O Embaixador - Morris West PDF

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O Embaixador

Morris West
NOTA DO AUTOR

Esta é uma obra de ficção, feita conforme o método literário consagrado de povoar uma
situação histórica de personagens extraídas da imaginação do autor.
Quem buscar identificar os atores deste drama a personagens reais, vivas ou mortas,
ver-se-á cercado de anomalias. Quem aceitar a ficção verificará, conforme espero, que a
obra é fiel a seus próprios termos de referência.
M. L. W.

"0 céu, terra e eu somos da mesma raiz.


As dez mil coisas e eu somos da mesma substância."
(Atribuído a Sojo, o "Monge Sábio".)

"Todas as coisas te traem, a ti, que Me traíste."


(Francis Thompson, The hound of heaven.)

"A sombra guarda, de nossa personalidade, os lados que


não se desenvolveram, as possibilidades, capacidades e
intenções inconscientes de nossa alma. Em muitas ocasiões
essa sombra é chamada de nosso irmão das trevas."
(Ernst Aeppli, Psychologie des Bewusstens und
Unbewusstens.)

Capítulo um
Minha folha de serviços como diplomata é boa. Na carta protocolar de agradecimentos
que me enviou, o presidente lhe chamou "carreira destacada e meritória, em que o total
de serviços prestados foi de grande proveito para os Estados Unidos da América". Pude
aceitar o cumprimento com certa ironia, ruas tinha, ao menos, a certeza de merecê-lo.
Servi ao Departamento de Estado durante trinta e cinco anos, dez dos quais na
qualidade de embaixador, e tive meu quinhão de postos difíceis, recebendo também
minha cota de "abacaxis". Acredito que meus próprios inimigos reconhecem que não
foram muito grandes as minhas falhas e que consegui um ou dois êxitos brilhantes.
Alguns amigos dizem que a minha decisão de abandonar a carreira diplomática antes
do tempo foi o que fiz de mais inteligente até agora, e acentuam que, por um lado, estou
muito bem com o presidente, que pode chamar-me de volta quando quiser, na qualidade
de negociador especial, e, pelo outro, estou livre para cuidar das minhas ambições
políticas.
É claro que tais amigos supõem que eu tenha essas ambições, e lastimo que me
atribuam tamanha capacidade calculista. No entanto, por que me deveria sentir magoado
por isso ? Sempre fui conhecido como um negociador frio, e tem certo valor diplomático a
reputação de inflexibilidade. Se mudei, meus amigos dificilmente tiveram tempo de notá-
lo, e como podem conhecer a consciência íntima de Maxwell Gordon Amberley (que sou
eu), quando ele próprio só a veio conhecer tão tarde?
Até o momento presente, segui sempre as convenções do serviço diplomático e
preparei minha saída com dignidade realmente bíblica. Depois da morte de Phung Van
Cung, esperei todo o prazo de doze meses no cargo, mais do que bastante para absolver
o governo de meu país de qualquer culpa por ela, ou de responsabilidade por suas
conseqüências. Depois disso, fiz a visita regularmente a Washington a fim de render
vassalagem e pedir outro lugar, estive num hospital de Nova York para um exame médico
completo e, três semanas depois, podia anunciar minha aposentadoria do serviço
diplomático, alegando saúde precária.
O motivo real ? É para descobri-lo que estou aqui, no velho santuário Zen de Tenryu-ji,
o Templo do Dragão Celeste, perto de Quioto, no Japão.
Estamos no outono e os bordos sagrados na entrada mostram-se vermelhos como
fogo, contra a muralha verde dos pinheiros. O céu tem a cor da casca de urna pérola e as
folhas caídas juncam tranqüilamente a superfície dos pequenos lagos, os caminhos de
areia varrida, as pedras e o verde vigoroso das faixas de limo.
Há ocasiões em que ando pelo jardim e observo os monges cuidando das plantas com
atenção, de modo toda especial, "tornando cada folha de grama um Buda dourado". Em
outras, sento-me na casa de Muso Soseki, de pernas cruzadas, sobre uma esteira de
palha, tomando chá por ele preparado para mim de forma toda cerimonial e
acompanhando-o no método meditativo de diálogo chamado mondo...
- Para que vem a este lugar?
- Pra buscar esclarecimentos.
- Por que não o encontrou?
- Porque o procuro.
- Onde o encontrará ?
- Em parte alguma.
- Quando o encontrará?
- Em tempo algum.
Assim se trava o diálogo, que tem o mesmo jeito do templo, da casa e do jardim. Tudo
é parcimonioso, alusivo, arrumado, estendendo-se infinitamente, como a esteira onde nos
sentamos, e que parece deslizar e fundir-se com a areia dos caminhos e as ondulações
criadas pela carpa nos tanques do jardim.
Muso Soseki é monge do culto Zen e também poeta, jardineiro, mestre de caligrafia e
da arte de imprimir com blocos de madeira. As pinceladas de seu nome significam
"Janela-Que-Se-Abre-Sobre-Um-Sonho". Tem setenta e cinco anos de idade, mostra-se
rijo, bronzeado e batido pelo tempo como uma pedra antiga. O rosto calmo, exprimindo
benignidade e radiante disposição. Concordou em aceitar-me como discípulo e, usando
os métodos do Zen, sacudir, incentivar e abalar-me para aquele momento de intuição e
iluminação chamado satori.
Tenho necessidade de iluminação - uma grande necessidade mesmo - e lamento
apenas não ter ficado aqui para descobrir isso três anos antes, quando George Groton me
trouxe pela primeira vez, após a morte de minha esposa.
Naquela época eu era embaixador, personagem dourada no drama diplomático de
Tóquio. Quem quiser examinar o mapa e marcar os vetores de poderio político na Ásia
compreenderá a natureza e medida de minha influência. Acredito ter sido eficiente. Tenho
inclinação para o idioma, gosto por costumes exóticos e boa audição para as notas de
acompanhamento em qualquer execução musical, e tudo isso são acervos valiosos numa
civilização esotérica. O mais que eu apresentava, então, não era de minha natureza, mas
uma dádiva que Gabrielle me fazia.
Minha falecida esposa era dona de encanto pessoal, tato, bom humor e harmonia
luminosa que transbordavam de sua vida e vinham valer á minha e valorizá-la. Quando
morreu, essa harmonia se desfez, tornando-se uma discórdia gritante; de repente,
pareceram avolumar-se todas as fendas e apresentar-se todos os defeitos em minha
personalidade.
Eu jamais tivera quaisquer crenças firmes, de natureza espiritual, e, vivendo sob a
bênção profunda de uma mulher que amava, nunca senti grande necessidade delas.
Tinha sentimentos religiosos, certamente, e não desgostava de freqüentar as cerimônias
da Igreja, chegando a gostar delas quando os deveres oficiais me impunham a presença.
Quanto ao mais, contentava-me com o reconforto de meus deuses familiares e da
sacerdotisa que os ministrava, a eles e a mim.
Agora que morrera, era como se todos os meus santuários houvessem ruído de
repente e eu precisasse procurá-los debaixo da terra e sem qualquer luz. Recusava todas
as manifestações de pesar, tornei-me brusco, enérgico e meticuloso. O pessoal que
trabalhava comigo achava-me insuportável e meus colegas se afastavam. Somente os
japoneses, gente esquizofrênica, pareciam dispostos a aceitar minha necessidade de um
período de loucura terapêutica.
Foi um de meus auxiliares, George Groton, terceiro secretário, quem teve perspicácia
bastante para ver o que acontecera comigo. Não se mostrava desconcertado pela minha
ira, nem minha arrogância o fazia distanciar-se.Era operoso, bem-humorado e não
demonstrava receio algum. Moço alto, esgrouviado, de óculos, com ombros caídos e
guedelha ruiva, ainda assim em raros momentos de brandura eu me via desejando ter um
filho igual a ele.
Certa noite, quando Groton era o funcionário de dia na Embaixada, teve de me acordar
em vista de mensagens recém-chegadas. Eu bebera demais antes de deitar-me e estava
muito indisposto. Fui por isso intoleravelmente grosseiro com ele, que respirou fundo,
plantou-se bem diante de mim e disse:
- Embaixador, está-se destruindo e destruindo a harmonia da Embaixada. Se não quer
que o ajudemos, permita-nos ao menos realizar o trabalho tão bem quanto possível.
Olhei-o, atônita com aquela audácia, mas Groton deu de ombros e acrescentou com
um sorriso que me desarmou:
- Pode mandar-me voltar para os Estados Unidos, mas alguém tinha de dizer-lhe isso.
- E por que tinha de ser você?
- A Sra. Amberley sempre foi muito gentil comigo, e, antes de morrer, fez-me prometer
que o ajudaria.
Fiquei tão envergonhado que não consegui falar. Apanhei as mensagens e me
tranquei no quarto, onde chorei como uma criança. Na manhã seguinte, escrevi para
Groton um bilhete um tanto seco, pedindo desculpas e apresentando agradecimentos.
Uma semana depois me convidou para fazer arte de um grupo da Embaixada que ia a
Kurama assistir ao festival anual do fogo. Kurama fica a pequena distância de Quioto, e
era a coisa mais natural do mundo que ali visitássemos o Templo do Dragão Celeste e eu
viesse a conhecer Muso Soseki.
Se Groton não tivesse morrido, seria um grande diplomata. Era homem simples, que ia
rapidamente ao cerne dos problemas, mas bastante delicado e bem-humorado para se
adaptar aos processos mentais tortuosos dos outros. Quando o vi ser atingido por morte
violenta em Saigon, chorei de novo e, desde então, não derramei mais uma só lágrima
por homem ou mulher.
Muso Soseki me recebeu com a cortesia simples de homem harmonizado consigo
próprio, sua história e seu mundo. Passeou comigo pelo jardim do templo, interpretando-o
para mim, à maneira Zen, não como uma associação fortuita de coisas belas, mas lugar
de intenções sutis, associações harmoniosas e contrastes reveladores, um meio
planejado para acontecimentos espirituais, um instrumento de esclarecimento mais
poderoso que livros ou dissertações.
Não fazia a conversa tomar ares de conferência doutoral, mas falava dessas coisas
como um homem sabe falar de sua vida intima, com amor e profundo interesse. Ao falar
do satori, via-se em dificuldades para tornar clara para mim essa noção, e me lembro com
bastante clareza de duas frases suas:
- A raiz do sofrimento humano, Sr. Amberley, é o sentimento de alheamento da ordem
natural do universo. O efeito do satori é uma iluminação da mente, de modo que a
natureza do eu e do universo se torne finalmente clara, e se restaure o sentido da
verdadeira relação e da unidade.
O meu próprio sofrimento era tão recente e forte que me agarrei àquelas palavras e
pedi que as explicasse melhor. Ele se recusou, sorrindo e dizendo então:
- Volte em outra ocasião. Tomaremos chá e falaremos em silêncio.
Voltei a Tóquio como homem ainda dentro da aura de um sonho calmo, mas
maravilhoso. Escrevi a Muso Soseki, agradecendo as gentilezas e pedindo permissão
para vê-lo novamente. Dez dias depois chegou sua resposta, numa pequena obra-prima
de caligrafia, em papel feito a mão. Aquele homem idoso me oferecia sua casa, sua
amizade e aquilo a que chamava "os pequenos e indignos frutos de minha colheita
hibernal". Poderia visitá-lo em qualquer ocasião e viver com ele, como hóspede.
Fui lá tantas vezes quantas pude, para estar em sua companhia. Em algumas
ocasiões ia sozinho, de outras com Groton, que entrara em relação semelhante com outro
monge. Groton estava mais adiantado que eu, talvez por ser mais jovem, talvez por ser
naturalmente mais humilde, flexível e apto a seguir as disciplinas do método Zen.
O curioso era que, nessa.altura, eu não possuía qualquer propósito de me submeter a
um exercício religioso, no sentido comum da expressão. Do modo como Muso
apresentava a matéria, a prática do Zen pertencia à ordem puramente natural e, na
verdade, era a preparação do organismo humano para um estado superior de percepção.
Nesses termos, eu a aceitava sem me sentir embaraçado e conseguia até esperar que
dali viesse um remédio para as fraquezas reveladas em minha personalidade pela dor e
perda sofridas.
Dava bem a medida da sabedoria de Groton o fato de que ele, embora me houvesse
levado ao meu mestre, se recusasse a qualquer discussão comigo sobre aquilo em que
ambos estávamos empenhados. Dissera apenas que, em Tóquio, estávamos separados
pelas formalidades do serviço diplomático e, em Quioto, o que nos separava era a
particularidade íntima de uma experiência intransmissível. Quando exprimi gratidão pelo
que fizera, aceitou-a com sorriso e comentário típicos do Zen:
- Quando estamos em silêncio, somos um; quando falamos, somos dois.
Eu iria lembrar-me disso muito mais tarde, também, quando debatêssemos tão
acaloradamente o caminho que eu preferira tomar em Saigon.
De minha parte, contentava-me em estar tranqüilo e afastado um ou dois dias da
imprensa e das complexidades das minhas funções. Gostava do jardim, do fluxo rápido
das palavras com que Muso Soseki se exprimia. Acredito, também, que trabalhava melhor
devido a isso, pois compreendia o refinamento enganador do pensamento japonês, a
sombra emocional que condiciona a afirmação mais direta. Comecei a compreender que
tal atitude intuitiva quanto ao esclarecimento não era obrigatoriamente uma rejeição da
razão, mas uma exploração de seus processos mais secretos ao nível do subconsciente.
Por sua parte, Muso Soseki não me forçou qualquer das disciplinas. Havia vezes em
que simplesmente tomávamos chá e falávamos livremente como amigos. De outras, ele
me apresentava um tema de meditação, uma daquelas proposições aparentemente sem
sentido chamadas koan.
Aquela por ele proposta, e à qual sempre voltava com suave persistência, era a
seguinte:
- Que fará quando lhe pedirem que mate o cuco ?
Minha primeira resposta foi desafiá-lo para definir os termos da proposição. Por
exemplo, quem me pediria isso ? O que era o cuco e por que me pediriam que o matasse
?
Muso sorriu e não aceitou o desafio.
- Você, Amberley-san, você é que me deve dizer o que eu quero dizer.
Sem que o pudesse evitar, a pergunta começou a me perseguir, irritar e distrair da
lógica formal e, muitas vezes, vigorosa da diplomacia prática. Perturbava-me como um
quadro surrealista, onde cada símbolo se mostrava claro, mas cujo conjunto nada mais
era do que absurdo, até eu receber ou descobrir a chave para sua interpretação.
Ainda assim, comecei lentamente a ver como e aonde estava sendo levado - a um
estado de desconfiança de mim próprio, de insatisfação com o óbvio, uma esfera de
comunicação sem palavras. Embora o compreendesse, compreendi também como estava
longe da solução.
E então, sem qualquer aviso, todo o processo de reeducação foi interrompido e me vi
de novo atirado, sem apelação, as realidades - ou eram ilusões ? - do serviço diplomático.
Festhammer chegou de Washington com pedido formal do secretário de Estado, apoiado
por amável nota do próprio presidente. Poderia eu deixar o posto em Tóquio e aceitar a
missão especial de embaixador no Vietnam do Sul ?
Ninguém pode ser menos seguidor do Zen do que Raoul Festhammer, pragmatista
perfeito. Em suas mãos, um fato é coisa tão formidável quanto um florete. Há quem o
chame de oportunista completo, mas o respeito que tenho por ele é grande demais para
que eu o condene tão facilmente. Trata-se de avaliador frio e seus resumos das situações
examinadas são modelar exercício de lógica tática. Bebe pouco, não furna e mostra
frenético entusiasmo por belas mulheres. E amigo incerto e inimigo perigoso, mas seu
trabalho tem tanta precisão quanto o de um banqueiro. Na vida particular não o aprecio,
mas profissionalmente apostaria toda a minha carreira em qualquer de seus relatórios, e
era precisamente isso o que me pedia que fizesse...
- ... É uma trapalhada, Max, uma trapalhada sangrenta e ingrata. Nós a chamamos de
guerra subversiva, mas no fundo é também guerra civil, filho contra pai, família contra
família. Estamos envolvidos nela porque queremos manter uma base militar no sudeste
da Ásia e negar à China o acesso às regiões rizícolas do sul e às vias marítimas para a
África. Se perdermos o Vietnam do Sul, a Tailândia estará cercada e Cingapura
ameaçada. Já empenhamos trinta mil homens, só Deus sabe quantos milhões de dólares,
e somos ainda "assessores", sem voz ativa na direção das operações.
E após uma pausa:
- Demos apoio a Phung Van Cung e sua família porque eram os melhores e mais
fortes administradores existentes. Acredito que ainda o sejam, mas estão descontrolados
e não escutam mais a voz da razão. Agem como homens que têm uma ligação direta com
o Espírito Santo. São da minoria católica num país de budistas, e, ao invés de se
tornarem amigos destes, estão a coagi-los em todos os pontos. Prendem estudantes,
rapazes e moças, em campos de concentração, já se inimizaram com a capital e perdem
o controle nas regiões rurais. O comando militar se encontra dividido e, a despeito de dez
mil aldeias
fortificadas e da vasta superioridade em armas e equipamentos, os vietcongs estão
vencendo todos os rounds, por pontos... McNally trabalhou bem como embaixador, mas
nós lhe demos instruções erradas, dissemos-lhe que fizesse amizade com Phung Van
Cung, agindo mediante persuasão e encanto pessoal. Pois agora esses truques não
valem mais nada.
O enviado do presidente terminou sua apresentação do quadro geral dizendo-me em
seguida:
- Não podemos mais trabalhar desse modo. Temos de entrar com dureza e chamar o
governo à ordem, mediante sanções econômicas. Há uma quantidade de documentos
que lhe peço que leia. Verá então por que precisamos de um homem forte para essa
missão, Max. Não há prêmios ou louvores a ganhar com isso e, quer ganhemos,
percamos ou empatemos, continua a ser uma trapalhada sangrenta, e tudo quanto você
vai conseguir é uma tremenda dor de cabeça... Todos nos Estados Unidos esperam que
você aceite.
Levei dois dias lendo os documentos que me entregou e, depois disso, aceitei. Mais
tarde, quando vim a calcular as culpas que teria de assumir, imaginei quantas
pertenceriam a esse momento exato.
Havia orgulho envolvido na questão. Qualquer pessoa se orgulharia de dizer : “Estou
aqui em nome de um grande povo. Fui escolhido por ser competente e enérgico e será
perigoso provocar-me”. Sob o orgulho havia medo, pois a morte de Gabrielle revelara que
pouca farsa me restava, Muso Soseki começara a abalar-me a sabedoria e George
Groton me fizera sentir vergonha de minhas iras. Sob o orgulho e medo havia outra coisa
- o impulso a afastar a contemplação, em favor da ação, postergar uma decisão referente
a mim próprio, ao assumir o direito de decidir sobre milhões de outros, de quem
desconhecia até o nome.
No entanto, eu fizera juramento de prestar esse tipo de serviço a que dedicara toda
minha vida. Fora especialmente chamado pelo Chefe do Governo e não me cabia direito
algum de sobrepor problemas particulares aos negócios do bem público. Precisava
compreender que tinha dois "eus" num só corpo. Os dois eram separados e díspares. O
eu que conhecia no jardim de Tenryu-ji era diferente daquele que se portava tão bem no
xadrez do poder. Parecia, portanto, que tinha de aceitar sempre a vida em dois níveis de
existência, rejeitando qualquer impulso de equacionar um ao outro.
No entanto, estava ainda dominado pela inquietação por maus prenúncios. Quem
poderia dizer por quanto tempo esse equilíbrio precário conseguiria sobreviver aos
choques de um ambiente hostil? Muso Soseki me ajudara a ter respeito por meu eu
secreto, mas não havia uma Gabrielle para me amar e manter-me em harmonia com o
mundo interior e o exterior.
Recorri por isso a George Groton e lhe perguntei se podia ir comigo para Saigon,
como ajudante especial. Ele sorriu, do seu jeito juvenil, agradeceu-me a confiança e
concordou, e em seguida, de modo bem inocente, perguntou se pretendia ver Muso
Soseki antes de partir do Japão. Na confusão das conversas com Festhammer e das
comunicações com Washington, eu nem pensara nisso. Groton me fez ver que se tratava
de um tipo especial de cortesia, a do discípulo para com seu mestre, que é como a de um
filho para o pai. Mais uma vez, fiquei envergonhado com minha incúria e prometi que,
assim que terminasse as despedidas diplomáticas, passaria um dia com Muso Soseki no
Templo do Dragão Celeste.
Já estava no ar o frio do inverno e o fogo se apagara nos bordos sagrados da
entrada. As folhas se espalhavam pelo chão, as pedras estavam descoradas e a água
nos pequenos lagos era cinzenta e feia. Muso Soseki me recebeu em sua casa e fechou
as cortinas, de modo que nos sentamos isolados do mundo em pequenina ilha de luz e
calor. Quando lhe falei de minha transferência, balançou gravemente a cabeça e disse:
- Todo homem usa um par diferente de sapatos. Tem de ir onde os sapatos o levam.
No entanto, acho um grande risco aceitar essa nomeação, nessa fase de sua vida.
Rindo, respondi que o perigo era normal na carreira diplomática, mas ele franziu os
sobrolhos e sacudiu negativamente a cabeça.
- Eu não estava pensando em sua carreira, mas no seu eu. Você adquiriu consciência
da imperfeição de sua vida e pode ser tentado a impor uma perfeição impossível à situa-
ção que vai encontrar. Está sendo mandado para lá a fim de conseguir resultados. Que
tipo de resultados pode esperar conseguir? Um final para a guerra civil? Um fim para o
comunismo no Vietnam do Sul? Um fim para o regime?
Levantou a mão pequena e magra para atalhar minha resposta.
- Não! Não responda! Na trilha do esclarecimento, você é meu discípulo. Na trilha do
mundo, você é o Embaixador norte-americano. Não deve discutir questões de Estado
comigo... Mas o problema da política é apenas uma multiplicação do problema individual,
e tentamos resolvê-lo do mesmo modo: propondo-nos um fim limitado que, quando
atingido, significará o "sucesso". Desse modo, um general diz que, se ganhar a guerra,
terá - e será - um sucesso, mas despreza o fato de que a guerra é uma violência
destruidora que não conhece limites e, depois dela, torna-se necessário novo ato de
criação para fazer a ordem surgir do caos e o riso da tristeza. Vê o que quero dizer, meu
amigo?
- Vejo, mas nada disso me esclarece. Conheço muito bem minha situação como
diplomata profissional. Não tenho a liberdade de propor os fins de meus atos, cabendo-
me apenas agir, de modo a cumprir do melhor modo possível os fins que me são
propostos.
Muso Soseki sorriu e balançou negativamente a cabeça.
- Só em parte isso é verdade. Você é chamado para aconselhar e orientar e, assim,
na verdade, pode ajudar a propor os fins que mais tarde lhe serão propostos.
- E verdade, mas apresento meus conselhos sob a pressão dos acontecimentos
diários, a peste, a fome, a guerra e as flutuações na bolsa de valores. Tenho de relembrar
a mim mesmo, e aos demais com quem lido, que uma modificação não constitui
obrigatoriamente uma melhoria. Se não os conseguir convencer, poderei receber ordens
para efetuar uma modificação na qual não acredito. Por outro lado, a modificação em que
acredito poderá ser apenas geradora de outras pestes e outras guerras.
- E você se contenta com essa situação, que na verdade é toda sua vida profissional?
- Aceito-a como fato necessário da existência. Neste sentido, tenho de me contentar
com ela.
- Ela é necessária porque é assim, ou porque você a deseja assim?
- Gostaria de saber a resposta a essa pergunta.
- O desejo não basta. É preciso que nos coloquemos na atitude de quem busca a
resposta.

Eu fora repreendido, e sabia disso. Tinha de aceitar a repreensão, porque esse


homem era o mestre e eu o discípulo, mas não deixava de ser difícil de aceitar porque,
em outro plano, eu era o grande homem, chamado pelo Presidente de uma grande nação
para modificar, se pudesse, o curso da história. Meu orgulho clamava por libertação
quanto a essa submissão a um místico idoso, enquanto outra voz gritava comigo para que
ficasse, pois sem ele eu destruiria inteiramente a mim próprio.
Muso Soseki ficou silencioso por bastante tempo, de olhos fixos no jardim que não se
podia ver. O rosto enrugado estava engolfado no repouso da contemplação. Fui chegando
também às posições físicas e mentais da meditação. Minha atenção se fixou no pequeno
redemoinho de ar quente, acima do braseiro de carvão, e meu espírito se desligou da
lógica da conversa anterior, começando a oscilar livremente por impulso associativo. De
repente,
o velho monge falou novamente:
- Sinto muito que não tenha ainda respondido a pergunta sobre o cuco.
- Pensei muito nela, mas ainda não a compreendi.
- Ainda agora não a compreende?
- Ainda agora.
- Então procuremos novamente a resposta. Diga-me: por que me veio visitar?
- Para ouvir o silêncio.
- Já ouviu o silêncio?
- Às vezes.
- Ouviu o cuco?
- Não seria possível. O cuco não canta durante o inverno.
- Mas você veio ouvir o silêncio. Por que o silêncio do cuco não se faz ouvir ?
- Nunca pude perguntar-lhe isso.
- Mas espera-lhe o canto o ano todo?
- É verdade.
- E quando o ouve, compreende que a primavera chegou ?
- Compreendo.
- Então compreende o cuco ?
- Sim.
- Receia que ele não o compreenda ?
- Sei que não me compreenderá.
- Tem certeza disso ou reluta em descobrir ?
- Reluto em descobrir.
- Por quê ?
- Porque nunca tive confiança no cuco.
- Você acha que ele perdoará ?
- Espero que perdoe.
- Que fará, então, quando lhe pedirem que mate o cuco ?
- Por que alguém irá pedir isso ?
- Porque não quer cantar no inverno.
E ali estava eu, ainda um neófito, de volta ao ponto de partida. O velho monge
percebeu meu desapontamento, pois abandonou o tom formal do mondo e me disse
gentilmente:
- Lembre-se do seguinte: aquilo que busca é unia coisa "interior", que não lhe dará
qualquer resposta precisa ao "exterior" em que se acha envolvido, nem lhe mostrará
como ter êxito, na qualidade de embaixador, ou "resolver" um problema, transformando-o
em outro. Mostrará, isso sim, que o segredo da vida, da sobrevivência o da melhoria está
no indivíduo e não na massa. Assim, o que tiver de ser feito para melhorar o seu trabalho,
ou o de qualquer outra pessoa, deverá ser feito por intermédio do íntimo dos indivíduos.
Fez uma pausa e me dirigiu um de seus raros sorrisos.
- Não quero confundi-lo. A sabedoria cresce como uma flor que se abre quando não
estamos olhando. Por favor, escreva-me. Estarei preocupado por sua causa. Quando
voltar, virá visitar-me ?
- Eu voltarei. E muito obrigado.
A pergunta estava ainda sem resposta. Não havia esclarecimento ou iluminação,
apenas um sentimento mais profundo de insatisfação e presságio. Uma coisa eu
compreendia - a relação estabelecida com Muso Soseki era bem real; como mestre, ele
se achava tão profundamente envolvido em minha vida quanto eu na sua. Dali em diante,
ele se acharia responsável, em parte, por meu bem-estar e retidão, e eu precisava honrá-
lo e preocupar-me por sua saúde, bem-estar e as dignidades de sua morte.
Muita água - e muito sangue - já passou sob a ponte, desde aquela conversa com
Muso Soseki no inverno, e acho-me agora de volta ao jardim de Tenryu-ji, tentando
encontrar sentido em meus triunfos públicos e traições privadas. O que me parece tão
estranho, agora, é que fosse tão profundamente atingido por uma pergunta fantasiosa
sobre um cuco, e tão pouco perturbado pelas palavras finais de Festhammer, antes de
partir para Saigon:
- Agora é uma questão de tempo, Max, até que alguém acabe com Phung Van Cung e
sua família e estabeleça novo governo. Antes de fazerem isso, vão-lhe perguntar o que
acha, e até onde os poderá apoiar, em nome dos Estados Unidos... E o caso, Max, é que
você terá de dar uma resposta e, depois, justificá-la junto ao Departamento de Estado e
ao presidente... Felicidades ! Boa viagem!
A 150 quilômetros da costa vietnamita fomos recebidos por uma escolta aérea de
caças-bombardeiros, que voaram em formação cerrada conosco no resto
da viagem. Chegamos à terra sobre o gigantesco delta do Mekong, que se abre como um
leque por mais de cem quilômetros em campos de arroz e plantações tropicais e aldeias
com telhados feitos de atap, diques e canais na água rasa dos baixios do Astrolábio.
Tinham passado por ali para proporcionar-me a primeira visão da situação militar.
Aquela região do delta fluvial era teatro das lutas mais duras de toda a guerra. O rio
Mekong servia como linha de abastecimento, pela qual armas e equipamento militar
desciam para os guerrilheiros, passando pelo Laos e pelo Cambodja, e vinham ocultos
sob sacos de arroz e cachos de banana, em barcos impulsionados a remo por mulheres,
crianças e velhas, e pelos khmers da zona fronteiriça. Os guerrilheiros vinham e iam do
mesmo modo, pelo rio, córregos e remansos, livres como animais em seu elemento
natural, pois quem podia saber o que se passava no coração de um homem pequeno e
bronzeado, visto plantando arroz, tecendo fibras de palmeira ou vendendo cana-de-
açúcar no mercado da aldeia ?
Na fechada vida familiar das aldeias, onde os telhados eram feitos de fibras vegetais, a
tragédia de uma guerra civil era vista em suas conseqüências mais simples e brutais. À
noite, os aldeões se retiravam para dentro da paliçada de bambu com suas cabeças de
gado, cada família fornecia uma lâmpada para iluminar os muros e uma sentinela para
guardá-los contra os vietcongs, que se vinham esgueirando pelos arrozais e moitas de
bambu em suas incursões. Mas o homem da paliçada e o que estava no pântano abaixo
eram irmãos, ou primos, e por isso, às vezes, uma lâmpada se apagava a um sopro e
estendia-se a mão por cima da paliçada, a fim de ajudar os incursores a entrar. De outras
vezes, passava-se pelo muro o arroz ou os remédios para os feridos. Ou, ainda,
estabelecia-se a trégua da simples inação, de modo que os guerrilheiros pudessem parar
e descansar num bananal, enquanto os aldeões dormiam tranqüilamente dentro da
fortificação.
Para o comando militar, tratava-se de um pesadelo, mas para os residentes naqueles
povoados nada mais era que uma acomodação natural às circunstâncias, pois que
restaria ao camponês da região se fosse destruída a estrutura milenar da família?
À distância segura de quatro mil e quinhentos metros de altura, fizemos círculos sobre
a terra de cores vivas. Um major da Força Aérea indicou uma cidade pequena, a que
chamou Travinh, mostrando helicópteros a sobrevoá-la como pássaros desajeitados.
Vimos o clarão de foguetes, o pipocar minúsculo de armas de fogo e colunas de fumaça
erguendo-se de pequenos grupos de árvores, mas não vimos homens, apenas pequenas
sortidas de formigas. Não ouvíamos som algum, exceto o gemido alto de nossos motores
a jato. Éramos deuses no empíreo, observando a movimentação inconseqüente da
hostilidade humana, que amanhã seria levada pelo rio, sem pressa, ou mergulhada no
pântano do arrozal, ou devorada pela selva. Esperamos uns dez minutos e depois
rumamos para o norte, começando a descer para pousar em Saigon.
Ao nos aproximarmos do aeroporto, a escolta separou-se de nós e mergulhamos em
ângulo muito fechado em direção à pista. O major apresentou para isso uma explicação
desajeitada - os vietcongs se mostravam ativos até mesmo nos subúrbios da cidade e, de
vez em quando, um avião era atingido por tiros de fuzil ao se aproximar da pista para
aterrar.
Quando o avião chegou ao ponto de desembarque de passageiros e se abriram as
portas, vimo-nos num campo militar. Helicópteros e caças-bombardeiros enfileiravam-se
em volta do aeroporto. Havia uma guarda de honra de militares americanos e uma tropa
de pára-quedistas vietnamitas envergando uniformes camuflados e boinas. O ministro do
Exterior vietnamita tinha a seu lado generais em uniforme de gala e junto ao pessoal de
nossa Embaixada encontrava-se um contingente militar, encabeçado pelo comandante-
chefe, General Tolliver.
George Groton fez um comentário sussurrado para mim, quando descemos para a
pista.
- É como se fosse um general, e não um embaixador. Quem terá encenado esta
recepção?
Eu era capaz de apostar que fora Raoul Festhammer, homem dotado sempre de
talento para a teatralidade diplomática, mas não pude demorar-me nessa suposição, pois
o introdutor diplomático já se achava a meu lado, guiando-me rapidamente nas cortesias,
que foram bastante cordiais. Más toda a cerimônia foi curta, quase brusca. Percebi uma
tensão, um desejo silencioso de que eu saísse do aeroporto e fosse quanto antes para a
Embaixada,
onde estaria em segurança. Para todos os lados por onde eu andava, um militar me
encobria com o corpo. O General Tolliver sentou-se a meu lado no carro e, quando
saímos do aeroporto para o amplo bulevar em direção à cidade, o automóvel tinha
veículos armados à frente, dos lados e atrás.
Depois da reserva cerimoniosa da minha vida no Japão, eu recebia um choque rude
naquele ambiente e vi que reagia ao mesmo de modo inesperado. Estava superexcitado,
sentindo uma exaltação estranha, quase sexual, como se aquele desfile de armas e
aquela atmosfera de perigo e ameaça física fossem um desafio à minha virilidade. Sentia-
me satisfeito por ser recebido como militar e não com as civilidades da política. Eu fora
agir, pôr forças em movimento e, depois, conduzi-las a um desfecho favorável. Devia
inspirar confiança e coragem, usar meu cargo como uma fonte de poder. Foi um momento
vertiginoso e exaltado, em que os soldados de Tolliver nos cercavam como se estivessem
diante de personagem sagrada, mas eu queria ficar de pé e mostrar-me ao povo, como se
fora o homem enviado para livrá-lo do cativeiro.
Olhei então os populares nas ruas e o choque me fez instantaneamente voltar ao
normal. Não tinham olhos para me ver, ou à minha caravana sinistra, não se juntavam em
grupos para agitar bandeiras e gritar Hosanas ao novo salvador. Olhavam uma única vez
e depois desviavam os olhos. Parecia que seus rostos pequenos e inteligentes eram
esculpidos em teca.
Os cules passavam por nós em passo rápido, com cestas equilibradas em varas de
bambu nos ombros magros. No seu manto cor de açafrão, um monge de cabeça raspada
estendia a tigela de mendigo a uma dona de casa, que lhe oferecia um bolo de arroz e
pedaços de fruta. Uma velha ama chinesa andava lentamente pela calçada, segurando as
mãos de crianças limpas e bonitas como bonecas. Nos cruzamentos de ruas, os policiais
se mostravam eficientes e de rostos inexpressivos, e as moças, coloridas como pássaros
em suas saias ou calças compridas de seda, passavam sentadas de lado em motocicletas
de estudantes. As donas de casa passavam em carrinhos puxados por homens, com
expressões calmas, quase desdenhosas, sob os chapéus de fibras trançadas.
Não eram hostis, mas cautelosos, desligados, indiferentes àqueles que tão pouca
diferença faziam para o feitio fundamental de suas vidas. Muitos estrangeiros arrogantes
já tinham vindo e ido, em sua lembrança histórica! Chineses, mongóis, portugueses,
holandeses, ingleses, franceses, japoneses e, finalmente, os americanos... Finalmente,
não, pois não havia um fim na Ásia. A configuração vasta e completa do continente não o
permitia. As correntes de povo mantinham-se em movimento constante pela presença das
montanhas a servirem de barreiras, o medo aos desertos enormes, a atração dos deltas
fluviais onde se plantava arroz, o tráfego de rios poderosos, a sedução de ilhas cheias de
especiarias e praias salpicadas de jóias.
Sempre haveria um amanhã na Ásia, pois o homem se orgulhava de sua potência e a
mulher era celebrada pela sua fecundidade e, a despeito da fome e da cólera, disenteria e
varíola, as tribos se multiplicavam e o Reino do Meio sempre regurgitava de gente nas
fronteiras e estendia tentáculos famintos para os arrozais e estradas que levavam ao mar
das ilhas do sul. Na sombra desses amanhãs, a cidade de Saigon, com seus bulevares
ensombrados, as suas mansões confortáveis e o seu ar de elegância gaulesa um tanto
antiquada, parecia, de repente, tão impermanente e impertinente quanto eu próprio.
Senti o olhar atraído por um lampejo de cor e movimento. Trinta metros à frente, vi as
telhas azuis brilhantes, o beiral de pontas reviradas e o madeirame dourado de um
pagode. Dele saíram três monges, dois mais novos acompanhando outro bem idoso.
Vieram com ele até a beira do caminho, onde puseram no chão um pequeno tapete sobre
o qual ajudaram o velho a sentar-se. Um deles depositou ao alcance de sua mão um
grande vaso de barro. Em seguida, inclinaram-se respeitosamente e se retiraram para o
pagode, deixando o ancião ali sozinho, como observador solitário e imóvel de nossa
aproximação.
Não tínhamos ainda passado por ele quando o vi erguer o vaso e derramar o conteúdo
sobre a cabeça, como se estivesse executando uma ablução ritual. O líquido escorreu-lhe
pelo rosto e pelos ombros, manchando-lhe o manto amarelo e o tapete onde se sentava.
Depois, colocou tranqüilamente o vaso no chão e tirou do manto um isqueiro. Ao acendê-
lo, houve uma explosão abafada e todo o seu corpo se incendiou.
Estávamos agora passando por ele, e pude sentir o calor e cheiro de carne que se
queimava. Vi gente correndo e gritando, e policiais a repeli-los com cacetadas e
coronhadas. Senti que o automóvel saltava à frente, enquanto o motorista apertava o
acelerador, mas naquele último instante vi também o rosto do ancião. Estava coberto e
coroado de chamas, mas seus olhos se tinham fechado, os lábios entreabriam-se num
sorriso de Buda, e ali permanecia silencioso e sem se mover, esperando que o fogo o
devorasse.

Capitulo dois

Fora testemunha de um martírio - e não havia gostado. Havia um impacto de horror no


espetáculo do corpo humano imolado pelo fogo, uma agitação de pesadelo na irrupção de
violência em volta daquele sacrifício, uma espiritualidade estranha no êxtase do monge e
no domínio de sua vontade sobre os nervos e músculos atormentados, e uma náusea
repentina quando compreendi que esse suicídio ritual fora executado para que eu o visse
e que, por negligência, ignorância ou desígnio político alheio, eu me tornara cúmplice do
ato.
Não estava havia mais de uma hora no país, nem sequer chegara à minha Embaixada,
mas já fora envolvido pública e irrevogavelmente nas disputas religiosas do Vietnam do
Sul. Antes mesmo de ter apresentado credenciais no palácio presidencial, poderia ser
interpelado pela imprensa mundial para fazer declarações sobre um mártir budista e um
governo católico.
Lutava também com um problema de outra natureza, pois era estudioso, se não um
seguidor, do caminho de oito alamedas do Buda Compassivo. Aceitara o caminho do Zen
e não estava preparado para as atitudes mais primitivas do Mahayana vietnamita. Muso
Soseki me mostrara que o caminho do esclarecimento devia constar de uma série de
pequenas mortes infligidas ao espírito centralizado no eu, mas que um homem o
procurasse atingir pelo ato grosseiro de extinção física era coisa que me chocava de
modo brutal. O choque me irritou e falei rispidamente com o General Tolliver.
- Santo Deus, general, quem deixou isso acontecer ? Quem é o responsável pelo
dispositivo de segurança ?
Tolliver foi rude e igualmente mal-humorado:
- A Embaixada, a CIA e o Palácio. A mim, cabia fornecer a escolta e os guardas, e isso
foi feito. A segurança ficou a cargo dos vietnamitas, em consulta com a CIA, que aprovou
o dispositivo deles.
- Mas, com mil demônios ! Os budistas ameaçaram semanas a fio com esse tipo de
demonstração. A imprensa falou nisso amplamente, bem como os despachos da
Embaixada. Certamente alguém deve ter indicado o dia de hoje como adequado para dar
início ao espetáculo!
- Todos estavam avisados - respondeu Tolliver com amargor. - A imprensa sabia, o
palácio sabia e a CIA sabia. A coisa foi examinada francamente na reunião final, mas
Harry Yaffa disse que garantia os dispositivos e, como é graúdo na CIA, não posso
discutir com ele. Além disso, tenho a minha própria guerra e já estou com frentes de luta
em número suficiente.
- E quem, de modo especial, queria envolver-me num suicídio budista?
- Todos ! Os budistas, porque querem apresentar um drama público de suas queixas.
O Palácio, porque espera que se sinta revoltado com essa exibição de fanatismo
primitivo. A imprensa, porque se vê acusada de dramatizar a guerra sem sair do Bar
Caravelle, e pode aproveitar uma notícia palpitante como essa. A CIA, porque quer mudar
o governo e esse tipo de crise é o melhor meio de fazer o novo embaixador concordar
com os seus planos.
- E o Exército, general ? O seu Exército, quero dizer. Em que posição se acha?
- Atolado até os joelhos num pantanal do Delta - respondeu ele com veemência
abrupta. - Lutando numa guerra que não podemos ganhar e não nos atrevemos a perder.
Não temos autoridade nas operações e estamos aqui como assessores e almoxarifes. Em
teoria, nem sequer podemos dar um tiro, a menos que haja ameaça à nossa segurança
pessoal. Se tomarmos o controle das operações, isso nos tornará colonizadores
capitalistas como os franceses. Se desencadearmos uma campanha militar completa
contra o Vietnam do Norte, teremos a ampliação da guerra, talvez com a intervenção
direta da China. Se vencermos em nosso próprio terreno, venceremos num vazio político
e social. Se sairmos daqui e deixarmos os vietnamitas lutando sozinhos, perderemos
prestígio, base e todas as penínsulas meridionais da Ásia... O budista que se queimou é
importante para mim, com certeza. É um símbolo da desunião e descontentamento em
nosso lado. Mas não fui eu quem armou aquele martírio. Já tenho mártires de sobra...
Pedi-lhe desculpas, que aceitou encolhendo os ombros e com um sorriso cansado.
- Todos aqui têm sua versão pessoal da verdade, mas, se quiser toda ela, terá de
procurar nos pantanais do Delta. E olhe que estão bem enlameados agora!
- E ensangüentados também, ao que dizem.
- Sim, ensangüentados também. Espero que tire tempo para ver isso com os próprios
olhos.
Chegávamos aos portões da Embaixada, onde me instalaria como um sátrapa, atrás
das baionetas dos guardas.
George Groton resumiu a recepção que tive numa frase de desgosto:
- Uma turma de agentes funerários, medindo o freguês novo para ver o tamanho do
caixão.
Também eu sentia um frio de mortuário, mas estava mais bem preparado para isso do
que Groton. Os reformadores e homens encarregados de resolver dificuldades são
criaturas vistas com desconfiança no serviço diplomático, ainda mais quando vêm de
posições onde viviam em calma e distinção. Além disso, McNally, meu antecessor, fora
homem acessível, estimadíssimo por seus auxiliares. Eu já fora conhecido como homem
frio e as informações mais recentes a meu respeito davam-me como exigente,sendo
natural que tivessem cuidado comigo.
Mas o bom ou mau humor do Embaixador era o que menos interessava no caso.
Tratava-se de cargo espinhoso e difícil, arriscado e apresentando perigos diários para
meus auxiliares e seus dependentes. Havia distúrbios nas ruas e explosões de bombas
em bares, cinemas e mercados públicos. Uma bicicleta estacionada diante de uma casa
podia estar carregada de explosivo plástico, e as crianças eram levadas à escola por
caminhos determinados e sob forte escolta. Os portões das casas eram trancados à noite
e o chefe de família dormia tendo sob o travesseiro uma pistola carregada. Um passeio
dominical que se estendesse a mais de cinco quilômetros da cidade poderia terminar
numa emboscada dos vietcongs. Um vendedor de bolo de arroz poderia ser
contrabandista de armas ou emissário dos guerrilheiros. Por isso mesmo, era preciso ter
muito cuidado com qualquer recém-chegado que pretendesse modificar as coisas na Ásia
mediante gestos audaciosos e uma doutrina nova e amável, vinda de Washington!
Todo o pessoal da Embaixada estava sob a censura de uma orientação que já falhara,
mas teria de aceitar as conseqüências da nova, assim como agüentara os perigos da
anterior. Sendo assim, tinha o direito de julgar-me e era preciso que eu me justificasse
ante seus olhos, antes de poder contar com a dedicação de todos. Senti-me como se
estivesse nu, ao tomar lugar na cabeceira da mesa de conferências, esperando que os
colegas se acomodassem. Eram homens que lutavam numa guerra distante, enquanto eu
me sentara contemplativamente no jardim de Muso Soseki. Ia falar-lhes com a voz do
Chefe do Executivo, mas poderiam perfeitamente achar que ela saía da boca de um asno
bíblico.
Quando se faziam os preparativos, George Groton me passou um bilhete escrito em
caracteres japoneses kanji, e eu li: "Harry Yaffa, CIA, é homem forte. Atrito entre ele e Mel
Adams, Primeiro Secretário. Opinião restante dividida". Amassei o bilhete e o enfiei no
bolso.
Melville Adams sentou-se à minha direita. Era homem magro, pálido, de ar
professoral, devendo ter os seus 50 anos. Estava havia bastante tempo no serviço
diplomático e conquistara respeito pela impessoalidade estudada de atitudes e a coragem
obstinada de suas convicções. Havia quem o achasse seco demais para missões de
importância, mas eu já o vira trabalhando em Helsinque e na Argentina, e sempre lhe
devotara sóbrio respeito.
Mais adiante, estava Harry Yaffa, parecendo mais um médico elegante do que o Chefe
da Agência Central de Inteligência (CIA) para o Vietnam do Sul, Laos e Cambodja. Era
baixo, atarracado, vivo e jovial. As mãos eram macias e estavam bem tratadas. A camisa
de seda ostentava um monograma azul, do lado esquerdo. A voz era suave e os modos
encantadores e insinuantes. Diziam que era tortuoso, impiedoso e sem escrúpulos. Se o
quisesse controlar, teria de conhecê-lo muito melhor, mas desconfiei de que não me
agradaria muito ter com ele intimidade maior.
Examinei os demais participantes da reunião. Todos aparentavam estudar com
atenção os relatórios datilografados. Era chegado o momento de iniciar o jogo:
- ... Prefiro dispensar as formalidades, meus senhores... Têm dirigido a casa por
bastante tempo. Precisarei muito de suas informações, orientação e ajuda. Espero que
sejam francos comigo, como pretendo ser com os senhores...
Os olhos nada diziam, e as expressões também. Tratava-se de profissionais
veteranos, para quem tudo quanto dissera era preâmbulo, e não merecia a menor
atenção. Aguardavam o texto verdadeiro de minhas instruções, dadas por Washington,
coisa que apresentei sucinta e abertamente:
- Estou aqui como instrumento de uma política revista, referente ao regime no Vietnam
do Sul. Tenho instruções do Departamento de Estado para fazer as seguintes exigências
específicas: a perseguição aos budistas e as medidas repressivas contra os quatro
estudantes devem cessar. Phung Van Cung deve fazer as concessões que forem
necessárias para restaurar a unidade política e militar em seu governo. Ele, bem como as
outras figuras de seu governo, devem abster-se de quaisquer ataques públicos à política
dos Estados Unidos. Se isso não for possível, tenho autorização para ameaçar com
sanções imediatas: a cessação do auxílio dos Estados Unidos e uma retirada escalonada
de nossas forças militares.
Houve de imediato enorme interesse. O General Tolliver indagou, sem qualquer
rodeio:
- E se Cung não fizer o que dissermos, serão aplicadas as sanções ?
- Pode confiar em minha palavra, general, de que serão. Nos próximos dias o senhor
receberá instruções detalhadas do Pentágono quanto ao método a usar em qualquer
retirada das forças militares.
Tolliver agradeceu e voltou ao silêncio. Era soldado astuto demais para mexer em
política com profissionais e já apresentara parte de sua opinião. O restante podia esperar,
até eu compreender a necessidade dos homens e armas. A pergunta seguinte foi feita por
Mel Adams:
- Essas exigências serão tornadas públicas?
- Isso dependerá do resultado de minha primeira entrevista com Phung Van Cung,
amanhã de manhã.
- Enquanto isso, que informação pretende fornecer à imprensa?
- Nenhuma, até apresentar credenciais no palácio presidencial. Notei que foi marcada
uma entrevista coletiva à imprensa para as cinco da tarde de hoje. Gostaria que a
cancelassem.
- Devemos apresentar alguma explicação para isso ?
- Esclareça que se trata de simples cortesia diplomática. Diga-lhes que estarei à
disposição para uma entrevista completa às duas da tarde, amanhã... E, por falar em
imprensa, meus senhores, espero que o primeiro pedido dela seja comentar o suicídio do
monge budista esta manhã. Neste momento, eu não sei qual o comentário público que
devo fazer, mas tenho uma declaração particular para todos os senhores. Acho que isso
indica uma lamentável falha em nosso dispositivo de segurança. Gostaria de saber quem
é o responsável.
Houve um silêncio curto e inquieto e, em seguida, Harry Yaffa respondeu
brandamente:
- Já investiguei o acidente. Acho que a responsabilidade está totalmente com os
vietnamitas. Sabíamos que poderia acontecer uma coisa assim, pois a cidade fervilhou de
boatos nas duas últimas semanas. Examinamos as medidas de segurança
detalhadamente com o Palácio e conseguimos que pusessem uma guarda de quatro
homens no portão do pagode. Eu tinha dois agentes no outro lado da rua... Cinco minutos
antes de chegar o seu automóvel, a guarda foi retirada. Um de meus agentes saiu em
seguida, para falar com o comandante da guarda, e estava ainda discutindo com ele
quando o monge foi levado para fora do pagode... Depois disso, nada havia a fazer. As
coisas se passaram com muita rapidez.
- E seu segundo agente, Sr. Yaffa?
- É um paisano, sem autoridade policial ou militar. Se tentasse intervir, poderia surgir
uma perturbação pública ainda maior...
- Então o embaixador perdeu prestigio na própria manhã de sua chegada e o Palácio
reafirmou a sua atitude de indiferença em relação aos budistas. É essa a posição ?
Yaffa pareceu sorrir ligeiramente de minha simplicidade.
- É um pouco mais complicada do que isso. Os budistas conseguiram uma vitória.
Mexeu em seus papéis e destacou um documento datilografado, que me foi passado
pela mesa, de mão em mão.
- Esta é a tradução da última carta escrita pelo nosso mártir, e já está circulando pelos
pagodes e junto aos budistas leigos.
Li o papel em silêncio, enquanto eles esperavam. De qualquer forma, tratava-se de
documento notável, derradeiro testemunho de um homem a caminho de deixar
voluntariamente o mundo. Criava, para mim, a visão do asceta idoso, sorridente e
silencioso, imóvel, embora as chamas o devorassem. Não pude deixa de me comover
com o fervor simples de suas palavras finais: "... Antes de fechar meus olhos para Buda,
tenho a honra de apresentar estas últimas palavras ao Presidente Cung, pedindo-lhe que
seja bondoso e tolerante para com seu povo e lhe dê, realmente, a igualdade religiosa..."
Depositei o papel na mesa e voltei-me novamente para Yaffa.
- Documento explosivo, Sr. Yaffa.
- Sem dúvida - respondeu com voz estudadamente formal, mas com perceptível tom
irônico. - E faz também surgir a pergunta que terá de ser feita mais cedo ou mais tarde
nesta conferência. Até onde Washington calculou os efeitos de seu ultimato ao Presidente
Cung ?
Pronto ! Aquilo ali estava sobre a mesa, como uma faca fora da bainha. Era um desafio
que eu teria de enfrentar, e imaginei se aquele homem rechonchudo era o único que
podia ter a coragem - ou a prudência - de formulá-lo. Teriam alguns colegas meus
conspirado para torná-lo seu porta-voz, ou estaria Yaffa a desafiá-los, também, baseado
em alguma posição de poder secreto ? Sentia-me como um homem arrastado do chão
firme para um charco, e resolvi recuar um ou dois passos, para enfrentar a escaramuça
em meu próprio terreno.
- Washington fez alguns cálculos, Sr. Yaffa. No entanto, o secretário de Estado me
pediu. que os confrontasse com as opiniões dos homens daqui. Por isso, vou fazer, a
cada um dos senhores, a mesma pergunta: que acontecerá quando eu entregar as
nossas exigências ao Palácio ?

Ao terminar a conferência, senti-me repentinamente isolado e incapaz. Era uma


sensação estranha, como se eu tivesse chegado, numa só carreira, ao limite de minhas
forças mentais e físicas. Era velho, estava cansado, com o juízo conturbado e a vontade
débil. Tive raiva de Rauol Festhammer, que com tamanha facilidade me atirara ao fogo,
de Muso Soseki e da sua advertência sobre minha incapacidade, dos meus colegas que
condenavam as dissensões entre os vietnamitas e, por sua vez, se mostravam tão pouco
unidos. Nada mais desejava senão abandonar todas as responsabilidades e afastar-me
daquele lugar de tensões e intrigas.
Depois da excitação rápida de minha chegada, sentia-me deprimido, como com a
tristeza que se segue ao ato do amor. Parecia isso e, ao mesmo tempo, era diferente,
porque sentia naquela tristeza, medo e perigo, um desespero que talvez um dia me
levasse à ação para terminar aquela comédia triste e começar tudo outra vez. Embora
visse a forma do perigo, afastei-o de mim porque precisava sorrir, agradecer aos colegas,
encerrar a reunião com cortesia e uma demonstração de confiança.
Faltavam apenas duas horas para o jantar, de modo que pedi que me levassem
imediatamente para a minha casa. Groton ficaria esperando na Embaixada, até que fosse
datilografada a ata da reunião, e a levaria logo depois para mim. Mel Adams jantaria
conosco e me informaria sobre as atividades da Embaixada.
Foi quando Yaffa se aproximou e me pediu dois minutos em particular. Tinha um
presente para me dar, uma automática com coldre para levar no ombro, de couro preto.
Pediu-me que a usasse onde quer que fosse, que a tivesse na gaveta da mesa, durante o
dia, e debaixo do travesseiro quando dormisse. Aconselhou também que me mantivesse
longe das janelas abertas e viajasse sempre com o guarda-costas que ia indicar. Procurei
em seu rosto liso qualquer indicação de que estava brincando ou zombando, mas não a
achei. As suas palavras finais foram comedidas e respeitosas:
- Neste assunto, deve confiar em mim, embaixador. A segurança é minha ocupação e
a sua segurança, minha responsabilidade pessoal. Estamos numa cidade de assassinos e
suplico-lhe que faça o que peço.
Agradeci e prometi cooperar. Em seguida, ele pediu licença para ir comigo para minha
casa, a fim de mostrar certas precauções que tomara para minha segurança. Não podia
recusar sem parecer agradável e, além disso, estava intrigado pela modificação rápida de
sua personalidade. Na conferência, fora irônico, sutil, criador de controvérsias. Sozinho
comigo, mostrava-se cortês e respeitoso. A sua afetação caíra como uma máscara, e vi o
que Groton já vira antes - o homem forte, que despertava emoções de respeito ou
desconfiança. Enquanto rumávamos pela noite quente e arrastada para a minha casa,
Yaffa fez a apresentação curta, mas ferina, da cidade de Saigon.
- ... Tem algum encanto, não é ? Um palco provincial francês, com atores orientais.
Mas o drama é totalmente asiático e nada é na realidade o que parece. Veja esta rua: há
três policiais e quatro milicianos, mas não é tudo. O sujeito que empurra aquele carrinho é
um dos agentes de segurança de Cung. Há outro, na esquina oposta. Aquela mulher na
janela, lá em cima, trabalha para mim... Esta cidade está controlada de tal modo que não
se pode tomar um trago ou fazer uma refeição sem,encontrar um policial secreto. Parece
calma, não é ? Mas, por baixo, está fervendo. Aquele homem de bicicleta pode ser dos
vietcongs. Aquele motorista de táxi pode estar levando uma granada embaixo do banco...
De um ou de outro modo, essa gente tem estado continuamente em guerra há quase dois
mil anos. Trata-se de raça bem adiantada, e muito rija, também. Verniz chinês sobre
bambu vietnamita... e os franceses trouxeram uma camada a piais. Lá está Cholon, a
cidade chinesa. Ali comerciam e procriam, emprestam dinheiro e procriam uni pouco
mais, esperando sossegadamente o momento de serem sepultados perto dos túmulos de
seus ancestrais. Existe lá um homem que deve procurar conhecer, o Chinês Número Um.
É um grande homem, mas raramente é visto e seu nome nunca é pronunciado. Mantêm
seu povo quieto e paciente e vê de onde sopra vento.
Sem mudar o tona de voz, acrescentou:
- É o que gostaria que fizesse: observasse um pouco o vento, que fala uma língua
diferente daquela da mesa de conferências.
Antes que eu pudesse responder, prosseguiu:
- O budista que se queimou foi apenas o começo. Há alguma coisa importante em
preparação, e não tenho certeza do que possa ser. Poderá acontecer esta noite, ou então
dentro de dois dias. Saberei o que é meia hora antes de acontecer, e o avisarei logo.
Quando lhe pedi detalhes, descambou para a imprecisão, o que me irritou, e ele
percebeu isso dizendo então com firmeza:
- Sejamos francos, embaixador. Compreendamos claramente quais as nossas
funções. O senhor é o representante oficial dos Estados Unidos. Eu tenho de servir de
outro modo, como oportunista político. Há coisas que preciso fazer e nunca o senhor
poderia aprovar, e por isso é melhor que não saiba delas. Tenho de matar homens e
subornar mulheres. Tenho de fomentar um golpe, para garantir o êxito de outro, tomar
medidas antecipadas contra o seu êxito e seu possível fracasso. Se quiser amenizar sua
consciência fazendo com que eu minta, sei fazer isso. também e sou até bom na mentira,
mas prefiro não mentir, quando não é preciso. Espero estar sendo claro.
- Muito claro, Sr. Yaffa, menos numa coisa: o que diz de sua própria consciência?
- Um luxo, Excelência. Descobri, há muito tempo, que não me podia dar a ele.
E ali terminou nossa conversa particular. Já estávamos em minha casa, uma mansão
imensa de estuque, cercada por muro alto, encimado por arame farpado e vidro partido.
Dois fuzileiros montavam guarda no portão de ferro e dois outros patrulhavam o muro. Na
parte interior da entrada achava-se uma pequena casa de guarda, e quando nosso
motorista acionou a buzina outro fuzileiro abriu a grade e os guardas apresentaram armas
enquanto entrávamos na propriedade.
Tudo resplendia em cores tropicais e se achava impregnado do perfume do jasmim,
mas depois da ordem sóbria e calculada de meu jardim japonês, o que via parecia
abundante e desmantelado, como uma bela mulher que se foi deitar exausta. Não vi nele
uma gentileza ou um descanso para olhos ou espírito; ali, seria sempre um homem de
passagem. Nada via que me levasse a usar aquele eu secreto, íntimo, minha última posse
verdadeira.
Yaffa já se lançara a um resumo final:
- Metade de seu pessoal doméstico é americano. Anne Beldon é sua secretária
particular, Humphrey, o mordomo, muito bom, vindo da velha Virgínia. A Sra. Brendan é
sua governanta, e os demais o senhor ficará conhecendo oportunamente. O pessoal da
cozinha, os serventes da limpeza e os jardineiros são todos vietnamitas, membros das
três famílias que vivem num conjunto nos fundos da residência. Assim podemos mantê-
los sob vigilância, afastando-os de ameaças ou de tentações. Os aposentos particulares
onde vai ficar dão vista para o rio, e examinamos o lugar do outro lado. São muito
pequenas as possibilidades de que dali o possam alvejar com um tiro, mas não se
esqueça de que sempre existe a possibilidade improvável. Todo o edifício tem dispositivos
de alarma contra ladrões e os guardas dispõem de um exercício de segurança com que
não vou aborrecê-lo agora. Seu guarda-costas pessoal é Bill Slavich, atirador de primeira
e técnico em judô. Mora na casa. Quer entrar agora ?
Guiou-me calmamente nas cerimônias de cumprimentos, e notei, com certa satisfação,
que Anne Beldon parecia atraente e bem-humorada e meu guarda-costas mais se
assemelhava a um cadete de West Point do que ao boxeador que eu esperava. Talvez
seja um tanto exigente nessas questões, mas sempre me desagradaram as pessoas
intrometidas, e ofenderia meu amor-próprio ser protegido por um cafajeste.
Fiquei por fim sozinho, em quarto amplo e arejado, de onde se avistavam a margem
oposta do rio e a planície verde do Delta. Nas últimas luzes do dia, parecia estranhamente
calma e bela, e irreal também, como o pano de fundo de um balé.
Era difícil crer que a uma distância de apenas quinze quilômetros, dentro do campo
visual, fora travada uma batalha feroz uma semana antes, batalha na qual se haviam
empenhado quase mil homens, entre vietcongs, soldados do exército do Presidente Cung
e homens das nossas forças armadas. Ainda mais difícil era crer que, naquela mesma
noite, quando as escuridão tropical descesse sobre a Terra, os vietcongs estariam
novamente em ação, fazendo incursões pelas aldeias ao lado dos canais, exigindo
tributos em arroz, galinhas ou balas, comprando ou ameaçando esta, ou aquela família
para juntar-se a eles.
Em algum lugar lá fora, pelo que me tinham dito, um oficial americano estava sendo
levado de uma aldeia para outra, despido, e de olhos vendados, dentro de uma jaula
como se fosse um animal, objeto de zombaria e riso. Quando chegasse a manhã, um
camponês recalcitrante poderia ser achado flutuando num canal, com a garganta cortada,
um outro poderia estar empalado, amordaçado e gemendo, nos bambus duma cerca. E
antes de o sol se ter erguido, antes de partirem os helicópteros de patrulhamento, os
vietcongs já estariam longe, ocultos na orla das selvas ou misturados aos compradores no
mercado de aldeia.
Enquanto eu observava, a noite chegou e as primeiras estrelas irromperam entre as
nuvens. Era a hora triste para mim, a hora de inação, dúvida, desconfiança e medo da
noite solitária que se avizinhava. Confesso, com toda a franqueza, que sempre fui homem
com grande necessidade de mulheres, e, se até então minha vida parecera regular e
disciplinada, era porque estava bem equilibrado no casamento com Gabrielle. Depois de
sua morte, salvei-me por algum tempo graças ao orgulho de sua lembrança e certa
vaidade que me afastava de casos sórdidos ou passageiros. Via claramente que tais
defesas haviam sido lentamente gastas e imaginava, com real ansiedade, como poderia
suportar sozinho as tensões e dificuldades do novo posto.
Encontrara alguma força provisória nas disciplinas ascéticas de Muso Soseki, mas até
esse consolo me era negado e não podia mais andar no jardim místico de Tenryu-ji; tinha
de trilhar um emaranhado perigoso, tão consciente de minhas próprias paixões quanto da
traição do conspirador ou bala do assassino.
Enquanto me despia e banhava, pensei na conferência daquela tarde, recolhendo os
fios soltos dos debates, para ver se achava aquele que me guiasse pelo labirinto até
chegar ao monstro - se houvesse um monstro - que ali morava. Mas todos os fios
seguidos me levavam a um beco sem saída e depois acabavam, de modo que tive de
voltar atrás e começar novamente.
O General Tolliver, por exemplo, apresentava opinião simples e precisa sobre a
situação. Era uma guerra que se devia lutar, mas que não se poderia ganhar. Sairia dela
com mais uma estrela de general e devolveria ao nosso governo um exército de
veteranos adestrados em combate. As baixas americanas eram pequenas e poderiam,
razoavelmente, ser compensadas pelo lucro da experiência em campanha. Para Tolliver,
os vietnamitas eram uma desvantagem militar, com o seu alto comando dividido pelas
intrigas políticas, os oficiais de tropa com treinamento insuficiente, os soldados
desanimados e desmoralizados. Toda aquela campanha era um lancinante desperdício
de material, homens e espírito de luta.
Mel Adams mostrava-se igualmente pessimista. A situação política era uma trapalhada
insuportável. O governo Cung era uma ditadura decrépita, baseada numa ética de
mandarins, nas intrigas dos chefes militares, na polícia secreta e num catolicismo gaulês
antiquado. O próprio Cung era um político hábil, mas perdera a simpatia dos habitantes
das cidades e lhe faltava a personalidade que congregasse os residentes do campo.
Refugiara-se no seu isolamento e se fizera cercar de bajuladores que justificavam as suas
loucuras mais extremas. Era um católico em liga particular com Deus e cometera erro
crasso com os budistas, mas não o podia reconhecer sem perder o prestígio, de modo
que enveredara por um caminho alucinado de repressão e táticas divisionistas. O ultimato
seria um choque para ele, mas, se tivesse confiança em mim, talvez eu pudesse ajudá-lo
a modificar-se. Se isso não fosse possível, seria deposto e removido, por bem ou por mal.
Nos bastidores, e aguardando os acontecimentos, achava-se Harry Yaffa, com o
instrumento de sua deposição já pronto. Os generais estavam prontos e só queriam um
sinal firme de aprovação, por parte dos Estados Unidos, para derrubarem Cung da noite
para o dia. Trabalhando juntos, poderiam proporcionar um governo estável, apoiado pelo
poder militar, e lhes seria possível reorganizar toda a orientação da guerra... Meu ultimato,
portanto, deveria ser tornado público no mesmo instante em que fosse entregue ao
presidente, e apresentado em termos tais que os generais lessem nele uma aprovação a
seus planos...
Havia, portanto, um monstro no meio do labirinto. Chamava-se Cung, e tudo quanto eu
tinha de fazer, a fim de arregimentar o país e ganhar a guerra, era facilitar aos generais o
seu afastamento. Tudo parecia gloriosamente simples e sedutor, como num conto de
fadas.
Como num conto assim, criava sua própria atmosfera de realidade. E a verdade ? Tolliver
dissera que a procurasse no pântano do Delta e Muso Soseki insistira em que eu a
procurasse na interioridade das coisas.
- Que vai fazer ? - perguntara ele. - Que fará, quando lhe pedirem que mate o cuco?
O teor da pergunta se esclarecera, mas não via ainda claramente como iria respondê-
la. Apaguei a luz, caminhei até a janela e olhei mais uma vez as terras escuras do Delta.
Seria ali, nas cabanas cobertas de atap e bivaques na selva, que o veredicto de meus
atos seria formulado.
Ali existiam tanto a exterioridade simples quanto a interioridade complexa das coisas.
Ali, o chefe de aldeia era príncipe, primaz e tribunal supremo. Ali, o truong toc, chefe do
clã, mantinha o culto aos ancestrais e a limpeza dos altares, conservava os túmulos e
escrevia os registros do clã, sendo o guardião de sua propriedade inalienável. Ali vivia a
família, já havia três gerações, sob o mesmo teto, contribuindo todos para o cofre comum
e a tigela de arroz. Achavam-se agrupados e presos à terra por uma raiz comum, como
uma moita de bambu, e, como esse vegetal, inclinavam-se e dobravam-se, mas
sobreviviam às maiores tempestades.
Era gente acomodatícia, escravos de polidez já bem antiga. Quer viessem sacerdotes
cristãos, monges budistas ou sábios confucianos ou mágicos taofistas, eles ouviam e
aprendiam um pouco, ofereciam um pedaço de bolo de arroz e, em seguida, retiravam-se
para o mundo dos espíritos, com sua população de almas errantes e guardiões da árvore,
da pedra e do tanque de lírios.
Para eles, não existia um monstro no centro do labirinto, e sim um mandarim que vivia
no palácio distante, em Saigon, e publicava editos polidamente recebidos e polidamente
esquecidos antes do pôr do sol. Ou talvez nós fôssemos os monstros, os bárbaros
brancos e de estatura elevada, narizes compridos e olhos azuis, que nada sabíamos
sobre os espíritos mas vendíamos pozinhos e poções para acabar com os vermes em
suas entranhas e armas para matarem os próprios primos.
Alguém bateu à porta, e George Groton entrou, trazendo a transcrição da conferência.
Estava alegre como um colegial, e depois de minha solidão sombria era um alívio ouvi-lo
falar animadamente:
- ... É como aquelas novelas que escreviam antes o não escrevem mais, porque já
ninguém acredita nelas. Enquanto esperava que preparassem a transcrição, fui ao Bar
Caravelle tomar alguma coisa e estava quase contando ver o Papai Hemingway sentado
num banco, trajando roupas de combate. Os correspondentes conversavam pelos cantos,
em voz baixa, e davam telefonemas misteriosos em péssimo francês. Alguém deixou cair
uma garrafa de soda no corredor e dois vietnamitas rio canto sacaram logo as armas.
Quando se percebeu o engano, todos riram e pareceram encabulados... Parece que há
alguma coisa bem grande em preparo na cidade, mas ninguém pode calcular o que seja.
O ajudante de Harry Yaffa apareceu no bar atrás de mim e tentou extrair informações a
seu respeito e sobre suas idéias. Eu lhe disse que sou apenas um moço de recados.
Fiquei conhecendo sua secretária, quando cheguei. É bem bonita!
Deteve-se um instante na animação e pareceu encabulado também.
- Desculpe- Estou falando pelos cotovelos, não é ? Mas o lugar faz a gente ficar assim.
Parece que se levou uma injeção de benzedrina...
Rimos ambos e lhe perguntei:
- O homem de Harry Yaffa também lhe arma para usar sempre ?
- Não, mas ensinou quais os melhores bares para tomar alguma coisa e disse que se
eu quisesse passar a noite com algumas das pequenas do lugar era melhor usar um
colete à prova de balas.
- Que homem bem informado !
- Ele tornou a coisa bem clara. Nós somos as vassouras e, de nós, esperam que
varramos a sujeira antiga e façamos um estábulo novo para todos - disse secamente. - Se
o embaixador quiser colaborar com a CIA, todas as dificuldades terminarão... Por falar
nisso, Mel Adams mandou-lhe um recado. Gostaria de trazer um convidado para o jantar,
o delegado apostólico. Adams diz que uma conversa com o homem poderia ser boa
preparação para seu encontro com Cung... Eu gosto do Adams. Ele se mostrou franco e
parece homem que não se apavora à toa.
Falamos assim, desordenadamente, enquanto eu acabava de me vestir, e mais uma
vez fiquei impressionado pelo contraste entre sua animação juvenil e intuição rápida e
arguta. Não se prevalecia da intimidade de nossas conversas pessoais e quando
tínhamos companhia sempre se portava com modéstia e deferência. Mais do que eu
conseguia exprimi-lo, precisava de sua lealdade e esperava deixar-lhe, em troca, um
legado de experiência e conhecimento no serviço diplomático. Quando descemos para o
jantar, encontramos Mel Adams e um italiano baixinho e de rosto brilhante, em traje
clerica1. Adams o apresentou como o Monsenhor Angelo Visccattti, delegado apostólico
na República do Vietnam do Sul.
O homem se mostrou um convidado ideal, espirituoso e exoticamente elegante no seu
inglês. Era o diplomata perfeito da Santa Sé, seguro no seu conhecimento de que a
pressa não é remédio para problemas urgentes e que a conversa mais sábia é aquela
travada entre os dentes e o queijo. Conhecia uma série de anedotas de meia dúzia de
países e nos apresentou uma comédia urbana que realmente constituiu um alívio para as
tensões do dia. Depois disso, pôs-se à minha disposição para ser interrogado, e as
minhas perguntas foram diretas, mas ele as respondeu com precisão teológica. Registrei
nosso diálogo em meu diário desse período:
- Até onde, reverendo, pode a Igreja Católica no Vietnam do Sul ser considerada
responsável pelos atos de repressão e crueldade cometidos contra os budistas, que
constituem oitenta por cento da população ?
- O arcebispo de Hué e o presidente, ao qual se acha intimamente ligado, podem ser
considerados diretamente responsáveis por isso. O arcebispo cometeu a loucura
inacreditável de forçar o governo a proibir bandeiras no aniversário de Gautama Buda.
Houve distúrbios, nove pessoas foram mortas pela polícia, e tanto o arcebispo quanto o
presidente adotaram uma atitude de intransigência. Houve mais desordens públicas, mais
prisões, e agora temos mártires budistas... No entanto, o Vaticano e a Igreja do Vietnam
do Sul se têm mostrado claramente dissociados das medidas repressivas. Essa
separação foi tornada pública em carta pastoral do arcebispo de Saigon e também numa
carta escrita diretamente pelo Papa Paulo VI. Deixando de lado certas atitudes regionais e
provinciais entre alguns membros do clero menor no campo, posso afirmar com toda
certeza que a grande maioria dos católicos é contrária às medidas repressivas do governo
e se mostra hostil às mesmas. No entanto - acrescentou rapidamente -, nem todos os
budistas são santos. Há um movimento de violência entre eles, que poderá causar
maiores dificuldades no futuro.
- Como descreveria a situação da Igreja Católica no Vietnam do Sul?
- No povo, existe uma fé profunda e bem viva, mas a educação sacerdotal se acha em
mau estado e precisa de reforma. A autoridade pastoral foi abalada pela atitude
intransigente do arcebispo de Hué para com a autoridade apostólica da Santa Sé.
- No entanto, Cung afirma ser bom católico e baseia suas doutrinas na chamada
doutrina do personalismo, que na prática atinge as raízes da liberdade pessoal, ao
mesmo tempo que afirma estar a aperfeiçoá-la em linhas cristãs.
Ele riu sem muita vontade e fez um gesto romano de resignação.
- O melhor lema inventado pelos franceses até hoje foi Liberté, Égalité et Fraternité, e
que gloriosa mentira foi essa ! Mas tentar unir um país em torno de uma proposição
filosófica, e proposição confusa, ainda por cima, é puro absurdo. Fiz um trocadilho em
meu último relatório: "Maritain e Mandarismo !" e creio que o secretário de Estado não o
tenha apreciado muito. A verdade é que Cung é um católico tipo Idade Média. A sua
atitude é de um antigo mandarim, e a sua ação é autoritária e totalitária. No fundo, é cem
por cento marxista e, do modo como o país se encontra organizado, poderia tornar-se
marxista da noite para o dia, bastando mudar as bandeiras.
- Como poderia o país tornar-se marxista da noite para o dia?
- Toda a engrenagem do controle político total já existe. O campo, por exemplo, acha-
se organizado em aldeias estratégicas, no momento com função militar, mas dotadas de
função política também. Todos os residentes, em todas as casas de todas as aldeias,
acham-se registrados por nome, idade, profissão e descrição geral. Todo o país, mas em
especial as cidades, se acha sob vigilância constante da polícia secreta. A organização é
semelhante à da Gau nazista, ou à do sistema marxista de "células", e pode-se usá-la em
qualquer direção desejada.
Essa resposta me fazia lembrar vivamente Harry Yaffa, o oportunista declarado.
Qualquer que fosse o sistema ou circunstância, também e poderia utilizá-lo para uma
variedade de fatos contraditórios. Não me senti disposto a comentar a organização celular
das aldeias, pois nós mesmos, os americanos, desempenhávamos um papel nela, de
modo que fiz uma pergunta menos política.
O que vê como perigo maior para catolicismo no país ?
- Vejo um perigo cada vez maior para toda a população, católicos e budistas
igualmente. Em primeiro lugar, existe a apatia que aflige os que vivem sob repressão e
sem voz livre para apresentar suas reclamações. Vem depois um ressentimento passivo,
e mais tarde eles poderão ser forçados a um dilema desesperado, achando que pouco
existe a escolher entre um regime da extrema direita e a extrema esquerda.
- Que pretende fazer a Igreja quanto a essa situação ?
- Estamos preparando uma campanha destinada a fortalecer a vida espiritual de nossa
gente, reformar a educação sacerdotal e desligar a Igreja da política de blocos, ao mesmo
tempo em que deixaremos nossos fiéis, individualmente, livres para adotarem uma
orientação política legítima. Temos de dar a nossa gente os meios de sobreviver como
entidade espiritual, aconteça política ou militarmente o que acontecer.
Compreendia esse ponto de vista, embora fosse homem sem fé estabelecida. Estava
disposto a vê-lo com certo cinismo, sem confiança em que as minorias cristãs pudessem
sobreviver no sudeste da Ásia por mais tempo do que tinham sobrevivido na China, sob
um regime hostil. Ainda assim, estava ansioso por saber como um católico romano,
olhando o futuro mais distante, poderia julgar o desfecho da controvérsia.
- Terão tempo para efetuar as reformas na igreja e fortalecer a vida espiritual dos fiéis,
como pretendem? Podem, na verdade, reter este último baluarte da Igreja no sudeste da
Ásia.
- De um ponto de vista humano, é difícil responder. Estamos na Ásia, não na Europa.
Existe muita ignorância, analfabetismo e superstição da mais grosseira. A educação
constitui privilégio de poucos e, muitas vezes, estes a empregam mal. No fim, temos de
contar com a Providência Divina e ajuda do Espírito Santo.
O seu rosto ensombreceu-se e ele acrescentou um comentário triste:
- Tenho vivido em desespero e não faço segredo disso, mas ultimamente assisto ao
início de um milagre que parece ter lugar periodicamente na Igreja; é a sobrevivência nas
pessoas comuns de uma fé sábia e ativa, que transcende os erros dos que as governam.
Para mim, era tentador comentar que milagres desse tipo eram muitas vezes ilusões
criadas para reconfortar os desesperados. Por outro lado, Angelo Visconti apresentava
aquilo que eu tanto desejava - uma crença firme no sobrenatural. E quem era eu para
discutir o que não podia desmentir ? Poderia ser mais interessante ver como sua fé se
traduzia em atos, e perguntei de novo:
- A Igreja está fazendo alguma coisa para restaurar e aperfeiçoar relações com os
budistas, no espírito de caridade cristã e do movimento ecumênico ?
- Temos alguns sacerdotes que mantêm relações com budistas neste momento e
tentam fazer o que sugere... É preciso compreender que, embora os atos de alguns de
seus membros muitas vezes pareçam comprometer a Igreja, esta, em sua essência e em
si própria, não se acha comprometida. Nossa afirmação suprema sempre é uma
afirmação de fraternidade e de caridade cristã.
Minha pergunta seguinte talvez fosse injusta, mas era importante saber como a
afirmação de fé era ouvida pelo presidente católico.
- A cidade está cheia de boatos de que alguns estudantes estão presos e de que tanto
homens quanto mulheres são submetidos a tortura. Acredita nesses boatos ?
- Infelizmente, sou forçado a crer que alguns sejam verdadeiros. Acredito também que
logo tenhamos mais gente presa.
- Fez alguma representação ao Palácio sobre essa questão ?
- Fiz muitas, mas é impossível modificar a opinião deles.
Nesse ponto, lembro-me de que fez uma pausa, bebeu lentamente o vinho e pareceu
pesar suas próximas palavras com extremo cuidado. Depois, sorriu e fez um gesto de
indiferença.
- O que tenho a dizer agora pode parecer uma contradição a tudo o que disse antes,
mas é importante que o saiba. Fazendo justiça a Cung, tenho a dizer que, se me
pedissem que o julgasse no seu foro íntimo, eu teria de reconhecer que provavelmente
tem boa fé. É cego, sim! Teimoso e mal orientado, sim! Mas apareceu como salvador do
país quando este se achava afundado na desilusão e corrupção. Acho que está
justificando os seus erros atuais com os triunfos passados, mas isso é um erro a que
todos nos vemos tentados, e muitas vezes na maior boa fé. Talvez seja paradoxal, mas
ainda assim é a verdade, como a vejo. E gostaria de acrescentar outra coisa...
Nunca soube o que ia acrescentar, pois nesse momento Harry Yaffa me chamou ao
telefone.
- A coisa começou! Os soldados de Cung estão marchando para invadir os pagodes.
Gostaria de que viesse imediatamente para a Embaixada.
Consultei o relógio. Passavam quinze minutos da meia-noite, e quando desliguei o
telefone ouvi, distantes mas claras, as batidas de um gongo de bronze.

Capítulo três

O gongo batia ainda quando saímos de automóvel, com a flâmula dos Estados Unidos
no radiador, pela cidade, dentro da noite. De repente, o gongo parou e ouvimos ao longe
o crepitar de armas de fogo. Mel Adams indicou as patrulhas militares ao lado da rua e
caminhões estacionados em todos os cruzamentos.
Harry Yaffa esperava por nós no portão da Embaixada e pulou para o carro, batendo a
porta, com força. Parecia nervoso e desalinhado.
- Estão invadindo o Pagode Xa Loi e mais três ou quatro na cidade. Acabei de receber
telefonemas de Hué, Dalat e Danang, e a mesma coisa acontece por lá. Devia ver com os
seus olhos, embaixador.
- Cung é bom na tática, e a cidade toda deve estar assim.
- Concordo.
- Pois eu não concordo!
Pela primeira vez, desde que chegara, vi Mel Adams entrar em cena, e de modo
áspero e abrupto.
- Acho má diplomacia, que não lhe deixa campo de manobra. Se se tornar testemunha
ocular, terá de dar um veredicto público, sem quaisquer reservas diplomáticas. A
imprensa estará presente e inevitavelmente o senhor será fotografado, e fotografado
como espectador passivo da violência policial. Acho que isso é mau.
- Será pior, por acaso - perguntou Harryyaffa friamente -, do que ir amanhã ao palácio
com informações de segunda mão? Cung preparou este pequeno exatamente para o
embaixador. Vamos, Mel Adams! Espane da cabeça essas teias de aranha! Isto não é
diplomacia de luvas de pelica, é guerra!
- Tornei clara minha posição - respondeu Adams altivamente. - Mesmo na guerra é
preciso ter campo de manobra para deslocar as forças, e desse modo não o teremos.
Era hora de intervir, e precisava salvar o prestígio de ambos.
- É um risco, Mel, e você está certo em mostrá-lo. A decisão cabe a mim. Vamos!
Antes de as palavras serem pronunciadas, Bill Slavich pisava no acelerador
arrancando por uma esquina onde passamos com duas rodas no ar e rumamos a toda em
direção ao pagode. Os tiros tinham aumentado e, quando nos aproximávamos, ouvimos
brados e gritos, no murmúrio raivoso de uma multidão que crescia. As entradas para o
templo estavam fechadas por barricadas de madeira e guardadas pela polícia de choque,
armada com carabinas automáticas e disparadores de bombas de gás lacrimogêneo.
Nas barricadas juntava-se uma multidão e os soldados batiam nos populares com as
coronhas das armas. Enquanto freávamos para parar, dois deles vieram correndo em
nossa direção, mas ao verem a flâmula no automóvel afastaram-se. Yaffa e eu subimos
ao capô do carro a fim de ver por cima dos populares.
Os portões do pagode tinham sido arrebentados e havia carros da Policia, destinados
a carregar presos, do lado de fora. Enquanto observávamos, vimos os policiais
empurrando um pequeno grupo de monges para os veículos.Os religiosos e estavam
machucados e feridos e um deles sangrava muito na cabeça. Atrás dele, uma monja
gritava e lutava nos braços de um oficial inferior. Ouvimos gritos nos andares de cima e,
ao olharmos para lá, vimos um homem de manto amarelo cair da janela ao chão do
jardim. Dentro do pagode, ouviram-se mais tiros de fuzil e explosões surdas de bombas
de gás lacrimogêneo. A multidão gritava, amaldiçoando os guardas.
Dois correspondentes romperam pela multidão e correram para nós, um deles ergueu
a máquina fotográfica e tirou uma fotografia minha, sentado na capota do carro, enquanto
seu companheiro se apresentava.
- Sou Cavanna, Associated Press. O senhor é o Embaixador Amberley, não ?
- Exatamente.
- Algum comentário sobre os acontecimentos desta noite ?
- Sim. Assisti à violência e à brutalidade, e como representante dos Estados Unidos da
América deploro muito. Não tenho outros comentários, até chegar a oportunidade de
examinar, a questão com o Presidente Cung.
- Hoje de manhã, um monge budista incendiou-se em sua presença. Hoje à noite,
acontece isso. Estamos no seu primeiro dia como embaixador no Vietnam do Sul.
Algum comentário sobre a seqüência dos fatos, embaixador?
- Meu comentário será feito na primeira entrevista com a imprensa, as duas da tarde,
amanhã. É tudo quanto posso dizer no momento.
Houve nova onda de violência nas barricadas. Alguém atirou uma garrafa, e depois
uma chuva de paus e pedras. A polícia saiu de trás das barricadas e afastou os
populares, mostrando-se brutalmente eficiente. Houve mais cabeças quebradas e uma
jovem foi atirada ao chão e pisoteada pela multidão. Os policiais a recolheram e levaram
também para os carros de presos, enquanto a multidão se via tocada com firmeza em
direção ao nosso automóvel.
- Vamos dar o fora daqui! Sei para onde ir - gritou Harry Yaffa.
Levou-nos de volta ao carro em cinco segundos, e passamos, pela esquina seguinte,
para o terreno da Missão de Ajuda dos Estados Unidos, ao lado do pagode. Os
funcionários residentes estavam todos em camisolas e pijamas e uma jovem tratava dos
ferimentos de um monge, cuja face fora atingida por golpe de baioneta. Outro monge
sentava-se no muro do jardim, chorando baixinho e tentando aliviar a dor do queixo
quebrado. Um dos homens da Missão veio ter comigo nervoso e abalado.
- Estão assassinando, assassinando a sangue frio! Não podemos fazê-los parar?
Harry Yaffa foi quem respondeu:
- Não podemos, não. Sossegue, portanto ! Leve esses dois monges para dentro e diga
aos guardas que, se alguém quiser irromper por aqui, atirem primeiro e façam perguntas
depois. Chame o General Tolliver, conte o sucedido e peça que mandem médico e reforço
para a guarda.
Depois voltou-se para mim:
- Se já viu o bastante, acho que devemos voltar Embaixada.
Eu vira o suficiente. A violência estúpida daquelas cenas me revoltara e eu fervia de
indignação. Voltei-me para Mel Adams.
- Fique aqui, Mel. Reúna toda a informação que puder sobre este caso e apresente-a
pela manhã. Os dois sacerdotes estão sob a proteção do governo dos Estados Unidos e
todas as indagações deverão ser encaminhada à Embaixada.
Adams assentiu e acrescentou uma sugestão:
- Talvez fosse bom informar todas as embaixadas sobre o que aconteceu.
- Eu tratarei disso - disse George Groton. - Quer mais gente para trabalhar ?
- Sim. Chame a Srta. Beldon e o pessoal necessário. Vamos ter muito o que fazer nas
próximas horas.
- Que vai fazer, Sr. Yaffa ?
- Tenho o meu próprio trabalho a executar - respondeu ele, com ar sombrio. - Bill
Slavich o levará de volta e estarei na Embaixada assim que puder.
Enquanto voltávamos pelas ruas cheias de soldados, tentei reprimir a ira e fazer uma
relação calma dos acontecimentos nas últimas doze horas. Não me restava dúvida de que
haviam sido cronometrados, a fim de me desacreditar e enfraquecer minha posição nas
negociações com o presidente. Eu já vivera o bastante no Oriente para compreender a
importância do "prestígio", outro nome para aquela exibição de poderio público que
favorece o crédito pessoal. Minha nomeação fora um golpe para o crédito pessoal do
Presidente Cung e, como verdadeiro oriental, ele devia diminuir-me, a fim de demonstrar
a sua estatura. No entanto, muito mais do que o meu embaraço se achava em jogo, e eu
não devia ser arrastado a uma análise apressada da situação.
O Presidente Cung era político hábil demais para fazer uma demonstração de violência
desprovida de qualquer objetivo. Os seus atos sempre se mostrariam coerentes com o
que ele era - o homem que assumira o controle do país, depois da débâcle de Dien Bien
Phu, recolocara quase um milhão de refugiados vindos do norte, revivera a economia
nacional e quebrara o poderio dos Binh Xuyen, piratas fluviais que tinham chegado a
comandar cinco mil soldados e toda a força policial de Saigon. Sobrevivera a uma dúzia
de conspirações e submetera ao seu controle uma porção de sectários armados, chefes
militares do tipo feudal e conspiradores em uniforme. Fora ele quem chamara os Estados
Unidos para preparar e unir o Exército e fornecer o equipamento militar necessário, numa
campanha contra os guerrilheiros de Ho Chi Minh. Era um filósofo, tanto quanto um
estrategista político, e nada faria por motivos triviais.
Nenhum homem no uso de suas faculdades mentais tentaria ganhar uma guerra
lançando uma perseguição religiosa contra oitenta por cento de seus próprios
governados. Cung, portanto, deveria ter, pelo menos, uma razão prima facie para sua
atitude quanto aos monges, a elite da fé budista. Lembrava-me do documento que
examinara juntamente com os demais papéis dados por Festhammer. Tratava-se de
relatório feito pela A Central de Inteligência sobre a infiltração de agentes comunistas no
Sangha, o sistema monástico budista.
O relatório compreendia as atividades daqueles agentes na Tailândia, Laos Cambodja
e Vietnam do Sul, indicando que no primeiro país, onde o Caminho Menor era praticado e
o Sangha se achava centralizado sob o patrocínio da Família Real a infiltração comunista
poderia ser controlada. Sob o sistema mais frouxo e difuso do Mahayana, o controle se
tornava bem mais difícil. Os monges jovens e agressivos começavam a usurpar a
autoridade de seus irmãos mais idosos e contemplativos, e o manto amarelo constituía
capa segura e simples para a subversão, dentro dos pagodes e em meio ao povo.
Era o que Cung dizia e poderia afirmar vigorosamente em qualquer tribuna. Depois dos
distúrbios públicos em Hué, onde nove pessoas tinham sido mortas pelos soldados do
governo, os monges budistas haviam organizado reuniões abertas e públicas fazendo
discursos inflamados de condenação ao governo. Num país empenhado em guerra, tal
desordem pública dificilmente poderia ser tolerada. Também aí, a evidência disponível
parecia justificar medidas enérgicas de segurança, mas a violência a que eu assistira no
Pagode Xa Loi, constituía rematada loucura política, e como embaixador dos Estados
Unidos eu precisava desassociar da mesma a mim e a meu país.
Ao chegarmos à Embaixada, encontrei outra surpresa à minha espera - um monge
idoso que fugira do Pagode Xa Loi e procurara abrigo ali. Conseguira isso com seus
perseguidores nos calcanhares, e os guardas, fuzileiros navais, haviam afastado a polícia
com os canos das armas. O refugiado falava francês, mas não inglês, e conversei com ele
quase uma hora, enquanto Anne Beldon registrava sua narrativa sobre a invasão policial
dos pagodes.
Verifiquei não se tratar de homem que impressionasse. Era vulgar e mal informado.
Deu-me uma descrição de cada golpe desferido, na invasão do pagode, mas, quando o
interroguei sobre a natureza do budismo vietnamita, sua história, organização, atitude e
problemas, nada me disse senão lugares-comuns misturados a invectivas bastante
grosseiras contra a família Cung. Não conseguia vê-lo no papel de mártir, mas podia
muito bem reconhecê-lo como agitador, e não pude deixar de comparar suas invectivas
pesadas com a monumental disciplina de Muso Soseki. No entanto, forneceu-me duas
informações importantes - os invasores policiais tinham uma lista nominal dos presos que
deviam levar. Qualquer monge cujo nome se encontrasse nessa lista era acusado de
conspirador comunista, e a polícia levara também as cinzas do monge que se queimara
naquela manhã, mas seu coração tostado, preservado numa jarra, desaparecera. Cung,
cristão consciente, não queria mártires à sua porta.
Depois disso, os telefones começaram a tocar, com gente chamando de todos os
lados. Em Hué, os soldados haviam vasculhado um pagode, roubando o tesouro do
templo. Na ponte que dava acesso a outro templo se travara uma batalha feroz, e o
resultado eram trinta mortos e várias centenas de feridos. Calculava-se que cerca de mil
pessoas tinham sido presas nas diversas partes do país.
Redigi longo telegrama para Washington e outros para os representantes diplomáticos
americanos no Laos, Cambodja e Tailândia; às seis horas da manhã estávamos ainda
trabalhando e ouvimos o próprio Presidente Cung, falando pela Rádio Saigon.
Proclamava o estado de sítio e lei marcial em todo o país, dando ao Exército todos os
poderes de procurar e prender suspeitos. Era decretado o toque de recolher, bem como a
censura total sobre as comunicações internas e externas do país.
Antes que Cung terminasse seu discurso, Harry Yaffa chegou e anunciou que Saigon
estava fechada por tropas de primeira linha e todas as saídas da cidade haviam sido
bloqueadas. As comunicações telefônicas estavam interrompidas em todo, o país e nosso
próprio sistema de comunicações se achava aberto, mas oficialmente o Vietnam do Sul
fora isolado do resto do mundo.
Tudo fora tão rápido e complexo que, certamente já existiam planos bem antes de
minha chegada, e, com isso, eu devia encarar a coisa como uma manobra para impedir
uma ameaça real ao governo. Quais poderiam ser as conseqüências, era coisa que eu
apenas podia calcular. Cabia-me agir. Anne Beldon levou-me café forte e biscoitos, fiz a
barba apressadamente e parti para o palácio com Mel Adams e meu oficial
protocolar.Todos os caminhos para lá estavam controlados por uma rede de postos de
guarda e barricadas, e foram precisos quinze minutos até que recebêssemos permissão
para passar, as primeiras linhas.
Dentro do palácio, no entanto, reinava uma atmosfera de calma e formalidade. Com
secretário vietnamita explicou que estávamos coma uma hora de adiantamento e que o
presidente, devido à pressão de ocupações excepcionais, via-se obrigado a nos fazer
esperar um pouco. Mel Adams explicou, em tom gelado, que, como os Estados Unidos se
achavam envolvidos naquele estado de emergência nacional, a chegada antecipada do
embaixador constituía apenas urna especial cortesia para com o presidente. O secretário
nos garantiu que o presidente compreendia isso, e estaria conosco tão depressa quanto
possível.
Deram-nos chá e cigarros, e sentamo-nos para esperar. O prestígio também se
achava em jogo nessa espera, e fixei o limite mental de dez minutos, após os quais
estaria pronto a deixar o palácio. Oito minutos e quinze segundos depois, fui levado à
presença de Phung Van Cung.
Era homem pequeno e bronzeado, palmo e meio menor do que eu, trajando imaculado
terno de tussor, gravata cinzenta de seda e alfinete de brilhante. A pele era luzidia, os
olhos brilhantes e sorridentes. Parecia estar saindo do banho, o que provavelmente
ocorrera. Recebeu-me formalmente, em francês de forte sotaque vietnamita, e surgiu o
criado com o inevitável chá verde. Enquanto bebíamos, Cung perguntou por minha saúde,
querendo saber se eu fizera boa viagem. Sorria enquanto conversávamos e seus olhos
astutos e brilhantes examinavam-me o rosto a cata de qualquer demonstração de
emoção. Falou afetuosamente em meu antecessor, pedindo que eu lhe transmitisse seus
cumprimentos e melhores votos. Apresentou cumprimentos sobre meu trabalho no Japão
e condolências pelo recente falecimento de minha esposa.
Ao que me disse, interessava-se especialmente pelo fato de ser eu estudioso do
caminho Zen do budismo, pois tinha certeza de que isso me ajudaria a compreender
melhor a situação difícil do país, e lavrou um tento, pois não esperava encontrá-lo tão
bem informado a meu respeito. Não deu qualquer sinal de triunfo, mas prosseguiu
maciamente para encerrar seu prelúdio. Confiava em que eu seria feliz na nova missão, e,
se precisasse de qualquer favor pessoal, não devia hesitar em chamá-lo, ou a qualquer
membro de seu governo. Lastimava que eu não tivesse chegado em dia mais auspicioso,
mas estava certo de que eu compreendia o estado de emergência em que o país se
achava.
Respondi que não tinha certeza de compreender e, ao contrário, contava com ele para
me esclarecer. Com isso, estavam encerradas as cortesias e passávamos a tratar do
motivo de nosso encontro. Cung encostou-se na cadeira, dobrou as mãos sobre a roupa
de seda e se lançou a uma exposição eloqüente.
- Embaixador, o senhor veio de um país em paz para uma nação em guerra. Isto não é
uma cerimônia japonesa de chá, e nossa própria sobrevivência está em jogo. Estamos
sendo ameaçados por fora e solapados por dentro. Calculamos que existam trinta mil
vietcongs perfeitamente treinados operando dentro de nossas fronteiras, ajudados por uns
sessenta mil homens, entre soldados irregulares e agentes subversivos. Esses agentes
estão treinados para usar qualquer meio a fim de se infiltrarem em nossas fileiras e
espalharem a deslealdade e desordem. Certos mosteiros budistas se transformaram em
centros de espionagem e subversão. Em minha posição, que farra o senhor? Permitiria
que continuassem agindo, sem os deter? Que continuassem executando o trabalho de Ho
Chi Minh, sob a capa do manto amarelo? Que carregassem pistolas e munição e
mensagens militares nas tigelas em que pedem esmolas? Ora, embaixador, o senhor não
é tão ingênuo assim !... Sei que me apresentam na imprensa estrangeira como
fomentador de perseguições, mas isso não é verdade. Eu estaria louco, se incentivasse
as disputas religiosas num país em guerra. Sei, também, que certos funcionários e
colegas meus cometeram erros.A primeira violência em Hué foi um desses erros, que
reconheço francamente. Eu estava pronto a consertá-lo, a entrar em negociações
amistosas com a Assembléia-Geral de Budistas. Pedi que enviassem suas queixas e o
que consideravam seus direitos legítimos. Mas veja o que sucedeu ! Em primeiro lugar,
exigiam de mim uma confissão humilhante de responsabilidade pessoal, cujo fito único
era desmoralizar-me. Recusei-me a isso, mas continuei disposto a debater seus
problemas. Enquanto as negociações estavam ainda em andamento, certos monges
turbulentos promoviam reuniões públicas e pediam a derrubada do governo... País algum
permite desordens assim, mesmo em tempo de paz. Permitem tais desordens em Little
Rock, Birmingham e Washington? Está claro que não ! Esperam que as permita, num país
que se debilita na hemorragia de uma guerra subversiva? Faltaria a meu dever se o
consentisse.
Era o que eu esperava ouvir, e nos termos apresentados a coisa se mostrava
inteiramente aceitável. Com toda a calma que pude conseguir, tentei mostrar-lhe o outro
lado da questão.
- Em termos gerais, presidente, concordo com sua afirmação. Um país em guerra não
pode tolerar desordens civis. Ontem à noite, no entanto, estive presente à invasão do
Pagode Xa Loi.
- Sei disso, embaixador. Soube em meia hora. Tenho de dizer que sua presença foi
uma indiscrição diplomática.
- Ao contrário, presidente ! Estou aqui como representante de meu governo, seu aliado
nesta guerra, que tenho o dever de informar tão completamente quanto possível. Ontem à
noite, assisti a sua forma pior, calculada e desnecessária! E isso presidente, se me
permite dizer, foi uma indiscrição política! Nas últimas dez horas ela se espalhou por todo
o aís. Só Deus sabe quais serão as reações no resto do mundo.
- O resto do mundo ? Embaixador, o resto do mundo está tão distante de nós quanto a
Lua! Somos uma península no sudeste da Ásia, um povo dividido. Séculos a fio, tem
pairado sobre nós a sombra da China, que já ocupou este país e quer fazê-lo novamente.
Nosso mundo embaixador, está delimitado pelo mar e pela China, e talvez nossa visão só
alcance, na direção do oeste, a Birmânia... Choram por nós em Sidney, Paris ou Londres
?
- Os americanos choram pelo Vietnam, presidente - respondi com amargura. - Suam
para pagar-lhe as contas, morrem pelo Vietnam! Insulta-os e a mim, quando fala desse
modo!
Eu o abalara e envergonhara, e Cung era inteligente demais para não o reconhecer.
Respondeu serenamente:
- Peço desculpas. Disse mais do que pretendia... Reconheço nossa dívida para com os
Estados Unidos. Mas, quando nos ajudam, não devem achar que nos possuem, ou julgar-
nos por seus padrões.
- Desde que somos amigos, presidente, o mundo nos julgará juntos. O seu próprio povo
nos culpará pelo sangue derramado ontem à noite.
Repentinamente, ele se enfureceu. Apanhou uma pasta cheia de fotografias e atirou-a
para mim, sobre a mesa.
- Tem medo de sangue, embaixador ? Isso lhe revolta o delicado estômago ? Pois veja
isso! Aí pode ver outros derramamentos de sangue, o que acontece quando uma bomba
comunista explode num mercado público! Como fica uma mulher grávida, depois de ter o
ventre rasgado por baioneta! Como vietcongs estraçalharam uma família que se opunha a
eles! Devo ser gentil com quem faz essas coisas e depois vai hipocritamente refugiar-se
no seio de Buda, no Dhamma e no Sangha?... Isto é a Ásia, e não Genebra ou
Manhattan!Aqui o homem que sustenta o poder é o homem forte e armado, que exige
sangue por sangue. Eu sou cristão e gosto disso tanto quanto o senhor, mas conheço
mais o meu povo.
As fotografias me revoltavam o estômago, pelo que fechei a pasta e a devolvi. Seria
facílimo concordar com ele, mas não me atrevi. A todo custo, precisava tirá-lo daquele
rumo alucinado.
- Precisamente por ser cristão, presidente, não pode permitir uma brutalidade sem
sentido, como a que assisti ontem à noite. Não compreende? Isso é mais uma arma na
mão dos vietcongs. Os católicos são a fé minoritária perseguindo a majoritária. Quer
desencadear uma guerra santa com todos os budistas da Ásia ? Posso garantir que o
conseguirá, e a imprensa mundial o classificará como um fanático intransigente!
- Muitas vezes a imprensa mente, embaixador! E, mesmo quando conta a verdade,
mostra-se cega às suas conseqüências!
- Não mentirá sobre o que houve ontem à noite, presidente ! E também eu não poderei
mentir. Quando me perguntarem, na entrevista à imprensa hoje à tarde, terei de dizer a
verdade, e a verdade condenará o senhor e seu governo. Fará mais do que isso: fará
surgir um grito de protesto na América. Os americanos perguntarão por que motivo devem
pagar por suas armas e mandar seus filhos lutar aqui. Que deverei responder ? Que
deverei dizer ao meu Departamento de Estado e a meu presidente?
- Diga-lhes o resto da verdade ! Mande publicar as fotografias que lhe mostrei! Diga-
lhes que metade dos nomes de subversivos nos mosteiros foram fornecidos pela sua
própria Agência Central de Inteligência! Tome um helicóptero e vá ver a guerra onde está
sendo realmente travada, nas aldeias e povoados fortificados, entre os montagnards, no
norte, e os habitantes do Delta, no sul! Deixe as cidades, onde o povo está estragado,
intoxicado por idéias espúrias deixadas pelos franceses ou tomadas por empréstimo à
imprensa americana ! Poderíamos perder Saigon, Hué e Dalat da noite para o dia, mas
continuaríamos a lutar. Não se deixe enganar! Estou ainda com o controle da situação e
não tenho medo. Sobreviveremos a nossos males, a despeito da imprensa mundial.
Reconstruí este país depois de Dien Bien Phu e continuarei a construí-lo, com os
americanos ou sem os americanos!
Não pude deixar de me impressionar com a obstinada coragem daquele homem.
Sentado num barril de pólvora, com baionetas às costas e ao peito, estava ainda disposto
a lutar. Mas eu precisava fazer uma advertência,e a fiz, clara e precisamente:
- Peço-lhe, presidente, que não tente o destino.Estou incumbido de trazer uma
mensagem do governo de meu país. Se não estiver preparado para dar fim às divisões
entre cristãos e budistas, entre seus próprios generais e administradores, poderá
acontecer que tenha, mesmo, de lutar sozinho, sem dinheiro, armas ou tropas
americanas!
Para minha surpresa, aceitou calmamente o que lhe dissera. Nos seus lábios se
esboçou um sorriso leve e ele perguntou brandamente:
- Estão realmente dispostos a tanto, embaixador? Estão realmente dispostos a sair
daqui e deixar o Cambodja, o Laos e a Tailândia caírem corno um castelo de cartas? Este
é o último baluarte do Ocidente na Ásia. Irão abandoná-lo, porque não lhes posso
prometer o impossível? Exigem unidade, um final para as dissensões! Como podem ser
tão ingênuos? Como nação, somos mais de mil anos mais velhos do que os Estados
Unidos, e ainda não estamos unidos! Toda a estrutura de nossa sociedade tende à
desunião, divisão e pequenos núcleos de poder. Como os italianos antes de Garibaldi,
possuímos ainda somente um sentimento pouco desenvolvido de identidade nacional!
Somos catorze milhões, entre vietnamitas, thais, muongs, yaos, miaos, chineses, khmers
e chams. Espera que eu realize um milagre Estão os americanos dispostos a abandonar o
meu povo, porque não conseguiram compreendê-lo?
- Recebi instruções para informá-lo de que dispostos a isso, presidente.
Deu de ombros e sorriu novamente.
- Bem, ao menos sabemos em que posição nos achamos. Pode informar a seu
governo que darei o melhor da minha atenção à mensagem recebida Pode informar
também que protesto do modo mais enérgico contra o que, na verdade, é um ultimato
político. Diga que sei que a Agência Central de Inteligência está em contato diário com
certos elementos dissidentes, que desejam derrubar o governo legítimo deste país e
formar uma junta militar. Diga que peço que me informem oficialmente se é o embaixador
ou aquela agência que representa verdadeira e legalmente o governo dos Estados
Unidos.
Tratava-se de um golpe hábil, que me tomou de surpresa, e retorqui asperamente:
- Posso eu mesmo dar a resposta, aqui e agora, presidente. Eu, e apenas eu, sou o
representante oficial de meu governo.
- Fico satisfeito em saber disso. Talvez gostasse, então, de examinar um relatório que
lhe enviarei sobre as atividades da Agência Central de Inteligência.
- Terei prazer em examiná-lo, presidente, e garanto enviar uma cópia imediatamente a
meus superiores em Washington.
- Ótimo. Gostarei de ouvir os comentários deles, e o seu próprio... Outra coisa,
embaixador. Estou informado de que três monges do Pagode Xa Loi procuraram abrigo
junto aos americanos. Gostaria de saber o que pretende fazer com eles.
- Vamos mantê-los sob nossa proteção, até recebermos garantias oficiais de que nada
sofrerão depois de saírem de nossa custódia.
- Pensarei nisso, embaixador Poderei até deixá-los onde estão. No fim, pode vir a
achá-los bastante embaraçosos. Uma pergunta final... Tem uma entrevista coletiva a
imprensa às duas da tarde. Pretende revelar os termos de seu ultima to nessa ocasião?
- Ainda não. Preferiríamos não ter de revelá-los em época alguma. Certamente o
senhor pretende examiná-los com mais tempo, e estarei à sua disposição sempre que
quiser.
- Obrigado, embaixador.
Levantou-se e estendeu a mão, acrescentando:
- Permita dizer que tive imenso prazer em conhecê-lo, e espero que o nosso próximo
encontro marque o início de melhor compreensão entre seu país de o meu.
- Também o espero, presidente, do fundo do coração.
Deixei o palácio profundamente perturbado. Precisava de tempo e de boa orientação
para eliminar a confusão criada em meu espírito pela entrevista com Cung, de modo que
resolvi não passar pela Embaixada e levar Mel Adams à minha casa para uma conversa
confidencial. Estávamos ambos muito cansados, por causa da vigília na noite da véspera,
de modo que tomamos um banho de chuveiro. Emprestei-lhe uma camisa limpa e depois
nos sentamos no escritório, examinando os pontos principais da conferência com Cung.
Verifiquei que Adams era conselheiro moderado e sábio. Não tentou esconder suas
próprias incertezas, e pesava cada questão com admirável isenção.
-... Em um ponto, tenho de concordar com Cung. Estamos pedindo um milagre, se
quisermos que ele unifique o país da noite para o dia. Verá com seus próprios olhos,
quando estiver entre os habitantes das aldeias e povoados, como é firme e fechada a
estrutura familiar e tribal. Existe ali uma desconfiança inata contra os estranhos, sejam
generais, administradores ou estrangeiros como nós. O próprio budismo pode ser uma
influência divisora, pois acomoda, mas não une, todas as nuances de opinião e prática.
No Ocidente, o budismo é encarado como uma religião contemplativa e quietista, mas
existem traços de violência nele, também. Sempre teve seitas militantes e, de vez em
quando, essa militância desabrocha em manifestações estranha. O senhor já viu o que
acontece com o Soka Gakkai no Japão... Tenho de concordar com a evidência de que
existe cera extensão de subversão originada nos pagodes, mas "subversão" é palavra
colorida. Para muitos vietnamitas, Ho Chi Minh é o Tio Ho, nobre patriota e revolucionário
vitorioso, enquanto Phung Van Cung é um reacionário apoiado pela América capitalista...
E prosseguiu, depois de curta pausa:
- Também nós contribuímos para o problema da desunião. Somos por demais
pragmáticos exigimos resultados a curto prazo e, muitas vezes nos impacientamos
demais por explorar suas conseqüências posteriores. Gostamos de definir as coisas em
termos precisos e as definições nos traem, pondo-nos em posições fixas das quais não
nos podemos retirar. É como Quemoy e Matsu e a lenda das duas Chinas. Trata-se de
lenda, apenas, mas nós a criamos e estamos presos a ela. Por isso não gosto de Harry
Yaffa: é um homem de primeira linha, no setor de informações, mas está sempre pronto
demais a agir, não tem senso da história, de continuidade ou de seqüência. Dê-lhe
qualquer situação, e tratará de modificá-la em seu favor. Está organizado para isso,
também! Quando uma ação não traz resultados prepara outra em dois tempos.
Mel Adams continuava agora em tom mais geral:
- Ação, ação! Somos um povo educado para agir: "Levante-se e marche! Vá para o
oeste, meu jovem! Há ouro naquelas montanhas!" O senhor conhece o Oriente e sabe
como essa tentação pode ser traiçoeira. E que significa a ação para o camponês no
arrozal? O comunismo vem com filosofia também, mas que prometemos depois que as
armas silenciam e se imobilizam? Democracia? Autodeterminação? São os ancestrais
que governam as tribos e como poderemos dar-lhes o direito de voto?...
Eu não sentia qualquer vontade de interrompê-lo, Mel continuou:
- Muitas vezes perguntei a mi próprio o que faria, se estivesse no lugar de Cung.
Confesso que não sei. Como se pode acabar com essa mentalidade de chefes guerreiros
entre os generais? Se lhes damos mais um pedaço de bolo, acham que têm direito a
outro ainda maior. O prestigio não se salva pela distribuição igualitária do poder e
influência; ainda é preciso provar que somos mais importantes que o homem ao lado. Em
termos políticos, o método de Cung faz mais sentido - dividir e governar. Em termos
militares, naturalmente, leva à trapalhada que temos agora.
E Adams encerrou a exposição:
- Vejamos a questão budista. Acredito que Cung queira negociar com eles, mas tem
medo de estender a mão e vê-los arrancar-lhe logo o braço. Os monges nos pagodes não
estão lutando na guerra, pois sua profissão os exime disso, de modo que, de acordo com
Cung, eles não têm direito a fomentar desordens públicas em prejuízo do homem que
está levando chumbo no Delta... Também nisso o ponto de vista dele é razoável.
Sorriu, com expressão de infelicidade, e encheu outra xícara de café.
- Não estou sendo construtivo, mas acho que temos de explorar a situação muito
cuidadosamente, antes de nos comprometermos com uma modificação. O senhor
entregou o ultimato. Que sucederá agora?
- Cung vai pensar nele e depois entrará em contato comigo.
- Que pensa que ele fará com o ultimato?
- Já que apresenta a coisa desse modo, Mel, eu diria que agora ele precisa fazer um
gesto claro e público, convidando os budistas a negociações amistosas e sanando
quaisquer queixas reais por eles apresentadas. Acho que precisa soltar os estudantes e
monges presos, e depois estará em posição de assegurar a lei e a ordem.
- Não acredito que ele possa fazer isso. Pelo menos, tudo isso.
- Por que não?
- Porque a violência não acabou ainda. No palácio me disseram que esperam mais
desordens públicas.
- Da parte de quem? Dos budistas?
- Não, dos estudantes. Antes de o dia terminar eles começarão as suas manifestações,
e teremos outro acontecimento sangrento. Mais pancadas mais balas mais prisões. E
depois?
- Os Estados Unidos farão outro protesto público.
- E os oficiais de Tolliver terão de conduzir dados vietnamitas na guerra, budistas e
católicos juntos enquanto seus filhos e filhas se acham presos. Bonito, não é?
- Então, examinemos o projeto de Yaffa. Apoiamos um golpe, Cung sai. Quem governa
o país, Mel?
- Uma junta de generais.
- Os chefes militares, novamente?
- Por assim dizer.
- As juntas são conhecidas por sua instabilidade.
- Concordo. Yaffa acha que os generais seriam mais unidos sem Cung no comando.
- E você, Mel?
- Duvido disso.
- Conseguiriam os generais unir o Exército?
- Duvido, também.
- Melhorar o moral do Exército?
- Difícil dizer.
- Poderiam governar o país?
Com o Exército, talvez possam regulamentá-lo melhor, mas se poderiam governá-lo,
inspirá-lo, arrancá-lo da desilusão e da descrença, não sei. Duvido que qualquer deles, ou
todos juntos, pudessem fazer o que Cung fez, depois de Dedem Bien Phu. Duvido que
qualquer deles tenha a firmeza de propósitos de Cung ou, por estranho que seja, o
sentimento moral dele. Por isso, Tio Ho se mostra tão forte no norte. É um chefe
revolucionário com filosofia marxista inteiramente desenvolvida. Cung também é filósofo,
mas essa doutrina de personalismo que tomou de empréstimo aos franceses não tem eco
popular. Trata-se de sutileza gaulesa, e não acredito que faça qualquer sentido para a
massa da população. Se Cung fosse um político saído do povo, com talento e
magnetismo pessoal para influenciá-lo, poderia impingir-lhe Kant, Hegel, Tomás de
Aquino ou quem quisesse, porque o povo conheceria seus serviços e o respeitaria. Mas
ele não tem esse tipo de encanto popular. É um recluso, celibatário, autocrata... e um
cristão, o que não ajuda em coisa alguma!
- Então peço sua opinião, Mel: Cung ou junta de generais ? Como votaria ?
- Não sei - respondeu ele serenamente. - Gostaria de saber. Talvez já esteja aqui há
tempo demais, talvez tenha sucumbido, como os próprios vietnamitas, a um tipo de
desespero que chega sorrateiramente. Talvez Yaffa tenha razão, quando me acusa de
vacilação e inação. Não que eu tenha medo, compreenda... É que todos os nossos atos
nos forçam a tomar um caminho que não leva a lugar algum...
Ficou em silêncio, olhando o dorso das mãos compridas e nervosas. Tive pena dele,
pois os seus dilemas se pareciam muito com os meus! Senti respeito, também,porque ele
se achava disposto a assumir a responsabilidade pela sua incerteza. Finalmente, levantou
a cabeça e me encarou com olhar sombrio.
- Quero dizer uma coisa. Depois de dizê-la, poderá exigir minha cabeça e a darei de
bom grado, numa salva de prata. Tolliver é o único americano neste país que dispõe de
um conjunto honesto de ordens a cumprir.Tem ordens para lutar numa guerra que não
pode ser ganha, e ninguém espera que ele a vença. Para ele e o Pentágono, trata-se de
uma ação de permanência. Se os vietnamitas estão divididos, ele luta com um Exército
dividido; se estiverem unidos, luta com um Exército unido, e a responsabilidade final não
recai sobre os seus ombros, mas sobre o Alto Comando vietnamita. Conosco, a coisa é
outra: Washington nos manda intervir diretamente no governo do país. O senhor chegou
com um ultimato, onde se diz, na verdade: "Façam isto e mais aquilo, ou os levaremos à
bancarrota e retiraremos nosso apoio militar". Em outro nível, intervém a CIA, também.
Estamos fazendo tudo isso em nome da democracia e autodeterminação, mas no fundo
se trata de uma medida política militar para deter a China e limitar a disseminação de
revoluções indígenas, revoluções que têm raízes na exploração colonial, na tirania de
chefes militares e em governos corruptos
E veio o seu desabafo:
- Digo-lhe com franqueza: os únicos, neste país, realmente sabem pelo que estão
lutando são os católicos. Se este país se tornar comunista, sabem que sua Igreja será
exterminada em meia geração, enquanto o budismo se acomodará, como já fez na China.
Por isso, compreendo Cung e simpatizo com ele, embora reconheça os erros por ele
cometidos. Acho que nós também estamos cometendo um erro, procurando outro homem
e nova doutrina, mas sem saber o que queremos. Estamos apostando no jóquei, e não no
cavalo, e porque temos pressa, ficamos com o jóquei errado. É por esse motivo que
discordo da nossa política no sudeste da Ásia. Sou um servidor dessa política e procuro
ser um servidor bom e honesto, mas não acredito mais nela.
Tratava-se de confissão difícil para homem com tanto tempo no serviço diplomático, e
aceitei como um cumprimento o fato de me haver escolhido para ouvi-la. Tão gentilmente
quanto pude, fiz-lhe outra pergunta:
- Se lhe pedissem que orientasse essa política, Mel, que faria ?
- Neutralizaria! Neutralizaria o país, enquanto temos força para negociar, e depois
sairia, deixando o para decidir sobre o seu futuro.
- E deixaria o Tio Ho tomar conta em um ou dois anos ?
- Ele já está fazendo isso, agora mesmo, porque o homem que realmente deseja unir o
país não tem talento para isso, porque estamos com falta de tudo menos de armas,
homens e dinheiro, porque quando o sol se põe o camponês no arrozal não vê luz, mas
apenas a treva de seu próprio desapontamento... Se que me demita, obedecerei.
- Quer demitir-se, Mel ?
- Não, não quero.
- Que quer fazer?
- Acho que ainda posso ser útil quando mais não seja como voz de oposição. Acho
que o senhor tem uma possibilidade, talvez pequena, de modificar Cung e preservar os
ganhos conseguidos por ele. Mas não vai ser fácil, porque os cães estarão ladrando em
seus calcanhares, para que desfira um golpe e inicie uma nova dinastia. Eu gostaria de
fazer o papel de sua consciência por algum tempo, e examinar o que lhe contam e
mostrar onde está a verdade.
- Um papel que não traz agradecimentos, Mel. Nem eu posso garantir que venha a
agradecer.
- Não se trata de gratidão. Trata-se de meu próprio respeito, diante de mim mesmo. Se
Cung cair, será assassinado, e prefiro fazer o papel de consciência ao de assassino
político.

Capítulo quatro

Assassinato é palavra feia, mas no clima de Saigon, naquela manhã, parecia lugar-
comum. A cidade se assemelhava a um acampamento militar, com patrulhas em todas as
esquinas e constante passagem de soldados armados em jipes e caminhões. Havia
pouca gente nas ruas e os movimentos eram furtivos e medrosos. As casas comerciais
estavam vazias, os bares abandonados e as moças sentadas, olhando pelas janelas de
grade, como pássaros no cativeiro. Tive a ilusão momentânea de que aquela cidade
provincial antiga se tornara repentinamente uma selva, onde todas as feras se tinham
recolhido às tocas,
enquanto os caçadores as procuravam nervosamente, com medo do silêncio e solidão.
Havia um cheiro de tempestade no ar, é a descarga do motor de um automóvel parecia
um tiro.
Na Embaixada, recebi os primeiros relatórios sobre as desordens programadas pelos
estudantes. A Universidade já estava em revolta e os alunos tinham deixado as salas,
engrossando as reuniões de protesto. Um professor fora apedrejado pelos alunos e os
editais do governo, proclamando a lei marcial, estavam rasgados e riscados. Grupos de
jovens, nas janelas dos edifícios, vaiavam os soldados nas ruas, desafiando-os a que
fossem lutar com os vietcongs e não com sua própria gente. Muitos manifestantes tinham
sido presos e levados para campos de detenção nos arredores da cidade e, ao bater do
meio-dia, fora irradiada nova proclamação, fechando todas as escolas até segunda
ordem. Os estudantes americanos tinham sido escoltados de volta a seus lares por
nossos soldados e uma guarda reforçada fora colocada em volta do palácio presidencial,
enquanto se instalavam baterias antiaéreas no terreno em volta do mesmo. Na minha
mesa estava um telegrama enviado por Festhammer:

“TODOS AQUI MUITO PREOCUPADOS NOTÍCIAS NOVAS VIOLÊNCIAS


CONTRA BUDISTAS. EMBAIXADOR É INSTRUÍDO PARA PROTESTAR NOS MAIS
ENÉRGICOS TERMOS CONTRA VIOLAÇÃO DE PALAVRA POR GOVERNO DEPOIS
REPETIDAS PROMESSAS RECONCILIAÇÃO. NOSSO PROTESTO DEVERÁ SER
ANUNCIADO DE MODO INEQUÍVOCO À IMPRENSA. FAVOR INFORMAR DETALHADA
E URGENTEMENTE TODOS ACONTECIMENTOS.”

Eu já fizera meu protesto no Palácio e, dentro de uma hora, torná-lo-ia público para a
imprensa reunida. Nada havia de útil que pudesse informar sobre a situação, até poder
compreendê-la melhor, de modo que deixei de lado o telegrama e chamei o general
Tolliver para que me expusesse a situação militar, o que fez com firmeza:
- Até agora, a cidade está tranqüila. Cung mandou buscar três batalhões sob o
comando de um general católico, leal ao Governo. Como precaução adicional, as
posições das tropas são mudadas de quatro em quatro horas. Hué também está sob
tensão, mas o resto do país parece bastante calmo. Ontem à noite, tivemos notícia de um
choque de soldados católicos e budistas em Travinh, mas o comandante local logo o
abafou. A não ser isso, não há sinais de revolta aberta no Exército, ou de qualquer
movimento militar ordenado pelos generais dissidentes. As operações contra os vietcongs
continuam normalmente, mas o moral está baixo entre as unidades de combate.
Destaquei guardas especiais para todos os nossos escritórios e instalações militares e
tenho pequenas patrulhas móveis verificando a segurança das famílias americanas. É
tudo por enquanto. Se houver alterações, informarei . imediatamente.
Até ali, parecia que eu podia confiar na interpretação que Cung fazia de sua própria
posição. Tinha o controle da situação, embora fosse difícil saber por quanto tempo o
poderia afirmar. Aquelas baterias antiaéreas no Palácio indicavam uma dúvida saudável
quanto à lealdade de seus subordinados. Chamei Harry Yaffa e pedi que me
apresentasse a sua interpretação dos fatos e tive certa surpresa ao vê-lo concordar como
o general Tolliver:
- ...Neste momento, não há dúvida de que Cung é senhor do país e não existe quem
esteja bastante organizado para derrubá-lo. A cidade ferve de descontentamento, mas
Cung enfiou a tampa no caldeirão, de modo que não se podem ver todas as borbulhas.
Estive por aí e recebo comunicados horários de diversos agentes. Não resta dúvida de
que Cung executou magnificamente essa operação.
- Falemos de modo mais claro, Sr. Yaffa. Se eu desse meu consentimento para um
golpe, neste momento, os seus generais poderiam executá-lo?
- Não. - respondeu categoricamente. - Se o tentassem neste momento, seriam
esmagados em menos de um dia.
- Então, talvez seja Cung o homem de quem precisamos, afinal, o homem forte e
armado, que pode manter as posições.
- Não penso assim. Já viu a cidade esta manhã? Está em estado de choque e
suspensão. Todos procuraram abrigo, e o primeiro que levantar a cabeça levará uma
bala. Mas não se pode bloquear indefinidamente qualquer cidade; as pessoas têm de
comer, beber e descansar um pouco. Os soldados também precisam descansar, de modo
que com uma semana ou dez dias, Cung se sentirá seguro o bastante para destampar o
caldeirão. Aí é que vamos ver o caldo ferver.
- Vamos acompanhar seu raciocínio, Sr. Yaffa. Revogasse a lei marcial, as tropas
saem de Saigon. Os generais estarão prontos para tomar o país nesse ponto?
- Se esta guarnição for dispersada, sim. Mas deixe-me ser bem claro, Sr.
Embaixador, porque os generais foram bem claros comigo. Nenhum deles está pronto a
se mexer sem ter, pelo menos, o apoio tácito dos Estados Unidos. São vulneráveis
demais e precisarei de nossa proteção.
- E se não a dermos?
- Nesse caso, estaremos presos a Cung, ditador que governa no vácuo. Se os
vietcongs tiverem qualquer êxito maior, o moral e a disciplina entrarão em colapso.
Houve um silêncio curto e difícil, e depois Yaffa apresentou sua pergunta:
- Em que posição está, embaixador ? Já esteve com Cung, consultou a opinião de seu
próprio pessoal, e eu fui tão franco quanto possível. Que solução o senhor vê?
- Não vejo solução alguma no momento. Estou sendo sincero também, Sr. Yaffa.
Acho-me no país há pouco mais de vinte e quatro horas e tenho ordens do chefe do
Executivo para tratar com o Presidente Cung e ver se o consigo fazer ouvir a voz da
razão. Se não puder, terei então de fazer recomendações para outra solução, não me
acho ainda preparado para isso. Não disponho ainda de fatos ou de conhecimento
bastante, de primeira mão. De certo modo, a ação presente de Cung funciona a meu
favor, pois dá algum tempo mais a fim de me informar sobre o que se passa.
- Compreendo - respondeu Yaffa. - Agora gostaria que examinasse a minha posição.
Tenho de continuar a preparar-me para o momento da crise, quando talvez Cung tenha
de ser deposto. Devo ser capaz de oferecer rumos alternados de ação. E essa a essência
do meu trabalho. Deixe-me, então, perguntar: a que ponto está disposto a confiar em mim
?
- Estou disposto a confiar até o ponto em que estiver disposto a ser sincero comigo.
Quando nos vimos pela primeira vez, o senhor me disse que era bom na mentira, mas
não posso fazer recomendações ao nosso governo na base de uma mentira, mesmo uma
mentira profissional. Tenho a certeza de que entende isso.
Para minha surpresa, encostou-se na cadeira e deu uma risada, enquanto suas mãos
pequenas e macias descreviam movimentos circulares no ar.
- Com todos os rodeios, finalmente chegamos lá! Ótimo, embaixador Compreendi bem
e aceito o que diz. Mas sejamos mais específicos. Qual a primeira coisa que deseja ?
- Em primeiro lugar, quero ser apresentado a esses generais que estão ou poderão
estar envolvidos no movimento para derrubar o governo Cung.
Ele franziu o rosto e beliscou o queixo rosado.
- Essa é desastrada. Pô-los todos numa sala dá para o mais idiota dos agentes ver do
que se trata. Há um modo de conseguir essa apresentação... Os australianos, italianos e
algumas outras embaixadas me ajudam de vez em quando. Eles darão um jantar, ou um
coquetel, e acrescentarão qualquer nome que eu pedir à lista de convivas.
- Façamos isso, então. Quanto tempo é preciso ?
- Três, quatro dias, para o primeiro contato.
- Ótimo! Agora, outra questão. Hoje de manhã, Cung afirmou que sabia tudo a respeito
de suas atividades, e prometeu enviar um relatório completo sobre elas. Prometi examinar
o documento e mandar uma cópia para Washington.
Yaffa riu de novo.
- Eu também gostaria de ver esse relatório, embaixador.
- Ele poderia comprometê-lo, Sr. Yaffa?
- Decerto, mas há uma coisa curiosa neste país, embaixador. A segurança não quer
dizer coisa alguma de valor. São as cartas que temos, e como as jogamos, o que
interessa. E o modo pelo qual funcionam as alianças fafailtares, o modo pelo qual se
puxam os cordéis financeiros. Cung sabe certamente quem está trabalhando contra si,
mas como antigo mandarim ele aceita a conspiração como parte da atmosfera normal.
Enquanto não conhecer a forma da trama final, acredita que poderá comprar este
elemento, apavorar aquele e exilar outro para a Embaixada no Cairo, de modo que
realmente não me preocupo com esse relatório. Estou mais interessado em persuadi-lo e
dar-lhe os meios de fazer a coisa indicada no momento certo.
- A coisa indicada, Sr. Yaffa.
Yaffa não se alterou. Sua resposta foi rápida e definida:
- Claro. Não há certo ou errado em política só o que é indicado e possível.
- Certa frase nas Escrituras, Sr. Yaffa, afirma que “era indicado que um homem
morresse pelo povo.” Já pensou nisso com respeito a Cung? Se os generais o
depuserem, matá-lo-ão também ?
A pergunta o apanhou desprevenido e ele me olhou com ar de surpresa.
- Matá-lo? A questão nunca foi debatida
- Pois quero que seja, Sr. Yaffa. Quero ter certeza de que o governo dos Estados
Unidos não se tornará o bode expiatório para uma execução ditada pela política!
Foi então que vi, sob aquela máscara branda e efeminada, a forma real do homem. Ele
me fitou nos olhos e depositou a resposta na minha frente, como um dólar na mesa de
jogo:
- Promessas o senhor pode ter, embaixador! Nada mais fácil ! Eu as dou e recebo
todos os dias. Mas garantias, não! Quem pode garantir qualquer coisa, quando as armas
começam a disparar ? Eu, não! Sou homem do Serviço Secreto, conspirador profissional.
O senhor quer um novo governo ? Eu o darei ao senhor, como uma omelete para o
almoço. Quer um guardanapo para limpar o ovo do rosto ? Também lhe posso dar isso.
Mas não me peça que faça a omelete sem quebrar os ovos. Isso não posso fazer.
Ninguém pode !
Depois que ele saiu, senti-me repentinamente tomado de frio, como se alguém tivesse
passado sobre meu túmulo.

Anne Beldon me trouxe café e um prato cheio de sanduíches, insistindo até eu


concordar em comer. Era a primeira vez, desde a minha chegada que lhe prestava
atenção e me senti obrigado a pedir desculpas pela minha preocupação. Aceitou as
desculpas de um modo simples, e entramos numa dessas conversas sem rumo certo, que
constituem um alivio depois da tensão causada por questões importantes. Era viúva, ao
que me disse. O marido, aviador da Marinha, morrera na Coréia. Ela entrara para o
serviço diplomático no Japão e servira durante algum tempo em Tóquio, Formosa e
Bangkok. Falava bem o francês e estudava o vietnamita com um professor aposentado da
Universidade de Saigon. Falava com desembaraço e se movia bem e, quando sorria,
seus olhos pareciam cheios de bom humor e uma pitada de malícia. Calculei que tinha
uns trinta e cinco anos de idade.
Pelo que pude aprender, o serviço diplomático faz coisas curiosas às mulheres de
certa idade e posição. Exige que sejam eficientes, e algumas acabam secas e
possessivas. Vivem em comunidade masculina, onde metade dos homens são casados e
os demais se acham habituados a idílios, às vezes exóticos. No entanto, as convenções
da vida diplomática as situam em posição desvantajosa e, em postos difíceis como
aquele, elas muitas vezes se vêem condenadas a um tipo de isolamento que faz algumas
descambarem para a histeria e outras para a introversão. Foi bastante raro, em minha
experiência no serviço, encontrar uma secretária graduada que mantivesse equilíbrio
emocional e a sua feminilidade. Anne Beldon era uma dessas, e eu me sentia grato por
sua companhia, antes do embaraço inevitável da entrevista coletiva à imprensa.
Ela era por demais sabida para se deixar arrastar a um exame das personalidades na
Embaixada, mas apresentou-me um comentário penetrante sobre os vietnamitas:
- ...Não imagina como esse povo está cansado e desiludido. Visito-os, janto com eles,
falo com as mulheres. Antes de piorarem as coisas, eu costumava passar de vez em
quando o fim de semana em Dalat, com a filha de meu professor. Ninguém parece
lembrar que este país está em guerra continuamente, há vinte e dois anos, desde quando
os japoneses vieram e Ho Chi Minh criou os seus primeiros bandos de guerrilheiros. Acho
que é preciso ser mulher para compreender o que isso representa. A mulher vê os
figurões chegarem e partirem, escuta todas as promessas e, de repente, seu filhinho se
transformou em homem feito, que tem de empunhar um fuzil, como o pai.
- Que é que pensam de nós, Anne ?
- Os sentimentos são muito misturados. Vêem-nos como símbolos de uma liberdade e
prosperidade que não têm. Gostam de nós, são gratos pelo que tentamos fazer, mas
acham que somos simples demais para a complexidade velhíssima da Ásia. Não gostam
dos franceses, mas de certo modo os respeitam mais do que a nós. Dizem que os
franceses estão ainda dirigindo o país, os bancos, os cinemas, o comércio da borracha e
as linhas aéreas,
enquanto os americanos lutam para que os franceses continuem a fazer bons negócios. E
acontece que isso é verdade!
- E o que realmente querem eles, Anne ?
- A paz. Paz a qualquer preço, segundo creio. E não posso dizer que estejam errados.
Eu já ouvira isso antes; primeiro pelo delegado apostólico, depois por Mel Adams e,
agora, pela terceira vez, por uma mulher. O povo estava cansado, perdera a fé, queria
apenas dormir tranqüilamente à noite. Que lhe trazia eu que pudesse concretizar aquele
desejo ? O café me pareceu morno e azedo. Afastei a xícara e pedi a Anne Beldon que
trouxesse as anotações para a entrevista à imprensa. Quando as colocou à minha frente,
perguntou:
- Posso dizer uma coisa, embaixador?
- É claro, Anne. Que é ?
- Tenha cuidado com a imprensa daqui. A maioria dos jornalistas é muito jovem e se
acha profundamente envolvida. Eles passara por grandes perigos e já viram coisas
horríveis. Foram acusados.de noticiar a guerra sem saírem do Bar Caravelle, e mostram-
se indignados com isso, pois não é verdade. Já os enganamos muito com pura conversa,
de modo que vão querer vê-lo em maus lençóis.
- Obrigado, Anne. Meu avô foi guerreiro índio, e farei o possível para não os deixar
escalpar-me.
Enquanto me erguia, toquei acidentalmente na mão dela e fiquei surpreso ao ver como
era fresca e macia. Lembrei-me de que fazia muito tempo que não tocava na pele de uma
mulher.
Mel Adams e meu adido de imprensa haviam reunido com os correspondentes na sala
de conferências da Embaixada. Eu pedira uma entrevista completa e nada menos me
estava sendo proporcionado. Havia cinegrafistas, gravadores de fita e todo um pelotão de
repórteres de mais de dez países diferentes. A maioria, como Anne Beldon prevenira, era
bem jovem, e todos, apresentavam a expressão atenta e tensa dos que vivem em perigo,
num ambiente hostil. Alguns se achavam o em mangas de camisa, dois ou três outros
trajavam uniformes surrados, como se tivessem vindo diretamente de uma operação
militar. Um ou dois não se tinham barbeado, outros apresentavam aquela expressão
amarelada e abatida que acompanha a malária ou uma ressaca alcoólica. O decano era
um jovem magro e desengonçado de Brooklyn, representando uma agência telegráfica
internacional. O adido de imprensa apresentou-o e ele fez as demais apresentações, sem
faltar um só deles. Sentei-me e os cinegrafistas começaram a acionar as suas máquinas.
Os gravadores já rodavam e a entrevista - ou seria julgamento ? - estava iniciada.
Tinham-na planejado bem, e as perguntas vinham de todos. os lados, mas seguiram
cuidadoso plano de indagação.
- Embaixador, sua nomeação significa uma alteração na política dos Estados Unidos
para com o governo Cung, ou na direção da guerra?
- Alteração de política ? Não. Estamos aqui para ajudar a República do Vietnam do Sul
na continuação da guerra contra os vietcongs e impedir a disseminação do comunismo no
sudeste da Ásia. Nunca nos afastamos desse propósito.
- Uma mudança de atitudes, então?
- Não. Viemos como aliados, assessores militares e fornecedores de equipamento
estratégico. Nossa atitude continua sendo a mesma.
- Os seus conselhos têm sido sempre aceitos ?
- Infelizmente, em certas questões de importância capital, isso não aconteceu. O
governo dos Estados Unidos insistiu fortemente em que o do Vietnam do Sul tomasse
medidas a fim de sanar queixas da comunidade budista, e aplicar-lhe toda a igualdade
religiosa garantida pela Constituição do país, mas isso não foi feito. Ao invés, tem havido
novos atos de repressão e violência, que o governo de meu país deplora, e dos quais se
dissocia nos termos mais claros.
- O senhor próprio foi testemunha de certos atos de violência no Pagode Xa Loi ?
- Fui, e imediatamente apresentei um enérgico protesto oficial junto ao Presidente
Cung.
- Pode citar-nos os termos desse protesto?
- Os mais enérgicos possíveis, posso assegurar.
- Houve alguma menção a sanções, caso não houvesse concordância? A cessação de
pagamento de ajuda exterior, por exemplo ? Ou a retirada da ajuda militar?
- Não desejo comentar isso nesta ocasião
- Mas o Presidente Cung já o comentou. Às onze horas de hoje declarou que os
Estados Unidos estavam intervindo nos assuntos internos do Vietnam do Sul com brutal
ameaça de sanções econômicas.
- É comentário do presidente, não meu.
- Afirma também que os agentes americanos estão criando dificuldades e incitando
uma revolta entre elementos descontentes do Exército e do governo.
- Sugiro, conforme já sugeri ao Presidente Cung, que a repressão e brutalidade
fomentarão a revolta muito mais depressa do que nós, americanos, o poderíamos fazer.
- O senhor nega, embaixador, que a CIA ou qualquer outra entidade americana esteja
conspirando contra o governo ?
- Estou aqui há exatamente vinte e quatro horas. Já ouvi falar em conspirações entre
os budistas, entre os católicos e entre os vietcongs, mas até agora não encontrei qualquer
conspiração na minha Embaixada!
Riram, mas foi uma risada oca, como a que surge numa arena de touradas quando o
toureiro faz um passe mais engraçado. A dança da morte continuava e ainda nos
achávamos muito distantes do momento da verdade. Um sujeito ossudo, com olhar
penetrante e sotaque australiano empurrou seu microfone para baixo de meu nariz e deu
inicio a outra linha de perguntas:
- Estamos ganhando a guerra, embaixador?
- Minhas informações dizem que sim.
- Há um mês o General Tolliver declarou que a guerra poderia estar ganha em 1965. O
senhor concorda ?
- Sou um diplomata, não um soldado. Não posso responder a essa pergunta.
- Poderia ela ser ganha, embaixador, se os Estados Unidos assumissem o controle da
situação militar e desfechassem uma ofensiva geral ?
- Poderia ser ganha num sentido militar, mas seria uma vitória no vácuo, deixando-nos
na mesma posição dos franceses, de tropas coloniais numa região politicamente
descontente. Levaria também, de modo inevitável, à propagação da guerra, a um choque
direto entre América e China. Ninguém se acha pronto para isso, no momento.
- Alguma coisa o perturba na situação militar?
- A divisão no Alto Comando vietnamita e a falta de quadros inteiramente preparados e
unidos, de oficiais de tropa e graduados.
- A repressão aos budistas criou alguma discórdia maior no Exército sul-vietnamita ?
- Por enquanto não, mas contribuiu para o enfraquecimento geral do moral, cuja causa
verdadeira é a tática divisionista do regime. Isto é coisa que não se pode mudar, a não ser
em nível político Do ponto de vista militar, temos de fazer o que pudermos, na situação
existente.
- E que está sendo feito no nível político, embaixador?
- Conforme lhes disse, fizemos representações bem enérgicas ao Presidente Cung e
continuaremos fazendo, e tomaremos outras medidas, conforme sejam ditadas pelas
circunstâncias.
- Pode ser mais claro sobre essas medidas ?
- Mais tarde, talvez, não agora.
- Suponhamos que o regime Cung se mostre inaceitável para a maioria do povo.
Nesse caso, o que farão os Estados Unidos ?
- Trata-se de pergunta hipotética, sem importância efetiva.
Martelaram-me quase uma hora, até Mel Adams entrar e encerrar a entrevista. Eu
tinha a boca seca, as roupas molhadas de suor e a cabeça zunia. Enquanto subíamos
para meu gabinete, Mel Adams apresentou seu veredicto:
- Eles o fizeram passar maus momentos. Estavam bem informados e ansiosos por
saber.
- Como nos saímos da entrevista, Mel?
- De um modo geral, diria que chegamos na frente. O seu protesto foi bem recebido,
eles compreenderam a mensagem sobre as sanções e o senhor registrou uma discreta
insatisfação com a situação militar. Agora, vamos esperar e ver como isso sai nos jornais.
Mas seria bom preparar-se para alguns golpes corporais. Eles sabem... desculpe-me...
eles sabem que estamos vendendo fumaça, ao invés de uma solução real... Só para estar
seguro, fiz gravar toda a entrevista. Nós a datilografamos e enviaremos a Washington.
Seria bom mandar também uma cópia para o palácio, só para constar.
- Boa idéia... Há vezes, Mel, em que gostaria de voltar aos dias de diplomacia secreta.
Os cavalheiro se reúnem, e os camponeses que limpem o sangue.
- Eu também ! - respondeu ele, fervorosamente. Como é possível negociar diante da
televisão? Como se pode lidar com Cung, quando os dois se acham ao tempo gravados
num debate público ? Sempre nos vemos presos às declarações feitas na semana
anterior e, quando as queremos retirar, elas estão gravadas na pedra, como o Decálogo.
- É por isso que os marxistas vencem todas as vezes, Mel. Eles sempre podem rever
as gravações. Eu gostaria que pudéssemos rever algumas das nossas... Quer tomar
alguma coisa?

Depois de dois tragos com Adams e de duas horas em meu gabinete examinando
relatórios, despachos e telegramas, senti-me repentinamente tomado de um cansaço
mortal. Os olhos ardiam, o corpo doía como se tivesse levado uma surra, as palavras
escritas dançavam e se apagavam diante de mim. Com certa surpresa, lembrei-me de
que estivera trabalhando, sem parar, cerca de 36 horas seguidas. Era bastante, mais do
que bastante. Que viesse toda a Ásia em armas e bandeiras, elefantes e fanfarras de
clarins, mas eu ia para casa dormir!
Durante bastante tempo o sono não veio, e meu corpo mostrava-se frouxo e
envenenado de fadiga, mas a mente girava em fúria especulativa, como um motor que
repentinamente desengrena. O eixo em que girava era sempre a mesma pergunta: por
que este país embaraçado pela guerra, mas mantido em pé mediante uma ajuda enorme,
não encontrara ainda a força, inspiração ou homens que reunissem suas energias e
completassem a revolução iniciada vinte e dois anos antes ?
Uma dúzia de pessoas me dera doze respostas diferentes, nenhuma delas adequada
para explicar a desintegração maciça que se efetuava bem diante de meus olhos. Um
ditador isolado? Não bastava, pois outros ditadores mais brutais do que Cung tinham
conseguido, pelo menos por algum tempo, um sentimento de união e de objetivo comum.
Divisões entre generais e administradores públicos? Também não bastava pois nada
havia a ganhar, para qualquer dos grupos, num colapso nacional. Cansaço e desilusão do
povo? Eram sintomas, e não a doença. Disputas religiosas? Apareciam esporàdicamente
nas sociedades mais organizadas. Brutalidade policial? A Ásia era um continente brutal e
a própria natureza lhe infligira crueldades maiores do que as originadas dos homens, e o
povo se mostrara milenarmente passivo sob a peste, fome, varíola, vermes e açoite dos
ajudantes dos príncipes. Que faltava, então? Na verdade, qual era a base de qualquer
união? A que palha se prendia finalmente um homem, para manter sua existência
precária? Eu era um homem como qualquer outro. Estava nu agora, suando na noite
tropical, em leito solitário. Também me via ameaçado por dentro, e assediado por fora.
Mas o que fazia, ou podia fazer, para manter minha inteireza? Os pensamentos, em
saltos, levavam-me de volta ao jardim de Tenryu-ji, onde Muso Soseki me dera a primeira
lição da estrada para o esclarecimento:
- A raiz do sofrimento humano, Sr. Amberley, é um sentimento de alheamento quanto
à ordem natural do universo. O efeito do satori é uma iluminação da mente, de modo que
a natureza do eu e do universo se torne finalmente clara e se restaure o sentido da
verdadeira relação, isto é, a unidade.
Identidade! Essa era a palavra, a chave para todos os problemas humanos! A menos
que o homem compreendesse, por mais vagamente que fosse, o que era, e como se
ligava aos semelhantes e ao cosmos, não poderia sobreviver. Ponham-no numa cela
acusticamente isolada, separem-no da visão, som e toque do mundo, e em pouco tempo
o terão reduzido à loucura e à desordem física. Era esse o significado real do animismo
antigo da Ásia - a menos que os espíritos da rocha, do rio e das árvores fossem
aplacados, a relação necessária entre eles e o homem seria quebrada e o universo se
dissolveria no caos.
Sem saber disso, Mel Adams exprimira o mesmo pensamento, em palavras
diferentes.
Os únicos neste país que sabem por que estão lutando são os católicos.
O catolicismo era religião fundada e enraizada numa definição da identidade humana.
O homem, pessoa criada por um Deus pessoal estava, portanto, em relação familiar com
todos os demais homens. O universo físico era o ambiente proporcionado para seu
crescimento, sobrevivência e continuidade, sua posição afirmada pela doutrina da
Encarnação, de acordo com a qual o próprio Criador tomara corpo humano e lhe conferira
irrevogável dignidade.
O comunismo, pelo seu próprio evangelho, mostrava-se igualmente específico. A
identidade do homem era afirmada e mantida apenas por sua atividade coletiva. Me era
uma criatura dependente, gerada do caos e marchando para extinção.
Sozinho, estava condenado por toda a vida a um deserto ameaçador, vítima de
injustiça e exploração. Por isso, sua identidade dependia de participação útil na massa,
mas tinha uma identidade, e sujeito a conformar-se a ela, a massa o garantiria e
protegeria.
Por estranho paradoxo, o budismo afirmava a identidade pelo ensino de que a
perfeição estava na extinção final, com a fusão no Eu - Completo do esclarecimento
puro... Mas se tratava de doutrina esotérica, acessível apenas aos estudiosos, de modo
que os homens comuns a tinham corrompido e adulterado, para torná-la mais de acordo
às suas necessidades.
Ao lado dessas afirmações profundas, ainda que divergentes, o evangelho
americano, do qual eu era o novo profeta no Vietnam do Sul, parecia estranhamente
vazio e insatisfatório. Democracia! Autodeterminação! Liberdade, igualdade,
fraternidade! Que significavam essas coisas para homens que se sentavam sob uma
árvore e ouviam pelas folhas ondulantes ao vento, o sussurro de um espírito
afrontado? Como poderiam identificar-se a nós, os bárbaros de olhos azuis que
possuíam tanto e compreendiam tão pouco?
Cung era um filósofo, e devia ter pensado nessas coisas, também. Era homem
da Ásia e devia ter escutado, em seu próprio coração, as vozes ancestrais que
clamavam por tanto tempo pela identidade, continuidade e comunidade. Talvez, se
pudesse fazê-las ouvir novamente, pudesse levá-lo a proclamá-las na língua
comum, de modo que seu povo as ouvisse por sobre a balbúrdia dos políticos e
propagandistas. Talvez não fosse ainda tarde demais para uma última volta pelas
fronteiras, um último toque dos clarins...
Mas era tarde demais para mim. A escuridão e o silêncio me dominaram, e dormi
doze horas seguidas.

Desci para o café e encontrei George Groton já em sua última xícara. Tinha
os olhos vermelhos e estava cansado, e quando indaguei respondeu que estivera
até tarde examinando os documentos da Embaixada sobre a situação dos budistas.
A seu ver, tais documentos eram perigosamente incompletos. Perguntei por que
pensava assim.
- Porque encaram a situação atual apenas do ponto de vista de observadores
políticos e agentes secretos. São vagos sobre uma série de questões essenciais.
Por exemplo, a maioria dos vietnamitas segue o Mahayana, o Caminho Maior, mas
há um bom número de pagodes onde se pratica o Caminho Menor, e estes
apresentam ligações definidas com o Hynayana do Laos e Cambodja. Têm também
ligação histórica com o Cai Dai e o Hoa Hao, e estas são seitas político-religiosas
cujos exércitos .particulares foram desarmados pelo Presidente Cung. Que ligações
são essas ? Estão sendo usadas para fins políticos ou militares? Os relatórios não
dizem; portanto, não temos. meio de saber qual seja o efeito da repressão de Cung
sobre a atividade budista na fronteira. Outra coisa: os pagodes Mahayana são
instituições autônomas, onde o abade é o chefe titular de sua própria comunidade,
mas existem todos os tipos de filiações e associações mais frouxas entre os
templos. Os documentos se mostram vagos sobre isso, também. Os chineses
possuem seus próprios pagodes e monges budistas, e sobre eles não temos
nenhuma informação precisa. No entanto, toda a crise atual começou com os
budistas. Foi ela inteiramente fabricada por Cung? Ou fará parte de algo maior, um
movimento pan-budista de esquerda partido do Ceilão e da Birmânia, passando
pelos monarquistas da Tailândia e mostrando sua face verdadeira aqui ? Não é
coisa tão louca. quanto parece, sabe ? Tem havido manifestações de polido pesar,
mas não grandes protestos da Tailândia quanto aos assaltos aos pagodes, mas os
cingaleses dispararam uma barragem cerrada de protestos enérgicos contra elas.
Pelo menos, acho isso significativo, e creio que devíamos fazer alguma coisa nesse
particular.
- O que, por exemplo, George ?
- Tenho uma sugestão, na qual trabalhei detalhadamente a noite passada, e
gostaria de apresentá-la ao senhor.
- Pois apresente.
- Passei ontem a maior parte do tempo em companhia do monge asilado na
Embaixada e dos outros dois, no edifício da Missão. Disse-lhes que, embora eu siga
o caminho Zen, ainda assim sou budista, e, portanto, tenho simpatia por seus
objetivos e problemas. Disse-lhes que o senhor também estuda o caminho Zen,
embora não seja crente completo. Isso os impressionou muito, e o monge da
Embaixada foi bastante esperto para me propor o seguinte: por que eu não fazia
uma investigação particular e apresentava um relatório pessoalmente ao senhor?
Prometeu dar cartas dirigidas a amigos dele, e com elas eu poderia mover-me
livremente nos pagodes... Achei boa a idéia. Tentarão decerto utilizar-me, porque
pareço ser... e sou mesmo, às vezes, um sujeito simplório. Mas, ao menos,
estaremos obtendo informações de primeira mão, que não temos agora. Se fosse
preciso, eu poderia raspar a cabeça e vestir um manto amarelo!
Sorriu, naquele seu modo juvenil, e acrescentou:
- Já o vesti antes, senhor. Não é incômodo demais. Não falo a língua deles,
naturalmente, mas o francês é moeda comum entre os monges educados.
- Já pensou nos riscos, George ? Que aconteceria, apanhado numa batida como
a de ontem à noite?
- Criaria um embaraço para Cung e o senhor.
- Poderia também ter a cabeça quebrada a coronhadas. Há outra coisa que você
talvez não tenha levado em conta.
- O que é, senhor ?
- O Exército tem serviço secreto, a Embaixada tem outro e Harry Yaffa possui um
serviço bem da por sua vez. Isso faria de você o operador solitário, sem posição ou
proteção. Poderia resultar em desastre, para você e para mim.
Sorriu de novo e respondeu com suavidade:
- Por outro lado, senhor, a Constituição dos Unidos garante a liberdade religiosa a
todos.
Sou budista e desejo manter minha prática religiosa... Além disso, o senhor me
trouxe aqui como assistente especial e esse é um serviço que lhe posso prestar e
ninguém mais pode fazer.
Era um serviço tentador, um investigador particular e experimentado sobre o mais
recente fenômeno na Ásia um budismo de mártires públicos, oficinas gráficas
secretas e propaganda global. Falamos sobre o projeto por mais meia hora, e
concordei com ele, sob certas condições.
- ... Experimente durante dez dias, George, e veja o que consegue. Apresente-se
a mim cada três dias. Nada de riscos ou heroísmo. Se surgir o menor sinal de
perigo, quero saber. Depois de dez dias, falaremos de novo no assunto. Está claro?
- Muito claro, senhor, e muito obrigado. Quando posso começar ?
- Agora mesmo, se quiser.
Ele partiu, .satisfeito como um passarinho, deixando-me terminar a refeição e
tentar entender as reportagens sensacionalistas, publicadas pela imprensa de
Saigon. Eu não sabia - e como poderia saber? - que acabara assinar uma sentença
de morte.
Lembro-me do dia seguinte com especial amargura, pois agora me parece ter
sido o começo de todas as traições em que me achava envolvido. A diplomacia é
uma dicotomia, para não dizer mais, que exige separação completa entre o acidental
e o absoluto, entre o justo e o necessário, entre a verdade difícil e a casuística
desejável.Ninguém pode fugir a essa dicotomia, e todos são modificados por ela,
chegando alguns a ser destruídos. Em número demasiado de vezes terminamos
aceitando a opinião que viemos modificar, ou cometendo o ato que estamos
condenados a cometer.
Certa feita, quando me achava na Argentina, um colega agradável mas inábil
me apresentou a definição latina do diplomata:
- Na verdade, ele é um augure antigo, que prevê o futuro estudando as
entranhas de um pássaro. O pior é que precisa matar o pássaro para poder
examinar-lhe as tripas.
Passei esse comentário a um inglês que, com a admirável reserva do Foreign
Office, me apresentou outra versão:
- Não é absolutamente assim, meu caro. A diplomacia é mais parecida com a
caça ao galo silvestre. Precisamos espantar o pássaro antes de atirar nele. Quando
não se tem sorte, erra-se o pássaro e mata-se um batedor.
Naquela manhã, parecia que eu era o batedor, com os fundilhos cheios de
chumbo de caça. Cheguei à Embaixada lúcido de idéias e descansado. As reflexões
da noite anterior ainda estavam bem vivas em meu espírito e via - ou pensava que
via - o início de diálogo construtivo com o Presidente Cung. Haveria uma
escaramuça inicial, certamente, palavras duras seriam pronunciadas em ambos os
lados e já estavam sendo proferidas sobre os telhados do mundo. Mas eu estava,
pelo menos, preparado para oferecer o primeiro ramo de oliveira, ainda que isso me
fizesse parecer um tanto desajeitado como o pombo de Picasso. Eu já redigia uma
nota para o Palácio, quando Anne Beldon entrou e pôs à minha frente um telegrama
de Festhammer:

“REAÇÃO MUNDIAL ULTIMOS RELATÓRIOS DE SAIGON FORTE E HOSTIL.


QUESTÃO BUDISTA A SER DEBATIDA NA ASSEMBLÉIA GERAL NAÇÕES
UNIDAS. ARGÉLIA, CEILÃO, INDONÉSIA E MONGÓLIA EXTERIOR
PATROCINAM MOÇÃO PARA NOMEAÇÃO COMISSÃO INQUÉRITO NAÇÕES
UNIDAS SOBRE VIOLAÇÃO DIREITOS HUMANOS EM VIETNAM DO SUL.
NOSSA OPOSIÇÃO A MEDIDAS REPRESSIVAS JÁ FOI EXPRESSA EM
WASHINGTON E TORNADA DUPLAMENTE CLARA EM SUA DECLARAÇÃO IM-
PRENSA EM SAIGON. POR ISSO SEREMQS FORÇADOS VOTAREM FAVOR
MOÇÃO...”

E assim, de um golpe, meu plano de reconciliação estava por terra. Como


poderia falar em filosofia com Cung, se meu governo se alinhara contra ele na
tribuna das Nações Unidas? Eu já estava com raiva, amargamente irado. Aquilo era
jogo de potências, e não diplomacia! Eu poderia perfeitamente ter mandado colar
nossas ameaças de sanção em todas as paredes de Saigon... Os batedores haviam
levantado os pássaros, mas estes não tinham para onde voar. Tanto Cung quanto
eu estávamos encurralados no aviário, dando bicadas um no outro e batendo as
asas no arame.
Andei de um para outro lado do gabinete, durante dez minutos de fúria, tentando
compreender a situação. Em seguida, o telefone tocou e Arnold Manson,
Embaixador da Austrália, entrava na linha. Apresentou sucintas palavras de boas-
vindas e depois- pediu uma audiência imediata. Aleguei estar assoberbado de
trabalho, mas ele não desistiu. A questão era urgente, disse, e se não o pudesse
receber se veria obrigado a empreender uma ação independente, de modo que
concordei ainda que contra a vontade.
Chegou a meu gabinete em dez minutos, homem surpreendentemente jovem,
com uma guedelha de cabelo encaracolado, sorriso bem-humorado e exposição
bem preparada. O debate das Nações Unidas sobre o Vietnam do Sul constituía
motivo de sérias preocupações para seu Governo. A Austrália, como os Estados
Unidos, desaprovava as medidas de repressão contra os budistas, mas desaprovava
igualmente a idéia de uma comissão de inquérito. A única comissão da ONU que
poderia proclamar seu direito legal de entrar num estado soberano era uma
Comissão de Segurança Internacional. Quer Cung aceitasse ou não uma Comissão
de Direitos Humanos, ainda assim teríamos um rompimento da Carta da ONU e
perigoso precedente para a Austrália, como país encarregado da administração dos
territórios em tutela. Era claro que ela não queria um bloco misto de argelinos,
paquistaneses e mongóis emitindo opiniões sobre as vidas dos habitantes primitivo
da Nova Guiné, ainda na Idade da Pedra.
Concordei com ele e mostrei-lhe o efeito de debates na ONU sobre as minhas
próprias relações com o Palácio. Disse-lhe que me propunha mandar mensagem
imediata a Washington, exprimindo objeção pessoal àquela medida. Afirmei, ainda,
que via pouca esperança de alterar o curso dos acontecimentos em Washington e
Nova York, para quem Cung era totalmente intransigente, e precisava ser dominado,
a cacete, se fosse necessário. A despeito de toda a sua aparente juventude, Manson
era bom diplomata, que preparava seus próprios deveres de casa, e mostrou uma
solução exeqüível.
- Há um modo de tirar todos do embrulho.
- Qual é ele, Sr. Manson?
- Se o Presidente Cung convidasse a Assembléia Geral para enviar uma equipe
de observadores, a fim de examinar a questão budista. Poderia antecipar-se aos
patrocinadores da moção e evitar também um debate longo e inflamado, e não
haveria questão de uma comissão formal, com todas as suas conseqüências
indesejáveis.
- Acha que Cung aceitaria tal proposta?
- Acho que sim.
- E quem vai lhe apresentar a idéia?
- Estou pronto para isso, se o Senhor concordar... Embora fosse um gesto útil, se
partisse do Sr.

Tratava-se de idéia atraente, e a examinei por alguns momentos, mas fui


forçado a rejeitá-la.
- Cria problemas em demasia. Em primeiro lugar, me faria falar com voz
diferente daquela de Washington, e não posso fazer isso. Depois, proporcionaria a
Cung um motivo forte para afirmar que dizemos uma coisa em público, e outra em
particular. Por outro lado, a Austrália é um país pequeno e, neste caso, seus
interesses e os do Vietnam do Sul são idênticos. O Sr. está dando a Cung uma idéia
em seu benefício mútuo... Sabe de uma coisa, Sr. Manson? O Sr. é quem a devia
apresentar.
- E qual seria a reação em Washington?
- Depois de receberem minha mensagem, acho que também gostarão de sair do
embrulho, mas não posso prometer coisa alguma.
- Entendo, e estou satisfeito ao ver que finalmente estamos de acordo.
- Também estou satisfeito, Sr. Manson. Temos um pequeno raio de sol em meio
a um dia cinzento e desagradável. Pode-me informar como Cung receberá sua
sugestão?
- Avisarei, assim que tenha falado com ele.
Hesitou um pouco e depois perguntou, de modo deliberado:
- Podemos falar particularmente durante dez minutos?
Eu estava assoberbado e abalado demais para me irritar com essa expressão e
lhe fiz ver, acidamente, que na diplomacia, mais cedo ou mais tarde, tudo viria à
tona. Irritei-me ainda mais, quando ele não se deixou alterar, sorrindo e respon-
dendo calmamente:
- Desculpe, é apenas uma questão idiomática. Francamente, não me preocupa
se isso será ou não registrado, desde que o seja como minha opinião particular e
não forçosamente a de meu Governo.
Todos em Saigon queriam impor-me uma opinião particular e eu estava ainda
novo demais para ter formado a minha própria, de modo que perguntei bruscamente:
- Sua opinião sobre o que, Sr. Manson?
- A questão das sanções.
- Até onde sei, Sr. Manson, ainda não se aplicou sanção alguma.
- Mas houve a ameaça.
- Permita corrigi-lo, Sr. Manson. A questão das sanções foi levantada pela
imprensa, não por mim.

- Sei disso, Sr. Amberley, mas se mostra perfeitamente claro que uma
advertência, ou ameaça foi levada ao Palácio.
- Por que isso é claro?
- Recebi um telefonema esta manhã. Era o Ministro do Comércio que me pediu
para fazer o possível a fim de conseguir, na Austrália, embarques imediatos de trigo,
arroz e demais gêneros e, se possível, conseguir também termos adequados de
crédito junto ao meu Governo. Tratava-se de pedido oficial, que me põe em posição
embaraçosa, porquanto já estamos enviando trigo a crédito para a China comunista,
e se recusarmos ao Vietnam do Sul eles poderão acusar-nos de negar víveres a
aliados e nutrir inimigos.
Isso me abalou e ele o percebia, mas prosseguiu com a mesma calma:
- Dei-me ao trabalho de examinar a posição financeira atual do Governo Cung.
Tem realmente créditos em dólares no montante de uns trinta e cinco milhões, e o
sistema bancário francês está pronto a contribuir com soma igual, mais ou menos.
Com o ritmo atual de despesas, portanto, Cung poderia manter seu Governo em
funcionamento durante uns seis meses, mesmo que as sanções fossem aplicadas.
Se impuserem também as sanções militares, começarão com uma retirada simbólica
de pessoal administrativo, o que não afetará a direção das operações militares. A
meu ver, isso apenas servirá para deprimir ainda mais o moral do país, que só Deus
sabe como já está baixo.
Tais afirmações eram incomodamente válidas e pude ver claramente o motivo
pelo qual preferira exprimir opinião pessoal e não oficial. Não deixava de usar a
linguagem cautelosa do ofício, mas podia ser tão franco quanto quisesse.
- Posso saber onde obteve sua informação, Sr. Manson?

- A diplomacia americana é muito pública, Sr. Embaixador, pública até demais


para o bem de todos. Parte de minha informação veio de fontes em Saigon, o
restante de Washington, passando por Camberra. Nós, australianos, achamo-nos
em situação curiosa. Somos uma nação pequena e com poucas defesas, e nosso
futuro se acha intimamente ligado aos acontecimentos no sudeste da Ásia.
. Acabamos de ser levados a apoiar os ingleses na Malásia, o que mostrará ser mais
tarde um erro histórico, segundo creio. Estamos também comprometidos com os
Estados Unidos por obrigações de tratado que pretendemos cumprir pública e
particularmente. Devido a essas obrigações, sou levado a usar de franqueza com o
Sr. e insistir com toda energia para que reexamine a questão das sanções e de suas
relações pessoais com o Presidente Cung.
Vindas de um membro menor da Organização do Tratado do Sudeste da Ásia,
eram palavras bem fortes e havia nelas o maior peso, mas não me deixara tempo
para refazer-me, de modo que me refugiei no formalismo.
- Muito grato pelo que disse, Sr. Manson. Tenha a certeza de que darei ao
assunto a mais séria atenção.
- Há outra coisa, antes que me vá, Sr. Embaixador.
- E qual é ela?
- O monge budista que se refugiou em sua Embaixada. Poderá tornar-se um
motivo de embaraço para o Sr. e seus amigos. Como sabe, ele é o chefe titular de
um órgão recentemente criado, chamado União Nacional para Preservação do
Budismo. Certas pessoas me dão a entender que foi esse o homem que incitou os
suicídios budistas pelo fogo. Corre pela cidade que ele é o guardador do coração do
mártir, desaparecido no Pagode Xa Loi, durante a batida policial. Pode ser verdade,
ou não, mas para os ignorantes isso quer dizer que a relíquia está sob a proteção
dos Estados Unidos... Mais importante, a meu ver, é o fato de que se sabe ter ele
ligações com organizações budistas militantes na Birmânia e Ceilão, e com certos
agitadores recentemente expulsos do Sangha e aprisionados pelos Thais, em
Bangkok. Escrevi aos nossos na Tailândia, pedindo maiores informações, e quando
as receber terei muito prazer em passá-las ao Sr.
- Ficarei muito satisfeito com isso. Aprecio sua franqueza, Sr. Manson, e espero
que possamos encontrar uma solução para nossos problemas mútuos.
- Certamente encontraremos.
Com o bom-humor de sempre, levantou-se e estendeu-me a mão.
- Muito grato pelo tempo que me concedeu, Sr. Embaixador, e boa sorte!
E nesse tom inacabado terminou nossa conversa. Eu tinha o pressentimento
incômodo de que meu colega mais jovem se comportara melhor do que eu, que
dispunha do dobro de sua experiência e tinha dez vezes mais autoridade. Uma regra
básica na diplomacia era que se deviam cultivar os informantes amigos e precisos e,
ao invés disso, eu fora abominavelmente grosseiro com um homem que me prestara
um serviço profissional. Se não pudesse contar com meu autodomínio numa dis-
cussão com um aliado bem intencionado, como poderia garanti-lo nas críticas
negociações futuras?
Mais uma vez a voz grave de Muso Soseki advertia: "Acho um grande risco
aceitar essa nomeação, nessa fase de sua vida!” O estranho era que eu próprio
sabia que estava atravessando um risco. Estava sozinho e, por isso, vulnerável às
expressões de amizade. Achava-me em posição de poder e, portanto, tendia a
desconfiar dos que fossem contra minhas opiniões ou autoridade. Fora encarregado
de fazer uma modificação, mas ao brilho completo da opinião pública podia ser
tentado a efetuá-la como se fosse um mágico, tirando um coelho da cartola. Mas
havia profundidades mais escuras ainda, rachaduras e fissuras no que passava por
ser a alma de Maxwell Gordon Amberley, e não estava ainda pronto para examiná-
las, a menos que, sob a panóplia do tetrarca, ali viesse a descobrir um homem vazio,
nem sequer um oráculo, mas uma cabeça cheia de pedrinhas. Além disso, era fácil
absolver-me do exame de mim mesmo, quando todos os momentos me incitavam à
ação e cada ato me jungia a uma nova cadeia de conseqüências.
Ainda estava trabalhando com os despachos daquela manhã, quando Mel
Adams entrou com notícias perturbadoras. O Presidente Cung decidira comparecer
à Assembléia Nacional naquela mesma tarde, onde faria declarações públicas sobre
a situação militar e a crise budista. a Palácio se desdobrara para notificar todos os
membros do corpo diplomático e jornalistas estrangeiros que uma tradução do
discurso, em francês, seria distribuída pouco antes que o Presidente começasse a
falar.
O intuito dessa medida era claro. Desafiado nas Nações Unidas, ameaçado
publicamente pelos Estados Unidos, Cung pretendia que o ouvissem em tribuna
franca e aberta. Como chefe de Estado soberano, não era mais do que seu direito
falar para seus próprios legisladores, e como líder de nação em guerra, não era mais
que seu dever fazer uma proclamação clara de sua posição ao povo. Como eu era
um diplomata aliado, não tinha base para culpá-lo, e como defensor dos processos
democráticos teria de louvá-la. Na verdade, entretanto, eu mantinha uma espada
sobre sua cabeça e se ele pronunciasse uma única palavra desagradável poderia
abatê-lo com ela.
Mel Adams leu meus pensamentos e perguntou cautelosamente:
- Vai estar presente na Assembléia?
- Tenho de estar, Mel.
- Poderá ser um discurso explosivo.
- Sempre me resta o direito de abandonar o recinto.
- Com todo o respeito devido, acho que devia tornar claro esse perigo para o
Presidente Cung. Do modo como estão as coisas, estão ambos sendo empurrados
para uma colisão frontal e acho que deviam evitar isso, a todo custo.
- Tentarei falar com ele, Mel.
Está registrado que fiz o possível. Telefonei para o Palácio, enquanto Mel Adams
se encontrava em meu gabinete, e disse que queria urgentemente falar com o
Presidente. Com a polidez infalível dos vietnamitas, fui informado de que o mesmo
se achava em conferência e deixara ordens rigorosas para que não o
interrompessem, por motivo algum. Certamente me telefonaria, assim que estivesse
terminada a conferência. Chamei Anne Beldon e ditei uma nota clara e amistosa,
que um funcionário levou pessoalmente ao Palácio, e a assinatura em seu livro de
recibos mostrava que a mesma fora recebida vinte minutos antes do meio-dia.
Deu meio-dia, uma da tarde, depois duas, e eu não recebera ainda qualquer
resposta do Palácio. Às três da tarde, estava sentado em companhia de Mel Adams,
na galeria diplomática da Assembléia Nacional, esperando o testamento do Presi-
dente Phung Van Cung.
Ele parecia muito pequenino e insignificante, ao entrar em cena. Os aplausos
com que foi recebido eram obedientes, mas pouquíssimo afetuosos. Há certos
homens cuja própria presença desperta emoções profundas, como se fossem
recipientes cheios de poder. Muitas vezes, como é claro, são apenas saltimbancos,
atores inatos dotados de um truque de presença ou algum excesso de virilidade que
cria a ilusão de farsa espiritual. Phung Van Cung não estava nesses casos. Os seus
modos eram desinteressados e acadêmicos. Começou a ler seu discurso de modo
inteiramente desprovido de paixão. Havia mesmo um toque de desprezo em sua
oração, como se ele estivesse dizendo: "Conheço-os todos muito bem, e poucos há
entre vocês que mereçam meu respeito. Alguns, eu comprei, outros tirei do nada e
outros já estão coligados para me trair. Não me vou curvar para vocês, nem
apresentar um drama para diverti-los. O que tenho a dizer é isto. Aceitem, ou
rejeitem!...”“
O discurso foi feito em vietnamita, e os timbres altos do idioma o tornavam
áspero e monótono, mas enquanto acompanhava a tradução em francês, página por
página, tive de reconhecer que se tratava de bela peça de dialética política. Ele
começou com um exame rápido, mas preciso, da situação militar:
"Somos uma nação sitiada. Ao norte estão a China e os exércitos de Ho Chi
Minh, que mantêm nossos irmãos na escravidão. Ao oeste encontram-se a
Cambodja e o Laos, que, sob a capa de uma neutralidade falsa, oferecem ajuda e
abrigo a nossos inimigos. Para o leste e sul acha-se o mar, onde, sob a capa da
escuridão, os juncos e barcos de pesca transportam armas para os traidores em
nosso meio..."
"No próprio momento em que falo, está sendo travada uma batalha completa em
Tanam, a trinta quilômetros daqui. Também há luta cerrada em Bentre, no Delta, e
em Danang, perto da fronteira com o Laos. Nossos inimigos, implacáveis e impie-
dosos, operam com contingentes de exércitos dentro de nossas fronteiras, a meia
hora de distância da capital. Estamos lutando contra eles, sim! Mas nem todos o
fazem. Há os que criam facções, desvios e desordens civis, em vantagem do
inimigo".
"Não podemos tolerar essas coisas! Diante de inimigo impiedoso, qualquer
atividade contrária à unidade nacional constitui ato de traição!"
"Estamos lutando pela liberdade, sim! Pela liberdade religiosa, política e
econômica, sim. Tais liberdades acham-se asseguradas na Constituição da
República, de que sou guardião, mas a liberdade não é um estado ilimitado, não é
licença para traição e violência em nossas próprias cidades. Construímos oito mil e
seiscentos povoados fortificados e agrupamos dentro deles quase dez milhões de
pessoas, a fim de protegê-las dos vietcongs. Devemos colocar esses dez milhões
em perigo, porque um punhado de fanáticos turbulentos, que não empunham armas
e não as querem empunhar, exige a liberdade de incitar o povo bom e religioso às
desordens?...”

Até esse ponto, eu não tinha qualquer contestação. Desconfiava de mim próprio
o bastante para perceber os perigos da liberdade mal utilizada e a limitação
necessária da liberdade pessoal em épocas de crise social, e era céptico a ponto de
dividir justamente a culpa entre budistas políticos e católicos e, ainda, os cínicos
políticos que viam lucros a colher na desordem. Nessa altura, sua leitura monótona e
brusca se modificou e surgiu uma nota de amarga ironia.
“... Aqui, neste nosso país, derrama-se sangue todos os dias para impedir os
movimentos agressivos e expansionistas da China comunista. Em Nova York,
entretanto, uma cidade em paz, na Assembléia das Nações Unidas, os nossos
amigos eu alquiles que se chamam nossos amigos! - cometem outro tipo de traição
contra nós. Estão preparados para votar pelo rompimento de nossos direitos
nacionais e da Carta das Nações Unidas, pela nomeação de uma Comissão de
Inquérito para investigar Direitos Humanos. Não temos medo dessa Comissão, mas
infelizmente somos forçados a recear nossos amigos, de modo que nosso
observador nas Nações Unidas foi instruído para fazer convite público à Assembléia
Geral, no sentido de que nomeie uma equipe de observadores para examinar e
apresentar relatório sobre a questão budista no Vietnam do sul. Lembrem-se de que
nós os convidamos, de que não receamos as investigações livres. Nada temos a
esconder, mas parece que os nossos amigos o têm, pois trabalham em segredo e
não na sinceridade do debate público...”.
Eram palavras duras, e uma espiada nas páginas seguintes do texto revelava
que iriam tornar-se mais duras ainda. Os demais diplomatas estavam olhando para
mim, e não para o orador. Mel Adams rabiscou um bilhete, perguntando: "Quer
sair?" Rabisquei a resposta: "Não, vamos ficar até o fim!"
Phung Van Cung continuava, no mesmo tom irônico:
“...Para mim, é estranho e deplorável que nossos amigos estejam fazendo,
pelos nossos inimigos, o que estes não conseguiram. Nós, que somos o derradeiro
bastião contra a expansão comunista no sudeste da Ásia, estamos ameaçados com
a retirada da ajuda militar e econômica... Que tipo de loucura é esta? Que deverão
pensar os próprios americanos, os homens que lutam com nossos soldados no
Delta, os que trabalham com nossa gente nos povoados, ensinando-lhes melhores
métodos agrícolas e os meios de eliminar as doenças que a atormentam há
séculos? Esses americanos não devem ser culpados, e são amigos verdadeiros.
Mas os outros, os que falam com duas vozes, proclamam uma amizade pública e, no
entanto, entram em conspirações secretas contra um governo legítimo?... Se estão
cansados de lutar que se vão! Que nos deixem o dinheiro e as armas, e lutaremos
sozinhos! Começamos nossa revolução sem eles, e estamos preparados para com-
pletá-la sem eles, certos da correção de nossos objetivos e na esperança de vitória
final!"
Quando desceu da tribuna, os aplausos foram tempestuosos, mas não poderia
dizer se eram os amigos, que aclamavam a sua coragem, ou os inimigos, que
celebravam a sua loucura. Mel Adams comentava, em tom desarvorado:
- Jesus! Ele jogou mesmo gasolina no fogo! Vamos, Embaixador.
Saímos, encontrando lá fora o ar quente e pesado, com nuvens escuras
pairando sobre a cidade inquieta.

Capítulo cinco

No cenário militar, fora um dia de desastres.


A batalha em Tacam correra mal e cerca de 300 vietcongs haviam enfrentado
uma formação mista de 400 soldados sul vietnamitas, composta de infantes,
morteiros e metralhadoras. Fora uma luta sangrenta, estendendo-se por mais de dez
quilômetros quadrados de arrozais e pomares. Os vietcongs tinham deixado 35
mortos e uma dúzia de homens bastante feridos para poderem fugir. As tropas
republicanas haviam perdido 48, mortos na luta, e mais uns 60, seriamente feridos,
bem como três metralhadoras, um morteiro e cerca de 80 armas menores, de
fabricação americana. O número de armas capturadas aos vietcongs fora bem
menor, e eram artigos inferiores, vindos da China e da Tcheco - Eslováquia. O
balanço geral revelava notável vitória para os guerrilheiros, de quem se dizia já
estarem agrupando-se mais perto de Saigon.
Próximo à fronteira do Laos, ocorrera tragédia mais espetacular. Um caça-
bombardeiro T-28, com piloto americano e tripulante vietnamita, caíra em território
dos guerrilheiros e uma turma de salvamento composta de 12 homens, em dois
helicópteros dos fuzileiros, partira imediatamente de Danang. Voando a baixa altura
pelo vale de um rio, ambas as aeronaves haviam sido apanhadas pelo fogo das
encostas, e uma caíra no leito do rio, enquanto a outra conseguia passar sobre um
morro e tombar na selva.
Uma segunda turma de salvamento, esta com seis helicópteros tripulados por
fuzileiros americanos e artilheiros vietnamitas, chegara ao lugar e fora também
recebida a bala, perdendo dois feridos e um morto, mas dispersara os guerrilheiros
com foguetes, napalm e metralhadoras. Quando aterrou ao lado dos helicópteros
destroçados, encontrou mortos os doze homens. Tinha transportado os corpos para
Danang e, na manhã seguinte, os mesmos seriam trazidos a Saigon para
sepultamento.
O próprio general Tolliver me trouxe essas notícias. O seu rosto magro e
envelhecido contraía-se de raiva, e praguejava contra toda a situação.
- ... E assim, enquanto o Presidente está na Assembléia gritando que foi traído,
enquanto Washington choraminga por aí com sanções e retiradas, os meus rapazes
estão sendo tirados do ar a bala, e esses pobres vietnamitas sangram como porcos
nos arrozais! A coisa não está boa, Sr. Embaixador! Nada boa! Eu vou contar a
Washington, vou contar aos chefes no Pentágono e vou contar ao Presidente Cung
e a todo mundo! Quando trouxerem os corpos dos meus soldados amanhã, vou-lhes
dar um funeral militar de arrancar os olhos! Todos os correspondentes em Saigon
vão estar presentes, e todos os cinegrafistas, nem que seja preciso trazê-los à força.
De algum modo vou dizer o que esta guerra desgraçada representa para os homens
que têm de lutar nela! Quero que o Sr. esteja presente também, Embaixador. O Sr.
representa nosso Presidente, e preciso de sua presença.
- Estarei lá, general.
- E Phung Van Cung? Há mortos vietnamitas, também!
- Não posso falar por ele. No momento, nem sei se posso falar com ele. . .
Repentinamente, eu descobrira - fria e cinicamente - o modo de tirar proveito
dos mortos e resolver o dilema diplomático criado pelo discurso de Cung, na
Assembléia. Não queria revelar isso a ninguém, para não me ver novamente con-
fundido por opiniões contrárias. Pensava com toda clareza agora e vi um desfecho
rápido e bem possível, para a disputa política. Fui imediatamente a meu gabinete e
liguei diretamente o telefone para o Presidente Cung.
Dessa vez, não houve demora. Atendeu logo, polido e cordial, como homem que
vingara a afronta feita à sua dignidade e podia, em seguida, mostrar-se magnânimo.
Não fiz referência a seu discurso, mas simplesmente resumi os relatórios recebidos
do General Tolliver. Disse-me que acabara de ter notícias idênticas, dadas por seu
pessoal militar, exprimiu pêsames oficiais e pediu que estendesse suas condolências
pessoais aos parentes dos mortos. Estava claro que se sentia profundamente
chocado. Perguntei se me concederia uma entrevista imediatamente, a despeito do
adiantado da hora, e para minha surpresa concordou sem hesitar, sugerindo que
fosse jantar com ele no Palácio. Estaríamos a sós, e ele acolheria a oportunidade de
conhecer-me de modo mais íntimo.
Era mais do que eu esperava e também tive de reconhecer que ele fizera o
convite com notável espontaneidade, e, por mais céptico que eu fosse, não podia
crer que se tratasse de cálculo. A despeito das tragédias do dia, comecei a
reanimar-me. Eu era diplomata bastante antigo para saber que, muitas vezes, o
melhor meio de resolver um problema é criar uma crise que precipite, então, sua
própria solução, assim como as nuvens de tempestade fazem cair chuva para limpar
o ar. Todas as afirmações públicas haviam sido feitas, e os boatos depurados em
ambos os lados. O sangue fora derramado nas montanhas e charcos. Lembrando os
mortos, talvez pudéssemos descobrir a calma e comedimento com que servir os
vivos.
Anne Beldon apareceu para dizer que os jornalistas esperavam um comentário
sobre o discurso de Cung na Assembléia Nacional. Ditei uma nota dizendo que
estava examinando o texto daquele discurso e desejava reservar-me até completar
esse exame.
Havia uma nota em minha mesa, deixada por Harry Yaffa. Estaria fora até as
seis horas, mas queria urgentemente falar comigo. Deixei aviso de que o receberia
em minha casa, entre as onze horas e meia-noite. Era bom não ter de falar com ele
naquele momento, pois já tinha recordações suficientes da morte, e Yaffa começava
a parecer cada vez mais um elegante agente funerário.
Finalmente, apareceu Mel Adams com um resumo do discurso de Cung, a incluir
nas mensagens cifradas para Washington. Disse-lhe que o mandasse como
documento simples, acrescentando apenas a informação de que eu conseguira uma
entrevista imediata com o Presidente Cung. Se houvesse algo urgente a informar, eu
o poria em código e despacharia pelo pessoal noturno das comunicações. De outra
forma, tudo poderia esperar doze horas.
- Boa idéia, Embaixador - disse Adams secamente.- Acho que estamos todos
superlotados de "reações rápidas" e "protestos enérgicos". Precisamos de tempo
para sentar e alisar as pernas. Já faz muito que dirigimos isto como uma briga de
galos!
Eu não tinha qualquer comentário para aquela demonstração de sabedoria, de
modo que fechei o gabinete e fui para casa tomar banho, barbear-me e vestir-me
para o jantar.
Faltava uma hora para o toque de recolher, quando nos dirigimos ao Palácio. As
ruas ainda estavam guardadas por soldados, mas havia mais gente nas calçadas.
Os bares e restaurantes estavam abertos e as pequeninas meretrizes percorriam
novamente a cidade, em carros puxados por homens e nos táxis. Era permitido
beber em companhia de uma moas de bar, mas não segurar-lhe a mão. Dançar em
público constituía crime inominável e as canções de amor estavam proibidas, como
incitamento a crimes contra a moralidade. Os prostíbulos tinham sido fechados, e o
antigo comércio era agora levado a cabo pela iniciativa particular, enquanto os
donos de bordéis se dedicavam a outras atividades.
As vias que davam acesso ao Palácio achavam-se ainda cuidadosamente
guardadas e os canos das armas antiaéreas farejavam o céu noturno. Desta vez,
entretanto, não nos fizeram esperar e os guardas davam passagem sem qualquer
pergunta. Na escadaria do Palácio, o ajudante-de-ordem do Presidente me
aguardava com efusiva cortesia.
Cung me recebeu em sua sala de visitas particular, peça arrumada com
simplicidade, mas elegante, com painéis de teca e mobiliada no estilo sóbrio dos
suecos, com artigos feitos pelos artesãos vietnamitas. Também os quadros eram
bons, havendo ali um excelente Rousseau, um Gauguin das ilhas, um Cristo de
Rouault e grande e magnífico tríptico da Natividade, obra de escultor local.
Cumprimentei-o pelo bom gosto, o que aceitou com sorriso e um gracejo:
- Os franceses são ótimos artistas, Sr. Embaixador. Já como governantes
coloniais não se mostram tão bem sucedidos.
Um servente trouxe bebidas, uísque para mim e suco de frutas para o
Presidente. Falamos sem objetivo por alguns momentos, tornando-se claro que ele,
embora se esforçasse por agradar, era de natureza tímida e relutante nas ocasiões
sociais. Se nosso jantar era para dar frutos, eu precisava tomar a iniciativa. Disse-lhe
que tinha um favor pessoal a pedir.
- O que é, Sr. Embaixador?
- Coisa bem simples. Nós dois tivemos um dia difícil e eu gostaria de desfrutar o
jantar e não falar de nossas funções, senão depois do café.
Sua expressão iluminou-se imediatamente e, pela primeira vez, sua voz deixou
transparecer um calor verdadeiro.
- Também eu gostaria disso. Em nossas funções, é difícil e, às vezes, perigoso
pôr-se à vontade. Além disso, é meu natural ser solitário, e nunca aprendi o truque
de falar com facilidade.
- Ora, Sr. Presidente! Eu jamais diria que lhe falta a eloqüência!
Ele riu e a barreira estava rompida. Começou a falar, hesitante de início e depois
livre e vividamente, sobre seus dias como estudante em Paris, seu exílio nos
Estados Unidos e sua vida como criança, em antiga família de mandarins. Não lhe
faltava o bom-humor, mas este se mostrava sutil e às vezes ferino; era o bom-humor
de homem que via mais malícia do que loucura na comédia humana, e menos
dignidade do que degradação na tragédia da condição humana. Faltava-lhe calor
para ser visionário, mas era arguto observador dos homens e estudante bem
informado sobre suas questões. Quanto às mulheres, afirmava-se deploravelmente
ignorante, e compreendi que tinha medo delas. Demonstrava a desaprovação árida
do celibatário quanto ao excesso sexual, e era fácil ver que essa atitude não lhe
trazia a simpatia de um povo asiático, perenalmente inclinado às relações de sexo,
para quem a potência do príncipe constituía motivo de orgulho cívico.
A refeição servida foi boa, os vinhos excelentes, mas notei que ele comia
delicadamente e não bebia coisa alguma. O que mais me impressionou, no entanto,
foi o fato de que se persignara de modo inteiramente calmo e rezara antes de comer.
A inclinação religiosa de seu caráter apresentava grande interesse para mim, e
tentei fazê-lo falar mediante referência às minhas próprias experiências na trilha do
Zen. Interrogou-me com profundidade e revelou amplo e preciso conhecimento dos
fenômenos místicos, tanto nas religiões orientais quanto nas ocidentais.
Acrescentou, de modo um tanto lastimoso, a meu ver, que jamais se sentira levado a
buscar tais experiências e, em seguida, disse algo que me interessou
profundamente.
- ... Nisto, se acha envolvido o temperamento, Sr. Embaixador, e o grau de
insatisfação sentida pelo indivíduo por si próprio, ou pela estrutura social a que
pertence. Os hindus, por exemplo, apresentam um temperamento mais febril do que
os chineses. Estão submetidos ao sistema rígido e arbitrário de castas, enquanto a
sociedade chinesa depende da continuidade natural da família. Por isso, vemos na
índia o desenvolvimento da religião mística e metafísica, culminando no refinamento
extremo do budismo original. O ponto mais alto na China foi a pureza pragmática da
ética de Confúcio. No Japão, o sistema social é mais rígido e complexo, mais
intensas as pressões sobre o indivíduo, de modo que encontramos novamente um
refinamento extremo do sentimento, tanto artístico quanto religioso. Nós,
vietnamitas, somos muito mais como os chineses, de modo que conosco o budismo
puro degenerou para uma mistura de religião popular e ritual Mahayana, enquanto o
nosso catolicismo se inclina para uma formalidade demasiado latina. Eu próprio
tenho menos simpatia do que devia pelas simplicidades intuitivas do Evangelho. Sou
um fariseu e jansenista por minha própria natureza, e mesmo a disciplina da razão e
experiência não me modificaram bastante... Sou chamado o Grande Inquisidor,
como sabe, mas para isso é preciso um traço de crueldade, e eu não sou cruel.
- Acha difícil ser tolerante, Sr. Presidente?
- Não... A rigor, não. Como católico em minha vida particular, estou muito bem
preparado para deixar que cada homem se desgrace e condene como quiser, mas
na vida pública, principalmente na vida pública asiática, não existe respeito a homem
algum, a não ser o forte.
- Então, certamente, o forte deve tentar fazer-se amado, também?
Ele meditou sobre a pergunta, e depois respondeu com hesitação:
- Esse é um problema pessoal para mim... Sempre o percebi... Eu próprio não
gosto de ser tocado, e a idéia de acariciar crianças e abraçar massas e velhas, nas
aldeias, me é estranha... Eu o devia fazer, sei disso, mas não tenho talento para a
coisa, não me daria bem se o tentasse.
Fosse lá o que fosse, portanto, não era um fanático, e eu sentia respeito pela
sinceridade com que se revelara. Não se tratava também, de um tolo, embora o seu
respeito gaulês pela razão o pudesse trair e levar, como traíra e levara os próprios
gauleses, a algumas tolices monumentais.
Ao terminar a refeição, levou-me para um terraço de onde se via um jardim
fechado entre muros altos, encimados por arame farpado e tendo a cada canto a
guarita de vigia, com guarda armado, escura e sinistra contra o. céu. O ar estava
quente, parado e impregnado do perfume de jasmim. Trouxeram café e brandy para
mim. Cung acendeu um charuto, primeira coisa supérflua que o via usar. Recostou-
se na cadeira c me observou entre as volutas de fumaça. Os olhos estavam velados,
o rosto readquirira a máscara do príncipe estudioso, e na voz surgiam os tons
formais e irônicos do mandarim:
- Terminaram as nossas pequenas férias, Sr. Embaixador. Voltamos a tratar de
negócios. Como estamos agora?
- Em perigo, ambos!
- E então?
- Então, Sr. Presidente, vou-lhe dizer a verdade como a vejo. Como Embaixador
dos Estados Unidos, deverei entregar-lhe amanhã uma nota formal de protesto
contra as acusações injustas e infundadas feitas contra meu país na Assembléia
Nacional. Hoje à noite, em particular, eu lhe digo que não sou a favor de sanções,
embora as venha impor se for instruído ou obrigado a isso. Digo-lhe também que
não estou a favor desse movimento nas Nações Unidas, e acho que fez bem em
reagir, convidando uma investigação aberta... Dito isto, devo-lhe dizer também que o
Sr. se adiantou demais esta tarde, disse coisas que serão muito difíceis de retratar.
É possível que tenha prejudicado a tal ponto suas relações conosco, que jamais as
possamos emendar. Eu quero consertá-las, acredite! Estou pronto a cooperar com o
Sr. para esse fim. Mas é preciso que me ajude.
- E como propõe que o ajude, Sr. Embaixador?
- Acho que concordará em que isso requer um gesto, comum e público, que
salve o prestígio de seu Governo e do meu.
- Os gestos são coisas perigosas, Sr. Embaixador. Um gesto é um símbolo, e os
símbolos representam coisas diferentes para pessoas e povos diferentes. Na
América, o beijo é uma saudação normal; no Japão, país que o Sr. conhece bem, é
obscenidade pública!
- Há certos gestos comuns a todos. O respeito pelos mortos, por exemplo.
- Concordo. E que gesto me propõe?
- Amanhã, os corpos de nossos fuzileiros e dos seus companheiros vietnamitas
serão trazidos de Danang para Saigon. Serão recebidos com todas as honras
militares no aeroporto e depois disso os ofícios funerários terão lugar, de acordo com
os ritos da religião, de cada um. Gostaria que estivesse comigo no aeroporto e nos
ofícios religiosos. Assim também poderemos sepultar publicamente as nossas
divergências.
Brindou-me com sorriso leve e assentiu com aprovação.
- O Sr. é um bom diplomata, Sr. Embaixador, e lhe tenho grande respeito.
- Concorda, então?
- Não disse isso. Acho que precisamos examinar com muito cuidado o
significado de tal ato público e suas possíveis conseqüências. Em primeiro lugar,
essa cerimônia será preparada e conduzida pelo comando militar americano, não?
- É verdade.
- Mas esta guerra é nossa, não é verdade? Os soldados americanos se acham
aqui como assessores, e não como combatentes.
- Morrem também, seja lá qual for o nome que tenham.
- Mas não devíamos nós promover as cerimônias militares, ao invés dos
americanos?
- Se está disposto a isso, Sr. Presidente, acho que posso dizer que as
aceitaremos.
- Mas suponhamos que eu as promovesse. Que aconteceria então?
- Seria interpretado como um gesto magnânimo e afirmação de nossa amizade
continuada.
- Na América, talvez, onde o povo é sentimental e dramático. Mas aqui, sabe o
que aconteceria?
- O que, Sr. Presidente?
- Nas aldeias, nos mercados da cidade, eles aprontariam o ábaco e fariam uma
contagem, batendo com as contas de madeira e estalando as línguas, também!
Diriam: "Em Danang, dez americanos e dois vietnamitas. morreram. Por isso, o
Presidente faz uma grande cerimônia e chora no funeral. Em Tanan, quarenta e oito
vietnamitas foram mortos e ele nem sequer acendeu um bastão de incenso para os
mortos... Já viram? O Presidente é um cristão, uma garra de caranguejo que nos
mantém submetidos aos estrangeiros".
- Acredita realmente que isso acontecesse?
- Se acredito? Não! Tenho certeza. Alguns dos meus generais fariam acontecer
assim e os mantos amarelos murmurariam isso de porta em porta, ao pedirem as
ofertas diárias de arroz. Os vietcongs o fariam imprimir nos panfletos espalhados à
noite pelos povoados.
- Mas o Sr. poderia dar-lhes uma resposta!
- Como?
- Completando o gesto, vindo comigo percorrer o país. Voemos em helicóptero
de um povoado para outro, mostre-se ao povo, deixe que ouçam sua voz e sintam
sua presença. Com isso, o Sr. abafaria os murmúrios e envergonharia os conspi-
radores!
Por alguns instantes, pensei tê-lo convencido. Manteve-se sentado, de olhos
cobertos e cabeça enfiada no peito, olhando a ponta acesa do charuto. Depois,
ergueu lentamente os olhos e me encarou. Sua voz era gentil e parecia manifestar
piedade.
- O Sr. ainda não compreendeu! A garra do caranguejo! Sabe o que significa
isso em nosso país, Sr. Embaixador? E o símbolo do explorador estrangeiro e do
fantoche que serve seus interesses. A lembrança do domínio colonial está cravada
como um espinho na carne de minha gente. Não posso desfilar em sua companhia,
a bordo de um helicóptero americano. Se o helicóptero fosse meu, e o Sr. meu
convidado... Percebe a diferença? Seja qual for a ajuda que aceite, devo mostrar-me
sempre independente, ainda que a vocês pareça teimoso e surdo à opinião
estrangeira. Não há outro modo de manter a esperança de liberdade, paz e
independência nesta nação!
- Então, pelo amor de Deus, Sr. Presidente, saia com seus próprios auxiliares!
Mostre-se nos povoados, proclame-se o líder! Mas, pelo menos, anuncie-nos como
seus amigos, e não como inimigos! O Sr. não pode continuar trancado como um
eremita que abusa de quem lhe traz pão, enquanto os adversários zombam dele!
- Não posso deixar este lugar, Sr. Embaixador, e o Sr. sabe disso!
- Em nome de Deus, por que não pode?
- Porque é a sede do governo, e se o deixar, poderá cair da noite para o dia em
mãos de traidores e conspiradores.
Com a mão pequena, indicou as guaritas de sentinelas e suas formas escuras.
- Isso não está aí para enfeitar o lugar, sabe? Houve diversas tentativas contra
minha vida e muitos esforços para me derrubar. Enquanto nos sentamos aqui,
homens em altas posições, que me juraram fidelidade, empenham-se em
conspiração. O Sr. devia saber disso, porque as tramas estão sendo feitas em sua
própria Embaixada.
- Não tem direito de dizer isso, Sr. Presidente.
- Por que não? Já o declarei publicamente.
Apontou o charuto em direção ao meu peito, dizendo:
- Pois muito bem! Vou fazer um negócio com o Sr.! Comparecerei ao funeral
amanhã, em sua companhia. Percorrerei o país com o Sr. e anunciarei que
liquidamos nossas divergências. Mandarei soltar os agitadores budistas e
estudantes. Mas com uma condição!
- Qual é ela?
- A de que o Sr. Harry Yaffa deixe o país, em quarenta e oito horas.
- É uma condição que não posso aceitar.
- Por quê?
- Porque constituiria o reconhecimento público de que os Estados Unidos estão
conspirando contra seu Governo. Se o Sr. não tivesse feito essa acusação na
Assembléia Nacional hoje, poderia ser arranjada a transferência de Yaffa, mas agora
o Sr. tomou isso impossível. Sinto muito, muitíssimo.
- Também sinto pelo Sr.
- Por que sente por mim?
- Porque, por mais que goste do Sr., por mais que respeite sua experiência, vejo
que é homem irresoluto. Acho também que é muito infeliz. O Sr. conhece a verdade,
mas não admite suas conseqüências. Está certo que não as admita para mim, pois
isso é questão de tato diplomático. Esta noite tentei revelar-me ao Sr. tão
sinceramente quanto possível, mostrando-lhe meus defeitos e minha força. Acho
que o Sr. os compreende, também, mas não está preparado para aceitá-los, quanto
mais arriscar-se com eles. Eu o entendo muito bem, Sr. Amberley: o Sr. é um
homem inteligente e culto, atraído para mim por ver em minha pessoa alguém
preocupado com os valores espirituais, que comete erros mas tem a sinceridade
suficiente de reconhecê-los... No entanto, a despeito disso, o Sr. não pretende me
dar qualquer indicação de confiança pessoal. Suspeita que possa estar certo, mas
quer absolver-se caso eu esteja errado. O Sr. é como um jogador de roleta que
deseja apostar em todos os números ao mesmo tempo. Exige uma perfeição
impossível, quer solução simples para um problema antigo e complexo. Não se pode
ter essas coisas no lado de cá da eternidade. Quer um fantoche que dance pela sua
música? Com o tempo poderá conseguir um, mas verificará que, como o pequeno
Pinóquio, ele mentirá e enganará, e seu nariz se tornará mais comprido a cada dia.
O Sr. me chama de monge e eremita, e talvez eu seja isso, mas tenho uma
consciência, ainda que não seja a sua, ainda que não se mostre tão flexível quanto à
do Sr. Harry Yaffa...
- Posso dizer alguma coisa, Sr. Presidente?
- O Sr. é meu convidado e tem o privilégio de falar livremente.
- Então quero dizer-lhe algo sobre Harry Yaffa. Também não gosto dele, nem de
seu ofício, mas é ofício que todos usamos, porque precisamos usar. Em termos
pessoais, acho Yaffa desagradável e antipático, mas seja lá o que for que pensemos
dele, o Sr. ou eu, ele trabalhou bem por este país. O Sr. não teria o programa dos
povoados tão adiantado, se não fosse ele. Não teria os Grupos de Operações
Especiais junto aos Nungs, ou as patrulhas dos juncos na costa oriental. Sem seus
agentes na Cambodja e Laos, o Sr. não teria qualquer espécie de controle sobre o
contrabando de armas pelo rio Mekong... Outra coisa, Sr. Presidente: se há tramas
contra o Sr., e não duvido que existam, é sua própria gente quem as empreende. Se
o Sr. vier a ser deposto, quem governará o Palácio Gia Long? Não será Harry Yaffa,
certamente! O Sr. diz que exijo uma perfeição impossível em nossas relações. Não
está exigindo outra, igualmente impossível? Está sendo armado, alimentado e
equipado pelos Estados Unidos, país onde os políticos são os mais sensíveis do
mundo à opinião pública, e no entanto nos provoca e insulta, acusa-nos
publicamente de traição. Logo em seguida, pede mais dinheiro e armas aos nossos
contribuintes! O Sr. é homem da razão, Sr. Presidente! Mas isto é loucura! Nem o
Congresso pode controlar cento e oitenta milhões de pessoas, mas o Sr., que tanto
precisa delas, provoca-as como o fez hoje!
- Devia fazer zumbaias para elas, Sr. Embaixador? Devia-me apresentar como
um mendigo, chapéu na mão, por que estou mantendo a primeira linha de defesa da
América na Ásia? Tenho setecentos milhões de chineses na porta dos fundos!
Também os provoco, mas ainda estou de pé, lutando! Não esqueça a história deste
caso, Sr. Embaixador. Foram os americanos que proferiram a primeira reprovação
pública sobre uma situação que não conheciam direito. Foram os americanos que
fizeram a primeira ameaça de sanções. E foi esse o grande erro que cometeram.
Como podem ameaçar alguém que entrou em acordo com a morte?
- Devo então compreender, Sr. Presidente, que não vai estar presente no
aeroporto amanhã?
- Não estarei lá; não posso ir. Mas serei representado pelo meu Ministro do
Exterior e membros do Estado-Maior.
- Também não fará uma viagem pelas zonas de luta, em minha companhia?
- Enquanto Yaffa estiver no país, não!
- Mandará libertar os monges budistas e estudantes que se acham presos?
- Quando nossas investigações estiverem terminadas, cada caso será julgado
novamente.
- Com a garantia de minha boa-vontade pessoal e desejo de falar em seu favor,
com Washington e com a imprensa mundial, o Sr. examinará ou oferecerá qualquer
gesto que possa consertar esses danos?
- Tem alguma sugestão a fazer?
- Acho que deve partir do Sr., Presidente.
- Neste momento, não posso oferecer coisa alguma. - Então voltamos ao
impasse?
- Quem o diz é o Sr., não eu.
- Então permita que me retire, Sr. Presidente. Muito obrigado pelo jantar, que foi
agradável.
- Boa noite, Sr. Embaixador.
- Boa noite, Sr. Presidente.
Ao deixar o Palácio e regressar à noite fechada e nublada, vi-me tomado pela ironia
monstruosa da situação: dois homens á quem o desastre dera experiência
sentavam-se em jantar preparado para acertar suas divergências e, hora e meia
depois, terminavam numa dialética fútil que poderia custar um milhão de vidas e
modificar a história nas penínsulas asiáticas.
Estava cheio de ira amarga e árida, e quanto mais pensava sobre o assunto,
tanto mais o juízo feito por Cung a meu respeito parecia um insulto calculado. Eu o
poderia aceitar de Muso Soseki, pois este era meu mestre na trilha do esclareci-
mento, mas partido desse homem, considerava-o presunção intolerável que eu não
aceitaria. Com esses pensamentos sombrios, cheguei à Embaixada e ditei a
mensagem crucial para Festhammer:

JANTEI ESTA NOITE COM PRESIDENTE CUNG E APRESENTEI ENÉRGICO


PROTESTO VERBAL POR DISCURSO NA ASSEMBLÉIA. SUGERI COMO
PRIMEIRO GESTO DE RECONCILIAÇÃO QUE ESTIVESSE PRESENTE AMANHÃ
EM FUNERAL DE TRIPULANTE HELICÓPTERO AMERICANO E ME FIZESSE
COMPANHIA EM VISITA FRENTES DE BATALHA. OFERECI TODA MINHA COLA-
BORAÇÃO A FIM RESTABELECER BOAS RELAÇÕES E SALVAR PRESTíGIO
DÊLE JUNTO IMPRENSA. RECUSOU CEDER NESTE OU QUALQUER OUTRO
PONTO. POR ISSO, PROPONHO USAR MEUS PODÊRES DISCRICIONÁRIOS E
CORTAR TODOS OS PAGAMENTOS AJUDA A PARTIR DE 1200 HORAS
QUARTA-FEIRA DIA NOVE. ESTOU INSTRUINDO TOLLIVER PREPARAÇÃO
PRIMEIRA RETIRADA PESSOAL MILITAR. SEGUE RELATÓRIO COMPLETO.
AMBERLEY.

Chamei o General Tolliver e lhe dei as notícias. Ele resmungou com mal-estar e me
transmitiu outra informação para completar o dia - membros da pequena Missão
Militar Australiana, nas montanhas do norte, haviam identificado dois novos
batalhões de vietcongs e um terceiro fora positivamente identificado pelo
interrogatório dos prisioneiros depois da luta em Tanan. O Tio Ho e seu orientador
militar, o general Giap, estavam aproveitando ao máximo as desordens no sul e logo
deveria haver ação dos vietcongs em grande escala, em todos os setores. Disse a
Tolliver que desejava fazer uma visita imediata às zonas de combate, o que o tornou
ainda mais inquieto, gastando dez minutos para me descrever os perigos dessa me-
dida. Ouvi o que tinha a dizer, e lhe disse que precisava fazer essa visita, quando
mais não fosse para deixar Cung digerir a refeição e pensar se ia mudar de opinião.
Depois disso, voltei para casa, onde encontrei Anne Beldon dando a Harry Yaffa
uma refeição tardia de café e roscas. Senti um ciúme estranho por essa cena de
familiaridade doméstica e fui bastante fraco para pedir a Anne que ficasse conosco e
tomasse notas de nossa conversa.
Yaffa também tinha a sua batelada de problemas. Os conspiradores estavam
apavorados com o tom de desafio do discurso de Cung na Assembléia Nacional,
interpretando-o como sinal de que vencera sua batalha diplomática com os Estados
Unidos e sentia-se forte bastante para agir sozinho. Também tinha havido
divulgação de segredos e traição em suas próprias fileiras. Diversos funcionários de
alta categoria achavam-se sob vigilância da polícia de segurança, dois generais
tinham sido transferidos do comando de tropas para postos administrativos em
Saigon, onde eram mantidos inativos e sem contato com suas próprias unidades.
Para impedir que o movimento de oposição escapasse a um colapso total, era
preciso dar aos conspiradores um sinal claro e definido de nosso apoio.
Por estranho que parecesse, a confiança de Yaffa parecera ter-se evaporado.
Mostrava-se irritado e inquieto, como se toda sua aritmética se tivesse tornado
incompreensível. Pareceu mais satisfeito quando lhe disse que as sanções seriam
aplicadas dentro de 24 horas e quando contei, também, que Cung pedira sua
transferência e retirada do país e eu me recusara, chegou a parecer bem-humorado,
dizendo então que minha aprovação pessoal era de grande importância para ele.
Em minha opinião particular, ele não valia um punhado de feijões, mas eu estava
preparado para aceitar a ficção enquanto servisse a meus propósitos.
Depois disso, porque ainda estava raivoso comigo próprio e com Cung, tomei
uma segunda decisão impulsiva.
- Vou-lhe dizer uma coisa agora, Sr. Yaffa, e a Srta. Beldon o vai registrar. Cada
um de nós terá uma cópia, e mandarei outra a Washington. Se eu não conseguir me
mostrar suficientemente claro, gostaria que me dissesse, e então reverei o texto para
esclarecer a questão, mas como estamos falando oficialmente, quero que se
mantenha rigorosamente dentro dos limites do caso. Se sair deles, eu o
responsabilizarei pessoalmente. Está bem claro?
- Muito claro, Sr. Embaixador.
- Pois bem. Anne, começamos com o seguinte: "Neste momento, é claro que o
Presidente Cung não tem intenção de modificar sua atitude para com os budistas.
Também é claro que ele não retirará qualquer das afirmações tendenciosas e
prejudiciais feitas na Assembléia Nacional. Resta ver se modificará essas atitudes
depois que as sanções forem impostas. Se não as modificar, poderá ser preciso
examinar a possibilidade de transferir nosso apoio para outro governo, mais capaz
de unir o país e continuar a guerra..." Confere, Sr. Yaffa?
- Confere - respondeu ele.
- "Como Embaixador dos Estados Unidos, estou, por isso, preparado a autorizar
o estabelecimento de contatos e consultas com as pessoas que se mostrem
desejosas e capazes de criar outro governo, como e quando parecer necessário. No
entanto, não estou preparado para conceder aprovação formal ou tácita a qualquer
movimento no sentido de derrubar o regime atual, até possuir as mais completas
informações sobre os personagens envolvidos nisso e os métodos pelos quais
pretendam agir, e até receber aprovação de Washington..."
- Confere também - disse Harry Yaffa.
- "Estou encarregando o Sr. Harry Yaffa de tornar bem claro junto a seus
contatos que não podemos, em circunstância alguma, conceder nossa aprovação a
um assassinato político. Estou também encarregando o Sr. Yaffa de exigir garantias
de que, no caso de um golpe ao qual dermos aprovação, ainda que somente tácita,
as pessoas do Presidente Cung e seus ministros serão protegidas... O Sr. Yaffa já
me afirmou que, mesmo dadas tais garantias, ele não pode pessoalmente assegurar
seu cumprimento. Trata-se de objeção razoável, mas que não o isenta de
empreender seus melhores esforços no sentido de executar as nossas instruções na
questão...” A coisa está bastante justa assim, Sr. Yaffa?
- Eu não a chamaria de justa, Sr. Embaixador, mas aceito.
- “Finalmente, nossa aprovação a qualquer movimento para depor o governo
Cung será dada por uma palavra em código, combinada previamente entre o Sr.
Yaffa e eu”. Até que tal palavra seja dada, os Estados Unidos não poderão ser
tomados “como comprometidos, de modo algum, a apoiar um novo regime...” É
documento secreto, Anne, e sua distribuição se limita a mim, o Sr. Yaffa e
Washington.
- Muito obrigado, Sr. Embaixador - disse Harry Yaffa com aprovação suave. - É
um passo na direção certa, e pelo menos não estou mais trabalhando sozinho.
Quando estiver pronto a falar com os generais, avise-me e prepararei os encontros.
- Vou deixar Saigon por alguns dias, a fim de ver pessoalmente a situação
militar. Se houver alguém que o Sr. me queira apresentar nessas viagens, é favor
informar.
- Poderá ver um deles, amanhã, se quiser, Embaixador. É o general Tran Hund
Dao e estará representando o Exército no funeral. O General Tolliver provavelmente
o convidará para chegar ao quartel-general, a fim de tomar alguma coisa depois da
cerimônia. No momento, ele é Sub-Chefe do Estado-Maior, o mesmo que coisa
nenhuma, do modo pelo qual Cung dirige as coisas.
- Pode-se ter confiança nele, Sr. Yaffa?
- Digamos o seguinte, Sr. Embaixador: a posição dele no Governo é bastante
insegura. Quer uma modificação e acha que somos quem pode melhor ajudá-la.
Depois disso, é tocar de ouvido.
Depois de Yaffa ter partido, ativo e confiante de novo, Anne Beldon me ofereceu
um café fresco, mas preferi uísque e comecei a ditar o resumo do diálogo com Cung.
Uma grande prática no Serviço Diplomático me dera boa memória verbal e um
ouvido sensível para os ritmos e nuances da palavra falada, de modo que reconstruí
a conversa para o ditado taquigráfico e foi quando me vi forçado a conclusão muito
diferente daquela que me levara a redigir o telegrama para Festhammer e fazer o
perigoso acordo com Harry Yaffa.
Podia justificar ambos, certamente, e ninguém se atreveria a pôr meu juízo em
exame. Eu era o chefe no lugar, homem de experiência e integridade, negociador
que nunca perdia a paciência, coisa que prejudicaria sua capacidade de julgamento.
Mas naquela última hora de um dia desastroso, eu sabia que enganara a mim
próprio. Fizera uma interpretação que salvava minha vaidade, mas me condenava
como trapaceiro. Cung não me insultara - eu era realmente o homem irresoluto, que
não apostaria na verdade que via, mas tentava embaraçá-la com uma casuística
oportunista.
Phung Van Cung fora muito franco comigo, mostrara seus defeitos pessoais e
dilemas públicos. Pedira que confiasse nele, mas eu insistira numa retratação
imediata e pública, um auto-de-fé que destruiria por completo seu prestígio como
chefe de estado. Ele não me pedira que justificasse as suas imperfeições, mas
apenas que as suportasse pelo receio a outras maiores. E eu? Recusara-me a ser
paciente, gritara pedindo ação e modificação rápida. Tentara dar o meu próprio
golpe. Vejam! Sou um forasteiro na cidade, mas vejam o que tiro do ar! Um coelho
branco, dois pombos vivos, uma estola escarlate, um cacho de uvas, a cabeça da
Virgem Maria e um milagre - um ditador reformado, mais sábio que o Espírito Santo!
Antes de terminar o ditado as palavras pareciam ter o gosto de pedra-ume na
boca, e bebi mais dois copos de uísque para ver se melhorava. Mas a cabeça estava
como se a tivesse enchido de algodão, as mãos tremiam. Eu estava tonto devido ao
álcool e ao impacto de outro pensamento. Exigira que Cung se retratasse das
afirmações feitas na Assembléia, mas como poderia eu me retratar das falsidades
sutis que enviara a Washington?
Finalmente, Anne Beldon fechou o caderno de notas e disse em voz baixa:
- Devia ir deitar-se, Sr. Embaixador. O dia foi tremendo e amanhã será a mesma
coisa.
- Para que me deitar e ter pesadelos?
- Se quiser, trago uma pílula para dormir.
- Nunca uso isso. Tomei uma, certa vez, e descobri que são uma tentação
mortal. Gostaria de sair passeando.
Ela riu com indulgência e sacudiu a cabeça.
- Não há .lugar onde possa ir. A cidade está em toque de recolher e o Sr. levaria
um tiro logo depois de sair.
- Há o jardim.
- Faria tocar o sistema de alarme.
- Eis um pensamento interessante... "Um jardim é coisa detestável, Deus o
sabe!" Ainda mais quando está cheio de arames e células fotoelétricas... Será que
existe algum cuco no jardim?
- Um cuco?
- É um enigma, Anne. Esta noite descobri a resposta... Desculpe fazê-la ficar até
tão tarde. Vamos encerrar o dia.
Nos primeiros degraus da escada, tropecei, e ela estendeu a mão para me
ajudar. Tive todo o cuidado de não a tocar, pois no dia seguinte precisava ser
Embaixador outra vez.
Em todos os sentidos, o funeral dos tripulantes dos helicópteros foi um
interessante número teatral, em que fui ator e só tive elogios para o General Tolliver,
que foi o diretor de cena. Precisamente às 10h30m, eu deixaria a Embaixada, em
companhia de meus ajudantes e adido militar, chegaria ao aeroporto às 10h50m e
passaria em revista a guarda perfilada na pista. Às 11 horas, o transporte aéreo
pousaria e os corpos seriam desembarcados. Um capelão militar diria as palavras de
despedida e eu faria um pequeno discurso em nome do Presidente dos Estados
Unidos, saindo depois com o General Tolliver no cortejo até o cemitério.
Como acontece tantas vezes no teatro, no entanto, o drama dos bastidores foi
mais importante do que o apresentado no palco. Às 9h30m, Mel Adams trouxe a
notícia de que o Ministro do Exterior vietnamita não estaria presente à cerimônia do
aeroporto. Adoecera de repente e o médico proibira que saísse do leito. Enviava
sentidas condolências e como não havia qualquer referência a um substituto seu
que devesse estar presente, tomava-se claro que todos os funcionários de seu
Ministério estavam sofrendo a mesma dispepsia diplomática. Às 9h45m, Tolliver
telefonou para informar que o comandante local em Danang se apropriara dos
corpos dos vietnamitas e recebera ordens para sepultá-los em Danang com a menor
cerimônia possível. E mais: a guarda vietnamita de honra para a recepção no
aeroporto fora retirada e os únicos representantes oficiais da República seriam o
Sub-Chefe do Estado Maior e seu ajudante-de-ordens.
Tudo se mostrava bastante oriental e muitíssimo eficiente. De um só golpe,
ficávamos isolados, do povo, da guerra e de nossos camaradas de armas. Nossa
posição se definia mais claramente do que mediante qualquer tratado. Éramos os
banqueiros, fornecedores de equipamento, assessores militares. Nossas perdas
humanas eram deploráveis, mas incidentes de menor monta na luta de vida ou
morte da nação. Se quiséssemos criar um drama de nossos mortos, seria por conta
própria. Tolliver mostrava-se furioso, como tinha direito a estar e, quanto a mim,
acariciava uma satisfação secreta. Já então, havia justificativa para minha ação
política, embora não estivesse verdadeiramente absolvida minha consciência
inquieta. No entanto, quando estava de pé na pista de passageiros e observava a
aeronave, grande e já bem usada, para finalmente, depois de aterrar, senti-me
emocionado até as lágrimas pela simplicidade brutal do momento.
Havia dez caixões ao todo, esquifes compridos feitos de madeira lavrada pelos
carpinteiros de aldeia. Estavam nus, sem verniz ou ornamentos, e na tampa cada
qual trazia um nome e número, gravados na madeira com ferro em brasa. Foram
tirados do aeroplano nos ombros de homens jovens, sérios e sem barbear, como
heróis de alguma lenda antiga e violenta.
Os soldados à espera para recebê-los estavam arrumados e limpos, com armas
reluzindo no sol matinal, mas os jovens usavam uniformes de combate, bandoleiras
de couro e lona, pistolas a tiracolo e punhais em bainha à altura do peito. As faces
estavam magras e marcadas pelo sol e pela febre das selvas, os olhos indormidos
eram sombrios. Andavam lenta e desafiadoramente, em desprezo por alquiles que
tinham vindo render tardias homenagens a seus camaradas mortos.
Entre as guardas compactas estavam dez canhões, cada qual tendo a seu lado
um sargento. Os jovens depuseram os ataúdes sobre os amues das peças e os
sargentos estenderam sobre todos a bandeira dos Estados Unidos. Os jovens se
agruparam quatro a quatro em volta a cada caixão, como se afirmassem seu direito
de posse aos seus próprios mortos. Os cinegrafistas acionaram suas máquinas e
houve uma corrida indecente de fotógrafos, enquanto o capelão se adiantava para
ler as palavras de despedida. Não ouvi as palavras que lia, porque tentava
concatenar as minhas próprias e lutava, ao mesmo tempo, com um pungente
sentimento de culpa pela minha hipocrisia.
Aquêles jovens tinham morrido violentamente e seriam enterrados em terra
estrangeira, ao som de canhonaços e clarins. Jovens! Não éramos eu, Tolliver, Cung
ou Harry Yaffa, mas jovens, herdeiros do passado, fabricantes do futuro, que pode-
riam ter gerado filhos, plantado jardins, aberto novas portas para o conhecimento,
visto paisagens em montanhas para as quais estávamos cegos. Agora, eles é que
estavam cegos e suas bocas se encheriam de lama. Apenas os vermes procriariam
de suas virilhas, e flores tropicais luxuriantes se nutririam de seus corações...
Estávamos oferecendo-lhes funeral, ao qual, porém, oportunistas políticos, como eu,
haviam transformado em zombaria.
Tenho grande prática de cerimônias e preparara uma alocução segura e simples
sobre o mérito daqueles que tinham morrido por uma causa nobre. De repente,
percebi que não a poderia pronunciar. As palavras me sufocariam, se tentasse fazê-
lo. O capelão terminou a oração e me chamou ao microfone. Ouvi uma voz que não
era a minha própria pronunciando um obituário diferente, enquanto as lâmpadas dos
fotógrafos estouravam e os repórteres escreviam apressadamente o que dizia.
- ... Estou envergonhado hoje, envergonhado por termos de sepultar nossos
mortos sozinhos, como inimigos, num país para o qual fomos convidados como
amigos e aliados. Envergonho-me de que o dinheiro gasto, os aviões e armas que
trouxemos, pudessem parecer mais valiosos do que os homens que lutaram e
morreram tão longe de sua pátria... Para mim, é triste e terrível que, em meio a esta
guerra pela sobrevivência, existam perturbações civis e disputas religiosas e
brutalidade nas prisões policiais e campos de detenção. Essas coisas são um insulto
aos nossos mortos e aos nossos camaradas mortos, no exército do Vietnam do Sul,
a quem não nos permitem render homenagens aqui, hoje... Estão sem voz, agora, e
contam conosco para que falemos por eles. No entanto, gastamo-nos em debates
públicos e disputas particulares e acusações destinadas a formar manchetes na
imprensa diária. Envergonho-me de que eu, mandado por nosso Presidente para
trazer o acordo e concórdia, me veja envolvido nessas contendas infrutíferas.
Empenho-me agora, na presença dos mortos, a tentar, tanto quanto puder, acabar
com essa vergonha. Rogo aos que governam este país que se reúnam a mim nesse
intuito... Que Deus nos ajude!
Enquanto me afastava do microfone, o General Tolliver sussurrava:
- Foi formidável, Sr. Embaixador! Graças a Cristo alguém teve coragem de dizer
a verdade a esses patifes!
Não percebera o que eu queria dizer, ou melhor, por um truque instintivo
destinado a enganar a mim próprio, eu me recusara a explicá-lo. Cung era ainda o
vilão, e eu o cavaleiro puro, livre de medo ou mácula. Era tarde demais para exprimir
o que sabia em meu íntimo: a despeito de todas as minhas nobres palavras, com
toda a minha virtude ofendida, eu era um dos patifes.

Capítulo seis

Depois do funeral, O General Tolliver me levou para o seu quartel-general a fim de


almoçar com seus oficiais. Fiquei muito satisfeito pela distração, e também
reconhecido por esse intervalo breve, em que entrava no mundo mais simples do mi-
litar profissional. Quando jovem, eu acalentara muito tempo um desprezo secreto por
alquiles que se contentavam em passar a vida sob o patriarcado benévolo do
sistema militar. Parecia-me que assim essas criaturas se absolviam com demasiada
facilidade da busca por uma filosofia e da necessidade de um juízo moral mais
amplo. Eram mercenários, devotados a uma arte brutal que, no fim, devia ser
eliminada se quiséssemos que a raça humana sobrevivesse. Como os policiais,
eram lembretes constantes da fragilidade, da inaptidão e da tirania humanas.
Serviam como instrumentos passivos de uma política, boa ou má, da elaboração da
qual não haviam participado. Criavam uma casta para si próprios, dotada de sua
própria cosmogonia e ilusões de utilidade, santidade ou heroísmo, devotavam-se ao
nacional, não ao universal. Eram como feiticeiros, trabalhando secretamente numa
alquimia perigosa a fim de se prepararem para o dia quando lhes pedissem que
desfechassem a morte e a destruição sobre um mundo ignorante...
Eu e o meu cepticismo da juventude! Na minha desonra secreta, eu invejava os
militares, a inocência de seu propósito mortífero. Invejava a moralidade de sua
obediência e a absolvição implícita até mesmo na ordem errada, proferida por um
superior hierárquico. A dignidade deles tinha fundamentos mais profundos do que a
minha, pois achava-se enraizada numa noção de servir, em cuja afirmação sempre
empenhavam a vida.
Tolliver era bom anfitrião, sendo evidente que era respeitado por seus oficiais.
Havia animadas conversas na mesa, críticas livres, entremeadas de recordações da
pátria e narrativas de campanhas e acantonamentos. Era visível o sentimento de
grupo, uma espécie de orgulho familiar de que o próprio general vietnamita parecia
partilhar. Partilharam-no comigo também, pois era o representante de seu
Comandante Supremo, e não me pouparam seu desprezo cortês pelo ofício estéril e
intrincado no qual eu estava envolvido. Durante algum tempo senti-me purificado,
embora soubesse não estar perdoado, mas ao terminar o almoço eu voltava às
intrigas de minha profissão. O General Tolliver chamou-me para um lado com Tran
Hung Dao e nos conduziu a uma sala particular. Deu-nos café, charutos e bom
brandy, e nos deixou. Era um soldado, não um diplomata, e não queria participação
alguma em nossos negócios escusos.
Tran Hung Dao revelou-se uma surpresa em diversos sentidos. Como
vietnamita, era quase um gigante, com mais de um metro e oitenta de estatura,
musculoso e de ombros largos, olhos que brilhavam e sorriso cativante, falando um
inglês quase impecável. Parecia-se mais a um natural de Xangai do que um
vietnamita, e o seu gambito de abertura foi igualmente inesperado.
- Conforme sabe a esta altura, Sr. Embaixador, na opinião de meu Presidente,
eu sou conspirador. Isto quer dizer que sou um general que acha que estamos
perdendo a guerra e um cidadão insatisfeito com o seu Governo. Estou procurando
o modo de modificar ambas as situações, e o Sr. Yaffa me disse que o Sr. tem
determinadas opiniões nessa questão.
- Tenho, general, mas isto não quer dizer que esteja pronto a revelá-las.
Sempre me aborreço com asiáticos que adotam as atitudes enérgicas e
calorosas do Ocidente, parecendo-me que abandonam um refinamento precioso em
favor de algo vulgar e insincero, de modo que fui breve e ríspido com esse general
musculoso. Ele o percebeu e sabia o motivo. As suas palavras seguintes foram
muito mais moderadas.
- Perdoe-me, Sr. Embaixador, mas já fez certas revelações drásticas. Talvez
fosse mais discreto dizer que o Sr. gostaria de ver uma mudança no clima político.
- No clima, sim, mas não forçosamente mudança de governo.
- Acha que pode ter uma, sem a outra?
- Neste momento, não tenho certeza.
- Mas se os acontecimentos vierem a provar que uma mudança de governo se
torna necessária, se, por exemplo, seus protestos não forem atendidos, se as
sanções que se propõe aplicar falharem, o que se seguirá?
- Nesse caso, devemos procurar os próprios vietnamitas para fazer a mudança.
Ele ergueu o copo de brandy, cheirou-o com aprovação, sorveu a bebida e pôs o
copo na mesa. Tornou a falar em tom leve e irônico.
- Estou vendo, Sr. Embaixador, que é homem muito preciso, de modo que devo
ser preciso com o Sr. O povo vietnamita... Quem é ele? Os Montagnards, vivendo
primitivamente nas montanhas? Os pescadores do Delta que não sabem ler ou
escrever? Os Thais? Os Chams? O camponês no arrozal, que não tem direito a voto
e não o poderia usar se tivesse, porque não temos eleições como os americanos?
Se quisermos uma mudança, terá de ser feita por alquiles que têm educação,
organização e meios materiais de efetuá-la. Quando a mudança for feita, o país terá
ainda de ser governado, a guerra terá de continuar se não quisermos cair numa
confusão completa e terminar no neutralismo deplorável de nossos vizinhos. O Sr.
percebe isso, certamente?
- Percebo, sim. Mas até aqui, general, o Sr. me mostrou o que deve ser feito.
Estou mais interessado em saber o que pode ser feito, e como. .
Eu me achava tão acostumado aos diálogos orientais que esperava vê-lo furtar-
se à pergunta, ou pelo menos encobrir sua resposta. Não fez isso, e com sorriso
amplo, encostando-se confortavelmente na cadeira, respondeu:
- Em primeiro lugar, o que pode ser feito? Pode-se desfechar um golpe. Se
minha definição é correta, golpe é a mudança de governo, causada de uma só vez.
Não se trata de revolução, que para nós seria uma coisa sangrenta e trágica. Um
golpe significa aplicar a pressão num único ponto, em dado momento, de modo que
um governo seja superado e outro assuma o poder... Ora, quem pode aplicar essa
pressão? Apenas o Exército, que dispõe da organização, homens e ameaça das
armas.
- E assim, sem mais aquela, estaríamos comprometidos com uma junta militar?
- Seria muito diferente da ditadura militar que temos agora, Sr. Embaixador?
- Poderia ser menos estável.
- Seria também mais moderada, devido aos impedimentos e equilíbrios internos
que funcionariam contra os extremistas.
- Ainda temos um grande se.
- Sempre existe um se, Sr. Embaixador. Lembre-se da oração cristã, "Se eu
morrer antes de despertar...” A morte é a única certeza de que dispomos.
- Então um golpe seria desferido pelo Exército. Como poderia ser organizado?
- Uma pergunta muito prática, Sr. Embaixador...
Na parede à sua frente havia um grande mapa de campanha do Vietnam do Sul.
Ergueu-se da cadeira, atravessou a sala e colocou-se ao lado do mapa, parecendo
um instrutor a ensinar um aluno atrasado. Continuava a irritar-me com sua confiança
vigorosa.
- O Exército Republicano está dividido em quatro corpos. O Corpo Número Um
controla o setor norte-oriental do país, da fronteira com o Vietnam do Norte
passando por Tourane e além, até a fronteira ocidental. O Segundo Corpo, baseado
em Pleiku, controla as províncias dos planaltos centrais. O Terceiro Corpo controla o
Delta e o Quarto Corpo controla o setor especial de Saigon. Fora dessas formações,
temos uma pequena farsa naval que não tem importância para nossas consi-
derações, e uma pequena Farsa Aérea, que é da maior importância. Pois bem!
Indicava o mapa com o dedo espetado.
- O setor especial de Saigon constitui anel protetor colocado em torno da capital
e da sede do governo. Atualmente, acha-se sob lei marcial, e o comandante do
Corpo é católico, rigorosamente fiel ao regime. Já os soldados, a não ser os da
Guarda do Palácio, podem ser levados para este ou alquile lado, de modo que a
estratégia da tomada requer quatro etapas. Primeira, fazemos descer dois batalhões
escolhidos, das regiões ao norte e central. Trazemos outro batalhão, vindo do sul.
Temos então três pontas de lança convergindo para o coração da cidade. Etapa
número dois: assumimos o controle do quartel-general do Corpo Número Três, de
modo que sua formação fique sem chefia. Uma vez feito isso, os comandantes de
unidade poderão facilmente ser persuadidos a juntar-se aos nossos três batalhões.
Etapa número três: as unidades da Farsa Aérea mantêm o Palácio e a capital sob
ameaça de bombardeio. Etapa número quatro: estaremos controlando a capital e as
farsas armadas. Estabelecemos o governo controlado por uma comissão de três ou
quatro generais e o administramos com pessoal civil que já está dirigindo os diversos
departamentos e poderá continuar o seu trabalho de modo normal.
Interrompeu-se nesse ponto e me encarou, confiante e sorridente, como se
acabasse de escrever Q. E. D. ao final do teorema de Pitágoras, mas eu não estava
pronto a aceitar sua demonstração com tanta confiança quanto a sua em fazê-la.
- Do modo como vejo a coisa, general, poderiam executar essa manobra a
qualquer momento, por iniciativa própria. Por que esperam? Por que vieram a mim?
- Porque precisamos de... Como é que se diz?... De um catalisador, para dar
início à reação química. Veja! Vou-lhe mostrar! O comandante do Corpo Número Um
é homem forte, duro, bom soldado, e odeia o Presidente, de modo que está conosco
em toda linha. Mas para transportar seus soldados até a capital ele precisa
atravessar a região do Corpo Número Dois, cujo comandante ainda não se decidiu.
Gosta tanto do Governo quanto eu, mas está destacado numa província cujo
Governador lhe é hostil, de modo que quer uma garantia. O homem do Delta se
encontra na mesma posição... Foi nisso que nosso Presidente se mostrou tão
esperto. Sempre formou seus quadros pondo uns contra os outros, e nunca se
encontram dois amigos juntos na mesma região.
- Onde é que se situa nesse quadro, general?
- Estou aqui, em Saigon. Sou responsável pelos planos para tomar o quartel-
general do Corpo Número Três e fazer com que seus oficiais venham para o nosso
lado.
- E a Farsa Aérea?
- Está conosco até o último homem, mas depende dos Estados Unidos quanto a
combustíveis e manutenção, de modo que precisa ter certeza de que não serão
afastados do ar por seus próprios aliados.
- Na verdade, general, o Sr. deseja que nos tomemos parceiros na rebelião.
- Não, Sr. Embaixador. Só pedimos é que endossem nossa apólice de seguro.
- E quais são os termos precisos da apólice de seguro que desejam ver
endossada por nós?
- São três, Sr. Embaixador: nada de traição, nada de interferência, e apoio
contínuo com armas e dinheiro quando houvermos estabelecido um governo
operante... Oh! Há uma outra, e muito importante. Precisamos ter uma indicação
clara de que o Sr. cumprirá o acordo nos termos que indiquei.
- Trata-se de documento muito claro, general, ainda que apenas hipotético. No
entanto, de nosso ponto de vista, está ainda incompleto. Precisaríamos acrescentar
outra cláusula.
- E qual é ela, Sr. Embaixador?
- A de que, no caso de uma mudança de Governo, violência alguma deverá ser
praticada na pessoa do Presidente Cung ou de qualquer membro de seu gabinete.
Que eles sejam postos sob guarda, e depois tenham salvo-conduto para deixar o
país.
Ele pensou sobre isso por longo tempo, encolheu as bochechas e depois
deixou-as voltar ao natural, andou até a mesa e tomou o brandy de um só gole,
depois sentou-se e soltou algumas baforadas do charuto para auxiliar a meditação.
Finalmente, disse em tom calmo:
- Se pudermos lhe dar essa garantia, Sr. Embaixador, o Sr. nos apoiaria, nos
termos limitados que lhe apresentei?
- Sempre condicionado a que o Governo atual parecesse não poder mais
funcionar de modo efetivo.
- Isso, decerto, de acordo com sua opinião, Sr. Embaixador?
- Na minha, e na de meu Governo em Washington... Está claro que podem agir
livremente, de modo independente, por sua própria conta e risco.
- São condições pesadas para negociar.
- Não estou negociando, absolutamente, general. Estou examinando uma
circunstância hipotética que preferiríamos não ter surgido.
O rosto dele ensombreceu-se, e o olhar estava inteligente e cauteloso. No
entanto, controlou-se bem e falou na mesma forma calma.
- É um bom jogador de pôquer, Sr. Embaixador, mas não pode esperar toda a
vida receber os quatro ases. Pode-se ganhar com jogo mais baixo.
- Deixe-me explicar uma coisa, general. Não podemos ganhar coisa alguma,
porque estamos jogando contra a banca e com baralho preparado. Ontem, por
exemplo, como terminou o jogo? Perdemos dez homens e gastamos um milhão e
meio de dólares do dinheiro dos nossos contribuintes. Hoje, em cálculo aproximado,
já gastamos oitocentos mil dólares! Até aqui, o que conseguimos? Um pedido de
apólice cobrindo todos os riscos, para um golpe militar a ser organizado por três
hesitantes e um general precipitado que não pode garantir suas linhas de
comunicação... Vê como são as coisas?
- Nesse caso, o que deseja, Sr. Embaixador? Um leilão entre o demônio que
conhece e o diabo que não conhece?
- Não. Queremos um governo amigo, que possa manter a ordem com justiça e
levar esta guerra a uma conclusão que garanta a segurança e a paz do Vietnam do
Sul.
- Se lhe prometesse isso, saberia que estava mentindo.
- Que pode prometer, então, general?
- Amizade, sim. Um exército unido, sim. Paz com os budistas, sim, e também o
final das desordens civis. O mais é um ponto de interrogação, mas tenho certeza de
que podemos fazer mais do que o atual governo.
- Mas não estão prontos ainda.
- Não.
- Quando poderiam estar prontos?
- Em seis semanas, desde que tivéssemos uma esperança razoável quanto
àquela apólice de seguro.
- Se podem organizar-se para a rebelião armada, por que não podem organizar-
se para um ajuste razoável com o Governo atual? Com três corpos de exército e a
Farsa Aérea, certamente poderão negociar com o Presidente Cung.
- Mas ele não quer! me nos dividirá, subdividirá, comprará e ameaçará até que
esteja dissipado o nosso poder de negociação. É assim que age, é um mestre nesse
método. Ninguém pode raciocinar com ele. O Sr. sabe disso, pois tentou. Ele não
fala com pessoa alguma, a não ser com Deus, e mesmo este vem em segundo
lugar!
Bateu com o punho na mesa e sua voz estava alterada e áspera de raiva.
- Dê-me alguma coisa positiva, Sr. Embaixador! Não somos crianças! Os
vietcongs já têm três batalhões a mais do que na semana passada. Estamo-nos
enfraquecendo de dia para dia, porque não existe confiança em nossa liderança.
Que nos diz? Sim, não ou talvez?
- Talvez.
- Pois bem! Outra pergunta: como vamos saber, quando o talvez se tomar sim?
- Saberão. É tudo quanto posso dizer.
- E como iremos manter contato com o Sr.?
- Não vão manter contato, general. A partir deste momento, não posso ter outros
contatos com o Sr. ou seus amigos, sobre essa questão. Como Embaixador, acho-
me acreditado junto ao governo legítimo deste país, seja lá qual for.
- E como define um governo legítimo, Sr. Embaixador?
- Num sistema onde não são possíveis eleições livres, temos de defini-lo
simplesmente como alquile governo que pode governar, e governa.
- Portanto, desde que não somos ainda um governo, mas apenas uma oposição,
com quem falaremos, senão com o Sr.?
- Com o Sr. Harry Yaffa.
- E qual é a patente dele?
- O Sr. Yaffa é agente secreto cujas atividades poderão ser negadas e repelidas
a qualquer momento por seu Governo. É assim que se joga a partida. O Sr. sabe
disso.
Olhou-me por alguns instantes em silêncio, sombrio e pensativo. Depois, o seu
rosto se abriu, num sorriso de aprovação hesitante.
- Por falar em pôquer, Sr. Embaixador... Quem foi que preparou o baralho?

Depois de Dao ter saído, passei mais de uma hora com o General Tolliver,
planejando minha viagem às zonas de combate. Por uma série de motivos, o plano
apresentava singular importância para mim. Em primeiro lugar, era vitalmente impor-
tante que eu adquirisse conhecimento de primeira mão quanto ao país, as condições
de vida e os problemas muito especiais da guerra subversiva num país dividido e de
raças múltiplas. Ainda me restavam esperanças de que, mediante maior conhe-
cimento e experiência, pudesse estabelecer relação funcional com Cung, que - a
despeito de seu dom de me irritar - era homem muito mais digno de respeito do que
Dao. Em segundo lugar, queria estar fora de Saigon quando as sanções entrassem
em vigor. Não queria estar à disposição da imprensa, cujos comentários poderiam
agravar a situação. O próprio Cung poderia mostrar-se mais ameno em minha
ausência do que com minha presença acusadora. Finalmente, precisava do contato
duro e curativo da realidade. Depois daqueles dias de conversações diplomáticas,
eu me sentia como se estivesse andando nas nuvens, falando uma língua
ininteligível. Tolliver reiterou suas advertências contra os perigos da viagem, mas era
clara sua satisfação em que a fizesse. Também ele se impacientava com as
conversas e intrigas, estando preocupado seriamente com o moral de seus
soldados. Ao lhe falar de minha conversa com Dao, resmungou impaciente e
chamou o homem de mentiroso.
- Toda essa conversa de trazer um batalhão de cada corpo é mentira!...
Indicou seu próprio mapa de operações militares.
- Tomemos o Corpo Número Um, perto da fronteira do norte. O comandante é
um general chamado Tho. Trata-se de um bom soldado, que sabe muito bem que se
tirasse qualquer batalhão dali os vietcongs se espalhariam pelo lugar como a água
do gargalo duma garrafa! Além disso, estão em região montanhosa e todas as
unidades de Tho se acham divididas em pequenas formações, pois simplesmente
não se pode operar com grandes concentrações de soldados... Essa bobagem da
Farsa Aérea ter medo de nós! Ela tem seus próprios abastecimentos de combustível,
munição e peças sobressalentes e se quisesse voar diretamente daqui a Hanói não
a poderíamos impedir!
- Nesse caso, por que Dao me veio com mentiras tão estúpidas? Devia saber
que eu verificaria as informações com o Sr.!
Tolliver riu e deu de ombros, fingindo desânimo.
- É assim que fazem as coisas aqui. Dao estava simplesmente dizendo que
sabia que o Sr. não confiava nele, e ele não confiava no Sr. Ah, ele tem planos,
decerto! Provàvelmente muito bons, mas enquanto o Sr. não estiver decidido, não os
conhecerá.
- Pois nunca darei a ele, ou a qualquer outro, um cheque em branco!
- Eu não lhe daria uma moeda falsa! - disse Tolliver com ênfase. - Se vai haver
golpe, o homem para dirigi-lo será Khiet, no Delta. É o melhor estrategista de todos
eles e grande lutador. Dao fará parte da junta, naturalmente, mas do nosso ponto de
vista ele é de quem menos precisamos. Está jogando com pau de dois bicos, e no
meio ao mesmo tempo. Não se esqueça de que ele ainda é Sub-Chefe do Estado
Maior de Cung.
- Então estamos numa ponta, e Cung no meio. Quem está ajudando Dao na
outra ponta?
- Se quer minha opinião, Embaixador, são os franceses. O país está cheio de
agentes degaullistas com dinheiro de sobra. Subvencionam os plantadores de
borracha e donos de fábricas para pagar os vietcongs, a fim de poderem continuar
no país, comprando opinião neutralista sempre que podem, porque em última
instância é isso que desejam, um outro estado neutro como Laos e Cambodja, com
acesso livre a Hanói para a França, e para o norte também.
- E o general Dao é neutralista?
- Um oportunista! - respondeu Tolliver. - Como tantos deles. Eu não gosto de
Cung, Embaixador, mas ele é duas vezes maior do que qualquer outro homem
conhecido meu aqui, até agora. Pode estar liquidado, mas nunca poderá ser
comprado!
- Acha que o devíamos apoiar incondicionalmente?
- Não podemos fazer isso! - respondeu, com expressão desanimada. - Aí está o
difícil de nossa situação, de Formosa a Bangkok. Somos como o sujeito que tem
uma amante chantagista: não quer casar-se com ela, não a pode abandonar e, com
todos os demônios, não a pode amar!
Passei o resto da tarde na Embaixada, preparando um relatório longo e
detalhado para Raoul Festhammer, em Washington. O texto do resumo final está
ainda bem claro em minha memória, pois representa a tentativa mais árdua que fiz
para chegar à sinceridade total. Quando me vejo tentado, como aconteceu muitas
vezes, a assumir toda culpa pelo que sucedeu depois, lembro-me dele e assim
escapo, por pouco, ao desprezo completo por mim próprio.
"Desse modo, a despeito de suas muitas e perigosas deficiências, vejo-me
inclinado a confiar no Presidente Cung como homem suficientemente forte e
incorruptível para manter o equilíbrio de poderes neste país. No entanto, não posso
e não me atrevo a dar-lhe confiança absoluta e sou forçado, por intermédio da CIA e
do Sr. Harry Yaffa, a manter contato com elementos dissidentes que estão tramando
a derrubada do regime, e talvez um dia o causem. Ao fazer isso, está claro que difi-
culto ao Presidente Cung a manutenção da estabilidade, ordem e lealdade, mas não
posso deixar que sejamos colhidos de surpresa por uma mudança de governo, ou
que fiquemos sem amigos num novo governo. Tudo quanto posso fazer é esclarecer
o perigo, bem como os motivos pelos quais o aceitei... Há outro perigo que devo
mencionar clara e francamente, o de que eu próprio, por defeito de conhecimento,
experiência ou caráter, me veja forçado a uma decisão errada, que poderá custar-
nos caro. Acho, por exemplo, que consegui menos resultado com Cung do que
deveria conseguir, porque ele me acha homem preciso demais, e insuficientemente
sutil para compreender a sua própria situação bem complexa. Por outro lado,
acredito ser ele homem que tiraria logo vantagem de qualquer demonstração de
debilidade... Seria fácil, para mim, abdicar desse perigo pessoal, simplesmente
enviando a informação e pedindo que mandasse as instruções de Washington, mas
não foi o que você pediu, e tendo esclarecido bem o perigo, só me resta fazer o que
puder... Gostaria de que sempre fosse possível ter certeza de nossa própria
moralidade, ou, então, de estarmos totalmente desprovidos dela..."
Terminei o relatório e passei-o a Mel Adams para opinar. Terminada a leitura,
entregou-o de volta, com expressão estranha de perquirição.
- É documento muito sincero, e respeito-o por isso. - Mas não concorda?
- Acho-o inconclusivo.
- Pois é exatamente isso, Mel. Tem de ser assim. Não estou pronto ainda para
chegar a uma conclusão!
- Em certo sentido isso é verdade, Sr. Embaixador, mas noutro é pura
inverdade. O Sr. já chegou a uma conclusão, decidiu pela continuação das divisões,
na esperança de que um lado, ou outro, apresente solução aceitável, por conta
própria. Isso é ótimo, se o Sr. estiver a favor do neutralismo, mas se quiser ficar no
poder terá de fazer escolha clara. Nesse documento, o Sr. não a faz.
- Não estou ainda pronto ou suficientemente informado para fazê-la. Não me
apresse, Mel.
- Não estou apressando. Queria apenas externar a minha opinião.
- Está bem, Mel.
Agradeceu altivamente e saiu. Redigi nota formal ao Ministério de Relações
Exteriores, anunciando a imposição das sanções. No dia seguinte, iria entregá-la
pessoalmente e estaria iniciada a batalha aberta.
Seguiu-se outra sessão de esgrima com a imprensa e um interlúdio telefônico,
em tom coloquial, com o Embaixador britânico. Ele presumia - um tanto agudamente
demais para meu gosto - que eu estava por demais preocupado, deixando por isso
de fazer a ronda costumeira de visitas aos colegas diplomatas. No entanto, estavam
todos ansiosíssimos por me conhecer e talvez, ainda que com tão pouca
antecedência no convite, eu pudesse ir a um coquetel? Alguns asiáticos eram um
pouquinho sensíveis a essas coisas, e poderiam julgar negligência de minha parte
não me esforçar por ser apresentado a eles. Os ingleses e americanos precisavam
estar unidos, não era? Principalmente quando os nossos amigos franceses estão
pintando o diabo por aí. Amanhã à noite, então? Era um prazer imenso para ele...
Tudo isso queria dizer que os franceses estavam pisando-lhe nos calos e ele
queria sacudir a Aliança Atlântica bem no nariz deles. No entanto, tinha razão
quanto aos asiáticos e eu não dispunha de tempo para correr de uma embaixada
para outra, Saigon a fora, de modo que a proposta era bem razoável. Ocorreu-me,
com certo sentimento de culpa, que com tantas pessoas a ver cabia-me enviar
convites próprios, mas acima de tudo precisava de uma reserva de tempo, a fim de
completar meus estudos. Precisava também de alguma diversão, ainda que mínima,
mas onde ir numa cidade fechada pelo toque de recolher e onde, entre tantas
pessoas, eu era um homem marcado para morrer? Juntei os papéis restantes e
levei-os para casa, onde continuaria a trabalhar depois do jantar.
Coquetéis, conferências, entrevistas e resmas e mais resmas de papel! Uma das
ironias da diplomacia está em que a ascensão e queda das nações, a vida e a morte
de milhares de pessoas, dependam de coisas tão sem importância.
Passeei pelo jardim antes do jantar, porque se o fizesse depois iria interromper
um circuito fotoelétrico, soariam as campainhas de alarme e os guardas viriam
correndo proteger minha sagrada pessoa. Aspirei o ar pesado e perfumado, tocando
nesta ou naquela pétala veludosa das flores tropicais. Tentei conversar com o
jardineiro vietnamita, mas o francês do homem era tão limitado quanto o meu
vietnamita, de modo que terminamos numa troca de gestos e salamaleques. Conver-
sei um pouco com os sentinelas, mas estes se mostravam constrangidos e formais,
não tendo ainda aprendido que um Embaixador sempre é mortal, muitas vezes
sente-se sozinho e, de outras, fica intrigado com o quebra-cabeças da política, no
qual sempre faltam as peças principais. Bill Slavich passou pelo jardim fazendo sua
ronda noturna, verificando os postos de guarda e sistemas de alarma, bem como as
famílias dos empregados vietnamitas no conjunto de casas ao fundo. Passeamos
por instantes no musgo úmido do jardim e percebi que também êle tinha o seu
problema comigo. Era homem de Harry Yaffa, membro daquele mundo de
funcionários públicos cujo ofício é secreto, violento e sem agradecimentos. Nossa
conversa foi banal e terminei pedindo-lhe que arranjasse para mim um massagista,
que com o trabalho de uma hora diária me tirasse as tensões do corpo. Prometeu
fazer isso, e me deixou. Vi-me imaginando com interesse quais poderiam ser as
diversões de um jovem como esse, cujo campo de ação eram as veredas
subterrâneas do mundo.
Isso me levou a pensar em Harry Yaffa, o conspirador profissional a quem eu
próprio nomeara confidente e mensageiro em todas as negociações com os generais
rebeldes. Examinara todos os seus relatórios e registrara nossas conversas, e
examinando-as depois vira que estavam habilmente incompletas. Os agentes
franceses? As suas atividades estavam anotadas e avaliada sua influência. Os
conspiradores do Exército? Havia biografia de todos, e mesmo um total corrente de
suas contas bancárias e posses em imóveis. Os agentes entre os budistas, os
reacionários em meio ao clero católico? Lá estava o dossiê sobre cada um, e o
registro atualizado de suas atividades. Nossos agentes em Vientiname e Pnompenh,
nossos contatos entre os pilotos que operavam nas rotas do ópio saindo da
Birmânia, e navegantes que efetuavam o comércio costeiro de Bangkok pelo golfo
de Tonouim? Todos estavam relacionados. Que mais queria eu? Se quisesse,
bastava pedir.
Por que motivo, então, não confiava nesse homem? Ele se recusara a mentir
para mim, reconhecera haver segredos dos quais eu não devia participar, mas
minha experiência dizia que tal era o costume normal e prudente do ofício. Que
havia naquele homem para me irritar, a ponto de ser sempre formal com ele e nunca
chamá-lo pelo primeiro nome? Tinha medo dele, ou ele de mim? Um homem como
Yaffa se tomaria avaro de segredos, guardando-os para uso próprio ou exercício de
tirania ignóbil? Existia um vício especial a que sucumbiam os homens desse
demimonde, a ambição de governar por trás dos tapetes do rei, ou o impulso mau de
destruir, por que se viam diàriamente ameaçados de destruição?
Era pensamento sombrio, que me atormentava enquanto eu andava de lá para
cá na fragrância persistente dos jasmins, mas havia outro mais sombrio ainda.
Todos os homens com quem lidara naqueles últimos dias haviam demonstrado uma
clara desconfiança a meu respeito. Para Cung, eu era o homem irresoluto que queria
apostar em todos os números; para Yaffa, o fracasso latente contra o qual tinha de
estar preparado; para o General Dao, um aliado duvidoso; para Mel Adams, um
informante sincero cuja sinceridade não bastava. Eu tinha experiência suficiente
para saber que o homem em posição de grande autoridade sempre é suspeito,
mesmo para seus auxiliares. No passado, Gabrielle fora ao mesmo tempo minha
consciência e baluarte, e sem ela eu me via tomado de receios e culpas. Era como
um monge, atormentado por sonhos secretos de libidinagem, um servidor do bem
comum tentado por tiranias desbragadas. Embora não cedesse às tentações, sabia
que existiam e sua atração me despojava da fé nos objetivos mais nobres... Imaginei
se tais dúvidas se refletiam no rosto, como os tiques e contorções involuntárias do
devoto escrupuloso...
Um vento fraco soprava na noite, trazendo as nuvens do Delta, e uma chuva
miúda e macia, começou a cair, fazendo-me entrar para um trago solitário e o jantar
igualmente sozinho. Anne Beldon fora jantar com uma amiga de outra embaixada e
George Groton provavelmente estava sentado, de pernas cruzadas, falando sobre o
Dhamma com outro homem de manto amarelo, em algum pagode da cidade.
Logo depois das dez horas, quando estava ainda examinando volumoso
documento sobre a situação econômica do Vietnam do Sul, apareceu Groton,
ofegante e molhado até a pele. Estivera num pagode no extremo setentrional da
cidade e de lá partira para casa, andando. Esquecera o toque de recolher e passara
uma hora de perigo, fugindo às patrulhas militares.
Também tinha fome, pois, como bom monge, nada comera desde o meio-dia.
Mandei-o subir e trocar de roupas, pedindo à governanta que lhe preparasse uma
refeição. Vinte minutos depois, regalando-se com galinha fria e uma garrafa de
vinho, ele me apresentava animadamente seu primeiro relatório.
- ... Em primeiro lugar, alquile monge da Embaixada me deu uma carta circular
de apresentação, escrita em francês e que parecia bem amistosa, dizendo: "O jovem
portador é estudante dos Oito Caminhos e, portanto, bem disposto para conosco.
Desfruta a confiança do Embaixador americano, que também compreende o
Caminho Zen. É favor prestar-lhe todas as cortesias e tentar explicar nossa
posição..." Até aí, a coisa ia bem, mas na parte de baixo ele escreveu palavras em
vietnamita. Pedi que as traduzisse e o negócio era uma das proposições do
Nagarjuna sobre o Exame do Nirvana. Traduzido mais ou menos, dizia: "Como tudo
é relativo, não sabemos o que é finito e infinito. Não sabemos o que é finito e infinito,
ao mesmo tempo e de uma só vez. Não sabemos o que é uma negação tanto do
finito quanto do infinito..." Perguntei o que significava aquilo, e ele disse que era
costume, em qualquer correspondência, acrescentar o lembrete de alguma verdade
espiritual do Dhamma. Aceitei a explicação, mas fiquei preocupado. Cheguei à
conclusão, a qual não posso ainda provar, de que ele usava a citação para indicar
não ter certeza a meu respeito... De qualquer modo, deu-me os endereços de três
pagodes pequenos na cidade, que até aqui têm estado livres de distúrbios ou de
guarda policial. Deu-me também os nomes dos abades e outros monges que
entendiam e falavam francês...
Interrompeu a narrativa e bebeu algum vinho, como se estivesse buscando
palavras capazes de transmitir sua impressão. Depois, um tanto embaraçado,
prosseguiu:
- Achei que estava bem preparado para esse trabalho, mas não estava. Quando
cheguei ao primeiro pagode, era como um luterano entrando numa igreja católica na
Sicília. Tudo me pareceu estranho, barroco, atulhado de imagens, seda, incenso e
flores. Depois do Japão, onde tudo é parcimonioso e disciplinado, achei aquela
atmosfera de mau gosto, vulgar mesmo. O primeiro monge a se encarregar de mim
era mocho, mas educado à francesa, e contou exatamente aquilo que me queria
informar. Havia perseguição e discriminação por parte do Governo, os católicos
podiam reunir-se quando quisessem, mas os budistas precisavam de licença oficial.
Os budistas eram mantidos fora das posições graduadas no Governo, as mortes em
Hué tinham sido assassinatos premeditados e não apenas resultado de desordens e
distúrbios públicos. Os budistas, que nada mais desejavam além de uma vida de
boas obras e contemplação, tinham sido forçados a organizar-se para se protege-
rem... Centenas de monges e monjas estavam ainda presos, e muitos tinham sido
submetidos a espancamento e tortura para confessarem filiação comunista. Tenho a
dizer que a apresentação feita pelo mocho foi muito boa, mas cheirava muito a
afirmações interessadas. Não vi tolerância ou compreensão, como se espera de
religiosos. No entanto, quando viu que eu lhe aceitava as asserções, levou-me a
uma das salas onde os companheiros preparavam folhetos e cartas, com uma
bateria de máquinas de escrever e um mimeógrafo francês. Trabalhavam com muita
eficiência! Pedi para falar com o abade, mas ele disse que se tratava de um ancião
que passava a maior parte do tempo em contemplação. Continuei a pedir, e
finalmente pude ver o homem. Era muito velho e débil, falando quase num sussurro.
O monge jovem esteve conosco todo o tempo, e tudo quanto consegui na conversa
foi saber que o abade já estava bem adiantado para o Nirvana e desejava ser
poupado à distração mundana...
E depois de uma pausa curta, Groton continuou:
- A visita ao abade durou apenas cinco minutos, e voltei a receber mais
propaganda. Perguntei se havia alguma verdade na acusação de que o Sangha
estava infiltrado de agentes comunistas. Pareceu-me que tinha mexido em casa de
marimbondos. Ficaram raivosos, insultados, horrorizados, e decidiram que eu não
devia deixar o lugar até me terem convencido de que eram todos vietnamitas leais,
oprimidos por um mandarim católico, governado por mandato vindo de céu cristão.
Quando finalmente me deixaram partir, fizeram-me acompanhar por outro monge,
claramente designado para impedir que eu tivesse pensamentos contaminadores!
- Uma pergunta, George: mostravam-se hostis aos americanos?
- Não, Senhor. Fizeram grande questão de aprovar o que chamaram nossa ação
enérgica contra a tirania, falaram de suas boas relações com a imprensa americana
e deixaram bem claro que dispõem de contatos com a maioria dos principais corres-
pondentes em Saigon. Era claro, também, que estavam organizando comunicações
entre si e demais pagodes, e de modo bem rápido e eficiente.
- Alguma coisa sobre o neutralismo ou os franceses?
- No primeiro mosteiro, não, mas no segundo falei com o abade e insisti com
energia em estar com ele a sós. Era homem bem mais jovem que o primeiro abade,
por volta dos cinqüenta anos. Mostrou-se muito reservado e educado, tomamos chá
juntos e ele me interrogou bastante tempo sobre meus próprios antecedentes no
caminho do esclarecimento. Estava preparado para examinar a influência da
expansão comunista sobre o futuro do budismo, afirmando que quem aceita as
Quatro Verdades Nobres deve encarar o marxismo como fenômeno transitório, que
seria primeiramente transfundido e, depois, transformado pelos ensinamentos do
Senhor Buda. Admitia a existência de "monges jovens e perturbados" no sistema
monástico, mas afirmou que também eles seriam gradualmente modificados pela
experiência e meditação. Quando lhe falei sobre os suicídios, ele me corrigiu. O
suicídio era idéia repugnante para o budismo, mas citou o Sutra do Lótus, que
conclama todos os budistas ao sacrifício, em caso de ameaça à sua religião.
Perguntei se havia possíveis mártires em seu pagode e respondeu que tinham uma
monja muito idosa pronta a se imolar, mas ele a aconselhara contra isso. Depois,
perguntei se achava desejável o neutralismo e ele afirmou que isso estava implícito
nos ensinamentos do Gautama, porquanto todas as soluções físicas para males
humanos eram tão transitórias quanto o próprio homem.
- Viu alguma máquina de propaganda nesse pagode?
- Não me mostraram, Senhor. Tive a impressão de que o próprio abade era um
homem forte, tentando manter a sua autonomia. Também dessa vez foi muito difícil,
para mim, chegar a qualquer conclusão. Finalmente, perguntei se ele podia reco-
mendar qualquer mosteiro onde eu pudesse passar vinte e quatro horas nos
exercícios com os monges e tentando recolher, ao menos, algum proveito espiritual
da visita. Deu-me o nome de um mosteiro e uma carta para o abade. Foi onde
passei o resto do tempo, e acho que ali consegui alguma coisa... Havia um francês,
que afirmou ter lutado em Dienbienphu e que depois se desiludira com o Ocidente e
de tudo quanto ele significava. De acordo com sua narrativa, adotara o budismo por
convicção espiritual e passara nove anos no mesmo pagode.
- Acha que ele é um agente?
- Talvez. Dormi no quarto dele, sentei-me em sua companhia durante a leitura
das Escrituras, e ele as traduziu para mim. Oramos juntos e conversamos por muito
tempo, andando pelo jardim do pagode. O homem se mostrou muito prático e culto,
e me deu um testemunho ocular dos últimos dias de Dienbienphu, contando a sua
fuga, depois de passar três meses como prisioneiro de guerra. Não era um
intelectual, mas certamente demonstrava compreensão e simpatia pelas atitudes
fundamentais do budismo. Falou de um renascimento budista na Ásia, mas quando
sugeri que isso tinha base política, rejeitou imediatamente a idéia.
Afirmou que esse renascimento era fenômeno espiritual baseado na necessidade de
paz para todos os homens, e na declaração do Sutra Páli, "O próprio Senhor Buda
alcançou a paz e prega a paz para toda a humanidade". Quando falei nas
demonstrações e desordens públicas, classificou-as de "demonstrações
espontâneas de povo ainda imperfeito, mas que busca o caminho perfeito". Os atos
do Governo eram agressivos, brutais e imprudentes, além de qualquer descrição!
Falei da subversão nos pagodes e fiquei surpreso ao vê-lo concordar, mas eliminou
a questão como desprovida de importância, pois a perfeição do caminho viria
finalmente a eliminar a imperfeição dos que marchavam por ele. O Presidente Cung
foi por ele chamado de "descendente dos antigos cristãos militantes, que chegavam
com a cruz na mão e a bolsa de dinheiro na outra mão".
- Ponto de vista muito cômodo.
- Cômodo demais para o homem que o exprimia!
Inclinou-se para frente, animado e com gestos expressivos, de modo que
acabou derrubando o copo de vinho na mesa, sendo forçado a enxugar enquanto
falava.
- Foi quando a nota falsa começou a aparecer. O próprio homem, chamado
Armand Leroux, mostrava-se por demais veemente, por demais francês para parecer
apóstolo convincente do quietismo. Finalmente, tentei apanhá-la em perguntas
específicas. Os budistas tinham reclamações legítimas?... Tinham. Como poderiam
ser sanadas?... Somente por Governo budista, com representação proporcional dos
católicos minoritários. Como poderia ser instalado um Governo assim?... Acabando
com a guerra, neutralizando o Vietnam do Sul e fazendo acordo de coexistência
pacífica com o Norte. Como poderia esse acordo funcionar? Numa base de interesse
econômico mútuo e, certamente, graças à influência do budismo como fermento. E
depois disso, talvez porque se tivesse adiantado demais, ou talvez porque a
indiscrição era bem calculada, tirou o ás da manga e disse... Não, espere um
instante, Sr.! Eu tomei nota, porque parecia muito importante.
Remexeu os bolsos e finalmente extraiu deles um envelope amarrotado, no qual
leu:
- “... O que os americanos não compreendem é que o Vietnam do Norte e do Sul
têm um interesse comum, o medo histórico e ódio aos que já foram seus
conquistadores, os chineses. Mesmo que Ho Chi Minh seja armado e treinado pelos
chineses, não gosta mais deles do que Phung Van Cung. É por isso que ele não
ampliará a guerra, pois nesse caso os chineses tomarão o Norte e o utilizarão como
corredor militar. Desse modo, mesmo que todo o Vietnam fosse comunista, ainda
assim estaria unido contra a China. É nisso que os americanos eram imbecis.
Gastam dólares e sangue para estabelecer um tampão contra a China, quando
podem tê-lo de graça, se fizerem um acordo com o marxismo e amizade com o
budismo na Ásia. É nisso que Cung se mostra reacionário, um católico que quer
preservar a Igreja às custas da nação. Mas se os americanos o forçarem bastante,
poderá muito bem fazer acordo com Ho Chi Minh e, nesse caso, teremos o mesmo
resultado mediante processo ligeiramente diverso...”.
- Foi tudo quanto disse, George?
- Foi. Pareceu compreender que falara o suficiente e voltou de propósito à
questão da meditação como caminho para o Nirvana... Meditei muito, de minha
parte, e resolvi que era hora de voltar e lhe contar o ocorrido.
É muita coisa para pensar, George. Pode me preparar um relatório?
- Posso, mas terá de ser incompleto. Depois de o fazer, gostaria de voltar aos
pagodes e descobrir mais coisas.
- É bom que o faça. Agora, tente resumir para mim. Em primeiro lugar, existe
subversão no Sangha?
- Sim, em medida desconhecida ainda.
- Portanto, o Presidente Cung está certo nesse ponto. Depois, há indicação de
panbudismo?
- Indicação, mas não prova.
- Há sinais de forte opinião neutralista?
- Sinais fortíssimos.
- Outro ponto para o Presidente Cung! Você diria que existe também a
convicção de que o budismo chegará a entendimento com o marxismo e acabará por
modificá-lo?
- Essa convicção, a meu ver, é forte e generalizada, ainda mais porque os
vietcongs nunca efetuam qualquer ataque aos pagodes ou às pessoas dos monges.
Ao contrário, muitas vezes fazem orações e oferendas nas aldeias.
- E a pergunta final: qual é sua reação pessoal a esse primeiro contato com o
Mahayana?
Sua resposta tardou um pouco, mas foi bem definida:
- Senti confusão, desagrado e desconfiança, mas como estava habituado a uma
variação refinada e intelectual, tenho de desconfiar de mim, também.
- Isso acontece a todos nós, George. O problema é que todos os outros querem
que tenhamos certeza de nós próprios, como se carregássemos a pedra filosofal no
bolso!
Encarou-me com movimento brusco da cabeça e seus olhos inteligentes
examinaram minha expressão. Havia ansiedade neles e, talvez, uma ponta de medo.
- Fala como se tivesse passado maus momentos.
- Muito maus, George, e a coisa vai piorar.
Narrei-lhe rapidamente os acontecimentos dos últimos dois dias a falei de
minhas próprias incertezas e aflições. George ouviu em silêncio e, quando terminei,
continuou sentado por longos momentos, traçando desenhos intrincados com o
garfo na toalha manchada. Finalmente, disse:
- Duas coisas parecem claras. Vai-lhe custar muito mais ser forte na paciência
do que decisivo na ação. Há tantos pontos de vista, e tanta informação contraditória,
que simplesmente não pode deixar que o apressem, seja qual for a crise que surja...
O segundo problema é o nosso próprio estadismo. Por estarmos comprometidos
com uma ação militar, comprometemo-nos pelo mesmo fato com soluções a curto
prazo, que historicamente não podem ser as corretas. Apoiar Cung ou preparar um
golpe para conseguir outro governo! Satisfazer os budistas e manter os católicos
satisfeitos, também. Expulsar os vietcongs para além da fronteira ao norte e fechar
os limites do Laos e Cambodja! Mas se fizermos tudo isso, não teremos resolvido
coisa alguma. Não se podem trancar idéias como um espírito dentro de garrafa. Não
se pode lutar com os vietcongs e desprezar a China, o gigante milenar com
população em crescimento explosivo e, que, pela primeira vez na História, tem um
objetivo unificado. Como vamos conviver com ela, nos próximos cem anos? Como
convive o resto da Ásia com ela? E os budistas? Havendo ou não subversão, eles
existem, como o islamismo, o catolicismo, o hinduísmo. Também não existem
soluções a curto prazo nesse terreno... Pode-se impedir ou fazer abortar uma
revolução, mas não se pode deter o processo revolucionário que a fomenta... De um
ponto de vista, podemos rir de todos esses cabeças-raspadas no pagode, que
conversam em torno de um mimeógrafo barato. De outro, podemos chamá-los
suficientemente perigosos para trancá-los na prisão. Mas eles existem! Existem
como homens, como sociedade e como sintoma da modificação inevitável. Se
dissermos que desejamos modificar a modificação, então teremos uma causa... tão
boa quanto a da China, da Rússia ou de Ho Chi Minh. Mas se dissermos, como
parecemos às vezes dizer que desejamos determinar a natureza da modificação e
garantir sua finalidade, nesse caso estaremos por fora, e condenados a fracasso
bem caro... Desculpe, mas, estou cansado e meio descontrolado. Mas preocupo-me
com tudo isso, e com o Sr., também.
Senti gratidão e piedade profundas por sua juventude e idealismo, mas como
poderia dizer-lhe a verdade amarga de que a modificação não era apenas o
desfecho do crescimento natural, mas também o resultado da luta, quer os cristãos a
definissem como batalha entre o bem e o mal, quer os comunistas a chamassem
dialética marxista, ou os budistas a apresentassem na figura do Gautama
subjugando Mara sob a palma da mão? Como poderia dizer-lhe que me havia
empenhado profundamente na ação e nas soluções de curto prazo?...
Mandei-o deitar-se e fiquei acordado até tarde, examinando meus documentos.
Estava ainda fazendo isso quando Anne Beldon chegou, de volta da festa, de modo
que invadimos a cozinha, preparamos café e falamos sobre banalidades até a meia-
noite.

Capítulo sete

NA MANHÃ SEGUINTE houve um atentado contra minha vida. Foi coisa mal
planejada e executada desajeitadamente, mas quase conseguiam matar-me.
Aconteceu poucos minutos depois das nove da manhã, quando Bill Slavich dirigia,
levando-me de casa para a Embaixada. Quando passávamos pela última esquina, a
fim de entrar na rua Ham Nghi, um volume redondo, embrulhado em jornais, foi
atirado à frente do carro. Slavich desviou-se para evitá-lo e, logo em seguida, a
bomba explodiu, apanhando-nos de lado, estilhaçando os vidros das janelas laterais
e mandando-nos de lado pela rua, de modo que batemos num poste e depois, com
grande violência, num caminhão ali estacionado.
Bill Slavich sofreu cortes no rosto e eu me saí com escoriações nas mãos e nos
pulsos, bem como um galo nas têmporas do tamanho de um ovo de pombo. Juntou-
se logo a multidão costumeira, apareceu a polícia que rapidamente me levou para a
Embaixada, e em seguida a coisa terminou como num corte de novela de televisão.
Bill Slavich entrou em conferência com a polícia e Harry Yaffa, enquanto Anne
Beldon se esforçava por me arrumar a fim de que eu pudesse visitar o Ministro de
Relações Exteriores.
Não faço segredo de que estava surpreso e abalado. Veio-me à mente uma
frase de litania que aprendi na infância: "Da morte repentina e imprevista, livra-nos,
Senhor". A morte estivera bem perto e, na verdade, me encontrara despreparado.
Tomei dois copos de uísque, um atrás do outro, e fiquei surpreso ao ver que mal
conseguia segurá-los. No espelho do banheiro meu rosto mostrava-se envelhecido e
pálido. Depois, teve início a química rápida da reação, e me senti ao mesmo tempo
raivoso e radiante, raivoso com quem exigia o risco de nossas vidas e, no entanto,
não demonstrava gratidão por isso, radiante porque iria me apresentar ao Ministério
com as marcas de uma tentativa de assassinato.
Quando me senti pronto para sair, a entrada da Embaixada estava cheia de
jornalistas e fotógrafos. Tratava-se de matéria de primeira página para eles, e meu
desejo era que gostassem dela e me trouxessem proveito, ao mesmo tempo. Harry
Yaffa acrescentara o seu próprio toque teatral, exigindo escolta policial na ida para o
Ministério e na volta de lá, bem como proteção policial dobrada para minha casa e
proximidades da Embaixada. E assim, levando no bolso a minha própria bomba-
relógio, dirigi-me ao Ministério de Relações Exteriores com batedores e escolta
armada!
A entrevista com o Ministro foi breve e tempestuosa. Entreguei-lhe a nota e
esperei enquanto a lia. Disse-me, com raiva, que a aplicação de sanções constituía
interferência indesculpável em questões internas de um Estado soberano, o que era
bem verdade, embora eu não o pudesse admitir. De modo áspero, fiz lembrar que
não poderiam esperar o nosso financiamento de medidas de repressão que nos
antagonizariam com todo o mundo budista. Isso o enraiveceu ainda mais, afirmando
então que não teríamos feito coisa pior, se mandássemos nosso dinheiro
diretamente aos vietcongs. Eu contara com essa tirada, e tirei dela uma vantagem
indecente.
- Se isso é verdade, Sr. Ministro, talvez não fossem os vietcongs que tentaram
matar-me esta manhã!
Mostrou-se indignado com a idéia e se atirou a um desmentido apaixonado:
- Pensamento monstruoso, Sr. Embaixador! Um insulto pessoal, a mim e ao meu
Presidente! Temos divergências e problemas, sim, mas no fundo somos ainda
aliados, em luta com um inimigo comum. Peço-lhe que tire da cabeça idéias tão
horríveis. Dou-lhe minha garantia pessoal de que será feita uma investigação
completa por nosso pessoal de segurança e que não descansaremos enquanto os
responsáveis pelo atentado não forem entregues à justiça!
- Aceito prazerosamente essa garantia, Sr. Ministro, mas desejo lembrar que é o
seu Governo quem dá corpo a suspeitas tão detestáveis. As acusações na
Assembléia Nacional, por exemplo, sua notada ausência no funeral de nossos
fuzileiros, sua própria sugestão de que a nossa atitude favorece os vietcongs...
Como devo interpretar tudo isso, senão como declarações públicas de hostilidade
para comigo e meu país?
Era a conversa cortante comum, de diplomatas insatisfeitos, e certamente em
nada concorria para modificar a verdade da questão. Estávamos como que armados
de cacete e batíamos com ele na cabeça do Governo, de modo que a despeito de
minha vitória verbal, sentia-me pouco orgulhoso de mim mesmo, ao voltar à
Embaixada, naquela manhã ensolarada.
As ruas da cidade estavam cheias de gente. O sol irrompera vigorosamente
depois da noite chuvosa e havia uma atmosfera de animação reconfortante nas
pessoas, como se as mesmas, a despeito de todas as suas aflições, de todo o
conjunto sinistro de tramas e subversão, estivessem decididas a comer, beber e
divertir-se quanto pudessem sob o reinado puritano de Phung Van Cung. Se eu
tivesse morrido naquela manhã, estariam do mesmo modo tratando de suas vidas,
insensíveis e sem pensar em mim. Apenas os cristãos teriam orado por mim, com-
prometidos como estavam a uma crença em minha fraternidade com eles na
Comunhão de Santos. Quanto aos demais, minha lembrança estaria sepultada
dentro de uma hora, sob a vasta indiferença da Ásia. Era um pensamento sombrio,
que me trouxe logo de volta à consideração proposta por George Groton na noite da
véspera - a que fim se destinava todo nosso dispêndio de dinheiro, diplomacia,
trabalho e vidas humanas? Mais uma vez, lembrei-me do que Muso Soseki dissera:
"Você é chamado para aconselhar e orientar e, assim, na verdade, pode ajudar a
propor os objetivos que mais tarde lhe são propostos". Eu já vira isso acontecer, mas
em tudo que propusera me limitara ao imediato e transitório. Não estivera ainda
preparado para examinar por minha conta os pontos de vista em conflito com a
corrente política dos Estados Unidos. No entanto, certamente isso estava implícito
em minha missão e se não me dedicasse à questão, a marcha rápida e violenta dos
acontecimentos me encontraria despreparado.
Chegando à Embaixada, achei-a-a em intensa fermentação. A mesa telefônica
estava congestionada por telefonemas das outras Embaixadas, pedindo detalhes
sobre a tentativa de assassinato. A imprensa continuava pedindo mais comentários
e pontos interessantes para registrar em seus despachos e havia entrada e saída
constantes de tipos estranhos, que conferenciavam com Harry Yaffa e seus
auxiliares. A agitação estava a tal altura que mandei evacuar o lugar tão depressa
quanto possível e voltar à ordem normal de trabalho. Convoquei uma reunião dos
auxiliares principais para as duas da tarde e fui tratar de meus despachos diários.
As notícias vindas da ONU eram bem interessantes. Fora derrotada uma
manobra russa no sentido de enviar ao Vietnam do Sul a antiga Comissão de
Controle da Indochina. Ao invés de adotar essa medida, o Presidente da Assembléia
daquela organização mundial designara o Afeganistão, Brasil, Ceilão, Costa Rica,
Dahomey, Marrocos e Nepal como países que efetuariam investigações sobre a
questão budista. Os membros da Comissão deveriam chegar dentro de uma
semana, e antevi com certo humor sombrio os pensamentos do cavalheiro vindo do
Dahomey, tentando compreender as sutilezas asiáticas e o homem do Ceilão
tentando ser imparcial quanto aos erros de seus correligionários. No entanto, a
Comissão era problema de Cung, e eu sentia prazer em pensar que lhe caberia lidar
com ela.
O telegrama de Festhammer era curto, mas trazia um ferrão na cauda.

APROVADA SUA AÇÃO SÔBRE SANÇÕES. APROVADO CONTATO FORA DE


CANAIS DIPLOMÁTICOS NORMAIS COM OPINIÃO OPOSICIONISTA. NO
ENTANTO, COMO Sanções ECONÔMICAS TERÃO DE ENFRAQUECER
ESFÔRÇO MILITAR, DEVEMOS PREVER LIMITE ADEQUADO DE TEMPO
DENTRO DO QUAL SE CONSIGA RECONCILIAÇÃO DE OBJETIVOS COM
REGIME CUNG OU AÇÃO ALTERNADA SE RECOMENDE. A OPINIÃO EM
SENADO E CONGRESSO GERALMENTE A FAVOR SANÇÕES MAS SENADOR
GOLDING EXPRIMIU FORTE OPINIÃO PELO NEUTRALISMO. ÊLE PODERÁ
SERVIR BASE PARA REDUÇÕES ORÇAMENTO E OPINIÃO NEUTRALISTA EM
GERAL. O GOVERNO ACOLHERIA QUALQUER NOTA DE CONFIANÇA QUE
POSSA INJETAR NAS DECLARAÇÕES PÚBLICAS E DESPACHOS DA
EMBAIXADA.
A mensagem era Festhammer puro, homem que sempre queria comer omelete
sem quebrar ovos e depois ganhar uma pílula para curar a indigestão. Eu tinha já
problemas demais sem pensar nas dores de barriga de algum senador em Wash-
ington, mas se os senadores berrassem o bastante poderiam criar ruído bastante
forte para estremecer as palmeiras e agitar as águas cinzentas do rio Mekong.
Nisso, encontrei outra farpa, espremida entre um resumo de situação e um
pedido de informações sobre o movimento financeiro da Missão de Operações dos
Estados Unidos. Era nota curta, vinda do Secretário de Estado.
“O recorte anexo nos foi enviado pelo Embaixador em Paris. A informação pode
ser pura invencionice, pois não é confirmada por qualquer de nossas fontes no Viet-
nam do Sul. Pedimos que investigue e envie seu comentário com urgência.”

O recorte fora tirado de um diário socialista, publicado cerca de duas semanas


antes. Era assinado por Claude Gemelle e afirmava ser uma entrevista particular e
exclusiva com o Presidente Cung. As linhas finais do texto estavam marcadas com
tinta vermelha.

“Finalmente o Presidente, com amargura evidente, disse-me o seguinte: ‘Os


americanos afirmam que estou seguindo uma orientação que irá no fim beneficiar os
vietcongs e o Partido Comunista do Vietnam do Norte. Afirmo, ao contrário, que são
eles que me impelem para os braços de Ho Chi Minh e me forçam a examinar me-
didas desesperadas para dar fim ao sofrimento de meu país’. Quando insisti para
que explicasse melhor sua afirmação ele se recusou, dizendo que o significado da
mesma era bastante claro para qualquer pessoa que tivesse examinado a situação
no Vietnam do Sul. E assim terminou minha entrevista.”

Tratava-se de uma dessas passagens misteriosas, com as quais certo tipo de


jornalista forma uma reputação de argúcia e profundidade, e fora obviamente
redigida de modo a apresentar duplo sentido. Por outro lado, apresentava curiosa
semelhança com o relatório feito por Groton sobre sua conversa com Armand Leroux
no pagode. Podia, portanto, ser uma sondagem, parte de um plano cuidadoso
destinado a preparar o espírito do povo para uma manobra política. Apenas por esse
motivo, merecia ser examinada. Pus o recorte de lado e fiz uma nota para examiná-
lo com Yaffa e Mel Adams. Mandei Anne Beldon telefonar para minha casa e pedir a
George Groton que comparecesse à conferência, e levasse as notas das suas
conversas nos pagodes.
Terminados os documentos mais urgentes e preparados os telegramas do dia, vi
que já eram 13h45m, o que só me dava tempo para comer um sanduíche, tomar
café e examinar rapidamente a pauta da conferência. Sabia do que precisaria nessa
ocasião: da exploração conjunta de todas as possibilidades de que dispúnhamos e
um exame franco das atitudes, mesmo daquelas que inicialmente parecessem
contrárias a nossos interesses. Não sabia se conseguiria essa exploração e esse
exame. O serviço diplomático se mostra claramente ingrato para homens de espírito
original e convicções fortes, sendo difícil pedir que arrisquem toda sua carreira na
defesa de uma opinião mal recebida. Eu nem sequer sabia se alguma pessoa de
meu quadro, com exceção de Groton, depositava em mim confiança bastante para
arriscar-se comigo. Por isso mesmo, o início da conferência seria o momento crítico,
e preparei o que devia dizer com bastante cuidado.
- ... Esta tarde, cavalheiros, desejo que se dediquem todos a um exercício
teórico. Quero apresentar-lhes uma série de proposições e pedir que examinem as
suas conseqüências em discussão aberta. A conferência não será registrada ou
gravada e não se responsabilizará pessoalmente qualquer pessoa pela opinião aqui
expressa, por mais extremada que seja. Quem quiser fazer uma defesa aberta de
Ho Chi Minh ou Chou En-lai poderá fazê-la. O fito da conferência é esclarecer-me e
dar-me a possibilidade de conseguir a visão mais completa possível da situação em
que nos achamos. Uma coisa ainda tenho a dizer: não haverá ordem estabelecida
para que cada um fale, e se quiserem debater uns com os outros verei isso com
muito bons olhos... Eis a primeira proposição: os franceses propõem que o Vietnam
do Sul se declare país neutro. Suponhamos que concordássemos com eles. Isso
poderia ser feito? Como poderia ser feito? E que conseqüências acarretaria?
Houve uma pausa curta e embaraçosa, enquanto eles se entreolhavam e
esperavam que alguém abrisse os debates. Finalmente, George Groton se
manifestou:
- Eu sou o mais novo, de modo que vou pôr a bola em jogo. O Vietnam do Sul
poderia neutralizar-se amanhã mesmo, mediante simples declaração e pedido à
ONU para garantir sua neutralidade. Em seguida, pediriam que nos retirássemos.
Seria feito um acordo com Ho Chi Minh para terminar a guerra e deter a infiltração
de tropas e suprimentos militares. O Governo do Vietnam do Sul se acharia, então,
livre para estabelecer relações diplomáticas e econômicas tanto com o Oriente
quanto com o Ocidente...
- Em seguida, Ho Chi Minh negaria qualquer responsabilidade pelo que
acontece no Vietnam do Sul, ao mesmo tempo que fomentaria secretamente a
rebelião - disse o adido militar. - Os vietcongs passariam à clandestinidade durante
algum tempo e apareceriam depois como um protesto local contra a tirania, também
local. Resultado: uma guerra civil, como a que há no Laos.
- Prossigamos nessa argumentação - disse Mel Adams tranqüilamente. - Há
uma rebelião, Cung é derrubado, o que poderá suceder, de qualquer maneira. Não é
absolutamente claro que o governo seguinte seja marxista. Certamente não seria
pró-China, pois o Vietnam não deseja ser um títere chinês. As duas partes do país
teriam exércitos adestrados que poderiam, naturalmente, unir-se contra a agressão
militar chinesa. Mesmo com um governo marxista ou quase marxista na Cambódja,
Laos e Vietnam, não existe certeza de atitudes expansionistas contra a Tailândia,
por exemplo. Creio que o contrário poderia acontecer. O povo está cansado de
guerra e acho que concordaria com a melhoria econômica, mesmo sob um sistema
marxista.
- E assim se abandonam três milhões de cristãos! - interveio o Segundo
Secretário, homem obstinado, áspero, de cabelo cortado à militar e óculos grossos. -
Abandonam-se os milhões de refugiados que vieram para o sul depois da divisão do
país? Abandonam-se os programas de ajuda e educação nos povoados e deixa-se a
confusão voltar?
- Não acho que seja questão de abandono - insistiu Mel Adams teimosamente. -
Haveria confusão, sim, mas pelo menos seria aquilo que defendemos, ou dizemos
defender, e que é uma oportunidade de autodeterminação. Como vejo as coisas, os
elementos militares se acham bem equilibrados dos dois lados e existe forte base
para colaboração econômica entre o norte e o sul.
- Eu acho que tudo isso não passa de hipótese, - disse Harry Yaffa
asperamente. - Existem dois elementos, um movimento revolucionário local e a
pressão externa enorme da China. Veja-se a extensão e peso dessa pressão, que
vai do Mar do Japão ao golfo de Tonquim, à Mongólia Exterior, Himalaia e deserto
de Takla Mahan... Acham que ela pode ser contida por uma declaração de
neutralidade e uma tropa mista da ONU no paralelo 17?
- Acha que pode ser contida por vinte mil assessores militares de diversos tipos
no Vietnam do Sul? - perguntou Adams.
- Está claro que não. A pressão chinesa está sendo contida pelos russos no
norte, pela Sétima Esquadra e pela ameaça da bomba atômica.
- Tudo isso continuaria a estar presente.
- Sem o ponto de apoio que temos agora no continente asiático.
O antagonismo entre os dois irrompia novamente e ameaçava acabar com a
conferência. Interrompi-os, com uma pergunta própria:
- Poderíamos nós próprios remover a pressão chinesa, mediante
reconhecimento diplomático, suspensão dos embargos comerciais e apoio à
admissão da China nas Nações Unidas? Poderíamos, então, encarar qualquer
revolução local como acontecimento indígena, a ser aceito por seu próprio mérito a
devido tempo?
- Não! - respondeu Yaffa de modo enfático. - O marxismo é uma filosofia
expansionista.
- Não se pode matar uma filosofia.
- E daí? O Sr. a aceita?
- Pode ser necessário conviver com ela.
- Coexistência pacífica? É a manobra de Kruchev, mas a China não a aceita. A
China proclama a antiga linha de Stalin, a guerra inevitável.
- Stalin está morto, e Mao Tse-tung e Chou En-Iai estão velhos.
- Mas a China ainda precisa das faixas rizícolas e quer uma passagem marítima
para a África.
- Não poderá ter essas coisas pelo comércio livre com os países asiáticos
neutros?
- E quem pode garantir que se contentará com isso?
- Hong Kong representa um acordo operante, pelo menos. A discussão
continuou por toda a mesa, durante mais vinte minutos, ficando claro que jamais
chegaríamos a uma decisão, de modo que apresentei uma pergunta de âmbito mais
local:
- Levando em conta que ficaremos no Vietnam do Sul, pois de qualquer modo
isso é coisa que Washington terá de resolver, e levando em conta os nossos
problemas atuais com Cung e os budistas, em que ponto apóia uma mudança de
governo?
- Quanto mais cedo melhor - disse Yaffa francamente. - A menos que desejemos
ver os budistas darem início a uma revolução deles. Já existem boatos de uma
possível divisão no Exército e formação de terceira farsa para lutar contra os
vietcongs e o Presidente Cung ao mesmo tempo. Naturalmente, é um sonho, pois se
a tentassem formar, não teriam dinheiro e munição para mais de um mês, e
acabariam inevitavelmente por se juntar aos vietcongs.
- Digo que não devemos apoiar qualquer deles - afirmou Mel Adams. - Forcemos
a oposição para provar sua própria coesão e reservemo-nos o direito de reconhecer,
ou não, um novo governo de fato.
Isso reacendeu os debates e novamente eu via o pessoal mais ou menos
dividido entre Adams e Yaffa, senão inclinado ao último, por ser o homem com mais
informações à sua disposição e que devia, portanto, ser o realista mais prático. Tra-
tava-se de proposição duvidosa, quando muito, e perturbava-me ver que tantos dos
meus auxiliares a aceitavam sem se aprofundar nela. Foi quando George Groton
voltou à discussão, trazendo um dilema verdadeiro para Harry Yaffa:
- Há uma coisa sobre a qual gostaria de ser claro. Concordamos em que
qualquer novo governo precisaria muito do apoio budista e provavelmente seria
composto por uma maioria de generais budistas. Estou certo, Sr. Yaffa?
- A coisa é mais ou menos essa.
- Mas a opinião budista nos pagodes, ao que me parece, está fortemente a favor
do neutralismo, de modo que o Sr. não está apoiando o que condenou de início, um
regime neutralista, ou latentemente neutralista?
Yaffa corou de raiva e respondeu:
- Um governo militar neutralista seria contradição em termos.
- Mas o budismo se inclina naturalmente à conciliação dos extremos.
- Isso em teoria. Na prática, é bem diferente.
- Diferente como? Se o regime Cung é instável, é por que os budistas estão
balançando o barco. Não poderiam eles balançar seu próprio barco, do mesmo
modo, com generais ou sem generais?
Era ponto bem importante, e por perversidade eu queria que George Groton
usufruísse a vitória, de modo que interrompi mais uma vez e fiz circular pela mesa o
recorte vindo de Paris. Não fiz qualquer comentário sobre o mesmo, mas apenas
pedi a opinião de todos. A maioria se inclinava a desdenhá-lo como simples
provocação, mas Harry Yaffa o examinou por algum tempo com expressão
carrancuda, e depois disse:
- Gostaria de ter algum tempo para pensar nisso, Sr. Embaixador, e verificar
meus arquivos. Como questão de rotina, mantemos vigilância sobre os jornalistas
visitantes, e posso ter alguma coisa sobre esse Claude Gemelle... Notei algo
curioso, Ultimamente: desde que começou o problema budista, os correspondentes
locais se têm mostrado muito hostis a Cung, de modo que ele começou a dar
comentários aos representantes da imprensa católica estrangeira, redatores de
revistas e colaboradores de publicações diversas que entram e saem de Saigon,
procurando assunto. Cung é homem que fala livremente, mas pesa sempre suas
palavras, de modo que se disse isto, ou coisa parecida, quero conhecer o texto
verdadeiro de suas declarações.
- Acho que podemos ter alguma informação relativa a isso.
Pedi a George Groton que falasse das suas visitas aos pagodes e,
principalmente, da sua conversa com o francês, Armand Leroux, o que provocou
nova carranca de Yaffa e fez Mel Adams arquear as sobrancelhas, mas ambos
ouviram em silêncio até Groton terminar. Depois disso, Adams sacudiu a cabeça.
- Muito interessante, mas incompleto. Não creio que possamos basear qualquer
estratégia nisso.
- Sei que a informação é incompleta - afirmou Groton com calor - mas parece
que precisamos saber muito mais do que sabemos a respeito dos budistas, ainda
mais se nos pedem para mudar o Governo a fim de favorecer-lhes os interesses. Já
examinei todos os relatórios disponíveis, e encontrei muitas lacunas, bem como
algumas imprecisões patentes.
- Acredito que o Sr. Groton, embora novato nesses assuntos, tenha feito ótimo
trabalho - disse Yaffa em tom estudadamente sem inflexão. - Acho que pode
continuar a obter informações úteis, devido a seus antecedentes especializados. No
entanto, se o deixar continuar, Sr. Embaixador, ele deverá ser informado sobre os
perigos.
- Quais perigos, de modo especial, Sr. Yaffa?
- Armand Leroux, por exemplo. Ele fala como francês, mas a bem da verdade se
trata de um georgiano, agente bem antigo nesta parte do mundo.
- Então por que o Governo permite que continue trabalhando?
- Porque trabalha para mim, Sr. Embaixador, mas também é pago pelos
franceses e pelos russos. Distribui a informação que consegue e recebe uma
gratificação de todos nós, mas quando um amador, como o nosso Sr. Groton,
começa a entrar no campo, Armand Leroux ficaria muito satisfeito em receber uma
gratificação por ele, também.
- Que quer dizer?
- Raptar o Sr. Groton. Trata-se de passatempo predileto neste país, grande
vitória moral para os vietcongs. Eles transportam a vítima numa jaula, ou pendurado
numa vara como se fosse um porco, a fim de impressionar os camponeses... Não
estou exagerando, nem afastando-o desse trabalho, mas sugiro, Sr. Embaixador,
que se o Sr. Groton vai continuar nisso, será melhor lhe darmos um pouco de treino,
bem como certa proteção. Depois do ocorrido esta manhã, não podemos também
desprezar a possibilidade de assassinato.
As suas afirmações tinham peso e eu não estava preparado para discutir.
Concordei, não sem pensar depois que tal arranjo poderia me dar uma fonte de
informações sobre as atividades secretas de Harry Yaffa. Havia ainda uma pergunta
a responder:
- Existe alguma ligação entre o relatório no jornal parisiense e as opiniões
manifestadas por Armand Leroux, Sr. Yaffa?
- Não sei - respondeu ele em tom de dúvida. - Mas pretendo descobrir. Deixe-me
ver isso por alguns dias, e assim que descobrir alguma coisa definida informarei.
Naquela altura, com palavras de agradecimento, encerrei a reunião. Só
conseguira ficar sabendo, na mesma, que Yaffa e Mel Adams eram os melhores
profissionais disponíveis, que George Groton provàvelmente chegaria a equiparar-se
a eles e que eu próprio jamais poderia abdicar da rude solidão das decisões
executivas.
Os coquetéis de Embaixada são um mal necessário do ofício. Forçam a
memória, a cortesia e a digestão, conduzem a escândalos, expressões de espanto e
ciumadas entre as mulheres. Até hoje não encontrei qualquer diplomata que real-
mente goste deles, mas ainda não se inventou um veículo melhor para alquile
comércio característico de insinuações, tons harmônicos maiores, advertências
veladas e transações de bastidores, que são a dialética da diplomacia. Desde que
se espera que estejam todos caceteados, pode-se não tomar conhecimento do que
não se deseja ouvir. É exigido que os convidados circulem, de modo que sempre se
podem esquivar a uma transação ou discussão. Graças ao fato de que tal tipo de
festa sempre se realiza ao final de dia de trabalho, tem-se direito a estar cansado e
retirar-se para um canto sossegado, a fim de concluir acordos ou acertar disputas.
Mesmo dentro desse arcabouço de costume e convenção, entretanto,
apresentam-se certas variações interessantes. Os franceses, por exemplo, cultivam
os ditos espirituosos e roupas na moda, mas inclinam-se a serem indigestos com
seus salgadinhos e bebidas. Os indianos servem comida intragável e se mostram
melindrosos ou embaraçosamente veementes na conversa. Os suecos, quando
sóbrios, são estudadamente formais e os japoneses, que bebem magnificamente
numa festa de gueixas, podem transformar um coquetel num drama Kabuki, num
segundo. Os siameses são flexíveis, bem-humorados e diabolicamente difíceis de
encurralar, ao passo que os norte-americanos se mostram loquazes, volúveis e às
vezes surdos. Os sul-americanos apresentam-se tão incrivelmente elegantes que
fazem pensar que estão gastando todos os nossos fundos de ajuda exterior para
vestir suas mulheres ou amantes, mas apenas os ingleses é que transformaram a
chatice em grande arte, e em literatura completa suas frases pela metade e
afirmações eufemísticas. A comida deles em geral é medíocre, as bebidas fracas em
teor alcoólico e o acolhimento tépido. O conviva não chega - deságua na festa. Não
se fala - bate-se papo. Ninguém é mimado, mas também não é incomodado, de
modo que ao final da noite mostra-se fácil demais o convidado se render à ilusão de
domesticidade e contar segredos de estado à sedutora ponderada, de busto nobre e
sorriso de Mona Lisa.
Os ingleses nos trópicos apresentam um encanto especial e sedutor. Graças a
alguma curiosa reação genética originada em seu clima horroroso, eles vicejam
enquanto os outros murcham. A sua urbanidade equilibra a sutileza da Ásia e a
inglesada decidida de suas vizinhanças apresenta um tom absolutamente próprio,
como os alabardeiros da Rendição da Guarda, de modo que após um dia bastante
agitado não vi com maus olhos minha rendição à hospitalidade do colega britânico. :
me não era, obviamente, um pêso-pesado, pois de outra forma jamais teria sido
relegado a um posto onde a influência britânica era mínima, mas se mostrava muito
experimentado e bastante arguto. Fêz-me passar rapidamente pelas apresentações,
pôs um copo em minha mão, murmurou qualquer coisa, sobre uma conversa em
particular mais tarde e me deixou esgrimindo sozinho com um chinês de rosto
impassível, vindo de Formosa, e um italiano que parecia Dante Alighieri.
Verifiquei que já era uma celebridade, até certo ponto. Poderia haver, e havia,
muitas reservas quanto à minha missão diplomática, mas isso de ser bombardeado
numa via pública? Ecco! Já era uma reputação! Era também um passaporte para
agradar às damas, algumas das quais belas e nenhuma das quais parecia
disponível. Depois, com rapidez demasiada, o brilho acabou e os ratinhos
começaram a roer o bolo.
O homem da Malásia indagou com mordacidade das atitudes americanas para
com a Indonésia e a sua política agressiva. O siamês fez um comentário velado
sobre a situação budista e exprimiu franco receio das tendências neutralistas no
Vietnam do Sul. O alemão queria saber como interpretar a retirada de pessoal militar
e se devia aconselhar os investidores germânicos a afastarem-se de Saigon. O
japonês preocupava-se com as finanças, pois seu país estava construindo navios
para a Marinha do Presidente Cung. O laosiano tinha algumas coisas ásperas a
dizer sobre Harry Yaffa e a ClA, enquanto o dinamarquês que chefiava apenas uma
legação falou sobre penas de pato (para fabricar travesseiros na Europa) e minas no
canal de navegação que dava acesso a Saigon (e que poderiam impedir o embarque
daquela mercadoria!).
O francês, certamente modelado de acordo com le grand Charles, manteve-se
isolado e irônico enquanto os inferiores esgotavam a conversa, e depois me levou
para um canto e recitou um comentário bem preparado sobre os erros de Dien-
bienphu e a ilusão de qualquer solução militar para o Vietnam do Sul. Se tivesse
sido mais sutil e menos patentemente superior, eu poderia mostrar-me mais atento,
mas ao invés disso dissertei por conta própria sobre os métodos comerciais fran-
ceses, as atividades dos agentes e o perigo de financiar uma nova revolução depois
da trapalhada lamentável que tinham arrumado com a primeira. Para minha
surpresa, aceitou minhas palavras calmamente e depois se saiu com a leitura breve
e franca de meu próprio horóscopo:
- ... Permita dizer-lhe, caro colega, o que sucederá. Irei além, farei uma aposta...
Cem dólares! Acha que o Presidente Cung se curvará à pressão? Nada disso! Ele
não pode fazê-lo! É um santo jansenista, devotado a defender o último reduto da
cristandade na Ásia. Desconfia dos budistas, no que não deixa de ter razão, de
modo que jamais poderá chegar a entendimento com eles, pois os budistas não lhe
permitirão isso. E depois? Vocês serão forçados a juntar-se àqueles que desejam
livrar-se dele. Eles lhes farão grandes promessas, é claro! Unidade, disciplina e tudo
mais. Mas não poderão cumprir as promessas, sabe por quê? Porque estarão
ocupados demais, repartindo o bolo entre si. A guerra continuará a arrastar-se, seis
meses, um ano, e o seu próprio Congresso os forçará a acabar com ela. Serão ainda
obrigados a neutralizar, mas terão de fazer um acordo pior do que é agora possível,
o acordo em que Cung já está pensando, pode crer!
- Coisa estranha... Já ouvi a mesma coisa três vezes, em três dias, mas sempre
partindo de fonte francesa...
- Então a fonte é suspeita? Eh, bien! A aposta continua de pé, se quiser aceitá-
la.
- Aceito, sim... E vou também examinar o assunto.
- Vai perder, meu amigo, porque tem de perder. Ah, eu sei que cometemos
nossos próprios erros aqui! Pagamos bem caro por eles... Mas vocês levam ainda
mais tempo para aprender do que nós levamos. Ninguém pode deter a revolução na
Ásia. Ela cresce do chão, como as árvores em Angkor Wat, as árvores que
engoliram a cidade e a transformaram em ruínas. Pode-se adiar um pouco essa
revolução, mas no fim terão de chegar a um entendimento com ela... Lembre-se! Os
exércitos morreram, os elefantes morreram também, e todas as armaduras já
enferrujaram, e no final as árvores engoliram a cidade!
Com essas palavras, deixou-me a contemplar o jardim e as formas hostis das
mangueiras à frente. Depois, a voz amena de meu anfitrião interrompeu meus
pensamentos.
- Camarada inteligente, não é? Agradabilíssimo quando quer, mas talvez um
pouco veemente demais, não acha?
Nos cinco dias seguintes vivi em outro mundo, o mundo do soldado, infante,
piloto de bombardeiro, tripulações de helicópteros e veteranos emagrecidos pela
selva nas operações especiais. Viajei em aviões de transporte, helicópteros armados
e jipes, varei lamaçais e lixeiras de fazendas e areais de rios vindos das montanhas.
Voei com escolta de caças pouco aquém do paralelo 17 e contemplei, lá de cima,
por sobre os picos das montanhas, o reduto de Ho Chi Minh. Passamos pela orla
das fronteiras com o Laos e a Cambódja, onde os rios correm para o oeste até o
poderoso Mekong irromper em direção oriental, rumando para o mar do sul da
China. Os topônimos surgiam como melodia oriental em meio ao rugido dos motores
Huong Roa, Bau Don, Budop, Quan Loi, Tanchau, Chaudoc e Mui Ca Mau.
Por toda a parte onde ia, era protegido, no ar por caças, no chão por infantes e
veículos armados e helicópteros a nos sobrevoar. O General Tolliver não se queria
arriscar; eu era o representante dos Estados Unidos, homem indicado pelo
Presidente e presa riquíssima para qualquer chefe guerrilheiro suficientemente
audaz para tentar me capturar. Nos helicópteros, faziam-me vestir uma jaqueta
especial blindada, pondo uma chapa de aço de modo a proteger minha espinha e
órgãos genitais contra tiros disparados do chão para cima e que poderiam varar a
fina pele metálica daquelas aeronaves.
Estive num posto de comando capturado aos vietcongs e examinei a pilha de
armas apreendidas, vindas da China, Praga e Rússia e, o que era ainda mais
sinistro, de nossas próprias fábricas de material militar. Vi os corpos de vietcongs
estendidos sob o sol, cobertos de moscas. Eram homens pequenos, bronzeados e
maltrapilhos, mas musculosos e bem nutridos e os relatórios de batalha, feitos com
base nos elementos recolhidos em seus corpos, mostravam-se precisos e profissio-
nais, indicando tratar-se de soldados rijos, hábeis na tática daquela guerra sombria.
Em aldeia situada nas montanhas e cercado por homens primitivos e suas
mulheres de busto nu, conversei com um jovem tenente que os instruía na execução
de operações de busca e limpeza contra os invasores do norte. Sempre com Tolliver
a meu lado, visitei aldeias fortificadas, cercadas por paredões de barro e paredes de
bambus aguçados. Em seus ambulatórios simples, as crianças estavam sendo
vacinadas contra a varíola e o cólera, enquanto jovens americanos que mal tinham
saído da faculdade os ensinavam a enterrar os detritos e o lixo, dar escoamento a
seus pântanos e charcos, plantar batata-doce e cultivar cebola albarrã a fim de
matar os ratos que infestavam suas plantações.
Fiquei conhecendo de visu os problemas de um comando militar dividido, os
ciúmes dos chefes locais e governadores provinciais e a frustração dos oficiais de
tropa cuja linha de frente era o arrozal logo adiante e que precisavam esperar dez
horas pelos reforços pedidos, porque os sistemas de rádio das aldeias não
funcionavam ou porque a milícia local não marchava de noite, com medo de
espíritos errantes!
Em Cai Nuoc, vi os restos sinistros de ataque pelos Viet Congs, uma pilha de
corpos queimados, homens, mulheres e crianças, e vinte e cinco sobreviventes,
abatidos e abalados, de uma guarnição de cem homens. Era uma lição brutal sobre
a natureza dessa guerra e uma condenação violenta à intriga política e à
incapacidade. Não era à toa que o aldeão e camponês se mostrassem prontos a
fazer suas próprias acomodações à situação, e que generais e mandarins fossem
todos para o inferno!
No entanto, tudo isso era apenas parte da coisa, pois a despeito de todas as
suas deficiências pessoais, Phung Van Cung construíra, em menos de dez anos,
uma estrutura maciça para a reconstrução de seu país. Ainda agora, sob as
dificuldades da guerra, essa estrutura resistia. A agricultura era melhorada, o
comércio e indústria se expandiam. A medicina social se ensinava em todos os
povoados e a comunicação pública mediante rádio, jornal e mimeógrafo de aldeia,
trazia os habitantes do campo a um contato mais próximo com o século XX. Reco-
nhecia-se que seus métodos eram brutais, porém não mais do que os de seu antigo
colaborador, o Tio Ho. Reconhecia-se que existia corrupção e peculato nos altos
postos, mas a administração pública no nível de comunidade se baseava solida-
mente no sistema familiar e, para a Ásia, mostrava-se notavelmente eficaz.
Devidamente preparado e equipado, dirigido por oficiais disciplinados, o vietnamita
era bom lutador, e não lhe faltava coragem, mas apenas confiança em seus
comandantes de tropa e na boa fé de seus estados maiores. O vietnamita, além
disso, era bom improvisador, e vi carabinas e pistolas, e mesmo uma reprodução do
fuzil Lee-Enfield, fabricados pelos ferreiros de aldeia. Encontrei motivos de orgulho,
também, na qualidade de nossos próprios soldados e na dedicação dos membros
das turmas americanas de Ajuda Civil e nas unidades dispersas de nossa Missão de
Operações, que partilhavam da vida do povo e lhe traziam, com perigos e
dificuldades singulares, o conhecimento sobre uma tecnologia mais adiantada.
Todas as noites, após o jantar, sentava-me com o General Tolliver e seus
comandantes locais, examinando com eles os acontecimentos e impressões do dia.
Era uma ocasião purificadora ouvir a conversa desses homens, todos veteranos, e
sentir sua simpatia e compreensão para com alquiles que tinham ido ajudar. Não se
tratava de cínicos, embora Deus saiba que tinham motivo para sê-lo! Apresentavam
reclamações, como as de que as operações militares eram prejudicadas por
pressões políticas, o Presidente Cung não gostava de listas de baixas e não queria
preparar operações fortes e persistentes de ofensiva, que as operações noturnas
eram desaconselhadas e os governadores provinciais relutavam em colaborar com
os comandantes militares. Mas, para os habitantes comuns, mostravam-se calorosos
e acolhedores, e gastavam-se em esforços muito além das obrigações militares.
O próprio Tolliver foi reservado de início, demonstrando uma desconfiança sadia
por todos os políticos, mas, à medida que prosseguíamos, mutuamente nos
aproximamos. Ele tinha o ressentimento de ter sido forçado muitas vezes a fazer
profecias militares, a fim de satisfazer o Pentágono e aos senadores visitantes e, em
sua opinião, qualquer profecia assim nada representava. Enquanto estivéssemos
prontos a despejar homens e equipamento no país, enquanto tivéssemos o poderio
aéreo e a Sétima Esquadra, poderíamos manter uma operação militar no Vietnam do
Sul por bastante tempo. Mas não havia um fim à vista, nenhuma ação decisiva a
preparar, e certamente não se tinha qualquer esperança de vitória. Apresentou
opinião interessante, que registrei em minhas notas:
- ... O que esquecem é que estamos lutando contra um dos maiores
estrategistas militares da era moderna, o general No Nguyen Giap. Foi esse o
homem que encenou - é esse o termo exato - o colapso de Dienbienphu. Sabia da
tradicional fraqueza dos franceses por uma batalha bem arrumada, de modo que
deixou De Castries reunir doze mil homens ao longo de um vale com dois aeroportos
no meio. Eles tinham tudo de que precisavam, comunicações aéreas, artilharia
pesada, tanques de guerra... a coisa completa! Sabiam, também, que Giap não
possuía artilharia e lutava com escassez de abastecimentos, de modo que a coisa
parecia fácil. Bastava a ação única, clássica, decisiva, e pronto! Mas os franceses
não contaram com os chineses. Estes forneceram duzentos canhões ao general
Giap, que os fez desmontar e carregar, peça por peça, nas costas de homens que
tinham de abrir picadas pela selva e andar às vezes 80 quilômetros por dia! Para
conseguir provisões, Giap formou uma equipe de revezamento de cules chineses,
cada qual com uma bicicleta e um saco de arroz., Montaram os canhões nas cristas
de elevações em torno de Dienbienphu, cavaram túneis por baixo dos postos
avançados dos franceses e espalharam um círculo de sessenta mil homens em
torno ao vale. Nisso, caíram as chuvas e os franceses não puderam sair do lugar!
Em cinqüenta e seis dias tudo terminou... Agora, é o mesmo Giap quem dirige a
guerra contra o Vietnam do Sul. Para ele, é a mesma guerra, pois Phung Van Cung
nada mais é do que um cachorrinho obediente da América imperialista! Mas Giap é
esperto demais para confiar na estratégia anterior e sabe que não vamos aceitá-la
também. Chega ao atrevimento de anunciar sua nova estratégia. Não ouviu ontem à
noite no rádio de Hanói? "O inimigo passará lentamente da ofensiva para a
defensiva e se verá num dilema: tem de prolongar a guerra para poder ganhá-la,
mas não possui recursos psicológicos ou políticos para sustentar uma guerra
prolongada!..." Repare como ele apresenta a questão. Giap sabe que os nossos
recursos físicos são quase ilimitados, mas politicamente o país está arrebentado...
- E é por isso que Phun Van Cung fala sempre sobre a psicologia do povo.
- Exato! E a tragédia verdadeira é que pouco podemos fazer, quanto à
psicologia ou à política, pois não as compreendemos ainda perfeitamente.
- Mas Cung as compreende?
- A psicologia, sim, mas a política é mais forte do que ele.
- Então, quem poderá dominar a política, com o tempo?
- Não serão os políticos - respondeu Tolliver com um sorriso. - Olhe para a
nossa terra! A última batalha da Guerra Civil ainda está sendo travada na questão
da segregação racial! E quem está sustentando a luta? A mesma espécie de gente
que veio encontrar aqui, politiqueiros, peculatários e aventureiros!... Vamos dormir,
Embaixador! Voltaremos a Saigon amanhã bem cedo.
Naquela noite, fiquei acordado, ouvindo o canto dos sapos nos arrozais
próximos e os passos cadenciados e tranqüilizadores dos sentinelas. Havia
esperado que minha viagem pela frente de batalha me proporcionasse idéias novas
sobre a crise e, ao invés disso, descobria que tudo convergia para a mesma pessoa
e para o mesmo problema: Phung Van Cung e a possibilidade que tinha de manter-
se no poder o tempo suficiente para completar a obra que começara tão bem.
Já vira diretamente os seus problemas e vira, igualmente, a forma monumental
de seu plano para o país. Era um construtor, e no campo era muito mais fácil
admirar-lhe a obra do que no perímetro de uma cidade complexa e desiludida. No
campo, o conflito entre budistas e cristãos era menos visível e em alguns lugares
nem existia conflito, devido à simplicidade, ignorância e, às vezes, devido à caridade
tanto do monge quanto do missionário. No entanto, uma coisa se tornara bem clara
para mim: a menos que o próprio Cung estivesse disposto a mostrar-se ao seu povo,
a atrair para sua pessoa a fidelidade da sua gente, toda sua aparelhagem de
controle e desenvolvimento de nada lhe valeriam. Poderia imobilizar por algum
tempo os homens fortes que se lhe opunham, mas nada poderia construir com
funcionários de categoria inferior, que não tinham a menor simpatia pelas
comunidades do interior ou pelas raças díspares de que se compunha a população.
E então? Era eu o fiel da balança. Estava pronto a fazê-la pender em favor de
Cung, mas ele não tinha confiança em mim e rejeitara meus conselhos. E acima de
nós pairava a sombra do General Giap, campeão de xadrez que olhava lá do norte e
via todo o tabuleiro, sabendo quais eram os peões e os bispos imprudentes e
esperando o momento em que as Tôrres cairiam diante de sua estratégia paciente.
Do ponto de vista legal, minha posição era clara. Não me cabia o direito de
julgar Phung Van Cung, ou de determinar-lhe o futuro político. Na verdade, a
pressão dos acontecimentos e circunstâncias me forçava a uma posição de árbitro
de seu destino e, repentinamente, eu era juiz, jurado, promotor e advogado de
defesa. Era seu banqueiro, sim, mas que mais poderia um banqueiro exigir do que
garantias para seu dinheiro? Era seu assessor, mas se não lhe coubesse a
liberdade de rejeitar minha orientação, nesse caso eu me transformaria em
usurpador...E, entretanto... Eu nada disso era, sendo apenas o servidor remunerado
de meu país, o instrumento de suas políticas boas ou más. Ainda assim, o meu
Presidente me dissera: "Você é mais do que um servidor e mais do que um
instrumento. É meus olhos, meus ouvidos e minha língua. Confio em que atue por
mim e aceite tanto as honras do sucesso quanto as penas do fracasso". Desse
modo, estava de volta ao tribunal, com o destino de um homem e de um país
pendente da minha sentença.
Além dos charcos, ouviram-se tiros. Depois, houve silêncio de novo, quebrado
apenas pelo canto dos sapos e a cadência tranqüilizadora dos passos dos
sentinelas, dentro da cerca de arame farpado.

Capítulo oito

Regressei a Saigon com uma pasta cheia de anotações e renovada confiança.


Estava, ao menos, capacitado para pesar as informações por mim recebidas e os
homens que as trouxessem. Não tinha havido quaisquer acontecimentos ou modifi-
cações maiores em minha ausência, mas o toque de recolher fora suspenso e
grande número de estudantes e religiosos havia sido libertado. A rádio de Saigon e a
imprensa controlada pelo Govêrno desferiam ataques às nossas sanções, mas se
tratava apenas de eco do discurso feito por Cung na Assembléia Nacional, de modo
que resolvi não responder aos mesmos. O transporte aéreo do pessoal
administrativo já se iniciara, esperando-se que estivesse terminado em duas
semanas.
O Presidente Cung cumprira sua promessa e me remetera longo documento
sobre a subversão comunista nos pagodes, que examinei cuidadosamente,
verificando tratar-se de compilação bem feita, ainda que não de todo satisfatória.
Não havia ali fatos suficientes para exigir cautela e justificar a vigilância, mas, sim,
conjeturas demais para justificar a repressão ampla exercida contra todo o Sangha.
Conferia-se importância excessiva às desordens públicas e às reuniões ao ar livre,
fomentadas tanto pela brutalidade policial quanto pela atividade subversiva. As
acusações contra Harry Yaffa e a CIA eram apresentadas com grande extensão,
mas as provas eram fracas e consistiam principalmente em confissões conseguidas
à farsa.
Entreguei o relatório a Mel Adams, cuja conclusão foi a mesma. Harry Yaffa
também o examinou, mas sua opinião divergiu:
- O relatório foi suavizado, Sr. Embaixador! Cung e seus homens sabem muito
mais do que dizem e se mostram de propósito vagos sobre as nossas atividades. Os
agentes aqui mencionados são os menos importantes.
- Então por que ele se deu ao trabalho de mandá-lo?
- Acho que o motivo é claro. Cung prometeu mandá-lo e precisava fazer isso,
para não ficar mal. A minha impressão é que seus agentes de segurança se
opuseram a um relatório mais completo, porque em minhas mãos, ou nas suas,
poderia comprometer alguns dos agentes deles. O sistema de segurança que têm é
organizado em níveis múltiplos, também, e poderia perder mais do que ganhar,
relacionando toda a informação que têm.
- Como sabe, prometi enviar uma cópia do documento a Washington. Tem
alguma objeção a isso?
- Nenhuma, Sr. Embaixador, mas gostaria de acrescentar alguns comentários.
Eu também nada tinha contra isso, estando mais interessado em saber quais as
novas informações de Yaffa. Era muito mais do que eu esperava, para tão pouco
tempo.
- ... Em primeiro lugar, George Groton seguiu de avião para Hué, no dia seguinte
ao de sua partida. Consegui uma apresentação para ele ao principal abade de lá, e,
por mais estranho que pareça, por intermédio do Reitor da Universidade de Hué, um
sacerdote católico que se demitiu depois das primeiras violências e se acha agora
num tipo de prisão em casa, na residência do arcebispo de Saigon. Groton passou
dois dias no pagode e ali ouviu falar numa organização chamada Frente de
Libertação Nacional do Vietnam do Sul. Isso coincidia com algumas informações
novas, vindas da Cambódja. Já sabíamos há algum tempo que Sihanouk estivera
em contato com exilados vietnamitas em Paris e, com a ajuda dos franceses,
procurava criar um partido neutralista. Agora, já sabemos o nome.
- Os franceses, novamente!
- Isso mesmo, mas enquanto se mantiverem encobertos e os cambodianos
fizerem as negociações, uma organização neutralista poderia perfeitamente criar
alguma fôrça local.
- E sobre a influência comunista em Hué?
- Não há grandes provas. Groton declarou haver forte sentimento nacionalista, o
que é natural, porquanto Hué é a antiga capital cultural do país. No entanto, existe
uma oposição altamente organizada ao regime Cung e propaganda bem ativa sobre
um golpe.
- Chefiado por quem?
- Pelo General Khiet, comandante do corpo no Delta, que nasceu em Hué, e
pertence a antiga e respeitada família budista.
- Nesse caso, Groton está-se saindo bem.
- Muito bem.
- Onde está ele agora?
- Na Cambódia. Demos-lhe passaporte civil e visto de turista, sugerindo que
visitasse Angkor Wat e depois conversasse um pouco com os budistas em
Pnompenh. Pode ser que encontre alguma das linhas de abastecimento que vêm
para este país.
Isso ia muito além das condições estabelecidas na nossa combinação anterior,
mas não podia objetar sem parecer que estava fazendo favor especial a Groton, de
modo que deixei a coisa nesse pé. Yaffa prosseguiu:
- Verifiquei também alquile recorte de Paris. Claude Gemelle é um
correspondente avulso que entrou aqui há cerca de um mês e permaneceu uma
semana, entrevistando diversas pessoas. Não é agente conhecido, algumas das
pessoas que entrevistou são nossos amigos, e o que escreveu sobre elas foi
substancialmente exato, de modo que o que escreveu sobre Cung deve também
corresponder à verdade.
- Talvez, mas ainda assim está muito vago.
- Sem dúvida.
- Acha que aquela informação pode significar que Cung está disposto a entrar
em acordo com o Norte, se fizermos pressão sobre ele além da conta?
- Certamente.
- Existe algum meio, menos um ataque frontal, pelo qual o fizéssemos repetir
aquelas afirmações?
- Também andei pensando nisso, mas certamente ele não as repetirá para
qualquer pessoa da imprensa local... E muito menos para um diplomata.
- Não tenho tanta certeza assim.
- Por quê?
Falei-lhe da minha conversa no coquetel com o francês, e Yaffa contraiu o rosto.
- As coisas não formam sentido, Sr. Embaixador, pois há também os
cambodianos, os exilados e a Frente de Libertação Nacional.
- Pois podem formar, sabe? Veja a posição de Cung! Está ameaçado por uma
revolta dos generais e há muitos boatos sobre uma terceira farsa para dividir o
Exército. Depois, há a manobra neutralista iniciada na Cambódia e em Paris. Aí está
uma ameaça tríplice, que poderá levar Cung, em desespero, a aproximar-se do
Norte, enquanto ainda dispõe de elementos para negociar.
- Mas se os franceses sabem disso, e aprovam, por que estão apoiando os
exilados e cambodianos?
- Uma manobra, uma finta, por assim dizer! Maior pressão sobre Cung para
levá-lo a dar um passo decisivo. Qualquer tipo de aliança entre Norte e Sul dará aos
franceses uma vantagem econômica e diplomática... Acho que não devemos
eliminar essa possibilidade.
- Se for verdade - perguntou Yaffa, de modo pensativo - e se Cung está
pensando num acordo, em que posição nos colocaremos? Vamos deixar que ele
assim faça ou devemos dar a senha e precipitar o golpe?
- Isso é questão de alta política. Terei de passá-la a Washington. Na minha
opinião preferirão o golpe. Já gastaram demais, e se comprometeram demais, para
aceitar um acordo assim, com o Tio Ho.
- Então, será melhor eu dar a esse plano a maior prioridade para os nossos.
- Faça isso, mas faça-os também compreender que preciso ter fatos. Não posso
fazer ou recomendar mais coisa alguma, na base de conjeturas.
- Sei disso. Faremos o que pudermos.
E nesse pé ficou a questão. Havia o acúmulo de cinco dias de documentos
sobre minha mesa e longo relatório a preparar quanto à viagem que fizera. Anne
Beldon e eu trabalhamos toda a tarde, entramos pela noite e a montanha de papéis
não chegara sequer à metade.
Depois de tudo quanto aconteceu, é difícil para mim descrever a relação surgida
entre nós, nas longas intimidades de nosso trabalho. Ela ainda trabalha no serviço
diplomático e não desejo vê-la exposta a escândalo ou crítica. No entanto, Anne é
parte desta crônica. Há mulheres para quem, mesmo no auge da paixão, não
podemos revelar-nos, pois imediatamente exigem posse e propriedade de nossa
alma, tanto quanto do corpo, e se recusarmos elas se tornam azêdas e intratáveis,
por serem privadas de ternura. Há outras para quem dar é a verdadeira natureza do
amor, e são as únicas com quem se pode ter intimidade, mantendo ao mesmo
tempo com elas uma relação profissional. Os cínicos podem rir e os maldizentes
murmurar, mas quando se conheceu um amor profundo e satisfatório - e tanto Anne
quanto eu o tínhamos conhecido antes - reluta-se em arrostar com as
conseqüências de uma paixão repentina. Em público, éramos cerimoniosos um com
o outro, e em particular indulgentes e gratos pelo reconforto da companhia mútua.
Não fazíamos escaramuças de palavras, nem flertávamos com os gestos sutis de
afeto, pois havia nisso um perigo grande demais para ambos, embora jamais fosse
mencionado.
Desde a morte de Gabriele, eu me tomara avarento de minha confiança, mas
me abri para Anne e ela correspondeu francamente. Falei de meus dilemas e receios
quanto a mim próprio e ela foi bastante sábia para reconhecer que também receava
por minha causa. Falei de meu afeto por George Groton e ela compreendeu o
intenso desejo, dos que não têm filhos, por se perpetuarem em alguém. Também ela
o sentira, embora tivesse aprendido a controlá-lo, sabendo-se muito mais vulnerável.
Era sua madureza de coração e espírito o que mais me atraía. Anne possuía o que
acredito que os moralistas chamam de consciência formada - uma aceitação fácil e
tolerante das loucuras humanas, mas visão clara daquelas por ela própria cometidas
e a decisão de não as cometer novamente. O seu bom-humor reagia prontamente,
bem como seu temperamento, que na maior parte das vezes conseguia controlar.
Jamais se fazia muito delicada, embora nunca descambasse para a linguagem
grosseira afetada por muitas mulheres.
Tivera algum amante depois do falecimento do marido? Não perguntei. Amava-
me? Sim, embora eu só o descobrisse tarde demais. Eu a amava? Agora sei que
sim, e me condeno por todas as horas perdidas, pelas palavras que não foram ditas
e pela saudade decente e descorada que é tudo quanto me resta hoje. No entanto,
um viúvo com 58 anos de idade, Embaixador e enviado, metido nos perigos da alta
política, não pode brincar de namorado nas salas da Embaixada! Não faria isso de
modo algum! Mas homens mais importantes do que eu, inclusive grandes
Presidentes, pensaram de outro modo. Seriam as folhas de meu laurel mais verdes,
ou meus triunfos menos vazios se eu me recusasse a colher rosas à beira do
caminho? Um homem de minha idade jamais deveria brincar com o amor. É recusar
ou aceitar, porque amanhã é sempre tarde demais!...
Logo depois do meu regresso a Saigon, verificou-se uma série de incidentes
esparsos, cada um dos quais produziu uma cadeia de conseqüências funestas.
Na manhã de domingo, um dia antes da chegada da Comissão da ONU, um
idoso monge budista saltou de automóvel em frente à catedral e se queimou diante
de todos os fiéis que saíam da missa das dez horas. Resultado: mais desordens,
mais prisões e um final para a trégua precária de Cung com os budistas.
Na noite de segunda-feira, em Cholon, atiraram uma granada dentro de bar
freqüentado por militares vietnamitas e americanos. Três massas morreram, bem
como um pára-quedista vietnamita e dois fuzileiros americanos. Além disso, houve
mais de doze feridos. Um fuzileiro cambaleou até a rua com ferimento na barriga e
foi levado a uma residência de chineses, onde os primeiros socorros prestados
rápida e habilmente pelas mulheres lhe salvaram a vida. Resultado: um telefonema
do escritório de relações públicas de Tolliver, com a sugestão de que a Embaixada
fizesse uma declaração de agradecimento. A residência era do Chinês Número Um,
alquile personagem anônimo e esquivo de quem Mel Adams me falara, logo que eu
chegara a Saigon.
Diante da importância da família e na esperança de conseguir, ao menos, um
ingresso parcial na coletividade hermética dos chineses, resolvi eu próprio
apresentar os agradecimentos. Escrevi uma carta, entregue em mãos, exprimindo
meu reconhecimento e o do Governo pelo ato caridoso, e pedi licença para visitar o
chefe da casa e oferecer um símbolo de nossa gratidão. O mesmo mensageiro
trouxe de volta uma bela peça escrita a pincel e que, no chinês mandarim mais
modelar, convidava-me a tomar chá às quatro horas da tarde seguinte.
Escolhi o presente com certo cuidado, pois devia ser coisa simples e preciosa,
mas não cara demais, a fim de não causar desagrado, embaraço e retribuição muito
grande. Finalmente, encontrei uma peça de minha própria coleção, uma bela jarra de
água em faiança cravejada, feita por Nomura Ninsei, de Awata, no século XVII.
Preparado com meu presente e um estudo de duas horas nos documentos da
Embaixada sobre as minorias chinesas no Vietnam, parti com outro motorista
dirigindo o carro e Bill Slavich a orientá-lo na frente, decidido a não se arriscar de
modo algum, receando outra tentativa contra minha vida nos quarteirões repletos de
gente de Cholon.
O Chinês Número Um me recebeu com cerimônia antiga. Era um homem idoso,
vestido com a túnica do estudioso. Era sério, comedido e dotado da dignidade
natural dos patriarcas. Proferiu a frase comum sobre a honra conferida à sua casa
indigna, e recebeu meu presente com aprovação serena. Apresentou-me a seus
filhos e netos e depois os mandou sair. Serviram chá em estilo cerimonioso e depois,
com cumprimentos e tentativas indiretas, começamos nossa conversa.
O meu anfitrião deplorava a violência e perturbação da época, lastimava o
atentado contra minha vida e os sofrimentos causados aos inocentes pelos ataques
terroristas. Depois, passamos aos problemas especiais de sua gente, que me
apresentou em seu contexto histórico:
- ... Durante mil anos, Excelência, este país foi província da China. Embora a
cultura deste país tenha sido formada pelos chineses, somos ainda encarados como
inimigos tradicionais. A primeira história do Vietnam foi escrita por chineses. Nós
introduzimos o arado e o búfalo, partilhamos nossa língua e sabedoria. Nossos
funcionários se casaram com mulheres vietnamitas. Mesmo quando Lé-Loi fundou a
dinastia vietnamita que durou três séculos e meio, fundou um mandarinato, baseado
no modelo chinês e esse sistema perdurou até que os franceses tomaram o país...
Fez uma pausa, e prosseguiu:
- Durante a guerra japonesa, perto de meio milhão de chineses veio para cá,
como refugiados ou imigrantes, e sempre
houve casamento entre nossas mulheres e homens locais. Como geralmente
acontece conosco, tornamo-nos comerciantes e banqueiros e, no tempo dos
franceses, conservamos a nossa cidadania chinesa e o direito de apelar para a
China pela proteção de nosso direito especial. Em 1956, o Governo nos concedeu a
todos a cidadania vietnamita, mas isso foi menos um favor do que uma exigência. Se
não aceitássemos essa nacionalidade, não nos poderíamos dedicar ao comércio,
indústria ou agricultura. Tivemos ainda algum governo próprio dentro das Asso-
ciações Administrativas Regionais... Mas também estas foram abolidas em 1960.
Nossas escolas foram colocadas sob controle do governo e forçadas a ensinar a
língua vietnamita...
Em seguida, manifestou sua opinião geral:
- Vejo pessoalmente essas coisas como o desenvolvimento natural do
nacionalismo da Ásia. Fatos semelhantes aconteceram na Tailândia, Indonésia e
Birmânia, de modo que não vejo qualquer vantagem em lutar contra eles, mas tenho
tido dificuldades para ensinar ao meu povo a arte da acomodação. Existe muita
crítica e descontentamento, bem como desrespeito à lei... E porque a China é hoje
um Estado comunista, a lealdade de minha gente se acha em dúvida...
Era uma afirmação franca, ainda que incompleta, sobre o problema minoritário
que atormentava todo o sudeste da Ásia. Não fazia qualquer referência às atitudes
políticas dos estudantes chineses, jovens e frustrados, bem como à atração enorme
de uma China unida e ressurgente. Nada dizia sobre a migração ilegal e a infiltração
de agitadores comunistas, nem mencionava pressões, propinas e subornos políticos
por toda a parte, mas eu sabia dessas coisas e o Chinês Número Um tinha
consciência disso, de modo que ficavam resguardadas as aparências e pude fazer
uma pergunta menos tendenciosa, porém não menos importante.
- O Sr. é o chefe desta coletividade e por tudo quanto me contaram a seu
respeito, o Sr. realizou um grande serviço, mantendo-a unida, controlada e livre de
qualquer compromisso político por demais perigoso. Gostaria de conhecer sua opi-
nião pessoal sobre o Presidente Cung e suas doutrinas políticas.
Examinou a pergunta por alguns momentos, e depois respondeu:
- Estamos tomando chá em minha casa. Portanto, esta é uma conversa
particular e confidencial, não?
- Decerto.
- Permita então dizer, Excelência, que se nosso Presidente fosse menos francês
e mais chinês em sua visão, conseguiria melhores resultados. Como os franceses,
ele está bem versado na aparelhagem da autoridade. Nós também estamos, mas
compreendemos que essa aparelhagem só tem o valor que têm os homens que a
dirigem, e que são as pessoas, no final, que têm de ser apaziguadas. Eu tenho
minha própria aparelhagem, os grupos familiares, sociedades secretas e asso-
ciações coletivas de bem-estar, mas se eu, que estou velho, consigo ainda dirigir, é
porque me acho sempre à disposição do povo... Como vê, essa é a fraqueza do
Presidente. Não é conhecido, e todos os patifes em postos públicos afirmam falar
em nome dele. Desse modo, como pode o povo perceber a diferença?
- Ele é honesto?
- Sei que sim. Fiz acordos com ele e sempre os cumpriu. Já se sentou aí, onde
o Sr. está sentado agora, e planejamos juntos coisas boas para meu povo, hospitais,
escolas, proteção contra corrupção policial, oportunidades da administração civil.
Ajudei-o a formar a Associação Cultural Vietnam-China e a conseguir colaboração
econômica com Formosa. Nunca lhe pedi mais do que pudesse prometer, nunca
prometi mais do que podia fazer, de modo que nos respeitamos mutuamente. Não
somos amigos, mas ele será sempre bem-vindo nesta casa.
- Como vê a atitude dele contra os budistas?
O Chinês Número Um encolheu os ombros e enfiou as mãos compridas nas
mangas da túnica.
- Eu sou um velho seguidor de Confúcio. Desconfio de todas as religiões porque
vejo que, sem exceção, levam em si sementes de discórdia e violência. Às vezes
produzem santos homens, mas estes são sempre os que se dedicam a servir, às
boas obras, e não à discussão. Acho que o Presidente cometeu muitos erros, mas
os mesmos foram ampliados pelos que têm proveito político neles. Acredito que
cometa ainda outros, porque o isolamento cria a suspeita, e esta conduz à ação
imprudente.
- E que pensa de nossas doutrinas na Ásia?
Pela primeira vez ele sorriu e respondeu à minha pergunta com outra:
- Deseja que eu seja educado, Excelência, ou que lhe diga a verdade?
- A verdade.
- Pois, então, eis como a vejo: setecentos milhões de seres humanos não podem
ser desprezados como se não existissem. Não podem viver fechados dentro de uma
jaula e privados do comércio normal com o resto do mundo. São antigos,
experientes e orgulhosos demais para isso. Meus ancestrais vieram ter a este país
na época dos Mings. Serviram como mandarins sob Lé-Loi e ainda estou aqui, como
o Chinês Número Um, na segunda metade do século XX. Isso é uma continuidade
monumental e não pode ser desfeita, quer pela revolução interna, quer pela pressão
externa... Não se trata de questão política, de um debate temporário entre con-
fucionistas, marxistas ou democratas americanos. Trata-se de toda a história da
Ásia, que se escreve e reescreve todos os dias, assim como o mar escreve nas
areias da praia...
Conversamos um pouco mais, mas tudo quanto se podia dizer já fora dito.
Quando me levantei para sair, entregou-me o seu presente, um pequeno disco de
jade translúcido, em estojo de seda e sândalo. Havia caracteres inscritos no escrínio,
intrincada e magnificamente esculpidos, e o Chinês Número Um os traduziu do
Analecto Confuciano:
"Alquile que tem um dever moral não cede, mesmo diante de seu senhor".
Duas noites depois, fui jantar com meu colega australiano, que sentiu prazer em
dizer que se tratava de uma reunião de "tipo doméstico". Esperei uma noite cacete,
mas lhe devia uma cortesia e preparei-me para aturar a estopada. Com surpresa, fui
encontrar um pequeno grupo de gente espirituosa e irreverente, que com bom-
humor perfeito me tirou das alturas e me fez sentir humano novamente. Lá estava
meu amigo dinamarquês, o das penas de pato e problemas de exportação, bem
como o chefe da Missão Militar Australiana, que passara mais de dez anos em
guerrilhas na Birmânia e Malaia mas cuja conversa versava sobre jóias, manuscritos
em páli e coloniais exóticos que ainda apareciam nos lugares mais estranhos. Havia
uma atraente morena, com pouco mais de trinta anos e que auferia a renda de um
pequeno Picasso, pintando os retratos de notabilidades da Tailândia; e a esposa
suíça de meu colega que, a julgar pela refeição servida, era cozinheira de Cordon
Bleu. Meu lugar era entre a esposa do dinamarquês e a esposa inglês a do técnico
em guerrilhas, tendo à minha frente um personagem queixudo e bem-humorado, que
descobri ser um romancista andarilho de grande reputação e cujos livros eu nunca
lera.
Felizmente, falava-se pouco em diplomacia, e me vi desafiado a sair da solidão
e contribuir para a conversa, que ia da cozinha francesa às porcelanas, Karl Barth, o
preço exorbitante de objetos artísticos de má qualidade e as estrepolias de um par
de famosos astros cinematográficos. Meu anfitrião contentava-se em deixar a noite
encontrar o seu rumo, e o escritor era ouvinte muito experimentado, que levantava
as lebres e deixava os conversadores persegui-las numa dúzia de direções ao
mesmo tempo. Perguntei-lhe o que fazia naquele beco incômodo das matas, e
respondeu que estava empenhado num estudo do movimento ecumênico e das
relações entre as religiões cristãs e não-cristãs. Era católico, e os acontecimentos
recentes no Vietnam do Sul haviam-no perturbado profundamente. Fora fazer
investigações pessoalmente. Era australiano de nascimento e a Embaixada fazia
suas apresentações. Tinha muitos leitores na França e o Presidente Cung concor-
dara em lhe conceder uma entrevista e encaminhá-lo às demais fontes oficiais de
informação, e o escritor se mostrava reconhecido pela cortesia, mas também era
arguto e percebia que Cung poderia querer usá-lo a fim de contrabalançar o relatório
da Comissão da ONU. Perguntei se pretendia publicar qualquer parte da informação
que recolheria, e sua resposta foi de que, sendo romancista e não jornalista, um
romance poderia levar uns dois anos para aparecer. Além disso, era avesso às
reportagens e não queria emprestar seu nome a quaisquer análises apressadas de
uma situação complexa. Depois de ter passado por uma indigestão de jornalistas
internacionais e oráculos semanais, achei reanimadora essa opinião. Abordei-o
quando tomávamos café e perguntei, sem maiores rodeios, se podia fazer-me um
favor.
- Se puder, certamente.
- Para quando está marcada sua entrevista com o Presidente Cung?
- Para as dez e meia de amanhã. Por quê?
- O Sr. lhe faria uma pergunta que eu lhe desse?
- Sim.
- Poderia depois me dizer qual foi a resposta dele?
- Não, creio que não o faria.
A resposta era muito cortês, e sorriu enquanto a dava, mas acrescentou:
- Sou ciumento de minha profissão, sabe? Não sou agente secreto. Sou amigo
dos Estados Unidos, e já vivi lá. Gosto do povo e do país, mas o que o Sr. pede me
põe em posição falsa... Já se eu pudesse colocar minha Embaixada em cena...

- E por que não? Acredito que Manson esteja tão preocupado com isso quanto
eu.
Fiz sinal a Manson, que veio juntar-se a nós, e lhe falei de meu pedido e da
objeção apresentada pelo escritor. Manson disse, de modo muito simpático:
- A questão é de nosso mútuo interesse e a resposta importante para todos nós.
- Está certo - disse o escritor. - E qual é a pergunta?
- Cung pretende, agora ou no futuro, ou em qualquer circunstância, entrar em
relações com o Vietnam do Norte?
Houve uma pausa, em seguida Manson deu a sua aprovação, mas acrescentou
alguma coisa:
- Talvez seja melhor o Sr. explicar o sentido da pergunta, Sr. Amberley.
- E o que depende da resposta, também - disse o escritor. - Estou perfeitamente
pronto a aceitar a responsabilidade por um relatório preciso, mas as conseqüências
já são outra coisa, de modo que desejo sua sinceridade no assunto.
O homem era por demais inteligente e bem informado para ser iludido por uma
meia-verdade, de modo que jogando com a opinião de Manson sobre seu
convidado, contei-lhe a coisa toda, até o ponto de minha conversa no coquetel da
Embaixada inglesa. Manson se mostrou bom aliado, dizendo que também ele ouvira
o mesmo tipo de conversa e gostaria de obter alguma confirmação. O novelista
ouviu em silêncio, e depois pensou na proposta por alguns momentos. Finalmente,
deu-nos uma resposta reservada:
- Compreendo de que precisam e porque precisam. Tenho deveres junto a meu
governo e uma atitude amistosa para com o da América. Mas parece que se eu
conseguir uma certa resposta, ela poderia precipitar uma certa ação. Estou certo?
- Sim.
- E se eu deliberadamente alterasse a resposta?
- Não acredito que o fizesse.
- Ou se a apresentasse de modo dirigido?
- Acho que o Sr. é inteligente demais para fazer isso. De qualquer modo,
nenhuma ação poderia ser empreendida na base de testemunho isolado, prestado
por fonte não-americana. A CIA verificaria seu relatório junto a seus próprios
informantes.
- Neste caso, apresentarei sua pergunta a Cung e tentarei ser claro na resposta.
Até as cinco da tarde de amanhã lhe mandarei uma transcrição escrita da entrevista.
- Obrigado.
Ele deu de ombros, tomou um gole de brandy e teve um sorriso malévolo.
- Quando era mais mocho, acreditava no desprendimento total do artista. Agora,
quando já sou bastante conhecido e independente para viver sem compromissos,
vejo-me todos os dias envolvido numa decisão moral. Esta é bem difícil, e se errar
não poderei perdoar-me facilmente.
- Ainda assim, decidiu com bastante rapidez.
- Tenho certas vantagens, Embaixador. Sei o que as palavras significam e as
respeito. Meu oficio é solitário. Olho o mundo com meus olhos, assumo meus riscos
e pago por minhas faltas. Compreendo o que quer dizer condenação e há muito
tempo aprendi que nunca se pode tomar de empréstimo a absolvição alheia.
Na manhã seguinte, os cambodianos estavam à minha porta, com irados
protestos e exigências de reparações. Uma unidade vietcong fora perseguida além
da fronteira, pela infantaria e por helicópteros, uma aldeia cambodiana fora destruída
por foguetes e havia vários mortos e feridos. Prometi investigar o incidente, e depois
de quarenta minutos de conversações enérgicas eles se foram.
Tratava-se de mais um dos amargos paradoxos daquela guerra corrosiva. Na
verdade, a neutralidade cambodiana fora violada, mas também na verdade os
cambodianos quebravam a sua neutralidade todos os dias, permitindo a passagem
de armas e homens pelo rio Mekong e oferecendo abrigo aos incursores que
atravessavam aquela fronteira à vontade. As verdadeiras vítimas eram os habitantes
de aldeias e povoados, já sepultados e cujo epitáfio único seria uma pilha de
recortes de jornal e correspondência diplomática. No entanto, numa pequena aldeia
tinham sido plantados, mais uma vez, os dentes do dragão, e a colheita cresceria,
inevitavelmente, transformando-se depois em homens armados...
Ao meio-dia, Harry Yaffa chegou com dois relatórios. Um deles vinha da CIA em
Hong Kong, onde um vietnamita, ex-funcionário do palácio presidencial e conhecido
defensor da "terceira farsa" estivera algum tempo sob observação. Fizera finalmente
contato com funcionário do Banco da China e logo em seguida estabelecera com o
Banco Francês de Comércio um crédito de meio milhão de libras esterlinas. Dois
dias depois, apresentara a um correspondente americano sua descrição bastante
colorida de intrigas no Palácio e dissensões no Alto Comando, oferecendo-lhe
quinze mil dólares americanos para que lhe tirasse a esposa e a família de Saigon
dentro de seis semanas.
O segundo relatório vinha de Vientiane, no Laos, onde um funcionário subalterno
do Ministério de Relações Exteriores do Vietnam do Sul se encontrara com
conhecido agente norte-vietnamita. Não havia informações sobre o assunto de sua
conversa, mas, duas horas depois, o agente partira da capital, em avião fretado a
um contrabandista francês de ópio.
Na complexa configuração de tramas e contragolpes, os dois incidentes
poderiam ter uma dúzia de interpretações diferentes, mas Yaffa estava convencido
de que se entrosavam com as nossas opiniões de que havia uma manobra para
dividir o Exército, formando e financiando uma terceira farsa que mais tarde seria
compelida a juntar-se aos vietcongs, e que Cung estava envolvido em negociações
experimentais, pelo menos, com o Governo de Hanói.
Quando falei com Yaffa sobre minha conversa no jantar da véspera, ele se
mostrou exultante e me pediu que o chamasse assim que o relatório fosse
apresentado. O romancista foi tão rápido quanto eu esperara, e exatamente às cinco
da tarde se apresentou em meu gabinete com cópia de sua entrevista com o
Presidente Cung. O original, disse sorrindo, fora entregue ao embaixador
australiano, de modo que as cortesias internacionais pudessem ser respeitadas.
Quando lhe pedi que esperasse e me fizesse alguns comentários, depois de eu ter
lido o documento, recusou-se cortesmente. Prometera registrar um diálogo, seu
relatório continha um comentário e resumo, e não queria fazer mais do que isso. Era
um ponto de vista bastante razoável, e eu agradeci e deixei-o partir. Invejava sua
independência e direito a limitar suas próprias responsabilidades, de modo tão
preciso. Já o meu encargo era quase ilimitado, mas eu não tinha direito algum a me
eximir dele.
Verifiquei que a transcrição era um documento admirável, simples, conciso e
rigorosamente limitado aos termos de referência. Reproduzo-o nesta crônica,
quando mais não seja para mostrar a clareza com que a questão final se apresentou
para mim.
P - Está claro que a questão budista ainda não se acha resolvida. Espera mais
alguma demonstração e atos de martírio, da parte dos budistas?
R - Se os houver, saberemos como agir. Mas a atitude americana conduz a
esse tipo de fanatismo... Os americanos estão destruindo a psicologia de nosso
povo. Eles não nos compreendem, mas nós compreendemos nossa gente, sabemos
como pensa e reage. Os americanos falam de democracia, mas a democracia de
que falam não serve para este país.
P - Que forma de governo acha melhor para o Vietnam do Sul?
R - A que temos agora. Uma autoridade central forte, que possa sustentar a
guerra e desenvolver o país... Se isso é ditadura, nesse caso precisamos de
ditadura, mas estamos lançando os alicerces para a democracia no campo... A
cidade [Saigon] nada significa para nós. Se for preciso, nós a abandonaremos de
todo e a organizaremos em povoados estratégicos, como fizemos no interior. O povo
na cidade está descontente, estragado, intoxicado pelo individualismo ocidental.
Nossa gente precisa desenvolver-se dentro da estrutura da família e da coletividade,
e das limitações de sua história, economia e ordem social. a isto o que entendemos
por personalismo.
P - Ainda aceitando as limitações naturais impostas pela história e pela ordem
social, não estarão sendo impostas limitações antinaturais e artificiais, como as
medidas repressivas contra os budistas e estudantes, por exemplo?
R - Decerto impomos limitações. Os monges budistas não querem lutar na
guerra, de modo que não devem ter o direito de interferir em seu curso. O Sangha
constitui apenas uma parte pequena da nação. Por que deveria ter direito a de-
terminar todo o curso de nossa história? Os estudantes, rapazes e massas,
deveriam estar prontos a participar em nossa luta contra os vietcongs. Por que
podem pleitear o direito a perturbá-la com demonstrações de desobediência? A
atitude americana fomenta essas coisas. Se quisermos vencer, o povo tem de ser
desintoxicado.
P - É óbvio para todos que, embora os soldados americanos estejam morrendo
nessa guerra, embora os vietnamitas estejam lutando com dinheiro e armas
americanos, existe agora hostilidade aberta entre o regime e os Estados Unidos..
Que medidas podem, ou devem, ser tomadas para sanar esse rompimento?
R - As medidas são claras. Que os americanos nos dêem armas, dinheiro,
helicópteros e transportes militares, e nós próprios continuaremos a guerra. A guerra
é nossa, não deles. Sou eu quem planeja a estratégia, o responsável pela
construção de oito mil povoados estratégicos. No entanto, todas as vezes que quero
usar um helicóptero, tenho de pedir permissão aos americanos.
P - O Sr. quer que os americanos saiam do país?
R - Exatamente.
P - Se o Sr. tivesse tudo quanto quer, armas, dinheiro, transportes e os
americanos fora do país, quanto tempo seria preciso para ganhar a guerra?
R - Dois ou três anos, no máximo.
P - E se os americanos ficassem, de quanto tempo precisaria?
R - Só Deus sabe.
P - Quando tiver ganho a guerra, que tipo de relação o Sr. vê com o Vietnam do
Norte?
R [em tom raivoso] - Nesta própria sala, funcionários americanos me acusaram
de manter relações com Ho Chu Minh. Eu lhes disse que os americanos fizeram
tudo quanto era possível para me forçar a juntar-me com ele, mas continuei fiel a
meus objetivos e ao país.
[Isto foi acompanhado por outra longa dissertação contra os métodos e doutrinas
dos Estados Unidos.]
P - Vejamos a coisa de outro modo. Como estrategista principal da campanha, o
Sr. deve estar interessado no que se passa no Norte, ainda que apenas do ponto de
vista das informações militares.
R - Naturalmente.
P - Como vê a situação de Ho Chi Minh e do Vietnam do Norte?
R - Há três grupos principais no Partido Comunista do Norte. Existe o Exército,
que depende da China quanto a armas, abastecimentos e treinamento. Há os que
seguem a linha branda de Moscou, mas não têm grande importância. Existe outro
grupo formado pelos que se tornaram comunistas por motivos nacionalistas, antes e
depois de Dienbienphu.
P - É esse evidentemente o grupo que mais lhe interessa.
R - É lógico.
P - Já conseguiu penetrar em suas fileiras? Tem alguma relação com eles, de
um ponto de vista de informações militares ou qualquer outro?
R - Sim, mas não fui eu quem tomou a iniciativa.
P - Suponhamos que os americanos não lhe dêem o que o Sr. quer, continuem
com as sanções e sua oposição declarada à sua política. Que fará, nesse caso?
R - Nesse caso, terei de tomar as medidas necessárias para dar um fim à longa
agonia de meu país.
P - Tais medidas acarretariam um acordo com Ho Chi Minh?
R - A política é a arte do possível. Tenho de examinar todas as possibilidades, e
é o que estou fazendo agora.
COMENTÁRIO - Nessa altura o Presidente Cung mudou abruptamente de
assunto e passou a outra longa dissertação sobre o personalismo, erros e
maquinações dos americanos. Consegui fazer mais uma pergunta antes de me
retirar.
P - Que pensa sobre o Sr. Maxwell Amberley?
R - Não há sinal algum de moralidade no que ele está fazendo. Pelo menos,
com seu antecessor existia um ponto de vista moral. Nesse homem, não existe
moralidade alguma, ou qualquer sinal de pensamento religioso.
RESUMO - Minha impressão final sobre a entrevista é de que Cung desejou me
usar como disseminador de seu forte sentimento anti-americano. Deixou claro,
também, que a questão de possíveis relações com o Norte era uma ameaça não
muito velada do que poderia acontecer, se o regime não conseguisse o que quer, a
neutralização do Vietnam do Sul por um acordo com o Norte, no qual se diria:
"Faremos os americanos deixarem o país se vocês terminarem a guerra". Não tenho
meios de julgar se Cung realmente julga possível um acordo assim, ou se poderia
sobreviver ao mesmo, caso se efetivasse...
Chamei Harry Yaffa ao meu gabinete e lhe dei o documento para examinar. Leu
em silêncio, depois depositou-o em minha mesa com um gesto expressivo.
- Acho que isso resolve o caso! É bem claro e confere com toda a informação de
que dispomos. Temos os generais em revolta, um possível motim no Exército e uma
clara ameaça de Cung, de que jogará sozinho no setor da esquerda... Acho que
devemos agir, e bem depressa.
- Concordo que talvez tenhamos de fazer isso, mas é Washington que tem de
resolver o caso.
- Vai mandar relatório?
- Dentro de quarenta e oito horas. Mas preciso fazer duas coisas antes.
- Quais são?
- Em primeiro lugar, quero que esse documento circule por todas as seções da
Embaixada e também passe por Tolliver e seu pessoal. Depois, quero uma
conferência de todo o pessoal aqui, amanhã à noite. Enquanto isso, vou visitar Cung
e mostrar-lhe essa informação.
- Acha que isso é prudente?
- É necessário.
Ele encolheu os ombros, em sinal de dúvida.
- Nesse caso, será melhor protegermos o homem que nos deu o documento.
Devemos tirá-lo do país bem depressa.
- Deixarei isso por sua conta, Sr. Yaffa.
- Vou também avisar aos generais, caso Cung resolva apertar o país de repente.
As cabeças deles estão em jogo, como sabe.
- Sei. Faça o que for preciso.
Depois que ele saiu, fiquei pensando nas palavras do talismã de jade e vi a luz
tomar-se rapidamente escuridão.
Trabalhei até tarde naquela noite, e dormi mal em seguida. Sonhei que estava
sentado, nu e sozinho, num espaço aberto tão liso quanto uma mesa de bilhar.
Havia luz, mas não conseguia ver de onde provinha. Contra essa luz, negras e
distantes, estavam formas retangulares altas, como edifícios de apartamentos.
Enquanto observava, ouvi uma música leve de palheta, como o som de samisens ou
biwas japoneses e enquanto essa música era tocada, as formas começaram a dan-
çar, inclinando-se, girando ora num canto, ora noutro. A música aumentou, as
formas que dançavam chegaram perto de mim, até que num momento de clímax
insuportável, rodearam-me, fechando-se, então, uma com outra, e me encerrando
numa peça sem telhado, de modo que ainda podia ver a luz lá em cima. Reinava
então o silêncio; o silêncio, a luz e eu, sentado de pernas cruzadas no chão e
olhando a luz lá em cima. Depois, por movimentos minúsculos, as paredes come-
çaram a avançar. A princípio, pensei que era ilusão causada pelo silêncio e tensão
de contemplação. Olhei a parede à frente. Estava imóvel. Olhei para o lado, e a
parede de trás estava mais perto. Enquanto observava, as da frente, da direita e da
esquerda adiantaram-se em minha direção. Olhei para cima, e a luz estava menor. O
terror se apoderou de mim e fiquei hirto, com os olhos fixos na luz que diminuía. As
paredes se aproximaram mais, a luz se reduziu pouco a pouco, até que senti a
primeira pressão nas costas, cotovelos e joelhos. A pressão aumentou, e eu sentia
já a carne e músculos sofrendo. A luz era cada vez mais minguada e repentinamente
gritei de pavor, e acordei sedento e suando, no quarto iluminado pelo luar. Olhei o
relógio - eram quatro da manhã. O pavor do pesadelo ainda me abalava; vesti-me
com roupas limpas e trabalhei no escritório até a hora do café.
Não era preciso um José para interpretar meus sonhos, pois eu sabia
exatamente o que significavam. Eu, juiz, júri, promotor e advogado de defesa, estava
prestes a ser julgado. Bem depressa as provas seriam apresentadas, os debates
encerrados e emitido o veredicto para Maxwell Amberley, enviado extraordinário.
Despido da roupagem de seu cargo, ele se poria de pé, em tribunal aberto, para
ouvir o julgamento imparcial, e depois disso viria a sentença - confinamento perpétuo
na solidão do eu secreto... Naturalmente, tudo aquilo era bobagem, que se
desvaneceria com o primeiro raio de sol e a primeira xícara de café. Maxwell Gordon
Amberley não estava em julgamento - era o homem sentado no trono dos
poderosos, tendo nas mãos a vida, a morte e o domínio dos outros. Seria justo, é
claro, e mesmo misericordioso, mas era homem encarregado de decidir, sem se
acovardar por medo ou inclinar-se ao favor. Seria magnânimo, mas prudente, faria
admoestações, mas sem rancor. Grandes questões lhe tinham sido confiadas, e ele
se comportaria magnificamente, como árbitro de todos os ontem e arquiteto do
glorioso amanhã. Amém!... E mais uma xícara de café, Anue, por favor. O dia vai ser
dos mais trabalhosos!
O encontro com Cung estava marcado para as onze da manhã, e às nove e
meia chegou o massagista. Estive deitado por uma hora sob suas mãos macias e
fortes, enquanto a tensão se escoava de meus músculos e eu punha em ordem os
pensamentos para aquela conferência final. Era, mesmo, a final, e eu sabia disso. O
tempo se esgotava para nós ambos, a roleta já girava e o crupiê anunciava, com sua
voz de papagaio: "Rien ne va plus!" A bolinha passava do vermelho para o preto,
voltava ao vermelho, enquanto Cung e eu estávamos ambos apostando contra a
banca e um contra o outro.
Uma coisa eu determinara: seria absolutamente sincero. Não usaria a
linguagem reservada do ofício, e diria toda a verdade que conhecia. Reconheceria
meus erros e enganos, confessaria, onde a confissão se justificasse, minha
ignorância e incapacidade. E chegado o momento de agir, não me furtaria a isso,
também... Um grande hurra para a minha retidão puritana! Só uma coisa eu não
podia admitir: minhas apostas estavam na mesa, mas eu era também a banca, e a
banca tinha de ganhar, senão tudo, pelo menos na percentagem. Mas que
desejavam os senhores, cavalheiros e apostadores? Vocês expulsaram os
franceses, os japonêses faliram e o jogo chinês não lhes agrada... Eu era o único
banqueiro da cidade! Minha pele estava oleada, os músculos bem flexionados, o
espírito estava claro e eu esquecera os pesadelos. Nessa vacuidade corajosa, parti
para o Palácio.
Cung me recebeu com chá verde e cortesia indiferente. Desta vez, não teve
qualquer preâmbulo, mas desafiou-me abertamente:
- Tem alguma coisa a me dizer, Sr. Embaixador? Estou pronto a ouvir.
O meu prólogo estava bem preparado e o recitei com tanta simplicidade e calma
quanto possível.
- Nossa última conversa, Sr. Presidente, terminou num impasse. Agora
chegamos, os dois, a uma crise. Quero encerrar a crise, se puder, e farei todos os
esforços possíveis para isso. Na semana passada, visitei as frentes de batalha e vi,
com os meus olhos, o quanto o Sr. realizou por este país. Reconheço
espontaneamente as suas realizações e as admiro muito. Admiro também o Sr.,
embora tenhamos tido divergências. Respeito a sua concentração de propósitos e a
sua integridade pessoal. Reconheço os erros de nossa política e admito minha
miopia em muitos pontos. Por outro lado, espero que reconheça as dificuldades e
problemas de nossa posição neste país, onde podemos orientar mas não podemos
lutar, onde devemos pagar mas não controlar, onde não temos uma voz em seu
Governo mas ainda assim temos de partilhar a culpa pelos seus erros. Espero estar
sendo claro, Sr. Presidente.
- Admiràvelmente claro, Sr. Embaixador. Por favor, prossiga.
- Reconhecer todas essas coisas, no entanto, não modifica um só ponto de
nossa situação ou da sua. Deixe-me mostrar-lhe a forma real das coisas, Sr.
Presidente. Os seus generais mais graduados estão em revolta e planejando
derrubá-lo. O seu Exército, ou pelo menos uma parte dele, está à beira do motim. Os
seus administradores estão prontos a desertar. Os budistas lhe são hostis, os
católicos acham-se divididos entre sua fidelidade a Roma e suas esperanças no Sr.
como libertador nacional. O Sr. não conseguiu atrair o povo comum, quer para seus
objetivos, quer para sua própria pessoa. O Sr. nos insultou e afastou, a nós que
somos seus amigos, e ainda assim não quer fazer qualquer concessão, um gesto
sequer, no sentido de uma recomposição. Mais do que isso, sabendo-se isolado, o
Sr. faz ameaças, ameaças repetidas, Sr. Presidente, de que embarcará noutra
aventura perigosa: um pacto com Ho Chi Minh, no qual espera conseguir uma
segurança que não pôde obter pelas armas, diplomacia ou simples fidelidade! Venho
aqui hoje para lhe dizer que estamos quase no fim dessa estrada onde marchamos
juntos. Ainda há tempo para voltar e tomar outro caminho, mas se o Sr. se recusar a
isso, marchará sozinho - e não há grande garantia de que possa sobreviver!
A seu favor, diga-se que recebeu muito calmamente a advertência. Esteve
sentado bastante tempo, silencioso, de olhos cobertos, encarando as costas de suas
mãos manicuradas. Quando falou, foi no estilo seco do conferencista, dedicado à
persuasão da lógica pura.
- Sr. Embaixador, aprecio a fraqueza de suas palavras iniciais, e acredito na
sinceridade de seus cumprimentos e intenções. Por isso, vou tentar ser franco com o
Sr. Fala em revoltas, tramas e dissensões. Sei que existem. Conheço melhor do que
o Sr. as pessoas envolvidas nelas. Mas, olhe em derredor! Quem está governando
aqui? Sou eu! Não é com facilidade, reconheço! Não é sem ansiedade, mas estou
governando e nas zonas em luta, que ordens dirigem o curso da campanha? As
minhas! Reconhecerá isso, acredito.
- Reconheço, mas existem...
Ergueu a mão para me interromper.
- Não, por favor, espere! O Sr. diz estar convencido de minha sinceridade e
concentração de propósitos.Pode dizer o mesmo quanto ao general Dao, ou ao
general Khiet, ou quanto a meu amigo Tho, no Norte? Que sabe a respeito desses
homens, a não ser o que eles próprios lhe contaram ou o que ouviu de outras
pessoas? São bons soldados, sim! Mas, economistas? Administradores públicos?
Financistas? Educadores? Eu vivi com esses homens, tramei com eles, também,
contra os franceses e japoneses. Eu os conheço! Digo-lhe uma coisa: Giap, no
Norte, vale cinqüenta deles! E o Sr. acha que pode formar um governo com esses
homens!... O Sr. deixaria o general Tolliver fazer o seu próprio trabalho, ou o
elegeria Presidente dos Estados Unidos? Examine as contas bancárias deles e a
minha! Sou mais pobre do que eles, acredite! Não encontrará um só de seus dólares
colado em meus dedos, mas nos deles verá muitos! Que deseja, Sr. Embaixador? O
que quer?
- Uma harmonização das divergências. Entre o senhor e os budistas, entre o Sr.
e os generais! Estou pronto a oferecer-me como mediador, se o Sr. desejar.
- Eu me esforço por fazê-lo ver, Sr. Embaixador, que esse é o processo
ocidental, não o nosso. Eles adorariam vê-lo servir de mediador, mostrar-se-iam
brandos e razoáveis, e durante todo o tempo estariam dizendo: "Cung já está batido.
Teve de chamar os americanos para ajudá-lo. Por isso, podemos pedir-lhe o dedo
hoje, e amanhã lhe tomaremos o braço!"
- Ainda isso poderia ser melhor do que o motim e a rebelião!
- Não!
- Por que não?
- Porque uma concessão cria outra ameaça, e outra em seguida. "É melhor uma
prova de farsa do que um desperdício lento.
- O Sr. poderá não sobreviver a ela.
- Se eu cair, Sr. Embaixador, a América sairá do Vietnam do Sul. Talvez não
imediatamente, mas sairá, mais cedo ou mais tarde! Vocês são estrangeiros, comem
os amigos como se fossem uvas, e depois cospem as cascas porque o gosto é forte
demais.
- Diga-me, então, uma coisa, Sr. Presidente. Que deseja fazer?
- É muito simples. Quero lutar. Quero terminar a guerra e dar paz ao meu povo.
- Estamos aqui para ajudá-lo nisso.
- Isso é o que acreditam. Na verdade, dão-nos uma arma e destroem, em
seguida, nossa vontade de lutar. Intoxicam o povo com idéias ocidentais de
individualismo e uma liberdade para a qual não estamos preparados.
- Então, repito a pergunta: o que deseja?
Dêem-me armas, dinheiro, transportes, aeronaves, e eu terminarei a guerra
ràpidamente. Mas vocês têm de se retirar!
- Não podemos. O Sr. sabe disso. Já estamos por demais comprometidos.
- Então, no fundo, são como os franceses, que precisam manter um pé na sala-
de-estar para provarem que são amigos. Que é isso, senão colonialismo à antiga?
- É outra coisa, Sr. Presidente. Vi armas que lhes demos voltadas contra o seu
próprio povo. Podemos fechar os olhos a isso?
- Mas fecharão os olhos quando os generais vierem me matar com essas
mesmas armas americanas, não é verdade? Ou o Sr. Harry Yaffa estará presente
para puxar o gatilho?
- A discussão não está adiantando, Sr. Presidente. Está deixando os fatos de
lado. O Sr. não pode sobreviver sem fazer concessões, mas não concede, não
negocia, não aceita mediação. Quer nossas armas e dinheiro, e não nos quer... Isso
fecha todas as portas... menos uma.
- E qual é ela?
- O Sr. poderia renunciar ou aceitar um Comitê de Governo tendo-o por
Presidente.
- Renunciar?!
A idéia pareceu causar-lhe verdadeiro espanto.
- Pede a seu Presidente que renuncie porque os republicanos discordam de sua
política?
- A bem dizer, pedimos, sim, de quatro em quatro anos! - Eu não farei! Nunca!
Não me vou retirar como Bao Dai, e ver este país ser destruído!
- Então, todas as portas se fecharam, menos aquela que o Sr. tenta abrir em
segredo: a porta para o Norte!
- Isso lhe dói, Sr. Embaixador?
- Profundamente. Acho uma loucura monstruosa!
- Por que loucura? - disse com um sorriso. - Sobrevivi aos americanos, e
sobreviverei a esses generais venais que tenho. Por que não sobreviveria a uma
aliança com Ho Chi Minh? Pelo menos, falamos a mesma língua.
- É isso o que deseja, por Deus?
- Não. É o que vocês poderão me forçar a aceitar.
Lutei com ele durante mais de uma hora, mas não consegui demovê-lo. Não
daria coisa alguma, não mudaria coisa alguma, não negociaria coisa alguma.
Finalmente, perguntou:
- E que vai fazer agora, Sr. Embaixador?
- Informarei a Washington e aguardarei instruções.
Deu de ombros, andou até a estante e percorreu os títulos dos livros, até
encontrar alquile que procurava. Abriu-o, e depois se voltou sorrindo para mim:
- O Sr. é admirador das coisas japonesas, Sr. Embaixador. Eis algo que talvez
lhe interesse: três grandes homens do Japão se viram diante de um cuco relutante.
Nobunaga disse: "Matarei o cuco, se ele não cantar". Hideyoshi disse: "Convidarei o
cuco a cantar". Iyeyasu disse: "Esperarei até que ele cante... " Esse é o enigma, Sr.
Embaixador. Qual deles estava certo?... E qual deles é o Sr.?

Capítulo nove

Às sete horas da noite realizamos uma conferência especial na sala à prova de


som da Embaixada. Tratava-se de conferência convocada, onde cada um devia
conhecer perfeitamente sua partitura e executá-la, nota por nota, até o acorde final.
Meu papel era o regente, a quem cabia conhecer de cor toda a peça, até as
menores notas graciosas, pausas e cadências. Devia reger, disciplinar e interpretar,
conseguir significado e harmonia no que, de outra forma, seria absurdo e cacofonia.
Já regera antes essa orquestra, no dia de minha chegada, e nessa ocasião os
executantes se tinham mostrado cautelosos e reservados. Agora, a coisa era
diferente, pois já me tinham visto ensaiando a partitura difícil da Sinfonia de Saigon.
Sabiam que ela estava ruim e a execução imperfeita, mas pelo menos eu havia
apanhado o ritmo e o sustentava, em meio a assobios e vaias e uma chuva de
batatas arremessadas da platéia, e naquela noite os executantes dependiam mais
do que nunca de mim.
Enquanto aguardava que se organizassem e arrumassem seus documentos,
distraía-me com esse conceito fantasioso de orquestra e regente, mas como
qualquer outra metáfora, baseava-se numa concordância e numa contradição. Esta
última era a seguinte: mesmo quando tornava perfeitas as notas da partitura, ainda
assim não podia assegurar sua integridade, porquanto minha execução precisava
sempre ser pessoal e particular. Um destaque aqui, nas madeiras de sopro, um
amortecimento nas trompas, um vibrato nos violinos, mais um repinicado dos
tímpanos, mudança de ritmo e retinido especial do sistro - e o compositor dará pulos
em seu túmulo! Mas quem pode dizer que o maestro mente, se está tudo ali na
partitura? Além disso, a platéia ouve, mas não sabe sequer qual a diferença entre a
semínima e o glissando. Portanto, é bater com a batuta para que cessem os
murmúrios, e toquemos o primeiro acorde!
- ... Sabem porque estamos aqui, cavalheiros. Achamo-nos numa crise política e
logo poderemos ter uma crise militar. Tenho de fazer relatório a Washington,
recomendar um curso de ação e depois executar as ordens recebidas de lá, quer
estejam ou não de acordo com minhas recomendações... Tudo quanto se disser aqui
será registrado e enviado a Washington. Têm o dever de oferecer opiniões, assim
como Washington tem o direito de aceitá-las ou rejeitá-las... Portanto, deixem-me
mostrar onde estamos...
Apresentei-lhes primeiramente o meu próprio relatório, inclusive minha última
entrevista com o Presidente Cung. Fiz com que os técnicos do quadro de Tolliver
apresentassem um resumo da situação militar e Boettiger, da Seção Política, fizesse
o mesmo sobre a Tailândia, Laos, Cambódia e Vietnam do Sul. Yaffa falou pela CIA
e Hennebury, da Missão de Operações, informou sobre o ponto de vista dos que
estavam empenhados em empreendimentos de ajuda civil junto ao Governo.
Finalmente, resumi os fatos:
- ... Parece que a decisão é bem clara. Ou ficamos inativos e deixamos os
acontecimentos seguirem o seu rumo próprio, ou intervimos com a intenção clara de
efetuar uma mudança de governo e a disposição de financiar o vitorioso. Em termos
mais simples, trata-se de escolher entre Cung e uma junta militar. Por conseguinte,
para o registro de nossa conferência, desejo a opinião de cada qual. General
Tolliver?
- Se se trata de escolha entre esperar e agir, Embaixador, digo que temos de
agir. Tenho mais de vinte mil homens e uma montoeira de materiais estratégicos
espalhados por todo o país. Um motim no Exército, ou uma revolta dos generais,
poderia deixá-los expostos e vulneráveis aos vietcongs, ou mesmo a lutas facciosas
entre os sul-vietnamitas. Não acredito que qualquer de nós possa aceitar esse risco.
Se quiser minha escolha definida entre o Presidente Cung e os generais, tenho de
escolher os generais, porque acho que Cung perde prestígio dia a dia. Mais cedo ou
mais tarde, será derrubado. É melhor agora, enquanto o Exército se acha intacto, do
que mais tarde, quando poderá estar dividido pelo motim.
- Obrigado, general. Poderíamos ouvir a opinião da Missão de Operações, Sr.
Hennebury?
- Tenho de concordar com o General Tolliver, ainda que por motivos um tanto
diferentes. Gastamos a maior parte de dez anos organizando a economia deste país
e ajudando o povo a montar indústria, agricultura, comércio, obras públicas, edu-
cação e tudo o mais. Também temos muitos elementos no interior, que precisam ser
protegidos. O que é mais importante, não creio que possamos arriscar-nos a
entregar todo esse progresso real, toda essa demonstração de colaboração e boa-
vontade americana, toda essa capacidade produtiva, a uma aliança raquítica entre o
Presidente Cung e Ho Chi Minh. Se um regime novo nos oferece menos risco e mais
tempo para consolidar e reeducar, acredito que temos de nos decidir por ele.
- Sr. Boettiger?
- Do meu ponto de vista, a escolha parece por demais cruel e rígida. Num
sentido puramente político, existe ainda muita capacidade vital no regime Cung, se
ele quisesse negociar. Infelizmente, não podemos estar certos do tipo de sentido
político que aparecerá, numa junta de generais. Portanto, ainda em nível puramente
político, seria melhor vivermos com o demônio que já conhecemos... O outro lado do
quadro, naturalmente, é que Cung não quer negociar e a rebelião já está sendo
planejada. Por isso, embora com relutância, manifestamo-nos pela mudança do
governo...
- Sr. Yaffa?
- A função da CIA é pesar os perigos de qualquer ação política. Nossa opinião é
que os perigos no regime Cung são grandes e crescem de dia para dia. Uma junta
militar chefiada pelo General Khiet contaria com o apoio inicial dos budistas, dos
sindicatos e do Exército, o que é muito mais do que Cung pode comandar neste
instante. Por isso, aconselhamos o apoio ao General Khiet.
- Sr. Adams?
Em ocasiões normais, Mel Adams era orador fluente e pronto, sempre com fatos
à mão e apresentando-os inteligentemente à assistência. Naquela noite, entretanto,
custou a começar e notei que estava amarelo e abatido, e pensei que ia adoecer de
malária ou hepatite. Nas ocasiões comuns, a sua voz era clara e definida, mas
dessa vez havia dissonância e indicação de ira contida.
- O Sr. nos disse, Embaixador, que temos o dever de oferecer nossas opiniões.
Receio que a minha será muito antipática, mas quero cumprir meu dever como o
mesmo foi indicado. Por isso, aqui estão minhas opiniões, em ordem. Quero lê-las,
de modo que não haja qualquer dúvida. Primeiro: Acho que o Embaixador está
cometendo um grave erro, quando afirma que há uma decisão clara entre o regime
Cung e um golpe que nós precipitaremos dando sinal ou senha para isso. Não
devemos tomar tal decisão. Washington não a deve tomar, pois não temos direito
moral ou legal para isso...
Em cinqüenta palavras, fizera a sala tornar-se silenciosa como um túmulo, e
encher-se de tensão quase animal. Com todos os olhos fitos nele, Adams continuou
a ler, do mesmo modo áspero e deliberado:
- Segundo: Nossa posição é clara. Fomos convidados para prestar ajuda militar
e civil, treinamento é orientação. Tudo isso demos. Não pedimos, e não nos deram,
qualquer direito a intervir nas questões internas de um Estado soberano. Se
interviermos, mediante garantias tácitas ou abertas a um grupo de conspiradores
militares, tornar-nos-emos conspiradores. Ainda que possamos parecer favorecidos
por uma mudança de governo, no final não o seremos. Destruiremos nossa posição,
e desmentiremos a integridade de nosso propósito nacional.
O silêncio permanecia.
- Terceiro: Estamos em crise, sim, e ela está cheia de riscos e perigos. Mas, se
nos envolvermos como sócios mudos na derrubada do Governo, estaremos
arriscando coisa muito maior. Se o próprio Cung ou qualquer membro de seu
gabinete viesse a ser morto num golpe, nós nos tornaríamos, por esse próprio fato,
acessórios e parceiros culposos num assassinato político. E a história jamais nos
deixaria esquecer isso... Quarto: Se um golpe se efetuar sem nossa intervenção, e
um governo estável se formar depois, nesse caso teremos a liberdade de
reconhecê-lo como instituição de fato, sem desonra para nós próprios ou para o país
que representamos.
E, em seguida:
- Finalmente: Estou no serviço diplomático há bastante tempo. No entanto, se
achar pessoalmente que nosso Embaixador recomenda a intervenção, pedirei que
me transfira daqui. Se Washington também aprovar a intervenção, nesse caso de-
verei abandonar o serviço diplomático, porque não posso concorrer para a execução
de uma política que, a meu ver, é moralmente errada, historicamente falsa e
totalmente desonrosa.
Podia não ser o discurso mais hábil, mas certamente era o mais corajoso que eu
ouvira em minha vida. Sabia o que lhe tinha custado fazê-lo. Sabia o que lhe
custaria, quando pagassem as apostas - toda uma carreira, todo um hábito de vida.
Ainda assim, de repente me senti furioso - com ele, comigo, com o silêncio
desolador na sala, com o embaraço nas expressões de nossos colegas. No entanto,
era o que eu exigira como dever de cada um, manifestação livre, opinião sincera. E
quando a obtivera, engasgava com ela, como se fosse um remédio amargo. A
blandícia e dissimulação, porém, eram meus recursos, e eu não iria perder prestígio
oferecendo qualquer comentário ou réplica. Convoquei o orador seguinte.
- Temos agora a questão da segurança do pessoal americano e de suas
famílias, no caso de ações militares na cidade. Sr. Lanker?
A conversa continuou por hora e meia, mas tudo o mais era pós-escrito. Todos
os votos estavam dados e contados, e a maioria preferia ação e um novo começo.
Às nove e meia, encerrei a conferência e fui diretamente a meu gabinete, ditar o
relatório para Washington, na companhia de Anne Beldon. Não era documento
longo, mas lutei com ele durante quase três horas, antes de o enviar ao centro de
comunicações. Uma cópia está agora comigo, enquanto escrevo estas linhas. A
primeira parte é ensaio dos fatos, e mesmo hoje, quando estou mais amadurecido,
acho-a justa e ampla. A segunda parte é resumo das opiniões dos meus
conselheiros, e também ela corresponde precisamente às minutas da conferência.
Existe nela uma parte, entretanto, que ao ser relida embarga minha afirmação de
inocência:

... O Sr. Mel Adams afirmou, nos termos mais enérgicos, que uma intervenção
nossa constituiria uma ilegalidade e desmentiria a integridade de nosso propósito
nacional; poderia também nos tornar acessórios e parceiros culposos num
assassinato político. Em teoria, eu poderia afirmar isso com vigor considerável, mas
na dura realidade de um jogo de poder, acredito que não possamos dar-nos ao luxo
do idealismo ou incorrer nos riscos da inação calculada...

A parte final do relatório é resumo de minhas próprias conclusões e


recomendações:
... É claro, portanto, que qualquer decisão que tomemos acarreta dúvidas, risco
e perigo, porquanto todos os nossos cálculos se baseiam em conhecimento incom-
pleto e num equilíbrio instável de forças. No entanto, se postergarmos a decisão, os
acontecimentos poderão sobrepujar nossa capacidade de lidar com eles... Por esse
motivo, com profunda apreensão, mas na inexistência de qualquer outro rumo de
ação, sou forçado a apresentar-lhes os caminhos seguintes. Continuamos a apoiar o
regime Cung e nos arriscamos ao motim, desordem e isolamento tático, ou
apoiamos os generais e damos ao país algum fôlego para acertar suas dissensões
internas e restaurar uma aparência de unidade.
Minha opinião pessoal é de que o Presidente Cung se acha, agora, além de
qualquer conselho e que não podemos mais colaborar com ele, e certamente não
podemos participar da sua política atual ou futura. O General Khiet e seus colegas
deram a Harry Yaffa as garantias de que se esforçarão por proteger a pessoa de
Cung e de seus funcionários, no caso de golpe, mas não fazem promessas, nem
creio que as possam fazer, pois o próprio Cung poderá fazer uma resistência final,
com as forças que ainda lhe sejam fiéis. Desse modo, numa situação cheia de
riscos, acredito que temos de aceitar mais este.
Finalmente, devo repetir o que disse em comunicações anteriores. Eu também
sou um dos riscos. As minhas apreciações podem estar erradas, mas foram feitas
com base nas informações disponíveis. Aguardo instruções, que executarei com o
melhor de minhas possibilidades.

Maxwell Gordon Amberley


Embaixador

E assim, a coisa estava feita. Li o documento final cuidadosamente e o assinei.


Consultei o relógio para anotar a hora no formulário da mensagem. Acabava de
passar de uma da madrugada, à décima terceira hora, que não é hora de modo
algum, mas uma suspensão sinistra do tempo, uma síncope entre a ilusão e a
realidade. Entreguei a mensagem a Anne Beldon e disse:
- O que escrevi, escrevi. Remeta isso, Anne, e vamos sair daqui!
Ela me olhou por um instante, ansiosa e confusa, depois voltou-se e saiu da
sala. Acendi um cigarro, mas achei o gosto desagradável e o amassei no cinzeiro.
Depois, fui ao banheiro e lavei as mãos.
Nessa noite, sonhei novamente. O cenário era o mesmo, um chão plano e vazio,
cheio de luz. Desta feita, entretanto, não havia formas dançantes, nem paredes. Lá
estava o céu brilhante, a terra plana e eu. Trajava yukata e tabi, estava sentado com
as pernas trançadas, mãos cruzadas ao colo, na atitude do discípulo. Sabia que
estava esperando Muso Soseki, e quando este chegasse teria um grande segredo
para me contar, Não tinha importância estar sozinho, nem que ele tardasse muito. A
paciência e disciplina eram preços pequenos a pagar pela sabedoria secreta.
Fechei os olhos e levei minha mente à atitude de recipiente vazio, esperando
que o enchessem. Sabia que meu mestre aprovaria isso e me louvaria. Depois de
muito tempo abri os olhos, esperando ver Muso Soseki sentado à minha frente. Tudo
estava vazio, como antes, a não ser um pequeno pássaro marrom bem perto de
mim, olhando-me com olhos embaçados como contas empoeiradas. Encaramo-nos
por um minuto de silêncio, e ele inclinou a cabeça para um lado, depois para o outro,
como se tentasse compreender aquela visão em chambre e meias brancas.
Eu me sentia muito só, e tentei falar com o pássaro, mas este não queria
responder. Eu sabia que tal atitude de sua parte era perfeitamente razoável, pois
não conhecia minha língua ou nada tinha de útil para dizer. Por isso, pedi que
cantasse. Ele se manteve em silêncio, examinando-me. Assobiei uma canção e
marquei o compasso com a mão. O pássaro não queria cantar, nem dançar. Depois
de algum tempo, minha boca estava seca, de modo que não podia mais assobiar.
Pedi, o que é muita distinção conferida por um Embaixador, personagem tão
importante, mas o pássaro marrom ainda assim não queria cantar. Por isso, resolvi
voltar à minha contemplação e ignorá-lo, mas quando abri novamente os olhos lá
estava ele, silencioso zombeteiro. Pedi novamente, mas não quis cantar. Assobiei
nova melodia e marquei o compasso com a mão para animá-lo, mas ainda assim
não emitiu um único som. Foi quando ergui a mão, e... Zás! Atingi-o na cabeça, senti
os ossos quebrarem-se e o corpozinho estremecer entre minha mão e a terra plana.
Mas, quando ergui a mão, nada encontrei, nem ao menos uma pena, e comecei a
chorar, baixinho, porque estava sozinho e não havia sequer um pássaro que
cantasse para mim...
Desci para o café com os olhos vermelhos e sentindo dores em todos os ossos.
Anne Beldon já partira para a Embaixada, mas a governanta informou que Mel
Adams estava esperando por mim na sala de visitas. Eu estava cansado demais
para zangar-me com ele novamente, de modo que o convidei para sentar-se comigo
à mesa. Também ele parecia não haver dormido muito bem, mas aparentava calma
e compostura. Tomou café e fumou um cigarro, enquanto eu mordiscava alguma
coisa. Depois, disse-me o que fora fazer.
- Queria que soubesse, que nada havia de pessoal no que disse ontem à noite.
O Sr. sempre foi muito bondoso comigo, eu o respeito, e lhe sou reconhecido. Mas
ontem à noite estávamos em ocasião oficial, foi-nos pedido que votássemos. Não
tive outro remédio, senão apresentar a minha opinião sincera.
- Compreendo isso, Mel. Não gostei muito do modo como você apresentou sua
opinião, e ainda não gosto. Acho que podia ter-me abandonado com mais gentileza.
- É por isso que estou aqui, para pedir-lhe desculpas pela rudeza. Eu poderia ter
dito as coisas de modo mais gentil. Poderia ter escolhido uma ocasião particular
para prepará-lo quanto ao que iria dizer. Mas acho que tive medo.
- Medo de mim, Mel?
- Não, Sr. Mais de mim próprio, das sutilezas e cortesias deste ofício, que
tornam tão fácil escondermo-nos e continuarmos sendo dissidentes em perfeita
segurança. Mas, nessa questão, eu não podia mais continuar a ser dissidente em
segurança. Tinha de queimar os navios e as pontes atrás de mim, e dizer aquilo em
que acreditava.
- E acredita mesmo nisso, Mel? Sinceramente?
- Sim.
- Quer discutir o assunto comigo?
- Não, Senhor. Neste momento, estou como Martinho Lutero: "Aqui estou; não
posso proceder de outra forma"... Mas gostaria que o Sr. aceitasse minhas
desculpas.
- Aceito. Espero que acredite também na minha sinceridade.
- Acredito.
- E agora, Mel?
- O Sr. se incomoda em dizer o que recomendou a Washington?
- Que apóiem os generais.
- Então não se importa que eu peça minha transferência? - Acho que deve fazê-
lo, para seu próprio bem. Eu
endossarei o pedido.
- Obrigado. O Sr. vai estar muito ocupado por algum tempo, de modo que não
me quero furtar a qualquer responsabilidade. Estou inteiramente pronto a continuar
trabalhando.
- Por todos os motivos, Mel, acho que seria bom você adoecer. Certamente
pode arrumar uma dor de barriga diplomática, que o mantenha de cama por algum
tempo.
- Acha isso correto?
- Acho que é indicado, como diria Harry Yaffa!
Adams riu, e desapareceu a tensão entre nós. Servi-lhe de novo café, aceitei um
de seus cigarros, e ficamos ali sentados durante alguns momentos, fumando em
silêncio e olhando os mainás que procuravam minhocas na grama úmida. Depois,
ele disse com hesitação:
- Se eu ainda não estiver inteiramente fora do cenário, gostaria de fazer uma
proposta.
- Pode dizer.
- Se Washington resolver apoiar os generais, acho que o Sr. deve fazer um
acordo com eles: Cung deve ser preso e entregue vivo aos funcionários de nossa
Embaixada para ter salvo-conduto e deixar o país.
Pensei nisso por alguns momentos e depois rejeitei a proposta.
- Não podemos fazer isso, Mel. Nesse caso, o levante se tornaria coisa
patrocinada pelos americanos.
- E na verdade é!
- Mas ninguém o pode provar, a menos que tenha toda a informação de que
dispomos! Mas se aceitarmos a entrega de Cung e o levarmos para o exílio,
estaremos parecidos com os ingleses, quando levaram Napoleão para Santa
Helena. Imperialismo à antiga, com vingança! Como podemos aceitar isso?
- É mais difícil de aceitar do que o assassinato?
- O assassinato é um risco, mas não certeza. Não creio que os generais queiram
matar Cung.
- Mas certamente preferem-no morto.
- Ainda há um "talvez".
- Por favor, estou tentando protegê-lo, a Embaixada, e também o país, contra
esse "talvez"!
- Do modo como você sugeriu, não o podemos fazer.
- Deixe-me sugerir outra coisa, então. Se Cung vier ter conosco e pedir asilo na
Embaixada, o Sr. o concederia?
- Sim.
- Faríamos pressão para que pudesse deixar o país? - Sim, mas sem a certeza
de consegui-lo.
- Pois bem!... Acho que está bastante claro - afirmou, empurrando a cadeira para
trás e levantando-se. - Obrigado pelo café. Estou satisfeito por não sermos inimigos.
Irei à Embaixada arrumar meus papéis, e depois chamarei o médico para tratar
dessa dor de barriga.
Depois que ele saiu, fiquei sentado bastante tempo, comparando-me em
estatura a Mel Adams. Em certo sentido, quem o criticara tinha razão, ao dizer que
era homem seco demais para chegar a embaixador. Faltava-lhe o vigor executivo, a
faixa de amoralidade e oportunismo que forma o negociador de primeira água.
Pensava com clareza demasiada para que os triunfos transitórios do ofício o
pudessem seduzir, estava por demais preso aos princípios para praticar com êxito a
arte do possível. Faltava-lhe o desprendimento, ou talvez o cinismo, para medir o
custo e o lucro, mesmo quando ambos se avaliavam em sangue humano. No mundo
flutuante da diplomacia internacional, poderia até ser perigoso, como um santo
recluso, ignorando a maldade, pregando uma cruzada infantil contra as forças do
mal, enquanto os acompanhantes das tropas se amontoavam como abutres para
atacar os inocentes.
Noutro sentido, era homem raro demais para que eu o deixasse ir. Os patriotas
se viam desvalorizados em nossos tempos malévolos; eram amantes tolos,
ciumentos contra quem difamasse a honra da dama. Eram cavaleiros devotados
que, mesmo sendo a dama volúvel e venal, ainda defendiam a memória de sua
virtude anterior. Sem esses homens devotados, nós, os mundanos e sábios das
coisas do mundo, certamente seríamos pobres. Não queimávamos pontes atrás de
nós, mas só Deus sabia quantas vezes as vendíamos. Não éramos mártires, pois o
martírio sempre se mostrava prejudicial e jamais indicado, a não ser para
vendedores de relíquias e lendas. Gritávamos a verdade por sobre os telhados,
porque, como Pilatos zombeteiros, desprezávamos a verdade em favor de profetas
baratos... Nossa única lamentação era não termos senão uma única vida a dar por
nosso país. Por isso mesmo, por que cargas d'água devíamos arriscá-la num jogo
de trouxas?
Na grama, os mainás estavam ainda procurando minhocas, porque mais tarde,
quando o sol despontasse, o chão se endureceria e a alimentação seria insuficiente.
Por isso mesmo, o primeiro a chegar era quem achava o prêmio, e os verdadeiros
patriotas se mostravam um problema no mundo diplomático. Nunca me senti tão
pertencente àquele demi-monde como quando cheguei a meu gabinete, aquela
manhã, e encontrei um convite do Ministério de Relações Exteriores, com letras em
relevo, a fim de comparecer ao jantar presidencial em honra do Dia de Libertação
Nacional do Vietnam do Sul. Havia amarga comédia no fato de que, como diplomata
mais graduado, teria eu de fazer o brinde ao Presidente Cung, enquanto seu
Ministro do Exterior faria o brinde ao Presidente dos Estados Unidos. Isso era puro
Toulouse-Lautrec, e desejei que o pintor estivesse ainda vivo para pintar a cena.
Não fazia mal que o cirurgião tivesse acabado de sair e os alcaiotes estivessem a
estripar-se mutuamente nas vielas, pois os negócios tinham de continuar na Casa de
Todas as Nações! Vejam agora! Brigamos um pouco, traímos um pouco, e às vezes
alguém é jogado pela janela, mas ainda somos amigos, não somos? A orquestra
toca, as damas se acham vestidas como princesas e haverá champanha no jantar,
discursos e talvez um pouco de dança antes de irmos dormir. Pelo menos, teríamos
a dança, a não ser pela guerra, regulamentos e ameaça à nossa moralidade! Mas os
discursos seriam bons: “... A despeito de nossas divergências ocasionais, somos
ainda amigos e aliados nesta luta contra a tirania comunista... Seu nobre
Presidente... Meu nobre Presidente... Meu nobre traseiro!" E no mesmo tempo em
que fizesse o discurso, saberia que era mentira, Cung saberia também e o general
Dao, resplandecente em suas condecorações, estaria sorrindo para seu copo de
champanha e me reconheceria como um dos seus.
O convite estava ainda em minhas mãos, quando Harry Yaffa veio perguntar se
já tínhamos alguma notícia de Washington. Disse-lhe que era cedo demais e, de
qualquer maneira, o melhor que podíamos esperar era uma ordem de suspender
tudo, enquanto meu relatório estivesse sendo examinado pelo Departamento de
Estado, pelo Pentágono e pela Casa Branca. No entanto, ele queria alguma coisa
resolvida imediatamente. Se Washington estivesse pronto a apoiar os generais,
como e quando seria dada a palavra de ordem aos mesmos? Atirei o convite sobre a
mesa, e ele riu enquanto lia. Apresentava refinado gosto por essas ironias, e achei
que se eu próprio as tinha de suportar, deveria descobrir nelas algum prazer para
mim mesmo. Disse-lhe então:
- Será nessa ocasião que darei a palavra de ordem, Sr. Yaffa, se é que a deva
dar! E essa palavra será: "Um brinde ao bravo povo do Vietnam do Sul!"
Yaffa suspendeu a cabeça e riu de puro prazer.
- Belíssimo, Sr. Embaixador! Belíssimo! Uma ocasião pública, e pelo menos dois
dos generais estarão presentes. Talvez os quatro, dependendo de saber se Cung os
quererá seduzir ou ameaçar nessa semana. Não podia ser melhor!
Recomeçou a rir e ria ainda quando Anne Beldon entrou, carrancuda e
obviamente muito mal disposta. Atirou uma pilha de papéis diante de mim, apanhou
outra pilha na papeleira e saiu, fechando a porta com duas vezes mais força do que
o comum.
Harry Yaffa deu de ombros e me lançou um olhar de lado.
- A lua em minguante, Sr. Embaixador? Ela não está muito satisfeita hoje.
- Tem trabalhado até tarde. Calculo que esteja cansada, como todos nós.
Mas sabia que Anne estava com raiva de mim, e ansiava pela ocasião e
palavras com que lhe diria quanto precisava de sua compreensão. Yaffa, entretanto,
tinha outras coisas a examinar comigo, e pela primeira vez gostei de sua companhia
e estava pronto a mostrar-me cordial com ele. Não queria mais saber de instigadores
e confessores a me acusarem, achava-me de volta ao meio dos profissionais, que
não transformavam um homem em bode expiatório porque fizera o melhor negócio
possível num mercado ruim.
Yaffa recostou-se na cadeira e se arrumou um pouco.
- Sobre a questão do que acontecerá ao Presidente Cung depois do golpe, acho
que conseguimos um acordo... Não o apresentei na conferência ontem porque,
francamente, do modo como o Sr. me apertou, Sr. Embaixador, não estou ainda
capacitado a garantir coisa alguma. Mas eis como está a coisa: falei com o General
Khiet, Dao, Tho e o quarto homem, Thuyen. Todos concordam em que não querem
ver-se ligados a um assassinato, mas há mais do que isso! Eles têm um acordo
entre si. O quarto general, Thuyen, o técnico de artilharia, é primo de Cung por lado
materno. Quando foi convidado a entrar na conspiração, apresentou a condição de
que a segurança de Cung deveria ser garantida pelo resto da junta.
- Harry, essa é a melhor notícia que recebo nessas últimas três semanas
terríveis!
Aceitou satisfeito o cumprimento, mas ergueu a mão em advertência:
- Achei que ia gostar. Mas deve compreender que não há certeza na coisa,
porque o próprio Cung não faz parte da combinação. Se decidir lutar, ninguém
poderá garantir que não seja atingido por uma bala.
- Isso é bastante claro, mas serão dadas ordens para que o prendam vivo, se
possível?
- Os generais concordaram com isso. Não conheço as ordens que serão dadas
ou como serão preparadas, nem eles me
dizem. Acho mesmo melhor não sabermos.
- Concordo, mas você está preparado para que eu possa transmitir isso para
Washington?
- Certamente.
- Pois tratemos disso.
Chamei Anne Beldon e ditei uma mensagem suplementar para Festhammer:

ALÉM DE MEU RELATÓRIO CIA INFORMA AGORA QUE JUNTA GENERAIS


CONCORDOU TODOS ESFORÇOS SERÃO FEITOS PARA APANHAR
PRESIDENTE CUNG VIVO EM CASO GOLPE. ESSE ACÔRDO FEITO COMO
RESULTADO PRESSÃO DE GENERAL THUYEN QUE É PARENTE DA FAMÍLIA
CUNG. ISTO É MELHOR DO QUE ESPERÁVAMOS EMBORA AINDA NÃO HAJA
GARANTIA CONTRA ACIDENTE DE GUERRA. DESEJO TAMBÉM ELOGIAR
YAFFA QUE REALIZOU SEUS MELHORES ESFORÇOS NESSA QUESTÃO E
DESEMPENHOU EFICIENTEMENTE SEUS DEVERES. AMBERLEY.

Quando estávamos novamente sozinhos, Yaffa disse em tom comedido:


- O Sr. sabe, Embaixador? Eu o subestimei. Permita dizer que o Sr. é homem
muito maior do que eu pensava.
- Obrigado pelo elogio, Harry.
- Não, eu estou sendo sincero! Este trabalho é arriscado, e bem depressa
separa os homens dos meninos.
- Que o levou a ele, Harry?
Olhou-me de modo inquiridor, depois deu de ombros e voltou à sua atitude de
irônico divertimento.
- Sou um intrigante inato, eu acho. Gosto do que faço. Não tenho grande
respeito pela natureza humana, ou por mim próprio. O homem é um animal meio
civilizado, quando muito, de modo que precisa de um policial para manter-se
decentemente na rua, e de sujeitos como eu, para vigiar os ases que esconde na
manga quando joga o pôquer internacional... Eu? Sou bom cão de guarda, porque
não tenho ilusões sobre coisa alguma. Se o seu melhor amigo não estiver
interessado na prataria de sua casa, as possibilidades são de que está de olho em
sua esposa. As pessoas são tão honestas quanto se possam dar ao luxo de ser, e
quando se trata de sexo, sede de poder e do que precisam para estimular-se, não
são absolutamente honestas. Eu mesmo sou um excêntrico, de modo que nada me
surpreende, nada me choca e estou sempre pronto a esconder meu jogo. Isso me
torna um bom agente, ainda que não exatamente o homem com quem gostaria que
minha filha se casasse!
- E você confia em si próprio, Harry?
- Mais do que confiaria em qualquer outra pessoa, porque me conheço melhor
do que a maioria, ainda que por isso goste menos de mim mesmo.
- É uma filosofia desoladora.
- O mundo é desolador, Sr. Embaixador. Mas a meu próprio modo, divirto-me
com isso. Quando não encontrar mais divertimento, sairei do jogo - continuou, com
uma risada curta e seca. - Uma das vantagens de meu ofício é que conheço uma
série de modos fáceis de morrer!
Depois que ele saiu, Anne Beldon veio para o ditado. Parecia pálida e cansada,
e seus modos eram estudadamente formais. Trabalhamos cerca de uma hora e
depois, quando paramos para tomar café, perguntei-lhe o que a estava preo-
cupando. Ela era franca demais para fugir à questão, e respondeu simplesmente:
- Não me devia fazer essa pergunta, que me põe em posição falsa. Sou uma
secretária, ganho para trabalhar sem fazer comentários e devo guardar minhas
opiniões para mim mesma.
- Está preocupada com o que acontece? Com a minha recomendação a
Washington?
- Com isso e outras coisas.
- Pois gostaria de saber quais são os seus pensamentos. - Não tem direito a
isso.
- É verdade, mas deixe-me dizer uma coisa, Anne. Gosto muito de você. Conto
muito com seu apoio, e desejo sua atenção. Gostaria de pensar que você confia em
mim o bastante para ser sincera comigo.
Durante alguns instantes, pensei que ela ia explodir em lágrimas, mas dominou-
se e depois de hesitar um pouco me disse:
- Estou envergonhada, é só isso. Envergonhada pelo modo duro e insensível
com que dispomos das vidas e destinos de outras pessoas, como se... Bem, como
se fossem gado tocado de um lado para outro. Ah, eu sei que se trata de política,
diplomacia e necessidade militar, e tudo o mais! Mas quem, em tudo isso, pensa nas
pessoas, ou fala por elas?... Minha amiga que teve criança ontem à noite, enquanto
o marido estava ausente, lutando no Delta, o rapaz a quem costumava ensinar
inglês, para que pudesse ler nossos manuais e conquistar uma bolsa de estudos na
América, a pequenina freira francesa que leva minhas roupas velhas e as reforma
para as moças do hospital de doenças venéreas, - onde estava toda essa gente
ontem à noite, quando todos falavam sobre o acordo com os generais?
- Estavam todos lá, Anne, pode acreditar em mim!
- Mas quem falou por eles? Somente Mel Adams, e ninguém ouviu, ninguém
se incomodou.
- Está sendo injusta, e bem sabe disso.
- Será, mesmo? Voltamos aqui e o Sr. ditou sua mensagem para Washington
e ainda não ouvi uma só palavra sobre o que o povo precisa, aquilo que o povo
receia, aquilo por que anseia, um pouquinho de sossego e a possibilidade de ver os
filhos crescerem sem ouvir tiros de canhão ou ver homens armados em cada
esquina.
- Está decepcionada comigo, Anne?
- Estou, sim. Esperei, ah, meu Deus! Não sei o que esperava! Mas via-o tão
firme, parecia tão paciente e calmo, que imaginei que nunca cederia a toda essa
pressão. Quando me falou à noite sobre a Ásia, as configurações que continuavam a
despeito de todas as modificações, as continuidades que zombavam do tempo, tive
tantas esperanças! Talvez demasiadas! Quando me mostrou o talismã de jade dado
pelo Chinês Número Um e leu as palavras gravadas nele, pensei que ali estava um
homem que realmente compreendia e queria servir o povo, não à política!... Mas não
fez isso! E agora Mel se foi, não há voz alguma que possa falar pela criancinha
recém-nascida! Só os malditos generais têm voz!
Já estava chorando, e aproximei-me para reconfortá-la, mas afastou-se de mim
bruscamente.
- Não! Não me toque, por favor! Não vou chorar mais. Lavarei o rosto e serei boa
secretária. E odiarei estes dias sujos para sempre!
Eu estava totalmente desprevenido para uma discussão assim, de modo que me
saí muito mal dela. Além disso, já passara a ocasião de discutir e não sentia desejo
ou energia para percorrer novamente todo o labirinto. Ainda assim, o desabafo de
Anne me perturbou muito e fez ressurgir mais uma vez todas as dúvidas e culpas
secretas, mergulhadas na água tranqüila. Que esperava ela de mim? Um ataque
louco contra moinhos de vento, de modo que me pudesse recolher depois, colocar
emplastros na minha cabeça ensangüentada e embalar um herói em frangalhos?
Seria eu um monstro, por compreender a natureza real da sociedade, que os
conhecedores devem decidir e os fortes agir, pois se não o fizerem surgirão outros,
mais sábios e mais fortes, para forçar outra ação e tapar a boca dos ignorantes com
palha, ao invés de pão? E seria eu mais culpado, por haver aceitado os riscos da
decisão, ao invés de entregar-me aos medos flácidos dos escrupulosos? Mel Adams
me desafiara violentamente, mas não me incriminara com tanta amargura, porém
Adams não era mulher e me julgava por medidas diferentes.
Quer o reconheça ou não, toda mulher julga o homem como possível
companheiro no amor. Faça-se o homem dormir no travesseiro ao lado dela, e ela o
amará ou odiará ao despertar? Juntem-se os corpos e haverá também junção de co-
rações e espíritos? Se ela chora, haverá consolo para ela? Se ri, ele rirá também?
Quando se entregar às mãos dele, será abraçada em confiança e ternura, e com
bastante vigor, também, contra os pavores da noite e a pequena morte de todos os
dias? Ter-me-ia Anne Beldon medido desse modo e não me achara satisfatório?
Enquanto trabalhava pelo dia afora, a pergunta me incomodava como uma
pedrinha no sapato. Eu fora feliz com Gabrielle e sabia, pelo menos, que também a
fizera feliz. Ela era espírito por demais forte e livre para suportar uma união infeliz.
Foi quando me lembrei do que me dissera, poucos dias antes de morrer. Sabia que
ia morrer, e mostrava-se muito calma, mas certa noite, quando estava em seu
quarto, lendo para ela, estendeu a mão fina, pondo-a sobre a minha e disse
gentilmente:
- Você sabe, Max, tudo foi tão bom conosco! Espero que você não tenha de
pagar demais por isso.
Quando lhe perguntei o que queria dizer, respondeu com grande ternura:
- Eu era tão necessária a você, Max, e isso é coisa formidável e gloriosa para
uma mulher! Você me deu tanto, confiou-me tanto! Nunca procurou qualquer coisa
fora de mim. Muitas vezes imaginei se você acreditava em qualquer outra coisa
senão em mim... um Deus, uma fé, mesmo outro tipo de amor! Que vai ter, quando
eu houver terminado, meu bem? Em que vai acreditar?...
Em que, mesmo? E não tendo encontrado objeto de fé, que era minha vida
senão um hábito, uma servidão confortável a um conjunto de idéias que nunca
examinara e a um mundo físico cujo mistério eu jamais explorara? E ali, encarando-
me do fundo das águas tranqüilas, estava o rosto de meu eu verdadeiro, o homem
irresoluto que Cung desprezava, o oportunista que Yaffa passara a admirar, o
pesquisador desanimado que o jovem Groton tentara levar a um caminho de
esclarecimento, o sátrapa que apunha o seu selo nas ordens de vida ou morte e, à
noite, sonhava com pássaros estúpidos num vazio de claridade...
Depois disso, a imagem foi afastada por uma folha de papel amarelo que Anne
Beldon colocou sobre a mesa. Era a primeira mensagem de Festhammer.

SEU RESUMO DA SITUAÇÃO RECEBIDO E AGORA SOB EXAME URGENTE.


PRESIDENTE ME INSTRUIU PARA ENVIAR-LHE AGRADECIMENTOS PESSOAIS
POR EXPOSIÇÃO LÚCIDA E DESAPAIXONADA. CUMPRIMENTOS DE TODOS
AQUI. AVISAREI ASSIM DECISÃO SEJA TOMADA. FESTHAMMER.

Quando terminei a leitura, Anne tinha saído e eu continuava sozinho, o que era
lastimável, pois surgia agora uma pergunta para a defesa. Se eu tivesse a fé de S.
João da Cruz, ou o esclarecimento sereno de Muso Soseki, ter-me-ia saído melhor?
Não havia quem pudesse responder.
Em hora adiantada daquela noite, George Groton regressou da Cambódia.
Estava abatido e pálido, devido a uma intoxicação alimentar, mas vinha com uma
raiva bem saudável de Harry Yaffa que, como afirmava, lhe dera uma pista falsa.
Pnompenh era valhacouto de metade dos agentes profissionais e amadores no
sudeste da Ásia, e, para um recém-chegado como ele, era manifestamente
impossível executar qualquer trabalho de valor em poucos dias. Resolvera
sabiamente gozar o tempo, e passara dois dias passeando em Angkor. Depois
disso, adoecera e ficara preso no hotel durante o resto de sua estada. Não pude
deixar de achar graça em seu desapontamento juvenil e na esperteza de Harry
Yaffa, que se livrara dele com tanta habilidade durante a nova crise budista.
Jantamos juntos, ou melhor, eu jantei, enquanto Groton bebericava chá e comia tor-
radas sem manteiga, desanimadamente. No decorrer do jantar, esbocei para ele os
acontecimentos da semana, as conferências finais e minha recomendação a
Washington. Quando lhe falei sobre Mel Adams e minha conversa com Anne Beldon,
ele disse:
- Sei o que eles sentem, porque é o que sinto também. Não tenho experiência
ou informações para formar juízo seguro, mas instintivamente concordo com o ponto
de vista de Adams. O povo tem direito a determinar o seu futuro, por si mesmo,
ainda que a determinação se verifique pela simples inação. Conheço o outro ponto
de vista, o de que o povo se vê colhido, de qualquer modo, na política de força das
grandes nações, está sujeito todos os dias a campanhas de subversão e doutri-
nação política, e que o século XX chegou para ele, quer goste disso ou não... Mas,
de algum modo, esse tipo de ação, de "armas-sobre-a-mesa" e "vamos-mostrar-a-
essa-gente", parece perigoso, quando mais não seja porque não podemos medir as
conseqüências.
- Então também não aprova o que fiz, George?
Ele corou e respondeu com dificuldade:
- Eu disse que me faltam experiência e conhecimento. Estou exprimindo uma
atitude pessoal.
- Ponha-se em meu lugar, George. O que faria?
- A pergunta não é justa.
- Tem medo dela?
- Não, mas não estou em condições de respondê-la.
- Digamos, então, que você tem a impressão de que estou errado. Que acha que
eu devia ter feito?
Era brutal atormentar um novato desse modo, mas eu precisava
desesperadamente de algum sinal de apoio, ou pelo menos de algum tipo de
absolvição, em troca do afeto que lhe dedicava. Sua recusa teimosa a discutir dentro
das minhas condições me enraivecia. Seguiu-se uma longa pausa, durante a qual
Groton ficou sentado, olhando para a xícara. Finalmente, ergueu a cabeça e me
encarou de frente.
- Quer uma resposta? Vou dar. É em duas partes. Aquilo que precisamos de
aprender, a meu ver, é a arte da inação cautelosa. Acho que ainda não aprendemos,
pois nos mostramos vulneráveis demais à imprensa e à opinião pública. O homem
que salvou Roma dos cartagineses foi chamado Fábio, o Contemporizador. Eu
esperava, e muitos outros também esperavam, que o Sr. se mostrasse forte o
bastante para se mostrar igual a ele... O Sr. resolveu de outro modo e o tempo
poderá mostrar que está certo, e isso me leva à segunda parte da resposta. Sou
funcionário subalterno e minhas opiniões, certas ou erradas, não têm valor, de modo
que não sou obrigado a tomar a decisão dura que Mel Adams tomou. Posso chegar
a isso, algum dia. Quem sabe? Quanto ao presente...
Interrompeu-se, embaraçado, esmagando nos dedos nervosos um pedaço de
torrada.
- Quanto ao presente, George... ? - instiguei.
- Estou comprometido com o Sr. Não, o termo não é esse. O Sr. me deu
confiança, bondade e amizade. Quero retribuir, mas não posso fazê-lo na base de
aprovar tudo o que faz, ou mesmo tudo o que é. Tenho de dizer que em minha
opinião, o Sr. está errado, tremendamente errado! Acho que fez a si mesmo uma
coisa que ainda não pode definir. Mas, por tudo quanto valho, e pode não ser muito,
estou ainda a seu serviço. Não sei se estou falando claro, mas isso é como uma
questão de família, é como levar o pai para a cama quando chegou bêbado da rua, e
depois curar-lhe a ressaca na manhã seguinte!
Era um testemunho singular e canhestro de amizade, e fui suficientemente
indelicado para dizê-lo.
- Para um jovem diplomata, George, está usando linguagem muito pouco
diplomática.
- Porque o Sr. me está forçando a isso!
O amargor de seu tom de voz me chocava, e ele prosseguiu:
- O Sr. pede demais, uma aprovação total de tudo quanto faz, uma fidelidade
sem discussão. Age como um juiz que manda enforcar, e depois espera que os
amigos o louvem. Se quer ser perdoado, está muito bem! Mas, para isso, precisa de
um confessor, não de um colega ou auxiliar!
- Já falou demais, George!
- Demais, ou de menos. Que me fulminem, se eu sei! Não consigo achar as
palavras, Sr.!
- Nesse caso, sugiro que se vá deitar e acalmar.
- Estou de folga. Acho que vou ao Caravelle tomar alguma coisa.
- Faça isso, e amanhã pode ser que perceba que me deve pedir desculpas.
Ele se levantou e ficou de pé, indeciso, lutando com o guardanapo. Parecia tão
jovem e sentido, que meu coração se confrangeu por ele, mas não consegui
controlar minha ira e fazer qualquer gesto reparador. Finalmente, ele disse:
- Apresento agora mesmo as desculpas, Sr. Faltei ao respeito com um superior
no serviço diplomático. Sinto muito.
- Aceito as desculpas e nunca mais falaremos sobre isso.
- Obrigado. Boa noite.
Terminei sozinho o jantar e depois, precisando desesperadamente de
companhia, telefonei para o General Tolliver e atravessei a cidade até sua casa,
para tomar café e jogar bilhar. Dois de seus oficiais estavam lá, e jogamos a
dinheiro, até a meia-noite. Era bom estar de volta entre profissionais e prometi a mim
mesmo jamais deixar sua companhia em favor do território incerto dos sonhadores e
idealistas.

Capítulo dez

Às três horas da madrugada, no Hospital Policlínico em Le Loi, George Groton


morria nos meus braços.
O modo pelo qual morreu foi simples, brutal e tão estupidamente fútil que ainda
hoje não consigo pensar nele sem sentir raiva e amargura. Depois de sair de minha
casa, ele se dirigiu ao Hotel Caravelle e subiu para o bar Jerome et Juliette, no
oitavo andar, que era - e ainda é, ao que consta - o ponto costumeiro de encontro
dos correspondentes em Saigon. Ali, entrou em conversa com um fotógrafo
chamado Charles Kubrick, um correspondente da UPI chamado Leonard Garbutt e
Gerry Avallone, da cadeia radiofônica ABC. Beberam e conversaram até cerca das
onze horas, quando Kubrick sugeriu passarem a outro clube noturno, chamado "O
Bacará", no bulevar Tran Quy Cap.
Saídos do Caravelle, chamaram um táxi e tocaram pela cidade, passando pela
catedral católica e dirigindo-se ao bulevar.
Não houve indicação de que tivessem sido seguidos, e tampouco existia
qualquer coisa sinistra quanto ao lugar para onde se dirigiam. Tratava-se de
conhecido bar e restaurante, com cozinheiro francês, uma orquestra vietnamita e
uma série de moças, não mais belas ou virtuosas que suas congêneres em outros
pontos da cidade. Conforme Gerry Avallone me narrou, "As toalhas de mesa são
limpas, a comida, aceitável, as bebidas, legítimas e, com os diabos, onde se pode ir
nesta cidade desgraçada?" Além disso, como qualquer outro clube, dispunha da sua
própria polícia de segurança, um trio de jovens educados e fortes, que sempre se
sentavam nos mesmos lugares diante da porta, tinham preferência junto às moças
do bar e vigiavam os fregueses com cínico desdém.
Os quatro recém-chegados pediram bebidas e ali estiveram durante uma hora,
conversando com as pequenas e ouvindo a orquestra. Depois disso, Garbutt
resolveu ir-se embora e fazer ainda algum trabalho em seu escritório, antes de
deitar-se. George Groton, que ainda se sentia indisposto por causa da doença,
concordou em sair com ele, e pagou a despesa de ambos. Saíram, e na porta
principal pediram ao porteiro que lhes conseguisse um táxi. O porteiro os deixou de
pé na calçada e andou uns dez metros até à esquina, a fim de chamar o veículo. A
sua narrativa era bem simples, e se ateve a ela durante oito horas de interrogatório
na polícia. Antes de chegar à esquina, ouviu o ruído de um carro em alta velocidade
pelo bulevar. Voltou-se para olhar o restaurante e viu um Citroen preto quase à
altura dos dois homens na calçada. Houve tiros e os dois homens caíram. O porteiro
se atirou ao chão e o automóvel passou chispando por ele, pelo bulevar Tran Quy
Cap. Levantou-se e correu para a estrada, onde encontrou Garbutt morto e George
Groton sangrando no peito e vomitando sangue. Era mais um dos atos
aparentemente sem sentido, mas friamente calculados, pelos quais os vietcongs
mantinham a cidade em estado de tensão e terror. Qualquer vítima servia - uma
moça de bar, um pára-quedista, um vendedor de amendoim torrado. Naquela noite,
tinham sido dois estrangeiros, em frente a um bar conhecido.
E assim estava George Groton, deitado no leito da Policlínica, branco como cera
e tossindo uma espuma sanguinolenta, enquanto uma freira idosa rezava o terço e
Anne Beldon, Mel Adams e eu nos víamos incapacitados de fazer qualquer coisa,
esperando que ele morresse. Foi uma agonia lenta e pungente, e acabei orando
desesperadamente para uma divindade da infância, para que tudo acabasse logo e
eu recebesse um sinal, por menor que fosse, de reconciliação com aquele meu filho
adotivo.
Pouco antes das três horas da madrugada, seus olhos se abriram e pensei ver,
sob o fogo da dor, um sinal de reconhecimento. Segurei-lhe a mão e me inclinei para
falar, macia e ternamente, como se faz com uma criança. Os dedos apertaram os
meus, e tomei isso como sinal de que compreendera. Depois, começou a tossir
novamente, numa luta angustiosa para respirar através do sangue que o sufocava.
Passei o braço em volta dos seus ombros para erguê-lo um pouco, mas ele deu um
grito abafado, a cabeça pendeu e ele morreu.
A freira lhe cerrou os olhos, limpou-lhe a espuma da boca e ajoelhou-se para
orar pelo morto. Ajoelhamo-nos instintivamente com ela, e então alguma coisa
explodiu dentro de mim e chorei como uma criança, apertando a mão inerte de
encontro ao rosto.
Foram as últimas lágrimas que derramei, desde então. Mesmo quando o
sepultamos, como um soldado, com clarins e salvas, e atirei a primeira pá de terra
em seu caixão, não pude chorar. Meu coração se tomara uma pedra. Eu odiava
aquela terra encharcada onde ele estava sepultado, odiava a cidade perversa e
perigosa, odiava os rostos secretos do povo e, acima de tudo, odiava a mim próprio.
A diplomacia é o que mais se aproxima do motu-contínuo e, a despeito de
morte, desastre, suborno e traição, as rodas incansáveis continuam girando, as
engrenagens se entrosam, as molas se enrolam e desenrolam e se mantém a ilusão
de propósito e direção, para reconforto dos ignorantes. Mal havia transcorrido uma
hora, desde que regressara do funeral, a mensagem de Festhammer foi posta em
minha mesa:

VENHA ME ENCONTRAR QUARTEL-GENERAL USAF HONOLULU DEZ HORAS


QUARTA-FEIRA 27 PARA CONFERENCIAR. LOCALIZAÇÃO E OBJETIVO
ENCONTRO SÃO SEGREDO DE ESTADO.

O significado do chamado era bastante claro - a batata quente fora passada de


mão em mão e agora estavam-na mandando de volta para mim. Ninguém iria dar-
me autorização escrita para apoiar um golpe que poderia falhar ou transformar-se
em revolução sangrenta da noite para o dia. Por isso, Festhammer fora indicado
para me dar a autorização verbal, que poderia ser repudiada, reinterpretada ou
silenciosamente desviada dos cânones da história. Não me cabia objetar: esse era o
nome do jogo. Aquilo que Festhammer ignorava era que eu não me incomodava
com o modo por que jogassem. Meu coração se endurecera no desprezo frio por
mim mesmo e meu triste ofício, mas minha mente se mostrava cristalinamente clara
e eu me encontrava além da sedução do sucesso, ou do medo do fracasso. Esse
próprio desligamento me tornava instrumento político quase perfeito, pois usaria as
regras básicas tão impiedosamente como os que tinham assassinado George
Groton e os que haviam permitido sua morte, mediante intrigas e incapacidade.
Trinta e seis horas depois eu estava em Honolulu com Raoul Festhammer.
Pareceu-me que ele ficou um tanto surpreso com a minha aparência, e as suas
primeiras palavras foram:
- Santo Deus, Max! Você levou uma surra! Espero que esteja cuidando bem de
si próprio. O que aconteceu com o jovem Groton foi terrível.
- Foi, sim.
- Sei que gostava muito dele.
- Realmente.
Lançou-me um olhar rápido e penetrante, abandonou o assunto e prosseguiu de
modo animado:
- Vamos ficar na casa de Maggie Benton, no Diamond Head. Ela tem um quadro
completo de empregados, uma praia particular e um chalé de hóspedes que nos
ofereceu. Poderemos ter conforto enquanto trabalhamos.
- Seria bom.
Saímos de carro, sob um céu claro e brilhante, passando pela cidade cheia de
novos hotéis e empórios, e multidões de turistas em muus-muus e camisas floridas.
Estávamos na América, terra dos livres e bravos, e aqueles eram contribuintes
americanos, gente nobre, que pagava seus dólares e lia as historietas das edições
dominicais dos jornais, cavalgavam a crista das ondas em Waikiki porque tinham
comprado o direito de esquecer George Groton e todos os outros que estavam
sepultados na distante terra da Ásia. Eu era servidor deles, o que fazia era em nome
e com a autoridade deles. Se derramasse algum sangue por eles, não me devia
queixar, pois me pagavam bem e me mandavam viver entre os poderosos do
mundo. Senti desprezo gelado por eles e todas as suas obras transitórias, como se
fosse um veterano tratando de seus ferimentos e desdenhoso quanto aos que nunca
tinham visto disparar um tiro com raiva.
Meus pensamentos deviam estar escritos no rosto, pois Raoul Festhammer me
chamou a atenção.
- Calma, Max! Não precisa ser duro comigo! Abra a válvula de segurança, deixe
sair alguma pressão! Ainda há muito a caminhar e não queremos que você estoure!
- Não vou estourar!
- Não, não acredito que isso aconteça. Mas você vai encontrar desgraça
bastante no ofício sem precisar criar uma desgraça particular, por conta própria.
- É bem verdade! Dê-me algum tempo e me acalmarei. Gostava daquele menino
como de um filho, Raoul. E na noite em que ele morreu tivemos uma briga. Gostaria
de pensar que ele me perdoou, mas jamais terei certeza.
- Por que brigaram, Max?
- Foi aquela coisa do golpe.
Festhammer deu de ombros e disse, carrancudo:
- Não compreendo. Tivemos algumas brigas em Washington, mas que se pode
fazer? Estamos jogando num cassino clandestino, e é preciso ter olhos na parte de
trás da cabeça!...
Falei sobre Mel Adams e ele se mostrou raivoso e irritado.
- Adams é uma mulher velha! E sempre esteve demais à esquerda, em minha
opinião. Ficarei satisfeito em receber seu pedido de demissão. Mas não agora, Max.
Segure-o como puder, até que a pirotécnica esteja acabada. Não podemos sofrer
esse embaraço no momento.
Disse-lhe que faria o possível, e ele voltou ao bom-humor.
- Ora, vamos, Max! Somos antigos profissionais, nós dois! Ao diabo com todos
os malditos teóricos!... Vamos nadar e tomar um trago. Talvez Maggie o leve para a
cama hoje! Ela ainda é bonita, e sempre teve interesse por você!
Era bom conselho e resolvi aceitar. Entreguei-me ao acolhimento efusivo de
Maggie, vesti calções de banho e bebi poncho no gramado por cima da praia. Nadei
na água quente e limpa, tão diferente do rio cinzento e dos charcos fedorentos dos
arrozais no Vietnam. Depois do almoço, Festhammer e eu nos retiramos para o
chalé de hóspedes, para começar nossos entendimentos. Não me queixo do que ele
me disse.
- ... Você fez um bom trabalho, Max. O relatório foi claro e sincero. O Presidente
gostou muito dele... Agora, antes de começarmos a tratar dos negócios, quero saber
se existe alguma coisa que você queira acrescentar, ou subtrair.
- Nada.
- Alguma dúvida?
- Muitas, mas são as mesmas que manifestei no telegrama.
- Ótimo! Pois deixe lhe mostrar como as coisas estão em Washington. Existe a
possibilidade de que Cung sobreviva a esse golpe e mesmo ao motim no Exército.
Ele já o conseguiu antes e poderia conseguir novamente.
- Poderia, mas as possibilidades são mínimas.
- Mas temos de estar preparados para elas. Se ele sair disso como o homem ao
comando, teremos de continuar a conviver com ele.
- Certo.
- Se os generais tomarem o poder, teremos de conviver com eles.
- Certo também. Mas os generais não tomarão qualquer iniciativa sem receber
um sinal nosso e o sinal tem de dizer que sustentaremos o Governo deles, no
Vietnam do Sul, com ajuda, dinheiro e apoio militar.
- Eis então como faremos as apostas: todo o dinheiro possível nos generais, e
um dólar em Cung para constar. Concorda?
- Concordo. Mas não vejo onde quer chegar, Raoul.
Sorriu e disse:
- Você vai ver, Max, meu filho! Isto é Washington, lembre-se! É a democracia em
marcha, governo do povo, pelo povo, para o povo. E o povo sempre quer comer o
bolo todo e guardar um pedaço na geladeira para o dia seguinte! A ordem é "Siga",
Max. É oficial, e vem do homem lá em cima, mas nada existe escrito. Não há
instruções formais. Você age com seus poderes discricionários. Se os generais
vencerem, não tivemos coisa alguma com o caso. Se perderem, retiramos você de lá
e mandamos outro para começar tudo outra vez com o governo Cung. É duro, Max,
eu sei, mas assim é que a coisa marcha. Alguma objeção?
- Nenhuma.
Olhou-me longamente, como se estivesse a ponto de dizer alguma coisa, e
depois mudasse de idéia. Finalmente, prosseguiu em tom enérgico:
- Pois bem, essa é a parte teórica. Quanto à prática, Washington acha muito
importante conversarmos, tanto quanto possível, uma atitude de alheamento total na
luta entre Cung e os dissidentes. Continuaremos nossas negociações atuais com o
governo, mantemos firme troca de opiniões com o Ministério de Relações Exteriores,
e você dá início a uma série normal de gentilezas junto aos demais diplomatas, coisa
que não pode fazer até agora, como notei em seus relatórios.
- Só existem vinte e quatro horas no dia, Raoul!
Ele riu e interrompeu meu protesto.
- Eu sei! Eu sei! Mas isto é tática, Max. Se puder inaugurar um hospital, anunciar
uma bolsa de estudos, começar a distribuir prêmios nas noites de oratória, seja lá o
que for para criar uma atmosfera de normalidade, mesmo numa situação difícil... É
do que precisamos.
- Ninguém vai acreditar, naturalmente.
- Não precisam acreditar! Basta que ninguém publique uma coisa qualquer que
o ligue diretamente aos generais. E isso me faz chegar ao ponto seguinte: como vai
dar a senha?
Falei sobre o jantar presidencial e ele reagiu com a mesma alegria irônica de
Harry Yaffa.
- Ótimo, Max! Ótimo!... E quanto tempo depois disso os generais estarão prontos
a agir?
- Não sei, e duvido que nos digam. Isso é com o pessoal de Yaffa.
- Serve. Faz com que pareçamos mais inocentes ainda.
- Uma pergunta agora, Raoul: Quanto tempo, até que Washington reconheça um
novo governo, se é que vamos conseguir isso?
- Assim que esteja induvitavelvelmente no poder. Mas você poderá,
naturalmente, trabalhar com eles antes disso. Se precisarem de fundos para tocar as
coisas, descongelaremos o bastante para que possam agir.
- Outra pergunta: Que diz Washington sobre a segurança de Cung?
- Se pedir asilo, nós o daremos. Se não... - cobria toda a faixa de possibilidades
com um movimento da mão. Se não... C'est la guerre! Mas isso é tão pouco oficial
quanto o demais, Max.
- Naturalmente.
A medida de minha indiferença estava em que podia aceitar a proposta deles sem
escrúpulos de consciência e sem reclamações. O próprio Festhammer mostrou-se
surpreso, pois era esse o motivo de sua missão: persuadir-me a um compromisso
que deixaria limpas as mãos de todos, menos as minhas. Mas, tendo conseguido o
que queria, era esperto demais para perguntar por que eu me prontificava a
concordar. Ou talvez soubesse - como Cung e Harry Yaffa sabiam, cada qual a seu
modo - que não existem mais terrores para um homem que chegou a acordo com a
morte e com a sua própria condenação.
Nossos entendimentos ficaram encerrados em menos de uma hora. Nadamos
de novo e tomamos coquetéis no gramado, observando as grandes canoas que
voltavam ao crepúsculo, cruzando um mar que tinha a cor do sangue. Festhammer,
que nunca estava sem mulher, chamou uma amiga e fomos os quatro jantar no
Royai Hawaiian.
Naquela noite, fui para a cama com Maggie Benton. Ela estava desejosa e eu
tomado por enorme necessidade de afirmar minha virilidade. A combinação se
mostrou assim muito boa para ambos. Quando chegou o momento de partir, ela se
agarrou a mim e chorou um pouco, e fizemos ambos belas promessas. Mas antes
das últimas ilhas terem sumido da vista, antes de sermos engolidos pelo ar vazio do
Pacífico, eu já a esquecera.
Dessa vez, minha chegada a Saigon foi furtiva. Não houve guardas ou
cerimônias, e assim que o transporte aéreo pousou, Bill Slavich trouxe o automóvel
até a pista de passageiros, Harry Yaffa me cumprimentou rapidamente e partimos
imediatamente para minha casa. Contei-lhe minha conversa com Festhammer e ele
sorriu com aprovação cínica.
- ... Mesmo para nós aqui, Sr. Embaixador, é o melhor meio de enfrentar a
situação. O segredo é tão essencial para os generais quanto para nós, mas existe
outra coisa muito mais importante. O Sr. recebeu ordens para agir com poderes
discricionários. Portanto, estou em posição de ir aos generais e lhes dizer que sua
aprovação final depende de estar totalmente informado dos planos deles. Não
vamos conseguir todas as informações, mas pelo menos o bastante para observar
seus movimentos militares e fazer com que as nossas unidades não fiquem
expostas ou despreparadas... Vou começar a agir agora mesmo, e o Sr. terá, pelo
menos, um resumo básico antes do jantar presidencial. Quanto à outra questão, a
atividade inocente, os comparecimentos públicos e assim por diante, começarei a
coordenar isso com nossa imprensa e pessoal de relações públicas. e Sr. poderia
começar oferecendo um coquetel e alguns convites para jantar. Depois,
arranjaremos visitas a diversos projetos da USOM, centros agrícolas, escolas, insti-
tuições médicas e do Exército etc. Mas o Sr. tem um problema: Mel Adams! Ele
ameaçou demitir-se, não foi?
- Deixe Mel comigo. Falarei com ele.
O que lhe iria dizer era outra questão. Eu respeitava muito Mel Adams e, além
disso, fora ele quem estivera a meu lado no leito de morte de George Groton. Fora
sua a mão que me conduzira dali até minha casa. Fora ele quem me fizera com-
panhia nas horas seguintes, quando estive à beira da loucura. Eu era muito baixo,
mas não podia cometer uma traição com alquile homem. Telefonei para sua casa e
pedi que me procurasse. Contei-lhe toda a verdade e depois disse:
- Sei exatamente como se sente, Mel. Sei que não aprova, nem pode aprovar o
que estou fazendo. Se quiser demitir-se imediatamente, assinarei sua ordem de
viagem, mas peço que fique, não para participar ou aprovar, mas apenas para
proteger o Governo das conseqüências de uma decisão que você acredita estar
errada. Sou com isso tão sincero quanto posso, Mel!
Ele pensou no assunto bastante tempo, andando de um para outro lado no meu
gabinete, debatendo a questão em voz alta comigo e consigo próprio. Finalmente
disse, em tom positivo:
- Pois bem, ficarei! Com três condições. A primeira, de que só lidarei com coisas
rotineiras e não serei levado a participar de quaisquer discussões ou decisões sobre
o golpe. A segunda, que se o golpe se efetivar, estarei autorizado a agir
independentemente no sentido de persuadir Cung a buscar asilo conosco. A terceira
é que quando terminar o caso, qualquer seja o resultado, o Sr. assinará minha
ordem de viagem e depois visará e rubricará meu relatório pessoal de todos esses
acontecimentos. Depois disso, mandarei tudo, juntamente com meu pedido de
demissão, ao Secretário de Estado. Combinado?
- São condições duras, Mel, principalmente a segunda. Ela o põe em conflito
aberto com a CIA e a política do Departamento de Estado.
- É o único acordo que farei. Meu pedido de demissão já está pronto.
- Não pode ser oficial, pois é contradição às minhas ordens.
- O assassinato também não é oficial, mas poderemos ainda ver-nos envolvidos
nele.
- Então, entre mim e você, extra-oficialmente, está combinado!
- Eu desejo sinceramente que pudéssemos nos sentir um pouco mais
orgulhosos disso.
Agora tínhamos de esperar e, enquanto esperávamos, representar a pequena
comédia vazia de parecer não estar esperando coisa alguma. Desempenhei meu
papel com bastante eficiência e pouca convicção. Ofereci um coquetel já havia muito
devido e comecei a percorrer uma relação de convidados para jantar. Fiz uma
conferência sobre métodos comerciais americanos na Câmara Júnior de Comércio,
visitei o Instituto Pasteur e fiz a entrega de soros doados pela Cruz Vermelha
Americana. Inspecionei solenemente um estábulo, onde um australiano solitário
criava vacas leiteiras adaptadas às condições tropicais. Ninguém foi enganado por
tudo isso, pois estavam todos observando o jogo de xadrez que Cung fazia na
cidade e nas províncias. Os comandos militares estavam sendo mudados, unidades
eram transferidas de uma divisão para outra, três governadores de província foram
demitidos e, nos departamentos governamentais, funcionários menores eram
tornados fiscais de superiores. A Comissão da ONU partira, raivosa e frustrada pela
ausência inexplicável de informantes nos pagodes. O arcebispo de Hué deixara o
país, a fim de participar do Concílio Ecumênico e o Ministro da Educação adoecera
repentinamente, retirando-se para sua vila no Cabo Saint-Jacques. Por ordem
executiva, as contas bancárias de todos os funcionários suspeitos foram congeladas,
e suas casas postas sob vigilância policial. Cung estava fazendo o jogo clássico
dividir para governar e alguns dos meus colegas diplomáticos apostavam em que ele
sairia vitorioso.
Harry Yaffa, no entanto, apresentava um quadro diferente. A transferência do
General Khiet era uma vantagem para a conspiração, porquanto o situara no centro
dos acontecimentos em Saigon, onde era muito respeitado. Quanto ao resto, os
generais tinham-se aproveitado dos movimentos de tropas a fim de fazer suas
próprias transferências entre os comandantes que lhes eram subordinados e
graduados nas unidades de elite, de pára-quedistas, artilharia e carros blindados.
Estavam confiantes em que, chegado o momento de agir, estariam prontos para
isso. De quanto tempo precisavam, após o jantar presidencial? Dez dias. Que aviso
nos seria dado? Doze horas no máximo, quatro pelo menos. Estávamos em
momentos nervosos e difíceis, e os vietcongs aproveitavam-se ao máximo. Houve
ataques severos no Delta, um barco de suprimentos fora destruído nas docas de
Saigon e, para fazer lembrar que homem algum é uma ilha, no Laos o Pathet Lao
começava a marchar com grandes forças pela planície de Jars.
Contra esse pano de fundo de intriga e violência, o jantar presidencial
apresentava um ar de anacronismo. Para chegar a ele os convidados, tanto
vietnamitas quanto estrangeiros, tinham de passar por barreiras sucessivas de
homens armados. Seus convites em letras de relevo eram examinados com tanto
cuidado como se fossem passes para um arsenal, o que realmente eram. Quando
deixavam os automóveis, deixavam também seus motoristas e chaves, e tanto os
homens quanto os veículos viam-se polida mas eficientemente revistados. Dentro do
Palácio, no entanto, as luzes reverberavam e a festa se efetuava com formalidade,
senão alegria. As mulheres estavam magnificamente vestidas em sedas da Tailândia
e brocados de Hong Kong, os homens se mostravam tão elegantes e educados
como sua corte antiga e os oficiais resplandeciam com as ordens e medalhas da
República do Vietnam do Sul, a fita da Grã-Cruz da Ordem Nacional, o festão de
Comendador, barretas da Medalha de Mérito Militar e Cruz de Serviços Destacados.
Alguns podiam exibir também condecorações francesas, mas estas não estavam
mais em evidência, a não ser como botões discretos nas lapelas dos próprios
franceses.
O jantar foi austero, pois Cung o era também e não arredaria da afirmação de
que quem usufruía a duvidosa paz da capital devia, ao menos simbolicamente,
partilhar das privações passadas pelos soldados da frente. A conversa mostrava-se
reservada e, portanto, maçante. Pairava por tudo uma sombra de desconfiança e
má-vontade, mas Cung sentou-se à cabeceira da mesa, mais mandarim do que
nunca, sorriu um pouco e se inclinou para prestar seus pequenos cumprimentos aos
que estavam sentados perto dele.
Começaram então os brindes, e Cung fez o primeiro:
- A esta República, fundada com lágrimas e sangue, e sustentada contra
inimigos internos e externos pela coragem de seu povo.
Bebemos a isso e a desconfiança, por um momento, desmanchou-se em
orgulho transitório. Havia até orgulho pelo homem que fizera o brinde, porque
naquele momento, ainda que nunca mais se repetisse, eram obrigados a lembrar-se
do que tinha feito por eles. Eu também me lembrava, e por um instante minha
decisão se enfraqueceu. Mas era tarde demais. Meu nome foi anunciado, e no
silêncio seguinte fiz o meu curto discurso.
- Esta República, como a nossa na América, nasceu de uma revolta contra o
colonialismo [aplauso discreto]. As esperanças do povo desta República são as
mesmas que nós temos: libertação da miséria, libertação do medo, liberdade de
expressão e o direito de determinar o próprio futuro, sem a ameaça de invasão
armada ou subversão estrangeira [mais aplausos]. Estou aqui como representante
de uma grande nação, que partilha de vossa luta e que gasta seu dinheiro, sua
capacidade e o sangue de seus jovens na defesa do que vós haveis conquistado e
tendes ainda que manter e aumentar. Neste vosso Dia da Independência Nacional,
proponho-vos um duplo brinde: Ao vosso Presidente, Phung Van Cung... e ao bravo
povo do Vietnam do Sul.
Dessa vez, não houve aplauso. As palavras estiveram suspensas por um
instante no ar parado, e depois todos se ergueram e beberam em silêncio. Estava
feito. E todos sabiam que estava feito - e como, e por que...
Na manhã seguinte, recebi um presente do Presidente Phung Van Cung. Era um
exemplar do Novo Testamento, na antiga versão inglesa de Douai, encadernado em
couro. Havia uma inscrição na guarda do volume:

Ao Embaixador dos Estados Unidos,


O Presidente da República do Vietnam do Sul.
São Lucas XXII: 47-48.

Amavelmente, ele marcara a passagem indicada, com fita vermelha:

"Estando ele ainda falando, eis que chega um tropel de gente; e aquele, que se
chamava Judas, um dos doze, vinha à frente deles; e aproximou-se de Jesus para o
beijar. E Jesus disse-lhe: Judas, com um beijo entregas o Filho do homem?"

Tranquei o livro numa gaveta particular da secretária, para que Anne Beldon não
o pudesse ler. Mais tarde, como medida de segurança, mostrei-o a Harry Yaffa, que
deu de ombros com semblante sombrio.
- Sempre foi esse o problema com Cung, Sr. Embaixador. Ele é um bom homem
que se perdeu, porque sempre acreditou ser Cristo Onipotente.
Imaginei o que George Groton pensaria, mas, naturalmente, estava morto e livre
de qualquer preocupação. Pela primeira vez senti-me bem por estar separado dele.
Nos dias seguintes, conservei-me diligentemente ocupado. Pedi um relatório
diário de todos os departamentos da Embaixada, freqüentei as sessões de consulta
no quartel-general de Tolliver e conferenciei regularmente com Harry Yaffa e seus
ajudantes. Tornei-me livremente acessível à imprensa e mantive Anne Beldon e
suas auxiliares presas às suas mesas de trabalho, com resmas e mais resmas de
papéis. Precisava de toda essa atividade redundante, a fim de ocupar meu espírito,
precisava da companhia de homens práticos, a fim de confirmar minha fé hesitante
no caminho tomado.
Recusava-me a comer sozinho, e fazia os convidados conversarem até tarde, e
quando jantava fora era sempre o último a sair. Antes de deitar, tomava um uísque
duplo e soporíferos, de modo que não tivesse de enfrentar um interrogatório noturno
sobre mim próprio. A despeito de tudo isso, os dias se arrastavam e eu me agitava
na expectativa de um momento decisivo por parte dos generais. Pouco lidei com Mel
Adams e queria que ele sentisse, ao menos, que eu respeitava nosso acordo,
esperando, embora com pouca confiança, que ele mantivesse algum vestígio de
respeito por mim.
A atitude de Anne Beldon comigo era estranha. Não fizera qualquer retratação
ou apresentara qualquer desculpa por seu ataque após a conferência e eu, de minha
parte, estava decidido a nunca mais entrar em discussão com ela sobre os meus
atos ou as atitudes da Embaixada. Na noite em que George Groton morreu, ela
chorara comigo, mas no fim se retirara e me deixara aos cuidados de Mel Adams.
Agora, no escritório, eu a estava fazendo trabalhar pesadamente, e à noite, devido a
meus compromissos sociais, dificilmente nos víamos sozinhos. No entanto, de
quando em vez, durante uma pausa no ditado ou enquanto assinava a
correspondência, apanhava-a olhando-me com expressão de preocupação intrigada,
como se de algum modo receasse por mim, mas não pudesse exprimir esse receio
em palavras.
Certa noite, quando estava bebendo sozinho antes de sair para jantar no
restaurante da Força Aérea, ela me veio falar. Preparei-lhe uma bebida e tivemos
ligeiras escaramuças antes que ela entrasse no assunto. As suas auxiliares estavam
sobrecarregadas de trabalho, fazia-se serão todos os dias e poucas distrações lhes
eram proporcionadas em seguida. Eu estava complicando o problema pela minha
secura e aparente indiferença por seus esforços. No contexto da guerra e morte que
reinava no país, era uma reclamação bem insignificante, mas minha própria culpa
me tornava sensível à justiça do caso. Pedi desculpas.
- ... É um problema muito real, Anne, e receio não lhe ter dado a merecida
atenção. Que gostaria que eu fizesse?
- Fale com elas de vez em quando, sorria uma vez ou duas e pergunte, às
vezes, pela saúde ou pelas famílias. Não faria mal algum mandar-lhes uma refeição,
quando trabalham até tarde, ou presenteá-las com uma estola ou algum trabalho em
lacre. Elas são apenas humanas! Algumas são sozinhas e estão vivendo sob tensão
nesta cidade. Elas o admiram muito, mas quando passa pelo escritório como se
fosse a própria ira divina, ficam sentidas. Além disso, não compreendem realmente o
que está acontecendo...
- E você compreende, Anne?
- De início, não, mas comecei a entender na noite em que George morreu. Eu
nunca percebera a sua solidão, ou como suas afeições estavam ocultas. Desde
então, tenho-me sentido culpada.
- Não deve sentir-se assim, Anne. Não sou fácil de entender, nem é fácil gostar
de mim. Além disso, estamos em situação crítica e tive pouco tempo para fazer um
ajustamento pessoal.
- Agora, eu sei disso. Foi o que tornou tão injusto meu ataque a você, e o de Mel
Adams, e mesmo o de George Groton. Ainda não posso dizer que concorde com o
que está fazendo, mas pelo menos deveria dar-lhe o crédito de um objetivo honesto.
- Acho que a coisa vai muito além disso, Anne. O problema é que eu mesmo
não estou certo de ser ou não honesto.
- E alguém pode estar?
- A maioria, acredito.
- Somente porque eles nunca se desafiam ou examinam a si próprios. A maioria
é covarde.
- Você é covarde, Anne?
- Sou.
- Nunca reparei nisso.
- Não é coisa que apareça, como uma ponta da combinação ou um fio solto na
meia. É coisa que se esconde, como um sinal no rosto ou uma cicatriz. E esconder
faz parte da covardia.
- De que tem medo, Anne?
- Quer mesmo saber?
- Somente se você quiser dizer.
- Quer-me servir outra bebida, por favor?
Enquanto o fazia, ela se levantou e foi até as janelas, olhando para o jardim
escuro. Levei o copo até lá e, lado a lado, observamos as luzes da casa de guarda,
as linhas misturadas das árvores tropicais e as estrelas lucilando em meio às
nuvens. Senti-lhe o perfume e vi-lhe o rosto, meio iluminado, como um camafeu
esculpido em perfil contra um fundo escuro. A voz era sussurrante.
- ... Foi na noite em que George morreu. Eu estava terrivelmente abatida, porque
me fazia relembrar vivamente a morte de meu marido. Mais do que tudo, no entanto,
fiquei espantada com o seu sentimento pela morte de George. Você estava tão
desprotegido, tão desolado! Era um homem com todo o terror do mundo nos
ombros. Eu queria reconfortá-lo, mas não conseguia. Deixei-o com Mel. Mais tarde,
quando ele já se fora, ouvi você andando de um para outro lado no quarto. Vim e
fiquei do outro lado da porta, e queria de todo o coração entrar e estar com você,
abraçá-lo e ser uma mulher para você... Mas tinha medo...
- De mim, Anne?
- De você, não. Mas, naquela noite, eu poderia entregar alguma coisa, dar-lhe
uma coisa que não poderia mais recuperar. Oh, não seria a virtude, reputação ou
mesmo amor! Era eu, a covardezinha que eu escondia e protegia, e não queria gas-
tar-me ou expor-me, para não sofrer novamente. Por isso, disse a mim própria que
você não precisava de mim, era homem grande e importante, tão forte que poderia
sobreviver a qualquer coisa que lhe acontecesse. Voltei para a cama e chorei até
dormir. Na manhã seguinte, então, vi o que lhe tinha acontecido. Estava
transformado em homem de pedra, o seu coração se fechara e você jogara fora a
chave... Vi que lhe tinha falhado, falhara a mim mesma, também. Imagino, agora, se
não irei faltar a qualquer homem bastante imprudente que venha a me amar...
Passei o braço em volta dos seus ombros para achegá-la a mim e reconfortá-la,
mas Anne não correspondeu, e disse com muita doçura:
- Não, por favor! Não faça isso. Eu quero ser beijada e aquecida como qualquer
outra mulher, mas não tenho direito a isso, e me sentiria como se fosse uma
vagabunda.
Depois, voltou-se para mim com um sorriso triste e encostou os dedos frios em
meu rosto.
- Estamos os dois no mesmo barco, não é? Estamos ambos procurando quem
nos perdoe, mas não achamos. Talvez nunca achemos, até que aprendamos a
perdoar a nós próprios...
Era um pensamento obsedante, fazendo eco ao que eu ouvira da boca do
romancista - o de que homem algum pode tomar de empréstimo a absolvição de
outro. E ainda assim, sem ter, pelo menos, a ilusão de perdão, não era possível ao
homem sobreviver como criatura mentalmente sã, num mundo louco. Todo homem,
fosse qual fosse sua qualidade ou posição, tentava criar um meio de eximir-se da
própria culpa. Os Harrys Yaffas do mundo partiam de uma meia-verdade, a de que a
delinqüência era universal e, portanto, inevitável. No entanto, terminavam com uma
mentira completa, a de que a culpa era uma ilusão e empecilho na batalha selvática
pela sobrevivência. Os egoístas se punham acima da culpa e tornavam o resto do
mundo seu bode expiatório. Os budistas, diante da universalidade da imperfeição,
prendiam o homem à roda da vida e o mandavam girando por uma purificação
repetitiva e inexorável, numa longa sucessão de existências. Penalidade tão terrível
e desproporcional para a existência, isso era em si próprio um perdão e, às vezes,
um convite ao delito. O incrédulo ou ignorante, que cambaleava sob o peso de sua
natureza delinqüente, apelava às vezes para o recurso curativo da psiquiatria ou da
psicanálise. Os verdadeiros profissionais da arte visavam a formar no homem a luz e
a força necessárias para que se aceitasse como era, e gastar os seus traumas com
respeito, senão alegria. Já os outros, que buscavam conceder a absolvição negando
toda a responsabilidade, viam-se ao fim incapazes e indignos, pois o próprio
paciente começava a chorar da mentira que destruíra sua dignidade, juntamente
com a culpa.
Culpa e dignidade... Era uma justaposição singular, mas no fundo não se
mostrava autêntica, ou ao menos desejável? Para ser culpado era preciso ser livre, e
não totalmente sujeito a alguma pressão cósmica. Ser livre era poder fazer outra es-
colha, senão ser sempre capaz de modificar as conseqüências da primeira. Eu
sempre reconhecera grande sabedoria na prática católica da confissão sacramental,
com sua garantia de perdão judicial aos bons de coração, mas aceitar o sacramento
era aceitar também toda a fé em que se fundava, a de um Deus pessoal, um
Redentor encarnado, uma autoridade continuada no dogma e na moralidade. Mas
aceitar ou recusar eram coisas além de meu poder, conforme um velho e sábio
dominicano se esforçara por me demonstrar, e precisava esperar pacientemente
pelo esclarecimento que talvez jamais fosse concedido, por um Deus que eu talvez
jamais viesse a reconhecer.
Para qualquer lado que me voltasse, via-me apanhado em mistério, o mistério
da identidade, a natureza e responsabilidade do homem. E sabia que não existia
qualquer outra solução, a não ser continuar na peregrinação cega e esperar, sem
esperança, por uma luz ao fim da caminhada. Anne Beldon estivera certa, ao negar-
se ao perdão fictício de um ato casual de amor. Em longo amor partilhado alguém
poderia encontrar as raízes do céu, e às vezes encontrava mesmo, mas na
carnalidade rápida da pequena morte não havia absolvição, e tampouco na grande
morte, com todo o seu alívio ilusório... Portanto, é continuar a tocar, violinista!
Amanhã, estarei de volta à guerra!
Dois dias depois, às quatro da tarde, Harry Yaffa veio ver-me. Mostrava-se tenso
e exultante.
- Será hoje à noite, Sr. Embaixador! Para ganhar, perder ou empatar, o jogo
está feito! Vamos consultar nossos mapas e lhe mostrarei como vai ser. Vejamos
Saigon, em primeiro lugar - disse, espalhando os mapas sobre minha mesa e me
apresentando uma lição rápida e precisa sobre a tática da revolução. - Eis o
aeroporto. Os generais estabeleceram aqui o quartel-general de operações, bem ao
lado. Às duas da madrugada, os soldados deles tomam o aeroporto e centro de
comunicações. Aqui está a estação de rádio e ali o centro telefônico. São os
primeiros objetivos dentro da cidade. A partir disso, as ações convergirão sobre o
Palácio. Agora, veja as quatro artérias principais para se chegar à cidade: três do
norte, e uma do sul. Uma vem de Bienhoa, outra de Bencat, outra de Tayninh e
depois a Estrada Meridional, que vem de Tanan. Os tanques e infantaria deles já
estão prontos para marchar e os canhões atrelados aos transportes. À meia-noite,
estarão nos subúrbios da cidade. Às duas da madrugada, ter-se-ão apossado da
estação de rádio e do centro de comunicações, os tanques e a artilharia estarão em
posição. Depois disso, telefonarão a Cung no Palácio e exigirão que se renda. Se
não o fizer, será feito um bombardeio aéreo, uma barragem de artilharia e depois
um ataque completo, com tanques e infantaria... Agora, vejamos o resto do país. A
Academia Militar em Dalat está pronta a desertar e as tropas locais se acham
organizadas. Hué é considerada segura para os rebeldes. Danang está pronta, e
também Longxuyen, no sul, e Cantho. .. É um plano muito bom, Embaixador, e o
General Kiev tem certeza de que dará resultado, sem qualquer exposição indevida
aos vietcongs nas regiões vulneráveis.
- E que pensa Tolliver?
- Ele aprova. Os seus próprios agentes têm avaliado cada passo, à medida que
tomam conhecimento, e ele se mostra razoavelmente satisfeito quanto à segurança
de nossas próprias tropas. Todas as licenças foram canceladas para esta noite e
o pessoal já licenciado foi chamado de volta. As patrulhas do Exército já os estão
fazendo voltar aos quartéis, de modo que ninguém seja apanhado no fogo cruzado
desta noite.
- E que diz de nossas comunicações?
- Todos os nossos canais de rádio permanecerão abertos e funcionando sem
parar, e o General Khiet ordenou que sejam mantidas abertas todas as linhas para a
Embaixada, instalações militares e sua casa. Acho que cobrimos quase tudo, a não
ser a questão do pessoal da Embaixada. Que deseja fazer a esse respeito?
- Eu ficarei aqui, naturalmente. A Srta. Beldon ficará comigo. Mantenha o
pessoal todo do centro de comunicações a postos, mas mande os homens casados
para casa, a fim de tomarem conta de suas famílias. Os chefes de seção podem
ficar trabalhando, ou designar substitutos se quiserem. Avise a todos que não saiam
à rua e jantem em casa. Vou sair bem cedo e conversar com Tolliver. Jantarei
provàvelmente com ele e estarei de volta às nove horas. Se precisar de mim, tele-
fone para o gabinete de Tolliver.
- Duvido que precisemos do Sr. - disse ele, sorrindo e dando de ombros, em
sinal de resignação. - A coisa está fora de nossas mãos. Até Mel Adams não devia
sentir-se tão insatisfeito assim. Afinal de contas, isso é autodeterminação: dos
vietnamitas, pelos vietnamitas e para os vietnamitas! E que Deus ajude os generais,
se seus planos não derem certo!
Eu não podia manifestar-lhe a minha própria esperança perversa e secreta, de
que mesmo nessa décima terceira hora Cung conseguisse um milagre e,
surpreendendo-nos a todos, surgisse novamente como libertador e vencedor. A
despeito de todos os seus defeitos, impunha respeito, e sua coragem obstinada
merecia fim melhor do que os seus antigos camaradas preparavam para ele.

Dispondo de meu conhecimento particular sobre a situação, estranhei que a


cidade se mostrasse tão indiferente à violência que pairava sobre ela. Os
funcionários foram para casa, depois de encerrado o expediente nos escritórios,
carregando as pastas sob os braços. Os jornaleiros mantinham-se sentados calma-
mente nas bancas de esquina. Os lojistas estavam de pé nas portas, conversando
uns com os outros e com os transeuntes. Pelas portas abertas de uma barbearia, vi
homens reclinados como paxás e rostos cobertos de espuma, enquanto moças bo-
nitas lhes aparavam as unhas. Estudantes passavam em motonetas ruidosas, às
vezes levando uma moça montada na garupa, blusa de seda apertada ao corpo e
pezinhos poucos centímetros acima do chão. As aias, em seus trajes negros,
passavam com crianças pela mão. Os vendedores de bolos de soja e confeitos
rolavam os carrinhos e os varredores da limpeza pública varriam as sarjetas
pacientemente, empurrando o lixo com as vassouras. Alguns poucos fiéis subiam e
desciam os degraus da catedral, e pelas portas abertas de um pagode vi num
relance um manto amarelo e a passagem lenta de uma monja de cabeça raspada.
Até os policiais pareciam lânguidos, e os milicianos mais interessados em examinar
as moças que passavam do que na defesa de uma República sitiada.
Eu não podia crer que um movimento tão grande de rebelião pudesse passar
despercebido, mas talvez fosse esse o sintoma principal da longa e debilitante
doença da guerra. O povo já vira tantos capitães virem e irem, tinha ouvido tantas
vezes o rumor de tanques e transportes de tropas, que se tornara indiferente. Numa
cidade cheia de boatos, que era um mexerico a mais ou a menos? Em vida de tanta
incerteza, vivia-se de um dia para outro, sem se pensar além da próxima refeição e
noite de sono imediata. Aquilo era a Ásia, onde ainda havia a recordação de Kublai
Khan e dos imperadores Ming e das fabulosas irmãs Trung, que montavam em
elefantes para afrontar o invasor, mas onde o principelho mais recente não tinha
nome e o novo chefe militar durava, talvez, um dia apenas.
No quartel-general de Tolliver, achei-me de volta ao século XX. Havia uma
atmosfera de energia e eficiência exultante, os toques constantes dos telefones e
muita entrada e saída de funcionários e oficiais subalternos. O próprio Tolliver se
mostrava enérgico e bem-humorado, insistindo em mostrar-me seus mapas da
situação e apresentar sua própria versão da batalha à vista.
- ... Trata-se de boa operação, Embaixador. Boa tática, boa logística, e acho
que eles conseguirão vencer.
- Quanto tempo será preciso?
- Entre quatro e vinte e quatro horas, dependendo do comportamento da
Guarda Palaciana. De acordo com as nossas informações, Cung tem cerca de
quatrocentos soldados alojados no Palácio e em volta. Tem metralhadoras,
morteiros, e as baterias antiaéreas, naturalmente, mas não podem resistir inde-
finidamente ao bombardeio aéreo e à artilharia. Se os generais puderem trazer suas
tropas à cidade sem lutar pelo caminho, tudo será fácil.
O que eu não podia compreender era como Cung, a despeito de todo o controle
que afirmara ter sobre a situação, deixara os generais completarem tão
meticulosamente os preparativos. Tolliver, no entanto, sabia responder a essa
pergunta:
- Eles simplesmente embrulharam as comunicações dele, dentro e fora do
Palácio. Deram-lhe informações falsas sobre os movimentos de tropas e as
designações. Todo o Estado-Maior e quadros do Governo estão cheios de traidores.
- Veja como fala, General! Amanhã, serão todos heróis.
- Sei disso - retorquiu com sorriso malévolo. - Acho que adjetivos não têm
grande valor quando as fidelidades se encontram divididas. Hoje à tarde, mostrei aos
meus oficiais como seria fácil embrulhar nosso quartel-general, depois dos canais de
serviços secretos estarem contaminados... De certo modo, tenho pena de Cung.
Merecia coisa melhor. O que acontecerá com ele?
- Só Deus sabe. Estou autorizado a lhe conceder asilo, se pedir, mas é tudo.
- E não interviremos?
- Não.
- Bem, é assim que se perde. Regra número um para qualquer ditador: tenha o
Exército a seu lado e conserve-o! Se não fizer isso, estará perdido. A esta hora,
amanhã, também Cung estará perdido e morto.
- A despeito das garantias? A despeito do General Thuyen?
- A despeito de tudo, Embaixador! Ainda que a Guarda Palaciana lute até a
última bala, terá de render-se no fim. Depois disso, começará a negociar para
garantir a própria vida. E qual será o trunfo de que lançarão mão? O grande ditador,
o Presidente Cung! Os generais não precisam assumir qualquer responsabilidade.
Será liquidado pelos seus próprios homens, quando estes compreenderem como
foram enganados e mal orientados.
- Eu não tinha pensado nisso.
- Não pode pensar em tudo, Embaixador - disse Tolliver com bom-humor. - Se
não se incomoda que o diga, acho que fez um trabalho formidável. Agiu
cautelosamente, não perdeu a cabeça e não fugiu a uma decisão quando era
preciso tomá-la. Estamos todos a seu lado, pode acreditar.
Partindo de Tolliver, isso era um nobre louvor. Fiquei reconhecido ao
cumprimento e satisfeito em saber que ele era homem simples demais para
compreender a ironia da coisa... Imaginei, também, o que Cung estava fazendo no
Palácio, enquanto os morteiros eram colocados em posição e o municiador distribuía
granadas e pentes de balas, os artilheiros examinavam seu campo de tiro. Estaria
com medo? Sentiria desespero pela traição? Estaria percorrendo os grupos de sua
pequena guarnição, ou fumando um charuto após o jantar, na companhia dos
últimos elementos leais de sua oficialidade? Senti a desconfiança sutil e inquieta de
que estaria orando diante do Cristo de Ronault.
Foi uma longa vigília e eu era personagem por demais importante para ser bem
recebido no jogo de dados no escritório do Segundo Secretário ou na roda de café
no centro de comunicações. Havia a pilha costumeira de trabalho normal, porém na
véspera de um levante armado ela parecia destituída de importância e não me
agradava mexer nisso. Mandei Anne Beldon reunir-se às outras funcionárias de
prontidão e apanhei meu diário, começando a escrever mecanicamente, mas depois
com sofreguidão, meus pensamentos íntimos sobre aquela última noite, antes que o
mundo desabasse. São páginas estranhas, confusas, e ao relê-las agora, sinto uma
ponta de piedade pelo homem que as escreveu.

“... Daqui a três horas começarão os tiros e morrerão homens. Nas crônicas da
época, será escaramuça sem importância e logo se verá esquecida. Mas toda
batalha é um Armagedon para alguns pobres diabos... Todas as palavras que
pronunciei e escrevi logo se transformarão em balas, baionetas e granadas de
artilharia. É estranho, mas é verdade. No fim, os homens são mortos por palavras.
Talvez fosse isso o que o romancista quis dizer quando afirmou que conhecia o
significado das palavras e, portanto, as respeitava. Nós, que nos vemos afogados
em tantas palavras da imprensa, das telas de televisão e receptores transistorizados,
passamos a depreciá-las e torcê-las. Mas na verdade são dentes de dragão... Quem
lê das Kapital hoje? No entanto, de Vladivostok ao Muro de Berlim, de Hankow a
Havana, há bombas e baionetas em conseqüência daquele livro que ninguém
consegue ler... Nós também somos artesãos de palavras, fabricamo-las sem valor e
depois imaginamos por que as pessoas simples as atiram de volta ao nosso rosto.
Na semana passada, pronunciei sete palavras num brinde, e amanhã de manhã elas
poderão tornar-se o laço em volta do pescoço de um homem, ou uma bala em sua
cabeça... A palavra é a faculdade que nos dá a qualidade de homens. Por que a
usamos tão mal, que às vezes de bom grado preferiríamos ser surdos-mudos?...”.
"Os tanques devem estar chegando, com os caminhões e canhões. Nossos
tanques, nossos canhões. Nós os compramos com o dinheiro do povo e os demos a
nossos amigos, para sua segurança e liberdade. Mas os que ontem eram nossos
amigos estarão mortos amanhã, mortos pelas armas que lhes demos. Portanto,
quem está seguro e quem se acha livre, sob a ameaça de maldade mútua, na
servidão da desconfiança perene?...”.
"E eu, que escrevo isso com tanta clareza, por que complico a confusão? Ou
será que falo duas línguas, uma para dizer particularmente a verdade e a outra para
o intercâmbio numa sociedade cuja natureza e complexidade não compreendo? E
se não a compreendo, por que aceito a indicação como árbitro de seu destino?...”.
"Quem sou eu, que escrevo? Nem isso eu sei com certeza. Mostrem-me outro
homem, no entanto, que eu desconheça igualmente, e com grande certeza lerei sua
infâmia e assinarei a ordem de sua execução. Nisso, o homem que está perto de
morrer mostra-se mais afortunado do que eu. Acredito que sua vigília seja mais
calma do que a minha. Ele sabe quem é, ou pelo menos acredita saber. Sabe o que
é a morte e a aceitará como consumação e continuidade. Sabe o que significam as
palavras, também: 'No início havia a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a
Palavra era Deus... ' Ainda assim, faltou lamentavelmente nas questões do bem
comum e, por isso, a Palavra Brilhante de nada lhe valeu...”.
"No aeroporto estão enchendo os tanques de combustível e colocando os
foguetes nos aviões e preparando os fusos das bombas. Jovens como George
Groton voarão ao vento com fúrias vingadoras, despejando a destruição sobre
outros jovens a quem não podem ver... Que pensamento banal! Um lugar-comum de
nossos tempos esclarecidos. O espírito da árvore pode ser propiciado com incenso,
o da água é apaziguado com flores jogadas nela, o da casa está faminto e podemos
sossegá-lo com um bolo de arroz. Mas os vingadores do ar lá em cima, os que
viajam em carros de guerra cor de fogo, quem os pode aplacar, e como, a não ser
com sangue e fumaça do sacrifício humano?...”.
"Que farei amanhã, quando estiver tudo acabado? Voltar a um ermo e encher os
cabelos de cinzas? Eu sou o oráculo que deve proclamar um desfecho afortunado:
‘... uma rápida restauração de relações normais, um esforço renovado no setor
militar, governo estável e esclarecido, liberdade, igualdade, e vamos dançar nos
clubes novamente! Deixemos os profissionais continuar um pouco com sua
prostituição honesta, e ao diabo com os neutros e neutralistas franceses também! ’
Dixi! - Falei! E depois voltarei aos Estados Unidos assobiando Dixie, levando em
meu bolso uma vitória para a democracia... Por que diabo eles não começam?
Acabem logo com o morticínio, e talvez possamos todos dormir um pouco!...”
“E o Faraó disse a José: 'Tive sonhos e não há quem os explique...' Quem
poderá explicar-me a mim próprio? Quem me decifrará, o sonhador de seu próprio
sonho, o sonho do pássaro mudo e da terra plana, e o sonhador cercado por luz,
mas sem poder ver outra coisa senão um cuco silencioso...? Não posso suportar
esta solidão. Preciso casar-me, viver um pouco, ter um filho que dê continuação ao
meu nome. Até mesmo um pouco de amor bastaria, e eu seria reconhecido a ele,
como uma nova dádiva de vida. O presente da vida é de lágrimas e risos. Estou
vazio de lágrimas e faz muito, muito tempo que não rio...”
"Gabrielle, por que não está comigo? Onde está você agora? Já se encontrou
com o George? Ele fala de mim com bondade? Não consigo pensar em vocês dois
amarrados à roda da vida, girando sem cessar e atravessando uma cadeia de futi-
lidades, marchando para a calma imensa do nada. Há um horror nisso, uma loucura
insuportável!... Que eu, em alguma existência futura, possa violar aquela a quem
amei nesta existência, esmagá-la sob os pés, como um verme sob minha pata de
elefante, ou um micróbio em seu sangue, abatê-la numa segunda morte... Tudo isso
é bobagem primitiva, que afronta toda a razão! Mas ansiamos tanto pela promessa
da imortalidade, que estamos prontos a aceitá-la quase em qualquer condição..."
"Mel Adams e Harry Yaffa... Que contraste! No entanto, a quem respeito mais?
O homem que desempenha com eficiência, às vezes até com entusiasmo sexual as
tarefas mais sórdidas do Governo, ou o homem que se reserva sempre o direito de
discuti-las ou rejeitá-las? Por ser o Governo, neste lugar e neste momento, vejo-me
oscilando entre os dois. Sem Yaffa, não posso funcionar e ponho em perigo as vidas
de muitos homens. Sem Adams... Mas já estou sem ele. Firmou-se em nosso acordo
e negou-se a participar comigo na vigília. O que prova - ou prova, mesmo? - que a
consciência é ingrediente dispensável no equipamento social..."
"Na rua, ouço o rumor de tanques e caminhões pesados. Da janela, nada
consigo ver. Consulto o relógio. Uma e meia da madrugada... Que vigília longa...
Para Cung, talvez seja uma agonia em seu próprio jardim do Palácio. Para o seu
Judas - se é que sou mesmo um Judas - uma outra, ainda mais longa, está sendo
preparada. Por quanto tempo o zombeteiro Pilatos governou em Jerusalém, depois
da Crucificação? Quanto tempo poderei ficar aqui, a fim de provar que meu país não
tem qualquer culpa e se acha cheio de pensamentos nobres e benéficos para com
os seus bravos aliados asiáticos?... Um telefonema de Harry Yaffa. Tudo marcha
conforme os planos. Ele vai tentar manter contato... "
"Anne Beldon acaba de me trazer uma xícara de café. Estou fortemente atraído
por ela. Minha noite com Maggie Benton aguçou meu apetite sexual. Sei que poderia
eliminar os receios de Anne e arrastá-la ao casamento. Mas e depois? Uma união
entre o carrasco e a mulher que o viu atrás de sua máscara. Inimaginável,
imprevisível em seus terrores íntimos... Cessou o rumor dos veículos. Agora, é o
ruído de gente correndo, na cadência regular e disciplinada de soldados de
infantaria. Mais alto do que esse barulho, o zumbido de aviões que se aproximam...
Venham, por Cristo! Vamos ouvir esses malditos canhões!"

Capítulo onze

Passavam quatro minutos das duas quando ouvi os primeiros tiros, o ruído
surdo e duplo das baterias antiaéreas. Logo em seguida, começaram a cair as
bombas, fazendo estremecer as vidraças. Enquanto a primeira onda de aviões se
afastava, iniciava-se a barragem de artilharia, misturada ao som de morteiros e
rajadas ocasionais de metralhadoras. Sentia-me como homem preso enquanto o
mundo lá fora explodia e se tornava um caos. Depois de dez minutos, não pude mais
suportar, e chamei Anne Beldon e Bill Slavich. Saímos, dando a volta em frente ao
rio e rum ando para o Hotel Caravelle. Subimos para o jardim do terraço e olhamos a
cidade lá de cima.
Era um espetáculo fantasmagórico e sinistro. Toda a cidade estava acesa, o povo se
pusera sobre os telhados, sacadas e janelas abertas, como espectadores num jogo
de futebol. A região do Palácio estava envolta numa grossa coluna de fumaça e
rodeada pelos tiros da artilharia. Podíamos ver os tanques, rastejando como
monstros acocorados pela rua, enquanto a infantaria se escondia atrás deles ou se
encostava às paredes. Havia incêndios em lojas e edifícios, granadas de morteiro
explodiam nas calçadas. Os aeroplanos iam e vinham, bombardeando o conjunto do
Palácio, e quando se afastavam os tanques chegavam mais perto, disparando à
queima-roupa pelos bulevares.
Quando houve a última revoada, não havia fogo antiaéreo e o círculo de
homens e tanques se fechara mais em volta à cidadela. Os defensores reagiam
obstinadamente, com metralhadoras, bazucas, morteiros e armas ligeiras. Às vezes,
durante um intervalo nos disparos, ouvíamos gritos de homens, e de vez em quando
um grito longo, fino e distante como o de um passarinho. À nossa volta se formara
um grupo de gente, correspondentes, empregados do hotel, fotógrafos, negociantes
franceses ou simples freqüentadores do bar, que tinham ficado para assistir à festa.
Havia uma confusão de idiomas, e de vez em quando um grito, quando irrompia
nova barragem de fogo ou outro edifício se incendiava.
Ficamos ali talvez hora e meia e, de repente, desgostou-me aquele espetáculo
de destruição. Voltamos à Embaixada e me dirigi diretamente ao centro de
comunicações a fim de saber as notícias. A luta irrompera em Danang, mas Hué e
Dalat estavam em calma e as cidades do Delta tinham-se bandeado sem disparar
um tiro. Harry Yaffa telefonara para informar que todos os pontos estratégicos na
cidade estavam em mãos dos rebeldes e a Rádio Saigon já se achava no ar com a
notícia de que as defesas do Palácio deviam cair a qualquer momento. Telefonei
para o quartel-general de Tolliver. Todos os seus comandantes regionais haviam
dado notícias e o interior do país estava tranqüilo. Até os Vietcongs pareciam ter
interrompido as suas atividades, pela primeira vez em muitos meses. Às 3h40m,
cessaram os tiros e meia hora depois Harry Yaffa chegava com a notícia de que a
Guarda Palaciana se rendera, mas Cung fugira. Como, quando ou para onde tinha
ido, ninguém parecia saber. Muitos dos seus auxiliares tinham permanecido,
manejando as metralhadoras e lutando com carabinas e granadas, nas últimas
barricadas. De acordo com Yaffa, os soldados do Palácio estavam amargurados
pela deserção de Cung e pela loucura sangrenta de sua luta sem esperanças.
Por estranho que pareça, eu também via isso com amargura. Esperara coisa
melhor daquele homem, um heroísmo final, uma avançada selvagem, talvez, contra
toda a possibilidade. Mas não! Intrigante até o final, ele fugira e deixara sua
guarnição à morte, cobrindo a sua retirada ignóbil. E depois disso, após a amargura,
veio uma onda de alívio. Afinal de contas, minha decisão fora acertada. Eu
trabalhara bem para meu Governo e por aquele país. Arriscara muito, mas o
desfecho me absolvera finalmente. Mandei mensagem para Festhammer e depois
sentei-me com Harry Yaffa para tomar café com sanduíches.
Yaffa estava exultante.
- Funcionou como um relógio, Sr. Embaixador! Foi um golpe de mestre! Se Khiet
puder dirigir o país do modo como dirigiu esta operação, estaremos novamente bem.
Até as baixas não foram muitas, só uns cinqüenta mortos no Palácio e cerca de cem
feridos. É um custo pequeno, quando se pensa que todo o país poderia revoltar-se.
O Sr. devia sentir-se orgulhoso. Quando terminar o café, vamos andar pela cidade e
ver o que está acontecendo. Pelo que eu já vi, vai ser como Paris na tomada da
Bastilha...
A descrição se mostrou correta. Embora apenas uma hora tivesse transcorrido
desde o nascer do sol, as artérias da cidade estavam congestionadas de gente,
rindo, gritando, abraçando-se, passando garrafas de bebidas dos bares e
oferecendo-as a qualquer soldado que estivesse por perto. Rodeavam meu automó-
vel e batiam palmas, gritando vivas aos americanos e amigos da República. Alguém
suspendeu uma menina com um buquê de flores na mão, e porque ela não podia me
alcançar, puseram-na sentada no capô do carro como mascote, e a levamos por uns
cinqüenta metros pelo bulevar. Multidões de estudantes marchavam pelas calçadas,
de braço dado, com cartazes de papelão amarrados ao peito ou suspensos sobre a
cabeça. Em frente à Assembléia Nacional, um homem tocava acordeão e rapazes e
moças dançavam em volta, ao som de uma canção de amor antes proibida. Ao
longo da Catinat, outra multidão apedrejava uma loja e jogava jornais incendiados
pelas vitrinas partidas. Era a livraria pertencente a uma pessoa da família Cung.
Logo se incendiava, e a multidão e soldados aplaudiam, enquanto as chamas
aumentavam.
A região do Palácio fora isolada com soldados, mas quando viram a flâmula do
carro nos deixaram chegar perto para ver os destroços, as crateras de bombas e o
incêndio que ainda lavrava. Os saqueadores estavam ativos nas ruínas, tirando mó-
veis, ornamentos e garrafas de vinho. Noutra rua, tivemos de subir na calçada para
dar passagem a uma procissão de monges budistas que transportavam o coração
de seu primeiro mártir, numa caixa dourada, sob dossel de seda vermelha. O povo
os aplaudia, e alguns se punham de joelhos em veneração. Bandeiras esvoaçavam
em todos os pagodes, e sempre que aparecia um manto amarelo na multidão o povo
se comprimia em volta e enchia sua tigela de presentes. Sempre que alguém via a
flâmula em nosso automóvel, formava-se um tumulto de aclamações e éramos
cercados. Numa dessas vezes, o próprio automóvel foi erguido do chão e carregado
por uns 20 metros pela multidão que aclamava.
Embora fizéssemos um circuito muito curto, levamos mais de duas horas para
regressar à Embaixada, onde encontrei Arnold Manson, o australiano, esperando
por mim em companhia do Embaixador italiano.
Manson se mostrava constrangido e formal.
- Estivemos esperando pelo Sr. perto de uma hora, Sr. Amberley, e o assunto é
muito urgente. Estamos informados de que o Presidente Cung ainda se acha
escondido. O Sr. tem alguma outra informação?
- Nenhuma, infelizmente.
- Nesse caso, temos ainda algum tempo para agir. Telefonei aos nossos colegas
diplomáticos e estão todos acordes em que, por questão de simples humanidade e
tendo em vista a opinião mundial, deve ser garantida a segurança do Presidente
Cung. Meu colega e eu queremos ir imediatamente ao quartel-general do general
Khiet e lhe apresentar a questão nos termos mais enérgicos possíveis.
- Tem toda a liberdade para isso, Sr. Manson. Pessoalmente, aplaudo a sua
atitude.
- Gostaria de vir conosco, Sr. Amberley?
- Não creio que seja necessário. Já exprimimos nossos desejos ao general Khiet
e seus colegas, e recebemos garantias de que serão feitos todos os esforços por
preservar a segurança da pessoa do Presidente Cung. Minha visita, portanto, seria
uma redundância. Além disso, tenho muita coisa a fazer aqui. Ele me olhou
longamente, com expressão dura, e depois disse serenamente:
- Nesse caso, o Sr. nos daria uma nota assinada, exprimindo seu acordo com
nosso pedido?
- Repito, Sr. Manson, que já fizemos nosso pedido. Não vejo motivo para reiterá-
lo.
- Devemos ir, Manson - disse o italiano abruptamente. - Nada há a fazer aqui e
já perdemos um tempo precioso.
- Bom dia, cavalheiros.
Quando a porta se fechou atrás deles, Anne Beldon explodiu numa reprimenda
apaixonada:
- Por quê? Por que, em nome de Deus, não fez o que pediam?
- Porque sou o Embaixador, Srta. Beldon, e somente eu resolvo o que é melhor!
Mais alguma pergunta?
- Nenhuma, Sr.! - respondeu, e seu rosto era uma fria máscara de desdém. -
Nenhuma, nunca mais!
Meia hora depois, Mel Adams regressava à Embaixada. Trazia seu relatório, o
pedido de demissão e a notícia de que Phung Van Cung estava morto.

Adams estava muito calmo e contou as coisas com o alheamento de homem


que mediu e aceitou todas as conseqüências. A sua calma me impressionou e eu o
ouvi sem perguntas ou interrupções.
- ... Fui eu, Sr. Embaixador, que retirei Cung do Palácio e estive com ele até
poucos instantes antes de sua morte. Consegui isso de modo bem simples. O motivo
pelo qual o fiz é mais difícil de explicar, porém vou tentar fazê-lo. Meu dever para
com o serviço diplomático e esta Embaixada já estava cumprido. Externara a minha
discordância em questão de alta política e anunciara minha demissão. O Sr. pediu-
me que ficasse, a fim de evitar embaraços para o Governo. Concordei, mas sob
condições que o Sr. aceitou. No entanto, cabiam-me outros deveres, junto a mim
próprio como homem, junto a meu país como cidadão. Não me podia tornar, nem a
meu país, cúmplice num possível assassinato, e por isso resolvi agir. Ao deixar a
Embaixada, ontem à noite, fui para casa e de lá telefonei ao Palácio. Precisei de
bastante tempo para falar com Cung, e mais tempo ainda para o persuadir a me
receber. Finalmente, ele concordou. Fui ao Palácio em meu automóvel particular,
quando já estavam fazendo preparativos para o cerco. Sabiam o que ia acontecer,
de modo que não houve quebra de sigilo de minha parte.
- Cung me recebeu na presença de seis ajudantes mais graduados. Eu lhe disse
estar agindo independentemente e expliquei o motivo. Ofereci-me levá-lo em meu
carro para asilar-se em nossa Embaixada. Disse-lhe que se o Palácio fosse cercado
seria possível evitar derramamento inútil de sangue. Sua resposta foi que não se
humilharia diante dos americanos que o haviam traído, e seus ajudantes
concordaram. Ofereci levá-lo para minha própria casa e ele recusou também,
dizendo que não me iria expor, com minha família, ao perigo. Como última sugestão,
apontei a casa do Chinês Número Um, porque qualquer que seja o regime, ele é
intocável. Toda Cholon se levantaria em revolta se seu patriarca fosse ofendido de
qualquer maneira.
- Nesse ponto, alguns dos ajudantes participaram da discussão. Era evidente
que tinham discutido a possibilidade de continuar a luta, ainda que o Palácio caísse
em poder dos generais. Falou-se em simpatia no interior do país e apoio entre os
generais menores... Nisso, interrompeu Cung asperamente a discussão e me pediu
que esperasse do lado de fora. Esperei mais de uma hora, e depois Cung saiu com
seus ajudantes. Disse-me que resolvera aceitar a opinião dos seus conselheiros e
esconder-se. Telefonara ao Chinês Número Um, que lhe oferecera abrigo temporário
em sua casa. Levei-o para lá, bem abertamente, às onze horas da noite. A essa
altura, o Palácio e vizinhanças estavam sem luz e passamos pelas guardas sem que
fosse feita qualquer pergunta...
- Ele estava muito calado, mas de repente se voltou para mim e disse: "Espero
que compreenda, Sr. Adams, que eu poderia com a mesma facilidade ser levado
pelos meus homens. A batalha ainda se acha a algumas horas de distância. Ainda
tenho liberdade de locomoção".
- Respondi que compreendia isso, e ele então perguntou: "Sabe por que vim
com o Sr.? Porque quando um homem simples faz uma coisa boa com tanta
simplicidade, jamais deve ser menosprezado. O Sr. é homem muito simples, Sr.
Adams, e o que faz é bom, ainda que não tenha importância, a não ser moral. Já o
seu Embaixador não é homem simples e, por isso, é melhor político do que o Sr.,
mas o que ele faz não é bom para ele próprio nem para o seu país".
- Quando lhe disse que não desejava discutir a seu respeito, ou sobre a atitude
da Embaixada, ele simplesmente deu de ombros e disse que os bons nunca iam até
onde era preciso, e os maus sempre iam longe demais, de modo que ambos
deixavam de atingir os seus fins.
- Quando chegamos à casa do Chinês Número Um, fomos recebidos por um
empregado que nos levou imediatamente ao quarto do velho. Lá estava reunida toda
a família, homens, mulheres e crianças, todos em suas melhores roupas. Cung ficou
profundamente emocionado e o Chinês Número Um fez um curto discurso de boas-
vindas, e disse entre outras coisas: "Este homem é hóspede respeitado em minha
casa. Ele vem como Presidente deste país, e como sairá não tem importância.
Todos devem lembrar-se de que um hóspede é sagrado e que o respeito que lhe é
prestado é como o respeito prestado aos ancestrais..."
- Também eu compreendo o chinês mandarim, e fiquei emocionado com a
meticulosa cortesia tributada a um homem que, na verdade, era um fugitivo. Depois
de toda a família ter apresentado seus respeitos, retirou-se e nos sentamos com o
Chinês Número Um para uma refeição. Enquanto comíamos, entrou um rapaz com
um livro e ficou à espera de sinal do chefe da casa. O Chinês Número Um explicou
sua presença com um sorriso e aforisma: "Quando se espera visita do coletor
imperial de impostos, é aconselhável beber certa quantidade de vinho de arroz.
Também se recomenda ouvir música ou ouvir versos que nos distraiam. Por isso,
nesta noite, que poderá ser de grandes dificuldades, ouviremos os versos de Li Po,
o Deus no Exílio, que também se chamou Tai Peng, a Grande Fênix... Leia, rapaz".
- Em voz alta de ator o rapaz leu poema após poema... "Pesar pela Escada de
Jade", "Uma Moça de Yueh", "Canção da Água Azul", "O Monge de Chechuan
Tocando Seu Alaúde" ... e finalmente leu o "Sonho do Viajor na Montanha Tienmu" :

"Afasto-me e parto. Quando voltarei?


Deixai o corço pastar entre as rochas verdes.
Deixai que me vá e visite a montanha deleitável.
Como posso me tornar humilde para servir os poderosos?
Fazer isso seria tornar pequeno meu coração."

- Terminada a leitura, o rapaz se inclinou para o velho, para Cung e depois para
mim. Cung lhe agradeceu e depois voltou-se para o Chinês Número Um com
cumprimento solene, dizendo: "Ninguém mais teria pensado em tal coisa numa noite
assim. O Sr. ainda me dá lições, e sou-lhe grato. Deu-me luz, também, e agora sei o
que devo fazer".
- Depois, pediu-me que fosse ao orfanato católico na orla de Cholon e trouxesse
o Padre Wilhelmson. É um homem estranho, e o Sr. devia conhecê-lo se continuar
aqui, Sr. Embaixador. Nos dias da Longa Marcha, ele foi bom para Mao Tse-tung,
cuidou dele enquanto estava doente, ou lhe deu alimentos e remédios, não tenho
certeza. Depois da Revolução, foi preso com outros missionários europeus e passou
por muitos dissabores. Quando Mao Tse-tung soube de sua prisão, mandou deportá-
lo. Desde então, tem estado em Saigon, dirigindo um orfanato, publicando um jornal
chinês e mantendo contatos clandestinos com a China, por intermédio de Hanói e
Hainan. É um excêntrico, mas aparentemente Cung costumava usá-lo como
confessor. Era o que Cung desejava: confessar-se.
- Atravessei a cidade, trouxe o Reverendo. Cung estava realmente confessando-
se noutra sala quando começou a fuzilaria. Fiquei com o Chinês Número Um, que
me implorou que não pensasse na violência que havia lá fora e depois me ensinou
uma lição. "Nunca despreze esse homem, Sr. Adams. Ele tem muitos defeitos, e
cometeu grandes erros, mas ainda assim existe nele um elemento de grandeza.
Sabe por que ele veio em sua companhia esta noite?... Sei o que ele lhe disse, mas
não é o motivo verdadeiro. Para compreender, talvez seja preciso ser oriental.
Muitas vezes não compreendo como um americano pensa. Mas o motivo de Cung
foi o seguinte: ele não quer morrer secretamente, esmagado por uma coluna que cai
ou atingido por um estilhaço. Quer que seus inimigos o levem publicamente, a fim de
forçá-los a uma decisão clara: matá-lo ou julgá-lo abertamente, ainda que o matem
depois disso. Mas é preciso que o façam, e se saiba que o fizeram. E o seu Em-
baixador ficará então coberto de vergonha pelo acordo feito com Khiet e seus
colegas. E assim que ele pensa. Está claro que as coisas podem dar resultado bem
diferente".
- Perguntei, então, o motivo pelo qual Cung não ordenara simplesmente a
rendição da guarda do palácio, evitando assim um derramamento inútil de sangue. O
Chinês Número Um sacudiu a cabeça e terminou sua explicação: "Também é muito
oriental. Se não houvesse luta, isso significaria que não havia pessoa alguma no
país que acreditasse no regime, e ninguém disposto a morrer por essa crença.
Desse modo, seja como for o registro na história, a afirmação está feita".
- Perguntei-lhe se achava que Cung estava certo no que fazia. me apenas deu
de ombros e disse que o importante era que Cung acreditasse nisso. Qualquer coisa
que se fizesse sempre estaria um tanto errada, pois os homens jamais tinham
aprendido a ler o conjunto das correntes da história. Mas um homem sempre poderia
agir corretamente com respeito a si próprio e sua família, e isso era tudo quanto se
poderia esperar. Cung acabou, então, sua confissão, e o Chinês Número Um
mandou levar o confessor de volta a seu orfanato, em companhia de um de seus
filhos. Depois disso, o velho, que se achava muito cansado, pediu licença e retirou-
se. Cung e eu nos sentamos juntos, tomando chá e ouvindo os tiros. Ele estava
muito sereno, triste, ao que parecia, mas muito calmo. Grande parte de sua
arrogância terminara e aquele modo didático irritante que o fazia parecer um
professor do Lycée. Falava tranqüilamente, interrompendo-se às vezes para ouvir o
fragor da batalha, mas voltando ao mesmo tema.
- "Existe sempre um dilema terrível para um homem como eu, Sr. Adams: a
decisão entre um direito moral e um erro político... E o defeito de minha
personalidade e educação que eu tenha feito uma definição por demais clara de
ambos. É defeito curiosamente ocidental, Sr. Adams, e por esse motivo incorri nele
com mais facilidade ainda. Também é uma cilada daquele tipo de catolicismo de que
me tornei herdeiro por motivo de minha educação francesa. Produz uma teologia
árida e uma atitude moral tão rígida que chega a ser errada, porque lhe falta
tolerância, compreensão e simples caridade... Só ultimamente é que comecei a
compreender quanto meus julgamentos foram influenciados por meu temperamento,
e sei que me faltam certas capacidades. Penso demais e sinto de menos. Sou
fortemente incitado por grandes idéias, mas pouco me interessa o efeito que tenham
sobre as pessoas... Ouve os canhões? Acreditei, e ainda acredito, que esta batalha,
por mais desesperançada que pareça agora, tinha de ser travada. Agora, quando é
tarde demais, vejo o que representa em sangue e mortes inúteis... Foi o mesmo com
os budistas. O seu Embaixador jamais acreditará que não fui, no fundo, um fanático
contra
essa gente, um inquisidor católico. Mas a verdade é que tentei forçar todo um povo
asiático a um só molde e não o pude conseguir. Mao Tse-tung pode fazê-lo, Ho Chi
Minh também, porque têm um evangelho muito simples, que todos os homens
podem compreender e porque são tão impiedosos que o metem pela garganta de
todos, de modo que a pessoa se asfixia com ele ou o digere... Eu estava
empenhado na idéia de uma sociedade pluralizada, mas era rígido demais para
aceitar tôdas as suas conseqüências, e não tive sabedoria suficiente para fazer bom
uso dessas conseqüências... E estranho que o veja tão claramente agora, quando
nada mais posso fazer. Mas havia um fundo bom no que eu fiz, Sr. Adams. Havia
um fundo bom em mim, também. Mesmo nestas últimas horas de vida, à beira da
eternidade, posso afirmá-lo... Agora, se me der licença, gostaria de rezar um pouco.
- Devo ter dormido pouco depois disso, e quando acordei já amanhecera. Cung
inclinava-se sobre mim, e disse que telefonara ao quartel-general de Khiet e lhe
dissera que ia se entregar às sete horas no lado exterior da igreja católica, mais ou
menos a um quilômetro da casa do Chinês Número Um. Levei-o até a igreja, e
sentei-me num banco de trás, enquanto se dizia a missa das seis e meia. Cung
ouviu a missa, fez a comunhão, rezou um pouco e depois voltou para onde eu
estava sentado e disse: "Muito obrigado pelo que fez, Sr. Adams. Aceitei porque
queria que o Sr. soubesse que reconheço sua boa-vontade. Agora, o Sr. vai fazer
exatamente o que lhe disser. Sairemos juntos da igreja. Os soldados estarão
esperando por mim. O Sr. ficará no alto das escadas e esperará até que eu seja
levado por eles. Aconteça o que acontecer, o Sr. nada fará, absolutamente nada.
Compreendeu?"
- Fiz um último esforço no sentido de persuadi-lo a aceitar asilo conosco, e ele
se recusou. Saímos juntos da igreja e lá fora estava um caminhão militar,
estacionado ao lado da calçada e com um destacamento de homens armados de
carabinas automáticas. Cung se dirigiu a eles, que o seguraram com brutalidade e o
empurraram para a parte de trás do caminhão, subindo depois dele. O caminhão se
movimentou, e antes de ter percorrido cinqüenta metros, ouvi dois tiros. Acredito que
foi quando o mataram... E é só, Sr. Embaixador.
A narrativa me empolgou e preocupou, e por estar cansado e confuso, e por ter
sido novamente desafiado em minha correção recém-encontrada, fiquei furioso.
Durante algum tempo, fiquei deliberadamente em silêncio, e depois perguntei:
- Que deseja que eu diga, Mel?
- Nada, Senhor. Está tudo acabado! Cung morreu.
- Assim, sem mais aquela! E você foi o nobre amigo que o acompanhou nos
últimos passos, o bom americano num mundo mau. É isso?
- Não.
- Pois deixe-me dizer o modo pelo qual interpreto a sua história, Mel. Acho que
nela você se apresenta como um idiota sentimental, que fala muito sobre ação e
depois se atira de cabeça nela. Torna-o cúmplice de um assassinato que talvez
jamais ocorresse, se Cung permanecesse no palácio. Por seu intermédio, nosso
país participou do ato. Você se prestou a um martírio político como o dos budistas
que se queimaram. Você será responsável pelo descrédito que disso nos advir.
- Essa interpretação é sua, Sr., não minha - disse ele serenamente.
- E qual é a sua, Mel?
- A de que em algum lugar, em algum momento, em todo esse emaranhado
sangrento de política e diplomacia, é preciso haver um pouco de simples decência
humana. Alguém precisa afirmar que o chinês tem tanto direito a comer quanto o
californiano, que o marxista não é forçosamente um monstro, como não o é o
capitalista à antiga, e que o mundo não pode ser dirigido por policiais e agentes
secretos, nem por embaixadores! Talvez eu tenha cometido um erro diplomático,
mas, pelo menos, fiz a vigília da morte com outro homem enganado e talvez o tenha
ajudado a morrer com dignidade.
- E acha isso bastante?
- Nada é bastante, em momento algum, Sr. Embaixador. Um homem pode
apenas cuidar do seu jardim e dividir as maçãs de sua macieira com o vizinho.
Agora, se me der licença, Sr....
- Tem toda, Mel. Suas ordens de viagem estarão prontas esta tarde. Mas há
uma outra pergunta: você incluiu tudo isso em seu relatório?
- Não, Senhor. Se quiser, incluirei, mas achei que talvez o Sr. preferisse deixar a
questão entre nós dois, em caráter particular. Já acabou tudo. Deixemos os mortos
enterrar os mortos.
- Acho aconselhável.
Mas aconselhável para quem? Para Mel Adams que, se fosse mais hábil,
poderia tirar grande proveito de seu último ato quixotesco? Ou para mim, que só
poderia ser envergonhado pelo fato, aos olhos de um público sentimental? Desse
modo, eu poderia fazer um relatório pessoal ao Departamento de Estado e
interpretar a narrativa a meu modo.
A bem da verdade, tive de interpretá-la bem antes do que esperava. Pouco
antes do meio-dia, Arnold Manson e seu colega italiano chegaram do quartel-general
de Khiet. Mostravam-se frios e recriminadores, dizendo-me que no próprio momento
em que falavam com Khiet e recebiam dele garantias de proteção a Cung, chegava
pelo telefone a notícia de sua morte. O general Thuyen fizera violento protesto,
afirmando ter sido traído, e depois saíra para sua própria casa. Assim, antes mesmo
de estar instalada, a junta se achava dividida e Thuyen, forçado pelo dever familiar a
tirar vingança, poderia ser um inimigo poderoso.
Era claro que os meus colegas me consideravam responsável, pelo menos em
parte, pela morte de Cung e, por meu intermédio, o Governo dos Estados Unidos.
Era conclusão perigosa, com possíveis resultados de longo alcance, de modo que
lhes contei minha própria versão da narrativa de Mel Adams, que sendo tão
verdadeira até onde a apresentei, não me comprometia a uma mentira diplomática.
- Receio ter parecido brutal e indiferente quando os Srs. vieram ver-me hoje de
manhã, cavalheiros, mas não lhes podia dizer que nesse momento um elemento da
Embaixada se achava pessoalmente empenhado na tentativa de salvar a vida do
Presidente Cung. Antes de começar a luta ontem à noite, ele retirou o Presidente do
palácio em seu automóvel e passou a noite oculto com ele. Tentou repetidamente
convencer Cung a vir para esta Embaixada, onde eu estava pronto a lhe oferecer
abrigo, enquanto negociasse um salvo-conduto para deixar Saigon. Cung rejeitou
nossa oferta e insistiu em se entregar. Foi aprisionado em Cholon às sete da manhã
e provavelmente mataram-no a uns cinqüenta metros do lugar onde se entregou...
De modo, cavalheiros, que não sou o monstro que pareço ser.
Mostraram-se cheios de desculpas, naturalmente, e consentiram em tomar
alguma coisa em minha companhia antes de saírem. Se acreditaram ou não, é coisa
que não sei, mas a diplomacia é como outros tipos de teatro, onde dependemos de
uma suspensão da descrença e certo envolvimento numa ilusão de realidade. E se
tal definição nos torna, a todos, saltimbancos e truões, o que desejam os senhores e
senhoras, afinal? Vocês nos pagam por nossas belas ilusões, e nos deixam nos
bastidores, entre os acessórios empoeirados, sem ilusão alguma!

Foi um dia longo e exaustivo, cheio de boatos e relatórios contraditórios, que


exigiam seleção e análise para serem fundidos num resumo inteligível que seria
enviado a Washington. Eu não tinha tempo ou disposição para uma auto-inquisição,
e depois de uma noite em claro, isso era tudo quanto podia fazer para continuar em
pé.
Harry Yaffa parecia um rochedo de energia. Era como se tivesse uma colher em
cada panela, mexendo-as todas ao mesmo tempo. Não parou de entrar e sair,
verificando todos os boatos e fontes de notícia. Quando lhe pedia informações,
apresentava-as; se eu queria uma opinião, dava-a juntamente com uma série
impressionante de fatos. Parecia exultante, mas nunca teatralizava e se mostrava
sempre pronto a meditar, quando a pergunta pedia reflexão e exame. Depois de
minha esgrima final com Mel Adams, encontrei reconforto em sua amoralidade
amistosa e, ao final do dia, quando parecia que todos tinham sido passados por uma
moenda, ele se mostrava ainda ativo, envergando camisa limpa e terno recém-
passado. Chamei-o a meu gabinete para beber alguma coisa, e lá resumiu para mim
a situação com cínica precisão.
- Estamos em excelente posição, Sr. Embaixador! Poucas baixas, um governo
novo, um povo que nos é grato. As províncias estão sossegadas e não houve
qualquer perturbação maior no esforço militar. Acho que merecemos essa bebida! .
Bebemos e enchemos novamente os copos para manter o calor e afrouxar os
nervos e os músculos tensos. Yaffa continuou:
- Naturalmente, temos outro problema em evolução, mas trataremos dele
quando se apresentar.
- Qual é o problema, Harry?
- O General Thuyen, o sujeito que se afastou esta manhã depois da morte de
Cung. Um dos meus agentes esteve com ele à tarde. O homem está dando pulos de
raiva e dizendo que Khiet faltou à promessa e deliberadamente preparou a morte de
Cung. Aliás, pode ser verdade, ou não. Mas Thuyen jurou não fazer a barba até que
Khiet seja deposto. Não acredito muito nisso. Thuyen é sem importância e sua
influência é limitada. Ainda assim, vamos mantê-lo sob vigilância...
Disse isso casualmente, e eu estava cansado, de modo que quase me escapou
o sentido da coisa. Cung estava morto, os generais no poder, mas nada fora
resolvido, nada era seguro. Um novo usurpador já conspirava nas sombras e um dia,
mais cedo ou mais tarde, teríamos a mesma disputa. E eu, jogador experiente, teria
de percorrer novamente a mesma jogada triste, apoiar um como vencedor e outro só
para constar... E depois, matar o perdedor. Não podia, nem queria pensar nisso.
Virei o copo de uma só vez e o coloquei na mesa.
- Já basta! Ao inferno com todos eles, Harry! Vamos para casa!
Mas o que era a casa? Um lugar assombrado, com jardim sinistro e guardas que
me vigiavam a noite toda para me garantir de tudo, salvo de mim mesmo.

A angústia não começou imediatamente. Ao contrário, veio sorrateiramente,


como a névoa que cobre o pântano, em farrapos e trapos que mal se conseguiam
ver antes de sumirem. Quando cheguei à minha casa, sentia-me como se tivesse
levado uma surra. Todos os músculos e ossos doíam e eu andava como se tivesse
um peso enorme sobre os ombros. Mandei Bill Slavich telefonar ao massagista, e
enquanto esperava por ele entrei num banho de vapor com o copo de uísque ao
alcance da mão. O corpo começou lentamente a descontrair-se mas uma grande
lassidão tomou conta de mim, e já parecia esforço demais estender a mão para o
copo. Ao mesmo tempo, o espírito começou a girar, alegre e espalhafatosamente,
como um pião. Se estivesse com um lápis na mão e com forças para segurá-lo,
poderia escrever .num instante toda a história de minhas atividades em Saigon,
tornando-a clara para os mais limitados e mais inteligentes. Sentia grande
necessidade de me explicar a alguém, mas não havia com quem falar, de modo que
contei a história para mim mesmo. Depois, cansei-me disso, fechei os olhos e dormi
um pouco. Quando acordei, o banho estava frio e me arrastei para fora devagar,
enxuguei-me e deitei-me na cama esperando o massagista.
Normalmente, o sujeito falava pouco, e o silêncio aumentava o efeito sedativo de
seus dedos, mas estava entusiasmado com o golpe e falava incessantemente
enquanto me massageava. Comecei a falar também, imitando seu francês anamita
anasalado, fazendo-lhe grandes promessas e dando-lhe sábias opiniões sobre o
futuro da República com o novo governo. Em breve, a minha eloqüência o reduziu
ao silêncio. As palavras saíam, mas estavam sempre com atraso de uma frase
quanto a meus pensamentos, de modo que me tornei inquieto e tenso e ele teve de
implorar:
- Não fale mais, monsieur, por favor. Os músculos se endurecem e não o posso
tranqüilizar.
Forcei-me ao silêncio, e depois de algum tempo comecei a dormir sob o ritmo
calmante da massagem. Ao acordar, ele havia saído e eu estava nu e deitado sob
um cobertor. Por um breve instante, e sem motivo algum, senti medo. O quarto
parecia estar fora de foco, parecia desconhecido. Havia uma ameaça desconhecida,
como a aura seguinte a um pesadelo. De repente, tudo entrou novamente em foco.
Sentia a cabeça clara e o corpo descansado. Estava com fome, e me vesti com
rapidez, descendo para um coquetel antes do jantar. Logo na entrada da sala de
visitas, havia um grande espelho de moldura dourada, e quando me olhei nele
descobri que não fizera o laço da gravata, que pendia solta em volta a meu pescoço.
Novamente senti aquele momento de inquietação, aquela enfada de ar de pântano.
Devia estar mais cansado do que imaginava. Fiz logo o laço da gravata e entrei na
sala de visitas. Estava vazia, e eu não queria ficar sozinho. Toquei a campainha para
chamar Humphrey e lhe pedi que me preparasse um martini, grande e seco.
Ele me olhou com ansiedade.
- O Sr. teve um dia trabalhoso e não dormiu ontem à noite. Devia ir cedo para a
cama.
Respondi que pretendia fazer exatamente isso e então, sem qualquer aviso,
desatei novamente numa narrativa eloqüente sobre os acontecimentos da semana.
Bom empregado que era, ouviu com atenção por algum tempo mas afinal, fosse
porque perdi o fio da meada ou porque já falara demais, pediu licença e me deixou
com a bebida. Era um martini grande e bem dosado, e o senti aquecer o lugar frio
onde meu coração costumava estar. Que estranho! Quanto tempo poderia um
homem viver sem coração? Os russos tinham mantido vivo um cachorro com
coração mecânico - ou seria um cachorro mecânico, com coração humano? Não
importa! Os russos eram muito inteligentes, porque conseguiam convencer-se de
que tudo quanto faziam estava certo. Isso era proeza das mais difíceis. Eu tentara
executá-la e falhara e, de acordo com minha folha profissional, com Raoul
Festhammer e com o General Tolliver, era um embaixador muito inteligente...
Mas não tanto que conseguisse salvar George Groton. Nem sombra disso! Sinto
muito, George, muitíssimo. Se o tivesse podido fazer compreender o meu problema,
se você pudesse ter chegado à minha idade, poderia ver-se a braços com o mesmo
problema. A coisa é assim, George... Eu não sou eu, sou um símbolo de um país.
Um símbolo não tem responsabilidades e pode ser utilizado para uma série de fins,
no dinheiro pago às prostitutas, no quepe de um general, no pórtico de um tribunal,
no selo, numa ordem de execução... Está presente apenas, mas não age, nem é
louvado ou incriminado por isso. Mas é preciso respeitá-lo... E eu quero que você me
respeite, George. Preciso de respeito, porque estou achando difícil respeitar a mim
próprio. Você percebe isso, não é?
Esperei uma resposta, mas ele não estava mais ali e talvez eu nem houvesse
falado. São os nervos, sabe? Um dia duro no trabalho. Um trago para dois, juntos, é
coisa boa para os casais. Os dois compartilham dos mesmos interesses, consolam-
se mutuamente, depois dormem juntos e fazem filhos bonitos, e então os espíritos
do ar atiram bombas neles e os torram com napalm. A sua saúde, George! E à sua,
Gabrielle, meu amor! Você sempre demorou bastante no vestir-se para o jantar.
Jantar! Eis uma refeição de diplomata. Você sabe disso, não sabe, Humphrey?
Uma variedade de pratos, pois a variedade é muito importante: a sociedade plural, a
opinião plural, cada qual conforme seu gosto. A refeição resolve isso. Há lazer, coisa
também muito importante. Não se pode apressar uma boa refeição, e beber bom
vinho a grandes goles é coisa inimaginável. Por isso, a gente se abandona a uma
dimensão desprovida de tempo. Muito importante, Humphrey! Um bom diplomata
jamais deve consultar o relógio. As pessoas gostam de dormir em cima de uma
idéia, gostam de experimentá-la na esposa ou na amante, querem usá-la como se
faz a um par de sapatos, para ver se é confortável. E esse o fito do jantar
diplomático, Humphrey, aquilo que os gregos chamam ágape - uma festa de amor.
Você já viu muitas festas de amor em sua vida, não viu, Humphrey? E viu também
uma porção de mãos distraídas e pés que se tocam por baixo da mesa! Será que o
general Khiet dará jantares melhores do que Cung? Aquele último foi muito cacete.
Ele o tornou parecido à Última Ceia... e me deu o papel de Judas. Mandou um
presente para comemorar o início do espetáculo. Mas nós apresentamos outro
espetáculo muito melhor, não foi, Humphrey. Verdadeiro drama elisabetano!... E
marchamos em triunfo por Persépolis! Viu? Eu disse! Persépolis... Persépolis! Estou
cansado, muito cansado! Talvez esteja um pouco bêbado, mas ainda posso marchar
em triunfo através de Persépolis. E foi o que fiz!... Havia multidões, hosanas, nada
faltava! Foi uma revolução popular. Cung não podia ver, mas eu vi. E assim, ele está
morto e eu sentado aqui, sozinho mas vivo. Não, Humphrey, obrigado. Basta o café
e um brandy. Não me aborreça, homem! Irei dormir quando estiver disposto.
Sabia que estava em meu juízo perfeito, pois pensava com extraordinária
clareza. Talvez estivesse falando demais, mas os gregos também tinham uma
palavra para isso: catharsis. O mínimo a esperar de um bom empregado era que
fosse um pouco paciente. O café que me trouxe estava amargo e depois de provar
deixei-o de lado e tomei outro gole de brandy. Mais uma vez, e desta por mais
tempo, tive aquela sensação de estranheza e ameaça em ambiente antes
conhecido. Cheguei à janela e olhei para fora. Os guardas ainda estavam lá, mas o
jardim parecia diferente. Era mais luxuriante, mais chegado à casa, como - o que
dissera o francês? - como as árvores que comeram a cidade. Senti repentino tremor
de medo, fechei depressa as cortinas e me sentei de novo no reconfortante círculo
de luz. Depois, as mãos começaram a tremer, a ponto de não poder mais segurar o
copo de brandy. Quando tentei pô-lo na mesa, caiu da beira e se despedaçou no
chão encerado. Sem qualquer motivo para isso, lamentei sem lágrimas a bebida
derramada, o sangue derramado e os recipientes estraçalhados, de vidro e carne, e
todos os pobres espíritos presos à roda da vida, que era agora a roda de um carro
indiano, esmagando-os na poeira...
Anne, onde está você? Devia estar comigo esta noite. Não para trabalhar, pois
afinal não sou patrão tão severo assim, mas para sentar-se em minha companhia e
conversar um pouco. Isso é pedir demais? Alguma coisa está acontecendo comigo,
e não compreendo o que seja. As paredes se aproximam de mim, as árvores me
vêm comer, Judas está enforcado em meu armário, com a boca atulhada de prata.
Anne, por favor... venha!
Ela não veio, e depois de algum tempo eu me dominei, pois um Embaixador é
personagem importante que nunca deve mostrar que tem medo. Apanhei a garrafa
de brandy, com a outra mão um copo limpo, e subi de novo as escadas para o
quarto. Na metade da subida, lembrei-me da estranha história infantil sobre o
homem que perdera a sua sombra e aí percebi o que me preocupava. Eu também
perdera a minha, mas não queria olhar para trás, caso estivesse lá, dançando
zombeteiramente nos primeiros degraus da escada.
Quando cheguei ao quarto senti que estava salvo. Coloquei a garrafa e o copo
na mesinha de cabeceira e depois, furtivamente, tirei a roupa e vesti o pijama.
Depois, apanhei o vidro de cápsulas vermelhas e tirei duas. Senti a tentação de
tomar outras, só para ter certeza, mas sabia que se o fizesse minha sombra me
deixaria para sempre, e eu não poderia suportar isso.... Apressadamente, levei as
cápsulas à boca, enchi o cálice pelo meio com brandy e brindei à minha imagem no
espelho.
Foi um momento de puro terror. Olhando-me no espelho estava a mais nojenta
imagem que já vi, cinzenta, pastosa, olhos vermelhos e fixos, ventas arreganhadas,
boca em rito odioso, feixe de cabelos pretos misturados a grisalhos. Encarei a visão
por longo instante, cheio de medo, e depois lhe atirei o brandy em cima. O líquido
escorreu pelo vidro, deformando a imagem de modo ainda mais repulsivo. Não podia
mais agüentar aquilo, e apanhei a garrafa de brandy e comecei, de modo frio e
selvagem, a bater nela para matá-la.

Acordei de madrugada, cansado e suado. Examinei temerosamente o quarto e vi


Anne Beldon, em penteador e chinelos, sentada na claridade de uma lâmpada de
mesa, observando-me. Eu devia ter gritado, porque ela veio no mesmo instante e
colocou um copo de água em meus lábios e depois limpou-me o rosto com um pano
úmido. Reparei que minha mão direita estava enfaixada. Perguntei o que acontecera
e ela respondeu simplesmente:
- O Sr. estava muito cansado, Embaixador. Bebeu além da conta, foi tudo.
Eu sabia que não fora só isso, pois o medo continuava dentro do quarto, mas
tonto ainda por causa da droga, não podia lembrar que medo era esse. Apanhei as
mãos de Anne e as segurei de modo que não me pudesse deixar, fazendo-a sentar-
se na beira da cama e olhar para mim. Supliquei que me dissesse a verdade.
- Aconteceu alguma coisa terrível, Anne! Eu disse alguma coisa, fiz alguma
coisa e não sei o que é. Estou com um medo desesperado, mas não sei por quê.
- Não há necessidade de ter medo. O Sr. quebrou um espelho e uma garrafa de
brandy, cortou a mão e foi tudo.
- Tem certeza?
- Tenho.
- O que foi que eu disse, Anne?
- Não tinha grande sentido. Quando ouvi o barulho, entrei e o achei olhando o
espelho partido e gritando com ele: "Cante, maldito! Cante! Cante!..." Quando me
viu, parou de gritar e ficou-me olhando como se não me conhecesse. Quando o
levava de volta à cama, disse-me: "Ele também não queria chorar. Mesmo enquanto
o matava, não chorava. Quando não se canta, pelo menos deve-se ser capaz de
chorar..." Depois, resmungou um pouco e começou a dormir. Portanto, não houve
mal algum.
- Não houve? Oh, Deus! Anne, se você soubesse!
Sem qualquer aviso, a coisa começou a sair de meus lábios, numa torrente de
palavras, enquanto eu me agarrava a ela e suplicava, em nome de minha sanidade
mental e salvação, para que me compreendesse. Finalmente, quando não tinha
mais palavras, ou segredos para contar, ela me apertou contra o peito e chorou
baixinho.
- Pobre homem! Pobre homem obstinado, perdido!
Deitou-se a meu lado e aninhou minha cabeça em seu braço, embalando-me
para dormir como se eu fosse criança. Quando despertei novamente, era dia claro. A
loucura desaparecera, e Anne Beldon também. Não havia qualquer vestígio do
espelho quebrado. Havia roupas limpas preparadas para eu vestir, e uma bandeja
com café e torradas ao lado da cama.
Uma hora depois, Bill Slavich dirigia o carro, levando-me para o Ministério de
Relações Exteriores, a fim de ficar conhecendo os generais vitoriosos.

Capítulo doze

Não tenho muito a dizer sobre meus últimos meses de serviço em Saigon, pois
em seguida àquela última noite horrível eu sabia que minha sobrevivência pessoal
dependia de transigências. O que fizera estava feito, e tinha de manipular as
conseqüências no sentido de obter a maior vantagem política possível. Não podia
deixar precipitadamente o país sem condenar, implicitamente, a nossa política e a
execução que eu lhe dera. Por outro lado, jamais poderia arriscar-me novamente a
outro ataque tão ruinoso à estrutura de minha personalidade. Tendo renunciado ao
luxo de um ponto de vista moral, tratei dos negócios com calculado alheamento.
Discuti impiedosamente a renovação de nossos pagamentos de ajuda ao país,
recusei-me a qualquer intimidade com os membros da junta, a quem não poderia
conferir o respeito que tivera por Cung. Só conseguia desprezá-los, como a mim
próprio. Quando o General Thuyen, barbudo e procurando vingança, saiu das som-
bras para assumir o controle do Governo, mantive-me de lado e não fiz qualquer
tentativa de intervir.
Diante da prolongada e incessante agonia do país, mantive uma distância
clínica. Tínhamos falhado politicamente, mas sem nós a situação militar havia muito
teria entrado em colapso. O militar empenhado na guerra era, ainda, a figura mais
nobre em todo o quadro ignóbil, e quando irromperam choques sangrentos entre
budistas e católicos ameacei os generais com novas sanções e retirada total, mas
me recusei a participar em qualquer comentário público sobre a questão religiosa.
Tendo rejeitado todas as crenças, conseguia desprezar os excessos dos que
afirmavam possuir alguma. Quando minha consciência se revoltou com o espetáculo
de crianças assassinadas com machados de açougueiro, lembrei-me de George
Groton e endureci novamente o coração. Essa gente exigia o direito de escolher o
próprio destino. Fizesse-o, então, e limpasse o sangue depois. Mel Adams se fora,
de modo que eu estava livre da indignidade de sua comparação entre os controles
repressivos de Phung Van Cung e o laissez-faire assassino dos militares.
Em certo sentido, a disciplina desse desligamento me era necessária. Sem ela,
poderia muito bem descambar para a perturbação psíquica. Politicamente, no
entanto, era uma tremenda perda de prestígio para mim e meu Governo. Havíamos
participado de um assassinato para impedir a desordem pública e depois, quando
desordens piores ocorriam sob o novo governo declarávamo-nos impotentes para
detê-las. Havia também uma condenação pessoal para mim, embora conseguisse
manter a sentença em suspenso enquanto recuperava o vigor físico e mental
suficiente para resistir. Ainda que tivesse abdicado de qualquer posição espiritual, a
marca de minha fraqueza estava em não conseguir chegar à amoralidade total e
aparentemente satisfatória de Harry Yaffa. Eu sabia disso e compreendia com que
clareza Phung Van Cung julgara meu caráter. Sabia, também, que no final teria de
seguir o exemplo de Mel Adams e abandonar o Serviço Diplomático, mas minha
saída não me traria qualquer honra ou satisfação, pois não sairia por causa de um
princípio, mas apenas por incapacidade, não menos real porque somente eu a
conhecesse.
No serviço diplomático, era ainda o servidor bom e idôneo. "Deixem isso com
Max! Ninguém o amedrontará! Ninguém o enganará!". Era essa a metáfora usada
como elogio na mesa de conferências em Washington, mas Max tinha outra
metáfora, toda sua e bem mais próxima da verdade. Max era um corredor de
obstáculos que os ultrapassava em estilo certo, mas seu fôlego se acabara e jamais
ganharia outra corrida.
Era uma sensação amarga ver-me assim, em meio à carreira profissional,
destituído de ambição, honestidade e amor-próprio. Eu não era apenas o homem
irresoluto, era o homem vazio, estéril. Não acreditava no que devia fazer, e não tinha
qualquer convicção sobre o que devia ser; não via meios possíveis de restaurar o
capital que gastara. Estava agora isolado de qualquer contato íntimo com os
colegas, pois não me poderia arriscar a que vissem por trás da máscara o manequim
vazio que a usava. Anne Beldon pedira licença especial para visitar a mãe doente, e
enquanto se achava em Washington requerera transferência para uma vaga em
Roma. Nenhum de nós dois tivera coragem para enfrentar o possível desfecho
daquela noite de revelação e ternura desperdiçadas.
Por isso, precisando de qualquer outra amizade, comecei a me corresponder
com Muso Soseki e pouco a pouco lhe expus os meus problemas. Finalmente,
quando consegui preparar minha saída, supliquei-lhe que me recebesse de novo
como hóspede em Tenryu-ji. A sua resposta, escrita na caligrafia apurada em que
era mestre, foi curta e simples: "Quando estiver pronto, venha! Sei do que precisa..."
Para exprimir minha necessidade, escrevera o belo ideograma "homem-sob-árvore",
que significa descanso.
Quando me recebeu em sua casa e conversamos pela primeira vez, examinou-
me com séria preocupação e depois escreveu um sinal diferente para descrever o
meu estado. Era o ideograma de "coração-à-janela", designando a ansiedade. Em
seguida, desenhou o símbolo de "mulher-sob-telhado" para mostrar o estado para o
qual eu devia tender, paz e tranqüilidade. Depois disso, explicou-me os sinais feitos
com pinceladas, em parábola:
- O coração olha pela janela e vê o que não compreende, deseja que não pode
ter. O coração fica perturbado e receoso... A árvore olha mas não vê, está de pé e
não anda, cresce mas não deseja. O homem descansa sob a árvore, é apoiado pelo
tronco e protegido pelas folhas, e partilha da vida da árvore sem gastar a sua
própria. A casa abriga a mulher, esta circunda o homem, e a vida nasce da
tranqüilidade deles... Assim você, meu amigo, fechará a janela que dá para fora e
começará a olhar para dentro de seu eu verdadeiro. Você vai sentar-se em meu
jardim e Se tornar uma árvore...
- E a tranqüilidade?
- Vem com o esclarecimento, encontrado por quem não o busca.
Depois da dialética áspera e destruidora em que estivera empenhado tanto
tempo, era extraordinariamente difícil para mim acomodar-me mais uma vez aos
métodos da tranqüilidade. Por diversos dias, entediei-me no lugar, inquieto e
insatisfeito, às vezes também irritado, pois Muso Soseki se negava a entrar em
qualquer exame dos problemas que me perturbavam. Quando insisti com energia
demasiada, ele sorriu e desenhou para mim a palavra que representa desordem,
uma combinação de "fala" e "trabalho", e depois desenhou "água-numa-floresta",
descrevendo a natureza da solidão e contemplação. Levei bastante tempo para
digerir a gentil repreensão, mas lentamente a tranqüilidade veio chegando de novo e
no jardim sutil, na época dos bordos em fogo, comecei a sentir o início da liberdade
e ampliação. Dormia melhor, despertava de manhã sentindo crescente admiração
pela simplicidade da pedra, do tanque de lírios, da folha caída.
Assim retemperado, comecei a ansiar pelos exercícios de iluminação que tinha
começado a praticar tanto tempo antes,
mas Muso Soseki tinha outros planos.
- Também eu aprendi alguma coisa com você, meu amigo, como a água que
reflete o rosto do homem que a olha. Somos de países diferentes, fomos produzidos
por histórias diferentes, comunicamo-nos cada qual num idioma diferente. Por isso,
não devemos aceitar ou rejeitar imediatamente o equipamento de que dispomos.
Ambos olhamos a mesma árvore, mas se a descrevermos a um terceiro ele julgará
por algum tempo que se trata de duas árvores diversas. Assim, para começar, fala-
remos cada qual a seu modo, e veremos o que podemos ensinar um ao outro. Em
primeiro lugar, conte-me o que lhe aconteceu...
Suponho que se tratava de um tipo de confissão, mas havia muitas lacunas,
algumas ditadas pelo segredo necessário à minha profissão, outras pela vergonha
de minha fraqueza em idade madura. A atitude do ancião era de desligamento e res-
peito notáveis. Não era um psicanalista a explorar os segredos do subsolo de uma
mente perturbada. Não era um confessor fazendo um resumo judicioso de culpa e
arrependimento antes de pronunciar seu perdão. Aceitava a narrativa conforme eu a
fazia, sem perguntas, como se fosse um espectador de teatro, para quem o
dramaturgo apresentava os termos de referência e modo de interpretação.
Mencionei-lhe isso, e ele respondeu naquela forma simbólica que caracterizava toda
a sua exposição:
- Quando um homem resolve revelar-se a um amigo, este se toma testemunha
de um espetáculo de crescimento, como o nascimento duma criança ou o
desabrochar de uma flor. Há um desdobramento que vem da treva para a luz, a
revelação de uma vida oculta que, para desenvolver-se, precisa de ar, sol e
cuidados. Se a flor não desabrochar, murchará e morrerá em botão, e cairá do caule.
Se o homem não se revelar, seu crescimento é paralisado e, finalmente, a vida
secreta de seu espírito morre como um botão comido pelos vermes. No entanto,
devemos ser pacientes e não pedir para ver todo o crescimento de uma só vez.
Primeiro, o pequenino broto marcha timidamente para o sol, depois outro aparece, e
o pedúnculo cresce com firmeza e se toma botão e flor e fruta... Você tem reservas
comigo. Sei disso. Ser tímido não é ser medroso; é ser apenas cuidadoso com a
fragilidade do eu interior.
Com algum ressentimento, eu lhe disse que outros a quem eu amara e
respeitara não se tinham mostrado tão cuidadosos, haviam feito juízos sumários e
retiradas brutais.
Ele sacudiu a cabeça e me respondeu serenamente:
- Sumários, sim, mas não brutais. Também eles eram tímidos, sabe? Dependiam
de você no que lhes faltava a eles próprios. Quando você não pode preencher a
falta, ficaram raivosos, desapontados e, possivelmente, receosos.
- Mas não me davam o direito de ter medo!
- Eram mais jovens e de grau mais baixo - respondeu Muso Soseki com
tolerância. - Eu sou mais velho, e lhe concedo o seu direito. Por isso, vamos
começar onde paramos. Achou a resposta para a pergunta sobre o cuco?
- Achei. Eu matei o cuco.
- Então, agora não há canto para você, no inverno ou no verão?
- Não há canto, nem pássaros, só uma reprovação com que vivo todos os dias.
- O cuco o reprovou quando o matou?
- Em meu sonho, não.
- Mas o que mais era o cuco, senão um sonho?
- Quando o sonho terminou, o cuco se tomara um homem.
- Você matou o homem?
- Eu pronunciei a palavra que despertou o caçador, que o matou.
- Então o cuco está morto e o homem está morto. Falemos sobre um rio.
- Qual rio?
- O que é um rio?
- É água que corre do terreno mais alto para o mais baixo, a fim de juntar-se a
outra água.
- A água nunca é a mesma, mas o rio é sempre o mesmo. Assim sendo, como é
que a água pode ser o rio?
- O rio é o lugar por onde a água corre.
- Mas, sem água, esse lugar é um vale vazio.
- Então, o rio é o lugar, e mais a água, e mais o fluxo dela. - Olhe! Eu atiro no rio
um pau, uma pedra e um homem. Que acontece com eles?
- O pau flutua. A pedra afunda. O homem nada, ou se afoga.
- E o rio?
- Muda, mas é sempre o mesmo.
- Quer o homem nade, quer se afogue?
- Quer nade, quer se afogue.
- O rio se preocupa com o que o homem faça?
- Não, só o homem se preocupa.
- E por que se preocupa?
- Porque sabe que não é um rio. E saber isso é maravilhoso e terrivelmente
solitário.
- Agora, falemos sobre o saber. Você sabia, quando pronunciou a palavra, que
ela despertaria um caçador?
- Sabia, sim.
- Por que a pronunciou?
- Porque se não o fizesse poderiam vir feras selvagens e devorar-nos a todos.
Mas o caçador também era uma fera.
- Mas o caçador era um homem, também.
- Sim.
- Então, você despertou homem e fera com a mesma palavra
- Sim.
- E em você próprio despertou também uma fera.
- Também.
- Poderia ter impedido o despertar das feras?
- Se não falasse, sim.
- Mas você foi mandado para falar. Era seu dever falar. - Eu não devia ter aceito
esse dever.
- Então, por esse motivo, deve culpar-se, mas não pela morte do homem
- Mas um é extensão do outro.
- Como sabe?
- Parece-me que é.
- O que parece ser nem sempre é.
- Eu queria saber, realmente, o que é.
- Veja as folhas de bordo. Estamos no outono, época da queda das folhas. É o
vento que desnuda a árvore, ou a árvore que atira as folhas ao vento errante?
- Não faz diferença para mim, porque não sou folha nem vento!
- Mas é! Você é folha, é árvore, é fera e vento. Sendo um homem, está
envolvido em tudo, é um resumo de tudo.
- Não! Não! Não! - respondi com veemência que me surpreendeu. - Você não
compreende? Nisso está todo o erro, o erro pessoal, o político! Não sou árvore, e se
tentar determinar como a árvore deve crescer, eu a paralisarei e torcerei como o
bonsai de seu jardim. Não somos vietnamitas, japoneses ou malaios, e como
podemos dizer como eles devem viver, e no que devam acreditar, para estarem
contentes? Há assassinato nisso! Destruição e semeadura de ódio! Eu sei. Fui ins-
trumento disso.
O velho monge foi muito paciente. Não se esquivou à proposição, mas
examinou-a comigo, andando pelos caminhos de saibro, parando de vez em quando
para contemplar alguma beleza pequenina e oculta na intimidade antiga do jardim.
- ... Não deve ser demasiado áspero consigo, meu amigo, nem esperar
demasiado dos processos imperfeitos pelos quais a humanidade governa um
planeta complexo. É esse o paradoxo, a contradição visível além da qual tentamos
penetrar para chegar à harmonia invisível. Em termos ocidentais, é esse o fito do
satori: iluminar a harmonia e a unidade e tornar o homem novamente parte dela.
Mas até o satori não é estado permanente, só o Nirvana é a iluminação permanente
e eterna. Você diz que não deve determinar o crescimento da árvore, mas se ela
ameaçar sua casa, você não a poda e endireita?
- Mato-a, também?
- Se a árvore tombar sobre sua casa, ela morre, a casa é destruída e você é
morto, também.
- E três mortes são piores do que uma?
- Toda a morte é um morrer só, e no entanto não há morte. A fera que você
mata se torna uma fera em você. O bem que você mata brota novamente, como o
musgo numa sepultura.
De repente, senti-me tomado de fadiga e desagrado por aquele diálogo
simbólico, que agora me parecia uma marcha difícil em meio a teias de aranha. Eu
não era o mesmo homem que viera a Tenryu-ji na companhia de George Groton.
Estava mudado. Não pertencia mais àquele jardim. Estava cansado da linguagem
sutil do mondo, era realmente o gaijin, o homem de fora. Precisava de um tipo de
iluminação que não era o oferecido por Muso Soseki. Era difícil explicar tudo isso
sem parecer indelicado a meu mestre, mas ele o compreendeu intuitivamente e me
absolveu de qualquer descortesia.
- Foi o que pensei que poderia acontecer. Por isso, lhe disse que também
aprendi com você. Você mudou. Gastou uma parte de si próprio que não pode
substituir. A língua e símbolos que usamos juntos constituem agora um obstáculo, e
não uma ajuda, para o seu esclarecimento. Não deve desanimar com isso, pois
acontece a muitos. O caminho da iluminação e contemplação pura se destina a
poucos, e agora creio que apresente graves perigos para você.
- Pode-me dizer o que me sucedeu?
- Acho que sim. Você é como o viajante da antiguidade, que parte na jornada de
Kyoto a Edo e que, dizem todos, é cheia de interesse e diversidade. Ele sai. com
muita confiança, tem dinheiro na bolsa, boas roupas, corpo forte e companheiros
para se distrair durante a jornada. Mas antes do fim, descobre como errou nos
cálculos. As hospedarias são caras, as moças extorsivas, ele é roubado pelos
barqueiros e patifes inteligentes. Por isso, muito antes de chegar a Edo se vê sem
dinheiro, as roupas são leves demais para o inverno que se aproxima, os
companheiros debandaram pelo caminho e ele está numa província cujo dialeto não
compreende. Também está mais velho, o tempo encurtou. Quando fala com as
moças nas casas de chá, seu coração ainda está preso à sua casa. Quando observa
os mercadores que fazem negócios, sabe que o ouro logo se gasta e a seda
também. Que faz? Quer-se matar, mas não tem coragem. Deseja ser como os
patifes inteligentes que encontrou em sua viagem, mas para isso não tem inclinação
nem talento. Senta-se à beira da estrada e lamenta-se. Depois de algum tempo, no
entanto, não há mais lágrimas a derramar. Ouve os gongos do mosteiro e vê os
bordos cor de fogo, e diz: "Ali existe luz e a compaixão do Compassivo", mas não
encontra luz porque ela é um dom para cada homem em separado, não é um bem
comum. E a compaixão não o pode tocar, porque ele se prende à sua própria culpa
e não se poderá perdoar. A minha parábola narra a verdadeira situação Amberley-
san?
- Sim, mas pode terminar assim, com o viajante parado, sem lágrimas, sem luz e
recusando a compaixão? Há uma palavra para isso no Ocidente: accidie. Significa o
Nirvana falso e terrível fundado não na união, mas na separação, não na extinção do
desejo, mas no desprezo por ele. É onde estou agora. Por esse motivo, penso que
não posso continuar o mondo em sua companhia.
- Há outro final para a parábola, meu amigo. Se for um pouco mais paciente
tentarei mostrá-la. Ficamos com nosso viajante sozinho à beira da estrada e
abandonado, não foi? Ele não pode regressar. Nada há que o impulsione à frente.
Sem desejo, no entanto, continua a andar. Ao lado da estrada, vê uma imagem do
Buda, da Deusa Kuan Yin, de Rai-jin, o Deus do Trovão, um fumiejesu, talvez, ou
mesmo o Grande Urso dos anos. Trata-se de coisa morta, feita de madeira, pedra ou
barro cozido e que, para nosso viajante, nada significa. Sendo um homem, no
entanto, sabe que a imagem tem significado para outros homens, é uma expressão
de sua necessidade e desejo de esclarecimento, harmonia e elevação acima do eu.
Para ao lado da imagem que não tem significado para ele, recita uma oração em
cuja eficácia não acredita: "Se existe luz, mostra-me luz. Se existe poder, estende-o
a mim. Se existe perdão, perdoa. Se houver um amanhã, dá-me uma esperança
nele e se existirem essas coisas, mas não para mim, dá-me a paciência para
suportar essa inexistência".
- E como saberei se a oração vai ser respondida?
- Quando tiver a coragem de viver sem uma resposta. - E se eu não tiver
coragem?
- Então, andará mais um pouco na estrada e chegará a uma habitação de
homens.
- Como posso ter certeza disso?
- Porque, onde há imagens, sempre há homens!
- E depois?
- Verá o que viu o Senhor Buda: um homem doente, um homem velho, um
homem morto e um homem com a cabeça raspada, que não tem lar. E, então, você
dirá: “Nenhum desses é mais afortunado do que eu. Portanto, por que devo me quei-
xar?” E então, você aceitará conviver novamente na habitação dos homens, ou se
juntará àquele que não tem lar e continuará na estrada. Assim, de qualquer dos
modos sua oração será respondida e terá um começo de luz e o desejo de mais luz.
- E o perdão? Quem me perdoará pelo que fiz?
- O morto a quem dará sepultura, o doente a quem socorrer, o velho que
amparará, o desabrigado cuja solidão partilhará.
- E a imagem?
- Ainda é uma imagem do Desconhecido e Incognoscível, que poderá um dia
resolver esclarecê-lo, pois o Todo-Esclarecido tem pena da humanidade.
Era uma filosofia desolada e espartana, e enquanto ele a descrevia, eu sentia o
coração desanimar diante de sua aspereza. A oração ao Deus desconhecido é ato
terrível e desesperado, que pode lançar o homem na loucura ou na revelação
inimaginável. É o salto pela escuridão, que o atira no silêncio eterno ou na
sublimidade do abraço Divino. No entanto, que mais me restava? Minha pequena
herança de boas maneiras, costume polido e moralidade tradicional fora destroçada
pela marcha processional da história. Minha ação, ou qualquer ação, era um gesto
fútil contra o poderio esmagador dos elefantes. Que eu tivesse sobrevivido à mesma
e Phung Van Cung se visse destruído por ela, era acidente sem importância na
longa e violenta evolução da primeira forma de vida até aquela criatura caótica, o
homem, que ainda assim conseguira impor uma ordem ao planeta. Acidente ou
desígnio? Luz ou ilusão de treva total?
Se tudo era acidente e ilusão, eu nada queria de nada. O tempo era longo
demais, a vida excessivamente solitária na paisagem plana e vazia de meu
sonho. Mas se, como Muso Soseki prometia, existisse ainda que somente a
esperança de luz, uma necessidade de perdão, um significado no servir, uma tran-
quilidade no amor, então eu poderia concordar em continuar a ser um homem. Como
poderia saber outra vez, com certeza, eu que matara o pássaro do sonho que não
existia, e matara um homem sem tocar nele e, tendo destruído minha própria ima-
gem, olhava agora um espelho que nada refletia?
Como se adivinhasse meus pensamentos, Muso Soseki se inclinou e apanhou
no caminho uma pequena pedra, redonda, polida e cheia de veias verdes. Estendeu-
a para mim na palma da mão.
- Não é bela, meu amigo?
- É bela, sim.
Atirou-a no tanque e observou enquanto as ondulações se espalhavam na
superfície da água e atingiam a margem gramada. Depois voltou-se e me disse de
modo grave:
- Ela ainda é bela, embora você não a veja. Será bela ainda, quando os peixes
se tiverem esquecido dela, as plantas da água a encobrirem e ninguém mais, a não
ser você e eu, souber que ela já existiu.
- A beleza é bastante, contra toda a fealdade?
- Não, mas que exista alguém para ver a beleza e deliciar-se nela, isso é muito
mais.
- Mas ainda não o bastante.
- Ainda não, mas saber que vimos e desfrutamos é saber que o poderemos
fazer de novo.
- Mesmo quando se destruiu a beleza e criou a fealdade?
- Às vezes por causa disso... Você nunca perguntou, meu amigo, como vim para
este lugar.
Era verdade. Desde o primeiro momento em que nos víramos, eu o aceitara
como uma permanência, como os pinheiros, pedras e formas de areia e musgo. Ele
estava tão identificado àquelas coisas, que me pareceria impertinência perguntar de
onde viera. Disse-lhe isso, e ele aceitou o cumprimento com bom-humor moderado,
e depois me narrou:
- Tenho setenta e cinco anos de idade. Estou neste lugar há mais de trinta anos.
Em 1931, tomei parte na invasão da Mandchúria. Era então um oficial, orgulhoso de
minha longa alinhagem como membro de uma família Samurai. Matei muitos
homens e fui condecorado pelo Imperador por valor em campo de batalha. Depois,
adoeci e cheguei bem perto da morte. Pela primeira vez, compreendi a natureza da
morte que infligira a outros homens, quanta promessa fora assim destruída, quanta
dignidade violada. Também eu queria perdão, mas ao invés davam-me somente
louvor. Eu queria pagar, mas que adianta uma moeda na boca do morto? Como
você, encontrei-me na treva e nela vaguei muito tempo. Depois, cheguei a este
lugar, procurando luz...
- E encontrou?
- Aprendi a não exigi-la.
- Está mudado?
- Sou o mesmo. Mas mudei, porque sei que não posso mudar o que fui, e o que
fiz.
- E a luz?
- Esta é a luz.
- Mas você nada pagou.
- Paguei tudo, aceitando que nada posso pagar.
- Os cristãos exigem uma penitência para o pecado.
- O Senhor Booa ensinou que a própria vida é penitência para o desejo
obstinado.
- Os cristãos dizem que o homem espera a misericórdia de Deus.
- Para nós existe a Compaixão do Compassivo. Qual é a diferença?
O sol já se pusera e o jardim enchia-se de sombras. Os bordos não tinham mais
a cor do fogo, mas destacavam-se escuros contra o céu da noite. A carpa estava
imóvel na água escura e os lírios se tinham fechado para dormir. Muso Soseki pôs a
mão enrugada em meu braço e me levou para sua casa.

***
Saigon - outubro de 1963.
Sydney - outubro de 1964.

1965

Abril Cultural 1985


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