A História Psicológica de Lucien Febvre e Marc Bloch
A História Psicológica de Lucien Febvre e Marc Bloch
A História Psicológica de Lucien Febvre e Marc Bloch
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A HISTÓRIA PSICOLÓGICA DE LUCIEN FEBVRE E MARC BLOCH
RESUMO. Lucien Febvre e Mac Bloch editam obras no primeiro meado do século
XX que caracterizam uma metodologia diferenciada das escolas históricas
consolidadas até então, inaugurando a história problema alicerçada pela
interdisciplinaridade, e pela apreensão da produção mental, ou utensilagem mental
da época em recorte, construindo uma História Psicológica através da
instrumentalização de categorias como Crenças, Religiões e Religiosidades. Este
artigo discute através das obras Os Reis Taumaturgos: O Caráter Sobrenatural do
Poder Régio em França e Inglaterra; O Problema da Incredulidade no Século XVI: A
Religião de Rabelais; e Martinho Lutero, Um Destino, a História Psicológica dos
fundadores da Escola de Annales, e o papel que as Crenças exercem nessa
historiografia. As referências elencadas permitem adentrar o estudo que
contextualiza as obras e as insere num debate sobre a identidade da Historia frente
as demais ciências sociais, abrindo um leque de possibilidades sobre a inovação
que a História Psicológica promove à historiografia.
Palavras-chave: História Psicológica; Psicologia Coletiva; Crenças.
Introdução/Justificativa
Em 1929 Lucien Febvre e Marc Bloch, por meio da fundação da Revista de História
Econômica e Social, encaminham da Universidade de Estrasburgo, França, uma
movimentação historiográfica que entrou para a história com o título de Escola de
Annales. As características básicas que definem esse movimento são a
interdisciplinaridade, a problematização da história, e a apreensão da utensilagem
mental. (DOSSE, 1992)
3465
que se pensa sobre ele, expressando um produto inédito. Nisso consiste a ideia de
inovar a historiografia, de acordo com Michel de Certeau:
Objetivos
Resultados
3466
encharcada pelas crenças e religiosidades que caracterizam as sociedades no
século XVI da Europa Ocidental; enquanto que Marc Bloch investiga a Concepção
de Realeza Sagrada Cristianíssima, perscrutando as crenças que mantiveram a
ordem social no período da longa duração da História Medieval à Moderna.
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meio da instituição, resultando num quadro de fé pontuado pela cristianização de
costumes tradicionais no seio do povo. (FEBVRE, 2009, p. 198-207) Mas, a
possibilidade de não crer não estava posta para os homens antes da racionalidade
iluminista do século XVIII.
Para esclarecer sobre o que fez François Rabelais ser entendido como um
ateu, tanto para alguns de seus contemporâneos, quanto para modernistas dos
séculos XIX e XX, Febvre, densa e esmiuçadamente, distingue entre o linguajar da
época do literato e o modo como as narrativas são tecidas pelos homens que
pensam o passado. (FEBVRE, 2009, p. 291-359) Dessa forma demonstra os
engodos de uma suposta epistemologia, os enganos aos quais recorrem os
anacrônicos.
1
Cf.: CERTEAU, Michel de. A produção do Tempo: Uma Arqueologia Religiosa. In: CERTEAU, Michel de. A
Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 152-
164.
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torna-se responsiva ao discurso a partir da formalidade das práticas. Desta feita,
Febvre leva a crer que o conceito de ateu no século XVI não era o mesmo conceito
de ateu que se tem no século XIX, tampouco no século XX. O ateu do século XVI
era o herege, ou seja, não o que não cria, mas o que discordava. Discordar, destoar
da doutrina dominante, entoar uma nova forma de crer, são atitudes que provocam o
deslocamento do discurso, o qual se faz reordenado por meio da formalidade das
práticas, que por sua vez, embasa a narrativa. (CERTEAU, 1982)
2
Cf.: Certeau, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1982.
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fenômeno aparente em duas sociedades rivais, porém não antagônicas, no longo
período medieval e moderno. É essa crença que porta o elemento crucial na
pesquisa de Bloch: a concepção de realeza sagrada cristianíssima que endossou a
história do milagre.
3
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O Peregrino E O Convertido: A Religião Em Movimento. Tradução de João Batista
Krueuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
4
Ibidem, p. 107-137
3471
Esse processo interior de Lutero, reflexo às suas ponderações sobre o que
aprende e acredita e o que verifica ser praticado, tem, na escrita de Febvre o valor
de o dimensionar como um homem de seu tempo, construído por meio da dinâmica
de suas relações, representativo de um contexto social. Martinho Lutero, Um Destino
traz em seu bojo não somente a biografia do monge reformador, mas os
questionamentos quanto a personalidade de Lutero feitos a partir do estudo das
fontes, da análise dos “luterólogos”, de modo a conjugar o que se tem a respeito da
vida de Lutero com o que se vivia em sua temporalidade. (FEBVRE, 2012, p. 25-49).
Marca registrada da escrita de Febvre, a rejeição pelo anacronismo, leva-o a ensejar
as variadas facetas com que se construiu a imagem de Lutero, a fim de demonstrar
que bem ou mal intencionada, essa personalidade não pode ser definida por um
santo ou um demônio, conforme querem os que sobre Lutero fazem defesa ou
acusação. Constitui-se num personagem excepcionalmente humano: mentiroso ou
contraditório, orgulhoso ou concupiscente, profundamente convertido ao cristianismo
ou produto do cristianismo que vivenciou através da Igreja Católica.
Sendo assim, Bloch ao analisar o toque régio nos dois países – França e
Inglaterra – visualiza a ação do conjunto social. A psicologia da sociedade é
impreterivelmente estudada por Bloch para entender como aconteceu em França e
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Inglaterra que o conjunto da sociedade, de acordo com o grau de consciência e a
posição social de cada indivíduo acomodado a sua camada social, criou, aderiu e
propagou a crença no milagre de cura das escrófulas pelo toque régio. Embora o
fator político estivesse presente e fosse beneficiário, existiu um grau de
envolvimento que informa sobre a situação da construção mental nesse espaço e
nesse tempo para as duas sociedades em questão.
Considerações finais
55
Cf. Enciclopédia Einaud. Crenças. Volume 36. Vida-Morte-Tradições-Gerações. Portugal: Imprensa Nacional
Casa da Moeda, 1997.
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partir de manifestações religiosas, que se faz Antropologia Histórica6, e que se faz
História Psicológica7.
As referências que elencamos, entre as quais Jacques Le Goff, Henri Berr,
François Dosse, e Peter Burke, são esclarecedoras quanto ao processo que levou à
ruptura com anteriores paradigmas estabelecidos, promovendo a inovação
historiográfica, assim como são imprescindíveis para entender como o manuseio da
interdisciplinaridade pelos fundadores da Escola de Annales oportunizou aos
mesmos nova metodologia, inaugurando o que passou a ser considerado História
Psicológica, por fazerem dos estudos etnográficos e da apreensão da expressão do
psicológico coletivo o objeto de suas pesquisas. Michel de Certeau, no texto
estudado, conferiu o entendimento sobre as características de uma narrativa
científica, o que oportunizou caracterizar os trabalhos de Bloch e Febvre
referendados neste estudo como verdadeiros trabalhos científicos.
Ao traçarmos um paralelo entre as escritas de Bloch e Febvre, ao passo que
cada qual demonstra seu particularismo – ou seja, Lucien Febvre persegue a
Psicologia revelada pela Utensilagem Mental de uma época, enquanto Marc Bloch
acentua a Pesquisa Antropológica – encontramos uma imbricação na qual ambos
encontram-se: a história problema8.
6
Cf.: LE GOFF, Jacques. Prefácio. In: BLOCH, Marc. Os Reis Taumaturgos: O Caráter Sobrenatural do Poder
Régio, França e Inglaterra; tradução Júlia Mainardi, São Paulo: Companhia das Letras, 1993, p. 9-37.
7
Cf.: BERR, Henri. Prefácio. In: FEBVRE, Lucien. O Problema da Incredulidade no Século XVI: A Religião de
Rabelais. Tradução Maria Lucia Machado; São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 15-27.
8
Cf.: FEBVRE, Lucien. Combates pela História. Tradução Leonor M. Simões e Gisela Moniz. Lisboa: Editorial
Presença, 1989, p. 30-32.
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confere. E assim também é para Lucien Febvre, que nas duas grandes obras
elencadas para essa discussão, privilegia o universo psicológico de seus
protagonistas como referência para o Psicológico Coletivo das sociedades em que
se encerram.
Referências
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