarreta uma morte brutal ou um definhamento
solitário. Ao passo que, nas comunidades humanas êsse
flagelo natural, a velhice, se acha integrado numa civilização
que conserva, embora em fraca proporção, o caráter de uma
antiphysis e que lhe pode, portanto, modificar profunda
mente o sentido. Assim, em certas sociedades, vemos os
velhos monopolizarem as mulheres num momento em que já
perderam sua força física e isto graças a um prestígio que
os coloca ao abrigo da violência.
Entretanto, os dados biológicos permanecem, seja qual
fôr o contexto. A velhice traz para todo indivíduo uma
degradação temida. Contradiz o ideal viril ou feminino
adotado pelos jovens e pelos adultos. A atitude espontânea
consiste em recusá-la na medida em que ela se define pela
impotência, pela fealdade e pela doença. A velhice dos
outros inspira também uma repulsa imediata. Esta reação
elementar subsiste mesmo quando reprimida pelos costu
mes. É esta a origem de uma contradição de que encon
traremos múltiplos exemplos.
44
do Nilo Branco: aos primeiros indícios de doença, de fra
queza, de impotência, matava-se o chefe ( 1). Assim era
morto o pontífice do Congo, o Chitumé, logo que sua saúde
dava mostras de estar comprometida; se morresse natural
mente, esgotadas suas fôrças a divindade morreria com êle
e o mundo se aniquilaria imediatamente. Assim também era
eliminado o rei de Calicute. Sacrificado em tôda a sua pu
jança, o chefe transmite a seu sucessor uma alma cheia de
vigor.
Segundo Frazer, crenças análogas levam os velhos das
ilhas Fidji e de vários outros lugares a buscarem voluntà-
riamente a morte: acreditam que hão de sobreviver com a
idade que tiverem ao abandonar este mundo; não aguardam,
por conseguinte, a decrepitude que, não fôra isso, lhes estaria
reservada por tôda a eternidade.
O “enterro em vida” praticado pelos Dinka (2), segundo
diversos observadores, pertence à mesma categoria de cos
tumes. Certos anciãos, cujo papel é tão importante que são
considerados como que responsáveis pela existência da co
munidade — fazedores de chuva, senhores da lança de
pesca — logo que revelam sinais de fraqueza, são enterrados
vivos, no decorrer de cerimônias em que tomam parte volun-
tàriamente. Segundo creem, a vida da comunidade se extin-
guiria com êles se exalassem naturalmente o último alento
em vez de conservá-lo no interior de seu corpo. As festas
Iti
vitória que deu a este a possibilidade de organizar e gover
nar o mundo. Em muitos lugares, comemora-se o fim do
ano com festas durante as quais o liqüidam: queimam-no
em efígie, apagam-se fogos para se acenderem outros, de-
sencadeiam-se orgias renovadoras do caos primordial. As
Saturnais constituíam verdadeira subversão das hierarquias
sociais, com tendência à negação da ordem estabelecida: a
sociedade e o mundo se desagregam, devem, portanto, ser
recriados em sua pureza original. Aquelas festividades ti
nham lugar tanto no decorrer quanto no início do ano: ~as
festas da primavera conferem a esta estação um sentido de
rejuvenescimento cósmico. A coroação de um soberano é
tida muitas vezes como o alvorecer de uma nova era. O im
perador da China, ao subir ao trono, estabelecia um nôvo
calendário: desmoronava a ordem antiga, uma outra surgia.
Um dos costumes do culto xintoísta no Japão pode ser
explicado pela idéia de regeneração: os templos xintoístas
devem ser periodicamente reconstruídos na íntegra e seus
móveis e decoração inteiramente renovados. O grande tem
plo de Isé, centro da religião, é reconstruído de vinte em
vinte anos; êste trabalho já se repetiu cinqüenta e nove
vezes desde que a Imperatriz Jito ordenou a primeira ope
ração (686-689), o mesmo tendo sucedido à enorme ponte
que a êle conduz e aos quatorze templos subsidiários. Os
templos xintoístas manifestam ativamente a relação de con-
sangüinidade que liga o indivíduo ao mundo inteiro: re
construindo-se o edifício, evita-se que o tempo enfraqueça
êste laço. São ainda mais significativas as cerimônias des
critas por Frazer e nas quais algumas coletividades simulam
expulsar de seu seio a velhice. O quarto domingo da Qua
resma na Itália, na França e na Espanha era o dia de “ serrar
a velha”, quando se fingia serrar pelo meio uma velha de
verdade. Esta pretensa execução ocorreu pela última vez
em Pádua, em 1747. Noutros casos, queimavam-se real
mente bonecas representando velhos.
No plano mítico, as sociedades repetitivas receiam, por
tanto, o desgaste da natureza e das instituições e procuram
escapar-lhe. Para elas, não se trata de caminhar para um
porvir diferente mas sim de conservar intato, reanimando-o
ritualmente e de maneira incessante, um passado reveren
ciado, segundo o qual se modela o presente.
47
O problema muda por completo quando a comunidade
lida com indivíduos de carne e osso, com os quais deve
entabolar relações reais. A velhice é detestável? Pois vamos
expulsá-la! Mas quando o velho não significa o envelheci
mento do grupo, como é o caso geral, não existe a priori
nenhuma razão para suprimi-lo. Estabelecer-se-á empiri-
camente seu estatuto, de acôrdo com as circunstâncias. Re
duzido pelos anos a uma situação de improdutividade, êle
representa um fardo. Mas, como já disse, ao decretar seu
destino em determinadas sociedades, o adulto estará deter
minando o próprio futuro e levará em conta seu interesse a
longo prazo. Pode também suceder que fortes laços afetivos
o prendam aos velhos pais. Por outro lado, os anos con
ferem ao homem aptidões que o podem tornar muito útil.
A comunidade humana primitiva, mais complicada que as
sociedades animais, tem ainda mais necessidade de um sabor
que somente a tradição é capaz de transmitir. Inspira
respeito o ancião que, graças a sua memória, se tornou de
positário da ciência ou que conserva a lembrança do passa
do. Estando já com um pé no mundo dos mortos, é-lhe
atribuído o papel de intermediário entre a Terra e o além,
o que também lhe confere terríveis poderes. Êsses fatores
intervém na definição de seu estatuto. Observemos, aliás,
que são raros entre os primitivos os que atingem os 65 anos:
seu número raramente vai além de 3% da população. Em
geral, as pessoas de 50 anos são consideradas idosas, muito
idosas mesmo. Neste capítulo serão qualificados como ve
lhos, idosos ou anciãos, aqueles que são assim considerados
pela coletividade e que, biologicamente o são, realmente,
na maioria das vezes.
Para estudar sua condição busquei apoio nos trabalhos
dos etnólogos. Utilizei essencialmente os Human relation
area files, gentilmente colocados a minha disposição pelo
Laboratório de Antropologia Social. As informações obtidas
são, por vezes, muito antigas, às vezes incompletas ou de
valor pouco seguro. Terei de proceder portanto, com pru
dência. São raros os observadores que, ao descreverem
uma comunidade procuram adotar-lhe os valores. Êles a
enxergam e a julgam através de sua própria civilização, sem
sequer imaginar que possam deliberadamente afastar-se de
suas normas e de seus costumes. São também raros os
48
que, a propósito da velhice, organizam sintèticamente suas
observações; nem estes demonstram maior interesse, forne
cendo fatos muitas vezes ininteligíveis, quando não contra
ditórios. Procurarei relacionar os dados que possuímos sobre
a condição dos velhos com a estrutura geral da comunidade.
Sei que toda amostragem corre o risco de ser arbitrária
mas a estatística também não foge a isto e nada esclarece.
Ao passo que, por meio de aproximações e de contrastes,
pode-se esperar que fiquem elucidadas relações significa
tivas.
As suas condições de vida determinam que os primiti
vos sejam ora caçadores coletores, ora pastores, ora cam
poneses; as duas primeiras categorias são nômades, a ter
ceiro, sedentária. Existem também os seminômades, pas
tores com diversos pontos de parada, agricultores que des-
bastam sucessivamente várias partes da floresta. Não os
classificarei segundo sua situação geográfica mas sim de
acordo com seus métodos de trabalho e com sua ambiência:
há mais analogias entre os coletores da Austrália e os da
África que entre estes últimos e os camponeses africanos.
4 49
A pobreza extrema leva à imprevidência: quem manda
é o presente, o futuro lhe é sacrificado. Quando o clima é
inclemente, difíceis as circuntâncias ou insuficientes os re
cursos, a velhice do homem assemelha-se com freqüência
à das fadas. Assim acontecia entre os Yakute que levavam
uma existência seminômade no Nordeste siberiano, criando
gado e cavalos, suportando gélidos invernos e tórridos verões.
A maioria passava fome durante tôda a vida.
Nesta civilização rudimentar, de nada podiam valer
conhecimentos ou experiência. A religião mal existia. A
magia desempenhava seu papel: era bastante desenvolvido
o xamanismo (4). A revelação e a iniciação xamânicas ge
ralmente ocorrem em idade pouco avançada, mas os podêres
adquiridos não diminuem com o tempo. Dentre todos os
anciãos, os velhos xamãs eram os únicos respeitados. A or
ganização da família era patriarcal. O pai era o dono dos
rebanhos. Exercia sôbre os filhos uma autoridade absoluta,
podia vendê-los ou matá-los; livrava-se muitas vezes das
filhas. O filho que insultasse ou desobedecesse a seu pai,
era deserdado. Enquanto permanecesse vigoroso, êste podia
tiranizar a família, mas assim que enfraquecia os filhos lhe
arrebatavam os bens e o abandonavam mais ou menos à
morte. Maltratados durante a infância, não sentiam a me
nor piedade por seus velhos pais. Censurado por maltratar
a mãe anciã, respondeu um Yakute: “ Que chore! Que sinta
fome! Ela me fêz chorar mais de uma vez e me regateava
a comida. Espancava-me por qualquer ninharia! “ Segundo
Trostchansky, que viveu vinte anos exilado entre os Yakute,
os velhos eram expulsos de casa e reduzidos à mendicância;
ou então escravizados pelos filhos que os espancavam e os
50
forçavam a um duro labor. Outro observador, Sieroshevski,
relata: “Até em casas prósperas vi esqueletos vivos, encar-
quilhados, seminus ou inteiramente despidos, escondidos nos
cantos de onde só se afastavam na ausência de estranhos e
para se aproximar do fogo e disputar às crianças restos de
alimentos.” A situação é ainda pior quando se trata de pa
rentes afastados. “ Êles nos deixam morrer nalgum canto,
lentamente, de frio, de fome, não como homens mas como
animais.” Para escapar a tão horrível destino êles suplica
vam muitas vêzes a seus filhos que os matassem com uma
facada no coração. Carência de alimentos, baixo nível cul
tural, ódio pelos pais gerado pela severidade patriarcal:
tudo conspirava contra os velhos.
Situação análoga encontrava-se entre os Ainos do Japão,
antes de exercer-se sôbre êles a influência da civilização
japonesa. Sua sociedade também era muito rudimentar,
o clima gelado e insuficiente a alimentação, baseada em
peixe cru. Dormiam no chão, possuíam poucos utensílios,
caçavam ursos e pescavam. De pouco lhes servia a experiên
cia das pessoas de idade. Grosseiro animismo constituía
sua religião: não tinham templos, nem culto; achavam sufi
ciente erguer, em honra dos deuses, ramos de salgueiro
denominados inau, considerados sagrados. Conheciam al
gumas canções mas não tinham festividades nem cerimônias.
Embriagar-se era sua principal e quase única distração. Os
velhos, portanto, não tinham tradições a transmitir. Final
mente, as mães descuidavam-se dos filhos que, depois da
puberdade, não lhes mostravam mais o menor apego. Quan
do os pais envelheciam, eram deixados de lado. As mulhe
res, tratadas a vida toda como párias, trabalhavam dura
mente e não participavam das orações, piorando-lhes a sorte
com os anos. Lan dor(56) narrou a visita que fêz a uma
cabana em 1893: “Ao aproximar-se, descobri uma massa
de cabelos brancos e duas garras semelhantes a magros pés
humanos com longas unhas recurvadas; algumas espinhas
de peixe espalhavam-se pelo chão e amontoava-se imun-
dície naquele canto; o mau cheiro era insuportável. Ouvi
uma respiração sob aquela massa de cabelos. Toquei-os,
(5) Alone with the hairy Ainu. O livro de Batchelor mais compla
cente que o de Landor, pinta dos Aíno um retrato bastante semelhante.
51
afastei-os e, num grunhido, dois braços ossudos estenderam-
-se para mim e agarraram minha m ão. .. ela era só pele e
ossos e seus longos cabelos e unhas a tornavam pavorosa...
Era quase cega, surda, muda; parecia sofrer de reumatismos
que lhe haviam anquilosado os braços e as pernas; apresen
tava marcas de lepra. Era uma visão horrível, repugnante
e deprimente. Não era nem maltratada nem cuidada pela
aldeia ou pelo filho que vivia na mesma choça; constituía
um rebotalho e como tal a tratavam; de vez em quando lhe
atiravam um peixe.”
A miséria, quando extrema, é um fator determinante:
sufoca os sentimentos. Os Siriono, habitantes da floresta
boliviana, jamais eliminam seus recém-nascidos, embora
muitos deles sejam aleijados. Amam os filhos e são por
êles amados. Esta tribo seminômade, no entanto, é uma
vítima constante da fome. Vivem em estado selvagem,
quase nus, sem adornos nem instrumentos; dormem em
redes, fabricam arcos porém não possuem canoas e deslo
cam-se a pé. Já nem sabem mais acender o fogo: trans
portam-no consigo para onde vão. Não possuem animais
domésticos. Abrigam-se em cabanas poeirentas durante a
estação das chuvas; cultivam algumas plantas mas se ali
mentam sobretudo de legumes e frutos silvestres. Pescam
e caçam durante a estação sêca. Não conhecem mitos nem
feitiçarias, não sabem nem contar nem medir o tempo. Não
possuem organização social nem política e a justiça não é
aplicada por ninguém. Brigam constantemente por ques
tões de alimentos: cada qual luta pela própria vida. É tão
penosa esta existência que já nos 30 anos as forças lhes
começam a faltar e aos 40 estão velhos. Os filhos, então,
descuram os pais, esquecem-se dêles no momento da dis
tribuição dos víveres. As pessoas idosas caminham devagar,
atrapalham as expedições. Conta Holmberg que, na véspera
de uma migração coletiva “minha atenção foi atraída por
uma velha que se achava doente, deitada numa rede, não
podendo nem falar. Perguntei ao chefe da aldeia o que
iriam fazer com ela. Mandou-me falar com o marido e êste
disse que a deixariam morrer ali m esm o... No dia seguinte,
a aldeia tôda se foi sem nem sequer lhe dizer adeus. . .
Três semanas d ep ois... tornei a encontrar os restos da
doente na rêde.”
52
Não tão despojado quanto os Siriono, os Fang — cerca
de 127 000 — habitam a parte superior do Gabão e vivem
quase todos na maior insegurança. Mais ou menos evange-
lizados e aculturados pelos brancos, encontram-se numa fase
de transição entre costumes que perderam e que já não lhes
convêm e uma ética moderna ainda não elaborada.
Deveram sua subsistência durante muito tempo às con
quistas guerreiras e econômicas; o poder político estava nas
mãos dos anciãos mas era um conselho de jovens quem
dirigia as expedições. A mobilidade exigida por estas opôs-
-se ao estabelecimento de uma organização hierárquica de
modo que, os Fang constituem ainda hoje uma sociedade
na qual os chefes são incessantemente substituídos. Distri
buem-se em várias aldeias que se deslocam com freqiiência.
Suas atividades principais são, atualmente, a caça e a pesca.
Existe também uma classe sedentária de camponeses dedi
cada sobretudo ao cultivo do cacau e relativamente prós
pera. Em todas essas comunidades, os indivíduos mais ricos
são também os mais cercados de honras. Sua religião — em
grande parte destruída pelo cristianismo — baseia-se num
culto prestado aos antepassados através dos crânios conser
vados numa cesta cuja posse confere o poder. É obtida
quer por filiação, quer devido a capacidades intelectuais e
morais; a idade constitui um trunfo, menor que a capaci
dade, mas desde que não seja avançada demais. O chefe
da família é o mais velho dos adultos ativos. Os pais vivem
com êle e mantêm uma certa autoridade moral enquanto
se conservam “verdadeiros homens” e “verdadeiras mulhe
res” . Nunca é muito grande, entretanto, a que cabe a
estas últimas: meros instrumentos de produção e de repro
dução, são temidas quando velhas as que passam por feiti
ceiras, o que pode ocasionalmente voltar-se contra elas
mesmas. Seu declínio começa muito cedo, logo que não
podem mais ter filhos, ao passo que o homem atinge o
apogeu quando, aos 50 anos mais ou menos, os netos come
çam a nascer e a viver sob seu teto. Depois, com a redução
das forças, os anciãos vão perdendo todo prestígio. Os Fang
acreditam que a vida humana descreve uma curva ascen
dente da infância até a maturidade; desce, em seguida, até
o nível mais baixo para tornar a elevar-se para além da
morte. A riqueza, os conhecimentos mágicos podem com-
53
pensar a diminuição senil, porém, de um modo geral, os
velhos se veem afastados da vida pública: levam uma exis
tência marginalizada e não são objeto de nenhuma consi
deração. Quando decrépitos, são tão desprezados que depois
de mortos, seu crânio não é utilizado nas cerimônias do
culto. É muito dura sua condição, quando não têm filhos.
São desprezados e miseráveis, sobretudo as viúvas, até
mesmo entre os convertidos ao cristianismo. Outrora eram
abandonados na floresta durante as migrações; hoje em
dia, ainda são deixados para trás, em completa penúria,
quando a aldeia se transfere para outro lugar, como é fre-
qüente acontecer. Aceitam seu destino e conta-se que
chega a pilheriar a respeito dele. Alguns se declaram
“ cansados da vida” e se fazem queimar vivos. Por vêzes,
são os herdeiros que se desembaraçam deles.
Os Thonga não são nômades: esses Bantos estão ins
talados em terras áridas na costa oriental da África do Sul.
A população é dispersa. O solo pertence ao chefe que o
distribui entre os membros da comunidade; cada um é
senhor absoluto dos frutos do trabalho próprio ou executa
do por suas esposas, sendo muitas tarefas reservadas ritual
mente às mulheres. Cultivam o milho, frutas e legumes.
Caçam e pescam. Fazem algumas esculturas em madeira
e cerâmica. Em seu folclore encontramos danças e cantos.
Conhecem períodos de abundância mas não escapam aos
de fome em conseqüência de inundações ou de nuvens de
gafanhotos. As refeições são tomadas em comum. Os ma
ridos são servidos primeiro, depois as crianças e, finalmente,
as mulheres: em princípio, os enfermos e os velhos tam
bém recebem seu quinhão. Os velhos são pouco consi
derados; economicamente desprovidos, não inspiram ne
nhuma afeição. Dos 3 aos 14 anos, as crianças vivem em
companhia dos avós que as deixam crescer ao deus-dará;
são pequenos gatunos, sempre esfomeados e a iniciação dos
meninos é uma prova muito severa. Os jovens dos dois
sexos vivem, em seguida, numa choça a eles reservada.
Poucos laços os prendem aos pais e êles alimentam um
certo rancor contra a geração que os criou com descaso.
Tornando-se adultos, mostram-se grosseiros para com as
pessoas idosas. As próprias crianças condenadas a coabitar
com os avós não apreciam os velhos: zombam deles e
comem seu quinhão de alimentos. Os Thonga não têm qua
se nenhuma tradição cultural ou social: a memória dos
anciãos não serve para nada. Sua religião é rudimentar,
cabendo ao irmão mais velho a função de ofertar sacrifícios
aos antepassados que, por vezes, lhes aparecem nos sonhos,
podendo ser interrogados por meio de “ ossos divinatórios” .
Algumas velhas cantam e dançam em certas cerimônias,
de maneira muitas vezes obscena. Não estão mais sujeitas
a determinados tabus; somente elas e as meninas impúberes
podem comer a carne do veado imolado no sacrifício. Es
capam à maldição de seu sexo sem, contudo, pertencer à
comunidade dos homens. Devido a esta singular situação,
a velha não precisa recear certos perigos sobrenaturais: é
a ela que recorrem para purificar a aldeia e as armas dos
guerreiros. Quando porém já não pode trabalhar na agri
cultura — à qual se aferra até que as forças a abandonam
— torna-se um pêso inútil, despreza-se sua decrepitude.
As cerimônias são, com freqüência, oficiadas por homens
idosos mas isto não basta para lhes conferir algum prestígio.
Os indivíduos, que entre os Thonga impõem maior respeito,
são os mais gordos, os mais fortes e os mais ricos; para
enriquecerem, desposam várias mulheres visto serem elas
sobretudo que trabalham. O marido dispõe então de ali
mento abundante, oferece banquetes aos filhos, recebe es
trangeiros, é admirado e exerce grande influência. Quando,
porém, suas esposas morrem, o homem enrugado, desdentado,
enfraquecido e pobre não passa de um rebotalho, de um
fardo impacientemente suportado. Raros são aquêles a
quem os filhos manifestam alguma dedicação. De um modo
geral, sua condição é bastante infeliz e eles dela se queixam.
São abandonados quando a aldeia se desloca. Perecem em
grande número durante as guerras. Escondem-se nas matas
nos momentos de pânico, enquanto os outros fogem: são
encontrados e massacrados pelo inimigo ou então morrem
de fome.
Contudo, a maioria das sociedades não deixa que os
velhos morram como animais (°). Sua eliminação é cercada
55
por um cerimonial e exige-se ou finge-se exigir seu consen
timento. Era o que acontecia ( 7), entre os Koriak, por exem
plo: viviam eles no Norte da Sibéria, em condições tão
ásperas quanto os Yakute. Seu único recurso eram os reba-
-nhos de renas que pastoreavam através da estepe; os in
vernos são rigorosos e as longas marchas esgotam as pessoas
de idade. Raramente acontecia uma delas desejar sobreviver
após a exaustão de suas forças. Eram mortas como tam
bém mortos eram os doentes incuráveis. Tal comporta
mento parecia tão natural que os Koriak se gabavam de sua
habilidade, apontando os lugares do corpo onde pode ser
fatal um ferimento de lança ou de faca. A imolação era
realizada na presença de tôda a comunidade depois de
longas e complicadas cerimônias.
Entre os Chukchee, tribos siberianas que mantinham
relações com os mercadores brancos, aquêles que viviam da
pesca, tinham grande dificuldade em encontrar alimento.
As crianças deformadas ou que pareciam difíceis de criar
eram sacrificadas logo ao nascer. Os poucos velhos que
houvessem conseguido adquirir algum capital por meio do
comércio eram respeitados. Os outros constituíam encargos
e obrigavam-nos a levar uma existência tão penosa que
eram fàcilmente persuadidos a optar pela morte. Ofere
ciam em sua honra um grande festim de que participavam:
comia-se carne de foca, bebia-se uísque, cantava-se, tocava-
-se tambor. O filho ou algum irmão mais jovem esgueira
va-se em dado momento às costas do condenado e estran
gulava-o com um osso de foca.
Os Hopi, os índios Creek e Crow, os Bosquimanos da
África do Sul costumavam levar o velho para o interior de
uma choça construída fora da aldeia expressamente para
o fim de ali o abandonarem com um pouco d’água e alguns
alimentos. Os esquimós, cujos recursos são extremamente
precários, costumam solicitar aos velhos que se deitem na
neve para aí aguardar a morte, ou então os “esquecem”
56
numa banquisa durante uma expedição de pesca, quando
não os encerram num iglu onde morrem de frio. Os esqui
mós de Amassalik, na Groenlândia, costumavam suicidar-se
quando se sentiam pesados à comunidade. Faziam, uma
noite, uma espécie de confissão pública e dois ou três dias
depois embarcavam em seu caíque e afastavam-se da terra
para sempre ( 8). Paul-Emille Victor conta que um doente,
incapaz de entrar em seu caíque, havia pedido que o ati
rassem no mar, visto constituir a morte por imersão o
caminho mais curto para o outro mundo. Os filhos aten
deram ao pedido mas, retido pelas roupas, sucedeu que
ficou a flutuar. Uma das filhas, que muito o amava, acon
selhou-o, cheia de ternura: “ Mergulha a cabeça pai, o
caminho será mais curto.”
Muitas sociedades respeitam as pessoas de idade en
quanto estas se mantêm lúcidas e robustas, desembara
çando-se delas quando se tornam decrépitas e caducas. É
o que sucede entre os Hotentote que levam vida semi-
nômade na África. Cada família possui sua choça e seus
rebanhos, sendo muito estreitos os laços entre os membros.
As palavras “avô”, “ avó” pertencem ao vocabulário da ami
zade e são empregadas independentemente de qualquer
parentesco; os contos, as sagas, mostram a reverência com
que são tratados os anciãos. Entram muito cedo em deca
dência: estão velhos aos 50 anos. Já não podem então
trabalhar e são sustentados pelos outros. Seu saber, sua
experiência são úteis à comunidade. São consultados pelo
Conselho que lhes leva em conta a opinião. Protegidos pela
idade contra as potências sobrenaturais, podem desempe
nhar um papel singular e de grande relevância na vida
social. Presidem, especialmente, aos rituais de transição.
O indivíduo que se encontra numa situação transitória —
viuvez recente, convalescença — já não pertence a nenhum
grupo; está em perigo e é perigoso: está inau. Somente as
pessoas que atravessaram tôdas as idades da vida, achan
do-se além do bem e do mal, podem acercar-se impune
mente e reintegrá-lo na comunidade. É imprescindível, en
tretanto, que pertençam à mesma categoria que o inau:
57
um viúvo cuidará do viúvo e, do convalescente, alguém
que se tenha curado após grave enfermidade. Todas as
pessoas de idade se acham qualificadas para a iniciação
dos adolescentes. É, assim, graças aos velhos que se man
tém a coesão da comunidade; isto não os livra de se verem
relegados quando a perda de suas faculdades os torna inú
teis. Até o início do século passado ( 9), seus filhos che
gavam mesmo a solicitar o direito de se desembaraçarem
deles, sendo sempre atendidos. A aldeia despedia-se do
velho após um festim oferecido pelo filho: colocavam-no
no dorso de um boi e uma escolta o conduzia até uma choça
distante onde o abandonavam com alguns alimentos. Mor
ria de fome ou nas garras dos animais selvagens. Era êste
o costume, sobretudo entre os pobres, mas também os
ricos assim procediam pois atribuíam-se poderes mágicos
aos velhos, sobretudo às mulheres e tinha-se medo deles.
Os Ojibwa do Norte — habitantes das proximidades
do lago Winnipeg — são hoje muito influenciados pela
civilização branca. Entretanto, no início do século, ainda
conservavam seus antigos costumes e era impressionante o
contraste entre o estatuto dos homens de idade ainda vigo
rosas e o dos “ decrépitos” . Vivem numa região de inver
nos rigorosos mas de clima saudável e de solo fértil onde
colhem arroz, legumes e frutas. No verão, as famílias se
reúnem em acampamentos de 50 a 200 pessoas, espalhan
do-se em pequenos grupos, no inverno, a fim de caçarem
animais cujas peles vendem. As crianças são muito bem
tratadas: desmamadas somente aos 3 ou 4 anos, são carre
gadas pelas mães a tôda parte. Recebem muitas demons
trações de carinho, nunca são castigadas, vivem em total
liberdade. De um modo geral, nessa sociedade, ninguém
castiga ninguém. Os doentes são tratados pacientemente.
O cuidado de não ofender o vizinho deriva em parte da
desconfiança que êste inspira: teme-se a feitiçaria. A ten
dência da religião é, sobretudo, a de proteger contra ma
lefícios e atender aos interesses individuais.
Em geral, os avós vivem com os filhos e os aconselham.
Dá-se o nome de um dêles a um recém-nascido. São pra-
58
zenteiras suas relações com os netos: os avós tratam os
netos de igual para igual, assim como as avós às netas:
espicaçam-se mutuamente, auxiliam-se uns aos outros. Isto
não impede que as crianças os respeitem: são ensinadas
a respeitar todos os velhos. Participam estes do Conselho,
onde também têm assento os adultos, que lhes manifestam
grande deferência. Êste respeito é sobretudo exterior e
verbal. Entretanto, em algumas tribos existe uma “grande
sociedade de medicina” que se dedica ao estudo das ervas:
acredita-se que algumas proporcionam saúde e longevidade.
Os jovens são introduzidos e iniciados nesses conhecimentos
pelos anciãos. Êstes são considerados detentores de grandes
podêres mágicos, podem ser perigosos. Oficiam, por vezes,
como sacerdotes. É entre êles que se recrutam os “gritado-
res” que anunciam à noite o programa de trabalho do dia
seguinte e dão instruções. A longevidade é admirada en
quanto se mantém saudável. É conquistada pela virtude e
pelas ervas, segundo crêem.
Ao chegar a idade avançada e a impotência, observam-
-se grandes diferenças de tratamento de família para família;
mas acontece com freqüência verem-se os velhos relegados
e pode até suceder que os jovens roubem os alimentos a
êles destinados. Deixaram de ser temidos: julga-se que per
deram seus podêres mágicos. Acontecia-lbes serem aban
donados nalguma choça afastada da aldeia ou numa ilha
deserta. O parente que pretendesse socorrê-los, era ridi
cularizado e impedido de acudir-lhes. Optavam geralmente
por uma morte cercada de solenidade. Oferecia-se uma
festa, fumava-se o cachimbo da paz, entoava-se um canto
fúnebre, dançava-se, cantava-se de nôvo e o filho matava
o pai com uma pancada de tomhawk.
59
rayama, no qual Fukasawa evoca o fim de uma anciã, ins
pirando-se em fatos reais. Até bem pouco tempo atrás, em
certos recantos do Japão, as aldeias eram tão miseráveis
que, para poderem sobreviver, se viam obrigadas a sacri
ficar os velhos. Transportavam-nos para o alto de mon
tanhas denominadas “montanhas da morte” e lá os aban
donavam. No início da história, 0 ’Rin, uma velha quase
septuagenária, de abnegação e piedade exemplares e muito
amada por seu filho Tappel, ouve cantarem na rua a canção
de Narayama (10), onde se diz que a cada três anos que
passam, os homens envelhecem três anos. Com isto se
pretende fazer com que os velhos se dêem conta da aproxi
mação do tempo da “peregrinação” . Na véspera da festa
dos Mortos, aqueles que devem “ ir para a montanha” con
vocam as pessoas da aldeia que para lá já levaram os pais.
É a única festa importante do ano: come-se arroz branco,
o alimento mais precioso de todos, e bebe-se vinho de
arroz. 0 ’Rin resolve celebrá-la naquele mesmo ano: todos
os seus preparativos já estão feitos e, além disso, seu filho
vai tornar a casar-se; haverá uma mulher para cuidar da
casa. 0 ’Rin ainda está forte e trabalha, conserva todos
os dentes; isto, aliás, constitui para ela ou motivo de preo
cupação: é uma vergonha poder na sua idade devorar seja
lá o que fôr, numa aldeia onde faltam alimentos. Um de
seus netos compôs uma canção zombando dela e chaman
do-a de “velha dos trinta e três dentes” e todas as crianças
a cantarolam. Conseguiu quebrar dois, batendo-os com
pedras, mas as zombarias continuaram. O neto mais velho
se casou: há agora duas mulheres jovens na casa, ela se
sente inútil e pensa cada vez mais na peregrinação. O filho
e a nora choram quando ela lhes anuncia a decisão. Rea-
liza-se a festa. 0 ’Rin espera que esteja nevando lá em
cima: isto significará que ela será bem acolhida no além.
Ao alvorecer, instala-se numa tábua que Tappei carrega
nas costas. Obedecendo à tradição, deixam a aldeia às
escondidas e não trocam mais nenhuma palavra. Escalam
a montanha. Ao aproximarem-se do cume, vêem cadáveres
e esqueletos ao pé dos rochedos. Voam corvos ao redor.
60
O cume está coberto de ossadas. Tappei deposita a velha
no chão; ela estende ao pé do rochedo uma esteira que
trouxe consigo, aí coloca um bôlo de arroz e senta-se. Não
pronuncia uma só palavra mas expulsa o filho com largos
gestos. Êste se afasta chorando e, enquanto desce, a. neve
começa a cair. Volta para avisar a mãe. Neva também
lá em cima e ela, tôda recoberta de flocos brancos, está
salmodiando uma oração. Êle grita: “ Está nevando! a oca
sião é propícia!” De nôvo ela lhe faz sinal para que se vá
e êle parte. Êle ama a mãe com grande ternura, mas o
amor filial se desenvolve no quadro que lhe fornece a socie
dade; já que a necessidade impôs êsse costume, é transpor
tando a mãe para o alto da montanha que Tappei demonstra
sua dedicação filial. \
Contrastando com esta morte conforme à tradição e
abençoada pelos deuses, o romance apresenta a do velho
Matayan: tem êle mais de 70 anos e não prepara sua partida
para a montanha. O filho, entretanto, deseja livrar-se dele
e o amarra com uma corda de palha no dia da festa de
Narayama. O pai corta os laços com os dentes, rompendo
desta maneira a “relação” com o filho, com a comunidade,
com os deuses. Foge mas o filho o recaptura. No dia
seguinte, ao descer da montanha, Tappei vê o velho amar
rado da cabeça aos pés, à beira de um abismo para onde
o filho o atira, como se fôsse um saco, e os corvos se
precipitam voando para o vale. É uma morte ignominiosa.
O filho de Matayan procedeu como um criminoso porém
o pai mereceu semelhante destino ao pretender eximir-se
ao costume estabelecido pelos deuses.
Gostaríamos de saber se os velhos sacrificados reagem
com freqüência de maneira semelhante à de Matayan, isto
é, com medo e revolta. O fato de Fusakawa conceder-lhe
no romance um lugar tão importante significa que sua ati
tude devia ser bastante representativa e não excepcional.
Talvez a edificante submissão de 0 ’Rin é que constituísse
uma exceção.
Existe um documento impressionante que prova terem
os velhos amaldiçoado muitas vezes sua triste sina: é a
epopéia dos Narta, criada há muito, muito tempo entre
os Osseta e transmitida aos Tcherkesse por tradição orral.
61
Certas passagens (n ) descrevem a angústia dos velhos diante
da iminência da execução. Os Narta eram os ancestrais mí
ticos dos Osseta que lhes atribuíam seus próprios costu
mes. Segundo a epopéia, os Narta distribuíam-se em três
famílias escalonadas do sopé até o cume de uma montanha.
Os que viviam no cume eram guerreiros, os de baixo eram
os “ricos” . Nas encostas estavam instalados os Alaegatae,
caracterizados por sua inteligência e detentores das mais
altas dignidades. Todos os Narta juntavam-se a êles quan
do tinham necessidade de tomar deliberações de interesse
público e para os banquetes de cunho religioso. No decor
rer da festa, eram mortos os velhos das três famílias, desig
nados pela “ assembléia de execução dos velhos” . Eram
envenenados ou abatidos a pancadas. Plínio o Velho e
Pompônio Mela contam que era praticado o assassinato
dos velhos citas, parentes dos Osseta do Norte. Se a “satietas
vitae” não bastasse para convencê-los a saltar para o mar
do alto de determinado rochedo, eram dali precipitados à
iôrça. A epopéia narta descreve um caso análogo de morte
voluntária: “ Urizmaeg tinha envelhecido. Tornara-se objeto
de escárnio para os jovens nartas que cuspiam nele e limpa
vam em suas vestes a sujeira das flechas. . . Êle decidiu
morrer. Degolou seu cavalo, ordenou que com o couro se
fizesse um saco, meteu-se dentro e atiraram-no ao mar” .
Mas, em geral, os velhos votados à morte não a aceitavam
de boa mente: eram forçados a sujeitar-se à lei comum,
baseada no direito e na religião. Os anciãos eram respei
tados e desempenhavam importante papel, mas, quando
atingiam uma idade bastante avançada os Nartas — conta
a epopéia — os amarravam num berço como a criancinhas
e lhes entoavam a canção de ninar para adormecê-los.
62
E para a sogra:
Dorme, dorme, princesa minha,
Dorme, dorme, mamãe princesa.
Se não dormires, minha velha mamãe,
Far-te-ei levar para os Aleg.
A velha:
Não me faças levar para os Aleg, minha princesa
[de ouro!
Lá êles matam os velhos...
O marido:
Pu, por uma vez ao menos, fecha a bôca!
Mesmo que não pensem em me levar tão bem
[agirás que me levarão.
Dizem que o que se repete com freqüência acontece.
Ah! Quem me dera ter escapado de ti uma vez
[por tôdas!
63
meus dentes não estão ainda partidos, os dêle o estão duas,
três vezes. . .
“ Quando a assembléia examina seus dentes, decidiu
que o marido era o mais velho. Levaram-no, embora res
mungasse, fizeram-no beber cerveja e atiraram-no ao vale.”
Os Osseta atuais respeitam os velhos e modificaram
certos episódios da epopéia. Os assassinatos de velhos são
apresentados como conluios criminosos e não como a apli
cação de um costume ancestral. No meio do festim, chega
um jovem herói que salva o velho.
64
tomam assento nos trenós, com os demais; quando a neve
é insuficiente, os jovens os transportam nos ombros. Bogo-
ras relata que um dêles se dirigia todos os anos, na prima
vera, ao rio Wolverene a fim de adquirir utensílios dos co
merciantes das aldeias árticas. Comprava indiscriminada
mente, trazendo facas de mesa em lugar de facas de caça.
Os jovens riam sem maldade: “ Velho caduco!... Mas, tam
bém, é tão v e l h o ! . B o g o r a s cita o caso de um sexagená
rio capenga, agarrado a sua muleta, que, não obstante, con
tinuava senhor de sua casa e de seu rebanho. Ia anualmente
à feira e gastava em bebida quase todo o seu dinheiro. Nem
por isto o respeitavam menos.
5 65
quando nos acampamentos, na mesma choça que eles. Per
siste êste amor até quando os pais atingem idade avançada,
sendo respeitados todos os velhos. O alimento é comparti
lhado por toda a comunidade: são êles os primeiros a serem
servidos e os melhores lugares nas choças lhes são atribuí
dos. Nunca são deixados sozinhos, havendo sempre um dos
filhos presente para cuidar deles. Não são jamais ridicula
rizados. Sua opinião é ouvida com atenção. Quando inteli
gentes e honestos, exercem grande influência moral. Algumas
velhas viúvas são chefes de família e a elas se obedece
rigorosamente. A experiência das pessoas de idade é posta
a serviço da comunidade: conhecem a melhor maneira de
conseguir alimentos e de executar as tarefas domésticas.
São elas que transmitem e fazem respeitar a lei não escrita.
Dão o bom exemplo, fazem admoestações e, quando neces
sário, castigam os que procedem mal.
Êste estatuto se inscreve num conjunto harmonioso.
Os Yahgan adaptaram-se maravilhosamente a seu rude am
biente. Apreciam a companhia de seus semelhantes, fre-
qüentam-se, auxiliam-se mútuamente e acolhem de bom
grado os estranhos. A luta pela vida entre êles é difícil po
rém isenta de aspereza egoísta. Acontece-lhes praticar a
eutanásia para abreviar os sofrimentos de algum moribundo.
É preciso, entretanto, que o estado do mesmo seja deses-
perador e que todos estejam de acordo.
Os observadores que descreveram os costumes dos
Yahgan não lhes explicaram o caráter idílico. Mas o fato
é que êste não é isolado. Também entre os Aleúta,
não obstante a precariedade de sua condição, é agradável
a condição dos velhos. Por causa, sem dúvida, do valor que
se atribui a sua experiência e do carinho recíproco què
une pais e filhos. Os Aleúta, são mongóis, robustos e de
belo arcabouço, habitantes das ilhas Aleútas. Deslocam-se
em canoas e vivem da pesca; alimentam-se de carne de
baleia e de cabeças fermentadas de peixe. Não acumulam
provisões e desperdiçam alimento, embora não disponham
dele em abundância. São resistentes e conseguem privar-se
dele durante dias a fio. Dividem-no entre tôda a comuni
dade. Vivem em cabanas. Executam seus trabalhos com
lentidão porém de maneira habilidosa e infatigável. Têm
muito boa memória: são capazes de imitar o artesanato
66
russo e de jogar xadrez. Alguns observadores os considera
ram preguiçosos, mas é que seus valores diferem dos das
sociedades mercantilistas; não desejam acumular bens; os
ricos são respeitados, não por suas posses, mas sim pela habi
lidade técnica que lhes possibilitou o enriquecimento. To
davia, são muito valiosas as jóias das mulheres, empreendem
por vezes, grandes expedições para irem em busca de cristal
de rocha ou de outros minerais preciosos. Dão festas:
danças, representações, banquetes. Não têm muita religião
porém acreditam no poder dos xamãs. É muito raro o in-
fanticídio entre áles. Sentem profundo amor pelas crianças:
tudo fazem por elas, dão-lhes o que há de melhor. Pode
suceder que um homem se suicide de desespero por ter
perdido um filho ou um sobrinho. E, reciprocamente, os
filhos adoram os pais e empenham-se em suavizar-lhes a
velhice: é uma desonra abandoná-los; deve-se ajudá-los,
tudo compartilhar com êles e, quando necessário, sacrificar-
-se por êles; dedicam-se de modo especial à sua mãe, mesmo
quando inválida e decrépita. Acreditam que serão recom
pensados os que tratarem bem aos pais e derem ouvidos a
seus conselhos: sua pesca será abundante e chegarão a
envelhecer. Envelhecer é transmitir um grande exemplo à
posteridade. Os anciãos instruem a juventude: cada aldeia
contava com um ou dois velhos encarregados da educação
dos jovens; eram ouvidos com respeito, mesmo quando já
caducos. O calendário está a seu cargo: trocam de lugar
o palito que indica o dia do mês, As mulheres de idade
cuidam dos doentes: todos confiam nelas. Estabeleceu-se,
de modo geral, um feliz equilíbrio entre a economia e o
amor filial. A natureza oferece recursos suficientes para que .
os pais alimentem bem a seus filhos e disponham de tempo
para cuidar dêles: em retribuição, estes nada deixam faltar
a seus velhos pais.
67
poderes. Os Aranda constituem o caso mais típico de todos:
haviam estabelecido uma verdadeira gerontocracia antes da
chegada dos missionários. São caçadores-coletores que vi
vem quase nus nas florestas australianas. Geralmente bem
nutridos, embora atravessem períodos difíceis. Cada família
se compõe de um homem, uma ou várias espôsas, crianças
e cães; os grupos totêmicos englobam diversas famílias.
Pratica-se o infanticídio quando o fato de estar amamen-
tando outro filho torna a mãe incapaz de criar o recém-
-nascido; os gêmeos são eliminados (14); pode acontecer que
se mate alguma criança para alimentar uma mais velha e
de saúde precária (e a mãe participa do banquete). As
restantes são, entretanto, muito bem tratadas. As mães são
generosas; jamais recusam o seio ao lactente e só o des
mamam bastante tarde. As crianças são deixadas na maior
liberdade e é só quando atingem idade bem adiantada que
se vêem obrigadas a respeitar os tabus sexuais. Contudo,
sua iniciação é bastante dolorosa. Os membros mais respei
tados da comunidade são os “homens de cabelos grisalhos” .
Os “ quase mortos” , damasiadamente decrépitos para levar
uma existência consciente e ativa, são bem nutridos, cuida
dos, cercados (15), mas já não exercem nenhuma influência,
enquanto os “grisalhos” desempenham um papel prepon
derante. Sua experiência prática é necessária à prosperi
dade do grupo. Com efeito, os caçadores-coletores precisam
saber uma infinidade de coisas: o que é comestível, e o que
não o é, quais os indícios que revelam a presença dos
inhames, como descobrir águas ocultas, como preparar
certos alimentos de modo a lhes retirar as propriedades
nocivas. Existem golpes de vista, gestos que só se adquirem
após longo aprendizado. Quando, além disso, os homens
de idade conhecem as tradições sagradas — cantos, mitos,
cerimônias, costumes tribais — sua autoridade se torna
imensa. Entre os primitivos, saber e magia são inseparáveis;
o conhecimento das propriedades das coisas permite sua
68
utilização de acordo, ao mesmo tempo, com as leis da cau
salidade racional e com suas afinidades mágicas; por outro
lado, as técnicas são indissolüvelmente ligadas a ritos má
gicos, sem os quais permaneceríam ineficazes. O saber dos
“grisalhos” coincide com a posse de um poder mágico:
tanto um como outro crescem com os anos. Tornando-se
yenkon, quase impotentes, atingem êles o apogeu. São ca
pazes de fazer adoecer enormes grupos de indivíduos: são
temidos. Já não se veem constrangidos a obedecer aos tabus
alimentares ( 10). Com efeito, pairam de certa forma acima
da condição humana, imunizados contra os perigos sobre
naturais que a esta ameaçam. Já não lhes é proibido o que é
interdito ao homem normal -— tanto em seu próprio bene
fício como no de tôda a comunidade. Sua condição excep
cional os designa para desempenhar um papel religioso.
O melhor intermediário entre êste mundo e o outro é
aquêle cuja idade o aproxima do além. São as pessoas de
idade que dirigem a vida religiosa e esta domina tôda a
vida social. Acha-se de posse dos objetos sagrados utiliza
dos nas cerimônias. Somente êles têm o direito de tocar
nos Churinga, pedras sagradas que simbolizam ao mesmo
tempo os antepassados míticos e os totens. Quanto mais
antigas, maior o seu valor e mais atuantes se mostram no
sentido de aproximar a comunidade viva dos heróis dos
tempos idos. Os velhos dirigem as cerimônias durante as
quais elas são expostas. Recebem marcas da maior defe
rência: os jovens só falam no decorrer destas festas quando
os anciãos a êles se dirigem. Cabe-lhes a missão de instruir
seus descendentes; transmitem-lhes os cantos, os mitos e
rituais mas reservam para si mesmos alguns segredos (1617).
São temidos pelos jovens colocados sob sua autoridade pelos
rituais de passagem. A êles também são impostas pesadas
restrições alimentares, em benefício dos velhos. Em certas
tribos, os jovens dão sangue para fortalecê-los: colhem-no
numa veia do braço, no dorso da mão ou debaixo das unhas,
para entorná-lo sôbre o corpo dos velhos ou para que êstes
&9
o bebam. Os velhos recebem alimentos como dádivas por
seu conhecimento das cerimônias, por suas atividades rituais
e por seus cantos. Sua riqueza e prestígio os impõem como
chefes da comunidade. Em princípio, é o mais idoso quem
a dirige. Todavia, quando suas faculdades declinam êle
conserva apenas um poder nominal: arranjam-lhe com gran
de sutileza um suplente mais jovem. Aconselha-se com os
homens de sua idade. Mesmo nas tribos em que a chefia
se transmite por hereditariedade ■—• e nas quais o chefe pode,
portanto, ser um jovem — os verdadeiros senhores são os
anciãos. São os árbitros em tôdas as pendências, apontam
os sítios onde devem ser instalados os novos acampamentos,
organizam os festins. Nada se faz sem o seu consentimento.
Êles se aproveitavam outrora de sua autoridade para mono
polizar as mulheres. Exigiam que se lhes reservassem tôdas
as jovens. O motivo era menos de ordem sexual que eco
nômica e social. As jovens devem se casar assim que atingem
a puberdade e os rapazes precisam aguardar a iniciação.
O ancião e sua velha espôsa tinham interesse, sobretudo, em
se fazer alimentar por uma mulher jovem. Dizia a velha:
“ O pobre velho precisa ter uma jovem espôsa que lhe vá
buscar mel e água.” Os jovens não encontravam com quem
casar.
Magia, religião e técnica constituem a essência da cul
tura nas sociedades primitivas. Êstes três setores se acham
intimamente ligados, relacionando-se a magia ao mesmo
tempo, com a técnica e com a religião. Ambas são bené
ficas à comunidade: a magia é ambivalente. Entre os Aran-
das, o “ grisalho” impera nos três campos. Seu valor é ines
timável enquanto se revela detentor do saber e apto às
funções religiosas, inspirando a um tempo respeito e temor
devido a seus poderes mágicos. É análogo o esquema en
contrado entre os Zanda do Sudão, porém a magia aí pre
domina e o homem de idade baseia sua autoridade sobre
tudo no temor. Vivem nas savanas do produto da caça, da
pesca, de colheitas e culturas: milho, mandioca, batata-doce,
banana. A caça é abundante. Seu artesanato, bastante de
senvolvido. Acreditam num deus, Mbori, mas sua preocupa
ção mais constante é a feitiçaria. Admitem que cada indiví
duo possui um poder a que dão o nome de mangu: é uma
substância que tem relação com o fígado e cresce com os
70
anos. Como entre os Aranda, os homens de idade possuem
conhecimentos úteis; são também os feiticeiros mais pode
rosos: ao porem em prática seus malefícios, são menos
tolhidos pelo escrúpulos que os demais, pois a proximidade
da morte os torna mais indiferentes aos riscos de represálias.
Daí resulta ficar o controle da comunidade entre suas mãos.
Pedem-lhes que abençoem as expedições de caça: estas fra
cassariam se eles as amaldiçoassem. Sua benevolência é
comprada com distribuições de carne, sempre que a expedi
ção é coroada de êxito. O filho achava-se outrora muito
subordinado ao pai. Os anciãos aproveitavam-se da situação
para tomarem para si tôdas as mulheres, a ponto de se tornar
difícil o casamento de um jovem. As coisas mudaram um
pouco, sob êste aspecto, em conseqiiência dos contatos com
os brancos.
É indiscutível que, sob a influência destes, surgiram
discrepâncias entre as crenças da geração mais nova e as
da mais antiga. Esta sempre atribui a morte a algum ma
lefício. Quando o morto é muito idoso, admite-se que se
haja esgotado o tempo que lhe fora outorgado sobre a terra
tendo bastado um fraco mangu para matá-lo. A morte é
atribuída, por vêzes, a Deus. Afirma-se: “ Mbori o levou” ;
a vida é comparada a uma haste que Mbori vai roendo pou
co a pouco: quando chega ao fim, a pessoa morre; mas não
sem a intervenção de algum feiticeiro, do qual a família
procura vingar-se. Os jovens, entretanto, associam a morte
à decrepitude. Dizem do morto: “ Já comeu sua parte” .
Acreditam na feitiçaria, porém a morte de um velho lhes
parece natural e não vêem necessidade de se fazerem tantas
histórias a respeito. Assim se exprimem em particular, com
todo o cinismo, enquanto cumprem em público os deveres
prescritos para com os mortos.
É considerável o papel da magia entre os índios do
Grande Chaco — Xorati, Mataco, Toba — que constituem
tribos seminômades, vivendo dos abundantes frutos da flo
resta e da criação de avestruzes. Contentam-se com pouco
e não armazenam provisões pois confiam no dia de amanhã:
não lhes faltará alimento. O chefe é um homem avançado
em anos, eleito por ocasião da morte do chefe precedente,
pelos pais de família mais idosos. Seu poder é mais norni-
71
nal que real. A influência exercida pelo velho é devida
sobretudo ao cunho sagrado a êle conferido pela idade.
Sendo fácil a sua subsistência, esses índios dispõem de mui
tos lazeres que consagram à vida religiosa, orientada pelos
velhos, já desobrigados dos tabus alimentares. São temidos
pelos podêres mágicos de que podem lançar mão e capazes
de enfeitiçar os inimigos. Acredita-se que, depois de mortos,
êles se tomam espíritos maléficos: é sempre sob a figura
de um velho que os índios afirmam ter visto um dêsses
espíritos. Admitem que sua nocividade aumenta com os
anos: matam-no com uma flechada no coração e queimam
o cadáver, quando se torna fraco e impotente. Como nas
histórias de zumbis, parece que êste aniquilamento total
do corpo evita que êle se transforme em fantasma.
A relação entre saber e poder mágico é muito aparente
entre os índios Navajo e confere a alguns velhos grande
autoridade. Constituem uma sociedade bastante complexa,
de cultura muito desenvolvida, influenciada pela civilização
dos brancos, com os quais mantêm contatos permanentes ( 18).
Habitam ao Noroeste do Arizona um vasto território árido
que irrigações e chuvas abundantes conseguem fertilizar.
Possuem cavalos, rebanhos e dois ou três pontos de parada
onde se reúnem, segundo as estações. É uma sociedade de
abundância. Comem pão, carne, conservas adquiridas dos
brancos. Possuem belas vestimentas adornadas com tur
quesas e prata; sabem tratar êste metal, tecem e pintam.
São muito desenvolvidos entre êles a poesia, o canto, a
dança, as artes imaginativas. A família é matrilinear, sendo
as mulheres muito respeitadas; seus rebanhos são, com
freqüência, mais importantes que os de seus maridos. São
calorosas as relações entre avós e netos; os pais da mãe são
os que têm maior participação na educação das crianças.
Estas vivem por vezes, a partir dos 9 ou 10 anos, em com
panhia dos avós a quem prestam serviços. O neto mantém
com o avô “ relações de brinquedo” . Apostam corridas
e o vencedor ganha uma sela para cavalo. É, com freqüên
cia, o jovem quem desafia o avô a rolar na neve ou a saltar
72
um vaiado. Diverte-se gentilmente às suas custas (19). Os
avós tratam as crianças de maneira admirável porém as
tarefas que lhes são impostas suscitam freqüentes ressenti
mentos entre elas.
Esta sociedade civilizada e próspera se encarrega de
todos os enfermos, dos fracos e inadaptados. Cuida com
muito carinho dos velhos, mesmo quando decrépitos e cadu-
cos. Sucede de vez em quando que algum deles se deso
riente, deixe seu domicílio e fique a vagabundear: trazem-no
de volta para casa. Entretanto, de que maneira compensarão
êles o recalque provocado pelo respeito que são obrigados
a lhes demonstrar? Os jovens e os homens maduros zom
bam dos inválidos e dos gagos: fazem-no às escondidas,
receando sua vingança. Com efeito, a idade os promove do
domínio profano ao sagrado, sendo-lhes atribuído extraordi
nário poder sobrenatural, sobretudo aos homens. Durante
um processo movido a 222 feiticeiros, contaram-se entre êles
38 mulheres todas idosas, e 184 homens, sendo 122 velhos.
Todos êles são temidos. Ninguém se atreve a recusar hos
pitalidade a um ancião, por mais importuno que seja. Mui
tos, todavia, não exercem a menor influência e são margina
lizados. Pouca consideração merece o velho ignorante. Aci
ma de tudo, são respeitados os cantores capazes de conservar
e transmitir as tradições: contos, mitos, rituais, cerimônias,
danças, fórmulas. São tidos como seres sagrados, deten
tores de imensos poderes. Graças a sua memória, êles ga
rantem o perpetuamento da comunidade através dos tem
pos. Mas, os “ cantos” têm também o valor de sortilégios:
permitem que se controlem as condições atmosféricas, que
se curem os doentes ou se preveja o futuro. Êsses cantos
constituem propriedade privada de quem os conhece e êste
recebe presentes dos jovens aos quais os ensina: cavalos,
quantias em dinheiro. É também presenteado quando uti
liza sua ciência em benefício de um indivíduo, de um grupo
ou da coletividade.
É na velhice que o cantor adquire maior reputação.
Os cantores idosos são, portanto, duplamente poderosos:
74
Foi graças a sua experiência que se desenvolveram a ciência
dos animais e a das plantas, assim como a farmacologia.
Transmitem os mitos e as canções. Além desta sabedoria
possuem um poder sobrenatural sempre crescente, mesmo
quando se acham decrépitos. São as pessoas mais idosas
da família que dão nome às crianças, integrando o recém-
-nascido no círculo familiar. Os anciãos interpretam os
sonhos dos jovens e promovem sua iniciação; ensinam-lhes
o uso do tabaco e de narcóticos. Homens e mulheres de
idade, sem serem sacerdotes, dirigem as cerimônias e as
festividades religiosas. A guerra constitui o passatempo
favorito dos Jivaro — em geral, o chefe da expedição é
um homem bastante entrado em anos. Sucede, às vezes,
os velhos guerreiros trazerem para casa prisioneiras escolhidas
nas tribos inimigas; dormem com elas, que freqüentemente
os enganam com homens mais jovens, sendo então espan
cadas, não raro, até à morte. Também entre os Jivaro se
teme a vingança póstuma dos anciãos. Se maltratados, êles
reencarnariam nalgum animal perigoso (jaguar, anaconda...)
e voltariam para castigar os culpados.
Entre os Lelê, tribo que povoa uma área de florestas
e savanas na vizinhança do Congo, até por volta de 1930
foram consideráveis as prerrogativas dos homens de idade.
A tribo era muito menos rica que a dos Bushong que viviam
nas suas proximidades e em condições análogas, dedican
do-se, como êles, à agricultura, à caça, à pesca, à tecelagem.
Seu solo é um pouco mais pobre, a estiagem um pouco mais
prolongada, mas essas diferenças não bastam para explicar
o desnível de vida, proveniente, essencialmente, do contexto
social. São menos trabalhadores, relatam os etnólogos que
os observaram no início do século, e empregam técnicas
mais rudimentares. Não buscam triunfos pessoais por te
merem ser invejados e especialmente pelo fato de não ser
o acúmulo de riquezas e sim a idade que lhes confere pres
tígio. A divisão do trabalho só lhes atribui algumas poucas
tarefas; praticam a poligamia, açambarcando as mulheres, e
estas trabalham para êles; seus genros também são obriga
dos a lhes prestar serviços. Os jovens só têm direito a uma
espôsa coletiva: em troca de vestimentas tecidas, o velho
dá uma de suas filhas de presente à classe jovem da aldeia,
que se torna desta maneira, inteirinha, seu genro. Não existe
75
colaboração amistosa entre as classes de idade. Os jovens
não podem rivalizar com os velhos; o homem de idade
tem o monopólio da profissão que exerce: tocar o tambor,
trabalhar na forja, esculpir madeira. Em dado momento,
abandona-a após a haver ensinado a um jovem a quem
caberá daí por diante o monopólio.
Nenhum cargo político de projeção é confiado aos ve
lhos, mas estes conservam uma autoridade religiosa que lhes
assegura grandes privilégios. A fim de não os perder, cui
dam ciosamente de permanecer indispensáveis à comunidade.
Guardam segrêdo a respeito dos rituais das cerimônias e dos
remédios; são os únicos, no seio do clã, a conhecer as dívi
das contraídas por êste ou aquele, assim como as negocia
ções matrimoniais: êste conhecimento é indispensável ao
bom andamento dos negócios. Precisam, entretanto, dos
jovens, únicos detentores da força física necessária à caça,
à pesca e ao transporte das bagagens dos europeus. Quando
se consideram maltratados os jovens ameaçam ir embora.
Os velhos castigam os indisciplinados, privando-os de mu
lheres, excluindo-os do culto. Estabelece-se um certo equi
líbrio, apesar deste conflito. Os jovens sabem que os velhos
acabarão morrendo, que herdarão as viúvas e obterão os
privilégios da idade provecta. Tudo se passa como se os
Lelê houvessem sacrificado seu status geral para criar uma
espécie de previdência social que os ampare na velhice.
Em 1947 a situação se achava bastante mudada: os jovens
se haviam convertido ao cristianismo e sentiam-se protegidos
pelas missões e pelo govêmo. Desposavam jovens cristãs e
trabalhavam para os europeus. Já quase não existiam classes
de idade.
Entre os Tiv, a contribuição cultural dos velhos cons
titui a fonte de seus privilégios. São Bantos estabelecidos
na Nigéria, dedicados ao cultivo da terra, à criação de gado
em pequena escala, à caça, à tecelagem, à cerâmica e à
colheita de plantas úteis. Criam os filhos na maior liber
dade e êstes, quando crescidos, trabalham com os pais.
São também bastante ligados aos avós que lhes transmitem
com freqüência sua experiência religiosa e mágica. A idade
adulta é considerada a mais completa; o calor é seu apaná
gio, sendo frio o corpo das crianças e o dos velhos. Diz-se
das pessoas muito idosas que “ estão acabando o corpo” ,
76
(contudo, nem a impotência nem o dessecamento senis lhes
parecem relacionados com a velhice: atribuem a primeira
à magia e a segunda a alguma doença). Oficialmente, são
todos respeitados mas só possuem realmente influência os
dotados de conhecimentos e de capacidade; aos demais não
se confia nenhuma função: são alimentados, recebem tra
tamento respeitoso mas não contam para nada. A família é
patriarcal: seu chefe é o homem mais velho quando êste
dispõe das qualidades necessárias. O chefe da comunidade
também é o mais idoso, caso preencha a mesma condição;
se não, atribuem-lhe um título mas nenhuma autoridade
real. Os que são capazes de julgar com discernimento, que
sabem falar bem e conhecem as genealogias e os rituais são
considerados sábios e dirigem o povo. Êles “ conhecem as
coisas” e controlam as forças mágicas. Zelam pela fertili
dade da terra. Tôdas as atividades sociais — tratados, paz
e guerra, heranças e processos — dependem da magia, es
tando, portanto, em suas mãos (20). Curam os doentes, são
os árbitros de tôda as pendências e o sustentáculo das estru
turas sociais. Por estarem tão próximos dos ancestrais,
desempenham relevante função religiosa e pronunciam
oráculos. Os Tiv veneram pedras sagradas: cozinhar os
alimentos a elas oferecidos constitui tarefa reservada às
velhas: homens e mulheres de idade dirigem as cerimônias.
Ao perderem a força e as faculdades, os velhos se afastam
da vida social, conservando, no máximo, um cargo honorí
fico. Alguns continuam a exercer funções religiosas. Pode
acontecer que um velho se canse da vida: reúne então os
parentes e distribui entre êles seus fetiches, antes de se
suicidar.
É também no respeito inspirado por sua sabedoria que
os velhos Kikuyu assentam sua autoridade. São Bantos
que vivem no sopé e nas encostas do monte Quênia: eram
mais de um milhão em 1948 e mantêm contatos freqüentes
com a civilização moderna; foram escravos de fazendeiros
europeus. Vivem da agricultura e da criação de gado. Sua
civilização se construiu em torno do sistema tribal que re-
77
\
pôusá, por sua vez, no grupo familiar; todos trabalham
juntos no seio da Grande Família. Atribuem extrema im
portância às “classes de idade” que compreendem todos
os homens circuncisos no mesmo ano; a mais antiga tem
primazia sobre as outras. São estreitos os laços entre avós
e netos que pertencem simbolicamente ao mesmo grupo de
idade. A avó chama o neto de “meu marido” e o avô à
neta, “minha espôsa”. Os filhos respeitam seus progenitores,
representando a maldição do pai ou da mãe a mais horrível
desgraça: nenhuma purificação a poderá apagar. Encar
regam-se dos pais quando estes envelhecem e dêles cuidam
muito bem. Quando não tem filhos, o velho é amparado
pelos do vizinho e os considera como se fôssem seus. A or
ganização militar é confiada aos jovens. A geração mais
velha governa os assuntos públicos. Cada geração exerce
o poder durante vinte ou trinta anos, findos os quais ela
se demite em favor da geração seguinte, durante uma ceri
mônia denominada itwika. Uma geração compreende, por
tanto, todas as classes de idade incluídas entre duas itwika.
O homem cujos filhos todos já foram circuncisos e cuja
mulher ultrapassou a idade de procriar, não governa mais
os negócios públicos mas ascende ao mais elevado grau da
hierarquia social e faz parte do conselho supremo. Êste
desempenha altas funções religiosas, a que só têm acesso
os que se submetem a uma iniciação (21). Os iniciados têm
o direito de oferecer sacrifícios às divindades e aos espíritos
dos antepassados; apagam as máculas rituais, amaldiçoam
os maus, sendo temível sua maldição. Determinam a data
da circuncisão e da itwika. Cabe-lhes distribuir a justiça
pois admite-se que estejam livres das paixões e julguem
com imparcialidade. Existe também um conselho de velhas,
detentoras de um poder mágico e encarregadas de zelar
pelos costumes e de punir os jovens delinqüentes. Homens
e mulheres de idade representam um papel essencial nas
cerimônias de iniciação. Os velhos são considerados “ Santos
Homens”, serenos e desprendidos do mundo. Sua influên
78
cia depende de suas capacidades, mas suàs posses também
são levadas em conta. De maneira geral, são tidos como
sábios: “ Um bode velho não cospe à tôa”, costumam dizer,
e também: “ Gente velha não mente jamais” . As velhas
desdentadas inspiram grande respeito; julgam-nas “cheias
de inteligência” e enterram-nas de maneira pomposa, em
lugar de abandonar seus cadáveres às hienas.
É graças a sua memória que as pessoas de idade alcan
çam freqüentemente um estatuto privilegiado. É o que
sucede entre os Miao que vivem em elevada altitude nas
florestas e cerrados da China e da Tailândia. Êsses povos
estavam a caminho de uma cultura bastante desenvolvida
mas sua evolução foi interrompida, devido, provavelmente,
a guerras. A família é de cunho patriarcal: o filho não
deixa a casa paterna antes de completar 30 anos. Em prin
cípio, o chefe tem direito de vida e de morte sobre todos
os membros da família; na prática, são excelentes as relações
entre pais e filhos que se aconselham reciprocamente. Têm
muitos filhos; os avós cuidam dos netos. Crianças, mulheres
e pessoas de idade são todas muito bem tratadas. Quando
uma das últimas se vê só no mundo, tendo sobrevivido a
todos os seus descendentes, coloca-se sob a proteção do
chefe de uma grande família: é sempre aceita, embora re
presente um encargo. Acredita-se que a alma dos mortos
vive na casa e a protege, reencarnando-se nos recém-nasci
dos. O respeito tributado aos velhos está em relação com
o fato de serem êles os transmissores das tradições; sua
memória dos antigos mitos lhes vale um grande prestígio.
São os guias e conselheiros da coletividade. As decisões
políticas são executadas pelos jovens cuja aprovação se
torna, portanto, necessária; mas em geral êles se dobram à
vontade dos anciãos.
O papel da memória é ainda mais evidente entre os
Mende, cuja organização política tem raízes em longínquo
passado. São um povo muçulmano que, em 1931 (22), con
tava 572 000 membros, habitantes da Serra Leoa. As famí
lias vivem em regime patriarcal, com várias gerações abri
gadas sob o mesmo teto. Seu chefe é o homem mais idoso:
79
à mesa, é o primeiro a ser servido, fazendo a partilha, em
primeiro lugar com os de sua geração. Há duas classes
bem definidas: a classe superior, constituída pelos descen
dentes dos caçadores e guerreiros que ocuparam inicial
mente a terra; a ela pertencem os chefes e suas famílias;
os mais idosos são denominados “ os grandes” . A segunda
classe é a dos adventícios e descendentes de escravos. Os
primeiros são donos da terra, transmitida como herança, do
pai para o filho mais velho. Os segundos são meros ocupan
tes. O proprietário tem direito aos serviços de todos na
casa; êstes executam os trabalhos da fazenda, cultivam
arroz, fabricam óleo de palmeiras, caçam e pescam. Êle
lhes tece as vestimentas. À frente de cada grupo acha-se,
na qualidade de chefe, uma pessoa de idade: não será ne-
cessàriamente a mais idosa mas sim a que exercer maior
influência; poderá ser uma viúva cujo falecido marido tenha
sido dotado de personalidade marcante. Quando o chefe
se torna senil, designa-se um regente, como suplente. So
mente a memória permite estabelecer a classe a que per
tence cada indivíduo. Aquele que aspira à chefia deve
conhecer a história do país, as genealogias, as biografias dos
fundadores e de seus descendentes, e este saber lhe é neces-
sàriamente transmitido por seus avós. É nas mãos dêles
que está a tradição, de modo que é sôbre eles que repousa
a organização política. Os Mende, por outro lado, vivem
em estreita intimidade com o espírito dos antepassados mais
próximos: os das duas gerações precedentes. Chamam-nos
de “ avós” e acham que êles participam da vida da família.
Mais próximos dos antepassados que o resto da comunidade,
aos velhos cabe um papel de mediadores entre esta e aquê-
les. É o membro mais idoso da família quem dirige o culto.
É conselheiro muito acatado em questões religiosas, sendo
pronunciada a sua influência em todos os domínios.
80
é patriarcal e as crianças, muito felizes, são afeiçoadas aos
pais. A idade é reverenciada no seio da família. Em sinal
de respeito, tratam-se as pessoas de uma geração como se
pertencessem à precedente: chama-se os sogros de avô e avó,
aos irmãos e irmãs mais velhos, pai e mãe. Com o mesmo
intuito, qualifica-se alguém de velho. Os filhos cercam seus
velhos pais de cuidados. É muito ditosa a sorte do ancião
que possui numerosos descendentes vivos. Sua saúde e
prosperidade são admiradas: consideram-no uma espécie
de talismã. Levam-lhe presentes, com a esperança de adqui
rir suas virtudes. Mas se não tiver filhos nem fôrças para
trabalhar, o velho não passará de um restolho: tratam-no,
quando muito, com polidez, mas é encarado como uma
praga. A atitude é idêntica com relação aos dois sexos.
G. Gorer, que conviveu algum tempo com os Lepcha, conta
terem-lhe mostrado um velho muito piedoso porém des
prezado por não saber ler; não tinha filhos e estava coberto
de feridas. Todo mundo caçoava dele e dizia que faria
melhor se morresse: “ Por que não morre enquanto os eu
ropeus estão aqui? Poderíam assim assistir a seus fune
rais . . . ” O único trunfo de que dispõem os velhos nessa
sociedade são os filhos; por si mesmos nada valem.
Já encontramos diversos casos em que os velhos se
achavam no ápice ou no ponto mais baixo da escala social,
dependendo isto de suas capacidades e de sua fortuna.
Os Tai constituem um exemplo eloqiiente de discriminação
devida à riqueza. Trata-se de adeptos do budismo, habi
tando as fronteiras do Yunan e de Burma. Dividem a exis
tência humana em quatro períodos; a passagem de um para
o outro é assinalada por um serviço religioso, o Pai. Para
atingir o quarto grau, estando os filhos já criados, é preciso
celebrar o Grande Pai, prolongada cerimônia com acompa
nhamento de cantos, danças, jogos, procissões e sacrifícios
e que dura pelo menos três dias. Extremamente onerosa,
somente os ricos a podem custear. Dispondo de recursos
para tanto, êles a celebram não uma porém várias vêzes,
o que lhes acarreta um aumento de prestígio. O número
de anos não é suficiente para conferir superioridade social;
mas é venerado o homem que se arruina celebrando doze
vêzes o Grande Pai. Seu título de Paga não lhe traz ne
nhum poder econômico ou político; porém, ao consumir sua
6 81
fortuna ritualmente, êle se alça até o pináculo da hierarquia
social.
Existem sociedades prósperas e equilibradas nas quais a
idade não constitui nem decadência nem fonte de prestígio.
É o que vamos verificar em três exemplos, muito diferentes
sob outros aspectos.
Os Cuna, cêrca de 25 000, vivem no litoral do Panamá
e em algumas ilhas do Atlântico onde o clima é temperado,
apesar de as aldeias se verem de qunndo em quando var
ridas pelas marés. Transportam-se em canoas através da
mata virgem. Dotados de excelente saúde, muitos chegam
aos cem anos. Vivem em aldeamentos e trabalham em
grupos; as mulheres labutam nos campos e em casa; os
homens pescam, caçam, derrubam árvores; as colheitas são
abundantes de milho, bananas e cocos e êles comerciam
com êstes produtos. As mulheres guardam o dinheiro com
que os homens compram, entre outras coisas, barcos a
motor; mulheres e crianças usam bonitas roupas; os homens
se vestem à moda européia. Todos êles são muito cuidadosos
com a própria aparência, lavam-se e suas casas e as ruas
de suas aldeias são muito limpas. Sua cultura é bastante
adiantada: cantos, um sistema de cálculo, duas línguas eso
téricas de uso exclusivo do chefe e dos xamãs, uma escrita
incipiente. A religião é sumária: ligados à saúde do corpo
são venerados somente divindades e espíritos. Os xamãs e
os feiticeiros defendem as pessoas contra as moléstias. As
famílias são conjugais e reunidas num grupo matrilocal en
cabeçado pelo marido da irmã mais velha. Têm muitos
filhos. Graças a sua excelente saúde, as pessoas de idade,
mesmo quando muito avançadas em anos, continuam a
levar uma existência ativa; as velhas são responsáveis pela
casa e pela venda dos cocos. São os homens que se espe
cializam nos assuntos religiosos, daí não lhes advindo, en
tretanto, nenhum prestígio especial. A idade só confere
valor particular quando acompanhada de inteligência e ex
periência. Obedece-se ao chefe de família, geralmente idoso,
quando êste se mostra capaz. A primeira coisa que se
exige do chefe da aldeia presidente das assembléias é a
instrução: a idade só conta até certo ponto. De um modo
geral, os velhos se acham nas mesmas condições que os
jovens e não suscitam problemas especiais.
82
Os incas tiveram uma grande história. No espaço de
um século, conquistaram e perderam um império. Sua civi
lização, no entanto, era repetitiva, fundada em tradições
orais. Das civilizações arcáicas, é uma das que melhor co
nhecemos. Será interessante apurar o lugar ocupado nela
pelos velhos.
Os incas tinham costumes brutais, mas técnicas e uma
organização social notàvelmente desenvolvidas. Os homens
consagravam boa parte de seu tempo à guerra e tratavam os
prisioneiros com grande selvageria. Agricultores notáveis,
sabiam preparar terraceamentos nas encostas das montanhas
e adubavam o solo com guano; cultivavam a batata, o milho
e outros cereais, uma infinidade de plantas; haviam domes
ticado o lhama e o alpaca, seus rebanhos prosperavam. Guar
davam os cereais em vastos armazéns. Exploravam minas de
ouro, de prata, de chumbo e de mercúrio. Empreendiam
importantes trabalhos hidráulicos: canais, reservatórios, re
presas. Seis grandes estradas cortavam seu território; pon
tes suspensas feitas com cordas eram lançadas sobre os rios.
Construíram magníficos edifícios: cidades, palácios, templos.
O artesanato era muito desenvolvido, sobretudo o do ouro
e da prata. Muito animada a vida econômica: havia feiras
onde os camponeses iam trocar seus produtos. As terras se
achavam divididas em três lotes: um dêles, consagrado ao
Sol, o segundo, pertencente ao Inca e o terceiro, às castas
mais elevadas que o faziam cultivar pelos camponeses.
O aspecto mais digno de nota nesta civilização é a sua
característica de civilização de aproveitamento integral. A
partir dos 5 anos, todos tinham o dever de se tornar úteis.
Os homens dividiam-se em dez classes, as mulheres, noutras
dez; em nove dentre elas, o agrupamento se fazia por idade
e uma reunia todos os enfermos e inválidos. A cada cate
goria cabiam tarefas próprias e o dever de servir a comu
nidade da melhor maneira possível. A mais respeitada era
a dos guerreiros, homens de 25 a 50 anos. Estavam a serviço
do rei e dos senhores, sendo alguns dêles enviados para as
minas. Casavam-se por volta dos 35 anos e as mulheres
aos 33. Antes dos 25, deviam obedecer aos pais, prestar-lhes
assistência e servir aos caciques. A partir dos 9 anos, meni
nas e môças serviam a família, teciam, cuidavam dos re
banhos.
83
A idade não suprimia a obrigação de trabalhar. Depois
dos 50 anos, os homens ficavam isentos de serviço militar
e de tôdas as tarefas penosas. Deviam, contudo, trabalhar
na casa do chefe e nos campos. Conservavam a autoridade
no seio da família. As mulheres de mais de 50 anos teciam
vestimentas para a comunidade; punham-se a serviço de
mulheres ricas na qualidade de amas, cozinheiras etc. Dos
80 anos em diante, já surdos, a única coisa que sabiam
fazer era comer e dormir. Mesmo assim eram utilizados:
fabricavam cordas e tapetes, guardavam as casas, criavam
coelhos e patos, juntavam folhas e palha. As mulheres te
ciam e fiavam, guardavam as casas, ajudavam a criar as
crianças e continuavam a servir as ricas; vigiavam as servas
jovens. Nada lhes faltava, quando possuíam campos: caso
contrário, recebiam esmolas. O mesmo ocorria com os ho
mens: davam-lhes comida e vestimenta, guardavam-lhes as
cabras, tratavam deles quando adoeciam. De um modo
geral, os homens de idade eram temidos, venerados e obe
decidos. Podiam aconselhar, ensinar, dar bons exemplos,
pregar o bem, ajudar no serviço do culto. Serviam de
guardas para as môças. Tinham o direito de vergastar os
meninos e as meninas que não se mostrassem dóceis.
Os habitantes de Bali não podem ser considerados pri
mitivos; conheceram durante séculos uma adiantada civi
lização, que permaneceu livre de qualquer influência estran
geira, graças ao isolamento da ilha. Os holandeses gover-
naram-na por intermédio da aristocracia que explorava a po
pulação rural sem lhe modificar a estrutura social nem a
maneira de viver. Uma cultura arcaica aí se manteve até
nossos dias, transmitida por tradição oral, visto não saberem
os balineses nem ler nem escrever. Estamos pois autori
zados a alinhá-la ao lado das sociedades sem história.
Os balineses plantam arroz, levaram esta cultura a um
grau de perfeição não atingido por nenhum outro povo.
Possuem gado de excelente qualidade, porcos e galináceos.
São variados e abundantes os produtos da terra, os frutos
e os legumes. Vendem-nos nas grandes feiras que se rea
lizam freqüentemente. As aldeias são bem construídas e
ainda melhor conservadas; muito desenvolvido o artesanato,
assim como a música, a poesia, a dança, o teatro. O povo
respeita a aristocracia que com êle não se mistura. Cada
84
aldeia constitui, pràticamente, uma pequena república. É
dirigida por uma assembléia de que devem participar todos
os homens casados, donos de uma casa ou de um terreno.
Os chefes são geralmente eleitos mas, algumas vêzes, a
hereditariedade influi. Representam na terra a autoridade
dos deuses: controlam as terras, as casas e toda a vida
social. São muito estreitos os laços de cada indivíduo com
a comunidade: a expulsão é o maior castigo que se pode
infligir a um de seus membros. São hospitaleiros e bastante
corteses uns com os outros. Muito inteligentes, têm corpos
elegantes do que são extremamente cônscios: seus gestos
são ponderados e harmoniosos. Afustam-se de boa mente
aos papéis que lhes são atribuídos: criança, adolescente,
mulher, adulto, velho.
Pais e avós acarinham e mimam os filhos. A idade é
respeitada embora não confira nenhuma virtude mágica.
A posição ocupada por cada um nos conselhos eleva-se com
o decorrer dos anos. Todos os meses se reúnem os anciãos
da aldeia e participam de um festim com as divindades.
Próximas dos homens, estas os visitam de bom grado.
A religião dos balineses é sincrética, colhida nas fndias, na
China, em Java e toda impregnada de animismo. Adoram
o Sol, a Lua, a água e todos os princípios da fertilidade.
Criou-se um culto em tômo do arroz. Acreditam na exis
tência de fantasmas que exercem podêres maléficos sobre
os vivos.
Conta-se em Bali que, outrora, numa aldeia perdida nas
montanhas, os velhos eram sacrificados e comidos. Chegou
uma época em que já não existia um só e as tradições
estavam se perdendo. Pretendeu-se construir uma grande
sala para abrigar o Conselho. Entretanto, ao se examinarem
os troncos das árvores derrubadas para aquele fim, ninguém
foi capaz de distinguir a parte de baixo da de cima, se
fôsse invertido o sentido das toras, terríveis catástrofes
seriam desencadeadas. Um jovem declarou que saberia
resolver o problema se lhe prometessem nunca mais comer
os velhos. Prometeram. E êle trouxe o próprio avô que
havia escondido, o qual ensinou a comunidade a distinguir
a base da parte superior.
Os habitantes da aldeia protestam afirmando que tal
costume jamais existiu. Seja como fôr, os velhos são muito
85
respeitados em todo o país: isto se dá, em parte, por esca
parem à decadência senil, graças à existência livre de pri
vações que puderam levar. Conservam-se cheios de saúde
durante muito tempo; não se apresentam encarquilhados
nem desajeitados; mantêm o domínio do corpo e a facili
dade de movimentos que adquiriram na juventude. Mu
lheres de 60 anos e até mais conservam uma bela silhueta
e a fôrça necessária para transportar sôbre a cabeça pesa
dos potes d’água e cestas de frutas de 40 a 50 libras (20
a 25 quilos). Só deixam de trabalhar quando atacados
por graves enfermidades; consideram a ociosidade perni
ciosa para sua saúde física e moral e propícia à investida
de forças sobrenaturais. A atividade das mulheres chega
até, pelo contrário, a aumentar com os anos; podem-se ver
algumas, com mais de 60 anos, dirigindo a casa e executan
do pessoalmente a maioria das tarefas domésticas. Os ho
mens idosos trabalham pouuco, discutem e mascam betei,
mas são-lhes atribuídas numerosas obrigações: dirigem a
associação da aldeia, são médicos, contadores de histórias,
ensinam arte e poesia aos jovens. Encarregam-se, também
com freqüáncia, de levar os patos aos campos. Desempe
nham relevante papel nas cerimônias religiosas. Há homens
e mulheres muito idosos que são excelentes dançarinos.
Entram em transe e pronunciam oráculos. É muito impor
tante o papel tanto de homens como de mulheres pois as
distinções de sexo são abolidas pela idade. São consultados
a propósito de tudo. Quando se tornam muito velhos e in
capazes, passam a ser chamados avô e avó. Pelo fato de
serem desdentados, consideram-nos próximos das crianças;
admite-se que reencarnarão dentro em breve sob a forma
de um recém-nascido. Perdem, então, tôda influência mas
continuam a ser bem tratados e alimentados. Mesmo quan
do fraco e impotente, o velho pode ser sacerdote de um
templo; mas terá, neste caso, um assistente mais jovem e
sua função se torna puramente honorífica.
Não parecem ser temidos. Todavia, Ranga, a feiticeira
devoradora de crianças, aparece nas representações de peças
mágicas, sob a forma de uma velha de seios caídos, coberta
de cabelos brancos que lhe descem até os pés. É perso
nificada por um velho ator: graças à idade, êle está imuni
zado contra o espírito maléfico da feiticeira.
V 56
No que diz respeito à condição dos velhos, os mate
riais que tive a minha disposição, não me permitiram iden
tificar um fator a que os etnólogos atribuem enorme im
portância: a organização social. Certas comunidades cons
tituem hordas, bandos, agrupamentos pouco estruturados.
Mas quando os clãs ou as tribos se fixam em determinado
território — significando isto que a sociedade se torna
agrícola — surge com freqüência a necessidade de deter
minar com precisão as diferentes linhagens a fim de definir
os direitos de sucessão, os intercâmbios matrimoniais, as
relações entre indivíduos. A linhagem nos faz retornar ao
ancestral, é por ele legitimada e constitui seu prolongamento.
Os ancestrais não são relegados ao passado; a comunidade
— família, clã, tribo — a que pertence a terra, abrange
tanto os vivos como os mortos; alicerça misticamente seus
direitos sobre os dos mortos de quem se considera herdeira.
Admite-se, por vêzes, a reencarnação do ancestral na pessoa
de um recém-nascido, seu descendente, de modo que as
novas gerações revivescem as antigas. Não se pratica o
culto dos ancestrais em todas as sociedades de linhagem:
todavia, é isto cpie ocorre na maioria dos casos. O ante
passado é um espírito benévolo que reside debaixo do teto
de seus descendentes ou que, pelo menos se lhes mostra
propício quando recebe o culto que lhe é devido. Cabe
ao homem de idade dirigir as cerimônias e os sacrifícios
executados em sua honra. Achando-se mais próximo do
ancestral que os jovens, também destinado a se tornar den
tro em breve um ancestral, é-lhe atribuído um caráter
sagrado. Sua estirpe nele se encarna e é graças a êle que se
podem estabelecer relações corretas com as outras estirpes:
é o símbolo e o artífice da ordem. Existe, por conseguinte,
nestas sociedades, uma imagem bem determinada do velho,
sendo-lhe reconhecido oficialmente um estatuto. Ao passo
que nas hordas e nos bandos — tal como em nossas socie
dades industriais modernas — esse estatuto é contingente.
Tanto varia de grupo para grupo, como no interior do
próprio grupo.
87
“ sacuda o coqueiro”; também não é justo alimentar uma
imagem idílica de seu destino. Êste se explica pelos fatores
que indicamos de passagem e dos quais devemos agora es
clarecer o papel e as relações.
É mais que evidente o fato de contar o velho com
melhores possibilidades de sobrevivência nas sociedades
ricas do que nas pobres, sedentárias mais do que nas nôma
des. Para as sedentárias só se propõe o problema da ali
mentação; para as nômades existe além disto o do transporte,
talvez ainda mais difícil. Mesmo quando desfrutam de
certo bem-estar, só o conquistam graças a incessantes des
locamentos; não podendo as pessoas de idade acompanhá-
-los, são abandonadas. Nas sociedades agrícolas uma abun
dância igualmente relativa teria bastado para alimentá-las.
Todavia, a situação econômica não constitui um fator abso
lutamente dominante: trata-se, em geral de uma opção
efetuada pela sociedade e que pode ser influenciada por
diferentes circunstâncias. O fato é que, não obstante a
rudeza de sua existência, os Chukche do interior dão um
jeito de levar os velhos quando transferem seus acampa
mentos. Em compensação, sociedades agrícolas que não
podem ser incluídas entre as mais deserdadas, deixam seus
velhos morrerem de inanição, sem que se altere sua indi
ferença.
Poder-se-ia supor que a magia e a religião interviessem
em favor dos velhos nas sociedades menos prósperas. Isto,
entretanto, não acontece. Precisamente pelo fato de vive
rem na penúria, entre elas não se desenvolve quase nenhuma
cultura religiosa. A magia, em tais casos, não constitui um
“conhecimento das coisas” mas sim um conjunto de grossei
ras receitas, monopolizadas pelos xamãs. Êstes, quando
velhos, são respeitados, mas a velhice não confere podêres
mágicos. Também pode acontecer que exista uma religião,
servindo esta, entretanto, apenas para ratificar e sacralizar
a tradição imposta pela necessidade; com um só gesto, a
comunidade instaura os costumes imprescindíveis a sua so
brevivência e os justifica ideologicamente. Foi o que vimos
entre os Narta; em Narayama, 0 ’Rin julga estar obedecen
do à vontade dos deuses.
A proteção mais eficaz deriva do amor dos filhos por
seus velhos pais. Roheim salientou a correspondência entre
SS
a felicidade da primeira idade e a da última. Ninguém
ignora a importância que tem no desenvolvimento ulterior
de sua personalidade a maneira como é tratada uma crian
ça. Carente de alimento, de proteção e de ternura, ela
cresce cheia de rancor, de mêdo e até de ódio; quando
adulta, suas relações com os demais são agressivas e não
cuidará de seus velhos pais quando êstes se tornarem in
capazes de cuidarem de si mesmos. Ao contrário, quando
os pais alimentam convenientemente e dão carinho a seus
filhos, fazem deles criaturas felizes, expansivas, benevolen
tes e nas quais se desenvolvem sentimentos altruístas: serão
especialmente apegadas a seus ascendentes, reconhecem e
cumprem seus deveres para com êles. Em todos os casos
por mim examinados — em número muito maior que os
aqui citados só encontrei um exemplo de crianças felizes
transformarem-se em adultos cruéis para com seus velhos
pais: é o dos Ojibwa. Enquanto os Yakute e os Aíno cuja
infância é maltratada, se mostram selvagemente descuidados
de seus anciãos, os Yahgan e os Aleúta, que vivem em
condições quase idênticas mas entre os quais a criança é
soberana, veneram os seus. Entretanto, os velhos são vítimas
freqüentes de um círculo vicioso: uma penúria excessiva
leva os adultos a alimentarem mal as crianças, a se descui
darem delas. Observemos também que o amor filial assume
a forma que lhe é imposta pelo costume e pela religião.
O filho demonstra respeito e afeição pelos pais, cumprindo
da maneira mais escrupulosa possível as cerimônias no de
correr das quais êles são sacrificados.
Os velhos poderíam contar com uma sobrevivência se
conservassem a capacidade de trabalho. Mas se tiverem
sido mal alimentados, mal cuidados e desgastados pelo tra
balho, tornar-se-ão muito cedo impotentes. Neste caso tam
bém se estabelece, muitas vezes, um círculo vicioso e, para
êles, nefasto.
Nas comunidades pobres, o velho raramente possui bens
que lhe permitam bastar-se a si mesmo. A propriedade
privada não existe entre os caçadores-coletores: nem sequer
armazenam alimentos. Entre os pastores e os agricultores,
ela é, freqüentemente coletiva: o indivíduo possui apenas
os frutos do trabalho realizado por êle próprio ou por suas
mulheres. Quando sobrevive a elas, quando se tornam im
59
potentes e êle próprio já não pode trabalhar, ou quando
a tradição lhe proíbe um labor reservado ao outro sexo,
êle se encontra totalmente desprovido. O chefe de família
é, às vezes, senhor de seu rebanho, de sua terra; mas quan
do suas forças decaem, os herdeiros lhe arrebatam as pro
priedades e chegam a desembaraçar-se dele para se torna
rem mais depressa os proprietários. Só encontramos dois
casos em que os homens de idade conservam suas proprie
dades: entre os Chukche do interior e entre alguns rarís-
simos Chukche do litoral que haviam tido relações comer
ciais com os brancos.
Pode-se concluir que a opção mais habitual das socie
dades, tanto agrícolas como nômades, cujos recursos são
insuficientes, é o sacrifício dos velhos.
Quanto à maneira pela qual êstes se submetem a tal
destino, ignora-se a verdade. Aos informantes, aos socio-
lógos agrada afirmar que perecem alegremente: invoquei
testemunhos literários que permitem pô-lo em dúvida.
Quando uma sociedade goza de certa margem de se
gurança, pode-se supor a priori que sustente seus velhos:
os adultos têm interesse em garantir seu próprio futuro.
O encadeamento das circunstâncias atua em sentido favo
rável, em lugar de constituir um círculo vicioso: os filhos
são bem tratados e tratarão igualmente bem aos pais; a
alimentação e a higiene convenientes protegem o indivíduo
contra uma decrepitude precoce. A cultura se desenvolve
e, graças a ela, as pessoas idosas conseguem adquirir gran
de influência. A magia passa a ser então um sistema de
pensamento que se aproxima da ciência.
Os primitivos reconhecem uma “vocação mágica” aos
indivíduos marcados por alguma singularidade: aleijados,
criminosos etc. A velhice também constitui uma categoria
à parte. Mas é sobretudo por sua memória que os velhbs
se revelam indispensáveis neste setor. Êste fato é bem
evidenciado pela lenda balinesa que relatei: privada da
tradição, a coletividade se tornaria incapaz de exercer suas
atividades. Estas não requerem apenas técnicas que pode-
riam ser reinventadas pelos adultos: devem atender a pres
crições rituais que não se acham, no presente, inscritas nas
coisas, mas que são impostas pelo passado e conhecidas
90
somente pelos anciãos. É sempre possível construir alguma
coisa com troncos de árvores: mas se estes não forem dis
postos de uma certa maneira, não especificada pela prática,
desencadear-se-ão catástrofes. É impossível lançar flechas
com eficácia quando não se conhecem as encantações que
as conduzem ao alvo. Êste segredo pertence aos velhos
que só o transmitem com grande prudência. Vimos de que
maneira os velhos Lelê se asseguram da dependência da
aldeia: só comunicam seu saber o mais tarde possível.
Sentindo-se necessário, o velho se torna perigoso, pois
tem o poder de desviar o conhecimento mágico em proveito
próprio. Sua ambivalência tem ainda outra causa: estando
próximo da morte, êle se acha também próximo do mundo
sobrenatural. O pensamento dos primitivos hesita neste
ponto. Salvo no caso de crianças muito pequenas, a morte
nunca lhes parece natural. Mesmo na mais avançada idade,
ela resulta sempre de algum malefício (23). Sabem, entre
tanto, perfeitamente, que o velho deverá em breve morrer,
tanto que alguns o denominam “um quase morto” . Já está
começando a se libertar da condição humana: é um fan
tasma em sursis, imunizado contra os fantasmas. O relacio
namento com o ascendente morto é considerado ambiva
lente: em muitas sociedades, é êle encarado como um an
cestral que deseja o bem de seus descendentes. Para todas,
é um fantasma e, como tal, temido. Quase em tôda parte
atribui-se aos fantasmas, todo o mal que sucede ao indivíduo
e ao clã. É incerto o seu tempo de sobrevivência: dissipam-
-se ao cabo de um lapso mais ou menos longo e dêles
nada resta. Enquanto subsistem, porém, é preciso tentar
conquistar-lhes as boas graças por meio de ritos e de sacri
fícios, ou, pelo menos, procurar proteção contra êles. Em
todas as situações em que podem se mostrar ameaçadores
— passagem de um grupo para outro, de uma idade para
outra, mácula proveniente de uma infração ritual — somente
por um velho poderão ser exorcizados. Tendo sido transfe
rido do mundo profano para o sagrado, é o velho dotado de
poderes análogos aos do fantasma que êle próprio virá a
ser dentro em pouco.
91
E é assim que o ancião inspira ao mesmo tempo res
peito e medo. Nas sociedades em que a magia se encon
tra mais próxima da feitiçaria que da ciência, onde os
fantasmas são muito temidos, o que prevalece é este último
sentimento. É o que possibilita a ascensão de homens
idosos a altas posições e lhes dá meios para tiranizarem os
jovens. Todavia, a atitude não é a mesma com relação ao
“grisalho” e com relação ao homem muito entrado em
anos. A longevidade inspira às vêzes, admiração. É a prova
de que a pessoa soube levar a vida de maneira sábia,
constituindo, então, um exemplo. Para conseguir resistir
a todas as provações naturais e sobrenaturais, é preciso ser
dotado de singular virtude mágica. Todavia, quando chega
a decrepitude, muitos julgam que essa virtude se debilita
como as outras faculdades e o mêdo já não protege o in
divíduo . Outros admitem, ao contrário, que o poder mágico
aumenta incessantemente com os anos. Ainda neste caso
são possíveis duas atitudes. O terror que inspira quando
vivo ou, preventivamente, na sua qualidade de futuro fan
tasma faz com que o velho seja tratado de maneira res
peitosa, mesmo numa fase de extrema impotência. Ou então,
apressam-se em deter a escalada que o toma cada vez mais
perigoso, tanto no presente quanto no futuro: matam-no e
destroem seu cadáver. Nas ilhas Trobriand, na Polinésia,
e em certos recantos do Japão, os adultos tinham por
costume comer os velhos que atingiam certa idade; acre
ditavam estar assim assimilando sua sabedoria e, ao mesmo
tempo, impedindo-os de se tornarem, primeiro, feiticeiros
e, em seguida, adivinhos demasiadamente poderosos.
Na qualidade de sacerdote ou de oficiante, o ancião
não tem ambivalência. Seu papel é positivamente da mais
alta importância. É, mais uma vez graças a sua memória
que êle se vê qualificado. Por seu intermédio se transmi
tem as cerimônias, ritos, danças e cantos indispensáveis à
celebração do culto. Êle os ensina aos demais mas se
vê designado de modo especial para os executar êle mesmo,
devido ao seu saber. Além do motivo já apontado, é êle
o intermediário entre êste mundo e o sobrenatural.
Na qualidade de detentor das tradições, de intercessor,
de protetor contra as potências sobrenaturais, o homem de
idade garante, através do tempo e no momento presente,
92
a coesão da comunidade. A êle cabe a função de nela
integrar os recém-nascidos, escolhendo-lhes um nome. Tam
bém pode suceder, quando a comunidade é dotada de uma
organização política complexa, que seja êle o incumbido
de lhe garantir o funcionamento: somente êle sabe de cor
as genealogias, o que lhe permite atribuir a cada indivíduo
e a cada família o lugar que lhes é devido.
O conjunto de serviços prestados pelos velhos, graças
ao conhecimento das tradições, lhes vale, geralmente, além
do respeito, apreciável prosperidade material. Recebem
presentes como recompensa pelos serviços prestados. Im
portância especial é atribuída aos que acolhem neófitos, a
quem transmitem seus segredos. Está aí a mais segura fonte
de riqueza individual. Só aparece nas sociedades suficiente
mente prósperas para desenvolverem uma cultura e com
indivíduos também por outros motivos, cercados de grande
prestígio.
Diminui porém a influência das pessoas idosas nas
sociedades ainda mais desenvolvidas, onde se dá menos cré
dito aos fantasmas e até mesmo à magia: já não se tem
tanto mêdo dos “ quase mortos” . O prestígio dos velhos
repousa, então, na contribuição cultural positiva que tra
zem. Êste prestígio se reduz nas comunidades em que a
técnica se dissocia da magia e, de maneira ainda mais acen
tuada, naquelas que conhecem a escrita.
A sociedade harmoniosamente equilibrada assegura aos
velhos um lugar decente, confiando-lhes tarefas adequadas
a suas forças. Não mais os distingue, no entanto, com nenhum
privilégio.
A velhice não tem nem o mesmo sentido nem as mesmas
conseqüências para os homens e para as mulheres. Apresenta
para estas uma vantagem especial: após a menopausa, a mu
lher se torna assexuada, assemelha-se à menina impúbere e,
como esta, encontra-se liberada de certos tabus alimentares.
São levantadas as interdições que sobre ela pesavam devido
à nódoa mensal. É-lhe permitido tomar parte nas danças,
beber, fumar, sentar-se ao lado dos homens. Os fatôres que
militam a favor do velho macho também intervém para lhe
assegurar certos benefícios. Seu papel cultural, religioso, social
e político é de grande relevância, sobretudo nas sociedades
93
matrilineares. Nas outras, reconhece-se o valor de sua expe
riência. Os poderes sobrenaturais a elas atribuídos podem
proporcionar-lhes prestígio mas são também passíveis de
se voltar contra elas. Seu estatuto, de um modo geral, per
manece inferior ao dos homens. São mais negligenciadas;
abandonam-nas com mais facilidade.
Em muitas sociedades, homens e mulheres idosos estão
em estreita relação com as crianças. Existe uma certa ana
logia entre a impotência de um lactente e a de um decrépito,
analogia esta salientada na epopéia dos Narta, onde se
conta que os velhos eram atados a berços. A criancinha
mal está emergindo dos limbos e o velho, prestes a nêle
mergulhar; entre os Navajo, o bebê que mal começa a
viver e o velho que já quase não vive morrem sem ressen
timentos e não se transformam em fantasmas. Na prá
tica, todos êles são bocas inúteis e bagagens incômodas:
existem tribos paupérrimas, na maioria nômades, afeitas
tanto ao infanticídio quanto ao extermínio de velhos. Êste
último costume aparece, às vêzes, sem o primeiro mas não
o inverso, pois a criança representa o futuro e tem priori
dade sôbre o velho, mero restolho. São ambos parasitas, o
que chega a ocasionar eventuais rivalidades nas situações
de maior penúria: as crianças furtam os quinhões dos velhos.
Mas quando cercados de prestígio, êstes se assenhoreiam de
boa parte dos alimentos, graças aos severos tabus alimen
tares. Netos e avós vêem-se, freqüentemente, em estreita
associação: pertencem simbolicamente à mesma classe de
idade; a educação dos netos é confiada aos avós aos quais
prestam serviços. Na criança repousam as esperanças do
porvir; o velho, ancorado no passado e detentor da sabe
doria, está incumbido da formação de herdeiros que, graças
à memória, hão de lhe garantir a sobrevivência, por m eio.
do culto dos antepassados ou gerando mulheres nas quais
êle irá se instalar para renascer. Esta ligação consolida a
unidade da comunidade através dos tempos. Na prática,
liberado das tarefas dos adultos, o velho dispõe de tempo
suficiente para dedicar-se aos jovens, os quais, por sua vez,
têm ocasião de prestar a seus avós os serviços de que êstes
necessitam. Êste intercâmbio de favores é acompanhado
de relações lúdicas: devido a sua inadequação prática e
ao fato de serem indivíduos marginais, isentos portanto de
94
muitas obrigações sociais, crianças e velhos se distanciam
da seriedade dos adultos: divertem-se juntos, participam
de jogos, desafiam-se uns aos outros.
Entre os primitivos, o velho constitui realmente o
Outro, com tôda a ambivalência acarretada por semelhante
termo. Sendo Outra, a mulher é tratada nos mitos mas
culinos, a um tempo como ídolo e espantalho. Por outras
razões e de maneira diversa, o velho nessas sociedades cons
titui um super-homem e um sub-homem. Impotente e inú
til, êle é ao mesmo tempo intercessor, mágico e sacerdote:
acha-se aquém ou além da condição humana e, com fre-
qüência, nas duas situações simultâneamente.
Como em todas as sociedades, essas atitudes são vividas
de maneira singular e contingente. O destino das pessoas
idosas depende em boa parte de suas capacidades e do
prestígio e das riquezas que essas capacidades lhes trou
xeram. A sorte dos privilegiados difere da sina vulgar.
Existe igualmente uma diversidade de tratamentos, segundo
o grupo e as famílias. Teoria e prática nem sempre se con
jugam: a velhice pode ser ridicularizada em particular e
receber demonstrações públicas de atenção e respeito. É
mais encontradiça a situação oposta: os velhos são honrados
verbalmente e, na prática, deixados ao deus-dará.
O fato mais importante e que precisa ser assinalado é
que não é jamais o velho quem conquista seu estatuto:
êste lhe é outorgado. Demonstrei no Segundo Sexo que,
sempre que as mulheres adquirem grande prestígio graças a
suas faculdades mágicas, é na realidade aos homens que o
devem. É válida a mesma observação para os velhos com
relação aos adultos. Sua autoridade se baseia no temor
ou no respeito que inspiram no dia em que os adultos saco
dem êste jugo; os anciãos não contam com mais nenhum
trunfo. É o que acontece com freqüência ao entrarem os
primitivos em contato com a civilização dos brancos. Os
Zanda, os Aranda já não monopolizam as mulheres. Muitos
jovens, como os Lao da África têm abandonado suas aldeias
onde cuidavam dos velhos pais, para se dirigirem às cidades
em busca de empregos. Os jovens Lelê libertaram-se do
jugo dos anciãos convertendo-se ao cristianismo e passando
a trabalhar para os europeus.
95
A autoridade dos velhos continua a se afirmar quando
o conjunto da comunidade pretende manter suas tradições
através deles. O destino dos velhos é decidido pela cole
tividade e de acordo com as possibilidades e os interesses
da mesma: êles se submetem a sua sina, mesmo quando
julgam ser os mais fortes ( 24).
96
salha” , sendo a decrepitude considerada um declínio; mas
nem sempre.
O que define o sentido e o valor da velhice é o sen
tido atribuído pelos homens à existência, é o seu sistema
global de valores. E vice-versa: segundo a maneira pela
qual se comporta para com seus velhos, a sociedade des
venda, sem equívocos, a verdade — tantas vezes cuidadosa
mente mascarada — de seus princípios e de seus fins.
São muito diversas as soluções práticas adotadas pelos
primtivos com relação aos problemas suscitados pelos ve
lhos: matam-nos, deixam-nos morrer, concedem-lhes um
mínimo vital, proporcionam-lhes um fim confortável, ou
mesmo cumulam-nos de honrarias e respeito. Veremos que
os chamados povos civilizados lhes aplicam os mesmos tra
tamentos; só é proibido o assassinato, quando não disfar
çado.
7 97
CAPÍTULO III
A VELHICE
NAS SOCIEDADES HISTÓRICAS
98
produzida por tal encadeamento é dotada de certo sentido.
Pode-se falar, a rigor, numa história da mulher pois esta
constituiu o símbolo e a ocasião de certos conflitos mas
culinos : entre sua própria família e a do marido, por
exemplo. Na aventura humana, ela jamais foi sujeito mas
constituiu pelo menos pretexto e móvel; sua condição evo
luiu, obedecendo a uma linha caprichosa porém significa
tiva. O velho, como categoria social, nunca interferiu no
curso do universo ( x). Permanece integrado na coletividade
e dela não se distingue enquanto conserva suas faculdades:
é um adulto do sexo masculino, de idade avançada. Surge
como um outro a partir do momento em que perde essas
faculdades, tornando-se então, e de maneira muito mais
radical que a mulher, um puro objeto. A mulher é neces
sária à sociedade, ele não serve para nada: nem moeda
de câmbio, nem reprodutor, nem produtor; é apenas um
fardo. Já vimos que seu estatuto lhe é outorgado; jamais
provoca, portanto, a menor evolução. Costuma-se dizer que o
problema dos negros é um problema de brancos; o da
mulher, um problema masculino. Ela, entretanto, luta para
conquistar a igualdade, os negros se batem contra a opres
são; os velhos não dispõem de nenhuma arma e seu pro
blema consiste estritamente num problema de adultos ativos.
Estes decidem, segundo seu próprio interesse prático e ideo
lógico, qual o papel que convém atribuir aos anciãos.
Mesmo em sociedade mais complexas que as que aca
bamos de examinar, esse papel poderá ser ocasionalmente
importante quando, para se defenderem da turbulência dos
jovens, os homens maduros buscarem apoio na velha gera
ção. Tendo sido investida de tal poder, esta recusará vê-lo
retirado de suas mãos e dele se servirá para tentar retê-lo
quando lhe pretenderem arrebatar. Confrontam entos desta
ordem encontram eco em todas as mitologias, crônicas e
literaturas. Os anciãos acabam fatalmente vencidos pois
^constituem uma minoria ineficaz cuja força advém, exclu
sivamente, da maioria que deles se utiliza. Visto constituir
um problema de poderio, a velhice só se propõe como
problema no seio das classes dominantes. Até o século
99
XIX nunca se faz referência aos “velhos pobres” ; muito
pouco numerosos, pois a longevidade só era possível entre
as classes privilegiadas, não representavam absolutamente
nada. Tanto a história como a literatura os ignoram por
completo. A velhice é desvendada, até certo ponto, apenas
nas classes privilegiadas.
Evidencia-se ainda outro fato: trata-se de um problema
masculino. Como experiência pessoal, as mulheres são
atingidas pela velhice na mesma proporção que os homens,
e talvez até mais, já que vivem mais tempo. Todavia,
quando passa a constituir objeto de especulação, é à condi
ção do elemento masculino que se dedica uma real atenção.
Deve-se isto, em primeiro lugar, ao fato de serem êles que
se exprimem nos códigos, nas lendas e nos livros; mas é
sobretudo porque a questão do poder só interessa ao sexo
forte. Os jovens macacos o arrebatam ao velho macho:
somente êle é morto, as macacas velhas são poupadas.
As sociedades que têm história são dominadas pelos
homens; as mulheres jovens e as velhas podem se desen
tender na vida privada por questões de autoridade, mas
na vida pública é idêntico o estatuto de todas: permane
cem eternamente na minoridade. A condição masculina,
pelo contrário, é modificada com o decorrer do tempo; o
rapaz se torna adulto, cidadão, e, de adulto, passa a ser
velho. Os machos formam classes de idades cujas fronteiras
naturais são imprecisas mas que poderíam ser bem delimi
tadas pela sociedade, como acontece atualmente no caso
da aposentadoria. Passar de uma classe para outra tanto
pode representr uma promoção como um rebaixamento.
Biologia e etnologia demonstram que a contribuição
positiva trazida à coletividade pelas pessoas idosas deriva
de sua memória e de sua experiência: esta, no campo da
repetição, multiplica a capacidade de executar e de julgar.
O que lhes falta é fôrça e saúde, além de uma certa capa
cidade de adaptação às novidades e, com ainda maior razão,
a de criar ou de inventar. Pode-se presumir, a priori, que
os adultos devam apoiar-se nêles nas sociedades fortemente
organizadas e repetitivas. Nas sociedades fragmentadas,
nos períodos conturbados ou revolucionários, a juventude
assumirá o comando. O papel desempenhado na família
pelos homens de idade é um reflexo do que lhes é confe-
100
rido pelo Estado. Examinando a condição dos velhos através
dos tempos, obteremos uma confirmação deste esquema.
101
dos limites da família, a todas as pessoas de idade, havendo
até quem se pretendesse mais velho apenas para ter direito
a tais atenções. O qüinquagésimo aniversário marcava
época na vida de um homem. Todavia, depois dos 70 anos,
os homens se afastavam de seus cargos oficiais a fim de se
prepararem para a morte. Conservavam a autoridade po
rém entregavam ao filho mais velho o governo da casa.
Venerava-se em sua pessoa, o ancestral a quem dentro em
breve se prestaria um culto. A autoridade dos anciãos era
suportada com resignação ou com desespêro — como o
revela a literatura, sobretudo as antigas óperas — pelos
jovens cujo único recurso para dela se libertarem era o
suicídio, bastante freqüente, especialmente entre as môças.
Confúcio justificava-a moralmente, assimilando a velhice à
posse da sabedoria: “Aos 15 anos, dedicava-me ao estudo
da sabedoria; aos 30, nela me confirmei; aos 40, já não
tinha dúvidas; aos 60, nada mais no mundo me poderia
chocar; aos 70, podia seguir os ditames de meu coração
sem transgredir a lei moral.”
Na realidade, eram raros os anciãos visto não serem
as circunstâncias propícias à longevidade. Esta, para o
taoísmo, constituía por si mesma uma virtude. A doutrina
de Lao-tsé situa aos 60 anos o momento em que o homem
é capaz de libertar-se de seu corpo através do êxtase e de
se tornar um santo. Para o neotaoísmo chinês, o fim su
premo do homem é a busca da “longa vida”, a que se refe
rem todos os pais do taoísmo. Tratava-se de disciplina
quase nacional. Podia-se alcançar, através da ascese e do
êxtase, uma santidade capaz de proteger o indivíduo con
tra a própria morte. A santidade era a arte de não morrer,
a posse absoluta da vida. A velhice representava, portanto,
a vida sob sua forma suprema. Se se prolongasse suficien
temente, admitia-se que acabaria em apoteose. Tchuang-
-tsé evoca velhas crenças ao contar que, “ cansados do
mundo após mil anos de vida, os homens superiores se
elevam à categoria dos gênios” .
102
de que temos notícia, apresenta-nos um quadro bastante
sombrio. Encontra-se no Egito e foi escrito 2 500 anos antes
de Cristo por Ptah-hotep, filósofo e poeta:
“Quão penoso é o fim de um ancião! Vai dia a dia
enfraquecendo: a vista baixa, as orelhas se tornam surdas;
a força declina; o corpo não encontra repouso, a bôca se
torna silenciosa e já não fala. Suas faculdades intelectuais
se reduzem e torna-se-lhe impossível recordar hoje o que
foi ontem. Doem-lhe todos os ossos. As ocupações a que
outrora se entregava com prazer só as realiza agora com
dificuldade e desaparece o sentido do gôsto. A velhice é a
pior desgraça que pode acometer um homem. O nariz se
obstrui e nada mais se pode cheirar.”
Tão desolada enumeração das enfermidades da velhice
será reiterada em tôdas as épocas e é importante salientar
a permanência do tema. O sentido e o valor atribuídos à
velhice variam com as sociedades mas nem por isto deixa
ela de permanecer como um fato trans-histórico, suscitan
do um certo número de reações idênticas. Orgânicamente
falando, ela representa um declínio insofismável e, como
tal, a maioria dos homens a tem receado. Já os egípcios
acalentavam a esperança de vencê-la. Pode-se ler num
papiro: “ Início do livro sobre a maneira de transformar
um homem velho em jovem.” Recomenda-se a ingestão de
glândulas frescas retiradas de animais jovens. Êste sonho
de rejuvenescimento há de perdurar até nossos dias.
103
por seus contemporâneos. Embora se encontrem entre
eles vestígios de uma antiqüíssima filiação matrilinear o que
realmente descreveram foi uma sociedade patriarcal onde
os grandes antepassados, os quais atribuíam idades fabulo
sas, eram os eleitos e os arautos de Deus. Viam na velhice
a recompensa máxima da virtude. “ Se observardes os pre
ceitos que vos dito — declara Deus no Deuteronômio —
vossos dias e os dias de vossos filhos na terra prometida
pelo eterno a vossos pais serão tão numerosos quanto os
dias do céu o serão sôbre a terra” . Lê-se no Livro dos Pro
vérbios: “ O temor do Eterno aumenta os dias mas serão
abreviados os anos dos maus.” E continuam: “ Os cabelos
brancos são uma coroa de honra; é no caminho da Justiça
que se pode encontrá-la.” Abençoada por Deus, a velhice
impõe obediência e respeito e, como prescreve o Levítico:
“ Levantar-te-ás diante dos cabelos brancos e honrarás a
pessoa do velho” . Os mandamentos de Deus ordenam aos
filhos que honrem seu pai e sua mãe. Quando um filho
recusa a obedecer ao pai e tendo sido vãs todas as ten
tativas para obrigá-lo a ceder, o pai deverá, diz o Deute
ronômio, conduzi-lo à presença dos anciãos da cidade: “ E
todos os homens da cidade o apedrejarão e ele morrerá” .
Gostaríamos de saber se tais castigos foram realmente apli
cados. Mas podemos, com certeza, concluir, pelo fato de
terem sido prescritos, que a docilidade dos filhos era me
nos absoluta que na China: a sociedade era organizada de
maneira muito menos rigorosa e permitia maior grau de
individualismo. Os anciãos tinham uma ação política. Se
gundo o Livro dos Números, Jeová teria dito a Moisés:
“ Reúne setenta anciãos de Israel. Levarão contigo o en
cargo dêste povo e já não o carregarão sozinho” . Ignora-se
se tal conselho realmente foi dado. A Bíblia também relata
que Roboão foi castigado por não ter dado ouvidos aos
anciãos que lhe recomendavam generosidade para com Israel:
as tribos oprimidas se desligaram da casa de Davi. Todas
essas tradições foram, sem dúvida, invocadas para apoiar
o costume. Na Palestina, como em tôdas as sociedades
agrícolas adiantadas, os anciãos representavam, certamente,
um papel de grande relevo na vida pública e, enquanto
conservasse algum vigor físico e moral, era o homem mais
idoso da família quem a governava. Josefo, sob Antíoco
104
o Grande (223-181), fala de uma Gerúsia presidida pelo
Sumo Sacerdote e dominada pela aristocracia sacerdotal:
o Sinedrim. Parece que êste só apareceu nos últimos séculos.
Era composto de 70 membros: os príncipes dos sacerdotes
(sumos sacerdotes afastados de seus cargos), os represen
tantes das 24 classes sacerdotais dos escribas, dos doutôres
da lei e dos anciãos do povo. Era o supremo tribunal que
proclamava as leis e intervinha nas relações com os domi
nadores romanos. Controlava tudo que se relacionasse com
a religião, isto é, pràticamente tudo. Os anciãos tinham,
portanto, um papel importante. Todavia, para ser consi
derado perfeito, o juiz não devia ser nem muito jovem, nem
velho demais. Só existe na Bíblia um episódio em que à
velhice se associa o vício e não a virtude; encontra-se em
obra composta bastante tarde — entre 167 e 164 a.C — o
Livro de Daniel (2). É a célebre história de Susana e dos
dois velhos. Juizes respeitados pelo dono da casa, apaixo-
naram-se os dois pela beleza de sua esposa. Esconderam-se
uma tarde no jardim para surprendê-la no banho. Ela re
cusou atender a seus desejos e, em represália, eles afirma
ram tê-la visto deitar com um rapaz. Suas afirmações en
contraram crédito e Susana foi condenada à morte. Mas
Daniel, muito jovem ainda, conseguiu salvá-la, interrogando
separadamente os dois juizes cujos testemunhos foram con
traditórios, sendo êles, então condenados ( 3). Talvez hou
vesse naquela época uma certa dose de ressentimento contra
os velhos, alguns dos quais se prevaleciam de sua fortuna,
de suas elevadas funções, do respeito que os cercava.
O Eclesiastes — obra enigmática, de data incerta e
composta de partes discrepantes — contrasta com o resto
do pensamento judaico. Encontra-se aqui um eloqüente
exemplo da mencionada oposição entre a atitude oficial da
sociedade com relação à velhice e as reações espontâneas
que inspira os poetas. Entre as desgraças que afligem o
homem, o Eclesiastes aponta a idade avançada e descreve
a decrepitude com amarga crueza, a darmos crédito à in
terpretação do exegeta judeu Maurice Jastrow:
105
“Lembra-te de teu criador durante os dias de tua ju
ventude, antes que cheguem os maus dias e que se apro
ximem os anos em que dirás: Não encontro aí nenhum
prazer. Antes que se obscureçam o sol e a luz, a lua e as
estréias, e que retornem as nuvens após a chuva (redução
da acuidade visual, extinção das forças intelectuais); tempo
em que os guardiões da casa (os braços) se põem a tremer,
em que os homens fortes (as pernas) se curvam, em que
aqueles que moem (os dentes) se detêm por estarem dimi
nuídos; quando os que olham pelas janelas (os olhos) se
acham obscurecidos e os dois batentes da porta se fecham
para a rua (distúrbios da digestão e da micção); quando
amortece o ruído do moinho (surdez) e nos levantamos ao
canto dos passarinhos (sono perturbado, madrugar); quan
do enfraquecem as filhas do canto (distúrbios da elocução),
quando tememos o que é elevado (falta de fôlego nas
subidas), quando nos assaltam terrores pelo caminho, quan
do floresce a amendoeira (cabelos brancos) e se torna
pesado o gafanhoto (diminuição da potência gen ital)...
antes que se desprenda o cordão prateado (desvio da co
luna vertebral), que se quebre o vaso de ouro, se parta o
balde na fonte e quebre a roda na cisterna (insuficiência
do fígado e dos rin s). . . ”
106
cujo comando entregou a Quingu, um dos deuses seus
aliados. Marduk, nomeado deus pelos outros deuses, desa
fiou Tiamet para um combate e matou-a (4). Em seguida,
organizou o mundo e criou a humanidade. Seqüência aná
loga é encontrada entre os fenícios, segundo as pranchetas
de Ras-Shamas. Filon de Biblos, no fim do século I de
nossa era, transmitiu-nos um eco destas crenças. Conta de
que maneira Kronos matou seu pai Epigeios, cujo nome
passou a ser depois Uranos.
O esquema se ajusta ao que encontramos em diversas
religiões: existe, na origem do mundo, uma divindade ura-
niana, princípio único, sempre longínquo e abstrato, sem
relação com os homens que não lhe prestam culto. O Sa
grado desce, em seguida, numa pluralidade de divindades
concretas, diretamente relacionadas com o mundo e ado
radas pelos homens através de sacrifícios, de orações e
cerimônias. É muito significativo, entretanto, o fato desta
passagem assumir aqui o aspecto de uma filiação, ficando
o ancestral relegado para longe do mundo que seus des
cendentes governam.
Nem para os gregos Uranos constitui uma mera enti
dade abstrata: surge como o grande fecundador mas tam
bém como um pai desnaturado e destruidor. Há uma luta
entre gerações que termina com o triunfo dos jovens. Esta
mitologia sofreu a influência fenícia: gostaríamos de saber
a que realidade correspondia. Encontramos, tanto na his
tória como na mitologia grega, inúmeros ecos dos conflitos
em que se defrontaram jovens e velhos, filhos e pais. Teriam
eles ocorrido nas épocas em que se formaram os mitos?
Deveremos supor terem sido os velhos dotados de um
prestígio de que foram mais tarde despojados? Ou teriam
os jovens, em cujas mãos estava na realidade o poder,
reformulado e enriquecido os mitos que justificavam sua
supremacia? Não dispomos de elementos que nos permitam
uma escolha entre estas hipóteses. Limitar-nos-emos a exa
minar os dados que se acham a nossa disposição, tanto no
domínio dos mitos como no dos fatos.
107
Segundo Hesíodo, antes de tudo existiu Caos, depois
Gaia e Eros. Gaia “gerou um ser igual a ela própria, Ura-
nos” , capaz de cobri-la por completo. Dos amplexos de ambos
nasceu a segunda geração, a dos Uranidas, que compreen
dia: l.°, os doze Titãs e Titanidas; 2.°, os três Ciclopes;
3.°, os três Hecatonchiras, cada um dêles dotado de cem
braços e de cinqüenta cabeças: Gaia odiava Uranos devido
a sua inesgotável fecundidade e êste, por sua vez, odiava
os próprios filhos. Escondia-os, logo que nasciam, no seio
de Gaia, isto é, sepultava-os no seio da terra. Esta, revol
tada, criou um metal duro e cortante, o aço, com o qual
fêz uma foice e ordenou aos filhos que castrassem o pai.
Kronos foi o único que obedeceu, castrando Uranos com
a foice. Os gregos descrevem, portanto, o grande ances
tral Uranos como um procriador descomedido, um soberano
tirânico e odioso. Tendo-lhe arrebatado o poder, seu filho
Kronos desposou Réa, sua irmã. Tiveram muitos filhos.
Também êle, entretanto — talvez por ter castrado o pai —,
desconfiava dos próprios filhos, detestava-os e os devorava.
Réa ocultou seu último filho, Zeus, e em seu lugar entregou
a Kronos uma grande pedra enfaixada. Depois de crescido,
Zeus entrou em luta contra o pai. Obrigou-o a vomitar os
filhos que havia engolido; declarou guerra tanto a Kronos
como aos Titãs, seus irmãos. Foi auxiliado nesta luta pelos
Cem-Braços. Depois de terrível refrega — a Titanomaquia
— os Titãs sucumbiram.
No entanto, o sangue vertido por Uranos quando mu
tilado, havia fecundado Gaia que deu à luz os Gigantes.
Eram estes meio-irmão de Kronos, pertencendo, portanto,
à mesma geração, e se ergueram contra Zeus. Píndaro foi
o primeiro a narrar esta Gigantomaquia da qual Zeus saiu
vencedor. Venceu também a Tifeu.
Existem inúmeras versões dêsses acontecimentos mí
ticos. O interesse maior reside na idéia geral que inspirou
tais narrativas; à medida que vão envelhecendo, acentuam-
-se a maldade e a perversão dos antigos deuses. Pelo me
nos torna-se cada vez mais intolerável sua maldade tirânica
que acaba desencadeando uma revolta que os destitui do
poder. A partir de então, quase todos os deuses que reinam
sobre o mundo são jovens, salvo algumas poucas exceções:
Caronte, o barqueiro dos Infernos, representado pelos gre-
108
gos sob os traços de um velho hediondo ou, na melhor
hipótese, taciturno. E algumas divindades marinhas: Nereu,
o “velho do mar”, filho de Ponto e de Géa, bom e silencioso.
Seu irmão Forcis, o “velho que governa as vagas” , no dizer
de Homero; Proteu, o “velho do mar”, filho de Urano e
de Tétis. Também se podem citar as três Gnéas, horríveis
megeras que só possuíam um dente e um ôlho, os quais
passavam de uma para a outra.
Podemos colher algumas outras indicações sobre a ati
tude dos antigos gregos a respeito da velhice nas poucas
narrativas míticas onde ela transparece. A lenda de Filemon
e de Baucis apresenta um casal idoso: usa generosa hospi
talidade, sua fidelidade conjugal lhes valem uma longa e
venturosa velhice e uma metamorfose que lhes perpetua o
amor. A recompensa é devida a suas virtudes e a longevi
dade representa aqui uma vitória contra a morte, vitória,
aliás, precária: torna-se necessário um milagre de Zeus
para os imortalizar. O mito de Tirésias estabelece uma
relação — que encontraremos com freqüência — entre a
idade, a cegueira e a luz interior. Tendo a cólera de Hera
cegado Tirésias, Zeus, para compensá-lo, lhe concedeu o
dom da profecia, de modo que pudesse dar a tôdas as
perguntas respostas infalíveis. Foi também assim que os
gregos imaginaram o velho Homero cego: como no caso do
profeta, é tanto maior a inspiração do poeta, quanto menos
existência tiver para êle o mundo exterior. As lendas mais
significativas são as de Titon e de Eson. A primeira revela
que a decrepitude constituía aos olhos dos gregos um
flagelo pior que a própria morte. Quando Aurora obteve
a imortalidade para o marido, esqueceu-se de pedir que
lhe fosse dada também a eterna juventude; debalde ali-
mentou-o com ambrosia: a decrepitude atingiu-o. Miserável
e solitário, a tal ponto êle se encarquilhou e secou que os
deuses misericordiosos o transformaram em cigarra. A his
tória de Eson, rejuvenescido às portas da morte pelas artes
mágicas de sua nora Medeia, dá vazão ao velho sonho de
eterna juventude. Equivale à de Titon: de nada vale a
imortalidade sem a juventude; ao contrário, eternizar a ju
ventude constituía para o homem a suprema ventura. Exis
tiam, para os gregos, diversas fontes de Juvência, sendo a
de Caratos, perto de Náuplia, a mais famosa de tôdas.
109
Qual era, de fato, a condição dos velhos na Grécia
arcaica? Não há nada que nos leve a crer que as pessoas
idosas fôssem eliminadas, ao passo que, mesmo em tempos
bastante próximos e não somente em Esparta, havia o
costume de se desfazerem das crianças mal conformadas
ou indesejáveis. De acôrdo com a semântica, a idéia de
honra esteve ligada à de velhice, na remota antiguidade.
Gera, gerôn: palavras que significam velhice, também têm
o sentido de privilégio da idade, direito de ancianidade,
deputação. Examinando em seu estudo Kouroi et Kouretes,
os vestígios da civilização grega arcaica, Jeanmaire chega
à mesma conclusão: as antigas instituições relacionavam
a idéia de honra à velhice. Nos tempos heróicos o rei, chefe
da Cidade, contava com a assistência de um conselho de
anciãos, aos quais, entretanto, segundo Homero, só cabia
um papel consultivo. O rei lhes entregava também, por
vêzes, a tarefa de distribuir a justiça: nem sempre se saíam
bem e seus equívocos desencadeavam catástrofes naturais.
Segundo Homero, no entanto, a velhice está associada
à sabedoria e se encarna em Nestor, o conselheiro supremo;
o tempo lhe conferira experiência, autoridade, a arte de
falar. Vemo-lo, contudo, fisicamente diminuído e não é
êle quem assegura aos gregos a vitória. Somente um homem
em plena fôrça da idade seria capaz de inventar um ardil
mais eficaz que tôdas as táticas tradicionais. Ulisses su
planta, e muito, a Nestor, assim como a seu pai Laerte,
que lhe cede a realeza. Também Príamo se vê eclipsado
por Heitor. Podemos, então, deduzir que foi mais hono
rífico que eficiente o papel desempenhado na Grécia pelos
velhos, durante o período feudal. Era indispensável o vigor
físico de Ulisses para expulsar os pretendentes que a fra
queza forçava Laerte a suportar. Como veremos quando
estudarmos a Idade Média, sempre que a propriedade não
se acha garantida por instituições estáveis, sendo, ao con
trário, merecida e defendida pela fôrça das armas, os velhos
se vêem relegados à sombra: o sistema repousa nos jovens,
são eles que dispõem do poder real. Por outro lado,
Homero zomba dos demogerontes de Tróia. Evoca o “ li
miar maldito da velhice” . Num hino cuja autoria a tra
dição lhe atribui, Afrodite afirma: “Também os deuses
odeiam a velhice”.
110
No século VII, a colonização de um nôvo mundo provo
ca uma revolução econômica. Os bens de raiz já não são
a única fonte de riqueza: esta pode decorrer também da
indústria, do comércio, da moeda. Altera-se o caráter da
aristocracia. Prospera a classe subalterna dos demiurgos —
artesãos, trabalhadores independentes. Uma plutocracia
domina a Cidade, a realeza é abolida ou conserva apenas
um caráter honorífico. A Cidade é pequena e pouco povoa
da: de 5 000 a 10 000 cidadãos, aos quais se somam os
escravos e os metecas que não tinham direitos políticos.
Sua constituição assumiu diversas formas que se alteravam
à medida que os ricos iam enriquecendo ainda mais, os
pobres empobrecendo e se exacerbava a luta de classes.
Fôsse ela uma oligarquia, uma tirania, ou uma democracia,
a sua frente havia sempre um Conselho. É muito significa
tivo o fato de terem sido sempre Gerúsias os conselhos
das oligarquias — forçosamente autoritárias e conservado
ras, visto que uma minoria de ricos pretendia manter-se
no poder. Ingressava-se tarde na Gerúsia e aí se perma
necia até a morte. Assim era em Éfeso, em Crotona, em
Creta, em Cnida, e em muitos outros lugares. Havia 90
gerontes na Élida e 80 em Corinto. As oligarquias vedavam
aos jovens o acesso às magistraturas importantes. Tratava-se
de manter a ordem estabelecida: temia-se a ambição dos
homens jovens, seu espírito de iniciativa.
Em muitas cidades antigas, a velhice constituía, por
tanto, uma qualificação. Mas não era apreciada como avatar
individual — e disso os poetas são testemunhas.
Entre os gregos, observa Burckhart, a “velhice ocupa
um lugar inteiramente especial no conjunto de queixas ins
piradas pela vida terrestre”. Na Jônia hedonista e volup
tuosa, Minermo, sacerdote em Colofos, exprime, 630 anos
antes de Cristo, os sentimentos de seus concidadãos: canta os
prazeres, a juventude, o amor; e detesta a velhice: “Que
vida! qual o prazer sem Afrodite de ouro?” Lastima Titon:
“ Desgraçado! feriram-no os deuses com eterno mal!” Repete
incessantemente que preferiría morrer a envelhecer: “ Se
melhantes às folhas que a estação florida aos raios do sol
faz crescer, durante breve instante gozamos da flor de nossa
juventude e já as negras Parcas nos cercam, trazendo uma,
a velhice dolorosa, a outra, a morte. Depressa apodrece o
111
fruto da juventude; não dura mais que o clarão de um dia.
E, atingido este término, a vida se torna pior que a morte.
Uma vez escoada a hora da juventude, até a filhos e ami
gos causa piedade aquele que outrora fôra belo.” E ainda:
“ É melhor morrer que viver, quando desaparece a moci
dade. Pois muitas desgraças se apossam da alma humana:
destruição do lar, miséria, morte dos filhos, enfermidades;
a ninguém deixa Zeus de enviar abundantes desgraças.”
Mais ainda: “Tendo chegado a velhice dolorosa que torna
o homem feio e inútil, os maus cuidados já não lhe deixam
o coração e os raios do sol não lhe trazem nenhum recon-
fôrto. Às crianças parece antipático e as mulheres o des
prezam. Foi assim, cheia de dores, que a velhice foi dada
por Zeus.” Desejava não chegar a envelhecer: “ Quem me
dera encontrar, aos 60 anos, sem moléstias e sem tristeza,
a Parca e a morte!” Com Arquilóquio, sacerdote de Tasos,
surge um tema que continuará a ser explorado nos séculos
seguintes: namorado despeitado (°), prediz êle à cruel ama
da a decadência futura: “Já tua pele estiola e a triste
velhice aí cava seus sulcos.” Lamenta-se Teógnis de Megara:
“Ai de mim! Ai juventude! ó velhice que tudo altera!
Aproxima-se esta, aquela se afasta!” A exemplo de Miner-
mo, cuja origem jônia compartilhava, Anacreonte cantou
no século VI o amor, os prazeres, o vinho, as mulheres;
envelhecer é perder tudo que constitui a doçura da vida;
descreve, cheio de pesar, seu reflexo no espelho: cabelos
baços, têmporas grisalhas, dentes esburacados e lastima-se
pela proximidade da morte. O otimismo de Píndaro soa
muito mais acadêmico. Fôra tôda a vida um oportunista.
Embora tebano, pregou a colaboração quando da batalha de
Salamina para, em seguida, cantar a libertação de sua pá
tria. Rico e famoso, fazia da própria pessoa o mais alto
juízo e interessava-lhe antes suscitar inveja que piedade.
Declarou que a velhice, para êle, era fonte de calmas satis
fações: agradecia aos deuses por lhe haverem concedido
glória e fortuna.
Como já vimos, à atitude dos poetas diante da aventura
individual, que é para êles a velhice, contrapõem-se as5
112
ideologias que a têm como categoria social. É assim que
Sólon rejeita a melancólica imagem que Minermo faz da
senectude. Retruca-lhe afirmando ser desejável viver até
os 80 anos: “Ao avançar em anos nunca deixo de aprender.”
Isto se explica, pois seu sistema de valores era muito dife
rente. A voluptuosidade e os prazeres a seus olhos pouco
contavam. Seu problema era político. Pretendia arbitrar
entre os Eupátridas e os Tetas: na realidade, êle favoreceu
a aristocracia. Como todos os conservadores, contava apoiar-
-se nos anciãos e concedia-lhes um lugar importante na
constituição da Cidade.
8 113
escolhidos os 28 membros da Gerúsia. Reuniam-se quando
solicitados pelos éforos — cinco magistrados mais jovens —
que desta forma exerciam sôbre êles um certo contrôle;
não obstante isto, o poder estava em suas mãos. Os velhos
encarregados da formação da juventude inculcavam-lhe o
respeito pelos cabelos brancos.
Em Atenas, as leis de Sólon entregavam todo o poder
às pessoas de idade; o Areópago, ao qual era confiado o
governo dos negócios públicos, constituía-se de antigos
arcontes. A velha geração manteve suas prerrogativas en
quanto o regime se manteve aristocrático e conservador.
Perdeu-as quando Clístenes estabeleceu a democracia. Pro
curou, entretanto, defender-se. Encontramos nas obras de
Tucídides e de Isócrates ecos de uma luta de gerações.
As pessoas de idade conservavam alguns resquícios do po
der. Quando filhos eram acusados de mau procedimento
para com seus pais — não prestação de cuidados necessá
rios, pancadas, ferimentos — os juizes, perante os quais era
apresentada a queixa, deviam contar mais de 60 anos. Era
esta também a idade requerida aos exegetas encarregados
de interpretar o Direito. Por outro lado, reconheciam-se
faculdades sobrenaturais a alguns anciãos de ambos os
sexos. Apareciam por vezes em sonhos, revelavam verda
des ou forneciam úteis conselhos. Outras vezes, eram-lhes
narrados sonhos e oráculos e êles os interpretavam. Sua
autoridade, não obstante, achava-se bastante enfraquecida
e poucas demonstrações de respeito lhes eram tributadas na
vida particular. Queixa-se Xenofonte: “Quando aprenderão
a respeitar seus maiores, a exemplo dos lacedemônios, esses
atenienses cujo desprezo pelos velhos começa na pessoa dos
próprios pais?” Segundo narrativa feita por Cícero em De
senectude, tendo um velho ateniense chegado atrasado aos
jogos públicos, seus concidadãos se negaram a lhe ceder um
lugar; ergueram-se os deputados da Lacedemônia e o fize
ram sentar. A Assembléia aplaudiu êste espetáculo, dizendo,
então, um dos espartanos: “Parece que os atenienses sabem
o que devem fazer, mas não querem fazê-lo!” ou, segundo
uma fórmula que ficou célebre como exemplo de seu pro
verbial laconismo: “ Sabem, mas não fazem.” Esta atitude
se nos afigura, com efeito, desconcertante. Busquemos na
literatura esclarecimentos sôbre o assunto.
114
A tragédia não retrata os costumes com exatidão: por
razões estéticas, sendo todos os seus protagonistas investidos
de grandeza sobre-humana, ela atribui aos velhos magnitude
e nobreza. Entretanto, o desgosto por êles demonstrado
soa com maior sinceridade que os elogios convencionais a
êles dirigidos.
115
Mesmo morrendo
Não me sentirei desgraçado demais se a meu lado
[ estiverdes.
116
gos. Eurípides, entretanto, põe em seus lábios a defesa
da velhice:
117
res ainda fedelhos zombem de nós, quando já nossa surdez
e nossa trêmula elocução nos reduzem a nada. . . Decré
pitos velhos, permanecemos diante da mesa de pedra, vis
lumbrando apenas as sombras da justiça” . Estendem-se
em longos e indignados protestos pelo fato de se verem
atormentados pelos jovens advogados e pelos ardis em que
buscam enredá-los.
Aristófanes, entretanto, não hesita em escarnecê-los em
outras peças: a idade constitui para êle um recurso cômico.
Em As Nuvens, um velho solicita a Sócrates a ciência do
raciocínio capcioso que lhe tornará possível livrar-se dos
credores. O público ria dos sofistas mas também ria daquele
aluno caduco demais para aprender. Manda êle o filho
em seu lugar: êste aproveita as lições de Sócrates e surra
o pai, demonstrando-lhe quanta razão tinha em fazê-lo.
Aristófanes inaugura aí o tema, tão repisado a seguir, do
velho surrado e escarnecido.
Em As Ves-pas, Aristófanes fustiga uma instituição por
êle encarada como um flagelo: os processos. O regime
tinha por suspeitos todos os cidadãos ricos ou poderosos e
contra êles movia inúmeros processos. Os juizes eram re
crutados no seio da coletividade de cidadãos. Cleon havia
estipulado em três óbolos a soma a êles devida por cada
julgamento. Os atenienses de posses não se interessavam
por êste ganho e se negavam a exercer a função. Os heliastas
eram, portanto, gente humilde e os julgamentos refletiam a
mentalidade das classes inferiores. Aristófanes compartilhava
dos sentimentos da classe superior para com êles: pelo
seu gosto, deixar-se-ia de alimentar milhares de juizes inú
teis, freqüentemente velhos, pois os homens mais jovens
estavam retidos por suas ocupações.
Assim, velhos desprovidos de bens são, no início da
peça, incitadas por Cleon a condenar Laches, por êle acusada
de venalídade e de malbaratamento dos dinheiros públicos:
havia, com efeito, muita solidariedade entre o demagogo
e os juizes. Entre êstes não se encontra o velho Filocleon ( 6),
pois seu filho, Bdelicleon ( 7) o havia trancado para impe
118
di-lo de se juntar a eles. Filocleon consegue, entretanto,
fugir e pronuncia um grande elogio dos tribunais, elogio
que é, na realidade, uma sátira. Seu filho replica e convence
os velhos heliastas. Mas não seu próprio pai, obstinado
no propósito de ir julgar. Tranca-o de nôvo e o força a
julgar um processo cujo réu é um cão. Busca, em seguida,
distraí-lo. Sendo mais rico que o pai, leva-o a banquetes.
O velho se embriaga, expõe-se ao ridículo, delira, espanca
os escravos, leva para casa uma bailarina que dança nua
ao som de uma flauta e a acaricia lübricamente. E passa a
noite em danças absurdas. Na peça, o bom senso é encar
nado pelo jovem. Os velhos heliastas são desconsiderados
em sua qualidade de instrumentos de Cleon.
O mesmo acontece em Lisístrata, peça contra a guerra.
Aristófanes ansiava pela paz entre Atenas e a Lacedemônia,
ao passo que Cleon continuava as hostilidades. Aristófanes
imagina todas as mulheres da cidade encerradas na cida
dela, com o objetivo de fazer cessar a guerra. Os velhos
aceitam o ponto de vista de Cleon e tentam retomar a
cidadela. Seu belicismo os torna odiosos e êles se cobrem,
além disso, de ridículo: embora impotentes, ficam a perse
guir as jovens, atraindo os sarcasmos de tôdas elas. Também
em Plutus, Aristófanes faz sua caricatura.
Por que motivo aplaudia-o o público? Era êste cons
tituído sobretudo de pequenos proprietários que viviam em
suas terras nos arredores de Atenas e que se divertiam vendo
ridicularizados os homens das cidades. Também eles se mos
travam hostis à demagogia de Cleon. A seus olhos, os an
ciãos de Atenas, tradicionalmente respeitados e investidos
de certa autoridade, eram culpados de colaborar com seu
inimigo pois o faziam ganhar os processos e apoiavam sua
política de conquista. Por duas vezes, como podemos obser
var, o homem de idade surge no papel de pai ridículo: com
certeza, os filhos constrangidos a obedecer ao chefe da
família, divertiam-se vendo-o escarnecido.
Aristófanes também fustiga a lubricidade dos velhos,
tema que será incansàvelmente explorado no decorrer de
séculos, especialmente pelo teatro cômico. Por que motivo
há de parecer êste traço tão repugnante ao adulto? Por
ser ainda o velho capaz de fazer amor ou por já não o
119
ser? Surge, no primeiro caso, como um rival temível pela
fortuna e pelo prestígio; além disso, fere o narcisismo dos
adultos, componente muito significativo e quase obrigatório
do amor, mesmo venal: quando dissociado da juventude,
do vigor e da sedução, o ato sexual é reduzido à categoria
de mera função animal; ao prestar-se a êle, a mulher desva
loriza as carícias de seus parceiros mais jovens. Mas é so
bretudo o velho libidinoso e impotente que provoca a revolta
dos homens em plena fôrça da idade pois nêle se encarna
o fantasma que obseda até os mais viris. Na opinião dos
psicanalistas, o complexo de castração jamais se vê total
mente extirpado; o espetáculo de um velho impotente rea
viva no homem maduro a ameaça que tanto havia assustado
outrora o garoto. Em outras palavras, o macho adulto
jamais se vê isento de ansiedade quanto a seu vigor sexual;
detesta imaginar o dia em que, conservando todos os seus
desejos, êle se vir incapaz de saciá-los. Odeia na pessoa
do velho sua própria condição futura; repudia-a através do
riso; facilmente se convence de que jamais se assemelhará
ao personagem grotesco que está se movimentando no
palco.
Na obra de Aristófanes, encontram-se poucas mulheres
e estas mesmas carecem de relêvo; podemos apontar apenas
algumas alcoviteiras e, na Assembléia das Mulheres, três
velhas em luta para obter as boas graças de um belo jovem.
Cem anos após Aristófanes, obtinha Menandro o favor
do público mostrando-se tão pouco indulgente quanto seu
antecessor com relação à velhice. Em sua opinião, seria
melhor não atingir idade muito avançada.
“Aquele que se atarda demais, morre desgostoso; é-lhe
penosa a velhice, vive na penúria. A girar daqui e dali,
encontra inimigos; conspira-se contra êle. Não se foi em
tempo; não teve uma bela morte ( 8).”
Também êle considera entristecedoras as pretensões do
homem de idade a uma vida sexual. “Não é possível haver
ente mais infeliz que um velho apaixonado a não ser outro
velho apaixonado. Como poderia deixar de ser infeliz aquêle
(8) Fragmentos.
120
que pretende ainda gozar do que já o está abandonando —
se é o tempo a causa de tudo?”
Para êle — e êste tema será com freqüência retomado
— a velhice se apresenta como fôrça maléfica, atuando do
exterior sôbre o indivíduo: “Velhice, inimiga do gênero
humano, és tu que destroes a beleza das formas, que em
inerte massa transformas o esplendor dos membros e a
agilidade em lentidão.”
“ Uma vida longa é coisa penosa. Ó velhice pesada!
Nada trazes de bom para os mortais mas distribuis a man
cheias dores e males. Não obstante, desejamos todos alcan
çar-te e nos empenhamos em consegui-lo.”
Encontram-se vários personagens idosos nas comédias
de Menandro que chegaram até nós — em fragmentos
originais ou por intermédio de Terêncio. Em A Samniana
o autor trata do problema das gerações. O “herói positivo”
é Demeas, ancião afetuoso e pródigo, muito apegado ao
filho e cujas ilusões a respeito do mesmo se vão tristemente
dissipando. Conserva-se, entretanto, sereno em meio às
contrariedades. Niceratos, pelo contrário, é um dos ascen
dentes de uma linhagem de velhos perversos, avarentos e
rudes. Há um casal análogo de velhos no Heauton-timo-
roumenos, retomado e desenvolvido mais tarde por Terêncio.
No Perikeiromené, o velho Pataicos assemelha-se a Demeas:
é sábio, bom, comedido e sensível. Existe, em compensação,
no Theophoroumene, um velho rabugento, Craton; e nos
Epitrepontes, encontramos Smicrines, velho avarento, car-
rancudo, detestável. Menandro levou ainda mais longe que
Aristófanes o personagem do velho ridículo e insuportável,
destinado a conhecer, mais tarde, tão grande voga. Mas
suas opiniões não são rígidas: julgava que a velhice tam
bém pode vir acompanhada de sabedoria e bondade.
121
o igualitarismo. Ela não respeitava suficientemente a com
petência. Apreciava a “democracia” espatana mas lamen
tava que Esparta escolhesse seus magistrados entre os ho
mens formados na escola da guerra e não entre os mais
sábios. No seu entender, a Cidade ideal é a que garante
a felicidade do homem; mas felicidade é virtude e a virtude
deriva do conhecimento da verdade. Portanto, somente os
homens egressos da caverna, os que contemplaram as idéias,
se acham qualificados para governar. Só podem ser con
siderados aptos para tanto, após uma educação que deve
ter início na adolescência para atingir a plenitude da pro
dutividade por volta dos 50 anos. A partir desta idade, o
filósofo se encontra de posse da verdade, tornando-se guar
dião da Cidade. O reinado das “ competências” sonhado
por Platão, seria, portanto, ao mesmo tempo, uma geronto-
cracia. Sua filosofia o autorizava a desdenhar o declínio
físico do indivíduo. Com efeito, a verdade do homem, no
seu entender, reside em sua alma imortal, que pertence à
família das idéias: o corpo não passa de aparência. Platão
viu, a princípio, em sua união com a alma apenas um obs
táculo; admitiu, mais tarde, que a alma possa explorar o
corpo em seu próprio benefício, mas sem ter necessidade
dêle. A degradação provocada pela idade não a atinge,
redundando até a diminuição dos apetites e do vigor do
corpo em maior liberdade para a alma. Quando escreveu
A Repiíblica, Platão era ainda jovem e fêz, pela bôca de
Céfalo, o elogio da velhice: “ Quanto às coisas do espírito,
crescem minhas necessidades e alegrias na proporção em
que enfraquecem os outros prazeres — os da vida corporal” .
E Sócrates acrescenta que o contato com os velhos é ins
trutivo. É verdade que, como observa Céfalo, a maioria
deles quando se reúnem, expande-se em saudades dos pra
zeres da juventude e em lamentações a respeito dos ultrajes
que lhes são infligidos pelos parentes. Contudo, lembra que
Sófocles diz, ao falar das coisas do amor: “ Foi com a maior
satisfação que dêle me livrei, como se me houvesse evadido
da casa de um amo loucamente selvagem.” Céfalo aprova
tais palavras: “A velhice. .. faz surgir em nós um imenso
sentimento de paz e liberação.” A concepção espiritualista
aqui expressa contradiz, radicalmente a dos autores satíricos,
no tocante à sexualidade dos velhos: a libido desapare-
122
ceria com a potência sexual; graças a esta harmonia o velho
teria acesso a uma serenidade vedada aos homens ainda
presas de seus instintos. Apesar de inúmeros desmentidos,
esta idéia se perpetuou até nossos dias devido a seu con
teúdo tranqüilizador: permite-nos pôr de lado a desagra
dável e inquietante imagem do velho lúbrico.
Uma vez estabelecido o valor da velhice, conclui Pla
tão: “Aos mais velhos cabe comandar; aos jovens, obe
decer.” Todavia, ao critério de idade, êle soma o do valor.
Em sua República, os corregedores sob cujo controle se
acham todos os magistrados, contam de 50 a 75 anos. Os
nomofilebros cujo papel é tão importante, têm de 50 a 70
anos. Os homens de mais de 60 anos já não tomam parte
nos cantos e libações dos banquetes. São êles, entretanto,
que os presidem, impedindo os excessos e tecendo considera
ções a respeito dos assuntos morais que inspiram os cantos.
Aos 80 anos de idade, Platão volta a tratar demorada-
mente do assunto nas Leis: refere-se com insistência às
obrigações dos filhos para com os velhos pais. Devem-se
dirigir a êles com respeito e colocar a serviço dêles tanto
suas riquezas como sua própria pessoa. Presta-se culto aos
antepassados; o futuro ancestral já é sagrado: “Objeto algum
de culto poderemos possuir mais digno de respeito que um
pai ou um avô, uma mãe ou uma avó, cheios de idade.”
A filosofia de Aristóteles o leva a conclusões muito di-
ferentçs. Para êle, a alma não é apenas o puro intelecto.
Até os animais são dotados de uma alma e esta se acha
necessariamente em relação com o corpo; o homem só
existe devido à união dos dois: é ela a forma do corpo,
os males que afligem a êste, atingem todo o indivíduo.
Para que a velhice seja ditosa, o corpo deverá permanecer
intato: “Bela velhice é aquela que tem a lentidão da idade,
livre de enfermidades. Depende ao mesmo tempo das even
tuais vantagens corporais e do acaso” , escreve êle em sua
Retórica. Na Ética, admite a possibilidade de conseguir o
sábio suportar todas as vicissitudes com equanimidade. Con
tudo, tanto os bens exteriores como os do corpo são neces
sários aos do espírito. Em sua opinião, o homem progride
até os 50 anos. É preciso atingir uma certa idade para
alcançar a frenosis, esta prudente sabedoria que nos ensina
123
uma justa conduta, e para acumular experiência, ciência
incomunicável visto ser vivida e não abstrata. Todavia, o
declínio do corpo acarreta a seguir o de tôda a pessoa.
Aristóteles, na Retórica, pinta a juventude com as mais
risonhas cores: entusiasta, apaixonada, magnânima, surgindo
a velhice, sob todos os aspectos, como seu oposto: “Por
terem vivido tantos anos, por terem sido tantas vêzes ilu
didos, por terem cometido erros e por serem maus, com
tanta freqüência, os negócios humanos, êles não têm certeza
de nada e fazem tudo manifestamente aquém do que teria
sido preciso fazer.” São reticentes, hesitantes, timoratos.
Por outro lado: “Têm mau caráter, porque, no fundo, ter
mau caráter é supor que tudo está pior. Sempre imaginam
o mal, devido a sua desconfiança e são desconfiados devido
a sua experiência da vida” . Falta calor a seus amôres,
tanto como a seus ódios. São mesquinhos, pois a vida os
humilhou. Carecem de generosidade. São egoístas, me
drosos e frios. Impudentes: desprezam a opinião alheia.
“Vivem mais de recordações que de esperança.” Tagarelas,
passam o tempo a repisar o passado. Suas cóleras são in
flamadas mas falta-lhes força. Parecem moderados porque
não conhecem desejos, somente interêsses. Vivem para êstes
e não para a beleza. Se não se fecham à piedade, não é
por grandeza de alma e sim por fraqueza. Queixam-se,
já não sabem rir.
O aspecto mais interessante desta descrição, inspirada
não em uma tese a priori mas sim em observações extensas
e pertinentes, é a idéia de que a experiência constitui um
fator de involução e não de progresso. O velho é um homem
que passou tôda sua longa existência a cometer erros e
isto não lhe poderia conferir superioridade alguma sobre
pessoas mais jovens que não acumularam ainda tantos
enganos.
Aristóteles critica, por censeguinte, a Gerúsia de Es-
parta, na sua Política: “ Uma soberania vitalícia para as
decisões importantes constitui instituição bastante digna de
reparos; pois a inteligência tem sua velhice, tal como o
corpo; e a educação recebida pelos gerontes não é de molde
a evitar que sua virtude seja posta em dúvida pelo próprio
legislador.” Acusa-os de se deixarem muitas vêzes corrom
per e de prejudicar ao interêsse público. Recomenda que
124
se liguem os velhos ao sacerdócio para que só lhes sejam
solicitados sábios conselhos e justas sentenças.
Sua concepção da velhice leva Aristóteles a afastar do
poder as pessoas idosas que são, a seu ver, indivíduos dimi
nuídos. Por outro lado, à frente da Cidade, sua política —
muito diferente da de Platão — coloca uma polícia e não
intelectuais. O ideal seria que todos os cidadãos fossem
homens de insigne virtude e que cada qual, por seu turno,
governasse e fôsse governado. Êste sonho de perfeição,
entretanto, é irrealizável. Levando-se em conta a realidade,
segundo Aristóteles, a melhor constituição seria aquela que
conseguisse associar a democracia a uma forte dose de oli
garquia. A mais indicada para exercer o poder seria a
virtude militar de uma classe média a quem caberia a
missão de manter a ordem. Mas os militares são homens
jovens ou em plena fôrça da idade. Não se iria recrutar
entre velhos a polícia de uma Cidade. Aristóteles os afasta
do poder, ao mesmo tempo, por razões psicológicas e por
coerência com suas concepções sociais.
(9) O que deixa de ser insólito, porque, para os Antigos, era esta
a estação da abundância: Pomifer au tomnus.
125
Prolonga-se este pessimismo, com Luciano, até o século
II de nossa e r a ( 10). Interpela êle, num epigrama, uma
mulher idosa: “Debalde tinges teus cabelos, jamais tingirás
tua velhice nem farás desaparecerem as rugas de tuas fa
c e s... Nunca vermelhão nem cerásia farão de Hécuba
uma Helena.” Nos Diálogos dos Mortos, êle se admira,
como Eurípedes, da obstinação com que os velhos se afer
ram à vida. E deles traça, por duas ou três vêzes, um cruel
retrato: “ Um velho decrépito, a quem só restam três dentes
e que mal vive, arrimando-se para andar em quatro escravos;
seu nariz destila contínuo monco, seus olhos são cobertos
de remela; insensível a todas as volúpias, sepulcro animado,
objeto de escárnios da juventude.”
Mais uma vez, o desgraçado velho inválido, semimorto,
suscita risos e não piedade ou horror. Já vimos por quê.
A iconografia grega condiz com a literatura. Vemos
em vasos do século V e de séculos seguintes, Hércules
combatendo a velhice: representada pela figura de um anão
esquálido, ou por um personagem macilento, enrugado, qua
se careca. Surge também, de vez em quando, como uma
figura muito alta, de longos cabelos e barbas, ajoelhada,
em atitude de súplica, diante de Hércules. No século IV,
Demétrio esculpiu uma Lisímaca com os traços de uma
velha hedionda.
126
privada é garantida pela lei. Tal foi o caso quando as ins
tituições romanas se tornaram firmemente estabelecidas. A
propriedade assumiu diversas formas. A terra constituía o
fundamento dos bens do patrício, mas êste possuía, além
disso, outros estabelecimentos lucrativos e, não raro, ações
de grandes companhias financeiras que se encarregavam da
coleta de impostos e da realização dos trabalhos públicos.
Os cavalheiros constituíam uma aristocracia financeira; em
prestavam dinheiro mediante juros usurários. O comércio
representa, enfim, uma fonte de riquezas. Em todos êsses
domínios, a fortuna estava normalmente acrescida ao cabo
de uma existência consagrada a sua administração e am
pliação. Entre os ricos, contavam-se muitos velhos, repre
sentando suas posses uma fonte de prestígio para êles.
Foram, de início, os detentores do poder: o Senado era
composto de ricos proprietários de bens de raiz, chegados
ao término de sua carreira de magistrados. Até o século II
antes de Cristo, a República foi poderosa, coerente, conser
vadora; reinava a ordem; eram consideráveis os privilégios
da fortuna. Era governada por uma oligarquja onde a
velhice se via favorecida pois suas tendências conservadoras
se justapunham. O Senado gozava de imensas prerrogativas
e a êle cabia a direção de toda a diplomacia romana. Exer
cia uma suprema autoridade sobre os comandos militares.
Cada chefe de exército era assistido por lugar-tenentes re
crutados pelo Senado em seu próprio seio. Administrava as
finanças. A êle competia julgar os delitos graves: traição,
prevaricação. As altas magistraturas só eram atingidas em
idade bastante avançada: a “ carreira das honrarias” era
regulamentada com tanto cuidado que se tornava imprati
cável qualquer carreira fulgurante. Por outro lado, o voto
dos velhos também tinha mais pêso que o dos outros cida
dãos. Em Roma, votava-se por centúrias: as centúrias de
seniores, de igual valor eleitoral, compreendiam muito me
nos indivíduos que as dos juniores; a maioria legal não cor
respondia, portanto, à maioria numérica, com vantagem
para os homens idosos.
Esta situação política apoiava-se numa ideologia cujas
raízes se encontravam numa economia essencialmente rural.
Os camponeses costumam desconfiar das inovações e a vir
tude essencial entre os romanos era a 'permanência. O mos
127
majorum (costume dos ancestrais) tinha fôrça de lei e pos
tulava a crença na sabedoria arcaica. Os antepassados con
tinuavam presentes na família: os manes retornavam do
inferno em determinadas datas e era preciso aplacá-los por
meio de sacrifícios. Era necessário obedecer-lhes, respei
tando as tradições. A permanência era assegurada pela
pietas exigida de todo cidadão para com a pátria, os ma
gistrados e, particularmente, para com o pai.
Um problema se propõe aos historiadores: aquela so
ciedade tradicionalista, votada aparentemente à estagna
ção, realizou, no entanto, no decorrer dos séculos, a con
quista do mundo. Os guerreiros não constituíam uma casta,
não eram privilegiados: não obstante, o imperialismo ro
mano, dirigido pelo Senado, continuou incessantemente a se
desenvolver. Por quê?
Os historiadores vacilam ao responder a esta pergunta.
Nos últimos tempos da República, a conquista havia criado
condições materiais e morais propícias a uma anarquia que
compelia a novas conquistas: mas de que maneira terá esta
engrenagem começado a funcionar? Alega-se a cupidez de
um povo de campônios; busca de segurança; orgulho roma
no; desejo de enriquecer; ambições pessoais. O certo é que
a expansão militar se pôs a serviço da expansão econômica.
Roma enriqueceu de maneira considerável com os des-
pojos recolhidos, com as indenizações de guerra, com os
tributos exigidos. Também causa espanto o caráter da con
quista: lenta, mas muito lenta mesmo, se a compararmos
com a de Alexandre. Salvo no fim da República, não foi
efetuado por indivíduos de marcante atuação política e so
cial: mesmo cobertos de glória, os generais permaneciam
simples servidores de Roma. Dirigida pelo Senado, isto é,
por homens idosos, a obra coletiva prosseguiu, metódica e
contínua, sem se opor à permanência da ordem coletiva;
e não a perturbou durante séculos a fio.
A situação privilegiada do velho encontra confirmação
no seio da família. É quase ilimitado o poder do pater fa
mílias. Seus direitos são idênticos, tanto sôbre as pessoas,
como sôbre as coisas: pode matá-las, mutilá-las ou vendê-
-las. Este poder só se extingue com a morte ou com a ca-
pitis diminutio que — em casos extremamente raros — des-
128
ligava o cidadão da vida civil. Era considerado um mons-
trum o filho que erguesse a mão contra o pai; deixava
de pertencer à sociedade dos homens sendo declarado
sacer, isto é, rejeitavam-no do mundo, matando-o. Preten
dendo casar-se, o rapaz devia obter não somente o consen
timento do pai, como também o do avô, se ainda vivo:
prova de que o patriarca conservava sua autoridade até o
fim.
Apesar de seus poderes teóricos, foi-se tornando cada
vez mais excepcional o fato de algum pai se dispor a vender
um filho como escravo. O exercício da autoridade parece
ter sido cercado pelos costumes, pelo uso. A matrona romana
exercia grande influência no lar (11) e esta divisão do poder
favorecia os filhos. É ambígua a relação da literatura com
os costumes. Todavia, não se concebe que Plauto os ridi
cularizasse de tal forma em cena e com tamanho sucesso,
se os velhos fôssem poderosos e respeitados como na China.
Os Atelanes haviam retomado o personagem grego do velho
ridículo, apresentando-o com os nomes de Casnar e de
Pappus. Plauto lhe atribui um papel importantíssimo. Ima
gina-o sempre com a figura de um pai cuja avareza atra
palha os prazeres do filho; lúbrico como nas peças de Aris-
tófanes, torna-se seu rival e utiliza sua riqueza, assim como
sórdidas astúcias, para lhe arrebatar a mulher amada: com
pra-a, por exemplo, e a dá em casamento a um escravo, que
lhe deverá ceder o lugar no leito nupcial. Suas artimanhas,
no entanto, sempre fracassam, graças a outro escravo muito
sagaz que vem em auxílio do filho. O velho é desmascarado
e sua esposa ■— feia e rabugenta como de costume — lhe
faz amargas censuras. Torna-se alvo de chacota, não só
para a casa tôda, como para a vizinhança. É êste o tema
do Asinário, no qual Demeneta é um senador despudorado,
humilhado pela espôsa, desprezado pelos escravos, repudia
do pelo filho, escarnecido por uma cortesã. Em Casino,
Stalinon borrifa-se todo de perfumes para agradar à jovem
9 129
amada por seu filho; em lugar dela, colocam um homem no
leito onde o velho espera encontrá-la. É também este o
tema de O Mercador. Em Bachis, dois velhos buscam sub
trair os filhos à influência das cortesãs e terminam caindo
na orgia.
Mesmo quando honestos e amáveis, a idade é suficiente
para transformar os velhos em objeto de derrisão: não são
nem viciosos nem pervesos os dois velhos de Epídico: no
entanto, o aspecto cômico da peça advem do fato de serem
êles vítimas da astúcia de um escravo que lhes arranca
dinheiro. Divertimo-nos assistindo a O Fantasma, onde o
bom Teuropides é ludibriado por um escravo, cúmplice das
estroinices de seu filho.
Plauto criou numerosos personagens de velhos simpá
ticos. Apesar de sua objeta avareza, Euclion se revela no
final de Aulularia, um bom pai, afetuoso e liberal; um
de seus amigos, igualmente idoso, afável e honesto, despo-
sa-lhe a filha, mesmo sem dote. São todos sorridentes, inte
ligentes e bondosos os velhos apresentados em Pseodolus,
em Rudens, Trinumus e em O Cartaginês. O velho mais
perfeito é o de Miles gloriosus. O vilão odioso é o militar,
homem na fôrça da idade; Periplectomane, pelo contrário,
é um sábio, espirituoso, alegre, bondoso para com os jovens,
sendo êle próprio também jovem de coração e conhecedor
da arte de viver. Ajuda o namorado da heroína a prote
gê-la contra o soldado fanfarrão. E, ao traçar, sorridente,
seu próprio retrato, aponta os erros que a velhice deve
evitar: “Â mesa, não atordoo as pessoas com minhas paro-
lagens sobre os negócios públicos; jamais, durante a refeição,
insinuo minha mão sob as vestes de uma mulher que não é
minha; não me apresso em arrebatar os pratos a meus vizi
nhos ou em levantar a taça antes dêles; o vinho jamais me
excita a provocar briga durante um banquete.” No teatro
de Plauto, é o único a permanecer celibatário: congratula-se
por não ter mulher nem filhos. Há somente um velho —
em Os Menecmas — descontente com a própria idade:
“Péssima mercadoria são os maus anos que nos encurvam
o dorso; quantos aborrecimentos e dores trazem consigo!”
É muito reduzido o papel das velhas: esposas rabugen
tas, velhas cortesãs mais ou menos alcoviteiras, quase não
130
entram em linha de conta. Planto discute, sobretudo, a
figura do pater famílias. Seu poder, com toda a certeza,
devia ser amargamente ressentido pelos jovens: em suas
mãos estavam os cordões da bolsa e podia dispor do destino
da juventude que sentia prazer em se desrecalcar vendo-os
caricaturados. Além disso, talvez tanto os jovens como os
homens maduros tolerassem com dificuldade a autoridade
dos velhos: o Demeneta do Asinário, não é apenas pai é
também um velho senador. Todavia, Plauto contrapõe aos
tiranos lúbricos e ridículos, figuras de amáveis velhos; a
idade provecta é, em si mesma, respeitável; são indignos
deste respeito apenas aqueles que abusam de sua autoridade
para satisfazer aos próprios vícios. Plauto não toma partido
pelos filhos de maneira incondicional: são estes, amiúde,
depravados, interesseiros e egoístas.
Mais culto e requintado, Terêncio tratou com maior
seriedade o problema do conflito das gerações, que enxer
gava através de um prisma mais variado. Os personagens
idosos do Andrienne, inspirado em Menandro, são bastante
simpáticos porém demasiadamente apagados, alcançando
muito maior relêvo no Heautontimoroumenos. Os dois he
róis são ricos e autoritários e contam, ambos, mais de 60
anos de idade. Menedemo, violento e apaixonado, opôs-se
ao casamento do filho e êste partiu para a Ásia onde se
alistou no exército. Desesperado e cheio de remorsos, o pai
se faz “ carrasco de si mesmo” , impondo-se trabalhos exaus
tivos. Cremes, também em conflito com o filho, é um
pretenso filósofo cuja bôca está sempre cheia de belas pa
lavras (12): persegue a esposa que é bem melhor que êle
e se deixa ludibriar pelos escravos. Queixa-se o filho de
Cremes, indivíduo bastante perverso; “Que juizes iníquos
são os pais para os jovens! Gostariam que fôssemos adultos
desde a infância!” A generosa magnanimidade de Mene
demo, a intensidade de seu amor pelo filho não se alteram
até o fim da peça, nem mesmo quando preocupado com
sua conduta e receoso — erroneamente — de se ver arruina
do por êle.
(12) Foi êle quem disse: “ Sou homem e nada do que é humano
me é estranho” ; mas isto porque desejava se intrometer nos assuntos de
seu vizinho, espantado pela sua curiosidade.
131
Encontra-se um casal parecido nos Adelfos. Demea teve
dois filhos e confiou um deles a seu irmão Micion, que não
era casado. Micion, indulgente e bondoso, compreende e
ama a juventude, de modo que seu filho adotivo o adora
e todos lhe são afeiçoados. Demea, tão duro para os outros
como para consigo mesmo, castiga o filho que se revolta
contra êle. Acaba compreendendo e se transforma: “Tam
bém eu desejo que meus filhos me amem.” Em Phromion,
o pai do herói, Demifon, é homem autoritário e iracundo.
Provoca terríveis cenas quando toma conhecimento do casa
mento do filho, realizado em sua ausência. Pretende obri
gá-lo a romper este compromisso.
Mais didata que Plauto, Terêncio ensina aos pais como
deverão comportar-se se desejarem fazer a felicidade dos
filhos e a sua própria. Seu objetivo não é tanto ridicularizar
os velhos quanto preveni-los. Seu teatro nos leva também
à conclusão de que os filhos suportavam com impaciência
uma autoridade já limitada, aliás, pela pressão da opinião
pública.
132
ta de 271, perde também os privilégios financeiros e mone
tários. Restringe-se simultâneamente, o poder do pater
famílias. Os direitos sôbre pessoas deixam de ser assimila
dos aos direitos sôbre coisas. Passa a ser considerado assas
sinato o exercício do direito de vida e de morte. O escravo
idoso ou inválido, deixado pelo amo ao desamparo, torna-se
automàticamente liberto.
É nesta perspectiva que se deve ler o De Senectude
de Cícero. Senador e contando 63 anos de idade, compôs
uma defesa da velhice, com o objetivo de demonstrar a
necessidade de se reforçar a autoridade do Senado, de há
inuito abalada. Os nobres e ricos de seu tempo já não acre
ditavam em nada: só se interessavam por seus prazeres e
ambições, embora, em público afivelassem uma máscara e
acatassem os valores estabelecidos, sôbre os quais Cícero
tenta apoiar-se. De um modo particular depois de iniciada
a decadência do Senado, o estoicismo se havia introduzido
em Roma, sob um aspecto deturpado. Os senadores o ha
viam transformado em ideologia conservadora: o mundo é
harmonia; tudo que é natural é bom; cada elemento deve
se contentar com o lugar que lhe cabe no seio do todo; é
preciso respeitar o status quo deixando os privilegiados
gozarem de seus privilégios. Encontram-se no De Senec
tude, vários ecos de tão cômodas idéias.
“ Na extrema miséria, nem por um sábio pode a velhice
ser suportada”, admite Cícero. Mas os miseráveis não são
senadores e é destes que se trata. Cícero pretende demons
trar que a idade não os desqualifica, pelo contrário: só faz
é aumentar suas capacidades. Para tanto, simula dar a
palavra a Catão o Velho, o qual, com 80 anos, se acha em
plena posse de suas faculdades. Reconhece este a péssima
reputação da velhice, atribuindo-a a preconceitos que vai
procurar destruir.
Ela já nada mais produz costuma-se dizer. Errado.
As grandes coisas se realizam “pelo conselho, pela autori
dade, pela sábia maturidade de que a velhice se acha tão
abundantemente provida e de modo algum despojada.”
“Os Estados sempre se viram arruinados pelos jovens, salvos
e restaurados pelos velhos.” Catão refuta a idéia de estarem
êstes diminuídos: “ O velho mantém intato seu espírito, con
1S3
tanto que não renuncie nem a exercitá-lo nem a enriquecê-
-lo.” Cícero aponta os nomes de Sófocles, Homero, Hesíodo,
Simônidas, Isócrates, Górgias, Pitágoras, Demócrito, Platão
e muitos outros, para reforçar aquela afirmação. Contradiz
a opinião de Caecilius (“ ): “ O que me parece mais lamen
tável na velhice é sentir que, nesta idade, as pessoas se
tornam odiosas aos olhos dos jovens.”
Fala-se, em segundo lugar, na fraqueza do velho. A
força física, entretanto, de pouco vale. Milon, lastiman
do-se por causa dos braços: “Ai! já estão mortos!” , suscita
apenas desprêzo. “ Sejam quais forem a fraqueza e a
languidez de um homem que dá lições de sabedoria e vir
tude, considerá-lo-ei sempre afortunado” . Aos 80 anos, Ca
tão declara continuar lépido e bem disposto. Há velhos de
saúde precária; mas há também jovens nas mesmas condi
ções. “ Esta imbecilidade da velhice, comumente chamada
segunda infância, não é encontrada em todos os velhos,
mas somente naqueles que já são naturalmente pobres de
espírito.”
Volta Cícer®, em seguida, ao repisado tema exposto
na República-, afirma-se que o velho desfruta poucos pra
zeres: está êle, portanto, a salvo das paixões e dos vícios e
é este o privilégio mais digno de inveja. Para compensar
sua benéfica impotência, Catão lhe oferece os prazeres da
mesa, os da conversa, o estudo, a literatura, a agricultura.
Declara de maneira especiosa: “Não é muito dolorosa a
privação daquilo que não desejamos.” Podemos, contudo,
considerar muito mais penosa a mutilação que liqüida em
nós o desejo do que a própria frustração de um prazer.
Perder um sentido é muito mais desolador que o fato de
nem sempre poder saciá-lo.
Também afirma, esquecido das justíssimas observações
de Aristóteles, não serem provenientes da idade mas sim do
caráter, os defeitos atribuídos geralmente à velhice; um
dos velhos dos Adelfos é encantador enquanto o outro é
detestável. Extrai daí uma conclusão moralizadora: a ve-15
134
lhice é feliz e amável, quando representa o final de uma
vida virtuosa.
Chega ao ponto de apelar para um argumento aberrante
como o seguinte: a morte atinge da mesma forma a jovens
e velhos e a prova está no escasso número destes últimos.
Aliás, a morte nada tem de temível: “Tudo que é natural
deve ser considerado bom” . Esta conclusão, inspirada pelo
estoicismo, deveria tê-lo dispensado de escrever seu tratado,
visto ser a velhice tão natural quanto a morte.
Cem anos mais tarde, Sêneca irá sustentar — de ma
neira muito mais sucinta — as mesmas idéias que Cícero e
por razões análogas, nas Cartas a Lucilius. Era êle um dos
homens mais ricos de seu tempo. Exilado por Cláudio, foi
chamado de volta à Roma por Messalina e se tornou precep-
tor de Nero; utilizou sua influência, quando êste subiu ao
tronco para fazer ressurgir a autoridade do Senado, opon
do-a à de Agripina. Tomou parte na divisão da fortuna
de Britannicus, foi nomeado cônsul e usou de todos os re
cursos para impor sua política. Foi cúmplice do assassinato
de Agripina. Solicitou a aposentadoria por volta de 62,
porém Nero a recusou. Sêneca constituía uma garantia
para a opinião senatorial, por êle representada junto a Nero.
Continuou a desempenhar êste papel de refém (16); restrin
giu, entretanto, sua atividade e passou a despender a maior
parte de seu tempo no recesso do lar. Foi então que escre
veu, aos 61 anos, as suas Cartas. Era um adepto da moda
lidade destorcida do estoicismo a que já me referi. Êste
otimismo interesseiro aliado e a atitude política favorável
ao Senado ditam-lhe as observações sobre a velhice. Como
tudo que é natural, ela é boa e não acarreta nenhuma deca
dência: “ Devemos dar boa acolhida à velhice e estimá-la;
traz consigo abundantes doçuras, quando dela sabemos tirar
proveito. Os frutos são mais saborosos quando sazonados.
Deliciosa época esta em que deslizam no plano inclinado
dos anos, com movimento que nada tem ainda de brutal. . .
Se quisermos, isto chega até a substituir o prazer, a evitar
que experimentemos sua necessidade” (Carta 12). E na
20.a : “A alma viceja e desabrocha por já não manter com
(16) Até ser condenado à morte, por ter sido implicado na cons
piração de Pison.
135
o corpo muito comércio.” Já vimos quais os interesses que
ditaram a Sólon, Platão, Cícero e Sêneca semelhantes elogios
tão complacentemente reiterados, século após século, pelos
privilegiados que neles pretenderam enxergar verdades. É
muito diferente o ponto de vista objetivo do estudioso.
Plínio o Velho acredita estar enunciando verdades já com
provadas quando escreve, sem se deter no assunto: “A bre
vidade da vida é, com certeza, o maior benefício da natu
reza. Os sentidos perdem a agudeza, os membros se entor
pecem, a vista, o ouvido, as pernas e até os dentes e os
instrumentos da digestão nos precedem na morte.”
Os poetas eram também muito mais sinceros que os
moralistas pois não esperavam obter vantagens com seus
versos. Cícero já estava morto e Sêneca ainda não havia
nascido quando Horácio e Ovídio escreveram suas obras.
Ainda jovens, não encaram a velhice como uma condição
geral mas sim como uma aventura individual e extravasam
a amargura que ela lhes inspira. Horácio revivesce um
tema muito caro aos poetas jônios: canta, como êles, o
vinho, as mulheres, os prazeres; desaparece, com a velhice,
tudo aquilo que constituiu a doçura de viver. Fala da
“melancólica velhice” . Escreve: “ Chega a triste velhice,
expulsando os doidos amores e o sono fácil”. Descreve o
ciclo das estações, da alegre primavera ao gélido inverno ( 17),
concluindo: “As rápidas estações tornam, pelo menos, a
encontrar nos céus, um renovar; quanto a nós, assim que
descemos para onde repousam o piedoso Enéas, Tullus,
Ancus, nada somos além de cinza e poeira.”
Ovídio, como tantos outros, vê no tempo e na velhice
uma força destruidora. “ Ó tempo devastador, e tu, velhice
invejosa, juntos destruis tôdas as coisas e, com vossos den
tes, lentamente roendo, em lenta morte, tudo acabais con
sumindo.”
Ninguém jamais descreveu a fealdade da velhice com
tanta selvageria quanto Juvenal. Na Sátira X, busca acau
telar os homens contra desejos imprudentes, como o anseio
por uma longa vida:
136
“A que seqüência de males — e que males! — está
sujeita uma longa velhice! A começar pelo rosto defor
mado, hediondo, irreconhecível; em lugar de pele êste feio
couro, as faces caídas, rugas parecidas com as que velhas
macacas se distraem cocando em torno da bôca, nas som
brias florestas de T ab arca... Os velhos todos se asseme
lham; é trêmula a sua voz, assim como os seus membros;
seu crânio polido já não tem cabelos; úmido é seu nariz,
como o das criancinhas. Para triturar seu pão, ao pobre
velho só restam gengivas sem dentes. É um tal encargo
para a esposa, os filhos e para si mesmo que chegaria a
desgostar a Cossus, o captador de testamentos. Seu en
torpecido palato já não lhe permite saborear como outrora
vinhos e iguarias. Quanto ao amor, dêle está esquecido de
há muito. . . Entre os velhos, a êste dói a espádua, àquele
o rim e, ao outro, a coxa. Perdeu êste os dois olhos e
inveja agora ao caolho. . . O velho já não domina a própria
cabeça. O preço de uma longa vida são perdas constante
mente renovadas, lutos incessantes e a velhice envolta em
negras vestimentas, cercada de eterna triste za...”
Decadência biológica, enfermidades, mutilações, nada
vem compensar neste quatro as misérias da velhice. Encer
ra-o Juvenal com uma idéia que ninguém havia até então
exprimido: envelhecer é ver morrer os que nos são caros,
é ser condenado ao luto e à tristeza (18).
Os poetas latinos se mostraram particularmente violen
tos na denúncia da fealdade da mulher velha. Horácio,
nas Êpodas, descreve enojado uma velha loucamente ena
morada, não se mostrando mais complacente para com Ca-
nídia, a feiticeira. É hedionda a aparência da mulher idosa:
“ É negro o teu dente. Velhice antiga cava sulcos de rugas
em tua fronte, teus seios, são flácidos como as tetas de uma
jumenta.” Seu odor é desagradável: “ Que suor, que hor
rível perfume por toda parte desenvolvido sobre seus flá
cidos membros.” Nos Tristes, Ovídio evoca com uma cruel
dade mesclada de melancolia o futuro semblante da mulher
amada (19); diz êle a Perilla: “Gastos pelos anos, hão de
137
se alterar estes traços encantadores; esta fronte, fenecendo
como o tempo, será sulcada de rugas; tôda esta graça será
presa da implacável velhice que, passo a passo e sem ruído,
avança. Hão de dizer: ela era bela. E tu, desconsolada,
a teu espelho acusarás de infiel.” Mais severo ainda é o
retrato de Dipsas, a feiticeira, velha alcoviteira, cujos male
fícios “maculam os pudicos amores” . Acantis, interpelada
por Propércio, é outra alcoviteira repugnante: “Através de
tua pele, contam-se todos os ossos. Pelos buracos de teus
dentes passam sanguinolentos escarros.” Nos Epigramas,
Marcial fustiga todo os velhos, mas sobretudo as mulheres:
“ Trezentos cônsules viste, Vetulsita, e só te restam três fios
de cabelos e quatro dentes” . “Tais fede mais que um velho
pilão, que uma ânfora estragada por salmoura apodrecida” .
Como o destino da mulher, aos olhos do homem, é constituir
um objeto erótico, ao se tornar velha e feia ela se vê desti
tuída do lugar que lhe é atribuído na sociedade: passa a
ser um monstrum repelente e até mesmo temível. Como
sucede entre alguns primitivos, ao decair da condição hu
mana, ela adquire um caráter sobrenatural: é uma feiticeira,
uma bruxa dotada de perigosas faculdades. Mas, apesar
destas invectivas, é contra os homens de idade, contra os
que possuem autoridade e fortuna que a sátira se desen
cadeia com maior freqüência. A leitura dos autores gregos
e latinos confirma minhas afirmações do início do capítulo:
os velhos desprovidos de importância social não encontram
lugar algum em suas obras (20). A questão tôda gira em
tôrno do poder concentrado nas mãos da velha geração.
Com relação a esta, é ambígua a atitude dos homens madu
ros: apóiam-se nela a fim de manter uma ordem proveitosa
para sua classe; respeitam na pessoa do velho rico os sa
grados direitos da propriedade. Invejam, no entanto, o es
tatuto que eles próprios conferem institucionalmente ao
ancião e odeiam os indivíduos por êle beneficiados. Entre
os gregos, a tragédia envolve os velhos numa aura quase
sobrenatural; o mesmo não acontece entre os romanos. Nas
138
duas literaturas, os autores cômicos e os poetas satíricos
denunciam o contraste entre os privilégios econômicos e
políticos das pessoas de idade e sua degradação física:
revoltam-se — e com êles todo o público — pelo fato de
se concederem a êsses resíduos humanos o direito de deli
berar, de julgar, de governar a coisa pública, de imperar
sôbre a família: em Plutus, são incapazes quase que até
de andar os velhos que se encaminham para a Assembléia
a fim de decidir o destino da República.
Os jovens são os que mais se rebelam contra o fato de
não ser socialmente sancionada a decadência senil. Plauto
colhe aplausos quando mostra velhos simpáticos vítimas das
astúcias dos filhos. Caecilius afirma que os jovens detestam
os velhos. Segundo Luciano, êles constituem “ alvo das
zombarias da juventude” . Os jovens, inegàvelmente, se sub
metiam a sua autoridade com despeito, ressentimento e
ódio. A violência de Juvenal só encontra explicação se o
consideramos porta-voz da opinião pública. Cícero qualifica
de “preconceitos” as idéias difundidas sôbre a velhice, mas
não deixa de reconhecer que ela é, em geral, detestada.
Ridícula aos olhos dos autores cômicos e de seu público, a
velhice constitui para os poetas uma fôrça destruidora cujo
ataque é por êles receado. Alguns moralistas a defendem
por razoes políticas. Aristóteles, cujos interesses não se
achavam em jôgo, dela faz um sombrio retrato.
139
cujo sangue se afogaram todos os gigantes, salvo Bergelmir
que escapou com sua mulher. Os deuses criaram o mundo
e o governaram.
A mitologia germânica também afirma a supremacia da
juventude, invocando o crepúsculo dos deuses. Depois de
haverem durante muito tempo governado o mundo, o pode
roso Odin e todos os antigos deuses enfrentam novos deu
ses em terrível combate. Os últimos saem vencedores,
tendo todos os outros perecido e ficando o universo aniqui
lado. A terra é submersa. Renasce, depois, o mundo; surge
um nôvo sol, filho do antigo. A terra emerge das águas.
Alguns indivíduos que haviam conseguido sobreviver geram
uma nova humanidade. Até para os deuses chega o mo
mento em que o desgaste do tempo os força a ceder o
lugar. Entre os eslavos, Svarog, o Céu, transmite pacifica
mente o poder a seus filhos, o Sol e o Fogo.
A história propriamente dita poucas informações trans
mite a respeito dos povos conquistados por Roma e sobre
os invasores bárbaros. Afirma César que os gauleses mata
vam os doentes e os velhos desejosos da morte. Procópio
diz o mesmo dos Hérulos. Podemos, sem dúvida, aplicar
à maioria dos bárbaros, hordas guerreiras e conquistadoras
que só viviam para a luta, as palavras de Ammien-Marcellin
a respeito dos alanos; “ Morrer de velhice ou por acidente
constitui opróbrio e covardia que êles cobrem de medonhos
ultrajes”. Em tais sociedades, os velhos deviam ser pouco
numerosos e desprezados. Pode-se presumir que sua exis
tência tenha continuado penosa depois de as hordas se
haverem fixado à terra. Entre os germanos, era muito in
tensa a solidariedade familiar; podemos admitir, por conse
guinte, que êles se encarregavam de alimentar as “ bôcas
inúteis” . Há, entretanto, um fato preciso que demonstra a
desvalorização sofrida pelo indivíduo com o avanço dos
anos. Estou-me referindo à compensação monetária exigida
em caso de assassinato de um homem livre. No século VI,
o Direito visigodo cobrava:
140
100 por um homem de mais de 65 anos;
250 por uma mulher de 15 a 40 anos;
200 por uma mulher de 40 a 60 anos.
141
os dias da semana). A juventude dura de 35 a 45 ou 50 anos.
Vem, em seguida a senecte. “ Depois desta idade, sobrevêm
a velhice que dura, segundo alguns, até os setenta anos e,
segundo outros, só acaba com a morte. Na opinião de
Isidoro, a velhice é assim chamada porque as pessoas se
apequenam, pois os velhos não têm o bom senso que haviam
tido anteriormente e estão caducos.
A contribuição da Igreja, num ponto, foi positiva: criou,
a partir do século IV, hospícios e hospitais. Assegurou em
Roma, tal como em Alexandria, a assistência aos órfãos e
aos doentes. Considerava a esmola um dever e o lembrava
com insistência. Os velhos foram, sem dúvida, beneficiados
por estas caridades, mas nunca se faz referência explícita
a êles.
O fim da Alta Idade Média, denominada pelos inglê-
ses the dark age, foi um período de destruição e confusão.
“ Só se vêem cidades despovoadas, monastérios arrasados ou
incendiados, campos reduzidos à solidão... Em toda a
parte, o poderoso oprime o fraco e os homens se asseme
lham aos peixes do mar que, de cambulhada, se entredevo-
ram”, declaravam em 909 os bispos da Província de Reims.
Os séculos IX e X estrugem com lamentações desta ordem.
A vida material era muito mais áspera que na Antiguidade.
As técnicas tinham regredido, as castas se haviam degra
dado, as cidades despovoadas: ruralizara-se a sociedade,
tendo desaparecido as classes médias. Era muito rude o
trabalho dos campos, não podendo dêle participar o homem
de idade. Também nesta época, sua sorte não parece ter
sido melhorada pela religião. Em princípio, o cristianismo
retomava a tradição do Decálogo que prescrevia honrar
aos pais; na realidade, o culto da família não encontrava
guarida numa época em que o ideal era ascético e antimun-
dano. “Deixarás teu pai e tua mãe para seguir-me” , disse
Cristo. Entre os cristãos, uma minoria buscava fugir ao
século: praticavam o celibato, refugiando-se nos desertos
ou enclausurando-se em conventos. Os outros se acomoda
vam aos usos. A religião, para estes, constava apenas de
práticas exteriores: clérigos e leigos resgatavam com devo
ções o desregramento de suas vidas. Acreditavam no poder
do demônio e na feitiçaria; respeitavam tabus sexuais e ali
mentares baseados em superstições. Os tribunais seculares
142
e até mesmo os eclesiásticos se serviam de ordálios para o
pronunciamento de suas sentenças.
Durante o Baixo-Império e a Alta Idade Média, viram-
-se os velhos quase excluídos da vida pública: o mundo era
dirigido pelos jovens. Dividida, conturbada, ameaçada,
belicosa, a sociedade era governada muito mais pela for
tuna das armas que por instituições estáveis. Pouco valor
tinha o homem de experiência. No século VII, Khindas-
wintz foi eleito rei dos Visigodos aos 79 anos de idade,
restaurando o prestígio da coroa. Carlos Magno reinou
até os 72 anos. São as únicas exceções de que tenho notícia.
Até os papas, naquela época, eram quase todos jovens.
Gregório I, o primeiro chefe verdadeiro da Igreja universal,
foi eleito papa, em 590, com a idade de 50 anos e morreu
aos 64: era relativamente idoso. Mas até o século VIII,
os papas foram jovens romanos de boa estirpe, destinados
à Igreja por serem órfãos e desprovidos de fortuna. Mais
tarde, sendo os papas detentores de riquezas materiais e
de um grande poder, os nobres entraram a cobiçar o trono
pontifício. Nos séculos IX e X, impuseram êles à Igreja
chefes, geralmente jovens, que eram destituídos pouco
tempo após a eleição. Não chegava a três anos a duração
média do pontificado. Durante os sessenta anos do período
conhecido como “Pornocracia” , o papado foi dominado pelas
mulheres.
Aconteceu serem nomeados papas alguns cardeais muito
idosos; mas João XII foi eleito aos 16 anos, Bento IX aos
12, Gregório V aos 23. Tanto os jovens como os velhos,
no entanto, não passavam de joguetes entre as mãos de
uma poderosa aristocracia.
Graças a uma feliz expansão econômica, por volta do
ano 1 000 a civilização começa a emergir das trevas. Orga
niza-se a sociedade feudal cujas origens remontam ao sé
culo VIII quando se vê aparecer a vassalidade. Ê muito
apagado o papel nela representado pelos homens idosos.
A posse de um feudo, para ser mantida, requeria a capaci
dade de manejar uma espada para defendê-la. O vassalo
deve ao senhor a prestação do serviço das armas. É pre
ciso “ que êle tenha armas e cavalos, que, salvo quando
impedido pela velhice, tome parte no ost (serviço militar)
e nas cavalgadas, nos plaids (assembléias judiciárias e polí
143
ticas) e nas côrtes (22). O laço de vassalidade subsiste até
a morte e só é rompido quando a idade reduz o cavaleiro
à impotência, sendo êle então relegado à sombra. A here
ditariedade do feudo surge na França logo no século X;
quem defende o feudo e serve ao senhor é o filho, armado
cavaleiro na época oportuna. A êle também compete, quan
do necessário, defender a honra de sua estirpe. A sociedade
se considerava dividida em três ordens: a dos que rezam,
a dos que trabalham, a dos que se batem; colocava a espada
acima do trabalho e até mesmo da oração; quem ocupava
o proscênio era o guerreiro ativo, o adulto na fôrça da idade.
Tudo isto vem confirmado pela literatura da época.
Os heróis das canções de gesta são adultos ou mesmo ra
pazes muito novos ainda. Nos romances corteses, jamais
intervém a idéia do envelhecimento. Os heróis são dotados
de enorme longevidade e seus anos não pesam. Em A Morte
de Artur, o rei conta mais de 100 anos, Lancelote, Ginevra,
Gauvain estão entre os 60 e os 80 anos e se comportam,
em todos os sentidos, como se estivessem na flor da idade.
O mesmo acontece hoje em dia nos romances da “ série
negra” e nas histórias em quadrinhos: a idade é abstrata.
As aventuras dos heróis são bastante numerosas e duram
um tempo suficiente para preencher um século: perma
necem, entretanto, cristalizados para sempre em juventude
inalterável.
A literatura da alta Idade Média não se interessa pelos
velhos. Encontramos apenas uma exceção significativa:
Carlos Magno. Seu séquito — principalmente Alcuíno e An-
gilberto — tinham-se empenhado em lhe criar uma lenda,
mesmo em vida. Alcuíno equipara-o a um leão; mostra-o
aclamado por toda a terra, pelo mar, pelas aves e por todos
os animais e até mesmo pelos astros. Compara aquêle prín
cipe, “cujo igual nunca se viu, desde o princípio do mundo” ,
a João Batista, o Precursor; descreve-o Angilberto, partindo
para a guerra “ com a fronte coberta por dourado capacete
e o corpo revestido de reluzente armadura, montado em
enorme cavalo, alteando-se sua cabeça sobre todos os com
panheiros” . Êle próprio havia assumido o nome de Davi,
144
com quem se identificava. Até os Anais, com tôda a sua
secura, narram a seu respeito inúmeros fatos miraculosos.
O maravilhoso cristão dele se apoderou, logo após a morte.
Os alemães fizeram-no santo. Na França, no tempo em
que ia se acentuando a decadência carolíngea — por con
traste e também por necessidades de propaganda — sua
imagem foi sendo cada vez mais idealizada. Setenta anos
após sua moite, o monge de Saint-Gall escreveu sua bio
grafia numa série de episódios edificantes e ingênuos. Um
texto composto em Spoleto em 897 descreve-o como “ o ter
rível, o formidável Carlos” . Seus olhos fulguram de tal
forma que as pessoas desmaiam em sua presença. Sua
sagacidade penetra todos os enigmas. O mesmo texto, en
tretanto, o mostra brincalhão, divertindo-se em pregar pe
ças a seus acompanhantes. A mímica que lhe acompanha
os atos e as palavras empresta-lhe uma certa qualidade
caricatural, quando explode em risos incontidos ou quando
esfrega as orelhas ou infla as narinas.
No século X, compÕem-se nos monastérios inúmeras
narrativas que o apresentam constantemente ocupado em
perseguir os infiéis. No século XI, em La geste du roi (e
em muitos outros ciclos), surge com a figura de um magní
fico velho de florida barba, cercado de veneração quase
religiosa. Uma Vida de Carlos Magno o apresenta alto,
robusto, de barbas e cabelos brancos e olhos brilhantes; vive
até os 200 anos. Outra imagem, todavia, se contrapõe a esta,
e na qual se exprime a atitude antimonárquica dos barões.
Em A Peregrinação a Jerusalém, no século XII, o imperador
é um ancião “ ambicioso” e “já abobado” . Em outras ges
tas, o herói é um grande senhor feudal e Carlos, em cuja
figura se confundem vários soberanos carolíngeos, é injusto,
fraco, caprichoso, mero joguete nas mãos dos “lozengiers”
e acaba sendo castigado.
A transmissão dos podêres, das mãos do pai enfraque
cido pelos anos para as do filho, inspirou no século XI a
primeira parte das lendas mais tarde transcritas na Espanha,
sob o título de Romancero do Cid. A mais antiga versão
escrita data do século XV mas a tradição remonta à época
em que viveu o Cid, membro da pequena nobreza a serviço,
primeiro de Sancho II e, depois, de Afonso VI. Tendo in
corrido em desgraça e sido por êste rei exilado em 1081,
10 145
tornou-se uma espécie de condottiere, conquistou por sua
conta o distrito de Valença e deteve uma segunda invasão
moura, salvando desta maneira a Espanha. O início do
Romancero nos apresenta Don Diego Lainez lamentando a
desonra de sua raça: disputara uma lebre aos cães do
Conde Lozano -— primeiro conselheiro do rei e seu melhor
capitão — sendo por este ultrajado. A honra exigia que
esta afronta fôsse vingada. Conhecendo que, para a vin
gança, lhe falecem as forças, sentindo-se velho demais para
brandir a espada, passa as noites em claro e nada lhe sabem
as iguarias.” Só tem um recurso: um de seus quatro filhos
deverá lavar a ofensa. Convoca-os, um após outro, aper
tando na sua a mão direita de cada um deles. “A honra
ofendida, a despeito dos anos e dos cabelos brancos em
prestando vigor a seu enregelado sangue e aos nervos en
ferrujados”, apertou essas mãos com tamanha violência que
os três mais velhos gemeram: “ Chega” ! O caçula, Ruy
Diaz de Bivar, teve um assomo de cólera: “Ah! Se não
fôsseis meu p ai!. . . ” , bradou ameaçador. O velho, chorando
de alegria, incumbiu-o da vingança. O Cid desafiou o
conde e decepou-lhe a cabeça. Suplantou o pai com esta
façanha e este lhe transferiu pessoalmente os poderes, di
zendo: “Toma assento aqui, na extremidade mais elevada
da mesa, pois quem carrega tal cabeça (23), cabeça será de
minha casa” .
Esta história, que gozou de imensa popularidade, ilus
tra o relacionamento entre os nobres, velhos e moços, na
sociedade feudal. O bom cavaleiro é um atleta “ ossudo” ,
“membrudo” , de corpo “bem talhado” , dotado de vigoroso
apetite, amante da guerra, da caça, e dos torneios. A bra
vura e a generosidade são as qualidades mais exaltadas nas
canções de gesta. O herói mais admirado é o que se desvela
sem contar: dá até o próprio sangue por seu senhor. De
fende os órfãos e as viúvas, acode em socorro dos fracos,
lança reptos aos rivais. Também atira sua fortuna pelas
janelas; narra um cronista uma curiosa competição de pro
digalidade: um cavalheiro manda semear moedas de prata
num campo arado; outro por pura “jactância” manda quei-
m
mar vivos trinta cavalos de sua propriedade. Exaltar êsses
valores — heroísmo, liberalidade — é exaltar a juventude;
êles não podem se encarnar em velhos de sangue enrege-
lado e nervos enferrujados.
Mesmo na plebe, a dureza da civilização afasta os velhos
da vida ativa. Os mercadores são, então, “pés empoeirados” ,
caravaneiros que circulam com a “ espada pousada na sela” ,
expostos a inúmeros perigos. Poder-se-ia afirmar, de muitos
burgueses, que eram “poderosos combatentes” . A deca
dência física obrigava, portanto, o homem de idade a se
aposentar.
Nos campos, os jovens se insurgiam contra o pai quando
este pretendia manter a autoridade. Havia freqüentes con
flitos, e o filho abandonava muitas vezes o lar paterno. Mas
na maioria dos países da Europa, o pai via-se suplantado
pelo filho na chefia da casa, sobretudo na Inglaterra. Cedia
o lugar ao filho mais velho quando atingia uma certa idade
e se sentia demasiadamente fraco para trabalhar na lavoura.
Depois de receber a herança, o filho se casava; a jovem
esposa substituía a sogra e o velho casal se transferia para
o quarto que lhe era tradicionalmente reservado: chamam-
-no, na Irlanda, o “ quarto do oeste” . O pai despojado era
muitas vezes maltratado pelos herdeiros. A lenda do rei Lear
era muito popular na Inglaterra medieval pois ilustrava uma
história corrente. Dela também se encontram ecos nos
contos recolhidos na Alemanha pelos irmãos Grimm. Os
velhos, que não tinham família ou cujos parentes não os
podiam sustentar, eram socorridos pelo senhor ou pelo
monastério: os monges mantinham enfermarias onde re
colhiam enfermos e indigentes. Nas cidades, a Corporação
prestava auxílio aos membros incapacitados para o trabalho.
A preocupação precípua da Corporação era eliminar a con
corrência: acompanhava-a amiúde uma confraria religiosa
que acudia aos necessitados em casos de doença ou de
morte. Os velhos se viam reduzidos à mendicância que,
em falta de coisa melhor, foi então tolerada como em
nenhuma outra época.
Sua situação se revela, portanto, extremamente desfa
vorável em tôda a escala social. Era o primado da força,
tanto entre os nobres como entre os camponeses: não havia
147
lugar para os fracos. A juventude constituía uma classe
de idade muitíssimo importante. Os jovens faziam um
aprendizado e se submetiam a uma iniciação: para o jovem
nobre era a cerimônia que o armava cavaleiro, os jovens
camponeses se sujeitavam a provas no decorrer de cerimô
nias campestres: saltar por cima de fogueiras nas festas de
São João, por exemplo. Os velhos não formavam nenhuma
classe particular.
Nas difíceis condições em que se debate, esta socie
dade também não pode se dar o luxo de cogitar da sorte
das crianças: só lhe interessam os jovens que conseguiram
sobreviver às moléstias infantis e nos quais se encarna o
porvir e não as criancinhas, cuja grande maioria é votada
a uma morte precoce. A infância, aliás, quase não existe,
por assim dizer. Mal se desprendem das saias maternas,
as crianças começam a ser tratadas como pequenos adultos,
quer se dediquem a seu aprendizado militar, quer se vejam
sujeitas ao trabalho rural. Há muitas “infâncias” nas can
ções de gesta, mas não nos deixemos iludir: trata-se das pri
meiras façanhas de rapazinhos muito jovens ainda mas que
já são verdadeiros homenzinhos. Até o século XIII ou XIV,
quando surge a burguesia, somente o adulto é considerado.
Durante êste período, os jovens continuam a dirigir o
mundo. Excetuando-se Frederico Barbarroxa que governou
até os 68 anos, no século XII, o chefe supremo do Império
germânico foi sempre um homem na fôrça da idade. Depois
de haver Gregório VII reconquistado, em 1073, a autono
mia do papado, também os papas foram quase todos jovens;
a luta travada então por eles contra o Império, exigia de
sua parte vigor, coragem e decisão. Houve alguns velhos:
Celestino III iniciou seu pontificado aos 85 anos, mas Ino-
cáncio III foi eleito aos 37 anos.
Veneza foi a única exceção: o doge era velho. Estando
a cidade submetida a Bizâncio, e transformada depois em
sua vassala, tinha crescido a autoridade de seu “muito hu
milde duque” ; eleito a princípio pelo povo, êste cargo pas
sou mais tarde a ser transmitido hereditàriamente e seu
poder foi tirânico até o início do século XI. Mas entre o
doge e a aristocracia declaravam-se antagonismos, ocasio
nalmente sangrentos. Tornou-se esta cada vez mais pode
rosa : adquiriu enormes riquezas, graças à somação de heran-
148
ças e ao comércio. Envidou esforços no sentido de restrin
gir a autoridade ducal em proveito de uma república pa
trícia. A lei de 1031 aboliu o regime hereditário e o doge
passou a ser eleito, não mais pelo povo, mas pela nobreza,
a ela ficando comprometido por juramento. Até meados
do século XIII, não lhe foi possível tomar decisões em as
suntos de paz ou de guerra nem estabelecer tratados sem
o beneplácito do Colégio dos Quarenta. Não mais admi
nistrou as finanças, nem nomeou juizes ou funcionários públi
cos. Podia ocasionalmente dirigir operações militares e
comandar a armada: no fim do século XII, tendo sido eleito
aos 84 anos, e cego, o Doge Dandolo ilustrou-se atacando
vitoriosamente Constantinopla ( 24). Não passava, entretanto,
de um servidor do patriciado. O papel do doge tornou-se,
a seguir, puramente decorativo: revestia-se de títulos gran
diloquentes e de magníficos trajes; era encarregado de re
presentar pomposamente a República, sobretudo diante dos
embaixadores estrangeiros. Mas não dispunha de nenhum
poder. Era apenas o “primeiro, o mais vigiado, o mais obe
diente de todos os servidores da República.” Ninguém mais
indicado para tal função que um velho: enfraquecido pela
idade, preso a antigos hábitos, era-lhe muito mais fácil que a
um jovem renunciar a tomar iniciativas, contentando-se com
as aparências da grandeza. Por outro lado, numa sociedade
onde as riquezas são garantidas por lei, a velhice pode
conferir um prestígio suplementar a seu possuidor: era o
caso de Veneza, onde a velhice era venerada precisamente
porque se lhe afigurava útil colocar um velho no pináculo
das honrarias. A idade não foi obstáculo à conspiração de
Marino Faliero, em 1354, contra a aristocracia ( 25). Mas,
de um modo geral, o sistema funcionou: os doges foram
dóceis instrumentos do patriciado. Com a única exceção
de André Dandolo, eleito aos 36 anos, no século XIV, foram
todos eles velhos. Não governavam.
149
do Cid, influenciou de maneira muito profunda a ideologia
predominante na época medieval: o cristianismo. Desde os
primeiros séculos da Igreja, Cristo é a figura central da
nova religião — se não para os teólogos, sem dúvida para
as camadas populares. É difícil conceber a idéia da Trin
dade: a atenção se prende às imagens do Pai e do Filho
assim como a seu relacionamento: o segundo destronou o
primeiro. Durante o período apostólico, o cristianismo foi,
antes de tudo, a religião de Cristo: não faz esquecer o Pai
mas é sobretudo ao Filho que se invoca. A Igreja é o “ corpo
de Cristo” . Sua carne, seu sangue estão presentes na Euca
ristia e é com êles que se comunga. A partir de Cristo se
definem a missa e os sacramentos. A moral se inspira em
seus ensinamentos. É a êle que representam simbolicamente
as pinturas das Catacumbas: é o Bom Pastor, Orfeu descendo
aos Infernos, um cordeiro, uma fênix, um peixe (cujo nome
em grego constitui um acróstico do de Jesus). Também o
representam como um homem imberbe, de cabelos louros.
Evocam-no, igualmente, nas Igrejas sob a forma de um
moinho, ou de um místico lagar, de uma vinha, um cacho
de uvas, um leão, uma águia ou um unicórnio.
Vai se confirmando gradativamente esta supremacia do
filho sobre o pai a partir do século XI. Ê sua imagem que
se vê esculpida nos frontispícios das igrejas: no século XII,
representam-no em tôda a sua glória: é o Rei dos reis. Hu
maniza-se no século XIII. Pintam-se Meninos Jesus e prin
cipalmente Cristos crucificados, coroados de espinhos. Os
pintores reproduzem todos os episódios de sua vida. Ora,
êle morreu na fôrça da idade. Por conseguinte, o Eterno,
que não tem idade, passa daí por diante a ser pintado sob
o aspecto de um velho; imaginam-no semelhante aos patriar
cas nos quais reconhecia sua imagem, visto delegar-lhes seus
poderes. É mais ou menos confinado no passado, na origem
do mundo e no longínquo céu. Torna-se o Senhor, o “ Dono
da fortaleza celestial”, tão distante quanto o senhor feudal
em seu castelo. Os iluminadores o representaram muitas
vezes nas Bíblias ilustradas e também podemos vê-lo nas
imagens piedosas populares. Sempre dotado de uma longa
barba branca. Os pintores, porém, menos ingênuos, só se
aventuraram a representá-lo mais tarde e muito raramen
150
te ( 20). Limitaram-se, em geral, a indicar, emergindo das
nuvens, uma barba branca e uma mão executando um gesto
ao mesmo tempo ameaçador e abençoante. Certas esculturas
representam a Trindade: Deus é aí figurado sob a forma
de um velho barbudo, segurando o filho. Tôdas essas ima
gens, pintadas ou esculpidas, revelam unicamente a evo
lução que nas representações populares ia destronando o Pai
em proveito do Filho (2627), de maneira cada vez mais radical.
151
Coisas nos diz: “A última parte da velhice denomina-se
senies em latim, e em francês não tem outro nome, além
de velhice. O velho é cheio de tosse, de escarros e de su
jeiras até que volte à cinza e à poeira de onde foi tirado.”
Em 1265, Filipe de Novara fala dos “ quatro tempos
da idade do homem” cada um deles composto de dois
períodos de dez anos. “A vida do velho não é mais que
trabalho e dor”, afirma êle, concluindo que, após os 80 anos
só nos resta desejar a morte. A Idade Média se comprazia
em estabelecer correspondências entre as diversas regiões
do mundo; os “ quatro tempos” foram então comparados
aos quatro elementos e às quatro estações. Nos calendários
populares, também se punham os meses em relação com as
idades da vida. Um poema do século XIII várias vezes
reimpresso nos séculos XIV e XV abre êste calendário:
152
vida. Os 30 primeiros anos lhe pertencem e passam de
pressa. Chegam, em seguida, os 18 anos do asno, durante
os quais tem de carregar nas costas fardos e mais fardos;
é êle quem fornece trigo ao moinho para alimentar os
outros... Vêm depois os 12 anos do cão, no decorrer dos
quais não faz mais que rosnar, arrastando-se de um canto
para o outro, pois já não tem dentes para m order... De
corrido êsse tempo, só lhe restam os 10 anos do macaco.
Já não é senhor de todo o seu juízo, torna-se meio esquisi
to e faz coisas estranhas que provocam o riso e a zombaria
das crianças” . Cabe, assim, ao homem tôda a responsabili
dade, por ser sua velhice mais longa e penosa que a dos
animais: sua própria avidez imprudente a tanto o condenou
Nesses contos, a mulher velha — já de antemão sus
peita devido a sua feminidade — é sempre um ser maléfico.
Quando, porventura, pratica o bem, é porque seu corpo, na
verdade é apenas um disfarce e ela o põe de lado, sur
gindo como uma fada de deslumbrante beleza e mocidade.
As verdadeiras velhas são como as dos poetas latinos —
ogras e feticeiras malévolas e perigosas. A misoginia me
dieval exprime-se em todos os personagens de velhas en
contradas na literatura: a das fábulas satíricas, particular
mente o de La male femme qui conchia la prude femme,
e a Velha do Roman de la Rose. Como vimos, eram mu
lheres expulsas ou mortas simbolicamente nos campos e nos
burgos a fim de livrar da velhice tôda a sociedade. No
Roussillon, a Quaresma era simbolizada por um boneco re
presentando uma velha, a patorra, com sete pés (as sete
semanas da Quaresma) e queimada no dia de Páscoa.
É preciso lembrar, aliás, que eram muito raras as pes
soas de idade avançada, tanto entre os homens quanto entre
as mulheres. Na plebe não se encontrava pràticamente
nenhuma. Dadas as condições de vida dos camponeses,
trinta anos, para êles, já representavam muita idade. Um
conto do século XIII afirma, gabando os méritos de uma
água de Juvência: “Não haverá mais então homem velho
e encanecido, nem igualmente mulher velha, alva ou gri
salha, mesmo que haja atingido a idade de 30 anos.”
A Idade Média, tal como a Antiguidade, alimentou o
sonho de uma vitória sôbre a velhice. Obcecou-a a idéia
do rejuvenescimento. Um romance medieval, cujo herói
153
é Alexandre o Grande, a Alexandrecita, descreve um lago
maravilhoso que rejuvenescia os que nêle mergulhavam; e,
no Livro das Maravilhas, Jean de Mandeville conta a his
tória de uma fonte de Juvência, oculta na selva indiana. Mas
a lenda se transmitiu sobretudo por tradição oral. Nos es
critos, o tema jamais é central. Assume a forma de um
talismã rejuvenescedor: fruto, odre de ar, elixir da longa
vida. É encontrado, na maioria das vezes, associado ao
da Ilha da Vida, a ilha de Avallon, onde não se morre nem
se envelhece. No Perce-forest, os principais personagens
são transportados para a ilha de Avallon em plena fôrça e
conservam a juventude durante uma ou duas gerações. Vol
tam, em seguida, para morrer no reino bretão. Assim que
tocam o solo, assumem o aspecto de velhos que teriam se
sua existência houvesse decorrido de maneira normal.
154
assume o aspecto de um sábio de longas barbas, sentado
à mesa de trabalho, diante da lareira. É menos serena,
entretanto, a imagem popular criada pela Idade Média e
dominante nos séculos seguintes: a figura do Ancião-Tempo,
alado e ressequido, segurando uma foice. Parece óbvia a
assimilação das duas noções, pois a velhice resulta do acúmu
lo de anos. No entanto, Erwin Panofsky mostra em seus
Essais diconologie que esta relação nem sempre existiu. O
tempo, na Antiguidade, é representado por duas séries de
imagens. As primeiras salientam sua fugacidade: é Kairos,
a Oportunidade, o momento que assinala uma mudança de
direção na vida do homem ou da humanidade. Apresen
tam-no como um personagem fugindo velozmente, ou então
em equilíbrio precário, prenunciador de uma certa mudança
— como a Fortuna sôbre sua roda, imagem com a qual se
confundiu a partir do século XI. A segunda série salienta
a fecundidade de seu caráter: é Aion, princípio criador,
fertilidade infinita. O tempo passa, mas ao passar vai
criando. Os Antigos salientaram a ambivalência do tempo.
Ouvindo Olímpia proferir o elogio do tempo “no qual apren
demos e recordamos” , o pitagórico Paron protestou pergun
tando se não é nêle que se faz o esquecimento e procla-
mou-o rei da ignorância. Como vimos, os poetas evocaram-
-lhe sua força devastadora. A poesia grega se refere com
freqüência ao “Tempo de cabelos grisalhos” ; entretanto, a
representação plástica do tempo jamais evoca na Antigui
dade nem declínio nem destruição.
Plutarco foi o primeiro a assinalar a contaminação pro
duzida entre o nome grego do tempo, Cronos, e o de Kro-
nos, o mais temível dos deuses. Para êle, Kronos, que
devorava os próprios filhos significava o Tempo; os neo-
platônicos aceitaram esta assimilação, dando porém ao tempo
uma interpretação otimista. Em sua concepção, Kronos é o
Nous, o pensamento cósmico, o “pai de todas as coisas” ,
o “ sábio velho construtor” . Kronos era sempre represen
tado segurando uma foice, considerada naquela época um
instrumento agrícola e símbolo de fertilidade.
Esta imagem viu-se abalada na Idade Média quando o
tempo começou a ser considerado como uma causa de deca
dência. O macrocosmos, tal como o microcosmos, o homem,
155
passa por 6 idades, à semelhança dos dias da semana (29).
A última, à qual se admite ter o mundo chegado, é a da
decrepitude. Esta concepção pode ser encontrada tanto
num divulgador como Honorius Augustodunensis como em
Santo Tomás de Aquino. Mondus senescit: tal era o pensa
mento do cristianismo primitivo diante das tribulações do
Baixo-Império, pensamento este, legado a seus herdeiros
e expresso no início da Vida de Santo Aleixo, no século XI:
156
ma idéia que se vê amplamente desenvolvida nos Carmina
Buranas: “A juventude já nada quer aprender, a ciência está
em decadência, o mundo inteiro caminha de cabeça para
baixo, cegos guiam outros cegos. As coisas todas se acham
desviadas de sua rota.” Dante põe nos lábios de seu an
cestral Cacciaguida lamentações sobre a decadência das
cidades e das famílias. O mundo se apequena como um
manto em torno do qual o “Tempo gira armado de tesouras” .
Raros são aquêles que vêem alguma vantagem neste enve
lhecimento. Disse Bernard de Chartres: “ Somos como
anões trepados em espáduas de gigantes, mas enxergamos
mais do que êles.” Semelhante otimismo não é comparti
lhado. Não é nada encorajador o panorama vislumbrado a
distância pela Idade Média: assemelha-se muito ao reinado
do Anticristo. Anunciada pelo Apocalipse, esta figura teve
seus contornos melhor definidos no século VIII por um
monge chamado Pierre e, em seguida, por Adson no século
X, tendo Albuíno no século XI adaptado ao Ocidente as
predições feitas no século IV pela sibila de Tibur. Tinha-se
tornado uma figura familiar a todos, graças ao teatro re
ligioso. Nascera uma figura antagônica: a do “ rei justo” ,
um messias terrestre que viria inaugurar um millenium de
felicidade. Esta crença, entretanto, se difundira muito pouco.
A Idade Média estava convencida de que, em conseqüên-
cia do pecado original, a humanidade estava destinada a
uma infelicidade que não poderia deixar de se agravar com
o tempo. Convencidos de tão desanimadora idéia, os ho
mens investidos da função de dirigir a sociedade limitavam-
-se a governar dia a dia, sem cogitar de nenhum porvir po
lítico definido. Da História, ninguém esperava melhoras.
As esperanças da Idade Média eram intemporais: era pre
ciso conseguir uma libertação da vida terrestre e trabalhar
pela salvação espiritual. O Tempo arrastava o mundo à
decadência, seguida em breve do fim.
Explica-se por êste contexto, o fato de ter sido a imagem
do tempo transformada sob a influência dos astrólogos. O
nome romano de Kronos, Saturno, foi atribuído ao pla
neta mais distante e mais lento, considerado frio e seco,
associado à indigência, à senilidade e à morte. Nos trabalhos
de astrologia, aparece geralmente sob o aspecto de um
velho melancólico, de ar sofredor, segurando uma foice, uma
157
pá, uma enxada ou um cajado, apoiando-se numa muleta,
símbolo da decrepitude. Ou tem uma perna de pau ou é
castrado. (Lembrança de sua castração por Zeus, na nar
rativa mitológica.) A propósito dele, a iconografia medie
val desenvolve o tema do homem castrado e da criança de
vorada. Sendo o mais maligno dos planetas, são repulsivas
as imagens de Saturno. Por outro lado, a Morte vem sendo
representada, desde o século XI, com uma foicinha na
m ão (31). Na sua qualidade de agente destruidor da vida,
o tempo se relaciona com a morte. E Kronos foi identi
ficado com Cronos. Nada mais natural, portanto, que para
evocar o Tempo, o ilustrador de Petrarca — em cuja con
cepção o tempo é destruidor — se tenha servido da imagem
de Saturno: decrépito, dotado de asas e segurando uma
ampulheta. Esta imagem há de prevalecer desde então.
Nos “triunfos da morte” tão numerosos no século XV, a
Morte surge como um esqueleto carregando uma foice e
uma ampulheta. Também o Tempo é dotado de uma foice
que deixou de ser símbolo de fertilidade: ela ceifa as vidas
como a Parca cortava o fio dos dias.
158
física: aparece, então, o tipo tradicional do pequeno comer
ciante avesso a brigas. Podem-se armazenar mercadorias e
dinheiro. Esta transformação modifica a condição dos velhos,
nas classes favorecidas: com o acúmulo de riquezas, eles
podem tornar-se poderosos. Manifesta-se maior interesse
para com eles. Coexistem na época duas correntes ideo
lógicas: uma religiosa e espiritualista e uma tradição pes
simista e materialista. A concepção da velhice descrita por
Dante no Festim encaixa-se na primeira destas perspectivas.
Compara êle a curva da vida humana a um arco que se
eleva da terra ao céu até um ponto culminante de onde
torna descer. Encontra-se o zênite aos 35 anos. Começa o
homem, em seguida, a declinar lentamente. O tempo da
velhice vai dos 45 aos 70 anos. Vem depois disto a velhice
avançada. Se fôr dirigido pela sabedoria, êste final poderá
ser tranqüilo. Dante compara o ancião a um navegante
a recolher suavemente as velas quando percebe a proximi
dade da terra e atingindo lentamente o porto. Estando a
verdade do homem no além, deve êle aceitar serenamente
o fim de uma existência que não passou de breve jornada.
Atingir tranqüilamente o pôrto, tal deverá ser, no en
tender dos clérigos e das almas piedosas, a principal preo
cupação das pessoas de idade; a fase final da vida se lhes
afigura essencialmente o tempo em que nos devemos pre
parar para a morte. Proliferam as artes moriendi. Gerson
redige uma “ breve instrução a um velho de como êle deve
se preparar para a morte” . Sem dúvida por ter perdido a
vista, êle lhe recomenda que chame para junto de si alguém
que lhe faça a leitura de livros de devoção, para afastá-lo
das coisas mundanas. Publicam-se trabalhos análogos em
tôda a Europa, e em número extremamente elevado na
Alemanha, a partir de 1400. Neles também se encontram
conselhos aos velhos, a respeito da maneira de elaborar
um testamento: é de muito bom aviso que os que possuem
bens, leguem uma parte dêles aos conventos ou aos hos
pícios.
Para um cristão convicto, a velhice constitui, portanto,
o momento mais indicado para garantir a própria salvação.
Não é, entretanto, particularmente valorizada. Quem vai
cada vez mais se impondo à devoção dos fiéis, durante os
séculos XIV e XV, é Cristo; é trágico o século XIV: guer-
159
ras, pestes, períodos de fome, dramas provocados pela su
perpopulação. Tôda a confiança do Ocidente, mergulhado
em terríveis provações, vai para a figura do Cristo Reden
tor. Êste já não aparece sob os traços do Rei dos reis:
é como o Salvador que se vê exaltado. Eclipsados estão o
Pai e o Espirito Santo. A missa deixou de ser um sacrifício
ofertado a Deus Pai para se tornar a representação do Cal
vário. Adora-se a Eucaristia, veneram-se as relíquias da
Paixão. Desenvolve-se consideràvelmente a fabricação de
crucifixos. Esboça-se o culto da Santa Face, assim como
a prática da via-sacra. Pinta-se e esculpe-se freqüentemente
a figura de Cristo em agonia no Hôrto das Oliveiras, aguar
dando o suplício, solitário e cheio de angústia. A devoção
a Maria desenvolve-se simultâneamente. Redescobre-se a
Anunciação no início do século XV e ela passa a inspirar
uma quantidade enorme de quadros e de imagens. Uma
iconografia prodigiosa adota como tema a infância de Cristo
e a Santa Família, jamais representada até então. Santifi
cam-se com estas evocações da vida de Jesus a infância, a
adolescência e sobretudo a maturidade. Esquece-se a velhice.
Desenvolve-se, por outro lado, uma literatura profana
nas côrtes dos nobres e entre o patriciado urbano. Satírica
e realista, ela ridiculariza tôda a sociedade: as mulheres e
seus maridos, os monges, mercadores e plebeus. Pouco
lugar concede aos velhos. Contudo — tal como fizera Plauto
outrora — Boccacio na Itália e Chaucer na Inglaterra zom
bam dos velhos ricos que se valem de sua fortuna para
conseguir os favores das mulheres bonitas.
No conto de Boccacio ( 32), um juiz de Pisa, muito
idoso, desposa a jovem e bela Bartolomea. Mal consegue
êle desempenhar seu dever conjugal na noite de núpcias.
Acha-se tão esgotado na manhã seguinte que inventa um
pretexto para se eximir: vai mostrando, dia após dia, à
mulher, no calendário, que se trata da festa de um grande
santo em cuja honra deve ser evitado qualquer tipo de
relação carnal. A grandes penas, presta-se êle a isto uma
vez por más. Estavam êles, um dia, passeando de barco
160
quando ela foi raptada por um corsário, que lhe dá provas
cotidianas de sua paixão, sem se preocupar com o calen
dário. O marido consegue encontrá-la mas ela recusa voltar
para a sua companhia. Êle morre de desgosto e a cidade
tôda se diverte com o fato.
Nos Contos de Canterbury, Chaucer relata as desven
turas de um velho mercador, Janeiro, que graças a sua
fortuna obtém a mão da linda Maio, de 20 anos de idade.
Os electuários por êle ingeridos na noite de núpcias possi-
bililam-lhe um comportamento ardoroso durante tôda a
noite.
Assim lida êle até que o dia desponte.
Toma então uma sopa de forte clarete
E senta-se na cama
E depois canta com alta e clara voz,
Beija a mulher e pratica mil loucuras.
Sentia-se todo como um potro galhofeiro
E tagarela como uma pêga marchetada.
Treme-lhe a mole pele do pescoço
Durante a sua canção, tanto êle canta e gorjeia.
Mas Deus sabe o que Maio no íntimo pensava
Quando o viu sentado, em camisa,
Com o gorro de dormir e o magro pescoço.
Nem o valor de uma ervilha a seu jôgo ela dá ( * ) .
11 161
de ter levado uma existência cheia de glórias, de haver con
quistado a Itália aos gôdos e de haver recusado o império
do Ocidente, o grande general que havia salvo Bizâncio
caiu em descrédito: viu-se implicado em 562 numa conspi
ração contra Justiniano, que contava então 80 anos; foi en
carcerado ncbinterior de seu palácio, tendo-lhe sido confis
cados todos os bens. O processo ocorreu em 563. Segundo
Theophanas, que copiou documentos contemporâneos ein
sua Cronografia, no fim do século XVIII, sua inocência foi
provada: foram-lhes devolvidos os bens e a liberdade. Mais
tarde, no século XI, o autor anônimo das Antiguidades de
Constantinopla — trabalho eivado de erros — observa de
passagem que Belisário foi reduzido à miséria e teve os
olhos vazados. No século XIII. Tretzes, gramático de
Constantinopla, célebre pela erudição, adotou esta versão,
embora reconhecesse que muitos historiadores a negava.
Descreve Belisário, cego e velho, mendigando à porta do
palácio: “ Dai um óbolo a Belisário.” Era freqüente em
Bizâncio o suplício do vazamento de olhos, mas não há
provas de que Belisário o tenha sofrido. Por que motivo
se impõe esta imagem?
Podemos desde logo nos perguntar de que maneira ela
se popularizou, a ponto de todos os compiladores da Renas
cença se haverem depois assenhoreado dela. Não devemos
esquecer que foi êste o destino de todas as lendas na Idade
Média: apesar da dificuldade de comunicações, a população
era muito móvel: mercadores e peregrinos eram os porta
dores de histórias verdadeiras ou falsas, para todos os con
fins do mundo. Os jograis coletavam estas narrativas, e
achavam-se, por outro lado, em incessante comércio com
os clérigos; não devemos opor o conhecimento científico e
a tradição popular, esquecendo-a e os anos que havia entre
ambos. Finalmente, nos séculos XIII e XIV, muita gente
sabia ler. Qualquer acontecimento de monta, fôsse êle
real ou mítico, era bem depressa e amplamente difundido.
O aspecto mais interessante da questão é o sucesso al
cançado por esta lenda. Explica-o, sem dúvida, a presteza
com que a Idade Média acolhia tôdas as visões sombrias.
Ora, Belisário representa de maneira exemplar as misérias
da idade avançada: invalidez, dependência, passividade, e
sobretudo a decadência a que o condenam a dureza e a
162
Ingratidão dos homens. Além disso, esta trágica aventura
<• edificante, do ponto de vista religioso: um indivíduo exal
tado até o pináculo da glória e que se vê projetado na
abjeção constitui uma ilustração da “Vaidade das vaidades”
da Escritura: não podemos nos considerar certos de nada
nesta terra: somente em Deus deve o homem confiar.
Na Idade Média, tal como na Antiguidade, existe um
laço mítico entre a velhice e a cegueira. Simboliza esta o
exílio a que são condenadas as pessoas idosas por uma
existência demasiadamente longa: acham-se separados do
resto dos homens e esta solidão os engrandece e os torna
espiritualmente clarividentes. Por outro lado, o mito, naquela
época, deitava sólidas raízes na realidade: não se sabia
operar a catarata e eram efetivamente cegos muitos homens
de idade.
163
entretanto, do exterior, com o único objetivo de lançar o
descrédito sôbre a juventude e sobre a beleza. Êsses lugares-
-comuns são repetidos complacentemente pelos poetas. Eus-
tache Deschamps só enverga na velhice mazelas e motivos
de desgôsto, decadência da alma e do corpo, ridículo, feiúra:
estabelece seu início aos 30 anos para as mulheres, aos 50
para os homens; para todos, aos 60 anos, só resta a morte.
Olivier de La Marche se acha perfeitamente de acordo com
seu tempo quando, retomando um tema já gasto, dirige
sombrias profecias a uma jovem beldade:
164
Tempo virá que vos fará secar,
Desbotar a desabrochada flor.
. . . Eu, velho estarei; vós, feia e sem côr ( ° ) .
165
dustriais e operações financeiras. Esta nova prosperidade
possibilita um florescimento cultural imenso em todos os
setores: ciências, letras, artes e técnicas. Manifestam-se
correntes muito diversas. O Renascimento prolonga as tra
dições da Idade Média. Continua a viver com a obsessão
do Anticristo e do Julgamento final ( 34). Busca, entretanto,
promover uma idéia nova e harmoniosa do homem. O hu
manismo ao recuperar a Antiguidade, tenta ligá-la sincrèti-
camente ao Evangelho: deseja-se incorporar ao cristianismo
o amor pela vida e pela beleza. Erasmo pretendeu, de
maneira muito particular, levar avante esta tarefa e nos
proporcionou um ensinamento “ de moral e de civilidade” .
Um de seus Colóquios é consagrado aos velhos e nêle
descreve um velho-paradigma: aos 66 anos, não tem nem
rugas nem cabelos brancos, não usa óculos e sua tez é
rosada; os outros, cujas existências foram desregradas ou
aventurosas, aparentam ser seus pais. Cornaro, patrício
veneziano, irá retomar na Itália o mesmo tema: uma exis
tência comedida leva a uma bela velhice. Apresenta-se a
si mesmo como exemplo no “tratado da vida sóbria e re
grada” . O verdadeiro objetivo dêstes dois trabalhos é so
bretudo fazer a apologia da virtude: afirma-se que sua recom
pensa reside na saúde e na serenidade da idade final.
Quanto à velhice em si mesma, a literatura desta época
não se mostra mais complacente que a dos séculos prece
dentes. A Idade Média menosprezava o farrapo humano e
o considerava particularmente repulsivo entre as pessoas
idosas. O Renascimento exalta a beleza do corpo: o femi
nino, então, é exaltado até os cornos da lua. A fealdade
dos velhos parece, comparativamente, ainda mais odiosa:
a da mulher velha nunca foi tão cruelmente denunciada.
A misoginia medieval se perpetua no século XVI, prepon-
derando a influência da Antiguidade, sobretudo a de Ho-
rácio. Como reação aos excessos do petrarquismo, nasce
uma poesia satírica e chocarreira. Todas estas razões se
conjugam para explicar a freqüência e o caráter do tema
da mulher velha.
166
Os escritores que o exploram foram profundamente in
fluenciados pela peça em que Rojas em 1492, descreve, a
sociedade espanhola de seu tempo: A Celestina. Pela pri
meira vez atribuía-se o papel principal a um personagem
de mulher velha: uma alcoviteira, como de praxe, mas de
envergadura muito diferente daquelas que haviam sido até
então retratadas em cena. Antiga prostituta, proxeneta por
vocação, interesseira, intrigante e lúbrica, é também algo
feiticeira e dirige tôda a ação. Nela se concentram todos
os vícios atribuídos desde a Antiguidade às mulheres idosas
e ela é severamente castigada no final da peça, apesar de
sua habilidade. Embora de maneira menos brilhante, o
teatro francês se abeberou nesta fonte de inspiração: en
contramos velhas alcoviteiras, cortesãs fanadas, em Jodelle,
Odet de Turnèbe e Larivey.
É muito clara em Erasmo a posição deliberadamente
antifeminista com relação às mulheres de idade. Ê normal
o fato de reprovar êste moralista aquelas que têm o des-
plante de ainda pensar em amor. Mas a maldade gratuita
de sua descrição causa espécie na pena de um humanista.
Evoca êle: “ Estas mulheres decrépitas, estes cadáveres
ambulantes, estas infectas carcassas que exalam por tôda
parte um odor sepulcral, exclamando a todo instante: Não
há nada mais doce que a vida. . . Ora exibem suas mamas
flácidas e repulsivas, ora se empenham em despertar o ardor
dos amantes com os ganidos de sua voz trêmula.” No meio
de tantos lugares-comuns, observamos um tema novo: o
contraste entre a mulher velha, ser hediondo aos olhos dos
outros, e seu inalterado prazer de viver (35). Erasmo lho
censura, embora se tenha por hábito louvar os homens cujo
amor pela vida não se deixa abater pela idade.
Marot manifesta idêntico desgosto diante da velha que
ambiciona ser amada:
167
E explica-o demoradamente. Rerefe-se à “feia têta”
da mulher velha e dela faz um retrato físico repugnante.
Descreve uma feiticeira que é uma “velha hedionda.” Des
portes revela a mesma repulsa em Le mépris d’une dame
devenue vieille:
Com atrativos repugnantes
...Ju lg a s despertar meus sentidos ( *) .
168
mesma sua vida, o declínio de seus encantos, a pobreza, a
doença:
Senhora velhice
A mim só deixou areia nos rins,
A gota nos pés e a sarna nas mãos.
J69
Raramente se ouve tocar noutra tecla, no século XVI; toda
via, paralelamente a uma ode em que explica o quão vergo
nhoso é amar uma mulher velha, Pierre Le Noyer escreve
outra onde pinta, enternecido, a velhice feminina:
170
jovial e sua pele é clara. O segundo é mais magro, seu
olhar é mais tenso e mais triste: ligeiramente pálido, sua
barba é longa, os cabelos ruivos e as orelhas achatadas.”
Há um segundo par, colocado por Pollux em outra categoria:
“ O velho de maior importância ostenta uma coroa de cabelos
ao redor da cabeça, possui um nariz aquilino, um semblante
alongado, sobrancelhas retas e elevadas. O outro apresenta
uma longa barba em forma de leque e muito basta, além
da coroa de cabelos ao redor da cabeça; não alteia as so
brancelhas e seu olhar é lento.”
Pollux fala em três máscaras de velhas: a velha gorda
e indulgente; a lôba, isto é, a velha alcoviteira, de nariz
esborrachado e dois molares em cada maxilar; a concubina,
empenhada em se fazer desposar.
A commedia delVarte comporta dois personagens de
velhos: Pantalão e o Doutor. O primeiro é o mais im
portante: é um comerciante já afastado dos negócios, ora
rico, ora pobre, pai de família ou solteirão, mas sempre
avarento como o Euclion da Aulularia. Além de tudo, sem
pre apaixonado. Uma gravura de 1577 o apresenta como
um velho alto e escanifrado, de barba pontuda e enorme
falo em ereção: este atributo fazia parte do traje habitual
de Pantalão. Era, entretanto, tinhoso, gotoso e catarrento. ..
Tenta corromper com ouro as mulheres jovens que o atraem.
É ludibriado pelos filhos, pelas empregadas, corneado pela
mulher quando casado e logrado pelas levianas. Acredita-
-se muito sábio, pretende dar conselhos, faz discursos em
polados, busca envolver-se nos negócios do Estado: é tão
irritante que o sovam para obrigá-lo a calar-se. Segundo as
gravuras, os atores sempre procuravam contrapor seus aces
sos de senilidade a crises de agilidade. Êste personagem
recebeu nomes diferentes nas diversas regiões da Itália:
foi denominado Pancrácio, Cassandro ou Zanóbio. Encar
nou-se na França em Gaultier-Garguille e Jacquemin Jadot.
O outro velho é o Doutor, grande tolo pedante, mem
bro de tôdas as academias. O homem idoso já não é apenas
o monopolizador das riquezas, tornou-se também — e êste
traço não havia sido ainda encontrado — o indivíduo que
pretende tudo saber. Isto o faz ainda mais ridículo pois
na verdade o Doutor não passa de um ignorante, contador
de enormes lorotas, estropiando citações gregas ou latinas
171
durante o dia todo. Chamam-no também Baloardo: o pa-
cóvio. Ê amigo de Pantalão e, como este, avaro e galan-
teador ao mesmo tempo. Todos caçoam dele.
A velha só é representada por um personagem: a alco-
viteira. A mulher velha e honesta, que perdeu os atrativos
sem conquistar o poder, não constitui nem objeto nem su
jeito: não representa nada. As esposas são mulheres de
meia idade e seu papel é apenas relativo: são a compa
nheira, a testemunha ou o censor das extravagâncias do
velho marido. A cortesã envelhecida, que adquiriu fortuna
pessoal e não depende de ninguém, passa a utilizar sua
experiência para conseguir seus próprios fins, isto é, enri
quecer. É um indivíduo autônomo, um sujeito. Pouco
interêsse desperta, no entanto, pelo fato de representar ape
nas uma utilidade, uma figura estereotipada.
São também bastante convencionais os homens idosos.
A commedia delVarte não nos fornece informes fidedignos
a respeito dos costumes da época: limita-se a utilizar em
intrigas pouco variadas as diversas máscaras de que é her
deira tradicional e cujo papel se acha de antemão definido.
Não existe muito mais originalidade na Clizia, onde
Machiavel, no início do século XVI, se restringe a desmas
carar Plauto. Nicomaro tem 70 anos e poucos dentes lhe
restam. Apaixonado por Clizia, resolve casá-la com seu
criado, que a deverá passar para seus braços. Prepara-se
para a noite de núpcias tomando um electuário denominado
satiricon. Acaba sendo esbulhado e se arrepende. O tema
focaliza mais uma vez o contraste entre o sensato compor
tamento que convém aos velhos e os apetites sexuais que
continuam a agitá-los. Sua esposa descreve-o como tendo
sido um homem ideal antes de se apaixonar por Clizia e
deplora sua metamorfose: “ Era então um homem respei
tável, grave e reservado. Empregava o tempo de maneira
honrosa; levantava-se muito cedo, assistia a missa e provi
denciava os mantimentos para o dia; cuidava em seguida
dos negócios que aparecessem ... acabado o jantar, con
versava com o filho, dando-lhe sensatos conselhos. A regula
ridade de sua vida constituía um exemplo para todos na
c a sa ... Mas depois que se embeiçou por aquela rapariga,
anda descurando os negócios, suas terras estão se estra
gando, seus negócios vão por água abaixo; grita constante-
172
menle, sem saber por q u ê ... Não responde quando lhe
falam ou então responde tudo errado.”
Afirma-se numa das canzone intercaladas na peça: “Tão
cheio de encantos é o amor num jovem coração quão cho
cante num homem que já viu murcharem as flôres da
idade. . . Assim sendo, velhos enamorados, a melhor coisa
que podereis fazer será deixar para a ardente mocidade
os empreendimentos galantes.”
O teatro de Ruzzante é de inspiração muito mais ori
ginal, é um teatro combativo: pouca coisa se conhece a
respeito de Ângelo Beolco que desempenhava o papel de
Ruzzante em suas próprias peças, tendo ficado conhecido
com êste nome. Filho natural de um médico de Pádua,
educado pela família do pai, mais tarde amigo e protegido
do rico patrício Cornaro, tomou posição muito decidida
mente favorável aos camponeses, aos pobres e oprimidos
em suas Ocazione. Esta simpatia se manifesta em tôda a
sua obra. Não põe em cena máscaras estereotipadas: até
mesmo o personagem de Ruzzante é bastante variado. A
Pastoral se mantém dentro das convenções. O velho pastor
Milésio se enamorou de uma ninfa e lamenta esta loucura.
Repelido por ela, perde os sentidos a ponto de ser tido
por morto: “ Infeliz amante, até onde chegaste? A que
estás reduzida, idade desassisada!”
Mas em geral busca inspiração nos costumes e na lin
guagem da gente de sua época, dos camponeses, especial-
ménte. Sendo jovem, ataca os velhos que se valem da
riqueza para oprimir os pobres. Em A Vaqueira, imitação
do Asinário, o velho Placídio não prejudica a ninguém,
sendo, por conseguinte, retratado de maneira indulgente:
parece-se com Demeneta, mas tem muito boas qualidades
e ama a seu filho: sua mulher o perdoa quando êle se vê
ludibriado e decepcionado. Em compensação, o herói do
Aconitário, um rico veneziano octogenário, é impiedosa
mente vilipendiado ( 37). Cínico e devasso, cheio de en
fermidades, ridículo, é um avarento mas sua lubricidade é
ainda maior, visto estar disposto a conquistar a peso de
(37) Ruzzante era amigo do patrício Cornaro; não foi sem dúvida por
acaso que êle zombou de um novo rico.
173
ouro a cortesã Dorália. Ê vaidoso a ponto de se acreditar
amado, e se deixa enganar pelo criado.
No Segundo diálogo riístico, Ruzzante leva ainda mais
longe a caricatura do velho enamorado: nenhum outro
autor o retratou com tão hediondo realismo. Sendo muito
rico, consegue que uma jovem, por ele raptada ao marido,
Bilora, consinta em viver em sua companhia. Mas ela se
lastima: “ É meio inválido, de tão doente. Tosse a noite
tôda como ovelha apodrecida. Não dorme nunca; está a
cada instante procurando abraçar-me e me cobre de bei
jo s ... — É certo que seu hálito é mais fétido que um monte
de estrume, responde Bilora. Cheira a morte a mil léguas
de distância e tanta sujeira tem no cu que ela tem de lhe
sair pelo outro lado, não acha!” Bilora acaba retomando
a mulher depois de surrar o velho, conforme mandava a
tradição cômica.
Na Piovana, Ruzzante exprime por intermédio do velho
Tura o desagrado que lhe inspirava a idade avançada:
“A juventude se assemelha a um belo arbusto florido onde
buscam abrigo tôdas as aves para cantar: enquanto isto,
a velhice faz pensar num magro cão cujas orelhas são in
vadidas e devoradas pelas môscas.”
“Tudo que diz respeito à velhice, está muito mais ex
posto à desgraça. . . A velhice é, na verdade, um charco
onde se acumulam tôdas as águas malsãs, cujo único escoa
douro é a morte. Quereis desejar mal a alguém! Basta
dizer-lhe: tomara que vivas até envelhecer.”
Por que motivo teria o século XVI atacado os velhos
com tanta veemência? A autoridade do pater famílias ro
mano ultrapassara de longe a sua, de modo que não era
deles que se zombava mas sim do velho ricaço que pre
tendia rivalizar com os jovens. Nesta época, tal como nas
precedentes, os anciãos das classes inferiores não desper
tam o interêsse da literatura. Outro fato ainda deve ser
observado: os nobres, os patrícios não são alvejados: admi
te-se que seu poder e sua fortuna se acham garantidos por
um direito divino. Não se contesta a hierarquia social esta
belecida. Quem desperta rancor é o nôvo-rico, o burguês
que conseguiu elevar-se individualmente. Se seus negócios
foram prósperos, nos últimos anos da vida êle se vê de
174
posse de bens consideráveis: aos olhos do homem maduro,
empenhado na luta pela subsistência, assim como aos do
jovem tantas vêzes na dependura, êste açambarcamento
parece injusto: provoca uma inveja cheia de ódio e seu
sucesso é atribuído à avareza. O escândalo se torna into
lerável quando os velhos utilizam seu ouro para comprar
mulheres jovens: os moços se sentem então sexualmente
frustrados. Vingam-se dêles, buscam desgostá-los de seus
“vícios” caricaturando-os de maneira cruel ou rindo de
suas caricaturas: autores e público acumpliciam-se contra
eles. Assim se explica a multiplicidade das encarnações de
Pantalão e seu êxito.
175
seu renovar, pintalgados do esmalte de várias florinhas:
agradam, então, muito mais à vista do espectador do que,
na hora em que chega a maturidade, quando êste orna
mento pouco a pouco deperece e morre, os frutos começam
a perder o adorno que lhes emprestava brilho e as ervas,
de mil cores matizadas, se preparam para fenecer. Ouso,
da mesma forma, afirmar que ninguém em seu são juízo se
há de mostrar tão inimigo de si mesmo que não reconheça
ser muito mais agradável que qualquer outra a estação
que tanto influi e em nós difunde um vigor alimentado
pela boa disposição e pronta alegria para qualquer em
preendimento.”
É importante o lugar ocupado pela velhice na obra
de Ronsard. Influenciado pela Antiguidade e por sua pró
pria época, pinta também com desgosto a decadência das
velhas prostitutas. Sua Catin ( *) é uma “imagem desbo
tada”, de dentes “podres e negros” ; tem “ o ôlho ramelento
e o nariz ranhoso” . Explorou com freqüência o tema da
fugacidade da juventude, a cuja espreita se acha um porvir
de tristeza e de fealdade:
Colhei, colhei a mocidade!
A velhice, como a esta flor,
Desbotará vossa beleza
176
Nervos destruídos, e as veias,
De tão frio o corpo, só cheias
De uma água ruhra em vez de sangue ( * ) .
12
177
de sua vida uma enseada de paz e cantou-o em alguns
poemas:
178
lhante ao de varetas que o ar maneja casualmente, a seu
talante.”
No terceiro livro, escrito muito mais tarde, Montaigne
continua a preferir a juventude a uma idade por êle já
encarada como velhice. Considera ter apenas diminuído
e não progredido. “ Em suma, tenho êste acidental arie-
pendimento que traz a idade. Aquele que se dizia outrora
agradecido aos anos que lhe haviam tirado a voluptuosi-
dade, tinha opinião outra que a minha; nunca serei grato
à impotência pelo bem que ela me fa ç a ... Nossos apetites
são raros na velhice; profunda saciedade nos toma depois;
nenhuma consciência vejo em tal; tristeza e fraqueza im
primem em nós uma virtude covarde e catarrenta. Quanto
a mim que a sacudo viva e atentamente, acho que minha
razão é a mesma que eu tinha em idade mais licenciosa,
ou ainda pior, tanto mais que se acha enfraquecida e pio
rada com o envelhecer. Por vê-la fora de combate, não a
considero mais valorosa. Não a vejo julgar nada por si
mesma, que já então não julgasse; nem nenhuma clareza
nova.
“ Envergonhado e invejoso ficaria se a miséria e o in
fortúnio de minha decrepitude devesse ser preferida a meus
belos anos sadios, vivazes, vigorosos, e que se devesse esti-
mar-me não pelo que fui mas pelo que deixei de s e r ...
Minha sabedoria, igualmente, bem pode ser do mesmo
porte num e noutro tempo; mas era muito mais empreen-
dedorá e benevolente, galharda, alegre, ingênua, do que
agora: estagnada, rabugenta, laboriosa. . .
“Damos o nome de sabedoria, à dificuldade de nossos
humores, ao desgosto das coisas presentes. Mas, na ver
dade, não abandonamos tanto os vícios quanto os trocamos
e, na minha opinião, para pior. E almas não se vêem que,
envelhecendo, não tresandem azedo e môfo. O homem
caminha inteiro para o crescer e para o decrescer.”
Causa-me admiração o fato de Montaigne, livrando-se
dos lugares-comuns tradicionais e suavizantes, recusar admi
tir qualquer mutilação como se fôsse um progresso e de
não considerar enriquecimento o simples acúmulo de anos.
Mas verifica-se em seu caso um curioso paradoxo que, em
bora lhe passe despercebido, salta aos olhos do leitor: os
179
Ensaios foram se tornando um livro cada vez mais rico,
íntimo, original e profundo à medida que o autor ia avan
çando em idade. Aos 30 anos, êle não teria sido capaz de
escrever aquelas belas páginas amargas e desiludidas sôbre
a velhice. É no momento em que se sente diminuído que
se torna maior. Mas talvez não houvesse atingido tal gran
deza sem a severidade com que se trata a si mesmo. A
complacência acaba debilitando: ao envelhecer, Montaigne
soube evitá-la. Se progrediu, foi porque sua atitude com
relação ao mundo e a si mesmo foi se tornando cada vez
mais crítica e o leitor se encontra na incômoda situação
de ter de aderir à crítica embora constate o progresso.
180
arquétipo. Seu pessimismo é de inspiração cristã: destinado
a uma triste degringolada, o homem deve cuidar antes de
tudo da salvação de sua alm a(39), mesmo durante sua
fase de prosperidade.
O tema das idades da vida tem inspirado muitos pin
tores. Representam-nas habitualmente por um trio: um
rapaz, um homem maduro, um ancião. É o que vemos no
Concerto de Ticiano no qual o homem idoso aparece com
uma barba e a cabeça calva, conservando entretanto uma
aparência r ija (40).
Outro tema popular é o da fonte de Juvência. É o
motivo de muitas gravuras do século XV: uma delas nos
mostra mulheres idosas mergulhando numa piscina de onde
saem, rejuvenescidas, para os braços de belos jovens. No
século XVI, o mito continuava tão vivo que Ponce de Léon
ao organizar em 1512 a expedição de que resultaria o des
cobrimento da Flórida, partia em busca da Fonte de Juvên
cia. Temas análogos se repetem em muitas gravuras e
quadros. Há um, célebre, de Cranach o Jovem; vê-se no
centro uma vasta piscina onde nadam corpos nus; à esquerda,
alguns velhos estão sendo transportados até a borda da
água dentro de carroças ou nas costas de outros homens;
saem, à direita, alegres e felizes; homens e mulheres dançam
e brincam nos prados.
Esta escada ê um
caminho batido; em todos os tempos
o Destino os mortais aí passeia.
182
bonito mas não chama a atenção; a mulher é uma réplica
de A Duquesa feia.
O processo de trabalho dos artistas realmente grandes
constitui antes uma espécie de manejamento de seu tempo
que um testemunho dêle. Nos magníficos quadros que pin
tou, sendo êle próprio bastante idoso, Os Regentes e sobre
tudo As Regentes, Franz Hals, já no ápice de sua arte,
não se deixa levar pela banalidade; nem exalta nem des
merece a velhice: busca apreender a verdade dos rostos
por êle representados. Também é o caso de da Vinci, de
Rembrandt, em cuja obra os velhos encontram muito lugar.
Ao estudar-lhes os traços, da Vinci chegou à caricatura, tendo
feito o mesmo com todas as idades. Todavia, emprestou
grande beleza a alguns velhos. Rembrandt, desde os 30 anos,
os pintou: uma de suas últimas obras foi o admirável Ho
mero cego. Não se preocupa em coincidir com sua época:
procura transmitir sua própria visão.
Na medida em que vai se afastando das representações
populares para se tornar um conjunto de criações individuais,
a iconografia vai também perdendo grande parte de seu
valor como testemunha. Sob êste aspecto, seu interesse
diminui na medida em que cresce o da literatura. Não terei
mais oportunidade de voltar ao assunto.
188
da condição humana; nêle ninguém a reconhece, ninguém
se reconhece (42).
Há no início do século XVII uma brilhante exceção: ao
escrever O Rei Lear, Shakespeare escolheu um velho para
encarnar o homem e seu destino. Por que motivo e como?
Em seus Sonetos, Shakespeare denunciou arrebatada-
mente as devastações do tempo. Compara a existência hu
mana ora ao desenrolar do dia ora, ao do ano; ora aos
dois juntos; a velhice é um triste declínio.
184
à sua foice tudo aqui sucumbirá.
No futuro, porém, os meus versos rebeldes
Te louvarão malgrado a sua mão cruel” .
185
O Rei Lear é a única grande obra, além de Êdipo em
Colona, cujo herói é um velho; a velhice aí não é conce
bida como o limite da condição humana, mas como sua
verdade: é partindo dela que se deve conceber o homem
e sua aventura terrestre ( 4C).
A lenda, de origem muito remota, pertence ao folclore
anglo-saxão. Já mostrei por que motivo os costumes da
Inglaterra medieval lhe valeram tão grande popularidade.
Shakespeare deve ter-se inspirado numa chronicle play de
nominada Leir, representada em 1594. Foi buscar a intriga
paralela de Gloucester e de seus dois filhos na história do
rei de Paflagônia, em A Arcádia, de Sidney. Elevando-se
porém, muito acima destes pretextos, êle exprimiu através
do drama do velho todo o absurdo horror de nossa existên
cia. No início do drama, Lear não é louco mas a própria
velhice, nele, se parece com a loucura. Não adaptado à
realidade, decide imprudentemente, dividir seu reino en
tre as filhas e é bastante insensato para exigir delas decla
rações verbais a fim de avaliar o grau de sua afeição. Sendo
rei, acha-se habituado aos louvores mais exagerados e é
fàcilmente iludido por este incenso: acredita nas belas pa
lavras das duas mais velhas e se irrita com a atitude de
Cordélia que recusa participar dêste jôgo senil; obstinado,
imperioso e de pouca visão a deserda. As duas filhas hipó
critas o julgam com cruel lucidez: “Devemos esperar de
sua velhice não apenas os defeitos de há muito enraizados
mas também o desregramento caprichoso que anos de inva
lidez e de cólera trazem consigo”, diz Goneril.
Paralelamente, a cegueira de Gloucester, que se deixa
imprudentemente convencer da perversidade de Edgar, cujo
amor filial é sincero, fiando-se no traidor Edmundo, con
firma a impressão de que Shakespeare só via aberração e
não sabedoria na idade avançada. A maldade de suas filhas
condena Lear a errar, como Êdipo sem destino, em meio
a uma natureza hostil: o velho é um ente isolado, exilado;
Gloucester, cujos olhos foram vazados, também simboliza45
186
— como Homero, Édipo, Belisário — essa ausência, que é
o quinhão da idade avançada. Mas é sobretudo Lear, des
vairado, de tudo despojado, quem encarna o trágico desam
paro do homem. No início do drama, êle se parece com
todos os heróis shakespeareanos, impelidos por uma paixão
teimosa — ambição, ciúme, ressentimento — a loucas e
funestas resoluções. O autor o retrata do exterior, com tanta
severidade quanto a Macbeth ou Otelo; mas tendo a miséria
e seu terrível desespero revelado a Lear sua verdadeira
condição, Shakespeare nêle se projeta e fala por seu inter
médio: “ Será o homem apenas isto? O homem não orna
mentado não passa de pobre animal desnudo e como tu,
chifrudo. Vamos! Abaixo os atavios! Vamos! despojemo-
-nos aqui!” exclama Lear, arrancando as vestes. Deseja
destruir a ordem antiga que, subjugando o homem à ri
queza e às honrarias, lhe esconde sua própria humanidade:
entrevê uma nova ordem, onde o homem partiría do nada,
na nudez da infância. Mas é tarde demais. Mergulha numa
loucura em que fulguram por instantes, algumas verdades:
essas revelações o deslumbram mas de nada lhe podem
servir; elevam-no acima de si mesmo mas já não lhe resta
tempo para a elas adaptar sua vida. A Antiguidade e a
Idade Média atribuíam aos loucos um caráter sagrado e
uma espécie de clarividência. A velhice se aproxima muitas
vêzes da loucura e pode suceder que nela se conciliem as
duas imagens contraditórias tradicionais: o venerando sábio
e o velho louco. É o caso de Lear delirante e inspirado.
O momento em que atinge o sublime é também o momento
em que se decompõe. As vendas lhe caem dos olhos, final
mente, e Cordélia lhe é restituída: mas é o cadáver dela
que êle aperta nos braços. Para êle também, a morte é a
única saída. Kott compara justificadamente ( 4G) êste drama
a Fin de partie. É a tragédia da velhice, quando esta nos
desvenda a falta de sentido de nossa inútil paixão. Se o
fim da existência deve ser esta impotência desvairada, a
vida inteira surge, a esta luz, como uma aventura toda feita
de miséria.
Tem-se indagado muitas vêzes que razões teria tido
Shakespeare para escrever o Rei Lear, isto é, para encarnar46
1S7
o homem numa figura de velho. Talvez a tanto o houvesse
movido o trágico destino da velhice nas cidades e nos cam
pos da Inglaterra. A mendicância se alastrou a ponto de ser
proibida — salva sob Eduardo VI — quando o sistema
feudal se desmantelou sob o govêrno dos Tudors, tendo o
desemprego assolado as cidades. Não se pode excluir a
hipótese de ter a miséria daqueles velhos vagabundos —
despojados, desprovidos de tudo, desnorteados — inspirado
a Shakespeare o personagem do velho rei. Mas é preciso
lembrar também que êste herói não é — como o de Cor-
neille ou o de Racine — um homem entregue à procura
ativa de fins que emprestariam um sentido a sua existência.
Êle é movido por cegas paixões que fazem de sua vida
“ um monólogo ruidoso e colérico narrado por um idiota.”
Êste absurdo se revela com evidência especial quando se
adota, a respeito da humanidade, o ponto de vista do velho,
cortado do porvir, reduzido à pura passividade de seu estar-aí.
É normal que Shakespeare, depois de haver mostrado o
homem escravizado pela ambição, pelo ciúme, pelo ressen
timento, tenha decidido retratá-lo esmagado pela fatalidade
dos anos. Ao indivíduo empenhado em empreendimentos
vários repugna reconhecer o sombrio aspecto de nossa am
bivalente condição: de todos os grandes dramas de Sha
kespeare O Rei Lear foi, geralmente, o que menos acolhida
encontrou e o menos compreendido.
188
embaraçosas por parte de um jovem papa de 40 anos; eleito
aos 70 ou 75 anos, espera-se — por vêzes erroneamente —
que êle há de permanecer conforme ao personagem esco
lhido com conhecimento de causa, sem se afastar da sen da
traçada. Dos doze pontífices que se sucederam depois do
Concilio, dois foram eleitos aos 53 e 55 anos, três aos 60,
dois aos 64, quatro aos 70, um aos 77. Depois disto, foram
quase sempre muito idosos tanto os papas como os mem
bros do Sacro Colégio.
Na França, o século XVII foi muito duro para as pessoas
de idade. A sociedade era autoritária, absolutista. Os
adultos que a regiam não concediam nenhum lugar aos
indivíduos não pertencentes à mesma categoria que eles:
crianças e velhos. A média de vida oscilava entre 20 e 25
anos. Metade das crianças morria antes de um ano; a maio
ria dos adultos, entre os 30 e os 40 anos. As pessoas se
desgastavam imuito depressa, devido às duras condições
de trabalho, à subnutrição e à falta de higiene. As campo
nesas de 30 anos eram mulheres velhas, enrugadas e cur
vadas. Até mesmo os reis, os nobres e os burgueses morriam
entre os 48 e os 56 anos. Ingressava-se na vida pública aos
17 ou 18 anos, as promoções eram precoces. Os quadrage-
nários eram considerados velhotes. Os contemporâneos afas
taram a possibilidade de ter Mme de La Fayette dormido
com La Rochefoucauld por contar ela 36 anos e êle 50 (47).
Aos 50 anos, não se tinha mais lugar na sociedade. Era
demasiadamente cansativo acompanhar a corte em suas
viagens, deslocar-se de uma cidade para outra, participar
de esportes. O qüinqüagénário se retirava para suas terras
ou entrava para algum convento. Respeitava-se o homem
opulento, o proprietário, o chefe, o dignitário, e não a idade
em si mesma. A memória, a experiência podiam conferir
valor a determinado indivíduos idosos: “ Um velho que
viveu na côrte, que tem bom senso e memória fiel, é um
189
tesouro inestimável” , escreve La Bruyère. Mas só por si
a velhice não inspirava a menor consideração.
Entre os camponeses e artesãos, persistia o sistema de
organização familiar. A Igreja buscava auxiliar os miserá
veis. Mas seu auxílio era insuficiente, devido à dureza da
vida: fornes, exploração dos camponeses pelos senhores, dos
operários pelos patrões.
Como a dos velhos, a condição das crianças era muito
dura. Tinha havido algum interesse por êles, durante a
Renascença: buscara-se preservá-las da corrupção do mun
do adulto. Mas a vida era demasiadamente difícil para
permitir que se lhes consagrassem muitos cuidados. Nc
século XVII, as crianças foram mantidas fora da sociedade
e educadas com severidade. Até os 20 anos, açoitavam-se
os pajens, e os escolares sem distinção de classe: a infância
tôda era reduzida à categoria das mais baixas camadas da
população. A literatura a ignorou. La Fontaine observa:
“ Esta idade é impiedosa.” La Bruyère pinta as crianças
como se fossem pequenos monstros e conclui: “Não querem
suportar o mal e gostam de praticá-lo.” Bossuet chega a
dizer: “A infância é a existência de um animal.” Nenhum
outro autor a elas alude. Quando crescem, continuam sob
a autoridade paterna: na Idade Média, dela se livravam
desde os 14 anos. A maioridade é fixada aos 21 anos no
século XVI e XVII. A partir de 1557, o filho necessita do
consentimento do pai para se casar, quando antes daquela
data podia decidir livremente a este respeito. No século
XVII, o pai tem o direito de o deserdar em proveito de
outra pessoa, o que até então fora impossível.
190
seus personagens são fantoches inanimados, por vêzes mons
truosos, muito raramente por sua inumana beleza mas geral
mente, por sua fealdade. Quevedo se compraz em pintar a
degradação orgânica que os reduz a uma condição inferior
à dos animais. Sua repulsa visa, entre outras, à mulher.
A jovem é, a seus olhos “ um apetitoso demônio” ; e mesmo
quando bela, não a poupa: a própria feminidade é para êle,
repugnante. Compara as feias à morte. Mas são as velhas
que o obsedam. Acabrunha-as sob o pêso dos anos: “Tem
seis mil anos mais que os candeeiros, e, para contar sua
idade de ponta a ponta o número pode chegar a unidades
de milhar.” É hedionda, enrugada, abjeta, com a bôca
“ despavimentada” , buracos em lugar de molares, nariz en
contrando-se com o mento; é fétido o seu hálito, é um saco
de ossos, a morte em pessoa. As rugas da fronte são “ sulcos
do curso do tempo e marcas de seus passos.” Ela, no
entanto insiste obstinadamente em se considerar jovem,
contra toda a evidência. “ Chilreias com teus maxilares bi
savós e a tuas saias denominas cueiros” . Investe especial
mente contra as feiticeiras, as governantes e ainda mais
contra as aias nas quais se encarna a própria essência da
velhice: “O nariz dialoga com o queixo e está tão perto de
se lhe juntar que, juntos, formam uma serra.” Destinadas
a proteger as jovens, elas, em vez disso, as pervertem. A
literatura espanhola irá explorar o tema da aia-alcoviteira,
durante mais de dois séculos após Quevedo.
Desenvolve-se na França, no início do século e à mar
gem do classicismo, uma literatura que cultiva o grotesco,
o burlesco e se compraz em evocações da fealdade. Exem
plo muito significativo é Saint-Amant que vê na mulher
idosa uma “imagem viva da morte” . Diverte-se acumulan
do anos sobre suas costas: “ Embalastes outrora o avô de
Melusina” ( 40). Descreve também uma velha prostituta:
m
Mathurin Régnier também pinta em sua Marette, cujo
sucesso foi enorme, uma velha alcoviteira que virara carola.
Traçou, além disso, três retratos de velhas horrivelmente
esqueléticas. Em Théophile de Viau, a mulher velha é
gorda e retaca, mas isso em nada a beneficia:
192
Não obstante isso, a literatura da época atribui ao velho
um valor muito mais considerável que a dos séculos pre
cedentes. Corneille criou com Don Diègue e Horácio im
ponentes figuras de velhos.
Foi a atualidade quem o inspirou no sentido de retomar
o assunto tratado por Guillém de Castro depois do Roman-
cero. O Estado estava ainda inacabado, subsistindo uma
ética individualista e feudal. Não se haviam rompido os
laços vassálicos: os Grandes tinham ainda muitos apani
guados; famílias inteiras se achavam a seu serviço e seus
deveres para com o •senhor sobrelevavam a obediência
devida ao rei. Corneille propugnava um equilíbrio entre
a realeza e a aristocracia; desejava conciliar os antigos
valores de generosidade e de “ prouesse” com o respeito
pela lei, encarnada na pessoa do monarca. Como no Roman-
cero e em Guilhém de Castro, é um conflito de gerações
que desencadeia o drama, cujo aspecto aqui é duplo. O
Conde, homem na fôrça da idade, opõe sua eficácia atual
ao passado de Don Diègue, agora abolido. “ Se um dia fôstes
valente, eu o sou hoje em dia.” Deve-se observar que êle
não leva absolutamente em conta as antigas proezas de Don
Diègue: não tem nenhum respeito pela velhice. Don Diègue
não pode tolerar que o passado esteja encerrado e que o
presente seja soberano:
13 193
o pai, Rodrigo o suplanta. O vencedor dos Mouros, o esteio
do reino, o herói é êle. O rei proclama:
194
Corneille contava mais de 50 anos, idade avançada para a
época, quando se apaixonou pela Du Pare. Dedicou-lhe
diversos poemas célebres:
Eu sei de meus cabelos brancos, sei que os anos
Pouco mérito emprestam às almas mais nobres
. . . Que se em dias em flor pareci suportável
Por muito tempo amei para ainda ser amável
E que os pálidos sulcos de enrugada fronte
Mesclam um triste encanto aos mais dignos incensos ( *) .
Marquesa, se tem meu rosto
Traços de envelhecimento,
Lembrai-vos que, em minha idade,
Não valereis muito mais.
O tempo as coisas mais belas
Se compraz em afrontar;
Fará murchar vossas rosas,
Como enrugou minha fronte.
195
É um tímido e trêmulo enàmorado:
196
Encontra-se um ponto de vista análogo em Saint-Evre-
mond, admirador de Corneille e partidário de muitas de
suas idéias. Exilado em Londres no fim da vida, em con-
seqüência de um violento ataque contra Mazatino, foi
tranqüila a sua velhice naquela cidade onde passou o tempo
lendo, escrevendo e sobretudo entregando-se aos prazeres
da conversação, postos por êle acima de todos os outros.
Discípulo de Montaigne, também não acreditava que a
velhice trouxesse sabedoria: “Perdi todos os sentimentos
do vício sem ficar sabendo se devo esta mudança à fraqueza
de um corpo abatido ou à moderação de um espírito que
se tornou mais sensato. Na minha idade, é difícil saber se
as paixões que deixamos de sentir se acham extintas ou
domadas.” Como Epicuro, sempre havia considerado que
a felicidade consiste essencialmente em não ser infeliz: como
sua saúde fosse boa, êle apreciava esta ataraxia e com ela
se contentava. Julgava, entretanto, que a idade tivesse suas
tristezas. Escreveu a Ninon de Lenclos, com quem manteve
longa e afetuosa correspondência, dizendo que não esperava
revê-la e que isto o desolava: “O que mais triste me parece,
em minha idade, é verificar que a esperança está perdida,
a esperança, a mais doce das paixões e a que mais contribui
para nos fazer viver de maneira agradável.” A amizade
sempre havia sido muito importante para êle que não a
distinguia de modo algum do amor: em sua opinião, o amor
devia ser regido pelo espírito, isto é, baseado na estima;
neste caso, êle não se torna paixão e não provoca sofri
mento. É um sentimento de que nos podemos orgulhar,
mesmo em avançada idade. Sustenta o direito do velho
ao amor, contanto que, como Martian, não exija retribui
ção. Aos 80 anos, amava com grande ternura à Duquesa
de Mazarin que foi para êle uma excelente amiga. Quando
ela morreu, êle se enamorou com a mesma discrição, da
Marquesa de La Perrine. “ Causa-vos um espanto fora de
propósito o fato de amarem ainda as pessoas de idade,
escreve êle, mas o ridículo não está em se deixar sensibili
zar e sim em tôlamente pretender agradar... Viver é o
maior prazer que resta aos velhos; e nada os pode persuadir
sá-lo. Mas Racine o pinta muito mais como déspota do que como um
velho e nada nos informa a respeito dos sentimentos de sua época com
relação ao assunto aqui considerado.
197
tanto de sua própria vida quanto o am or... Amo, portanto
sou; é uma conseqüência viva, animada, pela qual recorda
mos os desejos da juventude até o ponto de nos imaginar
mos por vêzes ainda jovens.” Em seu tratado sôbre a ami
zade, êle aprova os casamentos tardios de M. de Senneterre
e do Marechal d’Estrées. O próprio Salomão lhes serviu
de exemplo, diz êle. Chega a admitir que se é mais pro
penso a amar na velhice que antes. Escreveu em 1663 (53):
“ Mal começamos a envelhecer e eis que começamos também
a nos desagradar com um desagrado de nós mesmos que
em nós se forma secretamente. Nossa alma, então, vazia
de amor-próprio, se enche fàcilmente do amor que alguém
nos inspira.” Assim, em sua opinião, o velho seria ferido
em seu narcisismo — idéia nova e interessante — e, por
isto, se veria indefeso perante uma criatura sedutora ( 54).
Como se vê, a imagem do velho vai se tornando mais
sutil que antes. Continua sendo homem e nenhum senti
mento humano lhe é interdito. O amor de que falam Cor-
neille e Saint-Evremond é puramente platônico. Autoriza-o,
portanto, o código de amor mais ou menos explicitamente
elaborado na alta Sociedade para distinguir os aristocratas
dos burgueses. É sensibilizador na princesa de Clèves, uma
mulher casada constrangida à fidelidade; por que motivo
deveria êle escandalizar num homem idoso? E a sensibili
dade do século se mostra ainda mais cordata pois que se
alguns os censuram, outros aplaudem os compromissos amo
rosos dos octogenários.
Com Molière, recaímos no convencional: tratou o tema
da velhice sem nenhuma originalidade, seguindo os autores
antigos e italianos. Retomou o personagem do velho des
confiado porém tolo, avaro porém crédulo, rabugento mas
pusilânime. É objeto de derrisão, e, sem disto se dar a
menor conta, alimenta grandes pretensões. Molière se mos
tra ainda mais severo para com a velhice que Terêncio e até
mesmo que Plauto. Encontra-se em sua obra apenas um
velho simpático. Na Escola de maridos, cuja inspiração
colheu em Os Adelfos, Sganarelo sem dúvida quadragenário
198
é um velhote ciumento e tirânico, mas seu irmão Aristo,
vinte anos mais velho, é liberal, sábio, cuidando de sua
pessoa sem vaidades excessivas. Consegue se fazer amar
pela mulher que deseja desposar ao passo que Sganarelo é
esbulhado por aquela que vinha cortejando. Retifiquemos,
de passagem, um êrro muito comum: não é verdade que
todos os velhotes de Molière sejam quadragenários. Ar-
nolphe conta, com efeito, 43 anos. Mas no Casamento for
çado Sganarelo — que pretende, ridiculamente, conquistar
o amor de uma jovem, sendo castigado por isto — tem 53
anos. Géronte, nas Fourberies, é muito idoso. Harpagon
tem mais de 60 anos. Ainda mais odioso que o herói da
Aulularia êle não se limita a ser apaixonado por seu cofre:
é também um pai tirânico e exorbitante além de ridículo ena
morado. O conflito entre pais e filhos levado à cena por
Molière correspondería à realidade? Como se trata mais de
imitação que de criação, não se pode ver em suas peças, sobre
este aspecto, nenhum testemunho dos costumes da época.
1.9,9
tários, artesãos e sobretudo, comerciantes. Êstes, sufocados
pelos monopólios concedidos pelo rei, os haviam combati
do: exigiam a liberdade do comércio e consideravam que
somente a República a poderia impor. Ao passo que a
França, dotada de uma burocracia eficiente, havia conse
guido associar a burguesia ao governo sem que êste se
visse por isto abalado; na Inglaterra, onde a administração
era deficiente, estalou um conflito entre a burguesia humi
lhada e a realeza: foi esta vencida. As classes médias se
empenharam em reerguer a economia pois a Inglaterra estava
neste plano em situação muito inferior à da Holanda. O
puritanismo fêz um esforço no sentido de adaptar o cristia
nismo a uma sociedade industrial e comercial dominada
pelo espírito de competição. Deu ênfase particular ao pre
ceito: “ Quem não trabalha não come.” Todos os pregadores
insistiram no tema do trabalho como um dever, pois os
burgueses admitiam que eram a preguiça e a embriaguez
que entravavam o progresso: “ Não existe condição pior
que a do preguiçoso, escrevia em 1632 Elizabeth Jocelyne.
Deus o considera um zangão inútil incapaz de o servir; e
o mundo o condena por sua pobreza extrema.” As mais
elevadas virtudes religiosas e morais consistiam em realizar
bons negócios. Trabalhar é a melhor maneira de orar: o
trabalho é uma espécie de sacramento e o lucro, o sinal
de uma proteção divina. Os pobres foram acoimados de
preguiçosos e imprevidentes e se decidiu não mais encorajar
êstes vícios. A mendicância foi condenada como sendo
imoral. Em lugar de esmola, praticou-se o empréstimo a
juros.
Os velhos indigentes padeceram. Na burguesia, pelo
contrário, a velhice foi valorizada. Na Idade Média, como
vimos, a família em si mesma não era idealizada: mas ela
o foi nas classes médias entre as quais se recrutaram os
puritanos. Seu símbolo e sua personificação era o avô:
foi respeitado. Desde o século XVI os pais exigiam dos
filhos estrita obediência; os casamentos lhes eram impostos,
tendo-se chegado ao ponto de casar um garoto de 5 anos
com uma menina de 3. No teatro elisabetano viam-se jo
vens lutando pela liberdade de escolha matrimonial. Nunca
se afirmou de maneira mais explícita e rigorosa o princípio
de autoridade do que entre os puritanos da época. Em 1606,
200
a convenção anglicana adotou a idéia de um francês, Bodin,
cuja obra acabava de ser traduzida: os pais devem ter
direito de vida e de morte sôbre os filhos. O soberano
deve ser um pai para seus súditos, afirmavam os puritanos;
e o chefe de família deve poder exercer sôbre esta poderes
soberanos. Houve numerosos sermões sôbre o governo da
casa e sôbre a autoridade que era conveniente reconhecer
às pessoas idosas. Estando isentos de paixões — era pelo
menos o que se queria acreditar — estavam estas pessoas,
por assim dizer, naturalmente capacitadas para praticar o
ascetismo pelo qual pretendiam os puritanos que a vida
se pautasse: constituíam elas um exemplo digno de ser
imitado. E como o sucesso era o indício de uma bênção
divina, a longevidade surgia como penhor de virtude. Por
todos êstes motivos, os puritanos veneravam os velhos. Ao
conquistarem o poder, tentaram impor sua moral a todo
o país. Fecharam os teatros, por êles considerados lugares
de perdição.
A Restauração reagiu violentamente contra êles. A rea
bertura dos teatros constituiu um grande acontecimento e,
pela primeira vez, os papéis femininos foram desempenhados
por atrizes. Pertenciam a um grupo de fidalgos muito
restrito, os autores que durante trinta anos haviam escrito
peças e os espectadores que as haviam aplaudido. Êstes
aristocratas menosprezaram os valores burgueses enalteci
dos pelos puritanos. Seu teatro duro e cínico escarneceu a
virtude sob todos os seus aspectos. Investiu sobretudo, contra
a velhice.
Nas peças elisabetanas, os jovens lutavam pela liber
dade mas as pessoas de idade eram retratadas com um
misto de simpatia e de ironia. No fim do século XVII,
pululam as comédias sôbre o conflito de gerações. Uma
das mais significativas é Love for love (56), de Congreve.
Os enamorados, Valentin e Angélica, se acham sob a tutela,
um de um pai a outra de um tio, ambos velhos odiosos e
ridículos. Foresight (07) é “iletrado, desagradável, supers
ticioso, com pretensões a compreender a astrologia e a
201
quiromancia”, e vive enunciando profecias pedantemente.
Sua jovem esposa o engana. A sobrinha lhe diz grosseira
mente a verdade e o ridiculariza. Sampson, por sua vez,
é um pai desnaturado. A fim de castigar Valentin por suas
prodigalidades, ále deseja obrigá-lo a abrir mão de sua
herança em favor do irmão mais môço, Ben, um marinheiro
recém-chegado de volta ao lar: somente com esta condição
concordará em pagar as dívidas do mais velho. Valentin
se vê forçado a ceder pois as dívidas são prementes e êle
as deverá liqüidar antes de desposar Angélica. Enfrenta,
todavia, o pai, numa cena violenta: censura-lhe a avareza
e o coração empedernido. O pai lhe responde com incrível
arrogância: “ Não posso eu fazer o que desejo? Não sois
por acaso meu escravo? Não fui eu quem vos gerou? Será
que viestes voluntàriamente ao mundo? Não fui eu quem
nele vos fiz entrar, com a autoridade legal de um pai?”
E, cúmulo dos cúmulos, êle pretende desposar Angélica.
Esta finge aceitar e se arranja hàbilmente para fazê-lo pagar
as dívidas do filho sem que êste tenha de renunciar à heran
ça. Ri-lhe então na cara e explode: “Nunca deixei de amar
vosso filho e de detestar vossa natureza rancorosa. . . tendes
ainda mais defeitos que êle virtudes; e por maior que seja
minha alegria diante da idéia de viver feliz junto dêle,
fazendo-o também feliz, a que experimento ao vos ver
castigado é quase igual.” Valentin corrobora estas expres
sões; delicia-se com a decepção de seu pai. Êste esquema
se reproduz em inúmeras peças. O jovem, cuja superioridade
se vai afirmando durante os quatro primeiros atos, acaba
triunfando no quinto. A hostilidade tradicional contra a
“idade tristonha” atinge uma violência até então desco
nhecida. Filhos e filhas proclamam sua revolta. Negam
todos os valores morais e sociais impostos pelos puritanos.
202
gresso, entretanto, só se faz sentir nas classes privilegiadas.
Em 1754, um autor inglês falando dos camponeses franceses
observa: “ É uma espécie de homens que começa a decair
antes dos 40 anos por falta de uma compensação proporcional
a suas canseiras.” Em 1793, viajando pela Europa, escreve
um inglês: “ Apesar das doenças ocasionadas por uma ali
mentação demasiadamente rica, pela falta de atividade e
pelo vício, êles (5859) vivem dez anos mais que os homens
de classe inferior pois êstes se desgastam antes do tempo
pelo trabalho, pela miséria e pela fadiga, impedindo-os a
pobreza de concederem a si mesmos o indispensável a sua
subsistência.” O pequeno número de explorados que conse
guia sobreviver até uma idade avançada, era condenado à
indigência, por sua própria velhice. Sociedades de previ
dência e auxílio mútuo haviam aparecido na Europa desde
o século XIV. Sua existência, na França, foi clandestina e
difícil, tendo sido interditas pela lei Le Chapelier, assim
como todos os agrupamentos profissionais. De qualquer
forma, seus recursos eram insuficientes: o velho não mantido
pela família só podia contar com o auxílio a êle prestado
pela Igreja.
Estas sociedades se haviam desenvolvido na Inglaterra,
sob a denominação de amigáveis. Na segunda metade do
século XVIII, a corrente sentimental que influenciou todo
o pensamento europeu levou a opinião pública a se emo
cionar diante da miséria. Comprendeu-se que a responsa
bilidade cabia à sociedade e não ao próprio indigente. A
lei de 1782 concedeu às paróquias o direito de formarem
uniões destinadas à coleta e à aplicação do imposto dos
pobres. O Estado reconhecia aparentemente que todo indi
víduo tem direito à existência. (50) Afirmaram, em 1785,
os magistrados reunidos em Speehamland: quando um ho
mem não pode ganhar a própria vida trabalhando, a socie
dade deve se encarregar de sua subsistência. Neste sentido
foi reformada a Assistência pública: a miséria dos inválidos
e dos velhos se viu um tanto atenuada. Por outro lado,
também se multiplicaram as coalizões operárias a fim de
203
lutar contra o patronato e também para se garantirem mu
tuamente contra o desemprêgo e as doenças.
Nas classes privilegiadas, os homens de idade foram
beneficiados pela amenização geral dos costumes. Graças
ao progresso técnico, a vida material se tornou mais con
fortável e menos cansativa, tanto na França como em
tôda a Europa: viajar, por exemplo, já não constituía uma
provação tão penosa. A vida social, mais complexa, requeria
qualidades de inteligência, experiência e menos esforço físico:
o Marechal de Saxe conquistou Fontenoy a despeito de sua
gôta. Prolongou-se o tempo de vida ativa. Os sexagenários
participavam da vida social: iam ao teatro, freqüentavam
os salões. Como no século precedente, uma bela memória
tornava seu trato apreciado. Os jovens escutavam estupe
fatos as narrativas feitas por Fontenelle, que montava mais
de 90 anos. Quando êle dizia: “ Eu me achava em casa
de Mme de La Fayette; vi entrar Mme de Sévigné” , pare-
cia-lhes que estavam falando com um fantasma e se extasia
vam. Não causava espanto excessivo o casamento de ho
mens idosos com mulheres muito mais jovens, como sucedeu
com Marmontel e Marivaux. A burguesia ascendente criou
uma ideologia na qual a velhice foi valorizada.
Na Inglaterra sobretudo, o progresso da técnica trouxe
consigo o desenvolvimento da indústria, das finanças, do
comércio. Rica e poderosa, a nova classe tomou orgulho
samente consciência de si mesma e se forjou a moral que mais
lhe convinha. Em Londres, desde o fim do século XVII,
multiplicaram-se as sociedades, as assembléias, os cafés —
cujo número alcançou mais de 3 000 — onde se foi plas
mando através das conversas, a imagem do homem nôvo.
Steele e Addison podem ser considerados seus padrinhos.
O Tatler e sobretudo o Spectator empenharam-se em refor
mar o homem antigo e em promover um tipo inédito: en
carna-se êste de maneira muito especial, no comerciante:
amigo de todo o gênero humano, aventureiro e herói do
século; mas é um herói pacífico que substituiu a espada
pela bengala. Evita a ostentação: é simples e busca antes
a utilidade que o aparato. Não aprecia as mundanidades,
leva uma existência retirada, preferentemente no campo.
Coloca a moral acima da arte. O teatro revela esta
mudança de maneira ostensiva. Iniciou-se no fim do
204
século XVII uma cruzada de moralidade contra a caba
la que dêle se havia apoderado. A austeridade puri
tana já então pertencia a um passado longínquo, não
se experimentava mais a necessidade de lhe opor resis
tência: a audácia dos autores em voga acabou escandali
zando a opinião pública. Cellier, um pastor jornalista e
panfletário, escreveu contra êles um libelo cujo sucesso foi
considerável. Isto não impediu o triunfo de Le Train du
monde, de Congreve, dois anos mais tarde. Mas êste se
calou, em seguida. O teatro se tornou moral e sentimental:
punha em cena velhos empregados dedicados, pais e filhos
afeiçoados uns aos outros. Todos os personagens eram
simpáticos ( 00).
Estas tendências se difundiram na França. O homem
nôvo é o filósofo: professa uma moral laica e humanitária
da qual é Diderot o propagandista mais ouvido. Na reali
dade, o século XVIII francês foi sombrio, atormentado,
entregue às desordens e aos conflitos que culminaram com
a Revolução. Nêle se desenvolveu uma literatura que re
trata o homem com severidade e até com maldade: o Abade
Prévost, Marivaux, Laclos, Sade. A burguesia, no entanto,
professa o otimismo. Faz uma apologia cheia de emoção
do Homem, do qual se julga a mais perfeita encarnação:
a natureza humana é boa, todos os homens são irmãos, cada
qual deve respeitar a liberdade e as opiniões de seu pró
ximo. Amai vosso próximo como a vós mesmos, por amor
de vós mesmos, torna-se o preceito fundamental da moral.
E a noção de próximo se amplia. O século XVIII explora
o tempo e o espaço: deixou de ser unicamente o reino do
adulto civilizado. Os “selvagens” despertam interesse. Rous-
seau lembra aos adultos as crianças que um dia foram e êles
nelas se reconhecem. As mães amamentam seus filhinhos.
A chibata foi combatida desde o início do século e acabou
sendo suprimida em 1767. A criança passou a desempenhar
um papel muito mais importante na família. Os adultos
reconhecem no velho sua futura imagem. O homem idoso
chega mesmo a adquirir uma importância especial pelo
fato de simbolizar a unidade e a permanência da família:60
205
A
esta, com a transmissão das riquezas possibilita seu acúmulo;
é a base do capitalismo, ao mesmo tempo, o terreno onde
floresce o individualismo burguês. Envelhecido, o chefe
de família continua sendo o detentor de suas propriedades
e goza de prestígio econômico; o respeito por êle inspirado
se reveste de sentimentalismo. Com efeito, o século é “sen
sível”, buscá-se a verdade com o coração. Exalta-se a vir
tude; os contos morais abundam; são “tratados de huma
nidade” . Todos se debruçam complacentemente sobre os
fracos: a criancinha, o avô. Marmontel comove seus con
temporâneos narrando sua infância rústica. Evoca as boas
avós: “Viviam ainda, aos 80 anos, bebericando seu golezinho
de vinho ao lado da lareira e recordando os velhos tempos.”
Greuze provoca emoções enternecidas pintando figuras de
velhos. A velhice de Voltaire aumentava-lhe o brilho: cha-
mavam-no “o patriarca de Ferney” . De julho de 1789 a julho
de 1790, em tôdas as festas da Federação, os velhos eram
as figuras centrais, eram êles que as presidiam ( 61). Na
festa de 10 de agôsto de 1793, as bandeiras dos 86 Depar
tamentos foram carregadas por velhos.
Êste sentimentalismo trouxe algumas conseqüências prá
ticas. Encorajou-se a beneficência, a “ Bienfaisance”, palavra
inventada pelo Abade de Saint-Pierre para substituir por
uma idéia laica a idéia religiosa de caridade. Consagrou-se
uma vasta literatura ao problema da mendicância. Nas co
lunas dos jornais encontravam-se exemplos de beneficência,
de “traços de humanidade” . Em 1788 a lista das sociedades
beneficentes enche dois grossos volumes de La Bienveillance
française. São sobretudo as mulheres que fazem coletas e
distribuem socorros. S. Mercier as descreve, alivando as mi
sérias dos “ octogenários, cegos de nascença, parturien-
tes etc.” Em 1786, a Sociedade filantrópica se congratulou
por ter prestado assistência a mais de 814 desgraçados: ve
lhos, cegos de nascença, parturientes.
20S
Na realidade, praticar a filantropia se havia tornado
sobretudo uma maneira de garantir a felicidade pessoal.
Tornar pessoas felizes para ser feliz, foi um tema indefini
damente repisado. Assegurar a própria felicidade é uma
das preocupações máximas do burguês: julga obtê-la por
meio da virtude, de uma mediocridade feliz, cultivando os
laços de família e de amizade. A felicidade é concebida
essencialmente com um repouso. É preciso temer os ex
tremos, só experimentar paixões suaves. Isto significa que
a velhice é encarada como uma idade feliz e até mesmo
exemplar: o velho está livre das paixões violentas, é sereno,
sensato. A ausência de desejos vale mais que o gôzo dos
bens. Uma existência equilibrada termina na ataraxia, na
euforia.
É o que sustenta Buffon, entre outros tantos: “ Em
cada dia em que me levanto gozando de boa saúde, não o
usufruo eu de maneira tão presente, tão plena quanto a vos
sa? Se conformo meus movimentos, meus apetites, meus
desejos aos únicos impulsos da sábia natureza, não sou eu
tão sábio e mais feliz que vós? E a vista do passado que
os velhos loucos tanto lastimam, oferece-me, pelo contrário,
prazeres de memória quadros agradáveis, imagens precio
sas que se equiparam a vossos objetos de prazer.”
Este gênero de considerações deixa d’Alembert cético:
“ Têm-se feito elogios da amizade e da velhice; ninguém
teve necessidade de fazer o da juventude e do amor”, es
creveu êle. Diderot observa: “Honra-se a velhice, mas nin
guém gosta dela.” Em sua obra podem-se encontrar, entre
tanto, velhos amáveis, começando por seu próprio pai. O
público acolheu da maneira mais favorável possível La vie
de mon père de Rétif de La Bretonne. Descrevendo com
placentemente o “ venerando ancião” , êle gaba as virtudes e
doçuras da vida doméstica, num momento em que a família
começava a se desagregar ao passo que a maioria dos fran
ceses dela conservava uma imagem nostálgica. Também
pinta os encantos da vida campestre cujos atrativos a bur
guesia estava naquela ocasião redescobrindo. Conta, naquele
estilo “ sensível” então em moda, a agonia do pai, assistida
por todos os anciãos da aldeia: “ O quarto do doente estava
cheio de todos os anciãos em prantos.”
207
No fim do século XVII e no séc. XVIII, encetou-se no
teatro francês uma evolução da figura do velho. Destou-
ches, em Le triple Mariage compõe um Oronte autoritário
e avaro que coloca a fortuna acima dos filhos e pretende
lhes impor casamentos de conveniência. Em Vlngrat e
VObstacle imprévu, o pai é um tirano insuportável. Mas,
em UIrrésolu Pyrante adora o filho e cede diante de todos
os seus caprichos. Em Cénie de Mme de Graffigny, Dori-
mard é um velho encantador, devotadíssimo aos sobrinhos
que havia educado; é um pouco autoritário, um pouquinho
seguro de mais de si mesmo, o que o leva a cometer alguns
erros; mas sua bondade é muito maior que seus defeitos.
E um dos personagens arremata, depois do desenlace feliz:
“ Se a bondade excessiva é por vêzes enganada, nem por isto
deixa ela de ser a primeira das virtudes.” A concepção apre
sentada por Beaumarchais em seu teatro a respeito da velhice
é cheia de nuanças e por vêzes surpreendente. Quando
Eugénie foi representada, sem nenhum sucesso, êle só con
tava 35 anos. O papel mais simpático cabe ao pai da jovem,
o Barão Hartley. Diz Beaumarchais dêste velho fidalgo
do País de Gales ( 62) : “ O barão, homem de costumes justos
e simples, manterá sempre esta imagem e êste estilo, mas
se o animar uma forte paixão, êle se há de inflamar e dessa
fogueira sairão coisas verdadeiras, ardentes, inesperadas.”
É a primeira vez que se permite a um homem idoso uma
paixão interior cujas explosões surpreendem os que o cercam.
Em seu primeiro projeto, o pai era um fidalgo bretão, gran
de amigo da caça, e de humor áspero e intratável: “Tomará
resoluções violentas a respeito de todos os incidentes, ao
pretender tudo fazer há de tudo estragar, será, enfim, um
personagem extremamente ruidoso e pouco sensato.” Êste
retrato era muito mais parecido com os tipos convencionais
de velhos encontrados nas comédias. Não sabemos por que
motivo Beaumarchais o transformou. Mas sua benevolência
para com as pessoas de idade se manifesta também em
Les deux Amis, representado três anos mais tarde. O per
sonagem mais simpático é o pai, “filósofo sensato” ; sábio,
altruísta, generoso, é êle quem salva a situação. Contudo,
em O Barbeiro de Sevilha, cujo tom é tão diferente, êle
208
volta à imagem vulgar do velho enamorado: Bartolo se
parece com os velhotes de Molière (03). Seu papel é quase
nulo em O Casamento de Fígaro onde não aparece nenhum
outro velho. No fim de sua vida, em La Mère coupable —
representada sem o menor sucesso em 1792 — Beaumarchais
adota a respeito da velhice o ponto de vista confortador e
moralizante tão em voga na época. Escreve no prefácio,
falando do Conde Almaviva: “ No quadro de sua velhice e
assistindo La Mère coupable, havereis de vos convencer,
como nós, de que todo homem que não seja espantosamente
mau de nascença sempre termina se tornando bom quando
a idade das paixões se distancia e sobretudo depois de
experimentar a doce felicidade de ser pai.” O conde diz,
na peça: “Ah! meus filhos! chega sempre uma idade em
que as pessoas de bem perdoam seus erros recíprocos e
suas antigas fraquezas e, às tumultuosas paixões que as
haviam desunido, fazem suceder uma doce afeição.”
Em 1799, um certo Billy dedica uma peça ao Abade
de l’Épée tal como era aos 66 anos e por êle assim descrito
no prefácio: “ Uma penetração que nada deixa escap ar...
o gênio e a bondade. . . uma piedade suave e sem afeta
ç ã o ... grande conhecimento da natureza.” São as carac
terísticas do homem de idade, como as sonhavam os mo
ralistas.
Inscrevem-se nesta linha os melodramas que pululam
no início do século XIX. Os velhos só representam nêles
papéis episódicos mas são comovedores e majestosos. Come
tem erros, por vêzes, resgatando-os, todavia, pela nobreza
do coração. Assim, em Robert, chef des brigands de La-
martelière, o pai do herói comete o engano de preteri-lo em
favor de seu outro filho que o encerra numa tôrre, sendo
salvo por Robert. O velho aparece como um mártir cheio
de grandeza. Em La Femme aux deux Maris, escrito por
Pixérécourt em 1801, no velho cego Wemer se encarnam as
mais altas virtudes; seu inflexível sentido de honra o torna
duro e autoritário: amaldiçoa a filha, por êle considerada
culpada, sem lhe ouvir a defesa e se fecha num rancor obs-63
14 209
tinado. Perdoa, finalmente quando toma conhecimento da
verdade e todo mundo ao redor dêle chora de emoção. Con
clui um dos heróis: “ Um pai que perdoa é a mais perfeita
imagem da Divindade” . O mesmo assunto volta a ser tra
tado por Pixérécourt em 1821, em Valentine. Alberto, tam
bém cego, mostra-se implacável para com a filha: acaba se
reconciliando com ela. Desprendido e intrépido, êle é quase
sublime e se impõe à admiração.
Surge um tema nôvo: o do velho servidor dedicado.
A relação feudal de senhor para vassalo, implicava, em
princípio, uma abnegação total da parte deste para com
aquele: a burguesia em ascensão pretendeu reviver em seu
proveito aquele laço. Em Misanthropie et repentir, inspi
rado por Kotzebue, o velho Tobias provoca as lágrimas dos
outros personagens com sua nobre serenidade, sua tranqüila
resignação. Muito idoso e pobre, consegue descobrir uma
humilde felicidade no simples fato de estar vivo. Em Uilus-
tre Aveugle, escrito em 1806 por Caigniez, um dos principais
personagens é o velho Oberto, apaixonadamente dedicado
ao jovem príncipe cego, corajoso, cheio de dignidade e
personificação de todas as virtudes.
Encontra-se na obra de Pixérécourt uma enorme quan
tidade de velhos servidores dedicados.
Estas obras de qualidade inferior, nem por isto são
menos significativas: atendem às exigências do público e,
por conseguinte, refletem seus fantasmas. Venera êle os
velhos no seio de sua classe; fora desta êle os admira na
medida em que personificam a longa fidelidade de um devo-
tamento incondicional à casta superior. Os velhos pobres
ingressam timidamente na literatura. Não despertam inte
resse por si mesmos mas sim por sua relação feudal com
um amo que é o detentor da verdade de seu ser ( 64).
210
um velho decrépito que pretende imitar a juventude.” Em
1728, entretanto, Riccoboni o descreve como “um bom pai
<!<• família, homem honrado, extremamente delicado em
questões de palavra e severo para com os filhos.” É “de
exterior rude” . Já não é avarento mas muito econômico e
ainda se deixa enganar, apesar de suas qualidades.
Esta mudança é particularmente ostensiva no teatro
de Goldoni. E isto porque em Veneza, cujos costumes des
creve, também se assiste à promoção da burguesia e à
exaltação dos valores burgueses. A supremacia marítima
de Veneza havia diminuído, desde o século XVI, devido à
concorrência que lhe faziam o império turco, a Espanha e
Ragusa. Veneza se transformou num grande porto in
dustrial: aí se fabricavam tecidos de melhor lã. Mas os
nobres consideravam degradante êste tipo de trabalho: com
praram terras no interior e se afastaram dos negócios. No
século XVIII, a aristocracia ainda conserva o poder político,
mas só subsiste graças às riquezas acumuladas na cidade
pela classe dos comerciantes. O homem ideal é o comer
ciante honesto, econômico, hábil: estas virtudes são de
maior utilidade para a cidade, para a família e para si pró
prio do que os títulos de nobreza. Os nobres levam exis
tências dissipadas e absurdas: o comerciante personifica o
bom senso e a retidão. Seu código moral repousa essencial
mente no relacionamento familiar. Era esta a convicção da
classe burguesa a que pertencia Goldoni.
■ Pantaleão é, por tradição, comerciante. É convencional
a imagem que dele apresenta Goldoni, no início de sua obra,
a exemplo da commedia delVarte. Contudo, o homem idoso
é muito antipático, em Les Rabat-joie, obra muito mais
pessoal. Goldoni põe em cena quatro encarnações de
Pantaleão: quatro velhos misantropos, tirânicos, avaros, egoís
tas e teimosos; suas idéias são antiquadas e detestam a
juventude; sua família é por êles oprimida, impedem as
mulheres e crianças de saírem, de se divertirem, de se
enfeitarem. Um clêles pretende casar a filha com o filho
do outro, mas ambos recusam permitir que os jovens se
encontrem antes do dia das núpcias. Todavia, êles conse
guem entrevistar-se, graças à cumplicidade das mães.
No decorrer de sua carreira, Goldoni vai se aplicando
cada vez mais a retratar a sociedade veneziana tal como
211
êle a vê, e Pantaleão se aproxima da figura do comerciante
ideal. Não é, aliás, um velho mas sim um homem de
meia idade, que soube gerir sua fortuna, dirigir bem sua
vida e que dá sábios conselhos: Goldoni fala, freqüente-
mente por seu intermédio. Numa de suas peças de maior
sucesso, Le Bourru bienfaisant, a figura do pai é por êle
tratada de maneira um tanto irônica mas também com o
maior apreço. Géronte é rápido, autoritário, de tempera
mento difícil; não ouve a ninguém; sem a consultar, decidiu
casar a sobrinha Angélica com um velho amigo. É, entre
tanto, um homem generoso; mantém, com muita largueza,
a família de seu fâmulo. Concorda em pagar as dívidas
do sobrinho. Acaba compreendendo que deve deixar An
gélica dispor livremente de seu coração e a autoriza a des-
posar o homem que ama.
Pode-se observar a evolução sofrida pela figura do
velho mercador rico, desde os tempos de Chaucer. Na
quela época — e durante os séculos seguintes — sua riqueza
constituía objeto de inveja; consideravam-no injustamente
privilegiado e vingavam-se, zombando dêle. Foi somente
no século XVIII que uma melhor compreensão dos fatos
econômicos permitiu avaliar os serviços por êle prestados
ao conjunto da sociedade. O utilitarismo, professado em
primeiro lugar pelos puritanos, uma vez reconhecido o seu
papel, fêz com que lhe fôssem atribuídas tôdas as quali
dades. Quando velho, será ainda mais respeitado: sua pros
peridade é uma garantia de virtude e sabedoria.
212
homem” , escreve êle pouco tempo depois a Pope. Tinha
horror às mulheres: escreveu alguns anos depois o famoso
poema, A alcova, sôbre o tema “ Célia caga” . A velhice,
quando considerada, pelo menos em palavras, como sendo
o estágio mais nobre e mas aperfeiçoado da condição hu
mana, não podia deixar de desencadear seu furor. Já era
êle próprio bastante idoso, de saúde precária e sua velhice
foi efetivamente uma dramática decadência física e moral:
êle parece tê-lo pressentido. Não teria podido descrever com
tamanha nitidez êsses imortais, que na realidade são apenas
grandes velhos, se não tivesse vivido obsedado por fantas
mas em que decifrava, aterrorizado, seu próprio futuro. E
se, em seus últimos anos, êle se viu transformado em hor
rendo Struldbrugg, isto não se deveu certamente apenas
ao acaso.
Gulliver fica maravilhado ao saber que alguns Luggna-
gianos nascem trazendo na testa uma marca que os torna
imortais: imagina-os felizes e liberados do terror da morte,
cheios de ciência, ricos, conversando sôbre problemas trans
cendentais; se estivesse em seu lugar, explica êle, lutaria
contra a corrupção, buscaria realizar grandes descobertas.
Seu interlocutor responde que, em todos os outros lugares,
as pessoas idosas conservam o gôsto pela vida; exceto ali,
pois enxergam com os próprios olhos o destino a êles reser
vado. “ Este plano de vida imortal é insensato e absurdo,
disse-me êle, pois implica a duração eterna da juventude,
da saúde e do vigo r... O problema não consiste em orga
nizar uma existência sempre na primavera, sempre cumulada
de felicidade e de saúde, mas sim em suportar uma vida
perpètuamente em luta contra as misérias da velhice.” Com
efeito, por volta dos 30 anos, os Struldbruggs começam a
se tornar melancólicos e isto vai se agravando cada vez mais
até os 80. Aí então, “ cabem-lhes tôdas as enfermidades
físicas e mentais dos velhos, além de uma infinidade de
outras oriundas da atroz perspectiva de nunca se poderem
livrar. Não são apenas teimosos, rabugentos, cúpidos, sus
ceptíveis, vaidosos, tagarelas, mas também incapazes de
amizade e até mesmo de qualquer afeição por seus des
cendentes que perdem de vista após a segunda geração.
Têm duas paixões dominantes: a inveja e os desejos recal
cados. Invejam os vícios dos jovens, desejam a morte dos
213
velhos. . . Suas únicas recordações não vão além de sua
juventude ou do início de sua maturidade; são aliás, bas
tante vagas. O que de melhor se lhes pode desejar é a
perda de todas as suas faculdades e a caduquice total.
Pois então, já não sendo tão mau o seu caráter, êles pode
ríam contar com um pouco de piedade e de assistência.”
Aos 80 anos, são considerados oficialmente mortos; os es
posos se separam (caso sejam ambos imortais). Vivem de
uma rendazinha. Aos 90 anos perdem os dentes e os ca
belos. Nesta idade já não distinguem o sabor dos alimentos.
“ Quando falam, já não encontram as palavras.” “ Por falta
de memória, nem ler podem mais.” Como a língua evolui,
já não a compreendem. “ Conhecem assim a desgraça de
viver como estrangeiros em seu próprio país.”
Esta última idéia é inteiramente nova. Antes disso, e
sobretudo na Idade Média, o tempo girava em círculos e
o velho se degradava no seio de um universo imutável. No
século XVIII, a burguesia em ascensão acredita no pro
gresso e isto leva Swift a imaginar o velho estagnado e
se repetindo no meio de um mundo em alteração, inces
santemente rejuvenescido. Incapaz de lhe acompanhar a
evolução, êle fica para trás, sozinho, murado, privado de
tudo aquilo que se vai afastando dele (65). É-lhe interdita
qualquer comunicação com as gerações mais novas. A ve
lhice não é somente decrepitude mas também — como ia
ser para Swift — a solidão do exílio.
Um velho imortal: tal foi o triste destino de Titon,
lastimado pelo poeta jônio Minerma. Os homens nunca o
desejaram. Em compensação, sonharam com a Fonte de
Juvência. O rejuvenescimento é um dos temas do Fausto
de Goethe. Esta idéia não intervinha nem nas lendas antigas
de que Fausto era o herói, nem na peça de Marlowe.
Fausto era um sábio, mais tarde mágico, cuja alma se
perdia devido à sede de saber. A peça de Goethe também é
antes de tudo o drama do conhecimento e dos limites da
condição humana. Mas a noção de idade nela desempenha
214
um importante papel. O velho Fausto não encontra mais
felicidade na ciência; dela já não extrai nenhum orgulho,
ela já não o embriaga; continua aberta, êle ainda poderia
aprender; mas êle se sente vítima de sua finitude: nêle
está morto o desejo de conhecer; já não tem nenhuma
razão para viver. Para reecontrá-la seria preciso que renas
cessem em todo o seu frescor os prazeres, o amor, os enlevos,
apanágio da juventude; faz uma aposta: se Mefistófeles
lhe devolver a juventude, êle não se deixará iludir pelos
prazeres a ponto de desejar interromper o curso do tempo;
mas êste desafio só terá sentido se êle fôr novamente capaz
de os experimentar. Goethe concebe, portanto, a velhice
como uma idade gélida, abstrata e decepcionante. Só tinha
25 anos quando começou o Fausto e 48 quando o terminou
em 1807. Mas embora lhe faltasse experiência da idade
provecta, já havia tomado consciência da finitude humana.
Conservou sempre o desejo de mudar de pele como as ser
pentes e isto porque se sentia por vezes apertado dentro
da sua que lhe parecia gasta. A questão está menos em
ser jovem que em poder rejuvenescer: escapar aos próprios
limites, reviver a vida como uma aventura sem deixar que
ela acabe num impasse.
215
ciãos pertencentes às classes inferiores, até então jamais
mencionados pelos escritores, salvo insignificantes exceções.
Isto está longe de implicar uma melhoria das circuns
tâncias para o conjunto da população idosa. Haverá, pelo
contrário, como poderemos verificar, muitas vítimas da evo
lução econômica processada no decorrer do século.
Três fenômenos estreitamente relacionados acompanha
ram em tôda parte a progressão demográfica: a revolução
industrial, um exôdo rural acarretando um desenvolvimento
urbano, a aparição e o desenvolvimento de uma nova classe,
o proletáriado.
Na Inglaterra, o despovoamento das zonas rurais havia
tido início com o sistema de divisão de propriedades, res
ponsável pela miséria de um grande número de camponeses.
As leis sôbre a assistência social provocaram, como reação,
no começo do século XIX, uma queda nos salários dos
camponeses, cujo efeito foi sua evasão dos campos. Ao ser
votada, em 1846, a lei de liberdade de comércio, a Ingla
terra industrial e mercantil, triunfou definitivamente sôbre
a Inglaterra agrícola.
Na França, houve um importante êxodo rural no fim
do século XVIII. A população urbana que representava
1/10 da população total, passou a representar 1/5: cêrca
de 5,5 milhões de indivíduos. Os filhos de camponeses emi
gravam sobretudo para as cidades pequenas onde conse
guiam elevar-se socialmente tornando-se comerciantes, em
pregados, ou funcionários. O início do século XIX repre
sentaria antes uma interrupção neste movimento; de 1800
a 1851, 3 milhões e meio de indivíduos vêm aumentar a
população urbana mas, dado o crescimento global da po
pulação, as cidades só mantêm 25% dos franceses. Tendo
sido aliviados os impostos, cresceram os recursos dos cam
poneses, mas êste acréscimo se viu absorvido pelo cres
cimento paralelo da população. Entre 1840 e 1850, os cam
pos se revelam incapazes de alimentar todos os seus habi
tantes, de modo que o êxodo se avoluma de 1850 a 1865.
Nos anos seguintes a indústria rural — fonte de renda
bastante considerável para os camponeses — entra em
declínio em conseqüência da concentração industrial. O
progresso técnico dificulta a exploração das terras pelos
216
pobres: êstes não podem enfrentar a concorrência dos pro
prietários burgueses que introduzem na agricultura métodos
capitalistas. Além disso, a partir de 1880, graças ao pro
gresso dos meios de comunicação, a América se acha em
condições de exportar trigo para a França; resultado: grave
crise econômica e o prosseguimento do êxodo rural. Em
1881, um terço da população se acha concentrado nas ci
dades. No fim do século, é a indústria a única válvula que
se abre diante dos filhos de camponeses e êles vão engros
sar as fileiras do proletariado.
As transformações foram nefastas para os velhos. Sua
condição nunca fôra tão cruel quanto na segunda metade
do século XIX, tanto na França quanto na Inglaterra. Não
havia proteção ao trabalhador: homens, mulheres e crian
ças eram impiedosamente explorados. À medida que iam
envelhecendo, os operários, se tornavam incapazes de su
portar o ritmo do trabalho. A revolução industrial se rea
lizou mas seu preço foi um incrível desperdício de material
humano. O taylorismo provocou verdadeiras hecatombes
na América, entre 1880 e 1900: todos os operários morriam
prematuramente. Os que conseguiam sobreviver, ao se
verem privados de trabalho, ficavam em tôda parte redu
zidos à miséria. Na França, as sociedades de auxílio mútuo
foram toleradas a partir da Restauração, e sua existência
reconhecida em 1835; um regime de estreita vigilância tor
nou a pesar sôbre elas em 1850 e 1852. A Terceira República
lhes reconheceu inteira liberdade, com a lei de l.° de abril
de 1898. Todavia, mesmo nas melhores condições, seus
recursos sempre foram insuficientes quando se tratava de
garantir um risco oneroso como a velhice. O mesmo suce
dia com as “amigáveis” da Inglaterra. “Procurem fazer mais
economias que filhos” , preconizava J .R . Say. Dirigido a
operários, semelhante conselho era uma ironia. Na França
e na Inglaterra, pululavam velhos vagabundos e indigentes.
Nas zonas rurais da França, continuou a ser de praxe
o seu sustento pelas famílias. Se o pai de família que co
mandava tôda a casa era bastante vigoroso ou rico para
conservar a posse de suas terras — continuando a trabalhar
ou empregando trabalhadores agrícolas — sua autoridade
sôbre os filhos também se mantinha. A família patriarcal
continuava a existir nas zonas rurais, podendo até ser tirâ-
21.7
nica a autoridade do velho que a governava. Mas só era
encontrada entre camponeses abonados e estes eram raros.
Arcaica até 1815, a agricultura progrediu muito lentamente;
os rendimentos eram tão pequenos que os camponeses mal
conseguiam subsistir. Quando envelheciam, já não tinham
forças para continuar a cultivar suas terras e não haviam
podido economizar o suficiente para pagar uma mão-de-
-obra estranha. Ficavam à mercê dos filhos. Viviam estes
à beira da miséria, sem ter recursos para alimentar bôcas
inúteis. Desembaraçavam-se delas, às vêzes, abandonando
os velhos nos asilos. O diretor do asilo de Montrichard ( 66)
manifestava em 1804, sua indignação: “ Os velhos devem
trazer e deixar no asilo tudo que lhes pertence; no entanto,
descendentes desnaturados trazem seus velhos pais e os
despojam até de seu último traje antes de os abandonar nas
salas.” Conservavam-nos habitualmente, em casa; mas a
situação ilustrada na Idade Média pelo rei Lear havia
persistido no decorrer dos séculos: incapaz de constinuar a
tratar de suas terras, o pai as entregava aos filhos e êstes
os deixavam muitas vêzes à míngua e os maltratavam. Em
um Mémoire sur les paysans de VAveyron et du Tam, Rou-
vellat de Cussac escreve: “Não há nada tão freqüente quanto
o esquecimento, por parte de filhos de ambos os sexos,
de tôdas as obrigações para com seus progenitores envelhe
cidos. Quando êstes cometem a imprudência de entregar
seus bens sem nenhuma reserva documentada, ou sem a
garantia de um testamento revogável, arriscam-se a se verem
desprezados e, muitas vêzes, privados até do indispensável.”
Encontra-se êste tema em numerosos romances, com
toda certeza inspirados pela realidade. Em Eusèbe Lom-
bard de Theuriet, escrito em 1885, depois da morte do
pai, a irmã acusa o irmão mais velho de haver seqües-
trado o defunto: “ Se êle veio para nossa casa, foi porque
você o alimentava com batatas podres. — E você o deixou
morrer num monte de palhas em pleno inverno.” Em Au-
tour du clocher, romance inspirado a Fèvre e Desprez pelos
camponeses de Rouvres, no Aube, o velho Bonhoure é mal
tratado pelos filhos: “E assim vegetava êle, espancado, in-
21S
sultado, alimentado com batatas estragadas, como os por
cos.” Acabou se enforcando. Em UAveugle de Maizeroy,
os sobrinhos obrigam o velho tio a mendigar: “ Quando
voltava de sacola vazia, injuriavam-no violentamente e todos,
mesmo os menorezinhos, se encarniçavam em cima dêle,
ridicularizando-o, arrebatando-lhe a gamela, pregando-lhe
maldosas peças.” Até que morreu, um dia, na estrada. Em
Le Fere Amable, Maupassant descreve a triste e silenciosa
existência que levava, na companhia de seu filho, um pai
viúvo, surdo e semi-aleijado. O filho se casa, contra a von
tade do pai, com uma mulher que já havia tido um filho
de outro homem. A existência do velho vai se tornando
cada vez mais mesquinha e lúgubre. Morre o filho; a
mulher não maltrata o sogro mas torna a se casar. E êle
então se enforca.
A legislação tem procurado defender os velhos contra
a dureza e a descaso de sua progenitura, substituindo uma
situação de fato por uma situação de direito. O pai que se
despojava por uma partilha inter vivos recebia em compen
sação uma renda vitalícia, cujo montante era estabelecido
perante um notário; caso os filhos recusassem pagá-la, êle
podia intimá-los a comparecer diante dos tribunais. Em
princípio, portanto, êle já não ficava na dependência do
arbítrio da família. Infelizmente, muitas vêzes pagou caro
a proteção da justiça. Era outrora mais ou menos difuso
o interêsse dos filhos em gastar com o pai o menos pos
sível: êste interêsse passou a ser mais preciso e mensurável;
havia-se materializado na pensão obrigatoriamente paga.
Tinham, por conseguinte, um poderoso motivo para o fazer
desaparecer: era a maneira mais simples de se eximir dos
rigores de uma coação legal. Não nos é possível saber
em que século os assassinatos — por métodos violentos ou
pela inanição — dos pais idosos foram proporcionalmente
mais numerosos. Quase todos ficaram sepultados no silên
cio dos campos: todavia, devem ter sido bastante frequentes,
no século XIX, a ponto da opinião pública deles tomar
conhecimento e de se ter inquietado. Terá esta publicidade
significado um maior interêsse pelo destino dos velhos
campônios? Ou teria aumentado o número dos crimes e a
imprudência com que eram cometidos? Nenhum documento
nos autoriza a responder a estas indagações.
219
O certo é que foram muitas vezes denunciados os pe
rigos a que estavam expostos os velhos pais despojados.
Bonnemère escreve a êste respeito em sua Histoire des
paysans, em 1874: “ Cheio de amargura, sentindo-se um
encargo para todos e para si mesmo, e um estranho em
casa dos filhos, êle arrasta de choupana em choupana o
tédio de seus últimos dias. Acaba morrendo. . . Mas êle
que se apresse, pois lá está a cupidez armando na sombra o
braço do parricida.” No dizer de Bonnemère, chega-se até
a enterrar o velho, muitas vezes, antes de êle estar verdadeira
mente morto: “ É sob os tetos de colmo que se dá o nome
de morte à letargia, porque, como observa M. D u pu is(6768),
nem sempre se dispõe de dois quartos e se tem pressa em
tomar o lugar.” Bonnemère cita quatro casos de parricídio,
ocorridos todos num ano: 1855(GS). Eram tão habituais
êsses crimes, e tão conhecidos, apesar da obscuridade com
que buscavam encobrir-se, que um inquérito oficial levado
a cabo entre 1866 e 1870 sobre a agricultura francesa, não
hesita em proclamá-los. Êste inquérito foi resumido em
1877 por Paul Turot. Falando em nome da administração,
Turot aconselha aos ascendentes que não efetuem em vida
a partilha de seus bens. Lembra com veemência o miserá
vel destino reservado aos velhos pais depois que abrem
mão do que é seu; evoca “ os crimes cometidos para apres
sar a morte, e para os quais as obrigações contraídas devido
à partilha constituem um incitamento, uma espécie de en
corajamento. Uma vez despojado de seus bens, o pai de
família se vê privado de qualquer autoridade. É relegado
à condição de criatura desprezada, repelido pelos filhos,
rejeitado de todos os lares, remetido de um para o outro
220
com uma renda vitalícia nem sempre paga ou com uma
habitação que não lhe é dada.”
Num artigo do Temps, de 5 de agôsto de 1885, Cher-
ville chama a atenção para a triste sina dos velhos pais a
cada instante humilhados, semimortos de fome, forçados
a mendigar. O avô se afeiçoa muitas vezes ao netinho mas
“ ao crescer, o garoto se distancia” para agir como os de
mais. Como diz o jornalista, é grande a tentação de apres
sar o fim dos velhos pais, sempre demasiadamente oneroso.
Em A Terra, Zola narra um destes dramas sombrios:
para escrevê-lo, bufscou o apoio de uma documentação
extremamente séria. Êste romance foi comparado ( 69) ao
Rei Lear, que Zola menciona, aliás, em suas notas. Com
efeito, apesar dos séculos que medeavam entre êles, Zola
e Sliakespeare descrevem situações semelhantes. No início
do romance, o velho Fouan reúne os filhos num cartório
a fim de dividir entre êles as propriedades que já não pode
cultivar; os filhos discutem asperamente a renda exigida
pelo pai. “A vida dos dois velhos foi vasculhada, exposta,
discutida, cada necessidade de per si. Pesou-se o pão, os
legumes, a carne... Quem já não trabalha, deve saber se
restringir.” Determina-se uma quantia. A princípio o velho
continua a viver em sua casa, com a mulher. Os filhos só
lhe entregam uma parte da pensão combinada. Isto provoca
uma cena terrível entre o pai e o filho caçula, Buteau, dela
resultando a morte da mãe, de desgôsto. Conseguem per
suadir o velho a vender a casa para ir morar com a filha:
esta o persegue de maneira mesquinha. Tal como Lear,
vai êle sucessivamente para a casa de cada um dos filhos,
sofrendo sempre. Passam-se alguns anos, cheios de amar
gura. Buteau o havia atraído para sua casa, com a espe
rança de lhe roubar as economias e o trata com brutalidade.
Durante uma discussão o pai ergue a mão, num gesto amea
çador que outrora amedrontava o filho: mas êste agora
a segura no ar, sacode o pai e o faz cair numa cadeira.
Como os velhos gorilas vencidos pelos jovens, o pai se sente
definitivamente vencido: ao fugirem as fôrças, havia perdido
221
também a autoridade. Nem a proteção da lei basta para
defendê-lo contra a violência bruta. Buteau consegue lhe
roubar o pé-de-meia. Agrava-se de tal forma o conflito
entre pai e filho que uma noite, tal Lear redivivo, o velho
foge e vagueia até o amanhecer no meio de uma tempestade.
Por haver presenciado um crime cometido pelo filho e pela
nora, mas sobretudo por não mais tolerarem o encargo de
sustentá-lo, estes o estrangulam e lhe ateiam fogo a enxêrga,
simulando um acidente. O médico faz vista grossa e dá
o atestado de óbito.
Zola se serviu do fato assinalado em Le Temps, refe
rente ao relacionamento entre avó e neto. Durante algum
tempo, a desgraça do velho Fouan é compensada pela
afeição por êle dedicada à criança e aparentemente retri
buída por ela. Mas um dia, tendo ido buscar o neto à escola,
o menino recusa acompanhá-lo e se junta aos companheiros
para caçoar do velho.
222
eleitores, isto é, em cada 100 franceses maiores de idade,
apenas um votava, havendo aproximadamente 8 000 cidadãos
clegíveis. Como esses emigrados eram pessoas muito idosas,
o país se achava numa situação que poderia ser qualificada
como patológica. Denunciou-a o panfletário Fazy, em 1829:
“A França foi reduzida a 7 000 ou 8 000 indivíduos elegíveis,
asmáticos, gotosos, paralíticos, de faculdades diminuídas e
cuja única aspiração é o repouso.” Critica enèrgicamente
a “ singular lei que só entrega a representação nacional a
velhos” . Esta prerrogativa dos velhos à Câmara dos Pares
se manteve depois de 1830; contou Talleyrand a Guizot,
em 1835: “ Fui ontem à Câmara dos Pares. Éramos apenas
se is... e tínhamos todos mais de 80 anos.”
Entretanto, a alta burguesia ia enriquecendo, explo
rando os operários e muitos camponeses e emprestando
dinheiro a juros. Graças à supremacia econômica, conseguiu
arrebatar o poder político das mãos da aristocracia latifun
diária. No govêrno de Luís-Filipe, o poder foi exercido,
na realidade pelos industriais, pelos banqueiros e pelos
grandes comerciantes, assim como pelos altos funcionários,
advogados e professôres. Eram quase todos idosos, pois
lhes havia sido preciso tempo para acumular os bens. Pode
mos, portanto, continuar a falar em gerontocracia. Charles
Dupin afirma que metade dos eleitores contava mais de
55 anos. Segundo informa, os 54 000 eleitores liberais eram
apoiados por 28 milhões de cidadãos, e os 46 000 eleitores
de direita por 3 milhões de velhos. Os algarismos podem
ser aproximativos, mas a idéia geral é correta. Tratava-se
de uma plutocracia e a maioria dos ricos era formada por
velhos. As empresas eram familiares, sendo o chefe, em
geral o membro mais velho da família. O móvel da econo
mia já não era a renda mas sim o lucro que se ia acumu
lando, graças aos investimentos. Os membros da célula
familiar se achavam estreitamente ligados pelos interesses
e sua personificação era o avô.
' O poder político coube, a partir de 1848, aos bancos e
à indústria. Complementou-se, nesta época, a revolução
industrial: tomaram impulso as estradas de ferro, as indús
trias têxteis, a metalurgia, as refinarias de açúcar e as minas.
Passou a ser cada vez mais importante o papel dos bancos.
Neste mundo em movimento, onde a figura mais conside
223
rada era a do “ empresário” , a iniciativa era a qualidade
mais necessária: o filho, mais audacioso que o pai, con
vencia-o a introduzir na fábrica máquinas mais modernas,
técnicas inéditas. Por outro lado, ao capitalismo familiar
sucederam sociedades anônimas de acionistas. O homem de
idade perdeu o prestígio econômico. O sufrágio universal
lhe arrebatou o prestígio político. Em 1871, todavia, a
Assembléia Nacional se compôs em grande parte de ele
mentos da zona rural, todos idosos; havia 400 realistas con
tra 200 republicanos e 50 deputados de tendências mal
definidas. O número de velhos no primeiro grupo era
muito superior.
De um modo geral, tanto na França como em todo o
Ocidente, o conflito de gerações foi abolido na burguesia:
estabeleceu-se entre elas uma espécie de equilíbrio. Sua
solidariedade se afirmava contra as classes “perigosas” . Era
freqüente ver-se, na pequena burguesia, o filho ocupar uma
posição social superior à do pai e êste se orgulhava desta
vitória: os ressentimentos se viam desarmados por esta
ascensão das gerações. Por outro lado, a sociedade nova
exigia a colaboração de jovens e de velhos. Sua complexi
dade tornava necessários o acúmulo de conhecimentos e a
experiência para fazê-la viver e progredir; em muitos seto
res o número de anos constituía uma qualificação. Os jo
vens se impunham por sua audácia e por sua capacidade
inventiva, mas consideravam muitas vêzes útil resguarda
rem-se por detrás da figura tranqüilizadora de um homem
de idade, com o qual estava aparentemente o poder: êle
representava a emprêsa cuja verdadeira direção ficava entre
as mãos de sócios mais dinâmicos.
Se o velho surge como uma garantia, isto se deve ao
fato de ser êle altamente valorizado pela ideologia burguesa
da época. Tanto na França como na Inglaterra da Rainha
Vitória as virtudes mais enaltecidas são as mesmas que ou-
trora haviam preconizado os puritanos: o rigorismo moral
caminhava de mãos dadas com o sucesso econômico: a
austeridade constituía uma regra, visto ser imprescindível
reinvestir os dividendos. Ora, a tradição representa o velho
como uma criatura naturalmente desprovida de apetites e
votado, por conseguinte, ao ascetismo. Além disso, o pen
samento econômico que vê uma panacéia no acúmulo de
224
capitais se estende — abusivamente, aliás — ao domínio da
psicologia: admite-se ser sempre bom acumular; e acumular
anos é realizar um lucro, é adquirir um valor diante do qual
se inclina respeitosamente a burguesia do século X IX: a
experiência. O empirismo associacionista, considerado na
época como a verdade suprema, confirma êste ponto de
vista: quanto mais se avança em anos, mais se multiplicam
as associações, maiores se tomam os conhecimentos e a
sabedoria. É portanto, no fim da vida que o indivíduo atinge
normalmente seu apogeu.
A família, nas cidades, deixou de ser patriarcal. A
partir do final do século XVIII, a multiplicidade de em
pregos, a ampliação da vida social, deram aos jovens casais
a possibilidade de constituírem lares próprios. Permanece,
entretanto, a tradição da família doméstica, tão cara ao
espírito da burguesia e idealmente perpetuada através da
veneração que cerca a figura do avô. Sua influência entra
em declínio com o desenvolvimento do capitalismo moderno,
mas mesmo então a opinião pública continua a exigir para
êle demonstrações exteriores de respeito e a segurança de
um fim de vida honroso.
A transformação da família modificou o relacionamento
entre netos e avós: ao invés de antagonismo, estabelece-se
entre êles uma aliança: já não sendo o chefe da família,
o avô se torna cúmplice dos netos, passando por cima dos
pais e vice-versa: as crianças encontram nêle um compa
nheiro divertido e indulgente (70).
A importância social concedida aos velhos irritou alguns
escritores adultos. Lamennais investe violentamente con
tra a idade provecta. Escreve, aos 36 anos: “ Nunca vi
nenhum velho cujo espírito não se achasse enfraquecido
pela idade, e muito poucos vi que o reconhecessem sincera
mente.” E ainda: “ O que é um velho neste mundo? Um
sepulcro que se movimenta. A multidão se afasta: aproxi
mam-se alguns poucos para ler o epitáfio” (71). Dickens
(70) Já vimos que, sob formas diversas, a relação dos avós com
os netos é muito importante entre muitos primitivos.
(71) Lamennais tinha uma opinião melancólica a respeito do con
junto da condição humana. Atravessou, aos 36 anos, um período de
depressão. Talvez também alimentasse certos rancores contra alguns velhos:
era um homem rancoroso.
15 225
protesta veementemente contra a habitual aproximação en
tre a infância e a velhice. Escreve, falando desta: “ A isto
chamamos estado de infância, mas desta é somente pobre
e vão simulacro, tal como o é a morte do sono. Onde estão,
nos olhos do homem senil a luz e a vida que riem nos olhos
das crianças?... Aproximai a criança e o homem recaído
em infância e corai desta vaidade que difama o feliz alvo
recer de nossa existência emprestando seu nome a tão hor
rível e convulsiva imitação.”
Expressões semelhantes são muito raras. Os escritores
que refletiram sôbre a velhice, dentro de perspectivas muito
variadas, dela propuseram apologias mais ou menos matiza
das: a exemplo dos ensaístas dos séculos precedentes, eles
só se interessam pela velhice na medida em que ela diz
respeito a sua classe. Citarei os mais significativos.
No capítulo VI dos Aforismos sôbre a sabedoria na
vida, intitulado “ Sôbre a diferença das idades”, Schope-
nhauer examina os diversos momentos da existência, à luz
de sua filosofia. Ê conhecido seu absoluto pessimismo:
o único caminho que se abriría diante da espécie humana
seria a extinção do desejo de viver e o deslizamento para
o nada de maneira total, por meio da eliminação da repro
dução. Quanto mais acirrada é a vontade no indivíduo,
tanto mais longe está êle da sabedoria: isto é, na juventude.
A criança, por ser contemplativa, é privilegiada: sua ati
tude estética, mantém o mundo a distância; vê os objetos
sub specie aeternilatis, possui uma intuição de sua essência.
É êste o motivo pelo qual, mais tarde, se lamenta tão dolo
rosamente a infância perdida: ela é feliz por ser represen
tação e não vontade. O jovem, pelo, contrário, tem sêde de
viver; corre atrás da felicidade sem a encontrar porque o
fato de buscá-la significa que já a perdeu. Quando é sen
sato, compreende pouco a pouco que a felicidade é uma
quimera enquanto o sofrimento é real e seu único desejo é
livrar-se dêle. A juventude é intelectualmente fecunda:
cabem-lhe por direito o conhecimento e a criação. As forças
intelectuais atingem o apogeu aos 35 anos. Vivemos, en
tretanto, mergulhados na ilusão e no êrro. O instinto sexual
entretém no indivíduo uma demência benigna.
Tornamo-nos melancólicos depois dos 40 anos, pois,
sem haver ainda renunciado às paixões e às ambições, co
226
meçamos a nos desiludir e a entrever a morte no fim de
nossa jornada ao passo que antes a ignorávamos. Os anos
que precedem a decrepitude constituem a fase mais feliz
da vida quando a saúde é boa e se dispõe de dinheiro
suficiente para compensar as forças em declínio: “A ve
lhice pobre é a maior desgraça que pode existir." Preen
chidas estas duas condições, a velhice “pode constituir uma
fase da vida bastante suportável.” O tempo começa a
passar tão depressa que já não se conhece o tédio. As
paixões se calam, o sangue arrefece; liberto do instinto
sexual, o indivíduo recupera a razão. E então, “ adquiri
mos mais ou menos a convicção da inutilidade de tudo
neste mundo” . A descoberta desta verdade nos confere
uma tranqüilidade intelectual, “ condição e essência da feli
cidade.” “O jovem acredita que poderia conquistar as
maiores maravilhas do mundo contanto que soubesse onde
ir buscá-las; o velho está compenetrado da veracidade da
máxima do Eclesiastes: tudo é vaidade e se acha agora
convencido de que tôdas as nozes são ôcas, mesmo as
mais douradas. Só em idade avançada consegue o homem
atingir plenamente o nil admirari de Horácio; isto é, a
sincera e firme convicção da vaidade de tôdas as coisas
e da inanidade das pompas deste mundo. Basta de qui
meras! Ele está completamente desiludido” . Graças a
esta lucidez, é na idade avançada que o homem tira me
lhor proveito dos valores nêle existentes. Entretanto, quase
todos os indivíduos se tornam autômatos, começam a se
repetir e se esclerosam: é então o caput mortuum da vida,
A decrepitude é benfazeja pois ajuda a suportar a morte.
Depois dos 90 anos, ao invés de morrer de doença, o
indivíduo se extingue sozinho.
Como se vê, Schopenhauer valoriza a velhice em con-
seqüência de seu pessimismo. No seu entender, a desi
lusão que constitui sua essência, lhe confere “ um certo
colorido melancólico” . Mas tem um mérito: nela, o desejo
de viver se acha quase extinto; volta-se à atitude contem
plativa da infância. Sendo a vida uma desgraça e pare
cendo a morte preferível, a velhice, uma semimorte, leva
vantagem sôbre a idade das ilusões. A apreciação de Scho-
penhaeur é inteiramente negativa: “ O fardo da vida é, na
realidade, mais leve que na juventude.”
227
A Senhora Swetchin (72) teceu considerações muito
justas sôbre a velhice. Salientou o contraste entre a dig
nidade da idade provecta e o descrédito que a cerca: “ O
velho é o pontífice do passado, mas isto não o impede de
ser o vidente do futuro” . Entretanto: “ Coisa espantosa! não
é o horror o que a velhice provoca, é o desprêzo.” Ela observa
com muita justeza: “ Não há nada que provoque mais contra
dições no espírito dos homens que a velhice: é um fantasma no
qual a juventude não acredita; um espantalho para a plenitude
viril; no entanto. . . todos a esperam e transigem o quanto
podem com seus inconvenientes.”
Mais ainda: “A juventude não lhe dá a honra de
considerá-la um mal necessário, de aceitá-la como aceita
a morte: chega quase a prometer a si mesma que lhe
haverá de escapar e se jacta de não desejar prolongar a
vida ao preço de tanta ignomínia.”
Reconhece que no plano humano ela constitui uma
terrível provação e dela faz uma descrição horrorizada;
sua crueldade, entretanto, permite uma aproximação com
Deus: “ Se considerarmos o homem natural, a juventude
representa a verdadeira, talvez a única fase b o a ... A re
ligião age em sentido diametralmente oposto ao da na
tureza.” “A velhice, quanto ao mundo exterior, é real
mente uma espécie de cegueira... Deus é o herdeiro de
todos os votos não mais formulados, de todos os impulsos
suprimidos e lhe abre cada vez mais o mundo interior.”
Lamenta que Cristo não tenha santificado esta idade da
vida, atravessando-a.
Existe em Schopenhauer como na Sra. Swetchin, um
esforço no sentido de encarar a velhice dentro de pers
pectivas originais. Mas os velhos chavões são renitentes:
voltam a ser encontrados no rápido ensaio consagrado por
Emerson à velhice. Ideólogo conformista da burguesia
americano, êle leva até o exagero, no fim da vida, o otimis
mo que sempre havia professado: abalado pela guerra
civil, preferiu se desmobilizar e ignorar a terrível época
228
da Reconstrução. Tinha-se convencido de que vivia no
melhor dos mundos, no melhor dos tempos. Enfraquecido,
diminuído, êle gabou os méritos e as doçuras da idade
final. Reconhecia, como Cícero, que “o credo popular
estabelece, não a desonra da velhice mas sim sua condição
extremamente desvantajosa”, e não recua diante de nenhum
argumento para provar o contrário. Evoca os velhos ilus
tres da História, sem se preocupar, aliás, em saber se os
seus últimos anos foram felizes, ou não, pois cita de cam-
bulhada, o Cid, Dandolo, Miguel Ângelo, Galileu etc. O
velho é feliz, diz êle, em primeiro lugar por ter escapado
a inúmeros perigos e disto se regozija. Nada mais se tem
a temer: tem-se a vida tôda atrás de si e nada a poderá
apagar. Compreende-se, assim, que Emerson estava satis
feito com sua posição, com sua fama mas nada o autorizava
a generalizar. Graças a isto, prossegue êle, o sucesso não
significa mais nada. Não há mais necessidade de buscar
uma realização. Pode-se descer impunemente abaixo de
si mesmo. O terceiro argumento reproduz o segundo: o
indivíduo já se manifestou, já deu sua medida, conquistou
o direito de repousar no passado. Está livre de dúvidas
e de inquietação. Aqui, o otimismo de Emerson se aproxi
ma curiosamente do pessimismo de Schopenhauer: quando
velhos, deixamos de agir e até mesmo de pensar, deixamos
de viver e isto representa uma libertação que nos traz a
paz, finalmente, alega a experiência adquirida pelo velho,
endossando desta maneira a idéia tão do agrado da burgue
sia e segundo a qual bastaria o acúmulo de anos para
gerar o conhecimento.
Em 1880, na Alemanha, Jacob Grimm pronunciou um
célebre discurso sobre a velhice, encerrado nestes termos:
“Julgo ter fornecido provas que corroboram a opinião
segundo a qual a velhice não representa uma simples queda
de virilidade mas carrega em si mesma sua própria potên
cia que se expande segundo leis e condições próprias. É
uma fase de paz e de calma jamais até então existentes
e a êste estado devem corresponder efeitos particulares.”
Inspira-se aqui no organicismo em voga na sua época.
Cada idade possui sua própria organização, sua especifi
cidade: o velho não é um adulto mais idoso e desvirilizado;
seu estado não deve ser descrito como uma deficiência,
mas sim de maneira positiva, como um equilíbrio diferente
do indivíduo e de seu relacionamento com o mundo.
230
Parece haver um presságio nestes versos: como um lu
tador, Hugo desafia antecipadamente o tempo e se apre
senta como o vencedor dêste combate. Eviradnus mata
sozinho o imperador da Alemanha e o rei da Polônia, ambos
jovens e lutando juntos contra êle. Acobertado pela lenda,
atribui ao velho qualidades próprias da juventude: con
fere-lhe a força de um gigante, e tanta graça quanta fôrça;
quando Mahaud desperta — havia sido narcotizada por
bandidos que a queriam roubar — êle lhe beija a mão:
“Dormistes bem, senhora?” pergunta.
Nos Miseráveis, cuja parte final Hugo escreveu entre
os 50 e os 60 anos, o avô de Marius é um homem que
se havia mostrado durante tôda a vida extremamente duro
para com os seus. Mas quando imagina o neto morto, des
cobre tôda a extensão de seu amor por êle e fica transfi
gurado pela alegria com que acolhe seu restabelecimento:
“É adorável a graça, quando unida às rugas. Existe uma
aurora indescritível na velhice feliz.” Concorda com o
casamento de Marius e de Cosette. Nesta ocasião, também
Jean Valjean está velho: aos 80 anos, continua, como sempre
foi, trágico e sublime. Tão indomável quanto Eviradnus,
tem íôrças suficientes para transportar nas costas, através
dos esgotos de Paris o corpo inanimado de Marius. Mas sua
fortaleza moral é ainda maior pois se julga no dever de con
fessar a Marius sua condição de antigo grilheta, afastando-
-se pouco a pouco da vida de Cosette, seu único amor. Sua
morte é uma apoteose; êle se vê cercado de amor pelo jovem
casal pois Marius reconheceu nêle o homem que o havia
salvo.
Em Booz Adormecido, Hugo, com 57 anos e sentindo-se
no limiar da velhice, sublimou-a de maneira magnífica:
231
atraente pois Ruth se deita a seus pés, com “ o seio nu” ,
esperando despertar-lhe o desejo.
A Arte de ser Avô constitui um hino à velhice, muito
mais que à infância. Como tornaremos a ver, Hugo a
exalta através de sua própria figura. Mas também descreve
a profunda ligação existente entre o avô e os netos, tão
favorecida pela sociedade da época. Em Os Miseráveis,
êle já havia descrito, cheio de emoção, a dupla formada
por Jean Valjean idoso e pela pequena Cosette: “ Quando
se está velho, tem-se a impressão de ser avô de tôdas as
crianças.” No célebre Jeanne était au pain sec êle salienta
a reciprocidade do entendimento entre a menina e o avô
contra a rigorosa disciplina dos adultos. Ambos se acham
socialmente marginalizados, mas o laço que os une, pensa
êle, é mais profundo. Para os trágicos gregos, a criança e
o velho se assemelham na impotência. A assimilação vai
muito mais além, entre diversos povos primitivos: reúne-se
numa mesma classe de idade a criança recém-chegada do
além e o velho, prestes a voltar para lá. Ambos se encon
tram numa situação de transição que os dispensa de deter
minados tabus. Hugo utiliza uma linguagem diferente para
exprimir uma idéia análoga. É uma jactância a sua preten
são de “haver inventado a criança” : descoberta no século
XVIII, a criança ocupou um lugar muito importante na
literatura e nas artes do século XIX. Mas ninguém antes
dêle soube apontar com tanta felicidade as afinidades entre
a infância e a velhice. No seu entender, existe uma comu
nhão espiritual entre a criança ainda aquém da condição
humana e o velho que já está se elevando acima dela. Não
lhes convém nem a moral nem a mesquinha razão dos
adultos; acham-se todos dois próximos dos mistérios do
mundo, próximos de Deus, por sua ingenuidade e por sua
sabedoria:
232
Como vimos, muitas vezes, o único consôlo dos velhos
camponeses eram os netos, até o momento em que estes
se punham a imitar os adultos. O sucesso de Hugo na
Arte de ser Avô consistiu em conferir a um fato social o
valor e a profundidade do mito.
A dupla velho-criança comovia o público. Foi enorme
o sucesso da Loja de Antiguidades de Dickens. O autor
narra neste livro a peregrinação através da Inglaterra da
pequena Nell e de seu avô, unidos por um profundo afeto.
O juízo do velho se acha enfraquecido pela desgraça, arruí-
na-se no jôgo, rouba Nell para tornar a jogar e premedita
um assalto; entretanto, no meio de tanto desvario, o leitor
se emociona com o amor por êle dedicado a Nell e por esta
retribuído. Quando ela morre, êle passa os dias debruçado
sobre seu túmulo e ali expira. Encontra-se um par seme
lhante no Sans famille de Hector Malot, cuja popularidade
foi também muito grande. Uma criança enjeitada, cortada
da sociedade logo no limiar da existência, acompanha a vida
errante de Vitalis, um cantor outrora famoso, e que se vê
no fim de seus dias decaído e exilado da sociedade.
De um modo geral, a literatura do século XIX se mos
trou muito mais realista ao encarar a velhice. Descreve
velhos pertencentes às classes superiores: nobres, ricos bur
gueses, proprietários de terras, industriais, mas também se
interessa pelos membros das classes exploradas. Ainda é
do agrado da burguesia o laço feudal entre o amo e o ser
vidor: em Madame Bovary e Um Coração Simples, Flaubert
apresenta criadas cuja existência inteira foi uma longa dedi
cação. Na maioria das vêzes, entretanto, os velhos são
considerados assuntos de sua própria história. Em Balzac,
Zola, Dickens, assim como nos romancistas russos, quase
nunca se encontram velhos operários: isto, porém se explica:
é que, na verdade, o proletário não chega a envelhecer.
Mas, como vimos, são numerosos os velhos camponeses.
Os romancistas estudaram também os efeitos da idade nas
diversas categorias sociais: militares, empregados, comer
ciantes etc. Hei de utilizar a abundante documentação por
êles fornecida quando estudar a experiência individual dos
velhos. Este problema foi tratado por vários escritores
idosos do século XIX; falaram de sua própria velhice: são
das mais belas as páginas inspiradas a Chateaubriand pela
233
sua. Estas confidências nos hão de ajudar a compreender
de que maneira as pessoas de idade suportam sua condição.
234
De um modo geral, os progressos da industrialização
acarretaram uma dissolução cada vez mais profunda da cé
lula familiar. O considerável envelhecimento da popula
ção, que se vem verificando há meio século nos países in
dustrializados, obrigou a sociedade a substituir a família,
tendo-se instaurado uma política da velhice que iremos
examinar mais adiante.
Sendo ainda necessárias a experiência e a criatividade,
manteve-se o equilíbrio que se havia estabelecido nas clas
ses dirigentes durante o século XIX. Os grandes movimen
tos políticos, novos e violentos, foram quase sempre diri
gidos por homens jovens: a revolução russa, o fascismo
italiano, o nazismo, a revolução chinesa, a revolução cubana,
a guerra de independência argelina. Os homens de idade
têm ocupado lugares importantes nas sociedades conserva
doras. Muitas vêzes, sua função é meramente representativa:
como a dos presidentes da República, na França (74). Mas
alguns velhos têm representado papéis ativos: Thiers con
tava 76 anos em 1873; Clemenceau assumiu o poder, em
1917, aos 77 anos; Churchill afastou-se aos 81 anos e Ade-
nauer aos 87. Outros envelheceram no poder em países
onde a revolução havia triunfado: Stalin, Mao-Tsé-Tung
Ho Chi Minh. Hoje em dia, nos países em via de desen
volvimento, os dirigentes são em geral jovens: excetua-se
o imperador Hailé Selassié que só conta um ano menos
que de Gaulle. São muitas vêzes idosos, em todos os ou
tros: de Gaulle, Franco, Tito, Salazar (75). Contam, entre
tanto, com a assistência de homens mais jovens: não é muito
elevada, na França, a idade média dos ministros. Em 1968,
a dos deputados era de 55 anos, a dos senadores, 63. No
seio dos partidos como no das nações, o poder está dividido
235
entre os velhos e os homens maduros, pouca influência exer
cendo em geral os jovens.
É preciso assinalar aqui um fato muito significativo e
sobre o qual voltarei com mais vagar: decresceu o pres
tígio da velhice em conseqüência de se achar desacreditada
No entender da sociedade tecnocrática de hoje, o saber não
se acumula com os anos: torna-se, ao contrário, superado.
Com a idade, vem uma desqualificação. Os valores apre
ciados são os que se acham ligados à juventude.
Considerando-se o número de documentos sobre a con
dição atual dos velhos, é apenas secundário o interêsse des
pertado pelos fornecidos pela literatura. São êstes, aliás,
bastante pobres. Proust, cujo tema essencial é a aventura
do tempo perdido e recuperado, falou longamente e com
muita propriedade a respeito da velhice. Constitui, entre
tanto, uma exceção. Em Les Faux-monaijeurs, Gide atribui
ao velho La Pérouse as seguintes palavras: “ Por que motivo
se fala tão raramente dos velhos, nos livros? Talvez seja
porque os velhos já não são capazes de os escrever e os jo
vens não se preocupam com êles. O velho não interessa a
ninguém.” Na verdade, quando encarado em sua subjeti
vidade, o velho não constitui um bom herói para romance;
está acabado, cristalizado; nada tem a esperar, nem a dese
jar; para êle, todos os jogos já estão feitos, e nêle já habita
a morte: e, assim sendo, nada do que lhe possa acontecer
tem importância. Por outro lado, o romancista pode se
identificar com um homem mais jovem pois já atravessou
sua idade mas, do velho, êle só conhece a exterioridade.
De modo que só lhe atribui em geral um papel secundário
e os retratos que dêle faz são muitas vêzes esquemáticos
ou convencionais. O século XX herdou os chavões dos
séculos precedentes. A noção de velhice tem-se enriquecido,
no decorrer do tempo, tanto no plano social, como psico
lógico e biológico. Mas as banalidades se perpetuaram.
Pouco importam as contradições: o seu uso é tão generali
zado, que são repetidos com uma indiferença total. A velhice
é um outono pejado de frutos maduros; é também um
inverno estéril, de que se evoca a gelidez, a neve, as geadas.
É doce como uma bela noite. Mas também lhe atribuem
a sombria tristeza dos crepúsculos. Casas bem juntas a
imagem do “bom velhinho” e a do “ velho birrento” . Existe
236
um mito particularmente desenvolvido hoje em dia: é o
do desligamento próprio da idade avançada. Montherlant,
que sempre aparentou uma atitude desdenhosamente dis
tante com relação às coisas e às pessoas, atribuiu-a ao Rei
de La Reine morte, homem idoso que se vai “lentamente
apartando do humano”, como diz o autor em seu comentá
rio. Vê grandeza na lúcida indiferença de Ferrante:
“ Para mim tudo é retomada, refrão, estribilho. Passo
os dias recomeçando o que já fiz, e recomeçando de maneira
menos perfeita. Para mim, têm hoje o mesmo sabor as
coisas em que fui bem sucedido e aquelas em que fracas
sei. E parecidos demais também me afiguram os homens,
entre s i ... Uma depois da outra, as coisas vão me aban
donando.”
“Afrouxou-se o arco de minha inteligência. Do que
escrevi, pergunto: “ De quem é?” O que havia compreendido,
deixei de compreender. E esqueci o que havia aprendido.
Morro, e me parece que tudo está por fazer e que me en
contro no mesmo ponto em que estava aos vinte anos.
“Também me devo empenhar em fazer crer que ainda
sinto alguma coisa, embora já não sinta mais nada. O mun
do me toca apenas de leve.”
“Na minha idade já não se tem gôsto em cuidar dos
outros. Só existe um imenso: “ Que me importa!” que, para
mim, recobre o mundo.”
O principal personagem do romance de Vailland, A Lei,
é um homem de 72 anos, Dom Cesaro, rico e respeitado
proprietário. Lê muito, possui objetos antigos, escreve a
história de uma antiga cidade grega, localizada outrora na
região da Itália onde vive. Gozando de excelente saúde, é
ainda o melhor caçador da redondeza e grande mulherengo:
desvirginou quase todas as môças da aldeia e vive cercado
de mulheres, uma das quais dorme em seu leito. Mas já
aprendeu há muito tempo a se desinteressar. Já não se di
verte atormentando os herdeiros pois conhece o ilimitado
servilismo humano. Sua vida é aparentemente a mesma de
sempre. Dorme ao lado de Elvira mas não lhe fala e rara
mente a toca. Caça, mas “ seu olhar nem sequer se ilumina” .
Fala, mas “ suas palavras ressoam num mundo sem eco” .
Ainda contempla suas antiguidades mas já não faz anotações.
Está sem amor, sem ódio, sem desejo, e se sente parecido
237
com aqueles “ desocupados” que passam o dia de braços
cruzados na praça da aldeia. Tudo leva a crer que, embora
ainda jovem, Vailland já começava a experimentar em si
mesmo aquele “ desinteresse” que se lhe afigura o indício
da “ qualidade” de um indivíduo.
Não se pode deixar de salientar a importância atri
buída à velhice no chamado “teatro do absurdo” . Em Les
Cliaises de Ionesco, vemos um velho casal encerrado na
recordação — engrandecida e delirante — do passado que
buscam ressurgir. Oferecem uma recepção a que ninguém
comparece, acolhem convidados invisíveis, os fazem sentar,
circulam entre êles e contra eles esbarram enquanto o palco
se enche de cadeiras desocupadas; o que parece derrisório,
através de sua aberração, é a própria realidade que evocam
— brilhantes noitadas, reuniões mundanas. Acabam final
mente por se atirar, pela janela, quando ao perder a signifi
cação, a vida lhes revela que jamais havia tido um sentido.
Encontra-se em Beckett uma contestação análoga da
existência através de sua lamentável degradação final. O
velho casal, que, em Fim de Jôgo, busca nas latas de lixo
uma evocação da felicidade e do amor passados, constitui
uma condenação do amor e da felicidade. Em La Dernière
Bande e em Ah! les beaux jours!, o tema, cruelmente tra
tado, é o esfacelamento da memória, e, por conseguinte, de
tôda a vida que ficou para trás. As recordações aparecem
em desordem, mutiladas, arruinadas e como que estranhas.
Como se cada houvesse acontecido e deste vazio emergiu
o momento presente, como uma vegetação corrompida. A
suprema irrisão está no fato de que, no meio de tôda esta
decepção, as criaturas se aferram ao mito segundo o qual
envelhecer é adquirir conhecimento, é progredir. Na ver
dade, envelhecer é: “Descambar docemente para a vida
eterna recordando. . . tôda esta mesquinha desgraça. . . como
s e ... ela jamais houvesse existido” ( 76).
Em Molloy, o herói, já idoso no início do romance, vai
se degradando continuamente; as pernas estão paralisadas,
perde metade dos dedos dos pés. A princípio, não obstante
estas deficiências, êle ainda consegue andar de bicicleta;
235
até isto se lhe torna impossível, e êle se arrasta a pé, apoian
do-se em muletas; acaba reduzido a ter de rastejar. Durante
esta decomposição, entretém-se sobretudo em evocar recor
dações: mas estas se esfacelam, são nebulosas, inconsistentes,
e, sem dúvida, falseadas. A vida consiste unicamente na
memória que dela conservamos e a memória não é nada.
Este nada consome tempo, o tempo corre sem ir para lugar
nenhum; estamos constantemente em movimento e, nesta
jornada sem destino, permanecemos imóveis. Ã luz da ve
lhice, descobrimos esta verdade da vida que, no fundo, não
passa de uma velhice coberta de ouropéis. Em Ionesco e
em Beckett, a velhice não surge como o limite extremo da
condição humana mas, como no Rei Lear, ela é esta pró
pria condição finalmente desmascarada. Eles não se in
teressam pelos velhos em si mesmos: utilizam-nos como
recursos para exprimir sua concepção do homem.
23.9
Eram, por vezes, detentores de um poder real; outras vezes,
desempenhavam o papel atribuído em certos cálculos aos
números imaginários: indispensáveis ao bom andamento das
operações, eles são eliminados assim que se chega ao resul
tado. A velhice foi poderosa na China hierárquica e repe
titiva; em Esparta e nas oligarquias gregas; em Roma até o
século II a .C . Não teve nenhuma participação política nos
períodos de mudanças, de expansão, de revolução. Nas épocas
em que a propriedade foi institucionalizada, a classe domi
nante respeitou os proprietários alienados a sua propriedade;
a idade não constituía desqualificação; acumulando no de
correr da existência bens imóveis, mercadorias ou dinheiro,
os velhos, em sua qualidade de homens ricos pesavam muito
na vida pública e na vida privada.
A ideologia da classe dominante visa justificar suas
condutas. Quando é governada ou influenciada por pessoas
idosas, ela valoriza a idade avançada. Filósofos e ensaístas
ligaram a noção de velhice à de virtude e enalteceram a
experiência por ela conferida. A velhice seria o duplo co-
roamento da vida: termina-a e constitui sua suprema realiza
ção. Aquêle que acumula anos e anos de vida é o vivente
por excelência; representaria de certa forma uma concen
tração de ser. A velhice será portanto honrada nesta quali
dade. A idade representa uma qualificação para o acesso a
certos títulos e dignidades. O sentido de certos jubileus, tão
freqüentes sobretudo na Alemanha, é prestar uma homena
gem à velhice: o 70.° o 80.° aniversário de um músico ou
de um filósofo dão ensejo a festividades solenes.
Todavia, mesmo quando em benefício da ordem social,
os jovens se vêem compelidos a reconhecer a autoridade
política ou econômica da geração mais velha, êles a supor
tam muitas vêzes com impaciência. Sensíveis a uma deca
dência física que temem para si mesmos, os jovens investem
contra os velhos e os ridicularizam ( 78). Ao mito do velho
imponente, enriquecido pelo número de anos, contrapõe-se
o do velho apequenado, ressequido, encolhido como Titon
e a sibila de Tibur. Esvaziado de sua substância, é êle um
homem diminuído e mutilado.
240
Por outro lado, embora se tenha silenciado a seu res
peito, a condição dos velhos explorados influenciou pro
fundamente a concepção dos privilegiados. Não dispomos
de dados seguros sôbre êste ponto. Parecem ter sido muito
pouco numerosos na Idade Média e até o século XVIII: os
trabalhadores morriam jovens, tanto nos campos como nas
cidades. Os que conseguiam sobreviver constituíam encar
gos para as famílias, geralmente pobres demais para susten
tá-los; recorriam à caridade pública, à dos castelos e dos
conventos. Em determinadas épocas, até estes recursos lhes
foram negados: seu destino foi particularmente penoso no
momento em que o capitalismo nasceu, na Inglaterra puri
tana, e no século XIX, durante a revolução industrial. A
sociedade nunca os explorou diretamente, pois não tinham
força de trabalho para vender, mas isto não os livrou da
exploração. Durante sua juventude e sua maturidade, as
classes dominantes só lhes haviam concedido o estritamente
necessário para a reprodução de suas vidas: quando gastos
pelo trabalho, eram abandonados, de mãos vazias.
Inúteis e incômodos, sua sorte não diferia da que lhes
era reservada nas sociedades primitivas. Dependia essencial
mente da família. Por afeição ou por receio da opinião
dos outros, algumas os tratavam de maneira solícita ou, pelo
menos, corretamente. Mas em geral, descuidavam-se deles,
abandonavam-nos em asilos, expulsavam-nos e chegavam a
eliminá-los clandestinamente.
A classe dominante presenciava estes dramas com indi
ferença: sempre foram derrisórios os esforços por ela esbo
çados no sentido de socorrer os velhos pobres. Êstes se
tornam numerosos, a partir do século XIX, e não foi pos
sível continuar a ignorá-los. Ela foi obrigada a desvalori
zá-los, para justificar sua selvagem indiferença. Ainda mais
que o conflito de gerações, foi a luta de classes quem con
feriu ambivalência à noção de velhice.
16 241
CAPÍTULO IV
A VELHICE
NA SOCIEDADE ATUAL
242
nica de todos os fins humanos.” ^ ) Diz Sartre: a recipro
cidade implica, l.° que o Outro seja o meio de um fim trans
cendente; 2.°, que eu o reconheça como praxis ao tempo em
que o integro como objeto ao meu projeto totalizador; 3.°,
que eu reconheça seu movimento em direção a seus fins
no movimento pelo qual eu me projeto em direção aos
meus; 4.°, que eu me descubra como objeto e instrumento
de seus fins pelo próprio ato que o constitui para meus fins
como instrumento objetivo. Nesta relação cada um rouba
ao outro um aspecto do real e lhe indica seus limites: o
intelectual se reconhece como tal em face do trabalhador
manual.
A reciprocidade exige essencialmente que a partir de
minha dimensão teleológica, eu aprenda a do outro. Quando,
em casos patológicos de despersonalização, o doente não
tem mais laços com seus próprios fins, os homens lhe apa
recem como sendo representantes de uma espécie estranha.
É o oposto que se passa no caso do relacionamento do
adulto com o velho. O velho, com algumas exceções, não
faz mais nada. Define-se por uma exis e não por uma praxis.
O tempo o leva para um fim — a morte — que não é o
seu fim, nem é proposto por algum projeto. Surge, por isto,
diante dos indivíduos ativos, como uma “ espécie estranha”
na qual êles não se reconhecem. Afirmei que a velhice
inspira uma repugnância biológica; rejeitamo-la para longe
de nós, por uma espécie de autodefesa: mas esta exclusão
só se torna possível porque a cumplicidade de princípio com
todo empreendimento já não atua no seu caso.
Existe simetria, até certo ponto, entre esta condição
do velho e a da criança com a qual o adulto também não
estabelece reciprocidade. Não é por acaso que as famílias
fazem referência a uma criança “ extraordinária para sua
idade” assim como a velhos “extraordinários para sua idade” :
o extraordinário é o fato de terem êles condutas humanas
não sendo ainda, ou já não sendo mais homens. Como vimos,
várias comunidades primitivas os englobam na mesma cate
goria de idade e, no curso da História, a atitude dos adultos
tem sido geralmente análoga com relação aos dois. Acon-
244
êle se vê obrigado a dar assistência aos velhos pais, pretende
governá-los como melhor lhe parece: e quanto mais incapa
zes de se dirigirem sozinhos êle os julgar, menos escrúpulos
terá.
É sorrateira a maneira pela qual o adulto tiraniza o
velho que se acha na sua dependência. Não se atreve a
lhe dar ordens abertamente pois êle não lhe deve obediência:
evita atacá-lo de frente, manobra-o. Alega estar agindo
em seu interêsse, evidentemente, e conta com a cumplicidade
de tôda a família. Desgasta-se a resistência do avô cumulan
do-o de atenções que o paralisam, tratam-no com irônica
benevolência, dirigem-se a êle como se fôsse curto de inte
ligência, chegando-se ao ponto de trocar olhadelas cúmplices
às suas escondidas, além das palavras ferinas de vez em
quando proferidas. Quando falham as astúcias e a persuasão,
não se hesita em recorrer a mentiras ou a forçá-lo a ceder
de maneira drástica. Tratam, por exemplo, de convencê-lo
a entrar provisoriamente para um asilo e aí o abandonam.
A mulher e o adolescente economicamente dependentes de
um homem adulto têm mais defesas que o velho: a esposa
presta serviços, tanto na cama como no lar; o adolescente
se tornará homem e poderá exigir uma prestação de contas;
ao velho só resta descambar para a decrepitude e para a
morte: não serve para nada. Mero objeto incômodo e inútil,
o que todos desejam é ter o direito de tratá-lo como uma
quantidade desprezível.
Os interêsses em jôgo nesta luta não são apenas de
ordem prática mas também de ordem moral: pretende-se
obrigar os velhos a se conformarem com a imagem dêles
formada pela sociedade. São-lhes impostas restrições em
questões de vestuário, decência de maneiras, respeito pelas
aparências. A repressão se exerce sobretudo no domínio
sexual. Em O Adolescente, quando o velho Príncipe Sokolski
pensa em tornar a se casar, a família inteira faz um cêrco
em tôrno dêle não somente por questões de interêsse, mas
também por se sentir escandalizada pela idéia em si. Amea
çam colocá-lo num hospital de alienados; acabam seqües-
trando-o e êle morre. Conheci dramas parecidos em famílias
burguesas dêste século.
As filhas muitas vêzes experimentam ressentimento con
tra as mães e sua atitude se assemelha à dos filhos para
com os pais. As afeições menos ambivalentes são as do
filho para com a mãe e as da filha para com o pai. Sen
tem-se capazes de se dedicar a ele, quando o ascendente
querido envelhece. Se forem casados, entretanto, a influên
cia do cônjuge muitas vêzes limita sua generosidade.
Quando o adulto não se acha ligado a êle por laços
pessoais, o velho suscita um desprezo mesclado de repug
nância: vimos de que maneira os autores cômicos têm ex
plorado êste sentimento no decorrer dos séculos. Surgindo
o homem idoso aos olhos do jovem como sua caricatura
êste se diverte caricaturando-o, com o objetivo de eliminar
qualquer tipo de solidariedade, através do riso. Nesta der-
risão chega a entrar, às vêzes, uma certa dose de sadismo.
Senti-me embaraçada quando vi, no Bowery, o célebre
cabaré onde cantam e dançam horríveis octogenárias er
guendo as saias. O público ria a bandeiras despregadas:
que significaria exatamente aquela hilaridade?
Atualmente, os adultos se interessam pelos velhos de
maneira diferente: constituem um objeto de exploração.
Principalmente nos Estados Unidos, mas também na França,
proliferam as clínicas, sanatórios, residências e até cidades
e aldeias onde as pessoas idosas que possuem recursos para
tanto são forçadas a pagar o mais caro possível por um
conforto e por cuidados que, muitas vêzes, estão longe de
ser satisfatórios.
246
como êle próprio: solidariza-se, portanto, com elas. Na
Tchecoslováquia, a partir de janeiro de 1968, os jovens lan
çaram uma campanha indignada em favor da velhice. A
gerontofilia manifestada por certas moças se explica por
uma fixação da imagem do avô. Esta gerontofilia não
existe nos rapazes: salvo em casos patológicos, em sua
parceira sexual eles buscam muitas vezes a figura materna,
mas não a da avó. Entretanto, quando os avós representam
um encargo para a família, os jovens consideram injustos
os sacrifícios que lhes são impostos para prolongar sua exis
tência. No cruel mas encantador filme espanhol, o Cochecito,
a môça esperava com impaciência a morte do avô: cobiçava
o quarto por êle ocupado. Êste rancor muitas vêzes se
estende a todos os velhos. Os jovens lhes invejam os privi
légios econômicos ou sociais; consideram soada a hora de
pô-los de lado. Menos hipócritas que os adultos, êles expri
mem sua hostilidade com maior franqueza.
Muitas crianças adoram seus avós ( 3) e são ensinadas a
respeitar os velhos. Todavia, quando pertencem às classes
inferiores, a tendência da criança é zombar deles: vinga-se,
na pessoa deste adulto decaído, enfraquecido e bizarro, da
opressão sôbre ela exercida pelo universo dos adultos. Lem
bro-me bem da maneira como em La Grillère, tanto minha
irmã como eu acompanhávamos as zombarias que meus pri
mos não poupavam a seus velhos preceptores: devido a
sua inferioridade social, os adultos se mostravam indulgentes
para com nosso procedimento. Vian não se afastou muito
da verdade quando imaginou, em L ’Arrache-coeur, uma feira
de velhos: os velhos pobres aí são vendidos em liquidação
e os pais os oferecem às crianças para que com êles se
divirtam.
248
caso da Alemanha Oriental, esvaziada de boa parte de seus
elementos jovens durante os últimos vinte anos, por uma
pesada emigração, o envelhecimento da população se revela
mais acentuado na França e na Suécia. Suas causas são as
mesmas em tôda a parte: diminuição da mortalidade infan
til e diminuição da natalidade. A mortalidade infantil pas
sou em um século de 40% para 2,2%. Êste fato elevou as
probabilidades de vida, na França, a 68 anos para os homens
e a 75 para as mulheres; nos Estados Unidos, a 71 para o
homem e 77 para a mulher. Na realidade, chegando à idade
adulta, o futuro que se estende diante do homem atualmente
não é muito mais extenso que o de seus avós: um francês
de 50 anos podia esperar mais 78 anos de vida em 1805 e
22, agora. O envelhecimento da população não implica,
portanto, um apreciável recuo do limite da vida, mas sim
um considerável aumento na proporção de pessoas idosas.
Esta alteração se produziu em detrimento da proporção de
jovens, tendo permanecido mais ou menos inalterada a dos
adultos. Tudo se passou, diz Sauvy, como se a população
tivesse oscilado em torno de um eixo central tendo sido os
jovens substituídos pelos velhos. Êste fenômeno pode ser
observado em quase todos os países ocidentais e se con
juga com um crescimento absoluto das populações (salvo
na Irlanda, que se despovoou).
Os países subdesenvolvidos, são, pelo contrário, países
jovens. O índice de mortalidade infantil permanece muito
elevado, em muitos deles; mesmo naqueles em que é redu
zida a subnutrição, a insuficiência de assistência médica, as
condições materiais, geralmente, constituem obstáculos para
a longevidade. Em alguns países, metade da população
conta menos de 18 anos de idade. Nas Índias, há, 3,6% de
velhos; cêrca de 2,45% no Brasil e 1,46% no Togo.
O envelhecimento da população suscita um nôvo pro
blema para as democracias capitalistas. É “ o monte Eve-
rest dos problemas sociais atuais” , afirmou um ministro
inglês da Saúde, Ian Mac Leod. As pessoas idosas não são
somente muito mais numerosas que antigamente: elas se
integram também mais espontâneamente à sociedade; esta
se vê obrigada a decidir a respeito de seu estatuto e esta
decisão só pode ser tomada em nível governamental. A ve
lhice se tornou objeto de uma política.
Com efeito, na sociedade antiga, composta essencial
mente de camponeses e de artesãos, existia uma exata coin
cidência entre a profissão e a existência; o trabalhador vivia
em seu local de trabalho; confundiam-se as tarefas domés
ticas e as tarefas produtivas. Entre os artesãos altamente
qualificados, a capacidade crescia com a experiência e, por
tanto, com os anos. Nas profissões em que ela declinava
com a idade, havia uma divisão de trabalho que permitia
adaptar as tarefas às possibilidades de cada um. Ao se tornar
inteiramente incapaz, o velho continuava a viver no seio
da família que lhe assegurava a subsistência. Nem sempre,
como vimos, sua sorte foi muito invejável. Mas a coletivi
dade não precisava se preocupar com êles.
Hoje em dia, o operário mora num lugar e trabalha
noutro, em condições puramente individuais. A família
nada tem a ver com sua atividade produtora. Reduz-se a
um ou dois casais de adultos, carregados do filho ainda in-
pazes de ganhar sua subsistência; não podem, com seus
magros recursos, sustentar os velhos pais. Contudo, o
trabalhador atual se vê condenado à inatividade muito mais
cedo que o de outrora: a tarefa em que se especializou
permanece a mesma durante tôda a sua vida e não se adapta
às possibilidades de todas as idades.
Como já disse, no fim do século XIX, o velho operário
privado do emprego era dramàticamente entregue a seu
próprio destino. As coletividades se viram na contingência
de enfrentar o problema. Mas não o fizeram sem relutância.
Concebeu-se, a princípio, a pensão como uma recom
pensa. Já em 1796, Tom Paine sugeria que se recompensas
sem os trabalhadores de 50 anos com uma pensão. Na Bél
gica e na Holanda, os setores públicos concederam pensões
desde 1844. Na França, durante o século XIX, os militares
e os funcionários também foram os primeiros a receber
pensões; o Segundo Império estendeu-as em seguida aos
mineiros, aos marinheiros, aos que trabalhavam nos arse
nais, aos ferroviários. Eram considerados recompensas por
longos períodos de leais serviços prestados em profissões
perigosas. Duas condições presidiam à sua atribuição de
maneira organizada e habitual: longos anos de serviço e
uma idade determinada.
250
A Alemanha presenciou no fim do século XIX uma
rápida ascensão do capitalismo e uma considerável expan
são industrial; a agitação socialista se avolumou paralela
mente e se fortificou. Bismarck compreendeu a necessidade
de garantir ao proletariado um mínimo de segurança, para
contê-lo. Entre 1883 e 1889, êle criou o sistema de seguros
sociais completado e ampliado entre 1890 e 1910. Essencial
mente destinado a fazer face aos riscos de acidentes de tra
balho, este sistema também protegia os assalariados contra
a invalidez da velhice. Cobravam-se cotas tanto dos em
pregadores quanto dos operários, entrando o Estado even
tualmente com uma subvenção. Êste tipo de regime estabe
leceu-se em seguida no Luxemburgo, na Romênia, na Suécia,
na Áustria, na Hungria, na Noruega. Existe outra concepção
da aposentadoria: a proteção aos assalariados é financiada
pelo imposto. Êste regime prevaleceu na Dinamarca em
1891, na Nova Zelândia em 1898, esboçou-se no Reino Unido
em 1908 e aí foi adotado em 1925. Na França, permaneceu
parcialmente inaplicada a lei de 5 de abril de 1910 sôbre as
aposentadorias tanto de operários como de camponeses: a
jurisprudência não se sentiu com forças para obrigar assa
lariados e patrões a pagarem as respectivas cotas. A lei de
5 de abril de 1928, alterada pela de 30 de abril de 1930,
constituiu o primeiro esforço realmente sério no sentido de
garantir uma aposentadoria para os velhos trabalhadores.
Era um regime híbrido de capitalização e de divisão. Em
1933, quando a C. I. T. adotou as convenções de números
35 a 40 sôbre as aposentadorias de velhos, já havia vinte
e oito países, seis dos quais fora da Europa, que haviam
criado regimes de pensões. No dia 14 de maio de 1941,
na França, foi concedido por lei um abono especial aos
trabalhadores mais desfavorecidos. O seguro-velhice foi
organizado pelo decreto de 19 de outubro de 1945.
A pensão foi, a princípio, concedida aos assalariados
das empresas comerciais e industriais; deveria ter sido es
tendida a tôda a população mas êste projeto abortou em
conseqüência da oposição das classes médias não assalaria
das. Em 1956 criou-se um Fundo Nacional de Solidarie
dade e atualmente 80% dos Franceses recebem aposenta
dorias. Em 1964, dos 112 Estados-membros da C. I. T.,
68 haviam adotado regimes de aposentadorias. Um regime
251
nacional de seguro social revela-se, geralmente, demasia
damente oneroso para os países em via de desenvolvimento.
A Irlanda não tem seguro social; apenas assistência.
O Estado determina a idade em que o trabalhador tem
direito à aposentadoria e que é também a mesma escolhida
pelos empregadores, públicos e privados, para dispensar
seu pessoal: a idade em que o indivíduo passa da categoria
de ativo para a de inativo. Em que momento sobrevem
esta alteração? Qual o montante dos pagamentos efetua
dos? Para decidir estas questões, a sociedade deve levar
em conta dois fatores: seu próprio interesse e o interesse
dos pensionistas.
Há três nações capitalistas que consideram imprescin
dível assegurar a todos os cidadãos um destino decente: a
Suécia, a Dinamarca e a Noruega. Sendo pouco povoados,
a vida política aí se desenvolve sem grandes conflitos e,
em pleno regime capitalista liberal, nêles se construiu uma
espécie de socialismo. A fim de garantir para todos uma
proteção tão completa quanto possível, pesam severos im
postos sobre os rendimentos muito altos e sobre os artigos
de luxo. As pessoas de idade são beneficiadas por estas
disposições, sobretudo na Suécia onde os velhos represen
tam 12% da população e onde a média de vida é a mais
elevada da Europa: 76 anos. A primeira legislação sôbre
a velhice data apenas de 1930, mas o sistema de seguros
cobre atualmente toda a população e se acha em constante
aprimoramento. Sejam quais forem os seus recursos, todo
cidadão recebe uma pensão a partir dos 67 anos, idade
limite para a aposentadoria. O mínimo fixado como base
é de 4 595 K .S . (5), por pessoa sozinha, e de 7150 por
casal. Em 1960 começou a vigorar um regime de pensões
suplementares: ao todo, o aposentado recebe dois terços
de seu salário médio anual, calculado sôbre os quinze anos
de sua vida em que foi melhor remunerado. Os funcioná
rios e militares de carreira deixam a atividade aos 65 anos.
Alguns outros trabalhadores as interrompem na mesma oca
sião, sendo amparados durante dois anos por seguros par
ticulares. Mas, em geral preferem exercer até o fim sua
(5) 1 K .S = 0,96 F.
252
profissão, visto que as tarefas são adaptadas às diferentes
idades e nunca exigem um esforço excessivo. A situação
é análoga na Noruega, onde a idade limite é 70 anos e na
Dinamarca, onde é de 65 a 67 anos para os homens e de
60 a 62 para as mulheres.
Nos outros países capitalistas a situação é inteiramente
diferente. Neles se leva em conta quase exclusivamente
o interesse da economia, isto é, do capital, e não o dos
indivíduos. Eliminados muito depressa do mercado de
trabalho, os aposentados constituem um encargo que as so
ciedades baseadas no lucro assumem de maneira mesqui
nha. A solução mais correta seria permitir aos trabalhadores
que continuassem ativos enquanto pudessem, garantindo-lhes,
em seguida, uma existência decente. Aposentá-los cedo,
assegurando-lhes um nível de vida satisfatório, também seria
uma opção válida. Mas as democracias burguesas, quando
tiram ao indivíduo a possibilidade de trabalhar, condenam
a maioria deles à miséria. Particularmente na França, é
escandalosa a política adotada com relação à velhice. Após
o término da guerra, fêz-se um esforço para incentivar a
natalidade e boa parte do orçamento nacional foi consagrado
aos auxílios-família: a velhice foi descurada. O governo
se deu conta da situação e criou no dia 8 de abril de 1960
uma Comissão para estudar os problemas da velhice, sob a
presidência de Laroque que publicou um relatório sobre
a questão, sem nenhum resultado.
A idade da aposentadoria é 65 anos, para os dois sexos,
na Bélgica, na Alemanha Ocidental, no Luxemburgo e nos
Países-Baixos. Na Áustria, assim como no Reino Unido e
na Grécia é de 65 anos para os homens e 60 para as mu
lheres. O limite é, geralmente, inferior para os mineiros
e, também freqüentemente, no exército, na polícia, na aviação
civil, nos transportes e no ensino primário. Na França, a
aposentadoria é concedida aos 55 anos para os policiais e
professores primários que podem recuá-la até os 60 anos, se
o desejarem: aos 60 anos, para um grande número de fun
cionários, particularmente, para os que se dedicam ao ensi
no; aos 65, para alguns outros, como, por exemplo, os fun
cionários da Prefeitura do Sena. Em muitas empresas par
ticulares o regulamento interno estabelece a aposentadoria
aos 65 anos; algumas poucas — 3% contra 97% — a con
253
cedem aos 60 anos. Não existe por vezes regulamento algum:
e as saídas se situam por volta dos 65 anos.
Certos regimes de assistência pressupõem que a velhice
equivale a uma invalidez e a aposentadoria a um auxílio
concedido a necessitados: é então interdito ao aposentado
qualquer tipo de trabalho remunerado. Na Bélgica, até
1968, êle só podia trabalhar mediante remuneração durante
60 horas por mês, sendo-lhe concedidas atualmente 90.
Outros países consideram que a coletividade tem o dever
de se encarregar dos velhos trabalhadores. A acumulação
pensão-trabalho é autorizada sem restrições na França, na
Alemanha, no Luxemburgo, nos Países-Baixos e na Suíça
e os aposentados se valem desta tolerância, sempre que
lhes é possível. Um inquérito realizado na França pelo
Instituto Nacional de Estudos Demográficos, abrangendo
2 500 pessoas, revelou que 29% delas trabalhavam em média
durante 25 horas por semana, por vêzes, num setor relacio
nado com aquêle em que haviam exercido sua atividade:
professores dando aulas; fiscais de rendas se tornando con
selheiros financeiros em caráter particular. Calcula-se que
atualmente, para fazer face a tôdas as suas necessidades,
mais de um terço das pessoas de mais de 60 anos, um quarto
das de mais de 65 continuam a exercer trabalhos avulsos,
sobretudo as mulheres: dedicam-se a trabalhos domésticos,
com remuneração inferior às tarefas sindicais.
Em conjunto, verifica-se, de meio século para cá, uma
redução da mão-de-obra idosa. O número de trabalhadores
idosos diminuiu entre 1931 e 1951, enquanto a proporção
de velhos aumentava em tôda parte. Na França — um
dos países onde seu índice é mais elevado — reduziu-se, no
conjunto da população idosa de 59,4% para 36,1%; na Itália,
de 72% passou a 33%; na Suíça, de 62,%, para 50,7%.
É verdade que o número de septuagenários e de octogená
rios é atualmente superior ao de outrora. Mas, mesmo
quando consideramos o grupo de idade que vai dos 65 aos
69 anos, observamos uma diminuição na proporção de tra
balhadores. Encontram-se velhos ativos entre os agriculto
res, os chefes de estabelecimentos, os pequenos empresários
os artesãos e trabalhadores independentes; entre as mu
lheres, na agricultura, no pessoal doméstico, nos serviços
de saúde, no comércio. Mas, no setor industrial, a idade
254
acarreta uma desvalorização tanto entre os operários quanto
entre os empregados categorizados.
A priori, os empregadores se acautelam contra as pes
soas de idade: êste fato se torna insofismável quando se
examinam as ofertas de empregos. Em quase todos os
países, o limite de idade estipulado oscila entre os 40 e os
45 anos. Nos Estados Unidos, a legislação de 23 Estados
interdiz qualquer discriminação de idade, porém os em
pregadores fornecem instruções oficiosas às agências de
emprego e estas as levam em conta. Segundo um inquérito
realizado em Nova Iorque em 1953, 94 agências viam no
candidato idoso seu pior inimigo: “ Êle fala demais, nada
lhe convém, é esclerosado, não tem disciplina nem autocon
trole.” Segundo outro inquérito realizado, em 1963, em
oito grandes cidades americanas, um quinto das agências
estabelecia 35 anos como limite de idade e um têrço o
levava aos 45 anos. Na Bélgica e na Áustria, há serviços
públicos onde o recrutamento só se opera abaixo dos 40
anos. No Reino Unido, 50% das ofertas de emprego rece
bidas pelos escritórios de colocação estipulam: abaixo de
40 anos. Na França, em 41 000 oferecimentos de emprego
estudados no decorrer de um inquérito, 30% eram endere
çados a pessoas de menos de 40 anos, 40% às de 20 a 29,
30% às de 50 a 65 anos. Nos jornais americanos, 97% dos
anúncios fixam o limite de 40 anos. Na França, segundo
outro inquérito, 88% dos anúncios impunham uma idade
inferior a 40 anos, tendo-se encontrado a mesma cláusula
em 80% dos casos, na Bélgica. Esta discriminação se observa
quase em tôda a parte mesmo em períodos de emprego
total. Evidentemente, quando há fusão de duas firmas
ou quando por uma razão qualquer uma empresa reduz
seu pessoal os despedidos são os engenheiros, os empregados
qualificados, e todos os de mais de 40 anos. Quanto mais
vastas as empresas e mais acelerado o seu ritmo de trabalho,
mais racionalizadas e normalizadas e mais impacientes em
eliminar as pessoas de idade. As fábricas localizadas em
regiões rurais conservam sua mão-de-obra durante mais
tempo que as dos centros industriais urbanos. As mulheres
de idade são ainda mais prejudicadas que os homens por
esta discriminação, embora seja superior sua probabilidade
de sobrevivência. Êste fenômeno, aliás, não é nôvo. Em
1900, uma mulher de 45 anos e um homem de 50 tinham
grande dificuldade em encontrar trabalho. Em 1930, tanto
em Nova Iorque como no conjunto dos Estados Unidos,
25% a 40% das emprêsas só admitiam empregados abaixo
de uma certa idade; em 1948, 39% das emprêsas ainda agiam
da mesma forma. O fato é muito generalizado.
Por conseguinte, bem antes da aposentadoria muitas
pessoas de idade se acham desempregadas. Em períodos
de crise, quando aumenta o número total de desempregados,
decresce o índice de desempregados idosos, crescendo nas
épocas de emprego total; os operários idosos são as vítimas
do desemprêgo residual. E uma vez dispensados, não mais
conseguem colocar-se. Segundo um relatório da O .I.T .
de 1955, na Bélgica e no Reino Unido, os desempregados
cuja situação assim se mantinha há vinte e quatro meses
tinham, em média, 50 anos. Não existe obrigatoriamente
nenhum laço entre a importância do desemprêgo e as apti
dões. Os mais atingidos são os simples operários e os O.S.,
mas a modernização dos instrumentos de trabalho tem
acarretado a supressão de postos altamente qualificados.
Os jovens absorvem todos os serviços de escritório, dei
xando para os homens de idade as tarefas mais penosas
e malsãs, sendo estes obrigados a moderarem suas preten
sões a respeito de salários, natureza e condições de trabalho.
Não conseguem, por vêzes, conformar-se imediatamente com
isto de modo que, quando chegam a aceitar a situação,
encontram-se econômica, social e moralmente diminuídos.
Quais são as razões alegadas pelos empregadores? Serão
elas válidas? Numerosos inquéritos têm buscado responder
a estas perguntas.
Na França, Fernand Boverat estudou 250 emprêsas,
englobando 68 700 operários. Segundo a maioria dos em
pregadores, a idade provoca uma diminuição do vigor mus
cular e da acuidade visual e auditiva: outros, em menor
número, assinalaram habilidade reduzida, menor resistência
ao cansaço, ao frio, ao calor, à humidade, ao ruído, à tre
pidação. Segundo um inquérito empreendido pela I . F . O . P .
em 1961, os empregadores consideram que os operários
começam a “ sentir a idade” , aos 50 anos; sua eficiência se
vê em boa parte reduzida pois já não sabem adaptar-se a
256
situações novas e já não são dotados da mesma fôrça e
rapidez. Êstes defeitos não são compensados pela experiên
cia, pelas qualificações ou pela consciência profissional, su
periores, entretanto, às dos jovens. Na mulher, a capacidade
declina mais depressa que no homem. A idade de envelhe
cimento varia com as profissões: os mineiros são os que
envelhecem mais depressa: entre os 46 e os 47 anos; a velhice
dos contabilistas é a mais tardia: chega por volta dos 60
anos. Os chefes de serviço idosos são menos dinâmicos que
os jovens. Em todas as profissões, os trabalhadores idosos
carecem de interêsse pelas novidades; a rotina prejudica
seu rendimento.
Segundo os inquéritos inglêses, o rendimento dos ope
rários é o mesmo e êles sofrem menos acidentes depois dos
50 anos. Tendo porém ultrapassado os 65 anos, 25% dos
homens (e depois dos 60, 40% das mulheres) padecem de
condições patológicas que lhes afetam a mobilidade (me
tade deles em conseqiiência de moléstias cardiovasculares).
Um inquérito recente, na Grã-Bretanha, revelou que 85%
dos aposentados de 65 anos ou mais se achavam de fato
incapacitados para o trabalho, mesmo os que afirmavam
o contrário.
Um seminário realizado em dezembro de 1966, em
Heidelberg, chegou a conclusões análogas. Um dos relatores
declarou ter aumentado recentemente, a proporção de tra
balhadores idosos incapazes de produzir o mesmo rendi
mento ou de efetuar o mesmo trabalho que outrora.
Êste ponto, todavia, tem sido freqüentemente contro
vertido. Não existe diferença muito acentuada entre as
possibilidades de um homem de 60 anos e as de um de 50.
A fôrça muscular chega ao máximo aos 27 anos; aos 60,
está 16,5% reduzida, isto é, só perdeu 7% com relação às
pessoas de 48 a 52 anos. Quanto à habilidade manual,
pouco varia dos 15 aos 50 anos. Entre os 60 e os 69 anos,
o tempo requerido para a execução aumenta 15%.
Êstes algarismos são, de fato, abstratos: só se referem
a indivíduos de boa saúde e a idade acarreta muitas vezes
perturbações patológicas. É mais interessante verificar os
resultados de inquéritos relativos a grupos de indivíduos
bem determinados. Na Noruega, em 1951, tendo examinado
17
5 000 assalariados idosos no setor industrial, os médicos
concluíram que entre os de 60 a 64 anos, 82,6% eram capa
citados para um trabalho sem restrições; 7,3%, para traba
lhos leves; 2,3% para um trabalho parcial e 7,7% já deveríam
estar aposentados. Entre os 65 e os 69 anos, os índices eram,
respectivamente; 81,5%, 7,7%, 2,1%, 8,7%. Depois dos 70
anos: 80,7%, 4,1%, 2,8%, 12,4%. Na Suécia, a maioria dos
operários trabalha de maneira satisfatória até os 67 anos.
Segundo um inquérito realizado em Birmingham por médi
cos, a proporção de incapazes absolutos, aos 70 anos, era
apenas de 20%, e aos 65 anos não passava de 10% em
conseqüência de moléstias crônicas ou de enfermidades.
De acôrdo com importantíssimos trabalhos devidos à
Nuffielcl Foundation, na Inglaterra, as deficiências da ve
lhice podem ser em grande parte compensadas e superadas
até uma idade bastante avançada. As indústrias têxteis do
Yorksliire fornecem um exemplo excelente: as operações
de dobrar e de passar os fios constituem trabalhos de pre
cisão; ora, muitas mulheres idosas o executam com perfeição
apesar de sua vista deficiente; a profissão parece viver em
seus dedos.
Um gerontólogo contou-me o seguinte fato: alguns mo
toristas submetidos a testes visuais manifestaram deficiências
de acomodação que os tornavam, em princípio, incapazes
de enfrentar à noite a luz dos faróis. Ora, quando obser
vados na estrada, muitos demonstraram guiar de noite tão
bem ou mesmo melhor que os que haviam sido considera
dos pelos exames de laboratório aptos a fazê-lo. Possuíam
recursos próprios para evitar o deslumbramento e para
buscar pontos de referência à margem das estradas. A pro
fissão, a experiência, uma certa maneira de compensar as
deficiências as anulavam. Não se deve, por êste motivo,
confiar de modo absoluto nos resultados obtidos em labora
tórios. As circunstâncias não são as mesmas que as do
campo de trabalho.
Um relatório inglês de 1947, abrangendo 11154 trabalha
dores de mais de 65 anos concluiu que — salvo em profissões
penosas como a dos mineiros — existe pouca diferença de
rendimento de trabalho entre os operários de 50 e os de
59 anos, entre os de 60 e os de 69 anos. A eficiência con
tinua elevada. Durante o congresso de gerontologia reali
258
zado em Londres em 1954, um dos relatores, Patterson, con
cluiu, comparado os trabalhadores de 60 anos aos mais
jovens: “ Seu rendimento quantitativo é quase o mesmo e
seu trabalho é de melhor qualidade. Para fins de aposenta
doria, a idade de 70 anos seria preferível à de 60.” Por
outro lado, um inquérito efetuado sobre 18 000 empregados
revelou que, em vez de aumentar, o número de faltas ao
trabalho diminui com a idade.
A Nuffield Foundation, ao examinar o caso de 15 000
operários idosos, verificou que 59% dentre êles haviam
prolongado suas atividades anteriores, durante a última
guerra, trabalhando com tanta eficiência quanto antes dos
65 anos. De acordo com os dados fornecidos por ela, os
operários idosos encontram handicaps quando sua tarefa
os obriga a mudar continuamente de movimentos, quando
exige fôrça, quando o tempo é rigidamente medido como
nos trabalhos em cadeia. As que melhor lhes convêm são
as que requerem conhecimentos, cuidado e que permitem
uma certa amplitude de tempo. A qualidade do trabalho
por êles fornecido é geralmente reconhecida na indústria.
Sua consciência profissional é muito mais acentuada. Ava
lia-se que, com a idade
Aumentam Diminuem
Gôsto — Regularidade do Vista e ouvido — Fôrça e
ritmo — Método — Pon precisão manuais — Robus
tez e flexibilidade — Ra
tualidade — Atenção con pidez do ritmo — Memória,
centrada e vigilante — Boa imaginação, criatividade,
vontade — Disciplina — adaptação — Atenção dis
tribuída — Diligência —
Prudência — Paciência — Energia — Iniciativa — Di
Acabamento do trabalho. namismo — Sociabilidade.
259
dos Unidos e a Inglaterra empregaram em suas indústrias
grande número de velhos operários: muitos deles se defron
taram com tarefas inteiramente novas e as executaram com
perfeição. Numerosos peritos os consideram capazes de
adquirir novas qualificações. Quando, em 1953, na região
sul de Londres, os bondes foram substituídos por ônibus,
os condutores foram obrigados a se tornarem motoristas:
foram bem sucedidos 93% dos que contavam de 56 a 60
anos; para se readaptarem, levaram somente de uma a quatro
semanas mais que os jovens; todavia, 44% o conseguiram,
como os outros, em três semanas. Foram bem sucedidos
63% dos que se achavam entre os 61 e os 67 anos. As
velhas operárias do Yorkshire a que já me referi, adquiri
ram facilmente os rápidos reflexos necessários para lidar
com as máquinas.
Durante os períodos de aprendizagem, entretanto, as
pessoas idosas têm de superar alguns handicaps. O nervo
sismo e a ansiedade provocam perdas de memória e esta
situação se agrava quando têm de competir com jovens.
Um homem de 72 anos realizou testes de maneira tão sa
tisfatória quanto um de 35 enquanto julgou ser o único a
enfrentá-los; quando soube que tinha um rival mais jovem,
fracassou por complexo de inferioridade. O receio de co
meter erros leva as pessoas de idade a se cristalizarem numa
atitude negativa. Tendem a persistir em seus erros e ficam
paralisadas pelas montagens adquiridas. Operários que
conhecem alguma coisa de eletricidade seguem cursos de
eletrônica com mais dificuldade que antigos mineiros: per
turba-os a comparação de uma corrente elétrica com um
curso de água. Também lhes falta muitas vezes interesse
e curiosidade. Como vimos, acham difícil adotar novas
atitudes — novos sets. No início, suas decisões são menos
rápidas que as dos jovens, sendo, portanto, mais longo seu
tempo de reação. Mas conseguem freqüentemente superar
estas dificuldades. A repetição atua em seu favor: nas fá
bricas, êles reiteram dia após dia os gestos aprendidos e
acabam executando-os automaticamente. Também aqui de
vemos desconfiar dos resultados obtidos em laboratório: nem
sempre podem ser aplicados ao trabalho cotidiano.
Algumas das dificuldades acarretadas pela idade podem
ser facilmente contornadas: fornecer óculos ao operário,
260
instalar bancos que lhes permitam trabalhar sentados e não
em pé, são medidas que se revelam muitas vezes suficientes
para readaptá-los ao trabalho. Mas são raras as emprêsas
que procuram fazê-lo. As mais das vezes, o operário é trans
ferido, logo que comete a primeira falta. Colocam-no na
categoria de porteiro, de vigia, contabilista, fiscal, distri
buidor de instrumentos de trabalho, almoxarife etc. É, na
realidade, desclassificado. Passa a ganhar menos, sofrendo
material e moralmente. O número dêstes postos, aliás, tem
diminuído com a mecanização e o velho trabalhador é
condenado ao desemprego.
O conjunto dos inquéritos, o exemplo dos países escan
dinavos provam que a inatividade imposta aos velhos não
é uma fatalidade natural mas a conseqüência de uma opção
social. O progresso técnico desqualifica o velho operário;
sua formação profissional, realizada há quarenta anos, é
geralmente insuficiente; uma reciclagem conveniente poderia
melhorá-la. Por outro lado, a doença e o cansaço
o fazem ansiar pelo repouso: não há aí nenhuma conse
qüência direta da senescência. Um homem de 65 anos cujas
fôrças houvessem sido poupadas poderia desempenhar sem
dificuldade tarefas demasiadamente pesadas para um velho
operário desgastado. Podemos imaginar uma sociedade que
exigisse deles um esforço menor, menos horas de trabalho
durante sua vida adulta de modo que não estivessem re
duzidos a farrapos humanos aos 60 ou 65 anos: é o que
se faz parcialmente na Suécia e na Noruega. Mas em nossa
sociedade onde só se leva em conta o lucro, os patrões pre
ferem evidentemente, uma exploração intensiva dos assala
riados: quando os esgotam, rejeitam-nos e admitem outros,
entregando ao Estado o cuidado de lhes outorgar uma
esmola.
De fato, esta discussão tôda seria ociosa se o aposen
tado recebesse uma pensão suficiente. Poderia então se con
gratular pelo fato de lhe concederem o mais depressa pos
sível o direito de descansar. Mas considerando-se a miséria
a que o condenam, sua dispensa mais parece uma recusa
do direito ao trabalho. Em vez de descansar, êle é muitas
vêzes obrigado, como vimos, a aceitar trabalhos penosos e
mal remunerados. Quanto à idade da aposentadoria, podem
261
ser sustentados muitos pontos de vista, que iremos mais
adiante confrontar. Mas impõe-se a reivindicação de um
ponderável aumento das pensões.
É coisa notória, hoje em dia, a injustiça do sistema de
distribuição destas pensões. Com efeito, existem regimes
especiais que foram mantidos em 1945 e regimes comple
mentares ao lado do regime geral. M. Laroque, em confe
rência pronunciada no dia 7 de dezembro de 1966 declarou:
“ São chocantes, no momento atual, as desigualdades entre
os regimes; alguns concedem pensões bastante satisfatórias e
outros, pelo contrário, pensões muito reduzidas, sem que
existam para isto diferenças de justificação racional. As
razões são essencialmente históricas. É, entretanto, muito
difícil remediar esta situação, pois não seria economicamente
possível nivelar todos os regimes de acôrdo com os mais
generosos e é psicologicamente impossível pedir aos gene
rosos que reduzam as vantagens por êles concedidas.”
O quadro seguinte poderá dar uma idéia da complexi
dade do sistema:
QUADRO
DOS R E C U R S O S
DAS P E S S O A S I DOS AS
262
PENSÃO Ã VELHICE
Sua concessão está condicionada ao pagamento de cotas
durante trinta anos ao Seguro Social: recebe-se então a
pensão integral. A pensão pode começar a ser paga a
partir de quinze anos de cotização mas é, neste caso, pro
porcional aos pagamentos efetuados. Só pode ser paga
no 60.° aniversário. É geralmente solicitada aos 65 anos,
por haver um acréscimo de 4% ao ano na taxa da pensão
depois dos 65 anos.
Exemplo: 20% pensão aos 60 anos.
24% ” ” 61 ”
28% ” ” 62 ”
32% ” ” 63 ”
36% ” ” 64 ”
40% ” ” 65 ”etc.
Cálculo da pensão
Depende:
1. ° da duração do seguro;
2. ° do salário médio anual;
3. ° da idade em que é requerida.
Salário médio anual
O salário médio anual é calculado de acordo com o
salário resultante das cotizaçoes pagas no decorrer dos
dez anos precedendo
quer a idade de 60 anos;
quer a data em que é requerida a pensão.
A importância da pensão depende portanto da idade
do solicitante.
A taxa da pensão varia segundo o salário submetido
à cotização.
As pensões e aposentadorias são anualmente reajustadas,
a l.° de abril, levando-se em conta o aumento dos salários.
f 65 anos
Taxa máxima anual: 5 472 fr. j
l 40 %
Não se leva em conta o teto dos recursos pessoais.
263
ABONO AOS ANTIGOS TRABALHADORES
Condições para concessão:
1. ° contar 65 anos de idade, ou 60, em caso de invalidez;
2. ° ser de nacionalidade francesa ou pertencer a um país
que tenha estabelecido uma convenção diplomática
com a França;
3. ° residir no território francês ou num Estado anterior
mente submetido a sua soberania ou em algum terri
tório de além-mar;
4. ° fornecer provas de haver trabalhado 25 anos durante
a existência;
5. ° haver contribuído para os Seguros Sociais, caso estes
anos de trabalho sejam posteriores a 31 de dezembro
de 1944.
264
Os máximos e os mínimos continuam os mesmos. O teto
não pode ser ultrapassado.
As pessoas idosas, pensionistas, aposentadas ou abona
das, são atendidas pelo Seguro Social quanto às questões
de assistência médica e de hospitalização. Conforme a gra
vidade e a duração da moléstia, o atendimento será de 70%,
80% ou 100%. O ticket moderador (6) caberá ao segu
rado. Os Fundos de Ação social do Seguro Social são
solicitados para a entrega dêsses tickets moderadores, e, em
caso de necessidade, para a concessão de auxílio em espécie,
com a intervenção do Serviço Social.
265
ABONO ESPECIAL À VELHICE pago pela Caisse de Dé-
pôts et Consignations
Condições de concessão:
1. ° não estar sendo socorrido pelo Seguro Social;
2. ° não ultrapassar um determinado teto de recursos;
3. ° não possuir propriedades;
4. ° não receber pensão alimentar dos filhos.
266
2.° ser incapaz de prover sozinho aos atos ordinários da
vida (diversos tipos de invalidez).
Esta majoração é paga qualquer que seja a tarifa da
pensão, aposentadoria ou abono.
Tarifa anual: 6 700 francos.
Esta majoração só é concedida durante a vida do bene
ficiário.
O auxílio médico é concedido 100%.
APOSENTADORIAS COMPLEMENTARES
Paga aos 65 anos.
Condição: ter trabalhado durante dez anos na mesma cor
poração (comércio, indústria, profissões liberais).
O empregador está filiado a uma Caixa de Aposenta
doria de sua corporação. (Cotas pagas pelo empregador e
pelo assalariado.)
A aposentadoria complementar pode ser paga aos 60
anos, no caso de invalidez.
Uma viúva pode receber a aposentadoria complementar
aos 50 anos.
Paga-se uma renda aos filhos menores.
A tarifa da aposentadoria complementar varia segundo
o montante das cotizações pagas.
267
com a remuneração dos dez últimos anos a qual nem sempre
é a mais elevada. Seria normal tomar como referência a
mais elevada ou pelo menos a média. Quando o emprega
dor rebaixa o trabalhador sob pretexto de readaptá-lo, a
aposentadoria é diminuída, o que constitui uma flagrante
injustiça. Por outro lado, o aumento das pensões está longe
de acompanhar o do custo de vida; é apenas de 10% ao
ano. Enquanto o S .M .I.G . é de 567,61 francos por mês,
por um trabalho de quarenta horas por semana, a soma con
cedida aos velhos não chega à metade: o último decreto
publicado no Journal officiel (°) estabelece em 225 francos
por mês, ou 7,30 francos por dia, os recursos mínimos dos
velhos; cêrca de um milhão deles só dispõe desta quantia:
duas vêzes e meia menos que o sustento de um prisioneiro
comum. Um milhão e meio subsistem com 320 francos por
mês. Isto significa que aproximadamente metade da po
pulação idosa vive na indigência. Os mais desamparados
são os velhos solitários. Nos serviços de assistência social,
as viúvas, muito mais numerosas que os viúvos, represen
tam de 70 a 80% dos economicamente fracos. Um inquérito
da “ Caisse interprofessionnelle paritaire des Alpes” — abran
gendo 6 234 aposentados de 50 ( 910) a 94 anos indica uma
renda média de 280 francos mensais por pessoa sozinha e
380 por casal, sendo que alguns aposentados se dedicam a
pequenos trabalhos. Para 1/5 dêles, esta renda desce a 200
francos. 15% dêles nem sequer se pode dar o luxo de
comprar um jornal.
Os filhos raramente ajudam aos pais: 2/3 dos velhos
não recebe nenhum auxílio da parte dêles. Movem-lhes às
vêzes processos para obterem pensões alimentares, todavia,
mesmo quando conseguem vencer a questão, nem sempre
estas lhes são pagas. Ê tanto maior o sofrimento infligido
aos velhos pais por esta abstenção pelo fato de que lhes
é recusado qualquer auxílio social quando seus filhos são
considerados aptos a sustentá-los. E isto também é um
escândalo: não se leva em conta o que os filhos lhes dão
realmente, mas sim o que lhes poderíam dar.
268
Le Journal du dimanche do dia 17 de novembro de
1968, divulgou um caso típico, sob a legenda: “ Sozinha em
Paris, aos 75 anos, com 317 francos por mês” (11). A Senhora
R. trabalhou em diversos restaurantes, servindo às mesas
e lavando pratos. Sendo o trabalho demasiadamente penoso,
ela o interrompeu aos 68 anos. Seus antigos padrões não a
haviam inscrito nos serviços de Seguro e ela se viu com
180 francos de aposentadoria por trimestre. Graças a suas
economias, conseguiu se manter durante quatro anos. Em
seguida, desesperada por ter de viver com 60 francos men
sais, conversou com uma vizinha num dos bancos da Praça
des Vosges e esta a aconselhou a procurar uma assistente
social. Obteve, por intermédio desta assistente, o pagamento
dos atrasados da sua aposentadoria, conseguindo assim 870
francos por trimestre e mais 80 francos para aluguel. Vive
no sótão de um prédio do Marais: três andares com uma
bela escadaria e mais dois degraus estreitos e altos. Não
tem nem gás nem eletricidade em seu quartinho minúsculo,
iluminado e aquecido a querosene. O depósito de água
está localizado no fundo de uma reentrância elevada; descer
dali carregando um balde constitui uma acrobacia para uma
pessoa semi-inválida. As dependências sanitárias estão si
tuados do outro lado da casa: é preciso descer meio andar,
subir outro e escalar mais quinze degraus íngremes: “ É
meu pesadelo, diz a Sra. R. Ãs vezes, no inverno, quando
não estou me sentindo muito bem, fico encostada à parede,
perguntando a mim mesma se conseguirei descer.” Paga
150 francos por trimestre, de aluguel: “ É isto o mais impor
tante, porque os vizinhos gostariam de ficar com o meu
quarto e procuram me mandar para o asilo. Mas eu prefe
riría morrer.” Restam-lhe 240 francos por mês, isto é, 8
francos por dia. Gasta o menos possível com aquecimento:
no inverno, fica até tarde na cama e passa os dias nas lojas
ou nas igrejas. Vai às vêzes ao cinema: um daqueles que
têm sessões mais baratas antes das 13 horas e aí permanece
durante duas ou três sessões; vai de metrô e volta a pé.
Não gasta quase nada em vestuário: todos os anos, na
primavera, manda limpar um casaco de dez anos atrás.
270
ALGUNS ORÇAMENTOS
Responsabilidade médica assumida pelo Seguro Social ou
pela Assistência Pública.
272
cia. De qualquer forma os socorros periódicos são apenas
paliativos e eles vivem na angústia do dia seguinte.
A situação é mais ou menos a mesma na Bélgica, na
Inglaterra, na Alemanha Ocidental e na Itália. Um decoro
hipócrita impede que a sociedade capitalista procure se
desembaraçar destas “bôcas inúteis” . Concede-lhes, entre
tanto, o estritamente indispensável para se manterem às
portas da morte. Como dizia tristemente um aposentado:
“ É demais para morrer e muito pouco para viver.” E outro:
“ Quando a gente não pode mais ser operário, só pode é virar
cadáver.”
É menos penosa, sem chegar a ser satisfatória, a situação
dos chefes de sessão e dirigentes. Existe entre êles uma
categoria de grandes privilegiados: engenheiros, quadros
administrativos superiores, altos funcionários, membros das
profissões liberais, alguns dos quais chegam a ganhar 25
vezes o salário de um operário. Mas existem também os
quadros médicos, os pequenos funcionários, os técnicos,
cujos recursos são muito mais modestos. As mulheres, so
bretudo, são muito mal pagas. Vivem constantemente na
expectativa de uma despedida e do desemprêgo. A apo
sentadoria acarreta para a maioria uma perda de status e
uma queda no padrão de vida. De acordo com um trabalho
publicado em 1964, Les Cadres Retraités vus par eux-mêmes.
80% afirmam serem seus recursos suficientes, embora 77%
os considerem “ apenas suficientes” . Somente 2% podem
aspirar a coisas supérfluas. 19% se acham em situação pre
cária, sobretudo as mulheres: de cada seis viúvas, uma só
dispõe de 250 francos por mês, e 58% devem contentar-se
com menos de 500 francos. Em conjunto, 8% dos quadros
aposentados recebem menos de 250 francos, 32% de 250 a
500 francos, 32% de 500 a 1000 francos, e 25%, mais de
1 000 francos. (Alguns não responderam). Para metade
deles, a aposentadoria constitui a única fonte de renda, e
para 26%, mais da metade dos rendimentos dela provém.
Todos gostariam de receber o dobro ou dois terços a mais.
Seja qual fôr a idade — dos 65 aos 75 anos — de dois
aposentados, um teria preferido continuar a exercer sua
atividade. Entretanto, dois terços se consideram adaptados
e somente um têrço — sobretudo os que não gozam boa
saúde e os pobres — dificilmente toleram a nova condição.
18 273
20% retomaram uma atividade qualquer; sendo que 52%
com o objetivo de aumentar sua renda; 16% buscaram um
derivativo; e em 26% dos casos, conjugaram-se as duas ra
zões. Preferem descansar 83% dos que deixaram definiti
vamente de trabalhar. Nenhum dêles deseja ir viver em
casas para pessoas idosas; preferem permanecer em seu
próprio lar.
Há uma categoria que suporta muito mal a aposenta
doria: é a dos agentes executivos; no caso dêles, é muito
sensível a quebra de vencimentos. Não conseguem adap-
tar-se aos lazeres e buscam atividades complementares de
maneira quase obsessiva, embora lhes seja muito difícil
ajustarem-se a novas tarefas.
274
Em 1850, na Califórnia, grande número de trabalha
dores era constituído de pioneiros sem família e vindos do
Leste: formaram-se irmandades que obtiveram subsídios do
Estado em benefício das pessoas idosas. A partir de 1883,
o Estado da Califórnia atribuiu subsídios aos condados que
mantinham asilos para velhos e, mais tarde, aos que davam
assistência domiciliar aos indigentes. O sistema foi abolido
em 1895 devido aos abusos, e a Califórnia passou a finan
ciar apenas as instituições oficiais.
No fim do século XIX, as estatísticas revelaram o número
de pessoas idosas pobres e a opinião pública começou a
ficar abalada. Em 1915, no Alasca, promulgou-se uma lei
autorizando o Estado a conceder um auxílio de 12,5 dólares
por mês a determinadas pessoas de 65 anos em diante. Leis
semelhantes foram votadas em outros Estados.
Em 1927, a Califórnia autorizou a realização de um
inquérito pela secretaria do Bem-estar Social; verificou-se
que somente 2% da população de mais de 65 anos de idade
recebia algum auxílio. A “ Irmandade das Águias” , que
sempre se dedicara a socorrer as pessoas idosas, empreen
deu naquele ano uma campanha para impor a noção de
uma responsabilidade do Estado federal para com os velhos,
tendo contado com o apoio de outros grupos menos co
nhecidos. Mas, por individualismo, por liberalismo e por
horror a qualquer tipo de “socialismo”, grande parte da
opinião pública se mostrou refratária. Todavia, o projeto
apresentado pelas “Águias” conseguiu ser estudado em 24
Estados. A Califórnia promulgou uma lei, em 1929, esten
dendo a assistência a todas as pessoas de idade necessitadas.
Foi imitada, em 1930, por mais. 13 Estados. Em 1934, 30
Estados já haviam adotado um programa qualquer de as
sistência; mas somente 10 o cumpriam integralmente; os
socorros eram dificilmente obtidos e muito insuficientes.
Filantropos, sindicatos e Igrejas também haviam começado
a construir abrigos para os velhos cuja situação se tomou
dramática em decorrência da grande crise de 1930. Tiveram
de enfrentar o desemprêgo e os Estados se revelaram inca
pazes de os sustentar; muitos haviam visto esfumarem-se
tôdas as suas economias e tinham sido despejados de suas
habitações. Esta situação calamitosa provocou o estabeleci
mento do Seguro Social, autorizando o govêrno federal a
275
conceder verbas aos Estados que se encarregavam de pres
tar assistência aos velhos. Continuaram a ser aplicados os
programas dos diversos Estados, tendo entrado em vigor um
segundo princípio: o seguro. Muito poucas pessoas, entre
tanto, com êle se beneficiaram e as quantias recebidas eram
insignificantes.
Em 1943, havia 23,4% de pessoas idosas recebendo
auxílios e apenas 3,4 recebiam aposentadorias. Seu padrão
de vida continuava dramático e visivelmente baixo. Desen
volveram-se, então, serviços para socorrê-los. A partir de
1950, o Congresso elevou o montante dos benefícios conce
didos e ampliou o número de beneficiários. No entanto, em
1951, a imensa maioria da população idosa dispunha de
recursos muito inferiores ao mínimo vital e não recebia
nenhum auxílio particular. Multiplicaram-se as conferências
para estudar os problemas da velhice. De 1950 a 1958,
aumentou-se o número de beneficiários do Seguro Social:
este só atingia 3/4 da população idosa passando, então, a
cobrir 9/10, tendo-se também elevado as pensões. Entre
tanto, segundo uma pesquisa efetuada em 1957 por Steiner
e Dorfman, 25% dos casais, 33% dos homens sozinhos e
50% das mulheres sozinhas, contando mais de 65 anos, não
dispunham nem do mínimo vital.
“A pobreza de nossos velhos constitui um de nossos
problemas mais renitentes e mais difíceis”, escreveu Mar-
garet S. Gordon. Atualmente, em 16 milhões de velhos, há
mais de 8 milhões de pessoas paupérrimas. Um homem
aposentado aos 65 anos, depois de haver pago a contribuição
mais elevada, recebe mensalmente para êle próprio e para
a esposa 162 dólares; quando sozinho, 108,50 dólares. Em
1958, as estatísticas do “ Bureau of the Census” revelavam
que 60% das pessoas de mais de 65 anos recebem menos
de 1000 dólares por ano, quantia 20% inferior ao mínimo
vital nas cidades onde a vida é mais barata, e 40% nas
cidades onde ela é mais cara. As verbas fornecidas pelos
filhos ou por amigos só elevam 10% seus rendimentos e
só beneficiam os velhos cuja situação é relativamente está
vel. Os mais desprotegidos são os que vivem sozinhos,
sobretudo mulheres, sendo o número de viúvas superior
ao de viúvos, como na França. Um quarto deles vive com
menos de 580 dólares anuais, quantia que mal cobre o orça-
276
mento alimentar mínimo estabelecido pelo ministro da Agri
cultura. (E êles têm, além disso, de se vestir, de se alojar
e de se aquecer.)
Em seu livro A Outra América, M. Harriogton mostra
os milhões de velhos que vivem na indigência como sendo
vítima de um “turbilhão para baixo” . Os pobres adoecem
com mais freqüência porque vivem em miseráveis tugúrios,
insalubres, alimentam-se deficientemente e mal se podem
aquecer; não têm recursos para se tratar e suas doenças se
agravam, impedindo-os de trabalhar e exasperando-lhe a
pobreza; envergonhados de sua miséria, fecham-se em casa
e evitam qualquer contato social: não querem que os vizi
nhos saibam que vivem de assistência; privam-se dos pe
quenos favores e de um mínimo de cuidados que estes lhes
poderíam dar, e acabam ficando impossibilitados de deixar
o leito. Uma testemunha declarou perante uma Comissão
de senadores encarregada de um inquérito sobre a velhice
que êsses párias da sociedade são vítimas de “um tríplice
encadeamento de causas: saúde precária, indigência, soli
dão.” Alguns se tornam “ recrutas da miséria” depois de
uma existência normal, durante a qual seu trabalho foi
corretamente remunerado. Com a idade, sua capacidade
se reduziu e êles já não encontram trabalho pois estão
tècnicamente superados; mesmo nas zonas rurais, a meca
nização acarreta o afastamento das pessoas idosas. A apo
sentadoria representa uma quebra brutal em seus recursos.
Entre o§ indigentes, contudo, a maioria sempre foi pobre.
Quando jovens, abandonaram os campos pelas cidades e
nelas não conseguiram prosperar. Por outro lado, os tra
balhadores agrícolas não são amparados pelo Seguro Social.
O conjunto dêsses miseráveis — aposentados com recursos
insuficientes, ou trabalhadores sem aposentadoria — tem de
recorrer aos serviços de assistência. Existem Estados, como
o Mississípi, muito pobres e nos quais os auxílios conce
didos são irrisórios. Em tôda a parte, as pessoas encarrega
das de estudar os pedidos se mostram hostis aos solicitantes:
metade dos pedidos é rejeitada. Exigem-se documentos que
muitos não possuem; trata-se freqüentemente de indivíduos
semi-analfabetos ou que mal falam o inglês, aterrorizados
pelas formalidades e pelo aparelhamento do organismo de
assistência. Esta burocracia impessoal e ineficaz os humilha
277
sem lhes prover às necessidades. O Serviço de assistência
— o “ Welfare State” — funciona às avessas. As proteções,
as garantias e os auxílios são concedidos aos fortes e orga
nizados e não aos fracos. Os mais necessitados de cuidados
médicos são justamente os que menos recebem. Sua solidão
agrava-lhes a situação. Os jovens habitantes dos slums saem
para as ruas e formam bandos. As pessoas idosas vivem
reclusas; e num país em que as distâncias, o ritmo de vida
não lhes permitem encontros, e em que as comunicações se
fazem essencialmente por telefone, cinco milhões deles se
acham privados deste aparelho. O Doutor Linden, da Saúde
pública de Filadélfia, escreve: “ Entre os fatôres mais po
derosos para o desenvolvimento de problemas afetivos entre
nossos concidadãos avançados em anos, é preciso apontar
o ostracismo social de que são vítimas, a redução de seu
círculo de amizades, a intensa solidão, a diminuição e a
perda de respeito humano e o sentimento de desgosto com
relação a si mesmos.”
Somente uma sociedade opulenta pode ter tantos velhos,
conclui Harrington; mas ela lhes recusa os frutos da abun
dância. Concede-lhes a “ sobrevivência bruta” e nada mais.
278
todos modernos e os filhos toleram mal sua autoridade. Em
seu estudo sobre a comuna de Plodemet (13), Morin salienta
o conflito das gerações. “ Um cruel conflito opõe os jovens
adultos e o pai, em companhia do qual vivem e trabalham.”
Um telhador de 28 anos afirma: “A gente gostaria de
se modernizar mas os velhos estão sempre no meio atra
palhando.” O filho espera o afastamento do pai durante 30
ou 35 anos, roendo-se de impaciência durante 10 anos. Os
velhos se irritam: “ Êles falam de coisas de que nunca ouvi
mos falar, querem passar por cima de nós, “ dizem, falando
dos jovens.
Muitos jovens camponeses partem para as cidades e,
em conseqüência deste êxodo, são muitos os lugarejos e
até mesmo aldeias habitados apenas por velhos que culti
vam a terra segundo métodos arcaicos e sofrem com seu
isolamento. Quando, pelo contrário, um dos progenitores
vive em casa dos filhos, corre o risco de ser aí mal tratado
ou desleixado. Mas de uma maneira ou de outra, a depen
dência sempre lhes é penosa. Sentem-se explorados ou ví
timas do mau-humor do resto da família. E, reciproca
mente, sua presença perturba as relações dos esposos: muitos
divórcios tiveram como origem esta coabitação. Algumas
sociedades camponesas optaram pela fórmula da “intimi
dade a distância” . Nas regiões rurais da Suíça, da Alemanha
e da Áustria o casal de velhos deixa a casa da família para
ir se instalar numa “casinha”, situada nas proximidades,
porém independente. Em algumas regiões da França, obser
vam-se costumes semelhantes. Por volta dos sessenta anos,
o pai entrega a exploração das terras aos filhos e vai viver
na aldeia. Continua a se interessar por suas propriedades,
toma parte nos trabalhos, dá conselhos. Um inquérito
realizado em Viena, em 1962, abrangendo mais de 1000
velhos demonstrou que êles preferiam a “intimidade a dis
tância” à coabitação e ao isolamento.
O problema nas cidades se apresenta de maneira muito
diversa. É angustiante na França, onde existe uma crise
generalizada de habitação e onde o patrimônio imobiliário
é antigo, e lento o ritmo das construções: constroem-se so-
279
bretudo grandes conjuntos residenciais cujos aluguéis são
proibitivos para os economicamente fracos. Êstes recebem
um auxílio para aluguel quando vivem em alojamentos não
mobiliados, de aluguel não superior a 190 francos por mês.
Aos proprietários não desejosos de ter inquilinos idosos,
basta fixar o aluguel em 200 francos mensais e o velho, não
recebendo auxílio algum, estará na impossibilidade de pa
gá-lo (14). Esta fórmula é de uso muito corrente em Nice,
por exemplo, invadida por inúmeros aposentados. Como
disse um sociólogo, os velhos em toda parte “ são relegados
aos tugúrios” . Segundo os inquéritos do I .F .O .P . apesar
do sonho de uma casinha no Sul, a maioria dos aposentados
continua a viver em seu antigo domicílio. 68% dos casais
dispõe pelo menos de dois cômodos e cozinha; mas são
velhas residências estragadas, desprovidas de água e de
aquecimento ou mesmo insalubres. Uma pesquisa efetuada
em 1968 pela C .N .R .O . ( 15), que conta com 1800000 as
sociados e 340 000 pensionistas, revelou que apenas 15,5%
dos aposentados do setor da construção dispunham ao mesmo
tempo de água, gás, eletricidade, ducha e w .c. dentro de
casa. 34% dos velhos habitam sótãos de velhos edifícios
sem elevador, sendo obrigados a subir a pé de 4 a 6 andares.
O apartamento se torna, por vezes, grande demais depois
da saída dos filhos e sua manutenção fica difícil. Na maio
ria dos casos, o habitat não corresponde às possibilidades
das pessoas idosas: a ausência de água, de aquecimento,
de elevador esgota os organismos enfraquecidos. De cada
duas pessoas, uma é proprietária: a estatística citada inclui
as zonas rurais, o que explica este elevado índice. Um terço
é de inquilinos e os outros são alojados gratuitamente ou
partilham do alojamento de alguém.
O problema da residência está ligado ao do isolamento.
Nos E .U .A ., 2/3 dos homens idosos vivem com as esposas,
16,2% vivem sozinhos; 3,5% em asilos; somente 1/3 das
mulheres ainda têm seus maridos; 1/3 vivem sozinhas; um
280
número bastante grande, em companhia dos filhos, 4,3%
em asilos. Na França, 35% das pessoas idosas vivem com
os cônjuges, 30%, sós: entre estas, predominam as mulheres;
9% vivem em casa de amigos ou de irmãos. Diz um relatório
elaborado em 1958 sôbre os aposentados nos setores da
construção e das obras públicas: 43% têm família nas vizi
nhanças; as famílias de 23% vivem bastante perto e as de
25%, longe, 9% são completamente sós. A freqüência das
relações está na relação direta da proximidade.
Estes algarismos, entretanto, pouco nos elucidam sôbre
a importância real dos laços de família ou de amizade; os
inquéritos que buscaram responder a esta questão chega
ram a resultados bastante contraditórios e muitas vezes dis
cutíveis. Em Milão, 10% dos homens interrogados e 13%
das mulheres, consideravam-se “muito solitários” . 20% dos
homens e 22% das mulheres sentiam-se” por vezes solitários;
o sentimento de solidão aumentava com a idade. Na Cali
fórnia, sentiam-se “muito solitários” 57% dos que não viviam
com um cônjuge e 16% dos que viviam em casal.
Pesquisas desta ordem foram numerosas sobretudo na
Inglaterra. As de Townsend, Young e Willmont, J. M. Mogey,
E. Bott demonstraram que a família, no sentido bem am
plo da palavra, desempenhava um importante papel como
unidade de relações sociais e auxílio mútuo: sobretudo a
família materna cujo núcleo é constituído pela avó, pelas
filhas e netas. Os homens buscam sobretudo os cafés e
saem com os amigos. “ Os homens têm amigos, as mulheres,
parentes.” Teve uma importância especial o inquérito rea
lizado em 1957, por Townsend, em Bethnal Green, na região
leste de Londres. Entre as pessoas de idade interrogadas,
5% se afirmaram “muito solitárias” , 25%, “ às vezes soli
tárias” , 70% “não solitárias” . Na sua opinião, poucos velhos
eram verdadeiramente sozinhos; alguns chegavam a ter até
13 parentes vivendo nas proximidades; particularmente, sem
pre havia um ou dois filhos morando a menos de uma
milha de distância dos pais; os avós, em Bethnal Green —
sobretudo as avós —- cuidavam assiduamente de seus netos:
levavam-nos à escola, assim como a passear, tomavam conta
dêles, davam-lhes de comer. 3/4 das pessoas entrevistadas
viam pelo menos um dos progenitores diariamente e êste
lhes prestava serviços. Uma pesquisa de Sheldon (diretor
do Hospital Royal) chegou à conclusão que 1/5 das pessoas
idosas sofre de solidão de maneira tão desoladora que chega
a doer, sobretudo os viúvos, muito mais que as viúvas.
Entre os que viviam sozinhos, quase 1/3 tinha parentes a
menos de meia milha de distância; 40% se consideravam
felizes, graças a suas boas relações com os filhos. Êstes
resultados, entretanto, devem ser encarados com cautela.
Um pesquisador americano observou que 92% dos velhos
se diziam respeitados e amados pelos filhos mas apenas
63% afirmavam que os filhos, em geral, amam e respeitam
os pais. Parece que em muitas destas respostas deve en
trar um componente de mentira para consigo mesmo ou
de orgulho: não querem se revelar solitários ou desde
nhados. Por outro lado, verificou-se que as relações fami
liares não contribuíam para melhorar o moral entre os
velhos economicamente fracos. Os amigos têm mais valor
para os que se acham em melhor situação. A presença de
irmãos, irmãs, primos etc., nas vizinhanças em nada ajuda
o velho a viver. Para êle, contam apenas o cônjuge e os
filhos; mesmo assim, com um cônjuge, será possível sofrer
de solidão a dois. É isto que ressalta do inquérito recen
temente efetuado no XIII arrondissement pelo Doutor Balier
e por L.-M. Sébillotte. Os casais se encerram no lar de
maneira mais acentuada ainda que os indivíduos isolados,
viúvos ou solteiros. O apego muitas vezes ciumento, manía
co, tirânico de um pelo outro, leva-os a criar um vazio em
tôrno de si. Um inquérito ( 16) realizado em 1958 num bairro
populoso de Paris revelou que, de três pessoas idosas, uma
não mantinha mais nenhuma relação social, nunca recebia
cartas ( 17), não recebia nem fazia visitas nem conhecia mais
ninguém.
Para proteger os velhos, material e moralmente, contra
o desconforto e a solidão, tentou-se construir para eles resi
dências agrupadas. Existe na Europa, sob este aspecto,
um impressionante contraste entre os países do Norte e os
do Sul. Quase nada se realizou na Itália nem na França.
Nestes últimos anos, na França, a C .N .R .O . construiu al
gumas residências situadas nas proximidades das grandes
282
cidades para que os pensionistas não se sintam exilados.
São de tipo horizontal, ou semi-horizontal, com quatro an
dares, no máximo, ou vertical: oito andares ou mais. São
projetadas de maneira muito inteligente; a primeira foi
inaugurada nos arredores de Bordéus em dezembro de 1964:
abriga uma centena de pessoas válidas e semiválidas. Foram
depois construídas mais cinco ou seis, abrigando cada uma
delas, em média, 120 pessoas. Os aposentados aí se sentem
bem: queixam-se somente por só ficarem com 10% de seu
dinheiro, servindo o resto para pagar o aluguel e a manu
tenção. Quantitativamente, entretanto, os resultados obtidos
ainda são irrisórios. A Suíça e a Alemanha Ocidental foram
um pouco mais adiante; a Holanda e a Inglaterra realizaram
muita coisa neste sentido. Em 1920, construiu-se uma aldeia
para velhos num parque dos subúrbios de Londres: o White-
ley Village. O “ Comitê para o bem-estar das pessoas de
idade” edificou alguns outros em Londres, em Hackney e
noutras localidades. Em 1940, quase todos os tugúrios eram
habitados por velhos: muitos foram transferidos para novas
habitações construídas expressamente para eles.
O esforço mais significativo foi realizado pelos países
escandinavos. Em Copenhague, existe uma “ Cidade dos
Velhos” , construída em 1919, modernizada em 1955, con
tendo 1 600 leitos e considerada durante muito tempo como
uma realização exemplar. Os raros casebres existentes na
Suécia em 1940, eram habitados por velhos: estes foram
todos transferidos para novas habitações. Existem cidades
para velhos muito bem organizadas. A Suécia já construiu,
desde 1947, 1 350 casas abrigando 45 000 pessoas. Os velhos
são também contemplados com alojamentos especiais de
outro tipo: apartamentos em imóveis reservados para uso
dos pensionistas. Alguns recebem “ suplementos comunais” ,
que os ajudam a pagar aluguéis bastante caros em aparta
mentos normais.
Nos E .U .A ., em 1950, o Presidente Truman chamou
a atenção do público para os problemas da velhice e orga
nizou uma comissão de 800 pessoas para estudá-los. Poucos
foram os resultados. As pessoas idosas foram, muitas vezes,
como em Saint-Louis, por exemplo, confinadas em espécies
de guetos: dividiram-se velhas casas em quartos mobiliados
e em minúsculos apartamentos e ali as amontoam. Funda-
28S
ram-se algumas sociedades de pessoas idosas — os Fósseis,
os Octogenários, as Viúvas felizes, os Jovens de 50 anos etc.
— e criaram-se casas para aposentados mas cujo preço médio
é de 150 dólares por mês (para pensão). Alguns alojamentos
coletivos foram construídos graças a empréstimos governa
mentais e não visam lucro ou apenas um lucro mínimo;
outros são edificados por organizações particulares. Seus
preços são proibitivos para a maioria dos aposentados: em
Isabella House, uma das residências mais conhecidas, o alu
guel mínimo sobe a 75 dólares por mês.
É preciso assinalar o êxito, infelizmente isolado, do
Victória Plaza, em San Antonio (1S). Construiu-se um grande
edifício moderno e aí se instalaram os velhos que viviam
mal alojados. Dentre 352 postulantes, foram escolhidos 204.
Quase 60% viviam sozinhos; os outros, em companhia de
um cônjuge, de parentes ou de amigos; muitos habitavam
casebres. Fizeram-nos visitar o imóvel antes de transferi-los
para lá: ficaram maravilhados. Ao cabo de um ano, a maio
ria ainda lá estava. Havia um clube com biblioteca, jogos
diversos etc., freqiientado por 90% dos habitantes do edi
fício. Pagavam 28 dólares por mês, quantia, em geral, ligei
ramente superior à que pagavam por seu alguel anterior;
todavia, consideradas as condições de espaço e de confôrto
que lhes eram proporcionadas, o preço era julgado módico.
Sua existência tôda se transformou; a falta de dinheiro era
mais ressentida porque êles haviam passado a comprar mó
veis e vestuário, em lugar de descurar o interior de suas
residências e sua própria pessoa. Entretanto, sentiam pra
zer em dispor de lazeres e de tantas maneiras de os gozarem.
Inscreviam-se em grupos, entabolavam novas amizades, o
que não os impedia de cultivar as antigas, e de falar com
freqüência com seus familiares, pelo telefone. Considera
vam a saúde melhor que antes e diziam ser de “meia idade”
enquanto seus contemporâneos que tinham permanecido
nas antigas habitações já se achavam idosos ou velhos. Tanto
sua vida ativa como a afetiva se haviam desenvolvido e
quase todos se sentiam felizes. Através desta experiência e
de algumas outras, a influência do habitat sobre a condição18
2SÍ
geral do velho se revela de suma importância. É, portanto,
uma lástima, que ela seja geralmente tão miserável.
Discute-se muito, hoje em dia, a questão de ser ou não
aconselhável para as pessoas idosas viverem unicamente
entre si. O sucesso do Victoria Plaza provém, em grande
parte, de sua localização no centro de uma cidade e de
não estarem os residentes cortados de suas famílias. Exis
tem, nos Estados Unidos, diversas “ Cidades do Sol”, habi
tadas exclusivamente por pessoas idosas, de elevado padrão
de vida. Os promotores e administradores afirmam senti
rem-se êles muito felizes por viverem entre iguais. Trata-se,
porém, de empresas muito rendosas e os beneficiários têm
o maior interesse em gabar sua mercadoria. Calvin Trillin
que, em 1964, realizou uma reportagem para o New Yorker
sôbre uma destas cidades parece bastante cético quanto à
felicidade que se diz reinar aí. Seus habitantes haviam com
prado as residências, investido muito dinheiro e cortado
todas as pontes: são obrigados a ali permanecer. A maioria
se acomoda, mas não se pode afirmar que o fariam se lhes
fôsse dado recomeçar.
Preconiza-se, hoje a criação de “béguinages” , seme
lhantes aos de Bruges, formados de casinhas independentes
e situadas no centro da cidade, de modo que os velhos pos
sam se sentir próximos dos filhos. Melhor ainda: seria
aconselhável criar no interior de imóveis habitados por pes
soas de todas as idades grupos de alojamentos — lares des
tinados aos velhos que ficariam independentes mas usufrui
ríam de alguns dos serviços comuns a todos os inquilinos
do prédio.
285
com esta perspectiva por serem inválidos. Existem 275 000
leitos e, atualmente, de 150 000 a 200 0000 pessoas que dese
jariam ser hospitalizadas mas não encontram vagas. Quatro
motivos principais levam os velhos a se candidatarem a
elas. Primeiro, a insuficiência de seus recursos. 3/4 da po
pulação dos grandes asilos são constituídos de elementos
mantidos pela assistência, já que os pensionistas preferem
os pequenos estabelecimentos particulares. Em segundo lu
gar, vem a impossibilidade de encontrar uma moradia ou
o cansaço decorrente de sua manutenção. Em terceiro lu
gar, razoes de família: os filhos recusam encarregar-se do
velho ou resolvem se livrar dele. Durante uma transmissão
(janeiro de 1968) sobre o “morredouro” da Salpêtrière, o
diretor relatou, indignado, que sucede com freqüência as
famílias entregarem seus velhos ao hospital a fim de saírem
em gôzo de férias, esquecendo-se, em seguida, de os ir
buscar. Finalmente, alguns velhos necessitam de cuidados
médicos. Ingressam, geralmente, no asilo de seu departa
mento, alguns como indigentes, outros pagando uma parte
de sua pensão. Há, também, os “ ambulantes” que vivem
trocando de asilo: no entretempo, vagabundeiam e bebem.
Alguns estabelecimentos recusam os velhos doentes; outros
aceitam os doentes mesmo que sejam jovens.
Segundo um inquérito realizado num asilo, em 1952,
por M. Delore, o número de mulheres ali era o dobro do
número de homens. Em 100 mulheres havia 74 viúvas,
22 solteiras, 4 casadas. 65 eram lúcidas e válidas, 35 invá
lidas ou senis. 80 viviam anteriormente sozinhas em habi
tações de um ou dois cômodos, em alojamentos de porteiras
ou em andares. Desses lugares, 21 eram verdadeiros tugú-
rios e, sobretudo, cubículos. Elas recebiam de 8 000 a 15 000
francos por mês (10). As 24 porteiras executavam pequenos
trabalhos. Em casa de uma delas encontraram-se 30 quilos
de açúcar, massas e arroz num armário. Em casa de outra,
200 000 francos escondidos em diversos lugares. Mantinham
boas relações com os filhos, com os parentes mais afastados,
amigos e vizinhos. 45 viúvas tinham filhos; e as relações
com eles eram boas, no caso de 32 delas. Em 30% dos19
286
casos, a ficha de hospitalização assinalava “miséria fisiológica”
ou “carência social” .
Hoje em dia, não se tem mais o direito de construir
retiros para aposentados de mais de 80 leitos que devem
ser obrigatoriamente colocadas em quartos individuais, des
tinados a pessoas sozinhas ou a casais. Nestes últimos anos,
foram construídos alguns estabelecimentos atendendo a estas
normas: 35 000 leitos. É ainda pouco e a situação continua
precária.
Todos os depoimentos se acham de acordo a respeito
da “grande miséria dos asilos franceses”, recentemente de
nunciada em relatório oficial pelo ministro da Saúde Pública.
Continuam sendo os mesmos “depósitos de mendigos” de
outrora. M. Laroque reconhece: “ Conhecia-se, antigamente
a fórmula de asilo onde se empilhavam inválidos, doentes
impossibilitados de deixar o leito e velhos válidos, com a
única preocupação de lhes fornecer um mínimo de abrigo,
muitas vezes no meio de uma promiscuidade escandalosa
e com um mínimo de alimentação. Infelizmente, esta fórmula
continua sendo largamente aplicada.” Em 1960, escrevia
o ministro da Saúde: “ São raros os asilos e retiros onde os
serviços sanitários são satisfatórios. Em muitos casos, po
de-se falar sem exagero em verdadeiro abandono médico.”
No mesmo ano, relatava a Inspetoria geral da Saúde:
“A observação e os cuidados médicos são insuficientes
na maioria dos asilos e casas de retiro públicos. Os velhos
acamados aí acabam a vida no meio de uma indiferença
aparentemente generalizada. Esta situação se faz ainda mais
inadmissível pelo fato de, atualmente, conhecidos os resul
tados satisfatórios conseguidos pela reeducação motora dos
hemiplégicos, podendo ser evitada na maioria dos casos a
permanência definitiva do paciente no leito.”
Na França se faz lamentável confusão entre asilo e
hospital. Na maioria dos asilos, acolhem-se inválidos e doen
tes de todas as idades. Dos 275 000 leitos destinados às
pessoas de idade — 25% dos quais pertencem ao setor
privado — 17% são ocupados por jovens: débeis e porta
dores de enfermidades motoras. 25,12% o são por inválidos.
Existe também a situação inversa. Além dos anciãos
entregues aos hospitais e que ninguém vem mais buscar,
287
chegam muitos velhinhos aos postos de pronto socorro tra
zendo bilhetes de seus médicos: “ O Sr. (ou a Sra.) X pre
cisa ser hospitalizado (a ), porque vive só e é idoso (a ).”
O hospital nunca os manda de volta. Na Salpêtrière e em
Bicêtre existem alguns que há vinte e quatro anos esperam
a morte nas salles-pourrisoirs de 50 leitos (20). Em Saint-
-Antoine, existem três salas de despejo onde os velhos espe
ram que outros morram para lhes tomar o lugar nos novos
hospitais abertos nos arredores de Paris, e que são bem
aparelhados mas cujas diárias custam 51 francos. Seria pre
ciso um aumento de pelo menos 16 000 leitos para se con
seguir desafogar os serviços retirando os doentes “ agudos”
que os ocupam.
Quer se trate de asilos ou de hospitais, cerca de 178 000
leitos se encontram em edifícios centenários. São, freqüen-
temente, antigos hospitais, castelos, quartéis, prisões de todo
inadequados a suas novas funções. Contêm muitas escadas,
muitas vêzes sem elevador, de modo que alguns velhos ficam
impossibilitados de sair de seu andar. Nos dormitórios e
enfermarias — condenados desde 1958 mas onde na rea
lidade se encontra a grande maioria dos leitos — doentes e
inválidos permanecem deitados durante o dia todo. Não
existem, amiúde, biombos entre as camas, nem mesinhas
de cabeceira ou armários individuais: o velho não dispõe
nem de uma polegada de espaço só para êle. Os sexos
são separados: velhos casais são impiedosamente apartados,
não sendo raro colocar-se o marido num hospital e a mulher
em outro. (Na primavera de 1967, um casal de octogenários
se afogou no Sena porque tinha sido separado). Quando
o asilo dispõe de quartos, estes são, em geral, reservados
aos pensionistas em condições de pagar as despesas. Quando
lhes sucede não mais poder enfrentá-las, transferem-nos para
os dormitórios e isto significa uma nova decadência. Os
locais são geralmente tão vetustos que os cômodos são muito
sombrios. Via de regra, o refeitório é guarnecido de grandes
288
mesas e de bancos e serve também, com demasiada fre-
qüência, de sala de estar. Esta, quando existe, é pequena
demais e mal arrumada. Além disso, faz frio, muitas vezes,
e não existe aquecimento central ou êste só funciona par
cialmente. As lavanderias e as cozinhas dispõem, em geral,
de aparelhamento mais moderno: mas o cardápio é idên
tico para todos e não se leva em conta, de modo algum, as
dietas que teriam sido indicadas para os diversos casos.
As instalações sanitárias são deficientes: não há banheiras
somente duchas, que os pensionistas utilizam uma vez por
semana, quando não uma vez por mês. O estado de “ aban
dono médico” é escandaloso. Habitualmente, há um médico
para 350 hospitalizados, mas acontece um único médico
ter a seu cargo 965 pensionistas. As despesas médias dos
asilos não ultrapassam 2,7% de seu orçamento, embora seja
enorme o número de situações patológicas graves.
Em tais condições, compreende-se que o ingresso num
asilo represente um drama para o velho. O trauma psicoló
gico é particularmente violento para as mulheres, ainda
mais apegadas ao lar que os homens. Manifestam sinais
de ansiedade e tremores. Muitas acabam se resignando.
Às vezes, a hospitalização parece devolver ao velho o gôsto
pela vida: sente-se menos isolado, contrai amizades; passa
a cuidar mais de si mesmo, por uma espécie de emulação.
Mas isto é raro.
Uma estatística levantada pelo Dr. Pequignot, e con
firmada por numerosos testemunhos, estabelece que entre
os velhos sadios recolhidos a um asilo:
8 % morrem dentro dos oito primeiros dias;
28,7% morrem no decorrer do primeiro mês;
45 % morrem no decorrer dos seis primeiros meses;
54,4% morrem no decorrer do primeiro ano;
65,4% morrem no decorrer dos dois primeiros anos.
19 289
número de casos: abandono, segregação, decadência, de
mência, morte.
Para começar, o pensionista se ressente das restrições
que lhe são impostas. O regulamento é muito severo e
rígidas as rotinas; deve se levantar e se deitar muito cedo.
Cortado de todo seu passado e do seu ambiente, vestindo
muitas vêzes um uniforme, êle se sente despersonalizado,
reduzido a um número. Habitualmente, são autorizadas as
visitas diárias, e a família comparace de vez em quando para
vê-lo: mas isto é raro, e não acontece nunca, em certos
casos. O acesso ao asilo é freqüentemente difícil, parentes
e amigos só podem ir até lá; aos domingos e desanimam
diante do tempo perdido em viagem. Êste dado é impres
sionante com relação ao estabelecimento oficial de Nanterre:
para chegar lá, leva-se duas horas de metrô e de ônibus,
do centro de Paris. É necessário realmente haver muita
afeição para que se sacrifiquem as poucas horas de lazer.
O velho se vê, portanto, abandonado. O diretor de uma
importante casa de recolhimento em Nice afirmou em en
trevista televisionada que somente 2% dos pensionistas re
cebem visitas. Em geral, as saídas não são livres: em
Nanterre, o pensionista tem direito a uma tarde por semana.
Não sabe muito bem como encher os dias. Encarrega-se,
de vez em quando, de alguma tarefa no asilo a fim de
ganhar um pouco de dinheiro: algumas mulheres são em
pregadas na rouparia ou na cozinha. Mas não sentem
nenhum interesse pelo trabalho. Quase todos são de baixo
nível intelectual, lêem muito pouco e não ouvem rádio.
A televisão, quando existe, lhes cansa a vista. Nem os jogos
de baralho os divertem: seu nível de interêsse se reduz a
zero e passam o dia todo sem fazer nada. Chegam até,
depois do desjejum, a voltar para a cama onde passam a
maior parte do tempo, a ruminar velhas idéias sôbre a doença
e a morte. Segundo o Prof. Bourlière, a única ocupação
capaz de interessar a uma coletividade de velhos é o traba
lho manual. Existe em Londres, anexa a um asilo, uma
oficina onde êles fabricam instrumentos diversos, como mu
letas etc., destinados aos membros impotentes da coleti
vidade; têm assim a impressão de serem úteis. Alguns pou
cos asilos nas zonas rurais são ladeados por hortas onde
alguns pensionistas gostam de trabalhar. Mas estes casos
290
são raros. Inativo, reduzido à condição de objeto, o velho
asilado se torna rapidamente senil. Só tem uma distração,
no dia em que lhe é permitido sair: a bebida. Muitos pen
sionistas ingressam no asilo abstêmios e se tornam alcoó
latras num mês. O dinheiro, que lhes é entregue para suas
pequenas despesas (21), assim como o que lhes rendem os
trabalhos por êles executados, é, muitas vezes, inteiramente
gasto em bebida. Por lei, devem medear pelo menos du
zentos metros entre a porta do asilo e o local mais próximo
onde se venda álcool; em Nanterre, é proibido servir aos
velhos bebidas alcoólicas outras que não o vinho: mas êste
já é suficiente. As ruas de Nanterre, próximas ao Recolhi
mento, ficam, no verão, cheias de velhos de ambos os sexos,
deitados no chão, sentados, encostados aos muros, aper
tando contra o peito garrafas de vinho e em estado de
completa embriaguez. Seu organismo já debilitado suporta
muito inal estas bebedeiras, e êles voltam para o asilo
cambaleando, berrando, vomitando, esta promiscuidade é
muitíssimo penosa para os pensionistas que gostam de lim
peza e de tranqüilidade. O vinho é muito favorável aos delí
rios de grandeza, que compensam durante alguns instantes
a miséria de suas vidas. Libera também a sexualidade:
durante a embriaguez se formam, freqüentemente casais
hetero ou homossexuais que se arranjam como podem para
saciar seus desejos.
A vida em comum é muito mal suportada pela maioria
dos hospitalizados; sentindo-se infelizes, ansiosos, voltados
para dentro de si mesmos, vêem-se amontoados sem que
nenhuma vida social seja organizada para êles. Sua suscep
tibilidade, suas tendências reivindicadoras, às vêzes até pa-
ranóides, provocam freqüentes reações violentas. No inte
rior dos asilos, aceleram-se todos os processos patológicos
a que está sujeita a velhice.
Êste tipo de existência foi muito bem descrito por
Jacoba Van Velde em La Grande Salle: êste romance só
pode ser fruto de observações pessoais muito sérias (22).
291
O autor descreve um asilo holandês para mulheres, visto
pelo prisma de uma nova pensionista. Trazida por uma
filha muito carinhosa, mas que já não dispõe de recursos
práticos para cudar dela, a “ novata” se sente angustiada
diante da perspectiva de não ter mais nenhum momento
de solidão. “ Sempre detestei que prestassem atenção a mi
nha pessoa. Atrair os olhares sempre foi um suplício para
mim!”, diz ela consigo mesma. Doravante, todos os atos
de sua vida, inclusive a morte, deverão realizar-se na pre
sença de testemunhas, muitas vezes maldosas ou na melhor
das hipóteses, críticas. “Nunca se está sozinha; é horrível,
há sempre gente em volta de nós!”, comenta com ela o
pensionista de outro asilo. . . “ E eles nos tratam como se
todas as pessoas idosas, sem exceção, estivessem na segunda
infância. Falam conosco como se fôssemos criancinhas de
um ou dois anos.” A velha se ressente muito mais desta
privação de qualquer espécie de vida privada e da meta
morfose que, de ser humano faz dela um puro objeto, do
que das amolações materiais.
Não pude ver Nanterre, cuja entrada me foi vedada:
visitei, entretanto, um asilo da Assistência pública, muito
bem localizado, em plena Paris. Abriga aproximadamente
200 pessoas, de ambos os sexos. É cercado por um grande
jardim cheio de árvores e de flores: foi por um belo dia
de outono e o sol penetrava a jorros em todas as salas.
Chão, paredes, lençóis, tudo estava cuidadosamente limpo.
Encontrei médicos atenciosos, enfermeiras jovens, amáveis
e dedicadas. No entanto, embora já estivesse muito bem
informada sobre a questão, não poderei esquecer o horror
daquela experiência: vi sêres humanos reduzidos a uma
abjeção total.
Alguns privilegiados, em condições de pagar uma pen
são cara, moram em quartos particulares; outros, em salas
contendo quatro ou cinco leitos. Mas a imensa maioria se
acha amontoada em dormitórios. Cada um dispõe de uma
cama, uma mesa de cabeceira, uma poltrona e um armàrio-
zinho colocado aos pés da cama. O espaço entre duas camas
representa mais ou menos a largura de duas mesas de
cabeceira e é aí que os pensionistas passam o dia: não con
tam nem com refeitório (exceto com um dormitório de
homens que tem uma sala de jantar como prolongamento).
2,92
As refeições são servidas sôbre uma mesinha, ao lado da
cama. Não têm sala de estar, salvo uma saleta tão incômoda
que eles não a utilizam nunca, nem mesmo para receber
as visitas. Por uma estranha anomalia que ninguém soube
explicar, os indivíduos válidos são alojados no andar térreo,
os semiválidos no primeiro andar e os inválidos no segundo.
Êstes são incapazes até de se mexerem: são alimentados e
limpos como as criancinhas; este gatismo, entretanto, não
tem nada de sereno: as fisionomias das velhas que vi esta
vam convulsionadas pelo horror e pelo desespero, imobiliza
das numa espécie de pavor imbecil. Talvez não se possa
fazer mais nada por elas. O primeiro andar constitui um
escândalo flagrante. Entre os semiválidos há muitos ca
pazes de se movimentarem de um extremo ao outro do
dormitório e em condições de sair: não lhes é possível,
entretanto, descer as escadas, e, não existindo elevador, fi
cam literalmente aprisionados. Desta maneira, até o jardim
lhes fica interdito. Para agravar a situação, no meio deles
são colocados velhos já incapazes de controlar as funções
de seu organismo e que passam o dia todo sentados em
cadeiras de assentos abertos; vivem todos juntos na mesma
sala cuja atmosfera se torna pestilenta. O andar térreo é
menos infecto e abafadiço, mas o coração do visitante se
confrange ao verificar a inércia gerada pela vida em asilo.
Sobretudo entre os homens, esta inércia é tão acentuada
que muitos dêles, embora ainda válidos, fazem tôdas as
suas necessidades na cama, como informou o médico: visto
que a sociedade os tomou a seu cargo, explicou-se êle, esses
indivíduos se entregam a ela de maneira total e levam a
passividade ao ponto mais extremo. (Suponho também
que eles suportam sua situação com ressentimento e buscam
vingar-se). Passam os dias inteiros sentados em suas pol
tronas e não fazem nada. Vi um homem deitado no leito,
fazendo tricô, outros dois, sentados jogando baralho, e só.
Segundo fui informada, dentre vinte pensionistas, somente
um lê os jornais. Alguns ouvem um pouco de rádio. Caíram
em tal estado de letargia que recusam qualquer distração
que lhes seja porventura oferecida: cerca de quarenta mu
lheres receberam uma proposta: foi-lhes oferecida uma
excursão de carro, gratuita, pelos arredores de Paris. So
mente duas aceitaram. As discussões são seu único diverti
293
mento: as mulheres sobretudo batem papo, se desentendem,
formam grupos, estabelecem alianças e as desfazem. Entre
os homens, alguns são agressivos e até violentos. Como em
Nanterre e em todos os outros lugares, não perdem uma
ocasião de beber. Gastam em vinho todo o dinheiro que
sobra da aposentadoria depois de pagar a pensão. Não têm
a menor dificuldade em consegui-lo pois não faltam no bairro
bares e adegas. Podem ser vistos, no verão, sentados nos
bancos de uma avenida próxima, segurando garrafas de
vinho. As mulheres também bebem. Quando voltam, de
tardezinha, mais ou menos embriagados, brigam com os
outros.
Os candidatos afluem todas as quartas-feiras: são admi
tidos apenas os mais ou menos válidos. (E lá permanecem,
mais tarde, quando se tornam inválidos ( 23). O espetáculo
de sua angústia chega a ser doloroso, quando são admitidos,
disse-me o médico. Sabem que estão deixando o mundo
dos vivos e que, ao penetrar ali, sua única perspectiva é a
morte. As mulheres, depois de superarem a angústia da
mudança, conseguem se adaptar um pouco melhor. São mais
sociáveis: suas tagarelices e bisbilhotices as mantêm entre-
tidas. Os homens ficam solitários e é aguda sua sensação
de decadência. Um dos internos me contou: “ Eu lhes per
guntava, no princípio, qual era sua ocupação antes; respon
diam que tinham sido bilheteiros em estações de metrô ou
operários, e se punham a chorar: eram homens naquela
época, trabalhavam. . . Compreendi e nunca mais lhes fiz
perguntas.” Muitos pensionistas já não têm família. Os
que ainda têm recebem de uma a quatro visitas por mês.
É impressionante o contraste entre as mulheres aloja
das em dormitórios e as que possuem um quarto próprio;
pude ver quatro: eram muito cuidadosas com sua própria
pessoa, liam ou faziam tricô e brincaram com o médico.
Numa sala de cinco leitos, bastante espaçosa, as pensionistas
me pareceram quase alegres: uma delas, antiga perita em
questões de estética facial, estava violentamente maquilada
embora só conservasse um dente. Numa grande sala com
294
três leitos, uma mulher, bem cuidada e sorridente, tinha
organizado um cantinho para ela, com duas mesinhas e o
parapeito da janela cheio de plantas. A vida daquelas
criaturas podería, aparentemente, se transformar, bastando
para isto um pouco de espaço e de intimidade.
Pareceu-me monstruoso o abandono moral em que
a administração deixa aquela gente. Se houvesse salas onde
eles se pudessem reunir, onde lhes fôssem propostas algumas
distrações, com monitores cuidando dêles, certamente não
despencariam com tão assustadora rapidez no plano incli
nado que os transforma em simples organismos. Mas, como
me disse uma enfermeira, no próximo ano serão tomadas
algumas medidas visando melhorar o padrão de vida no
asilo, preparar salas de estar etc. Só que a pensão passará
a custar muito mais caro. E, infelizmente, para os ocupan
tes atuais, eles serão evacuados para os arredores de Paris,
para Nanterre e Ivry.
295
Sentir-se brutalmente relegado da categoria dos indi
víduos ativos para a dos inativos e classificado no meio dos
velhos, sofrer um corte lamentável em seus recursos e em
seu padrão de vida, constitui, na imensa maioria dos casos,
um drama pejado de graves conseqüências psicológicas e
morais. Atinge essencialmente os homens. As mulheres vi
vem mais: são anciãs solitárias que constituem a camada
mais desfavorecida da população. Mas, em conjunto, a mu
lher idosa se adapta melhor que o marido às circunstâncias.
Dona de casa, criatura de vida doméstica, sua situação é
idêntica à dos camponeses e artesãos de antigamente: tra
balho e existência para ela se confundem. Nenhum decreto
exterior vem interromper brutalmente suas atividades. Estas
diminuem no momento em que os filhos adultos deixam a
casa paterna. Esta crise, que geralmente ocorre muito cedo,
as transtorna muitas vêzes. Mas não chegam a se ver in
teiramente desocupadas e seu papel de avós lhes abre novas
possibilidades. Não é muito grande o número de mulheres
que, dos 60 aos 65 anos, trabalham fora do lar. Salvo raras
exceções, elas empenham em suas profissões uma parte
dç si mesmas muito menor que os homens. Considerando-se
o número de mulheres jovens que não trabalham, a aposen
tadoria não as relega automàticamente a uma certa cate
goria de idade. E o papel que desempenham no lar e na
família lhes torna possível manter sua identidade e uma
ocupação. A elas cabem as responsabilidades domésticas e
o entretenimento das relações ativas com a família, sobre
tudo com os filhos e netos. A mulher toma então a frente
ao marido e, freqüentemente, esta superioridade lhe dá a
impressão de uma desforra. Algumas buscam, então, agres
sivamente, humilhar o homem em sua virilidade. As pessoas
idosas têm muita consciência desta mudança de papéis.
Uma prancha utilizada, no T .A .T . representa dois homens,
um jovem e outro velho, e duas mulheres, também uma
jovem e uma velha; os intérpretes da imagem não atribuem,
quando jovens, um papel muito importante à mulher idosa
mas, quando são idosos, o velho lhes parece apagado, sub
misso, esmagado pela espôsa. Esta lhes aparece como uma
dominadora e nela se encarna a lei. Esta interpretação re
flete a evolução normal do casal médio.
296
A aposentadoria introduz na vida do homem uma des-
continuidade radical: existe uma ruptura com o passado;
êle precisa adaptar-se a um novo estatuto que llie traz certas
vantagens — descanso, lazer — mas também graves desvan
tagens : empobrecimento, desqualificação.
Como escreveu Hemingway, “A pior morte para alguém
é a perda daquilo que constitui o centro de sua vida e
que faz dêle aquilo que êle é, na realidade. Aposentadoria
é a palavra mais repugnante da língua. Que isto se faça
por decisão própria ou porque o destino a tanto nos obriga,
aposentarmo-nos e abandonarmos nossas ocupações — essas
ocupações que fazem de nós o que somos — equivale a uma
descida ao túmulo.”
Como todos sabem, êle se suicidou, sem dúvida por
outras razões também, mas, em todo caso, no momento
em que se sentiu incapaz de continuar a escrever. Quando
o trabalho foi escolhido livremente e constitui uma comple-
mentação do próprio indivíduo, renunciar a êle equivale,
com efeito, a uma espécie de morte. Ser dêle dispensado
quando representou apenas um constrangimento, representa
uma libertação. Na realidade, existe quase sempre, uma
ambivalência no trabalho, que constitui ao mesmo tempo
uma servidão, um cansaço, mas também uma fonte de in
teresse, um elemento de equilíbrio, e um fator de integração
na sociedade. Esta ambigüidade se reflete na aposentadoria
que pode ser encarada como umas férias muito prolongadas
ou como uma redução à condição de refugo.
A escolha entre esses dois pontos de vista e a maneira
pela qual eles se poderão combinar, dependerão de nume
rosos fatores. Em primeiro lugar da saúde do indivíduo.
As organizações industriais e os agentes oficiais estabele
ceram a idade da aposentadoria por meio de uma lei geral.
Ora, como vimos, a idade biológica está longe de coincidir
com a idade cronológica: um operário cansado e desgastado
não terá as mesmas reações de outro que se afasta em plena
forma física e moral. Os professores a quem se faculta a
aposentadoria mais ou menos cedo, em geral condicionam
sua decisão a seu estado de saúde. Consultam um médico
e sua escolha é influenciada pelo diagnóstico do mesmo.
297
Saint-Évremond já escrevia em 1680: “ O que se vê mais
habitualmente entre a gente de idade é o anseio pela apo
sentadoria; e a coisa mais rara entre os que se afastaram
é a ausência de arrependimento por o haverem feito.” A
primeira parte da frase é verdadeira para muitos, mas não
para todos. É muito difundida a imagem da “ aposentadoria-
-milagre” que tornará finalmente possível a realização
de velhos desejos; mas existe, como contrapêso, uma ima
gem da “aposentadoria-catástrofe”. Por encararem a aposen
tadoria com muita apreensão, muitos trabalhadores evitam
pensar nela. Uma pesquisa levada a efeito entre os operá
rios do setor da construção, revelou que, um ano antes da
aposentadoria, 85% ignoravam completamente com que re
cursos poderíam contar. A C .N .R .O . lhes propôs a re
messa das informações necessárias: 95% dos indivíduos de
64 anos as solicitaram, 40% dos de 60 anos e quase ninguém
abaixo desta idade. Desta maneira, a aposentadoria desaba
sobre o trabalhador como a lâmina de uma guilhotina.
“ Eu nunca tinha pensado em parar de trabalhar: julgava
que morrería antes disso, sentia-me tão cansada” , declarou
uma funcionária. “ Nunca pensei em parar: foi minha vista
que falhou”, disse uma doméstica. “Acordei, um belo dia,
e me vi aposentado” , afirmou um operário inglês. E outro:
“ Na terça-feira, às 7*4 horas, da noite, eu ainda estava
trabalhando; quando acordei no dia seguinte não tinha mais
nada que fazer.” Segundo um inquérito realizado nos
E .U .A . por Moore, em 1951, 41% dos professores aguarda
vam a aposentadoria com impaciência, e 59% se mostravam
indiferentes ou refratários. Outro inquérito americano levado
a efeito entre operários da indústria do vestuário chegou à
conclusão de que 50% desejavam a aposentadoria, mas so
bretudo por se sentirem incapazes de continuar a trabalhar.
Outros inquéritos americanos sobre trabalhadores manuais
demonstraram que apenas um quarto, quando muito a me
tade deles, encaravam com satisfação a idéia de parar.
Foram recentemente interrogados, dois meses antes de
serem aposentados, 95 professores do departamento do Sena.
Perguntaram-lhes se receavam ter daí por diante a impres
são de estarem envelhecendo mais depressa; a resposta de
55% foi sim; o futuro lhes parecia melancólico. Outros res
ponderam não de maneira tão brusca que deu lugar à supo
298
sição de que também eles receavam a aposentadoria. “Vou
começar a tomar conhecimento de minha idade” responde
ram muitos. Sua profissão lhes agradava e sentiam-se reju
venescidos pelo contato com as crianças. Tinham mêdo de
se aborrecer, de se cristalizarem em hábitos e idéias anti
quadas; sentiam-se “postos de lado” . Tornando-se social
mente inúteis, também lhes parecia inútil continuarem a
viver. Temiam a solidão. Quanto mais avançada era a
idade, mais intensa a sensação de envelhecimento. As mais
atingidas, neste grupo, eram as mulheres solteiras. Nalguns
casos, entretanto, a existência de um cônjuge aumentava a
angústia: havia o receio de vê-lo suportar mal a situação.
A existência de filhos não contribuía para ajudar a enfren
tar o porvir, salvo quando viviam na companhia do futuro
aposentado: êste, então, não manifestava nenhum mêdo de
envelhecer. Os homens de 60 anos já avós, sentiam-se mais
velhos que os que ainda não o eram. Alguns professores
manifestaram de maneira aparentemente sincera que a pos
sibilidade de descansar iria, pelo contrário, rejuvenescê-los.
Projetavam ir viver no campo e interessar-se por muitas
coisas. Alguns se limitaram a afirmar ser-lhes indiferente
envelhecer. Várias professoras interrogadas, embora ca
sadas, trabalhavam por vocação e pela recusa da tradi
cional condição feminina: era-lhes detestável a perspectiva
de se verem a ela reduzidas.
Consumada a aposentadoria, as atitudes continuam va
riadas. Uma coisa deve ser observada: a disposição com
que o indivíduo entra nesta condição está relacionada com
a maneira com que a encarou. Interrogaram-se vários apo
sentados a respeito do que haviam esperado da aposenta
doria e do que achavam dela atualmente. 29% a estavam
achando mais agradável do que haviam esperado, 31% mais
penosa. Entre os primeiros, 51% a haviam aguardado com
idéias preconcebidas favoráveis; 66% dos que a estavam
achando pesada a haviam temido. Quando se é pessimista,
esta disposição de espírito geralmente se confirma e se
acentua; o mesmo se dá com o otimista.
Na maior parte dos casos, o trabalhador é constrangido
a se afastar do trabalho, o patrão o despede: ou então êle
próprio o faz por razões de saúde, por incapacidade. Na
290
verdade, êle não desejou esta nova condição (25). Prepa
rou-se, algumas vezes, para ela, fazendo projetos. Começa
pondo-os em execução. Se morava na cidade, vai se instalar
no campo. Realiza algumas viagens. Mas isto nem sempre
o ajuda a se aclimatar: os próprios projetos por vêzes se
esclerosam; na hora de agir, já não se tem tanta vontade
de o fazer.
Muitas vêzes também se percebe a gravidade do êrro
cometido ao se mudar de vida. Por exemplo: voltam à
terra natal, muitos operários que trabalham em constru
ções na região parisiense: aborrecem-se, em pouco tempo
e voltam para Paris. Muitos aposentados deixam sua resi
dência para vir para junto dos filhos: estes não lhes dão
atenção, os velhos hábitos foram sacrificados em vão. Ou
tros vão para a Côte d’Azur e descobrem que o clima é
ruim para seus reumatismos. Dão-se conta, além disso,
de que os aluguéis são elevados demais para suas posses
e se veem condenados a recorrer aos asilos. Não conhecem
ninguém e a solidão os faz sofrer. Mesmo quando os planos
são exeqüíveis, uma vez realizados, o indivíduo se vê de
mãos vazias: só havia conseguido adiar um pouco o mo
mento da adaptação. São raros os que tiveram a possibili
dade de elaborar um verdadeiro programa de vida. Para
os outros, “ a aposentadoria-guilhotina” constitui uma pro
vação e alguns dificilmente a superam ( 26). Uma pesquisa
realizada em Prairy City, nos E .U .A . teve o seguinte re
sultado: o tonus das pessoas que continuam a trabalhar é
muito superior ao dos aposentados: embora tenham menos
lazeres, suas atividades recreativas e sociais são muito mais
ricas.
Êste motivo, mas sobretudo a necessidade, como vimos,
leva muitos aposentados a buscarem um trabalho remune
rado. Poucos o conseguem e não encontram nêle as satisfa
ções proporcionadas por sua profissão anterior. É muito
raro que o lazer possibilite o desenvolvimento de uma vo
(25) Dánuzière conta em seu livro Les Délices du port que um chefe
de estação aposentado encaminhava-se todos os dias para a estação ferro
viária para contemplar melancòlicamente a passgem dos trens. Morreu
ao cabo de seis meses.
(26) Aconteceu em Phoenix, E .U .A ., no início de 1964.
SOO
cação até então sufocada. As pessoas, em geral, se conten
tam com atividades qualitativamente inferiores à profissão
antes exercida e não tão bem remuneradas. Pouco consôlo
lhes advem delas.
Desenraizados de seu ambiente profissional, os aposen
tados se veem na contingência de alterar o emprego de
seu tempo e todos os seus hábitos. Exaspera-se neles o
sentimento de desvalorização, tão freqüente na maioria das
pessoas idosas. Com efeito, êles não somente passam a
receber muito menos dinheiro, mas, mesmo o pouco que
recebem já não é ganho por seu trabalho. Quando forte
mente politizados, consideram a pensão como um direito a
que fizeram jus. Muitos, entretanto, veem nela quase uma
esmola. Deixar de ganhar seu próprio sustento parece a
seus olhos uma decadência. É através de sua ocupação e
de seu salário que o homem define sua própria identidade;
ao se retirar, perde-a, um ex-mecânico não é mais um me
cânico: não é nada. “ O papel do aposentado, diz Burgess,
consiste em não ter mais nenhum papel” . Significa portanto,
perder o lugar que lhe cabia na sociedade, a dignidade e
quase que até a realidade. Além disso, êles se aborrecem,
não sabem o que fazer de seu lazer. “A passagem da
atividade para a aposentadoria constitui, com efeito, um
período crítico para o empregado” escreve Balzac em Les
Petits Bourgeois. “Os aposentados que não sabem ou não
podem pôr outras funções no lugar das abandonadas, se
transformam de maneira estranha: alguns morrem, outros
se dedicam à pesca, distração cujo vazio lembra o de seu
trabalho nos escritórios.”
Segundo um inquérito feito em Bruxelas pelo Serviço
de identificação, 87% dos aposentados gostariam de tra
balhar pelo menos de vez em quando. Outro, realizado em
Paris, afirma que dois terços dos aposentados se queixam de
tédio: “Não agüento mais, estou me aborrecendo.” Disse
uma balconista: “ Volto para ver minhas companheiras.
Procuro reencontrar a atmosfera que constituiu minha vida
durante quarenta anos e da qual não posso prescindir.” Em
geral, as lamentações são mais numerosas entre os trabalha
dores manuais que entre os “colarinhos brancos” .
O inquérito de Tréanton revelou que um ano depois
de sua aposentadoria, entre 254 pessoas entrevistadas, havia
301
42,5% de insatisfeitas, 28,5% de satisfeitas, 16% contentes
com o repouso mas achando insuficientes seus recursos.
O maior número de satisfeitos estava entre os “ colarinhos
brancos” , cujo padrão de vida era melhor. O ódio pesa
mas o motivo essencial de descontentamento é a pobreza:
é por esta razão que os trabalhadores manuais são os que
mais lamentam ter deixado o trabalho, embora seu apego
à profissão seja menor que o dos “ colarinhos brancos” , cujo
padrão de vida era melhor. O ódio pesa mas o motivo
essencial de descontentamento é a pobreza: é por esta razão
que os trabalhadores manuais são os que mais lamentam
ter deixado o trabalho, embora seu apego à profissão seja
menor que o dos “colarinhos brancos” .
Os resultados de outro inquérito foram um pouco dife
rentes. Perguntou-se a um grupo de homens idosos recen
temente aposentados se êles tinham a intenção de continuar
trabalhando. Metade respondeu afirmativamente mas so
mente 16% desejavam ver retardada a idade do afasta
mento. Em outro grupo de aposentados, inquirido a res
peito de sua situação material, metade declarou não se achar
satisfeita; contudo, 39% recusavam o recuo da idade de
aposentadoria; esta perspectiva desagradava sobretudo aos
“colarinhos brancos” e não tanto aos trabalhadores manuais,
1/4 dos quais teria concordado em retardar 5 anos a apo
sentadoria, contanto que ganhassem 50% mais. Num grupo
de trabalhadores em construção, em 1968, verificou-se que
1/3 dos homens interorgados pediríam a liquidação de seus
papéis antes dos 65 anos. (No entanto, 8% continuam
trabalhado depois dos 65 anos sem reivindicar seu direito
à aposentadoria.) 82,5% dos homens gostariam de ver a
idade de aposentadoria fixada nos 60 anos. Todos recusavam
a idéia de um trabalho remunerado após o afastamento. Gos
tariam de se aposentar devido às suas condições de saúde.
As contradições, ou as incertezas nas respostas obtidas
nos diversos grupos provêm de duas exigências do trabalha
dor: o repouso e uma vida decente. Vê-se obrigado a sa
crificar um dos dois. O operário fica satisfeito diante da
perspectiva de não mais trabalhar, mas os problemas de
dinheiro, de saúde, e de moradia o preocupam. Sofre mais
que os comerciários, com o isolamento a que o condena a
redução de seu nível econômico: “Agora que já não tenho
302
mais dinheiro a quem é que eu posso interessar?... Não se
acha mais ninguém, quando se está na m iséria... Não
quero receber convites, já que não posso retribuir... Acho
sempre um pretexto para recusar os convites, porque sei
que não vou poder retribuir” . Tréanton ouviu muitos co
mentários deste gênero.
Tédio, sentimento de desvalorização, são traços que
também se observam no inquérito efetuado na zona leste de
Londres pela Nuffield Foundation. Um aposentado de 70
anos, ainda em condições de executar trabalhos leves, disse
com melancolia: “ Eu ainda não cheguei ao ponto de ter
de ficar num canto olhando os outros trabalharem, mas su
ponho que isto terá de rne acontecer.” Disse outro, nas
mesmas condições: “Gostaria de trabalhar até os 100 anos.
Quando a gente está velha, o trabalho preenche o vazio.
Houve um tempo em que eu esperava o momento de des
cansar, mas agora eu quero é trabalhar para encher o va
zio.” Townsend inquiriu homens aposentados há quatro
anos, tendo ouvido de um deles a seguinte queixa: “Não
gosto de ficar aqui, sentado. Gostaria que minha perna
me deixasse voltar ao trabalho.” E de outro: “ Não agüento
mais. Não tenho nada que fazer. Minha mulher toma conta
da casa. Quando faço alguma coisa, ela acha sempre mal
feito.” Uma mulher recorda o dia em que o marido se
aposentou: “ Que dia! Êle chorou e os filhos também!” E o
marido continua: “ Eu não sabia o que havia de fazer. Era
como no exército, quando a gente é metido no xadrez. Eu só
enxergava estas quatro paredes. Costumava sair antigamente,
no sábado à noite, com os companheiros e com os genros.
Agora não posso mais. Estou como um indigente. Não
tenho nem uma libra no bôlso, não podería pagar minha
p a rte ... Não vale mais a pena viver quando a gente se
aposenta.” E um leitmotiv incessantemente repetido: “ Ê
ridículo o que eu dou a minha mulher. É trás vezes nada:
tenho até vergonha.” O aposentado já não dispõe de dinheiro
suficiente para manter a casa, depende da mulher, dos filhos;
sente-se inútil, diminuído, arrasta-se de um lado para o
outro, procura prestar alguns servicinhos, mas em geral a
mulher acha que êle está atrapalhando e o manda dar umas
voltas. Uma esposa disse aos entrevistadores: “ Ê irritante
tê-lo em casa. Êle quer saber de tudo que se está fazendo
303
e fica fazendo perguntas.” E outra: “ Em lugares como êste,
eles não podem fazer nada quando deixam de trabalhar.
Não é como quando se tem um jardim. Êles morrem quando
param. Não quero que êle fique aqui.”
Em geral, as mulheres temem o momento da aposen
tadoria dos maridos: o padrão de vida terá de baixar, haverá
preocupações econômicas; êle ficará o dia inteiro atrás delas
e aumentará o trabalho dentro de casa. Somente em cír
culos economicamente bem favorecidos podem-se encontrar
algumas mulheres satisfeitas com a perspectiva de conviver
mais tempo com os maridos. Êste se sente, geralmente,
importuno, humilhado diante da mulher, muitas vezes tam
bém dos filhos, melhor adaptados que êle à vida moderna
e de padrão de vida superior ao seu. Têm-se visto chefes
de família tirânicos tornarem-se de um dia para o outro
tão tímidos que já não ousam nem cortar uma fatia de pão
sem pedir licença. Outros afundam na hipocondria.
Que influência exerce esta situação sôbre a saúde? As
opiniões divergem. A maioria dos gerontólogos franceses a
considera nefasta; o índice de mortalidade é muito mais
elevado, dizem êles, durante o primeiro ano de aposentadoria
que em qualquer outra época. Os americanos, aferrados
a um otimismo de encomenda, retrucam que isto só é
verdadeiro quando a aposentadoria é voluntária: quem a
provocou foi a saúde precária e não o contrário. Entre as
pessoas em boas condições de saúde, a aposentadoria com
pulsória não altera seu estado físico, pelo contrário, pode
até melhorá-lo proporcionando ao indivíduo repouso e sono.
Contudo todos reconhecem as relações existentes entre o
físico e o moral. Ora, até na América se admite que o moral
dos homens de idade sofre uma queda de ano para ano,
sobretudo entre os 65 e os 69 anos, logo após a aposentadoria
e especialmente quando seu estatuto econômico é deficitário.
Seu estado físico se vê necessàriamente afetado.
As angústias geradas pela aposentadoria levam por
vêzes a depressões demoradas. Segundo o Dr. Blajan-Marcus,
estas depressões superpõem vários elementos: a aposenta
doria vivida como um luto e um exílio, inscreve-se num fundo
de lutos mal liquidados, de dependência familiar, de tempe
ramento depressivo e, sem dúvida, de perturbações circula
tórias e glandulares, embora não seja fácil trazê-los à tona.
Quer dizer, o golpe desferido pela aposentadoria abate com
pletamente aquêles cujo passado foi marcado de uma ma
neira ou de outra. Eia revive as amarguras da separação,
o sentimento de abandono, de solidão, de inutilidade, gerado
pela perda de um ente querido.
Para se defender contra uma inércia nefasta em todos
os sentidos, o velho precisa se manter ativo: seja qual fôr
a natureza desta atividade, o conjunto de suas funções será
melhorado. O Professor Bourlière estudou um grupo de
102 ciclistas idosos: seu nível intelectual era muito superior
ao nível médio das pessoas de sua idade. Uma pesquisa
realizada por F. Clément e H. Cendron sôbre 43 octogená
rios borguinhões, muitíssimo bem conservados, revelou estar
sua saúde relacionada com sua atividade. A idade média
entre eles era 86 anos. 34% continuavam a exercer sua
antiga profissão em regime de tempo integral. 40% traba
lhavam com os filhos ou em empregos secundários. 26% já
não exerciam atividade profissional: mas se dedicavam à
leitura, à jardinagem etc. 61% nunca tinham considerado
seu trabalho cansativo. Todos levavam uma vida social
normal. No grupo mais ativo, a idade média era 87 anos;
era-o um pouco menos o grupo de 83 anos de idade média.
Os primeiros ainda exerciam muitas atividades físicas: bici
cleta, caminhadas, caça. Entre os segundos, 25% nunca
liam, nem mesmo jornais. Os outros se mantinham infor
mados. Em conjunto, 18% preferiam acima de tudo a leitura,
14% a caça. Somente 7% não tinham distrações.
Encontrar ocupações é, portanto, uma questão de suma
importância para as pessoas idosas. 40% a 60% deles cul
tivam — segundo inquéritos americanos — o que êles lá
denominam hobbies; entre os 50 e os 70 anos consagra-se a
ástes mais tempo que antes, mas em seguida êles passam a
despertar menos interesse. Não sabemos muito bem de
que maneira as pessoas de mais de 70 anos passam o tempo.
De um modo geral, já não demonstram prazer em atividades
que exigem habilidade e audácia; gostam menos de ler e
de escrever e, sobretudo, de variar suas ocupações. Segundo
um estudo feito por Morgan (em 1937, nos E .U .A .) sôbre
381 pessoas de mais de 70 anos, as principais atividades
eram: para 32,9%, tarefas domésticas; para 31,5%, jogos e
20 305
divertimentos intelectuais; para 13,6%, passeios e visitas:
9,6% satisfaziam-se sentando-se ao sol e olhando pela janela;
8,1% divertiam-se trabalhando no jardim, cuidando de ani
mais domésticos; 4,3% realizavam pequenos trabalhos re
munerados.
Quanto mais elevado o nível intelectual do indivíduo,
mais ricas e variadas permanecerão suas atividades. Os tra
balhadores braçais, entretanto, passam muito tempo sem
fazer nada. É elevada a porcentagem de velhos totalmente
inativos. Também neste sentido se pode falar em “turbilhão
para baixo” . A inatividade provoca uma apatia que mata
qualquer desejo de atividade. Carrel observou que o excesso
de lazeres é ainda mais perigoso para os velhos que para
os jovens: quanto mais prolongados, menos capazes serão
êles de os preencherem. O tédio lhes tira o desejo de
se distraírem. A um interlocutor que dizia, a propósito dos
pensionistas dos asilos: “ Mas êles, afinal, bem que poderíam
jogar baralho” , respondeu o Professor Bourlière: “ É a partir
dêste momento que se pode afirmar que êles se aborrecem:
quando têm possibilidade de se ocupar e não o fazem.”
É tão válida esta observação fora dos asilos quanto dentro
deles. O escritor inglês Angus Wilson estudou num romance,
L ’Appel du soir, a difícil acomodação de uma mulher de
65 anos, antiga gerente de um hotel, à sua condição de
aposentada. Instala-se em casa dos filhos que não têm, como
ela bem sabe, nenhuma necessidade dela: “Tinha como
que um momento de pânico quando lhe ocorria a idéia de
que sua nova existência só iria se compor de páginas em
branco.” Gostaria de se tornar útil mas não consegue apren
der a manipular os aparelhos elétricos da cozinha. Sua falta
de habilidade a torna angustiada, e a angústia prejudica seu
aprendizado. O filho se comporta para com ela da maneira
habitual aos adultos, é atencioso, educado: todavia, impa-
cienta-se com freqüência e lhe fala com aspereza. Só lhe
dão poucas tarefas e ela se assusta com a perspectiva da
esterilidade dos anos vindouros. Não se entrosa na vida
dos filhos, nem busca fazê-lo, pois se sente uma estranha,
uma criatura marginalizada. A melancolia a domina, mal
se interessa pela televisão, pela leitura. Dorme durante o
dia, deita-se à noite sem jantar, passeia maquinalmente,
numa espécie de torpor. Reage, após um incidente que
306
lhe dá a impressão de se haver tornado útil; quando read
quire um pouquinho de gôsto pela vida, começa a se inte
ressar por muitas coisas, particularmente pelos trabalhos
do filho que havia até então ignorado. Resolve não con
tinuar a viver como uma parasita e emigra para uma aldeia
de pessoas idosas. Não obstante esta conclusão timidamente
otimista, o fato digno de nota é que este romance descreve
uma situação sem saída.
Para defender os inativos contra a solidão e o tédio,
a Inglaterra, a Suécia e sobretudo os Estados Unidos in
centivam seu ingresso em associações. Algumas destas reú
nem homens de tôdas as idades. Outras, nos E . U . A ., foram
criadas especialmente para os velhos, quer por êles mesmos
quer por jovens. Organizam distrações: jogos, excursões,
representações teatrais etc. Também se criaram “ Centros
de dia”, fórmula sem equivalente na França; os primeiros
foram inaugurados durante a última guerra e seu número
chega a 40 em Nova Iorque. Aí se encontram os aposen
tados do bairro que podem assim ter alguma vida social e
exercer certas atividades: executam trabalhos úteis, tocam
ou ouvem música, são levados em excursões e se organizam
debates. As Igrejas e os sindicatos criaram centros similares.
Os membros de Clubes e os freqüentadores desses Centros
sentem-se mais felizes que os outros. Mas é também pelo
fato de se sentirem mais felizes que encontram prazer em
freqüentá-los. Recai-se sempre no mesmo círculo vicioso:
o excesso de miséria física ou moral elimina os meios de
a remediar. Quanto mais elevado é o nível de vida, mais
intensa é a participação dos indivíduos à vida social. A
idade sempre a faz diminuir. A metade das pessoas idosas
entrevistadas afirmou terem suas atividades sociais começado
a declinar a partir dos 50 anos; somente 1% as declarou
aumentadas. Em Orlando, metade das pessoas de idade
não pertencia a nenhuma associação, o mesmo se dando com
2/3 das de Palm Beach. Somente por meio de uma radical
transformação da situação seria possível combater a melan
cólica passividade da velhice. Demonstra-o a experiência
do Victoria Plaza: antes de serem para lá transportados,
quase todos os seus futuros habitantes passavam longas ho
ras cochilando ou sentados sem fazer nada. Quando se
viram num ambiente que correspondia a suas preferências
307
e integrados a uma comunidade, puseram-se a ler a assistir
a programas de televisão, a participar de atividades sociais.
Todavia, sucessos desta ordem só atingem a um número
reduzidíssimo de indivíduos.
Deve-se mencionar, na França, a experiência que vem
sendo realizada há três anos em Grenoble pelo Office Gre-
noblois des Personnes Âgées (O .G .P .A .). Criou êste órgão
23 clubes recreativos dirigidos por duas profissionais contra
tadas em regime de tempo integral, e por cerca de cinqüenta
voluntárias. Seus membros — aproximadamente 2 000 sendo
1 500 freqüentadores assíduos — exercem atividades cultu
rais, manuais, físicas: tanto homens como mulheres de mais
de 80 anos seguem cursos de ginástica. O Office também
abriu um centro de preparo para a aposentadoria. O em
preendimento é interessante mas só beneficia também a uma
minoria muito reduzida. A situação da maioria pode ser
resumida pelo slogam proposto por um clube recreativo
recentemente criado em Paris no XIII arrondissement:
“A aposentadoria é o tempo dos lazeres, mas é também o
tempo do tédio.”
“A aposentadoria e o esfacelamento da célula familiar
se adicionam para tornar solitária, inútil e sinistra a con
dição do velho” , escreveu um sociólogo francês. Nos países
capitalistas — salvo nos escandinavos — e sobretudo na Fran
ça, é assim que surge a nossos olhos a situação reservada
aos velhos; mas as duas causas apontadas só produzem efei
tos a tal ponto desastroso devido ao contexto em que se
inserem. O destino dos velhos seria menos sinistro se o
orçamento a êles consagrado não fôsse tão ridiculamente
insuficiente. O aposentado que nem sequer pode tomar um
copo de vinho com os amigos, privado de um lugarzinho
exclusivamente seu e onde possa ficar, ou de um cantinho
de jardim que lhe seja possível cultivar e até de recursos
para comprar um jornal, sofre menos em conseqüência do
excesso de lazeres que da impossibilidade de os utilizar e
de sua própria decadência. Uma pensão e uma moradia
decentes lhe poupariam uma humilhação aniquiladora e lhe
permitiríam um mínimo de vida social.
Contudo, a inutilidade faz sofrer até mesmo os velhos
favorecidos pela fortuna. Paradoxalmente, em nossa época,
308
as pessoas de idade gozam de muito melhor saúde, ficam
“jovens” durante muito mais tempo e, com isto, a falta de
ocupação lhes parece ainda mais pesada. Na opinião de
todos os gerontólogos, é psicológica e sociologicamente im
possível viver os últimos vinte anos de vida em boas con
dições físicas sem desempenhar nenhuma atividade útil.
Êsses sobreviventes necessitam encontrar razões para viver:
a “ sobrevivência bruta” é pior que a morte. “Ninguém
pode ser aposentado e continuar a viver” , declarou um ex-
-mecânico quando lhe pediram que explicasse as razões
de seu gesto: havia ferido gravemente um policial atirando
duas vezes contra êle, sem nenhum motivo aparente.
Uma aposentadoria gradual apresentaria, com tôda cer
teza, menos inconvenientes que a “ aposentadoria guilho
tina” , a aposentadoria radical. Comprova-o o fato de pro
curarem os trabalhadores independentes — exceto em casos
de doenças graves — organizar lazeres cada vez mais pro
longados, continuando a trabalhar durante muito tempo,
pelo menos em pequenas doses. Houve uma sugestão no
sentido de se proceder por etapas também no caso dos 1
assalariados. Por exemplo: as funções seriam divididas em
várias categorias, de acordo com o esforço requerido, e o
operário descendo devagarinho da mais difícil para a mais
fácil. Seus horários seriam reduzidos. Salvo nos casos de
invalidez total ou de doenças graves, estas soluções pode
ríam satisfazer a maioria pois a inatividade completa lhes
parece insuportável. Só que elas implicariam uma trans
formação radical da sociedade. Para começar, seria neces
sário calcular a aposentadoria tomando como base o salário
mais elevado; esta condição seria imprescindível para que
o operário pudesse aceitar no fim da vida um tipo de tra
balho menos cansativo e não tão hem remunerado. Em
segundo lugar, não deveria pairar sobre os jovens e os adultos
a ameaça do desemprego.
Poucas questões são, hoje em dia, tão controvertidas na
França quanto a da idade da aposentadoria. Os gerontólogos
lamentam ver as pessoas de idade condenadas a uma inati
vidade que lhes apressa a decadência. Os sindicalistas, en
tretanto, se opõem à elevação da idade do afastamento,
pleiteando até sua redução. Como primeiro argumento, êles
alegam a necessidade de ropousar para o trabalhador. Tal-
309
vez o excesso de lazer constitua de fato um perigo, pensam
eles. Mas dadas as condições atuais de trabalho, é ainda
mais perigoso prolongar a atividade. O Doutor Escoffier-
-Lambiotte fêz referências a uma pesquisa sobre os ope
rários parisienses, em Le Monde, em 1967. Segundo seus
resultados, as condições físicas e morais dos mesmos eram
menos satisfatórias que as do parisiense médio. Foram exa
minados 102 operários qualificados, escolhidos ao acaso na
lista de pagamento de uma grande fábrica de automóveis.
Com menos de 55 anos, sua tensão arterial é mais elevada,
o ritmo cardíaco mais acelerado, a fraqueza muscular mais
acentuada, mais numerosos os distúrbios cardiovasculares,
assim como mais freqüentes os do sono. Observa-se tam
bém um declínio prematuro de suas faculdades intelectuais.
Na medida em que requerem menos força muscular, os
trabalhos são menos penosos nas sociedades modernas; to
davia, a aceleração das cadências, somada à extrema divisão
das operações, aumenta o desgaste. Como já disse, esta
degradação não se acha naturalmente relacionada com a
senescência mas sim com o regime de trabalho. Enquanto
esse não fôr modificado, será preciso reivindicar para os
velhos operários o direito ao repouso.
Por outro lado, como argumentam os sindicalistas, numa
economia baseada no lucro, não se pode pensar em criar
uma reserva de mão-de-obra barata, uma espécie de sub-
proletariado que viria superexplorar a classe patronal e
tornar muito menos eficazes as lutas operárias. Tais argu
mentos são decisivos. A sociedade, tal como é, impõe uma
escolha monstruosa: devem-se sacrificar milhões de jovens
ou permitir que milhões de velhos vegetem miseràvelmente
Todo mundo está de acordo em rejeitar a primeira solução:
resta, portanto, a segunda. Não se trata somente dos hos
pitais e dos asilos: a sociedade tôda constitui para os velhos
um imenso “morredor” .
Quando se pergunta às pessoas idosas se desejam con
tinuar a trabalhar ou se preferiríam afastar-se, nota-se um
aspecto doloroso em suas respostas: são sempre de caráter
negativo as razões invocadas. Os que preferem continuar,
o fazem por medo da pobreza; os que escolhem o afasta
mento, estão preocupados com a própria saúde: nenhuma
das duas modalidades de vida é encarada como fonte posi
310
tiva de satisfação. Não se sentem realizados nem no tra
balho nem no lazer: nem um nem outro dependem de uma
opção livre.
Em Lê Socialisme difficile, Gorz demonstrou perfeita-
mente que, ao trabalho forçado, corresponde o consumo
passivo. O “indivíduo molecular” não está à vontade nem
no trabalho nem no consumo. Ora, a velhice é o não-tra-
balho, o simples consumo: os “ lazeres passivos” de tôda a
existência só podem levar ao grande “lazer passivo” da
aposentadoria: vegeta-se esperando a morte.
A tragédia da velhice representa a condenação radical
de um sistema de vida mutilador: um sistema que não ofe
rece à imensa maioria de seus componentes o menor incen
tivo para viverem. O trabalho e o cansaço mascaram esta
ausência, mas ela se revela no momento da aposentadoria.
Ê muito mais grave que o tédio. Ao se tornar velho, o
trabalhador já não encontra lugar na Terra porque, na rea
lidade, nunca lhe foi concedido lugar algum: êle, simples
mente, ainda não havia tido tempo de o perceber. Ao des
cobri-lo, mergulha numa espécie de desespero atoleimado.
À luz desta realidade, todos os “ elogios da velhice” sur
gem como exercícios de retórica para uso exclusivo daqueles
que outrora eram denominados os “eupátridas” . Durante
séculos, os escritores só se preocuparam com êles. Cícero
e Schopenhauer reconheceram, de maneira muito rápida e
em pouquíssimas palavras, que, nem para o sábio, ser velho
e pobre representa uma situação suportável. Não se detêm
e se congratulam pelo fato de que a idade liberta o homem
das paixões. Sabemos hoje que a expressão “velho e pobre”
é quase pleonasmo. A velhice talvez liberte das paixões
mas exaspera as necessidades devido a sua incapacidade em
as atender: os velhos têm fome, têm frio e isto os pode matar.
Somente então se veem “libertos” de seu corpo pelo nada:
antes disso, êste corpo existe cruelmente e representa frus
tração e sofrimento. Em nenhum outro aspecto se mani
festa de maneira tão aberta a indecência da cultura que
herdamos.
311
viver” . O número de suicídios é muito maior na velhice
que em qualquer outra idade. Durkhein foi o primeiro
a fazer levantamentos estatísticos demonstrando a crescente
percentagem de suicídios, dos 40 aos 80 anos. Na França,
entre 1889 e 1891, era o seguinte o número de suicidas em
cada grupo de idade e de estado civil, contados sobre cada
milhão de habitantes:
HOMENS MULHERES
312
22/100 000 quadragenários se suicidam: êste índice cresce
com a idade, chegando a 697/100 000 aos 80 anos. Alguns
velhos se suicidam em conseqüência de estados de depres
são nervosa que resistiram a todos os tratamentos: mas a
maior parte são reações normais a uma situação irreversível,
desesperada, considerada intolerável. Em seu trabalho Sui
cide in old age, (1941), Gruhle sustenta ser a psicose rara
mente causa de suicídio dos velhos. Êste seria explicado
por fatores sociais e psicológicos: declínio físico e mental,
solidão, ociosidade, inadaptação, doença incurável. Em sua
opinião, o suicídio nunca resulta de um episódio depressivo
singular, isolado, mas sim da história de tôda a existência.
313
ÍNDICE
Introdução.............................................................................. 5
Preâm bulo.............................................................................. 13