O Embaixador - Morris West PDF
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Morris West
NOTA DO AUTOR
Esta é uma obra de ficção, feita conforme o método literário consagrado de povoar uma
situação histórica de personagens extraídas da imaginação do autor.
Quem buscar identificar os atores deste drama a personagens reais, vivas ou mortas,
ver-se-á cercado de anomalias. Quem aceitar a ficção verificará, conforme espero, que a
obra é fiel a seus próprios termos de referência.
M. L. W.
Capítulo um
Minha folha de serviços como diplomata é boa. Na carta protocolar de agradecimentos
que me enviou, o presidente lhe chamou "carreira destacada e meritória, em que o total
de serviços prestados foi de grande proveito para os Estados Unidos da América". Pude
aceitar o cumprimento com certa ironia, ruas tinha, ao menos, a certeza de merecê-lo.
Servi ao Departamento de Estado durante trinta e cinco anos, dez dos quais na
qualidade de embaixador, e tive meu quinhão de postos difíceis, recebendo também
minha cota de "abacaxis". Acredito que meus próprios inimigos reconhecem que não
foram muito grandes as minhas falhas e que consegui um ou dois êxitos brilhantes.
Alguns amigos dizem que a minha decisão de abandonar a carreira diplomática antes
do tempo foi o que fiz de mais inteligente até agora, e acentuam que, por um lado, estou
muito bem com o presidente, que pode chamar-me de volta quando quiser, na qualidade
de negociador especial, e, pelo outro, estou livre para cuidar das minhas ambições
políticas.
É claro que tais amigos supõem que eu tenha essas ambições, e lastimo que me
atribuam tamanha capacidade calculista. No entanto, por que me deveria sentir magoado
por isso ? Sempre fui conhecido como um negociador frio, e tem certo valor diplomático a
reputação de inflexibilidade. Se mudei, meus amigos dificilmente tiveram tempo de notá-
lo, e como podem conhecer a consciência íntima de Maxwell Gordon Amberley (que sou
eu), quando ele próprio só a veio conhecer tão tarde?
Até o momento presente, segui sempre as convenções do serviço diplomático e
preparei minha saída com dignidade realmente bíblica. Depois da morte de Phung Van
Cung, esperei todo o prazo de doze meses no cargo, mais do que bastante para absolver
o governo de meu país de qualquer culpa por ela, ou de responsabilidade por suas
conseqüências. Depois disso, fiz a visita regularmente a Washington a fim de render
vassalagem e pedir outro lugar, estive num hospital de Nova York para um exame médico
completo e, três semanas depois, podia anunciar minha aposentadoria do serviço
diplomático, alegando saúde precária.
O motivo real ? É para descobri-lo que estou aqui, no velho santuário Zen de Tenryu-ji,
o Templo do Dragão Celeste, perto de Quioto, no Japão.
Estamos no outono e os bordos sagrados na entrada mostram-se vermelhos como
fogo, contra a muralha verde dos pinheiros. O céu tem a cor da casca de urna pérola e as
folhas caídas juncam tranqüilamente a superfície dos pequenos lagos, os caminhos de
areia varrida, as pedras e o verde vigoroso das faixas de limo.
Há ocasiões em que ando pelo jardim e observo os monges cuidando das plantas com
atenção, de modo toda especial, "tornando cada folha de grama um Buda dourado". Em
outras, sento-me na casa de Muso Soseki, de pernas cruzadas, sobre uma esteira de
palha, tomando chá por ele preparado para mim de forma toda cerimonial e
acompanhando-o no método meditativo de diálogo chamado mondo...
- Para que vem a este lugar?
- Pra buscar esclarecimentos.
- Por que não o encontrou?
- Porque o procuro.
- Onde o encontrará ?
- Em parte alguma.
- Quando o encontrará?
- Em tempo algum.
Assim se trava o diálogo, que tem o mesmo jeito do templo, da casa e do jardim. Tudo
é parcimonioso, alusivo, arrumado, estendendo-se infinitamente, como a esteira onde nos
sentamos, e que parece deslizar e fundir-se com a areia dos caminhos e as ondulações
criadas pela carpa nos tanques do jardim.
Muso Soseki é monge do culto Zen e também poeta, jardineiro, mestre de caligrafia e
da arte de imprimir com blocos de madeira. As pinceladas de seu nome significam
"Janela-Que-Se-Abre-Sobre-Um-Sonho". Tem setenta e cinco anos de idade, mostra-se
rijo, bronzeado e batido pelo tempo como uma pedra antiga. O rosto calmo, exprimindo
benignidade e radiante disposição. Concordou em aceitar-me como discípulo e, usando
os métodos do Zen, sacudir, incentivar e abalar-me para aquele momento de intuição e
iluminação chamado satori.
Tenho necessidade de iluminação - uma grande necessidade mesmo - e lamento
apenas não ter ficado aqui para descobrir isso três anos antes, quando George Groton me
trouxe pela primeira vez, após a morte de minha esposa.
Naquela época eu era embaixador, personagem dourada no drama diplomático de
Tóquio. Quem quiser examinar o mapa e marcar os vetores de poderio político na Ásia
compreenderá a natureza e medida de minha influência. Acredito ter sido eficiente. Tenho
inclinação para o idioma, gosto por costumes exóticos e boa audição para as notas de
acompanhamento em qualquer execução musical, e tudo isso são acervos valiosos numa
civilização esotérica. O mais que eu apresentava, então, não era de minha natureza, mas
uma dádiva que Gabrielle me fazia.
Minha falecida esposa era dona de encanto pessoal, tato, bom humor e harmonia
luminosa que transbordavam de sua vida e vinham valer á minha e valorizá-la. Quando
morreu, essa harmonia se desfez, tornando-se uma discórdia gritante; de repente,
pareceram avolumar-se todas as fendas e apresentar-se todos os defeitos em minha
personalidade.
Eu jamais tivera quaisquer crenças firmes, de natureza espiritual, e, vivendo sob a
bênção profunda de uma mulher que amava, nunca senti grande necessidade delas.
Tinha sentimentos religiosos, certamente, e não desgostava de freqüentar as cerimônias
da Igreja, chegando a gostar delas quando os deveres oficiais me impunham a presença.
Quanto ao mais, contentava-me com o reconforto de meus deuses familiares e da
sacerdotisa que os ministrava, a eles e a mim.
Agora que morrera, era como se todos os meus santuários houvessem ruído de
repente e eu precisasse procurá-los debaixo da terra e sem qualquer luz. Recusava todas
as manifestações de pesar, tornei-me brusco, enérgico e meticuloso. O pessoal que
trabalhava comigo achava-me insuportável e meus colegas se afastavam. Somente os
japoneses, gente esquizofrênica, pareciam dispostos a aceitar minha necessidade de um
período de loucura terapêutica.
Foi um de meus auxiliares, George Groton, terceiro secretário, quem teve perspicácia
bastante para ver o que acontecera comigo. Não se mostrava desconcertado pela minha
ira, nem minha arrogância o fazia distanciar-se.Era operoso, bem-humorado e não
demonstrava receio algum. Moço alto, esgrouviado, de óculos, com ombros caídos e
guedelha ruiva, ainda assim em raros momentos de brandura eu me via desejando ter um
filho igual a ele.
Certa noite, quando Groton era o funcionário de dia na Embaixada, teve de me acordar
em vista de mensagens recém-chegadas. Eu bebera demais antes de deitar-me e estava
muito indisposto. Fui por isso intoleravelmente grosseiro com ele, que respirou fundo,
plantou-se bem diante de mim e disse:
- Embaixador, está-se destruindo e destruindo a harmonia da Embaixada. Se não quer
que o ajudemos, permita-nos ao menos realizar o trabalho tão bem quanto possível.
Olhei-o, atônita com aquela audácia, mas Groton deu de ombros e acrescentou com
um sorriso que me desarmou:
- Pode mandar-me voltar para os Estados Unidos, mas alguém tinha de dizer-lhe isso.
- E por que tinha de ser você?
- A Sra. Amberley sempre foi muito gentil comigo, e, antes de morrer, fez-me prometer
que o ajudaria.
Fiquei tão envergonhado que não consegui falar. Apanhei as mensagens e me
tranquei no quarto, onde chorei como uma criança. Na manhã seguinte, escrevi para
Groton um bilhete um tanto seco, pedindo desculpas e apresentando agradecimentos.
Uma semana depois me convidou para fazer arte de um grupo da Embaixada que ia a
Kurama assistir ao festival anual do fogo. Kurama fica a pequena distância de Quioto, e
era a coisa mais natural do mundo que ali visitássemos o Templo do Dragão Celeste e eu
viesse a conhecer Muso Soseki.
Se Groton não tivesse morrido, seria um grande diplomata. Era homem simples, que ia
rapidamente ao cerne dos problemas, mas bastante delicado e bem-humorado para se
adaptar aos processos mentais tortuosos dos outros. Quando o vi ser atingido por morte
violenta em Saigon, chorei de novo e, desde então, não derramei mais uma só lágrima
por homem ou mulher.
Muso Soseki me recebeu com a cortesia simples de homem harmonizado consigo
próprio, sua história e seu mundo. Passeou comigo pelo jardim do templo, interpretando-o
para mim, à maneira Zen, não como uma associação fortuita de coisas belas, mas lugar
de intenções sutis, associações harmoniosas e contrastes reveladores, um meio
planejado para acontecimentos espirituais, um instrumento de esclarecimento mais
poderoso que livros ou dissertações.
Não fazia a conversa tomar ares de conferência doutoral, mas falava dessas coisas
como um homem sabe falar de sua vida intima, com amor e profundo interesse. Ao falar
do satori, via-se em dificuldades para tornar clara para mim essa noção, e me lembro com
bastante clareza de duas frases suas:
- A raiz do sofrimento humano, Sr. Amberley, é o sentimento de alheamento da ordem
natural do universo. O efeito do satori é uma iluminação da mente, de modo que a
natureza do eu e do universo se torne finalmente clara, e se restaure o sentido da
verdadeira relação e da unidade.
O meu próprio sofrimento era tão recente e forte que me agarrei àquelas palavras e
pedi que as explicasse melhor. Ele se recusou, sorrindo e dizendo então:
- Volte em outra ocasião. Tomaremos chá e falaremos em silêncio.
Voltei a Tóquio como homem ainda dentro da aura de um sonho calmo, mas
maravilhoso. Escrevi a Muso Soseki, agradecendo as gentilezas e pedindo permissão
para vê-lo novamente. Dez dias depois chegou sua resposta, numa pequena obra-prima
de caligrafia, em papel feito a mão. Aquele homem idoso me oferecia sua casa, sua
amizade e aquilo a que chamava "os pequenos e indignos frutos de minha colheita
hibernal". Poderia visitá-lo em qualquer ocasião e viver com ele, como hóspede.
Fui lá tantas vezes quantas pude, para estar em sua companhia. Em algumas
ocasiões ia sozinho, de outras com Groton, que entrara em relação semelhante com outro
monge. Groton estava mais adiantado que eu, talvez por ser mais jovem, talvez por ser
naturalmente mais humilde, flexível e apto a seguir as disciplinas do método Zen.
O curioso era que, nessa.altura, eu não possuía qualquer propósito de me submeter a
um exercício religioso, no sentido comum da expressão. Do modo como Muso
apresentava a matéria, a prática do Zen pertencia à ordem puramente natural e, na
verdade, era a preparação do organismo humano para um estado superior de percepção.
Nesses termos, eu a aceitava sem me sentir embaraçado e conseguia até esperar que
dali viesse um remédio para as fraquezas reveladas em minha personalidade pela dor e
perda sofridas.
Dava bem a medida da sabedoria de Groton o fato de que ele, embora me houvesse
levado ao meu mestre, se recusasse a qualquer discussão comigo sobre aquilo em que
ambos estávamos empenhados. Dissera apenas que, em Tóquio, estávamos separados
pelas formalidades do serviço diplomático e, em Quioto, o que nos separava era a
particularidade íntima de uma experiência intransmissível. Quando exprimi gratidão pelo
que fizera, aceitou-a com sorriso e comentário típicos do Zen:
- Quando estamos em silêncio, somos um; quando falamos, somos dois.
Eu iria lembrar-me disso muito mais tarde, também, quando debatêssemos tão
acaloradamente o caminho que eu preferira tomar em Saigon.
De minha parte, contentava-me em estar tranqüilo e afastado um ou dois dias da
imprensa e das complexidades das minhas funções. Gostava do jardim, do fluxo rápido
das palavras com que Muso Soseki se exprimia. Acredito, também, que trabalhava melhor
devido a isso, pois compreendia o refinamento enganador do pensamento japonês, a
sombra emocional que condiciona a afirmação mais direta. Comecei a compreender que
tal atitude intuitiva quanto ao esclarecimento não era obrigatoriamente uma rejeição da
razão, mas uma exploração de seus processos mais secretos ao nível do subconsciente.
Por sua parte, Muso Soseki não me forçou qualquer das disciplinas. Havia vezes em
que simplesmente tomávamos chá e falávamos livremente como amigos. De outras, ele
me apresentava um tema de meditação, uma daquelas proposições aparentemente sem
sentido chamadas koan.
Aquela por ele proposta, e à qual sempre voltava com suave persistência, era a
seguinte:
- Que fará quando lhe pedirem que mate o cuco ?
Minha primeira resposta foi desafiá-lo para definir os termos da proposição. Por
exemplo, quem me pediria isso ? O que era o cuco e por que me pediriam que o matasse
?
Muso sorriu e não aceitou o desafio.
- Você, Amberley-san, você é que me deve dizer o que eu quero dizer.
Sem que o pudesse evitar, a pergunta começou a me perseguir, irritar e distrair da
lógica formal e, muitas vezes, vigorosa da diplomacia prática. Perturbava-me como um
quadro surrealista, onde cada símbolo se mostrava claro, mas cujo conjunto nada mais
era do que absurdo, até eu receber ou descobrir a chave para sua interpretação.
Ainda assim, comecei lentamente a ver como e aonde estava sendo levado - a um
estado de desconfiança de mim próprio, de insatisfação com o óbvio, uma esfera de
comunicação sem palavras. Embora o compreendesse, compreendi também como estava
longe da solução.
E então, sem qualquer aviso, todo o processo de reeducação foi interrompido e me vi
de novo atirado, sem apelação, as realidades - ou eram ilusões ? - do serviço diplomático.
Festhammer chegou de Washington com pedido formal do secretário de Estado, apoiado
por amável nota do próprio presidente. Poderia eu deixar o posto em Tóquio e aceitar a
missão especial de embaixador no Vietnam do Sul ?
Ninguém pode ser menos seguidor do Zen do que Raoul Festhammer, pragmatista
perfeito. Em suas mãos, um fato é coisa tão formidável quanto um florete. Há quem o
chame de oportunista completo, mas o respeito que tenho por ele é grande demais para
que eu o condene tão facilmente. Trata-se de avaliador frio e seus resumos das situações
examinadas são modelar exercício de lógica tática. Bebe pouco, não furna e mostra
frenético entusiasmo por belas mulheres. E amigo incerto e inimigo perigoso, mas seu
trabalho tem tanta precisão quanto o de um banqueiro. Na vida particular não o aprecio,
mas profissionalmente apostaria toda a minha carreira em qualquer de seus relatórios, e
era precisamente isso o que me pedia que fizesse...
- ... É uma trapalhada, Max, uma trapalhada sangrenta e ingrata. Nós a chamamos de
guerra subversiva, mas no fundo é também guerra civil, filho contra pai, família contra
família. Estamos envolvidos nela porque queremos manter uma base militar no sudeste
da Ásia e negar à China o acesso às regiões rizícolas do sul e às vias marítimas para a
África. Se perdermos o Vietnam do Sul, a Tailândia estará cercada e Cingapura
ameaçada. Já empenhamos trinta mil homens, só Deus sabe quantos milhões de dólares,
e somos ainda "assessores", sem voz ativa na direção das operações.
E após uma pausa:
- Demos apoio a Phung Van Cung e sua família porque eram os melhores e mais
fortes administradores existentes. Acredito que ainda o sejam, mas estão descontrolados
e não escutam mais a voz da razão. Agem como homens que têm uma ligação direta com
o Espírito Santo. São da minoria católica num país de budistas, e, ao invés de se
tornarem amigos destes, estão a coagi-los em todos os pontos. Prendem estudantes,
rapazes e moças, em campos de concentração, já se inimizaram com a capital e perdem
o controle nas regiões rurais. O comando militar se encontra dividido e, a despeito de dez
mil aldeias
fortificadas e da vasta superioridade em armas e equipamentos, os vietcongs estão
vencendo todos os rounds, por pontos... McNally trabalhou bem como embaixador, mas
nós lhe demos instruções erradas, dissemos-lhe que fizesse amizade com Phung Van
Cung, agindo mediante persuasão e encanto pessoal. Pois agora esses truques não
valem mais nada.
O enviado do presidente terminou sua apresentação do quadro geral dizendo-me em
seguida:
- Não podemos mais trabalhar desse modo. Temos de entrar com dureza e chamar o
governo à ordem, mediante sanções econômicas. Há uma quantidade de documentos
que lhe peço que leia. Verá então por que precisamos de um homem forte para essa
missão, Max. Não há prêmios ou louvores a ganhar com isso e, quer ganhemos,
percamos ou empatemos, continua a ser uma trapalhada sangrenta, e tudo quanto você
vai conseguir é uma tremenda dor de cabeça... Todos nos Estados Unidos esperam que
você aceite.
Levei dois dias lendo os documentos que me entregou e, depois disso, aceitei. Mais
tarde, quando vim a calcular as culpas que teria de assumir, imaginei quantas
pertenceriam a esse momento exato.
Havia orgulho envolvido na questão. Qualquer pessoa se orgulharia de dizer : “Estou
aqui em nome de um grande povo. Fui escolhido por ser competente e enérgico e será
perigoso provocar-me”. Sob o orgulho havia medo, pois a morte de Gabrielle revelara que
pouca farsa me restava, Muso Soseki começara a abalar-me a sabedoria e George
Groton me fizera sentir vergonha de minhas iras. Sob o orgulho e medo havia outra coisa
- o impulso a afastar a contemplação, em favor da ação, postergar uma decisão referente
a mim próprio, ao assumir o direito de decidir sobre milhões de outros, de quem
desconhecia até o nome.
No entanto, eu fizera juramento de prestar esse tipo de serviço a que dedicara toda
minha vida. Fora especialmente chamado pelo Chefe do Governo e não me cabia direito
algum de sobrepor problemas particulares aos negócios do bem público. Precisava
compreender que tinha dois "eus" num só corpo. Os dois eram separados e díspares. O
eu que conhecia no jardim de Tenryu-ji era diferente daquele que se portava tão bem no
xadrez do poder. Parecia, portanto, que tinha de aceitar sempre a vida em dois níveis de
existência, rejeitando qualquer impulso de equacionar um ao outro.
No entanto, estava ainda dominado pela inquietação por maus prenúncios. Quem
poderia dizer por quanto tempo esse equilíbrio precário conseguiria sobreviver aos
choques de um ambiente hostil? Muso Soseki me ajudara a ter respeito por meu eu
secreto, mas não havia uma Gabrielle para me amar e manter-me em harmonia com o
mundo interior e o exterior.
Recorri por isso a George Groton e lhe perguntei se podia ir comigo para Saigon,
como ajudante especial. Ele sorriu, do seu jeito juvenil, agradeceu-me a confiança e
concordou, e em seguida, de modo bem inocente, perguntou se pretendia ver Muso
Soseki antes de partir do Japão. Na confusão das conversas com Festhammer e das
comunicações com Washington, eu nem pensara nisso. Groton me fez ver que se tratava
de um tipo especial de cortesia, a do discípulo para com seu mestre, que é como a de um
filho para o pai. Mais uma vez, fiquei envergonhado com minha incúria e prometi que,
assim que terminasse as despedidas diplomáticas, passaria um dia com Muso Soseki no
Templo do Dragão Celeste.
Já estava no ar o frio do inverno e o fogo se apagara nos bordos sagrados da
entrada. As folhas se espalhavam pelo chão, as pedras estavam descoradas e a água
nos pequenos lagos era cinzenta e feia. Muso Soseki me recebeu em sua casa e fechou
as cortinas, de modo que nos sentamos isolados do mundo em pequenina ilha de luz e
calor. Quando lhe falei de minha transferência, balançou gravemente a cabeça e disse:
- Todo homem usa um par diferente de sapatos. Tem de ir onde os sapatos o levam.
No entanto, acho um grande risco aceitar essa nomeação, nessa fase de sua vida.
Rindo, respondi que o perigo era normal na carreira diplomática, mas ele franziu os
sobrolhos e sacudiu negativamente a cabeça.
- Eu não estava pensando em sua carreira, mas no seu eu. Você adquiriu consciência
da imperfeição de sua vida e pode ser tentado a impor uma perfeição impossível à situa-
ção que vai encontrar. Está sendo mandado para lá a fim de conseguir resultados. Que
tipo de resultados pode esperar conseguir? Um final para a guerra civil? Um fim para o
comunismo no Vietnam do Sul? Um fim para o regime?
Levantou a mão pequena e magra para atalhar minha resposta.
- Não! Não responda! Na trilha do esclarecimento, você é meu discípulo. Na trilha do
mundo, você é o Embaixador norte-americano. Não deve discutir questões de Estado
comigo... Mas o problema da política é apenas uma multiplicação do problema individual,
e tentamos resolvê-lo do mesmo modo: propondo-nos um fim limitado que, quando
atingido, significará o "sucesso". Desse modo, um general diz que, se ganhar a guerra,
terá - e será - um sucesso, mas despreza o fato de que a guerra é uma violência
destruidora que não conhece limites e, depois dela, torna-se necessário novo ato de
criação para fazer a ordem surgir do caos e o riso da tristeza. Vê o que quero dizer, meu
amigo?
- Vejo, mas nada disso me esclarece. Conheço muito bem minha situação como
diplomata profissional. Não tenho a liberdade de propor os fins de meus atos, cabendo-
me apenas agir, de modo a cumprir do melhor modo possível os fins que me são
propostos.
Muso Soseki sorriu e balançou negativamente a cabeça.
- Só em parte isso é verdade. Você é chamado para aconselhar e orientar e, assim,
na verdade, pode ajudar a propor os fins que mais tarde lhe serão propostos.
- E verdade, mas apresento meus conselhos sob a pressão dos acontecimentos
diários, a peste, a fome, a guerra e as flutuações na bolsa de valores. Tenho de relembrar
a mim mesmo, e aos demais com quem lido, que uma modificação não constitui
obrigatoriamente uma melhoria. Se não os conseguir convencer, poderei receber ordens
para efetuar uma modificação na qual não acredito. Por outro lado, a modificação em que
acredito poderá ser apenas geradora de outras pestes e outras guerras.
- E você se contenta com essa situação, que na verdade é toda sua vida profissional?
- Aceito-a como fato necessário da existência. Neste sentido, tenho de me contentar
com ela.
- Ela é necessária porque é assim, ou porque você a deseja assim?
- Gostaria de saber a resposta a essa pergunta.
- O desejo não basta. É preciso que nos coloquemos na atitude de quem busca a
resposta.
Capitulo dois
Capítulo três
O gongo batia ainda quando saímos de automóvel, com a flâmula dos Estados Unidos
no radiador, pela cidade, dentro da noite. De repente, o gongo parou e ouvimos ao longe
o crepitar de armas de fogo. Mel Adams indicou as patrulhas militares ao lado da rua e
caminhões estacionados em todos os cruzamentos.
Harry Yaffa esperava por nós no portão da Embaixada e pulou para o carro, batendo a
porta, com força. Parecia nervoso e desalinhado.
- Estão invadindo o Pagode Xa Loi e mais três ou quatro na cidade. Acabei de receber
telefonemas de Hué, Dalat e Danang, e a mesma coisa acontece por lá. Devia ver com os
seus olhos, embaixador.
- Cung é bom na tática, e a cidade toda deve estar assim.
- Concordo.
- Pois eu não concordo!
Pela primeira vez, desde que chegara, vi Mel Adams entrar em cena, e de modo
áspero e abrupto.
- Acho má diplomacia, que não lhe deixa campo de manobra. Se se tornar testemunha
ocular, terá de dar um veredicto público, sem quaisquer reservas diplomáticas. A
imprensa estará presente e inevitavelmente o senhor será fotografado, e fotografado
como espectador passivo da violência policial. Acho que isso é mau.
- Será pior, por acaso - perguntou Harryyaffa friamente -, do que ir amanhã ao palácio
com informações de segunda mão? Cung preparou este pequeno exatamente para o
embaixador. Vamos, Mel Adams! Espane da cabeça essas teias de aranha! Isto não é
diplomacia de luvas de pelica, é guerra!
- Tornei clara minha posição - respondeu Adams altivamente. - Mesmo na guerra é
preciso ter campo de manobra para deslocar as forças, e desse modo não o teremos.
Era hora de intervir, e precisava salvar o prestígio de ambos.
- É um risco, Mel, e você está certo em mostrá-lo. A decisão cabe a mim. Vamos!
Antes de as palavras serem pronunciadas, Bill Slavich pisava no acelerador
arrancando por uma esquina onde passamos com duas rodas no ar e rumamos a toda em
direção ao pagode. Os tiros tinham aumentado e, quando nos aproximávamos, ouvimos
brados e gritos, no murmúrio raivoso de uma multidão que crescia. As entradas para o
templo estavam fechadas por barricadas de madeira e guardadas pela polícia de choque,
armada com carabinas automáticas e disparadores de bombas de gás lacrimogêneo.
Nas barricadas juntava-se uma multidão e os soldados batiam nos populares com as
coronhas das armas. Enquanto freávamos para parar, dois deles vieram correndo em
nossa direção, mas ao verem a flâmula no automóvel afastaram-se. Yaffa e eu subimos
ao capô do carro a fim de ver por cima dos populares.
Os portões do pagode tinham sido arrebentados e havia carros da Policia, destinados
a carregar presos, do lado de fora. Enquanto observávamos, vimos os policiais
empurrando um pequeno grupo de monges para os veículos.Os religiosos e estavam
machucados e feridos e um deles sangrava muito na cabeça. Atrás dele, uma monja
gritava e lutava nos braços de um oficial inferior. Ouvimos gritos nos andares de cima e,
ao olharmos para lá, vimos um homem de manto amarelo cair da janela ao chão do
jardim. Dentro do pagode, ouviram-se mais tiros de fuzil e explosões surdas de bombas
de gás lacrimogêneo. A multidão gritava, amaldiçoando os guardas.
Dois correspondentes romperam pela multidão e correram para nós, um deles ergueu
a máquina fotográfica e tirou uma fotografia minha, sentado na capota do carro, enquanto
seu companheiro se apresentava.
- Sou Cavanna, Associated Press. O senhor é o Embaixador Amberley, não ?
- Exatamente.
- Algum comentário sobre os acontecimentos desta noite ?
- Sim. Assisti à violência e à brutalidade, e como representante dos Estados Unidos da
América deploro muito. Não tenho outros comentários, até chegar a oportunidade de
examinar, a questão com o Presidente Cung.
- Hoje de manhã, um monge budista incendiou-se em sua presença. Hoje à noite,
acontece isso. Estamos no seu primeiro dia como embaixador no Vietnam do Sul.
Algum comentário sobre a seqüência dos fatos, embaixador?
- Meu comentário será feito na primeira entrevista com a imprensa, as duas da tarde,
amanhã. É tudo quanto posso dizer no momento.
Houve nova onda de violência nas barricadas. Alguém atirou uma garrafa, e depois
uma chuva de paus e pedras. A polícia saiu de trás das barricadas e afastou os
populares, mostrando-se brutalmente eficiente. Houve mais cabeças quebradas e uma
jovem foi atirada ao chão e pisoteada pela multidão. Os policiais a recolheram e levaram
também para os carros de presos, enquanto a multidão se via tocada com firmeza em
direção ao nosso automóvel.
- Vamos dar o fora daqui! Sei para onde ir - gritou Harry Yaffa.
Levou-nos de volta ao carro em cinco segundos, e passamos, pela esquina seguinte,
para o terreno da Missão de Ajuda dos Estados Unidos, ao lado do pagode. Os
funcionários residentes estavam todos em camisolas e pijamas e uma jovem tratava dos
ferimentos de um monge, cuja face fora atingida por golpe de baioneta. Outro monge
sentava-se no muro do jardim, chorando baixinho e tentando aliviar a dor do queixo
quebrado. Um dos homens da Missão veio ter comigo nervoso e abalado.
- Estão assassinando, assassinando a sangue frio! Não podemos fazê-los parar?
Harry Yaffa foi quem respondeu:
- Não podemos, não. Sossegue, portanto ! Leve esses dois monges para dentro e diga
aos guardas que, se alguém quiser irromper por aqui, atirem primeiro e façam perguntas
depois. Chame o General Tolliver, conte o sucedido e peça que mandem médico e reforço
para a guarda.
Depois voltou-se para mim:
- Se já viu o bastante, acho que devemos voltar Embaixada.
Eu vira o suficiente. A violência estúpida daquelas cenas me revoltara e eu fervia de
indignação. Voltei-me para Mel Adams.
- Fique aqui, Mel. Reúna toda a informação que puder sobre este caso e apresente-a
pela manhã. Os dois sacerdotes estão sob a proteção do governo dos Estados Unidos e
todas as indagações deverão ser encaminhada à Embaixada.
Adams assentiu e acrescentou uma sugestão:
- Talvez fosse bom informar todas as embaixadas sobre o que aconteceu.
- Eu tratarei disso - disse George Groton. - Quer mais gente para trabalhar ?
- Sim. Chame a Srta. Beldon e o pessoal necessário. Vamos ter muito o que fazer nas
próximas horas.
- Que vai fazer, Sr. Yaffa ?
- Tenho o meu próprio trabalho a executar - respondeu ele, com ar sombrio. - Bill
Slavich o levará de volta e estarei na Embaixada assim que puder.
Enquanto voltávamos pelas ruas cheias de soldados, tentei reprimir a ira e fazer uma
relação calma dos acontecimentos nas últimas doze horas. Não me restava dúvida de que
haviam sido cronometrados, a fim de me desacreditar e enfraquecer minha posição nas
negociações com o presidente. Eu já vivera o bastante no Oriente para compreender a
importância do "prestígio", outro nome para aquela exibição de poderio público que
favorece o crédito pessoal. Minha nomeação fora um golpe para o crédito pessoal do
Presidente Cung e, como verdadeiro oriental, ele devia diminuir-me, a fim de demonstrar
a sua estatura. No entanto, muito mais do que o meu embaraço se achava em jogo, e eu
não devia ser arrastado a uma análise apressada da situação.
O Presidente Cung era político hábil demais para fazer uma demonstração de violência
desprovida de qualquer objetivo. Os seus atos sempre se mostrariam coerentes com o
que ele era - o homem que assumira o controle do país, depois da débâcle de Dien Bien
Phu, recolocara quase um milhão de refugiados vindos do norte, revivera a economia
nacional e quebrara o poderio dos Binh Xuyen, piratas fluviais que tinham chegado a
comandar cinco mil soldados e toda a força policial de Saigon. Sobrevivera a uma dúzia
de conspirações e submetera ao seu controle uma porção de sectários armados, chefes
militares do tipo feudal e conspiradores em uniforme. Fora ele quem chamara os Estados
Unidos para preparar e unir o Exército e fornecer o equipamento militar necessário, numa
campanha contra os guerrilheiros de Ho Chi Minh. Era um filósofo, tanto quanto um
estrategista político, e nada faria por motivos triviais.
Nenhum homem no uso de suas faculdades mentais tentaria ganhar uma guerra
lançando uma perseguição religiosa contra oitenta por cento de seus próprios
governados. Cung, portanto, deveria ter, pelo menos, uma razão prima facie para sua
atitude quanto aos monges, a elite da fé budista. Lembrava-me do documento que
examinara juntamente com os demais papéis dados por Festhammer. Tratava-se de
relatório feito pela A Central de Inteligência sobre a infiltração de agentes comunistas no
Sangha, o sistema monástico budista.
O relatório compreendia as atividades daqueles agentes na Tailândia, Laos Cambodja
e Vietnam do Sul, indicando que no primeiro país, onde o Caminho Menor era praticado e
o Sangha se achava centralizado sob o patrocínio da Família Real a infiltração comunista
poderia ser controlada. Sob o sistema mais frouxo e difuso do Mahayana, o controle se
tornava bem mais difícil. Os monges jovens e agressivos começavam a usurpar a
autoridade de seus irmãos mais idosos e contemplativos, e o manto amarelo constituía
capa segura e simples para a subversão, dentro dos pagodes e em meio ao povo.
Era o que Cung dizia e poderia afirmar vigorosamente em qualquer tribuna. Depois dos
distúrbios públicos em Hué, onde nove pessoas tinham sido mortas pelos soldados do
governo, os monges budistas haviam organizado reuniões abertas e públicas fazendo
discursos inflamados de condenação ao governo. Num país empenhado em guerra, tal
desordem pública dificilmente poderia ser tolerada. Também aí, a evidência disponível
parecia justificar medidas enérgicas de segurança, mas a violência a que eu assistira no
Pagode Xa Loi, constituía rematada loucura política, e como embaixador dos Estados
Unidos eu precisava desassociar da mesma a mim e a meu país.
Ao chegarmos à Embaixada, encontrei outra surpresa à minha espera - um monge
idoso que fugira do Pagode Xa Loi e procurara abrigo ali. Conseguira isso com seus
perseguidores nos calcanhares, e os guardas, fuzileiros navais, haviam afastado a polícia
com os canos das armas. O refugiado falava francês, mas não inglês, e conversei com ele
quase uma hora, enquanto Anne Beldon registrava sua narrativa sobre a invasão policial
dos pagodes.
Verifiquei não se tratar de homem que impressionasse. Era vulgar e mal informado.
Deu-me uma descrição de cada golpe desferido, na invasão do pagode, mas, quando o
interroguei sobre a natureza do budismo vietnamita, sua história, organização, atitude e
problemas, nada me disse senão lugares-comuns misturados a invectivas bastante
grosseiras contra a família Cung. Não conseguia vê-lo no papel de mártir, mas podia
muito bem reconhecê-lo como agitador, e não pude deixar de comparar suas invectivas
pesadas com a monumental disciplina de Muso Soseki. No entanto, forneceu-me duas
informações importantes - os invasores policiais tinham uma lista nominal dos presos que
deviam levar. Qualquer monge cujo nome se encontrasse nessa lista era acusado de
conspirador comunista, e a polícia levara também as cinzas do monge que se queimara
naquela manhã, mas seu coração tostado, preservado numa jarra, desaparecera. Cung,
cristão consciente, não queria mártires à sua porta.
Depois disso, os telefones começaram a tocar, com gente chamando de todos os
lados. Em Hué, os soldados haviam vasculhado um pagode, roubando o tesouro do
templo. Na ponte que dava acesso a outro templo se travara uma batalha feroz, e o
resultado eram trinta mortos e várias centenas de feridos. Calculava-se que cerca de mil
pessoas tinham sido presas nas diversas partes do país.
Redigi longo telegrama para Washington e outros para os representantes diplomáticos
americanos no Laos, Cambodja e Tailândia; às seis horas da manhã estávamos ainda
trabalhando e ouvimos o próprio Presidente Cung, falando pela Rádio Saigon.
Proclamava o estado de sítio e lei marcial em todo o país, dando ao Exército todos os
poderes de procurar e prender suspeitos. Era decretado o toque de recolher, bem como a
censura total sobre as comunicações internas e externas do país.
Antes que Cung terminasse seu discurso, Harry Yaffa chegou e anunciou que Saigon
estava fechada por tropas de primeira linha e todas as saídas da cidade haviam sido
bloqueadas. As comunicações telefônicas estavam interrompidas em todo, o país e nosso
próprio sistema de comunicações se achava aberto, mas oficialmente o Vietnam do Sul
fora isolado do resto do mundo.
Tudo fora tão rápido e complexo que, certamente já existiam planos bem antes de
minha chegada, e, com isso, eu devia encarar a coisa como uma manobra para impedir
uma ameaça real ao governo. Quais poderiam ser as conseqüências, era coisa que eu
apenas podia calcular. Cabia-me agir. Anne Beldon levou-me café forte e biscoitos, fiz a
barba apressadamente e parti para o palácio com Mel Adams e meu oficial
protocolar.Todos os caminhos para lá estavam controlados por uma rede de postos de
guarda e barricadas, e foram precisos quinze minutos até que recebêssemos permissão
para passar, as primeiras linhas.
Dentro do palácio, no entanto, reinava uma atmosfera de calma e formalidade. Com
secretário vietnamita explicou que estávamos coma uma hora de adiantamento e que o
presidente, devido à pressão de ocupações excepcionais, via-se obrigado a nos fazer
esperar um pouco. Mel Adams explicou, em tom gelado, que, como os Estados Unidos se
achavam envolvidos naquele estado de emergência nacional, a chegada antecipada do
embaixador constituía apenas urna especial cortesia para com o presidente. O secretário
nos garantiu que o presidente compreendia isso, e estaria conosco tão depressa quanto
possível.
Deram-nos chá e cigarros, e sentamo-nos para esperar. O prestígio também se
achava em jogo nessa espera, e fixei o limite mental de dez minutos, após os quais
estaria pronto a deixar o palácio. Oito minutos e quinze segundos depois, fui levado à
presença de Phung Van Cung.
Era homem pequeno e bronzeado, palmo e meio menor do que eu, trajando imaculado
terno de tussor, gravata cinzenta de seda e alfinete de brilhante. A pele era luzidia, os
olhos brilhantes e sorridentes. Parecia estar saindo do banho, o que provavelmente
ocorrera. Recebeu-me formalmente, em francês de forte sotaque vietnamita, e surgiu o
criado com o inevitável chá verde. Enquanto bebíamos, Cung perguntou por minha saúde,
querendo saber se eu fizera boa viagem. Sorria enquanto conversávamos e seus olhos
astutos e brilhantes examinavam-me o rosto a cata de qualquer demonstração de
emoção. Falou afetuosamente em meu antecessor, pedindo que eu lhe transmitisse seus
cumprimentos e melhores votos. Apresentou cumprimentos sobre meu trabalho no Japão
e condolências pelo recente falecimento de minha esposa.
Ao que me disse, interessava-se especialmente pelo fato de ser eu estudioso do
caminho Zen do budismo, pois tinha certeza de que isso me ajudaria a compreender
melhor a situação difícil do país, e lavrou um tento, pois não esperava encontrá-lo tão
bem informado a meu respeito. Não deu qualquer sinal de triunfo, mas prosseguiu
maciamente para encerrar seu prelúdio. Confiava em que eu seria feliz na nova missão, e,
se precisasse de qualquer favor pessoal, não devia hesitar em chamá-lo, ou a qualquer
membro de seu governo. Lastimava que eu não tivesse chegado em dia mais auspicioso,
mas estava certo de que eu compreendia o estado de emergência em que o país se
achava.
Respondi que não tinha certeza de compreender e, ao contrário, contava com ele para
me esclarecer. Com isso, estavam encerradas as cortesias e passávamos a tratar do
motivo de nosso encontro. Cung encostou-se na cadeira, dobrou as mãos sobre a roupa
de seda e se lançou a uma exposição eloqüente.
- Embaixador, o senhor veio de um país em paz para uma nação em guerra. Isto não é
uma cerimônia japonesa de chá, e nossa própria sobrevivência está em jogo. Estamos
sendo ameaçados por fora e solapados por dentro. Calculamos que existam trinta mil
vietcongs perfeitamente treinados operando dentro de nossas fronteiras, ajudados por uns
sessenta mil homens, entre soldados irregulares e agentes subversivos. Esses agentes
estão treinados para usar qualquer meio a fim de se infiltrarem em nossas fileiras e
espalharem a deslealdade e desordem. Certos mosteiros budistas se transformaram em
centros de espionagem e subversão. Em minha posição, que farra o senhor? Permitiria
que continuassem agindo, sem os deter? Que continuassem executando o trabalho de Ho
Chi Minh, sob a capa do manto amarelo? Que carregassem pistolas e munição e
mensagens militares nas tigelas em que pedem esmolas? Ora, embaixador, o senhor não
é tão ingênuo assim !... Sei que me apresentam na imprensa estrangeira como
fomentador de perseguições, mas isso não é verdade. Eu estaria louco, se incentivasse
as disputas religiosas num país em guerra. Sei, também, que certos funcionários e
colegas meus cometeram erros.A primeira violência em Hué foi um desses erros, que
reconheço francamente. Eu estava pronto a consertá-lo, a entrar em negociações
amistosas com a Assembléia-Geral de Budistas. Pedi que enviassem suas queixas e o
que consideravam seus direitos legítimos. Mas veja o que sucedeu ! Em primeiro lugar,
exigiam de mim uma confissão humilhante de responsabilidade pessoal, cujo fito único
era desmoralizar-me. Recusei-me a isso, mas continuei disposto a debater seus
problemas. Enquanto as negociações estavam ainda em andamento, certos monges
turbulentos promoviam reuniões públicas e pediam a derrubada do governo... País algum
permite desordens assim, mesmo em tempo de paz. Permitem tais desordens em Little
Rock, Birmingham e Washington? Está claro que não ! Esperam que as permita, num país
que se debilita na hemorragia de uma guerra subversiva? Faltaria a meu dever se o
consentisse.
Era o que eu esperava ouvir, e nos termos apresentados a coisa se mostrava
inteiramente aceitável. Com toda a calma que pude conseguir, tentei mostrar-lhe o outro
lado da questão.
- Em termos gerais, presidente, concordo com sua afirmação. Um país em guerra não
pode tolerar desordens civis. Ontem à noite, no entanto, estive presente à invasão do
Pagode Xa Loi.
- Sei disso, embaixador. Soube em meia hora. Tenho de dizer que sua presença foi
uma indiscrição diplomática.
- Ao contrário, presidente ! Estou aqui como representante de meu governo, seu aliado
nesta guerra, que tenho o dever de informar tão completamente quanto possível. Ontem à
noite, assisti a sua forma pior, calculada e desnecessária! E isso presidente, se me
permite dizer, foi uma indiscrição política! Nas últimas dez horas ela se espalhou por todo
o aís. Só Deus sabe quais serão as reações no resto do mundo.
- O resto do mundo ? Embaixador, o resto do mundo está tão distante de nós quanto a
Lua! Somos uma península no sudeste da Ásia, um povo dividido. Séculos a fio, tem
pairado sobre nós a sombra da China, que já ocupou este país e quer fazê-lo novamente.
Nosso mundo embaixador, está delimitado pelo mar e pela China, e talvez nossa visão só
alcance, na direção do oeste, a Birmânia... Choram por nós em Sidney, Paris ou Londres
?
- Os americanos choram pelo Vietnam, presidente - respondi com amargura. - Suam
para pagar-lhe as contas, morrem pelo Vietnam! Insulta-os e a mim, quando fala desse
modo!
Eu o abalara e envergonhara, e Cung era inteligente demais para não o reconhecer.
Respondeu serenamente:
- Peço desculpas. Disse mais do que pretendia... Reconheço nossa dívida para com os
Estados Unidos. Mas, quando nos ajudam, não devem achar que nos possuem, ou julgar-
nos por seus padrões.
- Desde que somos amigos, presidente, o mundo nos julgará juntos. O seu próprio povo
nos culpará pelo sangue derramado ontem à noite.
Repentinamente, ele se enfureceu. Apanhou uma pasta cheia de fotografias e atirou-a
para mim, sobre a mesa.
- Tem medo de sangue, embaixador ? Isso lhe revolta o delicado estômago ? Pois veja
isso! Aí pode ver outros derramamentos de sangue, o que acontece quando uma bomba
comunista explode num mercado público! Como fica uma mulher grávida, depois de ter o
ventre rasgado por baioneta! Como vietcongs estraçalharam uma família que se opunha a
eles! Devo ser gentil com quem faz essas coisas e depois vai hipocritamente refugiar-se
no seio de Buda, no Dhamma e no Sangha?... Isto é a Ásia, e não Genebra ou
Manhattan!Aqui o homem que sustenta o poder é o homem forte e armado, que exige
sangue por sangue. Eu sou cristão e gosto disso tanto quanto o senhor, mas conheço
mais o meu povo.
As fotografias me revoltavam o estômago, pelo que fechei a pasta e a devolvi. Seria
facílimo concordar com ele, mas não me atrevi. A todo custo, precisava tirá-lo daquele
rumo alucinado.
- Precisamente por ser cristão, presidente, não pode permitir uma brutalidade sem
sentido, como a que assisti ontem à noite. Não compreende? Isso é mais uma arma na
mão dos vietcongs. Os católicos são a fé minoritária perseguindo a majoritária. Quer
desencadear uma guerra santa com todos os budistas da Ásia ? Posso garantir que o
conseguirá, e a imprensa mundial o classificará como um fanático intransigente!
- Muitas vezes a imprensa mente, embaixador! E, mesmo quando conta a verdade,
mostra-se cega às suas conseqüências!
- Não mentirá sobre o que houve ontem à noite, presidente ! E também eu não poderei
mentir. Quando me perguntarem, na entrevista à imprensa hoje à tarde, terei de dizer a
verdade, e a verdade condenará o senhor e seu governo. Fará mais do que isso: fará
surgir um grito de protesto na América. Os americanos perguntarão por que motivo devem
pagar por suas armas e mandar seus filhos lutar aqui. Que deverei responder ? Que
deverei dizer ao meu Departamento de Estado e a meu presidente?
- Diga-lhes o resto da verdade ! Mande publicar as fotografias que lhe mostrei! Diga-
lhes que metade dos nomes de subversivos nos mosteiros foram fornecidos pela sua
própria Agência Central de Inteligência! Tome um helicóptero e vá ver a guerra onde está
sendo realmente travada, nas aldeias e povoados fortificados, entre os montagnards, no
norte, e os habitantes do Delta, no sul! Deixe as cidades, onde o povo está estragado,
intoxicado por idéias espúrias deixadas pelos franceses ou tomadas por empréstimo à
imprensa americana ! Poderíamos perder Saigon, Hué e Dalat da noite para o dia, mas
continuaríamos a lutar. Não se deixe enganar! Estou ainda com o controle da situação e
não tenho medo. Sobreviveremos a nossos males, a despeito da imprensa mundial.
Reconstruí este país depois de Dien Bien Phu e continuarei a construí-lo, com os
americanos ou sem os americanos!
Não pude deixar de me impressionar com a obstinada coragem daquele homem.
Sentado num barril de pólvora, com baionetas às costas e ao peito, estava ainda disposto
a lutar. Mas eu precisava fazer uma advertência,e a fiz, clara e precisamente:
- Peço-lhe, presidente, que não tente o destino.Estou incumbido de trazer uma
mensagem do governo de meu país. Se não estiver preparado para dar fim às divisões
entre cristãos e budistas, entre seus próprios generais e administradores, poderá
acontecer que tenha, mesmo, de lutar sozinho, sem dinheiro, armas ou tropas
americanas!
Para minha surpresa, aceitou calmamente o que lhe dissera. Nos seus lábios se
esboçou um sorriso leve e ele perguntou brandamente:
- Estão realmente dispostos a tanto, embaixador? Estão realmente dispostos a sair
daqui e deixar o Cambodja, o Laos e a Tailândia caírem corno um castelo de cartas? Este
é o último baluarte do Ocidente na Ásia. Irão abandoná-lo, porque não lhes posso
prometer o impossível? Exigem unidade, um final para as dissensões! Como podem ser
tão ingênuos? Como nação, somos mais de mil anos mais velhos do que os Estados
Unidos, e ainda não estamos unidos! Toda a estrutura de nossa sociedade tende à
desunião, divisão e pequenos núcleos de poder. Como os italianos antes de Garibaldi,
possuímos ainda somente um sentimento pouco desenvolvido de identidade nacional!
Somos catorze milhões, entre vietnamitas, thais, muongs, yaos, miaos, chineses, khmers
e chams. Espera que eu realize um milagre Estão os americanos dispostos a abandonar o
meu povo, porque não conseguiram compreendê-lo?
- Recebi instruções para informá-lo de que dispostos a isso, presidente.
Deu de ombros e sorriu novamente.
- Bem, ao menos sabemos em que posição nos achamos. Pode informar a seu
governo que darei o melhor da minha atenção à mensagem recebida Pode informar
também que protesto do modo mais enérgico contra o que, na verdade, é um ultimato
político. Diga que sei que a Agência Central de Inteligência está em contato diário com
certos elementos dissidentes, que desejam derrubar o governo legítimo deste país e
formar uma junta militar. Diga que peço que me informem oficialmente se é o embaixador
ou aquela agência que representa verdadeira e legalmente o governo dos Estados
Unidos.
Tratava-se de um golpe hábil, que me tomou de surpresa, e retorqui asperamente:
- Posso eu mesmo dar a resposta, aqui e agora, presidente. Eu, e apenas eu, sou o
representante oficial de meu governo.
- Fico satisfeito em saber disso. Talvez gostasse, então, de examinar um relatório que
lhe enviarei sobre as atividades da Agência Central de Inteligência.
- Terei prazer em examiná-lo, presidente, e garanto enviar uma cópia imediatamente a
meus superiores em Washington.
- Ótimo. Gostarei de ouvir os comentários deles, e o seu próprio... Outra coisa,
embaixador. Estou informado de que três monges do Pagode Xa Loi procuraram abrigo
junto aos americanos. Gostaria de saber o que pretende fazer com eles.
- Vamos mantê-los sob nossa proteção, até recebermos garantias oficiais de que nada
sofrerão depois de saírem de nossa custódia.
- Pensarei nisso, embaixador Poderei até deixá-los onde estão. No fim, pode vir a
achá-los bastante embaraçosos. Uma pergunta final... Tem uma entrevista coletiva a
imprensa às duas da tarde. Pretende revelar os termos de seu ultima to nessa ocasião?
- Ainda não. Preferiríamos não ter de revelá-los em época alguma. Certamente o
senhor pretende examiná-los com mais tempo, e estarei à sua disposição sempre que
quiser.
- Obrigado, embaixador.
Levantou-se e estendeu a mão, acrescentando:
- Permita dizer que tive imenso prazer em conhecê-lo, e espero que o nosso próximo
encontro marque o início de melhor compreensão entre seu país de o meu.
- Também o espero, presidente, do fundo do coração.
Deixei o palácio profundamente perturbado. Precisava de tempo e de boa orientação
para eliminar a confusão criada em meu espírito pela entrevista com Cung, de modo que
resolvi não passar pela Embaixada e levar Mel Adams à minha casa para uma conversa
confidencial. Estávamos ambos muito cansados, por causa da vigília na noite da véspera,
de modo que tomamos um banho de chuveiro. Emprestei-lhe uma camisa limpa e depois
nos sentamos no escritório, examinando os pontos principais da conferência com Cung.
Verifiquei que Adams era conselheiro moderado e sábio. Não tentou esconder suas
próprias incertezas, e pesava cada questão com admirável isenção.
-... Em um ponto, tenho de concordar com Cung. Estamos pedindo um milagre, se
quisermos que ele unifique o país da noite para o dia. Verá com seus próprios olhos,
quando estiver entre os habitantes das aldeias e povoados, como é firme e fechada a
estrutura familiar e tribal. Existe ali uma desconfiança inata contra os estranhos, sejam
generais, administradores ou estrangeiros como nós. O próprio budismo pode ser uma
influência divisora, pois acomoda, mas não une, todas as nuances de opinião e prática.
No Ocidente, o budismo é encarado como uma religião contemplativa e quietista, mas
existem traços de violência nele, também. Sempre teve seitas militantes e, de vez em
quando, essa militância desabrocha em manifestações estranha. O senhor já viu o que
acontece com o Soka Gakkai no Japão... Tenho de concordar com a evidência de que
existe cera extensão de subversão originada nos pagodes, mas "subversão" é palavra
colorida. Para muitos vietnamitas, Ho Chi Minh é o Tio Ho, nobre patriota e revolucionário
vitorioso, enquanto Phung Van Cung é um reacionário apoiado pela América capitalista...
E prosseguiu, depois de curta pausa:
- Também nós contribuímos para o problema da desunião. Somos por demais
pragmáticos exigimos resultados a curto prazo e, muitas vezes nos impacientamos
demais por explorar suas conseqüências posteriores. Gostamos de definir as coisas em
termos precisos e as definições nos traem, pondo-nos em posições fixas das quais não
nos podemos retirar. É como Quemoy e Matsu e a lenda das duas Chinas. Trata-se de
lenda, apenas, mas nós a criamos e estamos presos a ela. Por isso não gosto de Harry
Yaffa: é um homem de primeira linha, no setor de informações, mas está sempre pronto
demais a agir, não tem senso da história, de continuidade ou de seqüência. Dê-lhe
qualquer situação, e tratará de modificá-la em seu favor. Está organizado para isso,
também! Quando uma ação não traz resultados prepara outra em dois tempos.
Mel Adams continuava agora em tom mais geral:
- Ação, ação! Somos um povo educado para agir: "Levante-se e marche! Vá para o
oeste, meu jovem! Há ouro naquelas montanhas!" O senhor conhece o Oriente e sabe
como essa tentação pode ser traiçoeira. E que significa a ação para o camponês no
arrozal? O comunismo vem com filosofia também, mas que prometemos depois que as
armas silenciam e se imobilizam? Democracia? Autodeterminação? São os ancestrais
que governam as tribos e como poderemos dar-lhes o direito de voto?...
Eu não sentia qualquer vontade de interrompê-lo, Mel continuou:
- Muitas vezes perguntei a mi próprio o que faria, se estivesse no lugar de Cung.
Confesso que não sei. Como se pode acabar com essa mentalidade de chefes guerreiros
entre os generais? Se lhes damos mais um pedaço de bolo, acham que têm direito a
outro ainda maior. O prestigio não se salva pela distribuição igualitária do poder e
influência; ainda é preciso provar que somos mais importantes que o homem ao lado. Em
termos políticos, o método de Cung faz mais sentido - dividir e governar. Em termos
militares, naturalmente, leva à trapalhada que temos agora.
E Adams encerrou a exposição:
- Vejamos a questão budista. Acredito que Cung queira negociar com eles, mas tem
medo de estender a mão e vê-los arrancar-lhe logo o braço. Os monges nos pagodes não
estão lutando na guerra, pois sua profissão os exime disso, de modo que, de acordo com
Cung, eles não têm direito a fomentar desordens públicas em prejuízo do homem que
está levando chumbo no Delta... Também nisso o ponto de vista dele é razoável.
Sorriu, com expressão de infelicidade, e encheu outra xícara de café.
- Não estou sendo construtivo, mas acho que temos de explorar a situação muito
cuidadosamente, antes de nos comprometermos com uma modificação. O senhor
entregou o ultimato. Que sucederá agora?
- Cung vai pensar nele e depois entrará em contato comigo.
- Que pensa que ele fará com o ultimato?
- Já que apresenta a coisa desse modo, Mel, eu diria que agora ele precisa fazer um
gesto claro e público, convidando os budistas a negociações amistosas e sanando
quaisquer queixas reais por eles apresentadas. Acho que precisa soltar os estudantes e
monges presos, e depois estará em posição de assegurar a lei e a ordem.
- Não acredito que ele possa fazer isso. Pelo menos, tudo isso.
- Por que não?
- Porque a violência não acabou ainda. No palácio me disseram que esperam mais
desordens públicas.
- Da parte de quem? Dos budistas?
- Não, dos estudantes. Antes de o dia terminar eles começarão as suas manifestações,
e teremos outro acontecimento sangrento. Mais pancadas mais balas mais prisões. E
depois?
- Os Estados Unidos farão outro protesto público.
- E os oficiais de Tolliver terão de conduzir dados vietnamitas na guerra, budistas e
católicos juntos enquanto seus filhos e filhas se acham presos. Bonito, não é?
- Então, examinemos o projeto de Yaffa. Apoiamos um golpe, Cung sai. Quem governa
o país, Mel?
- Uma junta de generais.
- Os chefes militares, novamente?
- Por assim dizer.
- As juntas são conhecidas por sua instabilidade.
- Concordo. Yaffa acha que os generais seriam mais unidos sem Cung no comando.
- E você, Mel?
- Duvido disso.
- Conseguiriam os generais unir o Exército?
- Duvido, também.
- Melhorar o moral do Exército?
- Difícil dizer.
- Poderiam governar o país?
Com o Exército, talvez possam regulamentá-lo melhor, mas se poderiam governá-lo,
inspirá-lo, arrancá-lo da desilusão e da descrença, não sei. Duvido que qualquer deles, ou
todos juntos, pudessem fazer o que Cung fez, depois de Dedem Bien Phu. Duvido que
qualquer deles tenha a firmeza de propósitos de Cung ou, por estranho que seja, o
sentimento moral dele. Por isso, Tio Ho se mostra tão forte no norte. É um chefe
revolucionário com filosofia marxista inteiramente desenvolvida. Cung também é filósofo,
mas essa doutrina de personalismo que tomou de empréstimo aos franceses não tem eco
popular. Trata-se de sutileza gaulesa, e não acredito que faça qualquer sentido para a
massa da população. Se Cung fosse um político saído do povo, com talento e
magnetismo pessoal para influenciá-lo, poderia impingir-lhe Kant, Hegel, Tomás de
Aquino ou quem quisesse, porque o povo conheceria seus serviços e o respeitaria. Mas
ele não tem esse tipo de encanto popular. É um recluso, celibatário, autocrata... e um
cristão, o que não ajuda em coisa alguma!
- Então peço sua opinião, Mel: Cung ou junta de generais ? Como votaria ?
- Não sei - respondeu ele serenamente. - Gostaria de saber. Talvez já esteja aqui há
tempo demais, talvez tenha sucumbido, como os próprios vietnamitas, a um tipo de
desespero que chega sorrateiramente. Talvez Yaffa tenha razão, quando me acusa de
vacilação e inação. Não que eu tenha medo, compreenda... É que todos os nossos atos
nos forçam a tomar um caminho que não leva a lugar algum...
Ficou em silêncio, olhando o dorso das mãos compridas e nervosas. Tive pena dele,
pois os seus dilemas se pareciam muito com os meus! Senti respeito, também,porque ele
se achava disposto a assumir a responsabilidade pela sua incerteza. Finalmente, levantou
a cabeça e me encarou com olhar sombrio.
- Quero dizer uma coisa. Depois de dizê-la, poderá exigir minha cabeça e a darei de
bom grado, numa salva de prata. Tolliver é o único americano neste país que dispõe de
um conjunto honesto de ordens a cumprir.Tem ordens para lutar numa guerra que não
pode ser ganha, e ninguém espera que ele a vença. Para ele e o Pentágono, trata-se de
uma ação de permanência. Se os vietnamitas estão divididos, ele luta com um Exército
dividido; se estiverem unidos, luta com um Exército unido, e a responsabilidade final não
recai sobre os seus ombros, mas sobre o Alto Comando vietnamita. Conosco, a coisa é
outra: Washington nos manda intervir diretamente no governo do país. O senhor chegou
com um ultimato, onde se diz, na verdade: "Façam isto e mais aquilo, ou os levaremos à
bancarrota e retiraremos nosso apoio militar". Em outro nível, intervém a CIA, também.
Estamos fazendo tudo isso em nome da democracia e autodeterminação, mas no fundo
se trata de uma medida política militar para deter a China e limitar a disseminação de
revoluções indígenas, revoluções que têm raízes na exploração colonial, na tirania de
chefes militares e em governos corruptos
E veio o seu desabafo:
- Digo-lhe com franqueza: os únicos, neste país, realmente sabem pelo que estão
lutando são os católicos. Se este país se tornar comunista, sabem que sua Igreja será
exterminada em meia geração, enquanto o budismo se acomodará, como já fez na China.
Por isso, compreendo Cung e simpatizo com ele, embora reconheça os erros por ele
cometidos. Acho que nós também estamos cometendo um erro, procurando outro homem
e nova doutrina, mas sem saber o que queremos. Estamos apostando no jóquei, e não no
cavalo, e porque temos pressa, ficamos com o jóquei errado. É por esse motivo que
discordo da nossa política no sudeste da Ásia. Sou um servidor dessa política e procuro
ser um servidor bom e honesto, mas não acredito mais nela.
Tratava-se de confissão difícil para homem com tanto tempo no serviço diplomático, e
aceitei como um cumprimento o fato de me haver escolhido para ouvi-la. Tão gentilmente
quanto pude, fiz-lhe outra pergunta:
- Se lhe pedissem que orientasse essa política, Mel, que faria ?
- Neutralizaria! Neutralizaria o país, enquanto temos força para negociar, e depois
sairia, deixando o para decidir sobre o seu futuro.
- E deixaria o Tio Ho tomar conta em um ou dois anos ?
- Ele já está fazendo isso, agora mesmo, porque o homem que realmente deseja unir o
país não tem talento para isso, porque estamos com falta de tudo menos de armas,
homens e dinheiro, porque quando o sol se põe o camponês no arrozal não vê luz, mas
apenas a treva de seu próprio desapontamento... Se que me demita, obedecerei.
- Quer demitir-se, Mel ?
- Não, não quero.
- Que quer fazer?
- Acho que ainda posso ser útil quando mais não seja como voz de oposição. Acho
que o senhor tem uma possibilidade, talvez pequena, de modificar Cung e preservar os
ganhos conseguidos por ele. Mas não vai ser fácil, porque os cães estarão ladrando em
seus calcanhares, para que desfira um golpe e inicie uma nova dinastia. Eu gostaria de
fazer o papel de sua consciência por algum tempo, e examinar o que lhe contam e
mostrar onde está a verdade.
- Um papel que não traz agradecimentos, Mel. Nem eu posso garantir que venha a
agradecer.
- Não se trata de gratidão. Trata-se de meu próprio respeito, diante de mim mesmo. Se
Cung cair, será assassinado, e prefiro fazer o papel de consciência ao de assassino
político.
Capítulo quatro
Assassinato é palavra feia, mas no clima de Saigon, naquela manhã, parecia lugar-
comum. A cidade se assemelhava a um acampamento militar, com patrulhas em todas as
esquinas e constante passagem de soldados armados em jipes e caminhões. Havia
pouca gente nas ruas e os movimentos eram furtivos e medrosos. As casas comerciais
estavam vazias, os bares abandonados e as moças sentadas, olhando pelas janelas de
grade, como pássaros no cativeiro. Tive a ilusão momentânea de que aquela cidade
provincial antiga se tornara repentinamente uma selva, onde todas as feras se tinham
recolhido às tocas,
enquanto os caçadores as procuravam nervosamente, com medo do silêncio e solidão.
Havia um cheiro de tempestade no ar, é a descarga do motor de um automóvel parecia
um tiro.
Na Embaixada, recebi os primeiros relatórios sobre as desordens programadas pelos
estudantes. A Universidade já estava em revolta e os alunos tinham deixado as salas,
engrossando as reuniões de protesto. Um professor fora apedrejado pelos alunos e os
editais do governo, proclamando a lei marcial, estavam rasgados e riscados. Grupos de
jovens, nas janelas dos edifícios, vaiavam os soldados nas ruas, desafiando-os a que
fossem lutar com os vietcongs e não com sua própria gente. Muitos manifestantes tinham
sido presos e levados para campos de detenção nos arredores da cidade e, ao bater do
meio-dia, fora irradiada nova proclamação, fechando todas as escolas até segunda
ordem. Os estudantes americanos tinham sido escoltados de volta a seus lares por
nossos soldados e uma guarda reforçada fora colocada em volta do palácio presidencial,
enquanto se instalavam baterias antiaéreas no terreno em volta do mesmo. Na minha
mesa estava um telegrama enviado por Festhammer:
Eu já fizera meu protesto no Palácio e, dentro de uma hora, torná-lo-ia público para a
imprensa reunida. Nada havia de útil que pudesse informar sobre a situação, até poder
compreendê-la melhor, de modo que deixei de lado o telegrama e chamei o general
Tolliver para que me expusesse a situação militar, o que fez com firmeza:
- Até agora, a cidade está tranqüila. Cung mandou buscar três batalhões sob o
comando de um general católico, leal ao Governo. Como precaução adicional, as
posições das tropas são mudadas de quatro em quatro horas. Hué também está sob
tensão, mas o resto do país parece bastante calmo. Ontem à noite, tivemos notícia de um
choque de soldados católicos e budistas em Travinh, mas o comandante local logo o
abafou. A não ser isso, não há sinais de revolta aberta no Exército, ou de qualquer
movimento militar ordenado pelos generais dissidentes. As operações contra os vietcongs
continuam normalmente, mas o moral está baixo entre as unidades de combate.
Destaquei guardas especiais para todos os nossos escritórios e instalações militares e
tenho pequenas patrulhas móveis verificando a segurança das famílias americanas. É
tudo por enquanto. Se houver alterações, informarei . imediatamente.
Até ali, parecia que eu podia confiar na interpretação que Cung fazia de sua própria
posição. Tinha o controle da situação, embora fosse difícil saber por quanto tempo o
poderia afirmar. Aquelas baterias antiaéreas no Palácio indicavam uma dúvida saudável
quanto à lealdade de seus subordinados. Chamei Harry Yaffa e pedi que me
apresentasse a sua interpretação dos fatos e tive certa surpresa ao vê-lo concordar como
o general Tolliver:
- ...Neste momento, não há dúvida de que Cung é senhor do país e não existe quem
esteja bastante organizado para derrubá-lo. A cidade ferve de descontentamento, mas
Cung enfiou a tampa no caldeirão, de modo que não se podem ver todas as borbulhas.
Estive por aí e recebo comunicados horários de diversos agentes. Não resta dúvida de
que Cung executou magnificamente essa operação.
- Falemos de modo mais claro, Sr. Yaffa. Se eu desse meu consentimento para um
golpe, neste momento, os seus generais poderiam executá-lo?
- Não. - respondeu categoricamente. - Se o tentassem neste momento, seriam
esmagados em menos de um dia.
- Então, talvez seja Cung o homem de quem precisamos, afinal, o homem forte e
armado, que pode manter as posições.
- Não penso assim. Já viu a cidade esta manhã? Está em estado de choque e
suspensão. Todos procuraram abrigo, e o primeiro que levantar a cabeça levará uma
bala. Mas não se pode bloquear indefinidamente qualquer cidade; as pessoas têm de
comer, beber e descansar um pouco. Os soldados também precisam descansar, de modo
que com uma semana ou dez dias, Cung se sentirá seguro o bastante para destampar o
caldeirão. Aí é que vamos ver o caldo ferver.
- Vamos acompanhar seu raciocínio, Sr. Yaffa. Revogasse a lei marcial, as tropas
saem de Saigon. Os generais estarão prontos para tomar o país nesse ponto?
- Se esta guarnição for dispersada, sim. Mas deixe-me ser bem claro, Sr.
Embaixador, porque os generais foram bem claros comigo. Nenhum deles está pronto a
se mexer sem ter, pelo menos, o apoio tácito dos Estados Unidos. São vulneráveis
demais e precisarei de nossa proteção.
- E se não a dermos?
- Nesse caso, estaremos presos a Cung, ditador que governa no vácuo. Se os
vietcongs tiverem qualquer êxito maior, o moral e a disciplina entrarão em colapso.
Houve um silêncio curto e difícil, e depois Yaffa apresentou sua pergunta:
- Em que posição está, embaixador ? Já esteve com Cung, consultou a opinião de seu
próprio pessoal, e eu fui tão franco quanto possível. Que solução o senhor vê?
- Não vejo solução alguma no momento. Estou sendo sincero também, Sr. Yaffa.
Acho-me no país há pouco mais de vinte e quatro horas e tenho ordens do chefe do
Executivo para tratar com o Presidente Cung e ver se o consigo fazer ouvir a voz da
razão. Se não puder, terei então de fazer recomendações para outra solução, não me
acho ainda preparado para isso. Não disponho ainda de fatos ou de conhecimento
bastante, de primeira mão. De certo modo, a ação presente de Cung funciona a meu
favor, pois dá algum tempo mais a fim de me informar sobre o que se passa.
- Compreendo - respondeu Yaffa. - Agora gostaria que examinasse a minha posição.
Tenho de continuar a preparar-me para o momento da crise, quando talvez Cung tenha
de ser deposto. Devo ser capaz de oferecer rumos alternados de ação. E essa a essência
do meu trabalho. Deixe-me, então, perguntar: a que ponto está disposto a confiar em mim
?
- Estou disposto a confiar até o ponto em que estiver disposto a ser sincero comigo.
Quando nos vimos pela primeira vez, o senhor me disse que era bom na mentira, mas
não posso fazer recomendações ao nosso governo na base de uma mentira, mesmo uma
mentira profissional. Tenho a certeza de que entende isso.
Para minha surpresa, encostou-se na cadeira e deu uma risada, enquanto suas mãos
pequenas e macias descreviam movimentos circulares no ar.
- Com todos os rodeios, finalmente chegamos lá! Ótimo, embaixador Compreendi bem
e aceito o que diz. Mas sejamos mais específicos. Qual a primeira coisa que deseja ?
- Em primeiro lugar, quero ser apresentado a esses generais que estão ou poderão
estar envolvidos no movimento para derrubar o governo Cung.
Ele franziu o rosto e beliscou o queixo rosado.
- Essa é desastrada. Pô-los todos numa sala dá para o mais idiota dos agentes ver do
que se trata. Há um modo de conseguir essa apresentação... Os australianos, italianos e
algumas outras embaixadas me ajudam de vez em quando. Eles darão um jantar, ou um
coquetel, e acrescentarão qualquer nome que eu pedir à lista de convivas.
- Façamos isso, então. Quanto tempo é preciso ?
- Três, quatro dias, para o primeiro contato.
- Ótimo! Agora, outra questão. Hoje de manhã, Cung afirmou que sabia tudo a respeito
de suas atividades, e prometeu enviar um relatório completo sobre elas. Prometi examinar
o documento e mandar uma cópia para Washington.
Yaffa riu de novo.
- Eu também gostaria de ver esse relatório, embaixador.
- Ele poderia comprometê-lo, Sr. Yaffa?
- Decerto, mas há uma coisa curiosa neste país, embaixador. A segurança não quer
dizer coisa alguma de valor. São as cartas que temos, e como as jogamos, o que
interessa. E o modo pelo qual funcionam as alianças fafailtares, o modo pelo qual se
puxam os cordéis financeiros. Cung sabe certamente quem está trabalhando contra si,
mas como antigo mandarim ele aceita a conspiração como parte da atmosfera normal.
Enquanto não conhecer a forma da trama final, acredita que poderá comprar este
elemento, apavorar aquele e exilar outro para a Embaixada no Cairo, de modo que
realmente não me preocupo com esse relatório. Estou mais interessado em persuadi-lo e
dar-lhe os meios de fazer a coisa indicada no momento certo.
- A coisa indicada, Sr. Yaffa.
Yaffa não se alterou. Sua resposta foi rápida e definida:
- Claro. Não há certo ou errado em política só o que é indicado e possível.
- Certa frase nas Escrituras, Sr. Yaffa, afirma que “era indicado que um homem
morresse pelo povo.” Já pensou nisso com respeito a Cung? Se os generais o
depuserem, matá-lo-ão também ?
A pergunta o apanhou desprevenido e ele me olhou com ar de surpresa.
- Matá-lo? A questão nunca foi debatida
- Pois quero que seja, Sr. Yaffa. Quero ter certeza de que o governo dos Estados
Unidos não se tornará o bode expiatório para uma execução ditada pela política!
Foi então que vi, sob aquela máscara branda e efeminada, a forma real do homem. Ele
me fitou nos olhos e depositou a resposta na minha frente, como um dólar na mesa de
jogo:
- Promessas o senhor pode ter, embaixador! Nada mais fácil ! Eu as dou e recebo
todos os dias. Mas garantias, não! Quem pode garantir qualquer coisa, quando as armas
começam a disparar ? Eu, não! Sou homem do Serviço Secreto, conspirador profissional.
O senhor quer um novo governo ? Eu o darei ao senhor, como uma omelete para o
almoço. Quer um guardanapo para limpar o ovo do rosto ? Também lhe posso dar isso.
Mas não me peça que faça a omelete sem quebrar os ovos. Isso não posso fazer.
Ninguém pode !
Depois que ele saiu, senti-me repentinamente tomado de frio, como se alguém tivesse
passado sobre meu túmulo.
Depois de dois tragos com Adams e de duas horas em meu gabinete examinando
relatórios, despachos e telegramas, senti-me repentinamente tomado de um cansaço
mortal. Os olhos ardiam, o corpo doía como se tivesse levado uma surra, as palavras
escritas dançavam e se apagavam diante de mim. Com certa surpresa, lembrei-me de
que estivera trabalhando, sem parar, cerca de 36 horas seguidas. Era bastante, mais do
que bastante. Que viesse toda a Ásia em armas e bandeiras, elefantes e fanfarras de
clarins, mas eu ia para casa dormir!
Durante bastante tempo o sono não veio, e meu corpo mostrava-se frouxo e
envenenado de fadiga, mas a mente girava em fúria especulativa, como um motor que
repentinamente desengrena. O eixo em que girava era sempre a mesma pergunta: por
que este país embaraçado pela guerra, mas mantido em pé mediante uma ajuda enorme,
não encontrara ainda a força, inspiração ou homens que reunissem suas energias e
completassem a revolução iniciada vinte e dois anos antes ?
Uma dúzia de pessoas me dera doze respostas diferentes, nenhuma delas adequada
para explicar a desintegração maciça que se efetuava bem diante de meus olhos. Um
ditador isolado? Não bastava, pois outros ditadores mais brutais do que Cung tinham
conseguido, pelo menos por algum tempo, um sentimento de união e de objetivo comum.
Divisões entre generais e administradores públicos? Também não bastava pois nada
havia a ganhar, para qualquer dos grupos, num colapso nacional. Cansaço e desilusão do
povo? Eram sintomas, e não a doença. Disputas religiosas? Apareciam esporàdicamente
nas sociedades mais organizadas. Brutalidade policial? A Ásia era um continente brutal e
a própria natureza lhe infligira crueldades maiores do que as originadas dos homens, e o
povo se mostrara milenarmente passivo sob a peste, fome, varíola, vermes e açoite dos
ajudantes dos príncipes. Que faltava, então? Na verdade, qual era a base de qualquer
união? A que palha se prendia finalmente um homem, para manter sua existência
precária? Eu era um homem como qualquer outro. Estava nu agora, suando na noite
tropical, em leito solitário. Também me via ameaçado por dentro, e assediado por fora.
Mas o que fazia, ou podia fazer, para manter minha inteireza? Os pensamentos, em
saltos, levavam-me de volta ao jardim de Tenryu-ji, onde Muso Soseki me dera a primeira
lição da estrada para o esclarecimento:
- A raiz do sofrimento humano, Sr. Amberley, é um sentimento de alheamento quanto
à ordem natural do universo. O efeito do satori é uma iluminação da mente, de modo que
a natureza do eu e do universo se torne finalmente clara e se restaure o sentido da
verdadeira relação, isto é, a unidade.
Identidade! Essa era a palavra, a chave para todos os problemas humanos! A menos
que o homem compreendesse, por mais vagamente que fosse, o que era, e como se
ligava aos semelhantes e ao cosmos, não poderia sobreviver. Ponham-no numa cela
acusticamente isolada, separem-no da visão, som e toque do mundo, e em pouco tempo
o terão reduzido à loucura e à desordem física. Era esse o significado real do animismo
antigo da Ásia - a menos que os espíritos da rocha, do rio e das árvores fossem
aplacados, a relação necessária entre eles e o homem seria quebrada e o universo se
dissolveria no caos.
Sem saber disso, Mel Adams exprimira o mesmo pensamento, em palavras
diferentes.
Os únicos neste país que sabem por que estão lutando são os católicos.
O catolicismo era religião fundada e enraizada numa definição da identidade humana.
O homem, pessoa criada por um Deus pessoal estava, portanto, em relação familiar com
todos os demais homens. O universo físico era o ambiente proporcionado para seu
crescimento, sobrevivência e continuidade, sua posição afirmada pela doutrina da
Encarnação, de acordo com a qual o próprio Criador tomara corpo humano e lhe conferira
irrevogável dignidade.
O comunismo, pelo seu próprio evangelho, mostrava-se igualmente específico. A
identidade do homem era afirmada e mantida apenas por sua atividade coletiva. Me era
uma criatura dependente, gerada do caos e marchando para extinção.
Sozinho, estava condenado por toda a vida a um deserto ameaçador, vítima de
injustiça e exploração. Por isso, sua identidade dependia de participação útil na massa,
mas tinha uma identidade, e sujeito a conformar-se a ela, a massa o garantiria e
protegeria.
Por estranho paradoxo, o budismo afirmava a identidade pelo ensino de que a
perfeição estava na extinção final, com a fusão no Eu - Completo do esclarecimento
puro... Mas se tratava de doutrina esotérica, acessível apenas aos estudiosos, de modo
que os homens comuns a tinham corrompido e adulterado, para torná-la mais de acordo
às suas necessidades.
Ao lado dessas afirmações profundas, ainda que divergentes, o evangelho
americano, do qual eu era o novo profeta no Vietnam do Sul, parecia estranhamente
vazio e insatisfatório. Democracia! Autodeterminação! Liberdade, igualdade,
fraternidade! Que significavam essas coisas para homens que se sentavam sob uma
árvore e ouviam pelas folhas ondulantes ao vento, o sussurro de um espírito
afrontado? Como poderiam identificar-se a nós, os bárbaros de olhos azuis que
possuíam tanto e compreendiam tão pouco?
Cung era um filósofo, e devia ter pensado nessas coisas, também. Era homem
da Ásia e devia ter escutado, em seu próprio coração, as vozes ancestrais que
clamavam por tanto tempo pela identidade, continuidade e comunidade. Talvez, se
pudesse fazê-las ouvir novamente, pudesse levá-lo a proclamá-las na língua
comum, de modo que seu povo as ouvisse por sobre a balbúrdia dos políticos e
propagandistas. Talvez não fosse ainda tarde demais para uma última volta pelas
fronteiras, um último toque dos clarins...
Mas era tarde demais para mim. A escuridão e o silêncio me dominaram, e dormi
doze horas seguidas.
Desci para o café e encontrei George Groton já em sua última xícara. Tinha
os olhos vermelhos e estava cansado, e quando indaguei respondeu que estivera
até tarde examinando os documentos da Embaixada sobre a situação dos budistas.
A seu ver, tais documentos eram perigosamente incompletos. Perguntei por que
pensava assim.
- Porque encaram a situação atual apenas do ponto de vista de observadores
políticos e agentes secretos. São vagos sobre uma série de questões essenciais.
Por exemplo, a maioria dos vietnamitas segue o Mahayana, o Caminho Maior, mas
há um bom número de pagodes onde se pratica o Caminho Menor, e estes
apresentam ligações definidas com o Hynayana do Laos e Cambodja. Têm também
ligação histórica com o Cai Dai e o Hoa Hao, e estas são seitas político-religiosas
cujos exércitos .particulares foram desarmados pelo Presidente Cung. Que ligações
são essas ? Estão sendo usadas para fins políticos ou militares? Os relatórios não
dizem; portanto, não temos. meio de saber qual seja o efeito da repressão de Cung
sobre a atividade budista na fronteira. Outra coisa: os pagodes Mahayana são
instituições autônomas, onde o abade é o chefe titular de sua própria comunidade,
mas existem todos os tipos de filiações e associações mais frouxas entre os
templos. Os documentos se mostram vagos sobre isso, também. Os chineses
possuem seus próprios pagodes e monges budistas, e sobre eles não temos
nenhuma informação precisa. No entanto, toda a crise atual começou com os
budistas. Foi ela inteiramente fabricada por Cung? Ou fará parte de algo maior, um
movimento pan-budista de esquerda partido do Ceilão e da Birmânia, passando
pelos monarquistas da Tailândia e mostrando sua face verdadeira aqui ? Não é
coisa tão louca. quanto parece, sabe ? Tem havido manifestações de polido pesar,
mas não grandes protestos da Tailândia quanto aos assaltos aos pagodes, mas os
cingaleses dispararam uma barragem cerrada de protestos enérgicos contra elas.
Pelo menos, acho isso significativo, e creio que devíamos fazer alguma coisa nesse
particular.
- O que, por exemplo, George ?
- Tenho uma sugestão, na qual trabalhei detalhadamente a noite passada, e
gostaria de apresentá-la ao senhor.
- Pois apresente.
- Passei ontem a maior parte do tempo em companhia do monge asilado na
Embaixada e dos outros dois, no edifício da Missão. Disse-lhes que, embora eu siga
o caminho Zen, ainda assim sou budista, e, portanto, tenho simpatia por seus
objetivos e problemas. Disse-lhes que o senhor também estuda o caminho Zen,
embora não seja crente completo. Isso os impressionou muito, e o monge da
Embaixada foi bastante esperto para me propor o seguinte: por que eu não fazia
uma investigação particular e apresentava um relatório pessoalmente ao senhor?
Prometeu dar cartas dirigidas a amigos dele, e com elas eu poderia mover-me
livremente nos pagodes... Achei boa a idéia. Tentarão decerto utilizar-me, porque
pareço ser... e sou mesmo, às vezes, um sujeito simplório. Mas, ao menos,
estaremos obtendo informações de primeira mão, que não temos agora. Se fosse
preciso, eu poderia raspar a cabeça e vestir um manto amarelo!
Sorriu, naquele seu modo juvenil, e acrescentou:
- Já o vesti antes, senhor. Não é incômodo demais. Não falo a língua deles,
naturalmente, mas o francês é moeda comum entre os monges educados.
- Já pensou nos riscos, George ? Que aconteceria, apanhado numa batida como
a de ontem à noite?
- Criaria um embaraço para Cung e o senhor.
- Poderia também ter a cabeça quebrada a coronhadas. Há outra coisa que você
talvez não tenha levado em conta.
- O que é, senhor ?
- O Exército tem serviço secreto, a Embaixada tem outro e Harry Yaffa possui um
serviço bem da por sua vez. Isso faria de você o operador solitário, sem posição ou
proteção. Poderia resultar em desastre, para você e para mim.
Sorriu de novo e respondeu com suavidade:
- Por outro lado, senhor, a Constituição dos Unidos garante a liberdade religiosa a
todos.
Sou budista e desejo manter minha prática religiosa... Além disso, o senhor me
trouxe aqui como assistente especial e esse é um serviço que lhe posso prestar e
ninguém mais pode fazer.
Era um serviço tentador, um investigador particular e experimentado sobre o mais
recente fenômeno na Ásia um budismo de mártires públicos, oficinas gráficas
secretas e propaganda global. Falamos sobre o projeto por mais meia hora, e
concordei com ele, sob certas condições.
- ... Experimente durante dez dias, George, e veja o que consegue. Apresente-se
a mim cada três dias. Nada de riscos ou heroísmo. Se surgir o menor sinal de
perigo, quero saber. Depois de dez dias, falaremos de novo no assunto. Está claro?
- Muito claro, senhor, e muito obrigado. Quando posso começar ?
- Agora mesmo, se quiser.
Ele partiu, .satisfeito como um passarinho, deixando-me terminar a refeição e
tentar entender as reportagens sensacionalistas, publicadas pela imprensa de
Saigon. Eu não sabia - e como poderia saber? - que acabara assinar uma sentença
de morte.
Lembro-me do dia seguinte com especial amargura, pois agora me parece ter
sido o começo de todas as traições em que me achava envolvido. A diplomacia é
uma dicotomia, para não dizer mais, que exige separação completa entre o acidental
e o absoluto, entre o justo e o necessário, entre a verdade difícil e a casuística
desejável.Ninguém pode fugir a essa dicotomia, e todos são modificados por ela,
chegando alguns a ser destruídos. Em número demasiado de vezes terminamos
aceitando a opinião que viemos modificar, ou cometendo o ato que estamos
condenados a cometer.
Certa feita, quando me achava na Argentina, um colega agradável mas inábil
me apresentou a definição latina do diplomata:
- Na verdade, ele é um augure antigo, que prevê o futuro estudando as
entranhas de um pássaro. O pior é que precisa matar o pássaro para poder
examinar-lhe as tripas.
Passei esse comentário a um inglês que, com a admirável reserva do Foreign
Office, me apresentou outra versão:
- Não é absolutamente assim, meu caro. A diplomacia é mais parecida com a
caça ao galo silvestre. Precisamos espantar o pássaro antes de atirar nele. Quando
não se tem sorte, erra-se o pássaro e mata-se um batedor.
Naquela manhã, parecia que eu era o batedor, com os fundilhos cheios de
chumbo de caça. Cheguei à Embaixada lúcido de idéias e descansado. As reflexões
da noite anterior ainda estavam bem vivas em meu espírito e via - ou pensava que
via - o início de diálogo construtivo com o Presidente Cung. Haveria uma
escaramuça inicial, certamente, palavras duras seriam pronunciadas em ambos os
lados e já estavam sendo proferidas sobre os telhados do mundo. Mas eu estava,
pelo menos, preparado para oferecer o primeiro ramo de oliveira, ainda que isso me
fizesse parecer um tanto desajeitado como o pombo de Picasso. Eu já redigia uma
nota para o Palácio, quando Anne Beldon entrou e pôs à minha frente um telegrama
de Festhammer:
- Sei disso, Sr. Amberley, mas se mostra perfeitamente claro que uma
advertência, ou ameaça foi levada ao Palácio.
- Por que isso é claro?
- Recebi um telefonema esta manhã. Era o Ministro do Comércio que me pediu
para fazer o possível a fim de conseguir, na Austrália, embarques imediatos de trigo,
arroz e demais gêneros e, se possível, conseguir também termos adequados de
crédito junto ao meu Governo. Tratava-se de pedido oficial, que me põe em posição
embaraçosa, porquanto já estamos enviando trigo a crédito para a China comunista,
e se recusarmos ao Vietnam do Sul eles poderão acusar-nos de negar víveres a
aliados e nutrir inimigos.
Isso me abalou e ele o percebia, mas prosseguiu com a mesma calma:
- Dei-me ao trabalho de examinar a posição financeira atual do Governo Cung.
Tem realmente créditos em dólares no montante de uns trinta e cinco milhões, e o
sistema bancário francês está pronto a contribuir com soma igual, mais ou menos.
Com o ritmo atual de despesas, portanto, Cung poderia manter seu Governo em
funcionamento durante uns seis meses, mesmo que as sanções fossem aplicadas.
Se impuserem também as sanções militares, começarão com uma retirada simbólica
de pessoal administrativo, o que não afetará a direção das operações militares. A
meu ver, isso apenas servirá para deprimir ainda mais o moral do país, que só Deus
sabe como já está baixo.
Tais afirmações eram incomodamente válidas e pude ver claramente o motivo
pelo qual preferira exprimir opinião pessoal e não oficial. Não deixava de usar a
linguagem cautelosa do ofício, mas podia ser tão franco quanto quisesse.
- Posso saber onde obteve sua informação, Sr. Manson?
Até esse ponto, eu não tinha qualquer contestação. Desconfiava de mim próprio
o bastante para perceber os perigos da liberdade mal utilizada e a limitação
necessária da liberdade pessoal em épocas de crise social, e era céptico a ponto de
dividir justamente a culpa entre budistas políticos e católicos e, ainda, os cínicos
políticos que viam lucros a colher na desordem. Nessa altura, sua leitura monótona e
brusca se modificou e surgiu uma nota de amarga ironia.
“... Aqui, neste nosso país, derrama-se sangue todos os dias para impedir os
movimentos agressivos e expansionistas da China comunista. Em Nova York,
entretanto, uma cidade em paz, na Assembléia das Nações Unidas, os nossos
amigos eu alquiles que se chamam nossos amigos! - cometem outro tipo de traição
contra nós. Estão preparados para votar pelo rompimento de nossos direitos
nacionais e da Carta das Nações Unidas, pela nomeação de uma Comissão de
Inquérito para investigar Direitos Humanos. Não temos medo dessa Comissão, mas
infelizmente somos forçados a recear nossos amigos, de modo que nosso
observador nas Nações Unidas foi instruído para fazer convite público à Assembléia
Geral, no sentido de que nomeie uma equipe de observadores para examinar e
apresentar relatório sobre a questão budista no Vietnam do sul. Lembrem-se de que
nós os convidamos, de que não receamos as investigações livres. Nada temos a
esconder, mas parece que os nossos amigos o têm, pois trabalham em segredo e
não na sinceridade do debate público...”.
Eram palavras duras, e uma espiada nas páginas seguintes do texto revelava
que iriam tornar-se mais duras ainda. Os demais diplomatas estavam olhando para
mim, e não para o orador. Mel Adams rabiscou um bilhete, perguntando: "Quer
sair?" Rabisquei a resposta: "Não, vamos ficar até o fim!"
Phung Van Cung continuava, no mesmo tom irônico:
“...Para mim, é estranho e deplorável que nossos amigos estejam fazendo,
pelos nossos inimigos, o que estes não conseguiram. Nós, que somos o derradeiro
bastião contra a expansão comunista no sudeste da Ásia, estamos ameaçados com
a retirada da ajuda militar e econômica... Que tipo de loucura é esta? Que deverão
pensar os próprios americanos, os homens que lutam com nossos soldados no
Delta, os que trabalham com nossa gente nos povoados, ensinando-lhes melhores
métodos agrícolas e os meios de eliminar as doenças que a atormentam há
séculos? Esses americanos não devem ser culpados, e são amigos verdadeiros.
Mas os outros, os que falam com duas vozes, proclamam uma amizade pública e, no
entanto, entram em conspirações secretas contra um governo legítimo?... Se estão
cansados de lutar que se vão! Que nos deixem o dinheiro e as armas, e lutaremos
sozinhos! Começamos nossa revolução sem eles, e estamos preparados para com-
pletá-la sem eles, certos da correção de nossos objetivos e na esperança de vitória
final!"
Quando desceu da tribuna, os aplausos foram tempestuosos, mas não poderia
dizer se eram os amigos, que aclamavam a sua coragem, ou os inimigos, que
celebravam a sua loucura. Mel Adams comentava, em tom desarvorado:
- Jesus! Ele jogou mesmo gasolina no fogo! Vamos, Embaixador.
Saímos, encontrando lá fora o ar quente e pesado, com nuvens escuras
pairando sobre a cidade inquieta.
Capítulo cinco
Chamei o General Tolliver e lhe dei as notícias. Ele resmungou com mal-estar e me
transmitiu outra informação para completar o dia - membros da pequena Missão
Militar Australiana, nas montanhas do norte, haviam identificado dois novos
batalhões de vietcongs e um terceiro fora positivamente identificado pelo
interrogatório dos prisioneiros depois da luta em Tanan. O Tio Ho e seu orientador
militar, o general Giap, estavam aproveitando ao máximo as desordens no sul e logo
deveria haver ação dos vietcongs em grande escala, em todos os setores. Disse a
Tolliver que desejava fazer uma visita imediata às zonas de combate, o que o tornou
ainda mais inquieto, gastando dez minutos para me descrever os perigos dessa me-
dida. Ouvi o que tinha a dizer, e lhe disse que precisava fazer essa visita, quando
mais não fosse para deixar Cung digerir a refeição e pensar se ia mudar de opinião.
Depois disso, voltei para casa, onde encontrei Anne Beldon dando a Harry Yaffa
uma refeição tardia de café e roscas. Senti um ciúme estranho por essa cena de
familiaridade doméstica e fui bastante fraco para pedir a Anne que ficasse conosco e
tomasse notas de nossa conversa.
Yaffa também tinha a sua batelada de problemas. Os conspiradores estavam
apavorados com o tom de desafio do discurso de Cung na Assembléia Nacional,
interpretando-o como sinal de que vencera sua batalha diplomática com os Estados
Unidos e sentia-se forte bastante para agir sozinho. Também tinha havido
divulgação de segredos e traição em suas próprias fileiras. Diversos funcionários de
alta categoria achavam-se sob vigilância da polícia de segurança, dois generais
tinham sido transferidos do comando de tropas para postos administrativos em
Saigon, onde eram mantidos inativos e sem contato com suas próprias unidades.
Para impedir que o movimento de oposição escapasse a um colapso total, era
preciso dar aos conspiradores um sinal claro e definido de nosso apoio.
Por estranho que parecesse, a confiança de Yaffa parecera ter-se evaporado.
Mostrava-se irritado e inquieto, como se toda sua aritmética se tivesse tornado
incompreensível. Pareceu mais satisfeito quando lhe disse que as sanções seriam
aplicadas dentro de 24 horas e quando contei, também, que Cung pedira sua
transferência e retirada do país e eu me recusara, chegou a parecer bem-humorado,
dizendo então que minha aprovação pessoal era de grande importância para ele.
Em minha opinião particular, ele não valia um punhado de feijões, mas eu estava
preparado para aceitar a ficção enquanto servisse a meus propósitos.
Depois disso, porque ainda estava raivoso comigo próprio e com Cung, tomei
uma segunda decisão impulsiva.
- Vou-lhe dizer uma coisa agora, Sr. Yaffa, e a Srta. Beldon o vai registrar. Cada
um de nós terá uma cópia, e mandarei outra a Washington. Se eu não conseguir me
mostrar suficientemente claro, gostaria que me dissesse, e então reverei o texto para
esclarecer a questão, mas como estamos falando oficialmente, quero que se
mantenha rigorosamente dentro dos limites do caso. Se sair deles, eu o
responsabilizarei pessoalmente. Está bem claro?
- Muito claro, Sr. Embaixador.
- Pois bem. Anne, começamos com o seguinte: "Neste momento, é claro que o
Presidente Cung não tem intenção de modificar sua atitude para com os budistas.
Também é claro que ele não retirará qualquer das afirmações tendenciosas e
prejudiciais feitas na Assembléia Nacional. Resta ver se modificará essas atitudes
depois que as sanções forem impostas. Se não as modificar, poderá ser preciso
examinar a possibilidade de transferir nosso apoio para outro governo, mais capaz
de unir o país e continuar a guerra..." Confere, Sr. Yaffa?
- Confere - respondeu ele.
- "Como Embaixador dos Estados Unidos, estou, por isso, preparado a autorizar
o estabelecimento de contatos e consultas com as pessoas que se mostrem
desejosas e capazes de criar outro governo, como e quando parecer necessário. No
entanto, não estou preparado para conceder aprovação formal ou tácita a qualquer
movimento no sentido de derrubar o regime atual, até possuir as mais completas
informações sobre os personagens envolvidos nisso e os métodos pelos quais
pretendam agir, e até receber aprovação de Washington..."
- Confere também - disse Harry Yaffa.
- "Estou encarregando o Sr. Harry Yaffa de tornar bem claro junto a seus
contatos que não podemos, em circunstância alguma, conceder nossa aprovação a
um assassinato político. Estou também encarregando o Sr. Yaffa de exigir garantias
de que, no caso de um golpe ao qual dermos aprovação, ainda que somente tácita,
as pessoas do Presidente Cung e seus ministros serão protegidas... O Sr. Yaffa já
me afirmou que, mesmo dadas tais garantias, ele não pode pessoalmente assegurar
seu cumprimento. Trata-se de objeção razoável, mas que não o isenta de
empreender seus melhores esforços no sentido de executar as nossas instruções na
questão...” A coisa está bastante justa assim, Sr. Yaffa?
- Eu não a chamaria de justa, Sr. Embaixador, mas aceito.
- “Finalmente, nossa aprovação a qualquer movimento para depor o governo
Cung será dada por uma palavra em código, combinada previamente entre o Sr.
Yaffa e eu”. Até que tal palavra seja dada, os Estados Unidos não poderão ser
tomados “como comprometidos, de modo algum, a apoiar um novo regime...” É
documento secreto, Anne, e sua distribuição se limita a mim, o Sr. Yaffa e
Washington.
- Muito obrigado, Sr. Embaixador - disse Harry Yaffa com aprovação suave. - É
um passo na direção certa, e pelo menos não estou mais trabalhando sozinho.
Quando estiver pronto a falar com os generais, avise-me e prepararei os encontros.
- Vou deixar Saigon por alguns dias, a fim de ver pessoalmente a situação
militar. Se houver alguém que o Sr. me queira apresentar nessas viagens, é favor
informar.
- Poderá ver um deles, amanhã, se quiser, Embaixador. É o general Tran Hund
Dao e estará representando o Exército no funeral. O General Tolliver provavelmente
o convidará para chegar ao quartel-general, a fim de tomar alguma coisa depois da
cerimônia. No momento, ele é Sub-Chefe do Estado-Maior, o mesmo que coisa
nenhuma, do modo pelo qual Cung dirige as coisas.
- Pode-se ter confiança nele, Sr. Yaffa?
- Digamos o seguinte, Sr. Embaixador: a posição dele no Governo é bastante
insegura. Quer uma modificação e acha que somos quem pode melhor ajudá-la.
Depois disso, é tocar de ouvido.
Depois de Yaffa ter partido, ativo e confiante de novo, Anne Beldon me ofereceu
um café fresco, mas preferi uísque e comecei a ditar o resumo do diálogo com Cung.
Uma grande prática no Serviço Diplomático me dera boa memória verbal e um
ouvido sensível para os ritmos e nuances da palavra falada, de modo que reconstruí
a conversa para o ditado taquigráfico e foi quando me vi forçado a conclusão muito
diferente daquela que me levara a redigir o telegrama para Festhammer e fazer o
perigoso acordo com Harry Yaffa.
Podia justificar ambos, certamente, e ninguém se atreveria a pôr meu juízo em
exame. Eu era o chefe no lugar, homem de experiência e integridade, negociador
que nunca perdia a paciência, coisa que prejudicaria sua capacidade de julgamento.
Mas naquela última hora de um dia desastroso, eu sabia que enganara a mim
próprio. Fizera uma interpretação que salvava minha vaidade, mas me condenava
como trapaceiro. Cung não me insultara - eu era realmente o homem irresoluto, que
não apostaria na verdade que via, mas tentava embaraçá-la com uma casuística
oportunista.
Phung Van Cung fora muito franco comigo, mostrara seus defeitos pessoais e
dilemas públicos. Pedira que confiasse nele, mas eu insistira numa retratação
imediata e pública, um auto-de-fé que destruiria por completo seu prestígio como
chefe de estado. Ele não me pedira que justificasse as suas imperfeições, mas
apenas que as suportasse pelo receio a outras maiores. E eu? Recusara-me a ser
paciente, gritara pedindo ação e modificação rápida. Tentara dar o meu próprio
golpe. Vejam! Sou um forasteiro na cidade, mas vejam o que tiro do ar! Um coelho
branco, dois pombos vivos, uma estola escarlate, um cacho de uvas, a cabeça da
Virgem Maria e um milagre - um ditador reformado, mais sábio que o Espírito Santo!
Antes de terminar o ditado as palavras pareciam ter o gosto de pedra-ume na
boca, e bebi mais dois copos de uísque para ver se melhorava. Mas a cabeça estava
como se a tivesse enchido de algodão, as mãos tremiam. Eu estava tonto devido ao
álcool e ao impacto de outro pensamento. Exigira que Cung se retratasse das
afirmações feitas na Assembléia, mas como poderia eu me retratar das falsidades
sutis que enviara a Washington?
Finalmente, Anne Beldon fechou o caderno de notas e disse em voz baixa:
- Devia ir deitar-se, Sr. Embaixador. O dia foi tremendo e amanhã será a mesma
coisa.
- Para que me deitar e ter pesadelos?
- Se quiser, trago uma pílula para dormir.
- Nunca uso isso. Tomei uma, certa vez, e descobri que são uma tentação
mortal. Gostaria de sair passeando.
Ela riu com indulgência e sacudiu a cabeça.
- Não há .lugar onde possa ir. A cidade está em toque de recolher e o Sr. levaria
um tiro logo depois de sair.
- Há o jardim.
- Faria tocar o sistema de alarme.
- Eis um pensamento interessante... "Um jardim é coisa detestável, Deus o
sabe!" Ainda mais quando está cheio de arames e células fotoelétricas... Será que
existe algum cuco no jardim?
- Um cuco?
- É um enigma, Anne. Esta noite descobri a resposta... Desculpe fazê-la ficar até
tão tarde. Vamos encerrar o dia.
Nos primeiros degraus da escada, tropecei, e ela estendeu a mão para me
ajudar. Tive todo o cuidado de não a tocar, pois no dia seguinte precisava ser
Embaixador outra vez.
Em todos os sentidos, o funeral dos tripulantes dos helicópteros foi um
interessante número teatral, em que fui ator e só tive elogios para o General Tolliver,
que foi o diretor de cena. Precisamente às 10h30m, eu deixaria a Embaixada, em
companhia de meus ajudantes e adido militar, chegaria ao aeroporto às 10h50m e
passaria em revista a guarda perfilada na pista. Às 11 horas, o transporte aéreo
pousaria e os corpos seriam desembarcados. Um capelão militar diria as palavras de
despedida e eu faria um pequeno discurso em nome do Presidente dos Estados
Unidos, saindo depois com o General Tolliver no cortejo até o cemitério.
Como acontece tantas vezes no teatro, no entanto, o drama dos bastidores foi
mais importante do que o apresentado no palco. Às 9h30m, Mel Adams trouxe a
notícia de que o Ministro do Exterior vietnamita não estaria presente à cerimônia do
aeroporto. Adoecera de repente e o médico proibira que saísse do leito. Enviava
sentidas condolências e como não havia qualquer referência a um substituto seu
que devesse estar presente, tomava-se claro que todos os funcionários de seu
Ministério estavam sofrendo a mesma dispepsia diplomática. Às 9h45m, Tolliver
telefonou para informar que o comandante local em Danang se apropriara dos
corpos dos vietnamitas e recebera ordens para sepultá-los em Danang com a menor
cerimônia possível. E mais: a guarda vietnamita de honra para a recepção no
aeroporto fora retirada e os únicos representantes oficiais da República seriam o
Sub-Chefe do Estado Maior e seu ajudante-de-ordens.
Tudo se mostrava bastante oriental e muitíssimo eficiente. De um só golpe,
ficávamos isolados, do povo, da guerra e de nossos camaradas de armas. Nossa
posição se definia mais claramente do que mediante qualquer tratado. Éramos os
banqueiros, fornecedores de equipamento, assessores militares. Nossas perdas
humanas eram deploráveis, mas incidentes de menor monta na luta de vida ou
morte da nação. Se quiséssemos criar um drama de nossos mortos, seria por conta
própria. Tolliver mostrava-se furioso, como tinha direito a estar e, quanto a mim,
acariciava uma satisfação secreta. Já então, havia justificativa para minha ação
política, embora não estivesse verdadeiramente absolvida minha consciência
inquieta. No entanto, quando estava de pé na pista de passageiros e observava a
aeronave, grande e já bem usada, para finalmente, depois de aterrar, senti-me
emocionado até as lágrimas pela simplicidade brutal do momento.
Havia dez caixões ao todo, esquifes compridos feitos de madeira lavrada pelos
carpinteiros de aldeia. Estavam nus, sem verniz ou ornamentos, e na tampa cada
qual trazia um nome e número, gravados na madeira com ferro em brasa. Foram
tirados do aeroplano nos ombros de homens jovens, sérios e sem barbear, como
heróis de alguma lenda antiga e violenta.
Os soldados à espera para recebê-los estavam arrumados e limpos, com armas
reluzindo no sol matinal, mas os jovens usavam uniformes de combate, bandoleiras
de couro e lona, pistolas a tiracolo e punhais em bainha à altura do peito. As faces
estavam magras e marcadas pelo sol e pela febre das selvas, os olhos indormidos
eram sombrios. Andavam lenta e desafiadoramente, em desprezo por alquiles que
tinham vindo render tardias homenagens a seus camaradas mortos.
Entre as guardas compactas estavam dez canhões, cada qual tendo a seu lado
um sargento. Os jovens depuseram os ataúdes sobre os amues das peças e os
sargentos estenderam sobre todos a bandeira dos Estados Unidos. Os jovens se
agruparam quatro a quatro em volta a cada caixão, como se afirmassem seu direito
de posse aos seus próprios mortos. Os cinegrafistas acionaram suas máquinas e
houve uma corrida indecente de fotógrafos, enquanto o capelão se adiantava para
ler as palavras de despedida. Não ouvi as palavras que lia, porque tentava
concatenar as minhas próprias e lutava, ao mesmo tempo, com um pungente
sentimento de culpa pela minha hipocrisia.
Aquêles jovens tinham morrido violentamente e seriam enterrados em terra
estrangeira, ao som de canhonaços e clarins. Jovens! Não éramos eu, Tolliver, Cung
ou Harry Yaffa, mas jovens, herdeiros do passado, fabricantes do futuro, que pode-
riam ter gerado filhos, plantado jardins, aberto novas portas para o conhecimento,
visto paisagens em montanhas para as quais estávamos cegos. Agora, eles é que
estavam cegos e suas bocas se encheriam de lama. Apenas os vermes procriariam
de suas virilhas, e flores tropicais luxuriantes se nutririam de seus corações...
Estávamos oferecendo-lhes funeral, ao qual, porém, oportunistas políticos, como eu,
haviam transformado em zombaria.
Tenho grande prática de cerimônias e preparara uma alocução segura e simples
sobre o mérito daqueles que tinham morrido por uma causa nobre. De repente,
percebi que não a poderia pronunciar. As palavras me sufocariam, se tentasse fazê-
lo. O capelão terminou a oração e me chamou ao microfone. Ouvi uma voz que não
era a minha própria pronunciando um obituário diferente, enquanto as lâmpadas dos
fotógrafos estouravam e os repórteres escreviam apressadamente o que dizia.
- ... Estou envergonhado hoje, envergonhado por termos de sepultar nossos
mortos sozinhos, como inimigos, num país para o qual fomos convidados como
amigos e aliados. Envergonho-me de que o dinheiro gasto, os aviões e armas que
trouxemos, pudessem parecer mais valiosos do que os homens que lutaram e
morreram tão longe de sua pátria... Para mim, é triste e terrível que, em meio a esta
guerra pela sobrevivência, existam perturbações civis e disputas religiosas e
brutalidade nas prisões policiais e campos de detenção. Essas coisas são um insulto
aos nossos mortos e aos nossos camaradas mortos, no exército do Vietnam do Sul,
a quem não nos permitem render homenagens aqui, hoje... Estão sem voz, agora, e
contam conosco para que falemos por eles. No entanto, gastamo-nos em debates
públicos e disputas particulares e acusações destinadas a formar manchetes na
imprensa diária. Envergonho-me de que eu, mandado por nosso Presidente para
trazer o acordo e concórdia, me veja envolvido nessas contendas infrutíferas.
Empenho-me agora, na presença dos mortos, a tentar, tanto quanto puder, acabar
com essa vergonha. Rogo aos que governam este país que se reúnam a mim nesse
intuito... Que Deus nos ajude!
Enquanto me afastava do microfone, o General Tolliver sussurrava:
- Foi formidável, Sr. Embaixador! Graças a Cristo alguém teve coragem de dizer
a verdade a esses patifes!
Não percebera o que eu queria dizer, ou melhor, por um truque instintivo
destinado a enganar a mim próprio, eu me recusara a explicá-lo. Cung era ainda o
vilão, e eu o cavaleiro puro, livre de medo ou mácula. Era tarde demais para exprimir
o que sabia em meu íntimo: a despeito de todas as minhas nobres palavras, com
toda a minha virtude ofendida, eu era um dos patifes.
Capítulo seis
Depois de Dao ter saído, passei mais de uma hora com o General Tolliver,
planejando minha viagem às zonas de combate. Por uma série de motivos, o plano
apresentava singular importância para mim. Em primeiro lugar, era vitalmente impor-
tante que eu adquirisse conhecimento de primeira mão quanto ao país, as condições
de vida e os problemas muito especiais da guerra subversiva num país dividido e de
raças múltiplas. Ainda me restavam esperanças de que, mediante maior conhe-
cimento e experiência, pudesse estabelecer relação funcional com Cung, que - a
despeito de seu dom de me irritar - era homem muito mais digno de respeito do que
Dao. Em segundo lugar, queria estar fora de Saigon quando as sanções entrassem
em vigor. Não queria estar à disposição da imprensa, cujos comentários poderiam
agravar a situação. O próprio Cung poderia mostrar-se mais ameno em minha
ausência do que com minha presença acusadora. Finalmente, precisava do contato
duro e curativo da realidade. Depois daqueles dias de conversações diplomáticas,
eu me sentia como se estivesse andando nas nuvens, falando uma língua
ininteligível. Tolliver reiterou suas advertências contra os perigos da viagem, mas era
clara sua satisfação em que a fizesse. Também ele se impacientava com as
conversas e intrigas, estando preocupado seriamente com o moral de seus
soldados. Ao lhe falar de minha conversa com Dao, resmungou impaciente e
chamou o homem de mentiroso.
- Toda essa conversa de trazer um batalhão de cada corpo é mentira!...
Indicou seu próprio mapa de operações militares.
- Tomemos o Corpo Número Um, perto da fronteira do norte. O comandante é
um general chamado Tho. Trata-se de um bom soldado, que sabe muito bem que se
tirasse qualquer batalhão dali os vietcongs se espalhariam pelo lugar como a água
do gargalo duma garrafa! Além disso, estão em região montanhosa e todas as
unidades de Tho se acham divididas em pequenas formações, pois simplesmente
não se pode operar com grandes concentrações de soldados... Essa bobagem da
Farsa Aérea ter medo de nós! Ela tem seus próprios abastecimentos de combustível,
munição e peças sobressalentes e se quisesse voar diretamente daqui a Hanói não
a poderíamos impedir!
- Nesse caso, por que Dao me veio com mentiras tão estúpidas? Devia saber
que eu verificaria as informações com o Sr.!
Tolliver riu e deu de ombros, fingindo desânimo.
- É assim que fazem as coisas aqui. Dao estava simplesmente dizendo que
sabia que o Sr. não confiava nele, e ele não confiava no Sr. Ah, ele tem planos,
decerto! Provàvelmente muito bons, mas enquanto o Sr. não estiver decidido, não os
conhecerá.
- Pois nunca darei a ele, ou a qualquer outro, um cheque em branco!
- Eu não lhe daria uma moeda falsa! - disse Tolliver com ênfase. - Se vai haver
golpe, o homem para dirigi-lo será Khiet, no Delta. É o melhor estrategista de todos
eles e grande lutador. Dao fará parte da junta, naturalmente, mas do nosso ponto de
vista ele é de quem menos precisamos. Está jogando com pau de dois bicos, e no
meio ao mesmo tempo. Não se esqueça de que ele ainda é Sub-Chefe do Estado
Maior de Cung.
- Então estamos numa ponta, e Cung no meio. Quem está ajudando Dao na
outra ponta?
- Se quer minha opinião, Embaixador, são os franceses. O país está cheio de
agentes degaullistas com dinheiro de sobra. Subvencionam os plantadores de
borracha e donos de fábricas para pagar os vietcongs, a fim de poderem continuar
no país, comprando opinião neutralista sempre que podem, porque em última
instância é isso que desejam, um outro estado neutro como Laos e Cambodja, com
acesso livre a Hanói para a França, e para o norte também.
- E o general Dao é neutralista?
- Um oportunista! - respondeu Tolliver. - Como tantos deles. Eu não gosto de
Cung, Embaixador, mas ele é duas vezes maior do que qualquer outro homem
conhecido meu aqui, até agora. Pode estar liquidado, mas nunca poderá ser
comprado!
- Acha que o devíamos apoiar incondicionalmente?
- Não podemos fazer isso! - respondeu, com expressão desanimada. - Aí está o
difícil de nossa situação, de Formosa a Bangkok. Somos como o sujeito que tem
uma amante chantagista: não quer casar-se com ela, não a pode abandonar e, com
todos os demônios, não a pode amar!
Passei o resto da tarde na Embaixada, preparando um relatório longo e
detalhado para Raoul Festhammer, em Washington. O texto do resumo final está
ainda bem claro em minha memória, pois representa a tentativa mais árdua que fiz
para chegar à sinceridade total. Quando me vejo tentado, como aconteceu muitas
vezes, a assumir toda culpa pelo que sucedeu depois, lembro-me dele e assim
escapo, por pouco, ao desprezo completo por mim próprio.
"Desse modo, a despeito de suas muitas e perigosas deficiências, vejo-me
inclinado a confiar no Presidente Cung como homem suficientemente forte e
incorruptível para manter o equilíbrio de poderes neste país. No entanto, não posso
e não me atrevo a dar-lhe confiança absoluta e sou forçado, por intermédio da CIA e
do Sr. Harry Yaffa, a manter contato com elementos dissidentes que estão tramando
a derrubada do regime, e talvez um dia o causem. Ao fazer isso, está claro que difi-
culto ao Presidente Cung a manutenção da estabilidade, ordem e lealdade, mas não
posso deixar que sejamos colhidos de surpresa por uma mudança de governo, ou
que fiquemos sem amigos num novo governo. Tudo quanto posso fazer é esclarecer
o perigo, bem como os motivos pelos quais o aceitei... Há outro perigo que devo
mencionar clara e francamente, o de que eu próprio, por defeito de conhecimento,
experiência ou caráter, me veja forçado a uma decisão errada, que poderá custar-
nos caro. Acho, por exemplo, que consegui menos resultado com Cung do que
deveria conseguir, porque ele me acha homem preciso demais, e insuficientemente
sutil para compreender a sua própria situação bem complexa. Por outro lado,
acredito ser ele homem que tiraria logo vantagem de qualquer demonstração de
debilidade... Seria fácil, para mim, abdicar desse perigo pessoal, simplesmente
enviando a informação e pedindo que mandasse as instruções de Washington, mas
não foi o que você pediu, e tendo esclarecido bem o perigo, só me resta fazer o que
puder... Gostaria de que sempre fosse possível ter certeza de nossa própria
moralidade, ou, então, de estarmos totalmente desprovidos dela..."
Terminei o relatório e passei-o a Mel Adams para opinar. Terminada a leitura,
entregou-o de volta, com expressão estranha de perquirição.
- É documento muito sincero, e respeito-o por isso. - Mas não concorda?
- Acho-o inconclusivo.
- Pois é exatamente isso, Mel. Tem de ser assim. Não estou pronto ainda para
chegar a uma conclusão!
- Em certo sentido isso é verdade, Sr. Embaixador, mas noutro é pura
inverdade. O Sr. já chegou a uma conclusão, decidiu pela continuação das divisões,
na esperança de que um lado, ou outro, apresente solução aceitável, por conta
própria. Isso é ótimo, se o Sr. estiver a favor do neutralismo, mas se quiser ficar no
poder terá de fazer escolha clara. Nesse documento, o Sr. não a faz.
- Não estou ainda pronto ou suficientemente informado para fazê-la. Não me
apresse, Mel.
- Não estou apressando. Queria apenas externar a minha opinião.
- Está bem, Mel.
Agradeceu altivamente e saiu. Redigi nota formal ao Ministério de Relações
Exteriores, anunciando a imposição das sanções. No dia seguinte, iria entregá-la
pessoalmente e estaria iniciada a batalha aberta.
Seguiu-se outra sessão de esgrima com a imprensa e um interlúdio telefônico,
em tom coloquial, com o Embaixador britânico. Ele presumia - um tanto agudamente
demais para meu gosto - que eu estava por demais preocupado, deixando por isso
de fazer a ronda costumeira de visitas aos colegas diplomatas. No entanto, estavam
todos ansiosíssimos por me conhecer e talvez, ainda que com tão pouca
antecedência no convite, eu pudesse ir a um coquetel? Alguns asiáticos eram um
pouquinho sensíveis a essas coisas, e poderiam julgar negligência de minha parte
não me esforçar por ser apresentado a eles. Os ingleses e americanos precisavam
estar unidos, não era? Principalmente quando os nossos amigos franceses estão
pintando o diabo por aí. Amanhã à noite, então? Era um prazer imenso para ele...
Tudo isso queria dizer que os franceses estavam pisando-lhe nos calos e ele
queria sacudir a Aliança Atlântica bem no nariz deles. No entanto, tinha razão
quanto aos asiáticos e eu não dispunha de tempo para correr de uma embaixada
para outra, Saigon a fora, de modo que a proposta era bem razoável. Ocorreu-me,
com certo sentimento de culpa, que com tantas pessoas a ver cabia-me enviar
convites próprios, mas acima de tudo precisava de uma reserva de tempo, a fim de
completar meus estudos. Precisava também de alguma diversão, ainda que mínima,
mas onde ir numa cidade fechada pelo toque de recolher e onde, entre tantas
pessoas, eu era um homem marcado para morrer? Juntei os papéis restantes e
levei-os para casa, onde continuaria a trabalhar depois do jantar.
Coquetéis, conferências, entrevistas e resmas e mais resmas de papel! Uma das
ironias da diplomacia está em que a ascensão e queda das nações, a vida e a morte
de milhares de pessoas, dependam de coisas tão sem importância.
Passeei pelo jardim antes do jantar, porque se o fizesse depois iria interromper
um circuito fotoelétrico, soariam as campainhas de alarme e os guardas viriam
correndo proteger minha sagrada pessoa. Aspirei o ar pesado e perfumado, tocando
nesta ou naquela pétala veludosa das flores tropicais. Tentei conversar com o
jardineiro vietnamita, mas o francês do homem era tão limitado quanto o meu
vietnamita, de modo que terminamos numa troca de gestos e salamaleques. Conver-
sei um pouco com os sentinelas, mas estes se mostravam constrangidos e formais,
não tendo ainda aprendido que um Embaixador sempre é mortal, muitas vezes
sente-se sozinho e, de outras, fica intrigado com o quebra-cabeças da política, no
qual sempre faltam as peças principais. Bill Slavich passou pelo jardim fazendo sua
ronda noturna, verificando os postos de guarda e sistemas de alarma, bem como as
famílias dos empregados vietnamitas no conjunto de casas ao fundo. Passeamos
por instantes no musgo úmido do jardim e percebi que também êle tinha o seu
problema comigo. Era homem de Harry Yaffa, membro daquele mundo de
funcionários públicos cujo ofício é secreto, violento e sem agradecimentos. Nossa
conversa foi banal e terminei pedindo-lhe que arranjasse para mim um massagista,
que com o trabalho de uma hora diária me tirasse as tensões do corpo. Prometeu
fazer isso, e me deixou. Vi-me imaginando com interesse quais poderiam ser as
diversões de um jovem como esse, cujo campo de ação eram as veredas
subterrâneas do mundo.
Isso me levou a pensar em Harry Yaffa, o conspirador profissional a quem eu
próprio nomeara confidente e mensageiro em todas as negociações com os generais
rebeldes. Examinara todos os seus relatórios e registrara nossas conversas, e
examinando-as depois vira que estavam habilmente incompletas. Os agentes
franceses? As suas atividades estavam anotadas e avaliada sua influência. Os
conspiradores do Exército? Havia biografia de todos, e mesmo um total corrente de
suas contas bancárias e posses em imóveis. Os agentes entre os budistas, os
reacionários em meio ao clero católico? Lá estava o dossiê sobre cada um, e o
registro atualizado de suas atividades. Nossos agentes em Vientiname e Pnompenh,
nossos contatos entre os pilotos que operavam nas rotas do ópio saindo da
Birmânia, e navegantes que efetuavam o comércio costeiro de Bangkok pelo golfo
de Tonouim? Todos estavam relacionados. Que mais queria eu? Se quisesse,
bastava pedir.
Por que motivo, então, não confiava nesse homem? Ele se recusara a mentir
para mim, reconhecera haver segredos dos quais eu não devia participar, mas
minha experiência dizia que tal era o costume normal e prudente do ofício. Que
havia naquele homem para me irritar, a ponto de ser sempre formal com ele e nunca
chamá-lo pelo primeiro nome? Tinha medo dele, ou ele de mim? Um homem como
Yaffa se tomaria avaro de segredos, guardando-os para uso próprio ou exercício de
tirania ignóbil? Existia um vício especial a que sucumbiam os homens desse
demimonde, a ambição de governar por trás dos tapetes do rei, ou o impulso mau de
destruir, por que se viam diàriamente ameaçados de destruição?
Era pensamento sombrio, que me atormentava enquanto eu andava de lá para
cá na fragrância persistente dos jasmins, mas havia outro mais sombrio ainda.
Todos os homens com quem lidara naqueles últimos dias haviam demonstrado uma
clara desconfiança a meu respeito. Para Cung, eu era o homem irresoluto que queria
apostar em todos os números; para Yaffa, o fracasso latente contra o qual tinha de
estar preparado; para o General Dao, um aliado duvidoso; para Mel Adams, um
informante sincero cuja sinceridade não bastava. Eu tinha experiência suficiente
para saber que o homem em posição de grande autoridade sempre é suspeito,
mesmo para seus auxiliares. No passado, Gabrielle fora ao mesmo tempo minha
consciência e baluarte, e sem ela eu me via tomado de receios e culpas. Era como
um monge, atormentado por sonhos secretos de libidinagem, um servidor do bem
comum tentado por tiranias desbragadas. Embora não cedesse às tentações, sabia
que existiam e sua atração me despojava da fé nos objetivos mais nobres... Imaginei
se tais dúvidas se refletiam no rosto, como os tiques e contorções involuntárias do
devoto escrupuloso...
Um vento fraco soprava na noite, trazendo as nuvens do Delta, e uma chuva
miúda e macia, começou a cair, fazendo-me entrar para um trago solitário e o jantar
igualmente sozinho. Anne Beldon fora jantar com uma amiga de outra embaixada e
George Groton provavelmente estava sentado, de pernas cruzadas, falando sobre o
Dhamma com outro homem de manto amarelo, em algum pagode da cidade.
Logo depois das dez horas, quando estava ainda examinando volumoso
documento sobre a situação econômica do Vietnam do Sul, apareceu Groton,
ofegante e molhado até a pele. Estivera num pagode no extremo setentrional da
cidade e de lá partira para casa, andando. Esquecera o toque de recolher e passara
uma hora de perigo, fugindo às patrulhas militares.
Também tinha fome, pois, como bom monge, nada comera desde o meio-dia.
Mandei-o subir e trocar de roupas, pedindo à governanta que lhe preparasse uma
refeição. Vinte minutos depois, regalando-se com galinha fria e uma garrafa de
vinho, ele me apresentava animadamente seu primeiro relatório.
- ... Em primeiro lugar, alquile monge da Embaixada me deu uma carta circular
de apresentação, escrita em francês e que parecia bem amistosa, dizendo: "O jovem
portador é estudante dos Oito Caminhos e, portanto, bem disposto para conosco.
Desfruta a confiança do Embaixador americano, que também compreende o
Caminho Zen. É favor prestar-lhe todas as cortesias e tentar explicar nossa
posição..." Até aí, a coisa ia bem, mas na parte de baixo ele escreveu palavras em
vietnamita. Pedi que as traduzisse e o negócio era uma das proposições do
Nagarjuna sobre o Exame do Nirvana. Traduzido mais ou menos, dizia: "Como tudo
é relativo, não sabemos o que é finito e infinito. Não sabemos o que é finito e infinito,
ao mesmo tempo e de uma só vez. Não sabemos o que é uma negação tanto do
finito quanto do infinito..." Perguntei o que significava aquilo, e ele disse que era
costume, em qualquer correspondência, acrescentar o lembrete de alguma verdade
espiritual do Dhamma. Aceitei a explicação, mas fiquei preocupado. Cheguei à
conclusão, a qual não posso ainda provar, de que ele usava a citação para indicar
não ter certeza a meu respeito... De qualquer modo, deu-me os endereços de três
pagodes pequenos na cidade, que até aqui têm estado livres de distúrbios ou de
guarda policial. Deu-me também os nomes dos abades e outros monges que
entendiam e falavam francês...
Interrompeu a narrativa e bebeu algum vinho, como se estivesse buscando
palavras capazes de transmitir sua impressão. Depois, um tanto embaraçado,
prosseguiu:
- Achei que estava bem preparado para esse trabalho, mas não estava. Quando
cheguei ao primeiro pagode, era como um luterano entrando numa igreja católica na
Sicília. Tudo me pareceu estranho, barroco, atulhado de imagens, seda, incenso e
flores. Depois do Japão, onde tudo é parcimonioso e disciplinado, achei aquela
atmosfera de mau gosto, vulgar mesmo. O primeiro monge a se encarregar de mim
era mocho, mas educado à francesa, e contou exatamente aquilo que me queria
informar. Havia perseguição e discriminação por parte do Governo, os católicos
podiam reunir-se quando quisessem, mas os budistas precisavam de licença oficial.
Os budistas eram mantidos fora das posições graduadas no Governo, as mortes em
Hué tinham sido assassinatos premeditados e não apenas resultado de desordens e
distúrbios públicos. Os budistas, que nada mais desejavam além de uma vida de
boas obras e contemplação, tinham sido forçados a organizar-se para se protege-
rem... Centenas de monges e monjas estavam ainda presos, e muitos tinham sido
submetidos a espancamento e tortura para confessarem filiação comunista. Tenho a
dizer que a apresentação feita pelo mocho foi muito boa, mas cheirava muito a
afirmações interessadas. Não vi tolerância ou compreensão, como se espera de
religiosos. No entanto, quando viu que eu lhe aceitava as asserções, levou-me a
uma das salas onde os companheiros preparavam folhetos e cartas, com uma
bateria de máquinas de escrever e um mimeógrafo francês. Trabalhavam com muita
eficiência! Pedi para falar com o abade, mas ele disse que se tratava de um ancião
que passava a maior parte do tempo em contemplação. Continuei a pedir, e
finalmente pude ver o homem. Era muito velho e débil, falando quase num sussurro.
O monge jovem esteve conosco todo o tempo, e tudo quanto consegui na conversa
foi saber que o abade já estava bem adiantado para o Nirvana e desejava ser
poupado à distração mundana...
E depois de uma pausa curta, Groton continuou:
- A visita ao abade durou apenas cinco minutos, e voltei a receber mais
propaganda. Perguntei se havia alguma verdade na acusação de que o Sangha
estava infiltrado de agentes comunistas. Pareceu-me que tinha mexido em casa de
marimbondos. Ficaram raivosos, insultados, horrorizados, e decidiram que eu não
devia deixar o lugar até me terem convencido de que eram todos vietnamitas leais,
oprimidos por um mandarim católico, governado por mandato vindo de céu cristão.
Quando finalmente me deixaram partir, fizeram-me acompanhar por outro monge,
claramente designado para impedir que eu tivesse pensamentos contaminadores!
- Uma pergunta, George: mostravam-se hostis aos americanos?
- Não, Senhor. Fizeram grande questão de aprovar o que chamaram nossa ação
enérgica contra a tirania, falaram de suas boas relações com a imprensa americana
e deixaram bem claro que dispõem de contatos com a maioria dos principais corres-
pondentes em Saigon. Era claro, também, que estavam organizando comunicações
entre si e demais pagodes, e de modo bem rápido e eficiente.
- Alguma coisa sobre o neutralismo ou os franceses?
- No primeiro mosteiro, não, mas no segundo falei com o abade e insisti com
energia em estar com ele a sós. Era homem bem mais jovem que o primeiro abade,
por volta dos cinqüenta anos. Mostrou-se muito reservado e educado, tomamos chá
juntos e ele me interrogou bastante tempo sobre meus próprios antecedentes no
caminho do esclarecimento. Estava preparado para examinar a influência da
expansão comunista sobre o futuro do budismo, afirmando que quem aceita as
Quatro Verdades Nobres deve encarar o marxismo como fenômeno transitório, que
seria primeiramente transfundido e, depois, transformado pelos ensinamentos do
Senhor Buda. Admitia a existência de "monges jovens e perturbados" no sistema
monástico, mas afirmou que também eles seriam gradualmente modificados pela
experiência e meditação. Quando lhe falei sobre os suicídios, ele me corrigiu. O
suicídio era idéia repugnante para o budismo, mas citou o Sutra do Lótus, que
conclama todos os budistas ao sacrifício, em caso de ameaça à sua religião.
Perguntei se havia possíveis mártires em seu pagode e respondeu que tinham uma
monja muito idosa pronta a se imolar, mas ele a aconselhara contra isso. Depois,
perguntei se achava desejável o neutralismo e ele afirmou que isso estava implícito
nos ensinamentos do Gautama, porquanto todas as soluções físicas para males
humanos eram tão transitórias quanto o próprio homem.
- Viu alguma máquina de propaganda nesse pagode?
- Não me mostraram, Senhor. Tive a impressão de que o próprio abade era um
homem forte, tentando manter a sua autonomia. Também dessa vez foi muito difícil,
para mim, chegar a qualquer conclusão. Finalmente, perguntei se ele podia reco-
mendar qualquer mosteiro onde eu pudesse passar vinte e quatro horas nos
exercícios com os monges e tentando recolher, ao menos, algum proveito espiritual
da visita. Deu-me o nome de um mosteiro e uma carta para o abade. Foi onde
passei o resto do tempo, e acho que ali consegui alguma coisa... Havia um francês,
que afirmou ter lutado em Dienbienphu e que depois se desiludira com o Ocidente e
de tudo quanto ele significava. De acordo com sua narrativa, adotara o budismo por
convicção espiritual e passara nove anos no mesmo pagode.
- Acha que ele é um agente?
- Talvez. Dormi no quarto dele, sentei-me em sua companhia durante a leitura
das Escrituras, e ele as traduziu para mim. Oramos juntos e conversamos por muito
tempo, andando pelo jardim do pagode. O homem se mostrou muito prático e culto,
e me deu um testemunho ocular dos últimos dias de Dienbienphu, contando a sua
fuga, depois de passar três meses como prisioneiro de guerra. Não era um
intelectual, mas certamente demonstrava compreensão e simpatia pelas atitudes
fundamentais do budismo. Falou de um renascimento budista na Ásia, mas quando
sugeri que isso tinha base política, rejeitou imediatamente a idéia.
Afirmou que esse renascimento era fenômeno espiritual baseado na necessidade de
paz para todos os homens, e na declaração do Sutra Páli, "O próprio Senhor Buda
alcançou a paz e prega a paz para toda a humanidade". Quando falei nas
demonstrações e desordens públicas, classificou-as de "demonstrações
espontâneas de povo ainda imperfeito, mas que busca o caminho perfeito". Os atos
do Governo eram agressivos, brutais e imprudentes, além de qualquer descrição!
Falei da subversão nos pagodes e fiquei surpreso ao vê-lo concordar, mas eliminou
a questão como desprovida de importância, pois a perfeição do caminho viria
finalmente a eliminar a imperfeição dos que marchavam por ele. O Presidente Cung
foi por ele chamado de "descendente dos antigos cristãos militantes, que chegavam
com a cruz na mão e a bolsa de dinheiro na outra mão".
- Ponto de vista muito cômodo.
- Cômodo demais para o homem que o exprimia!
Inclinou-se para frente, animado e com gestos expressivos, de modo que
acabou derrubando o copo de vinho na mesa, sendo forçado a enxugar enquanto
falava.
- Foi quando a nota falsa começou a aparecer. O próprio homem, chamado
Armand Leroux, mostrava-se por demais veemente, por demais francês para parecer
apóstolo convincente do quietismo. Finalmente, tentei apanhá-la em perguntas
específicas. Os budistas tinham reclamações legítimas?... Tinham. Como poderiam
ser sanadas?... Somente por Governo budista, com representação proporcional dos
católicos minoritários. Como poderia ser instalado um Governo assim?... Acabando
com a guerra, neutralizando o Vietnam do Sul e fazendo acordo de coexistência
pacífica com o Norte. Como poderia esse acordo funcionar? Numa base de interesse
econômico mútuo e, certamente, graças à influência do budismo como fermento. E
depois disso, talvez porque se tivesse adiantado demais, ou talvez porque a
indiscrição era bem calculada, tirou o ás da manga e disse... Não, espere um
instante, Sr.! Eu tomei nota, porque parecia muito importante.
Remexeu os bolsos e finalmente extraiu deles um envelope amarrotado, no qual
leu:
- “... O que os americanos não compreendem é que o Vietnam do Norte e do Sul
têm um interesse comum, o medo histórico e ódio aos que já foram seus
conquistadores, os chineses. Mesmo que Ho Chi Minh seja armado e treinado pelos
chineses, não gosta mais deles do que Phung Van Cung. É por isso que ele não
ampliará a guerra, pois nesse caso os chineses tomarão o Norte e o utilizarão como
corredor militar. Desse modo, mesmo que todo o Vietnam fosse comunista, ainda
assim estaria unido contra a China. É nisso que os americanos eram imbecis.
Gastam dólares e sangue para estabelecer um tampão contra a China, quando
podem tê-lo de graça, se fizerem um acordo com o marxismo e amizade com o
budismo na Ásia. É nisso que Cung se mostra reacionário, um católico que quer
preservar a Igreja às custas da nação. Mas se os americanos o forçarem bastante,
poderá muito bem fazer acordo com Ho Chi Minh e, nesse caso, teremos o mesmo
resultado mediante processo ligeiramente diverso...”.
- Foi tudo quanto disse, George?
- Foi. Pareceu compreender que falara o suficiente e voltou de propósito à
questão da meditação como caminho para o Nirvana... Meditei muito, de minha
parte, e resolvi que era hora de voltar e lhe contar o ocorrido.
É muita coisa para pensar, George. Pode me preparar um relatório?
- Posso, mas terá de ser incompleto. Depois de o fazer, gostaria de voltar aos
pagodes e descobrir mais coisas.
- É bom que o faça. Agora, tente resumir para mim. Em primeiro lugar, existe
subversão no Sangha?
- Sim, em medida desconhecida ainda.
- Portanto, o Presidente Cung está certo nesse ponto. Depois, há indicação de
panbudismo?
- Indicação, mas não prova.
- Há sinais de forte opinião neutralista?
- Sinais fortíssimos.
- Outro ponto para o Presidente Cung! Você diria que existe também a
convicção de que o budismo chegará a entendimento com o marxismo e acabará por
modificá-lo?
- Essa convicção, a meu ver, é forte e generalizada, ainda mais porque os
vietcongs nunca efetuam qualquer ataque aos pagodes ou às pessoas dos monges.
Ao contrário, muitas vezes fazem orações e oferendas nas aldeias.
- E a pergunta final: qual é sua reação pessoal a esse primeiro contato com o
Mahayana?
Sua resposta tardou um pouco, mas foi bem definida:
- Senti confusão, desagrado e desconfiança, mas como estava habituado a uma
variação refinada e intelectual, tenho de desconfiar de mim, também.
- Isso acontece a todos nós, George. O problema é que todos os outros querem
que tenhamos certeza de nós próprios, como se carregássemos a pedra filosofal no
bolso!
Encarou-me com movimento brusco da cabeça e seus olhos inteligentes
examinaram minha expressão. Havia ansiedade neles e, talvez, uma ponta de medo.
- Fala como se tivesse passado maus momentos.
- Muito maus, George, e a coisa vai piorar.
Narrei-lhe rapidamente os acontecimentos dos últimos dois dias a falei de
minhas próprias incertezas e aflições. George ouviu em silêncio e, quando terminei,
continuou sentado por longos momentos, traçando desenhos intrincados com o
garfo na toalha manchada. Finalmente, disse:
- Duas coisas parecem claras. Vai-lhe custar muito mais ser forte na paciência
do que decisivo na ação. Há tantos pontos de vista, e tanta informação contraditória,
que simplesmente não pode deixar que o apressem, seja qual for a crise que surja...
O segundo problema é o nosso próprio estadismo. Por estarmos comprometidos
com uma ação militar, comprometemo-nos pelo mesmo fato com soluções a curto
prazo, que historicamente não podem ser as corretas. Apoiar Cung ou preparar um
golpe para conseguir outro governo! Satisfazer os budistas e manter os católicos
satisfeitos, também. Expulsar os vietcongs para além da fronteira ao norte e fechar
os limites do Laos e Cambodja! Mas se fizermos tudo isso, não teremos resolvido
coisa alguma. Não se podem trancar idéias como um espírito dentro de garrafa. Não
se pode lutar com os vietcongs e desprezar a China, o gigante milenar com
população em crescimento explosivo e, que, pela primeira vez na História, tem um
objetivo unificado. Como vamos conviver com ela, nos próximos cem anos? Como
convive o resto da Ásia com ela? E os budistas? Havendo ou não subversão, eles
existem, como o islamismo, o catolicismo, o hinduísmo. Também não existem
soluções a curto prazo nesse terreno... Pode-se impedir ou fazer abortar uma
revolução, mas não se pode deter o processo revolucionário que a fomenta... De um
ponto de vista, podemos rir de todos esses cabeças-raspadas no pagode, que
conversam em torno de um mimeógrafo barato. De outro, podemos chamá-los
suficientemente perigosos para trancá-los na prisão. Mas eles existem! Existem
como homens, como sociedade e como sintoma da modificação inevitável. Se
dissermos que desejamos modificar a modificação, então teremos uma causa... tão
boa quanto a da China, da Rússia ou de Ho Chi Minh. Mas se dissermos, como
parecemos às vezes dizer que desejamos determinar a natureza da modificação e
garantir sua finalidade, nesse caso estaremos por fora, e condenados a fracasso
bem caro... Desculpe, mas, estou cansado e meio descontrolado. Mas preocupo-me
com tudo isso, e com o Sr., também.
Senti gratidão e piedade profundas por sua juventude e idealismo, mas como
poderia dizer-lhe a verdade amarga de que a modificação não era apenas o
desfecho do crescimento natural, mas também o resultado da luta, quer os cristãos a
definissem como batalha entre o bem e o mal, quer os comunistas a chamassem
dialética marxista, ou os budistas a apresentassem na figura do Gautama
subjugando Mara sob a palma da mão? Como poderia dizer-lhe que me havia
empenhado profundamente na ação e nas soluções de curto prazo?...
Mandei-o deitar-se e fiquei acordado até tarde, examinando meus documentos.
Estava ainda fazendo isso quando Anne Beldon chegou, de volta da festa, de modo
que invadimos a cozinha, preparamos café e falamos sobre banalidades até a meia-
noite.
Capítulo sete
NA MANHÃ SEGUINTE houve um atentado contra minha vida. Foi coisa mal
planejada e executada desajeitadamente, mas quase conseguiam matar-me.
Aconteceu poucos minutos depois das nove da manhã, quando Bill Slavich dirigia,
levando-me de casa para a Embaixada. Quando passávamos pela última esquina, a
fim de entrar na rua Ham Nghi, um volume redondo, embrulhado em jornais, foi
atirado à frente do carro. Slavich desviou-se para evitá-lo e, logo em seguida, a
bomba explodiu, apanhando-nos de lado, estilhaçando os vidros das janelas laterais
e mandando-nos de lado pela rua, de modo que batemos num poste e depois, com
grande violência, num caminhão ali estacionado.
Bill Slavich sofreu cortes no rosto e eu me saí com escoriações nas mãos e nos
pulsos, bem como um galo nas têmporas do tamanho de um ovo de pombo. Juntou-
se logo a multidão costumeira, apareceu a polícia que rapidamente me levou para a
Embaixada, e em seguida a coisa terminou como num corte de novela de televisão.
Bill Slavich entrou em conferência com a polícia e Harry Yaffa, enquanto Anne
Beldon se esforçava por me arrumar a fim de que eu pudesse visitar o Ministro de
Relações Exteriores.
Não faço segredo de que estava surpreso e abalado. Veio-me à mente uma
frase de litania que aprendi na infância: "Da morte repentina e imprevista, livra-nos,
Senhor". A morte estivera bem perto e, na verdade, me encontrara despreparado.
Tomei dois copos de uísque, um atrás do outro, e fiquei surpreso ao ver que mal
conseguia segurá-los. No espelho do banheiro meu rosto mostrava-se envelhecido e
pálido. Depois, teve início a química rápida da reação, e me senti ao mesmo tempo
raivoso e radiante, raivoso com quem exigia o risco de nossas vidas e, no entanto,
não demonstrava gratidão por isso, radiante porque iria me apresentar ao Ministério
com as marcas de uma tentativa de assassinato.
Quando me senti pronto para sair, a entrada da Embaixada estava cheia de
jornalistas e fotógrafos. Tratava-se de matéria de primeira página para eles, e meu
desejo era que gostassem dela e me trouxessem proveito, ao mesmo tempo. Harry
Yaffa acrescentara o seu próprio toque teatral, exigindo escolta policial na ida para o
Ministério e na volta de lá, bem como proteção policial dobrada para minha casa e
proximidades da Embaixada. E assim, levando no bolso a minha própria bomba-
relógio, dirigi-me ao Ministério de Relações Exteriores com batedores e escolta
armada!
A entrevista com o Ministro foi breve e tempestuosa. Entreguei-lhe a nota e
esperei enquanto a lia. Disse-me, com raiva, que a aplicação de sanções constituía
interferência indesculpável em questões internas de um Estado soberano, o que era
bem verdade, embora eu não o pudesse admitir. De modo áspero, fiz lembrar que
não poderiam esperar o nosso financiamento de medidas de repressão que nos
antagonizariam com todo o mundo budista. Isso o enraiveceu ainda mais, afirmando
então que não teríamos feito coisa pior, se mandássemos nosso dinheiro
diretamente aos vietcongs. Eu contara com essa tirada, e tirei dela uma vantagem
indecente.
- Se isso é verdade, Sr. Ministro, talvez não fossem os vietcongs que tentaram
matar-me esta manhã!
Mostrou-se indignado com a idéia e se atirou a um desmentido apaixonado:
- Pensamento monstruoso, Sr. Embaixador! Um insulto pessoal, a mim e ao meu
Presidente! Temos divergências e problemas, sim, mas no fundo somos ainda
aliados, em luta com um inimigo comum. Peço-lhe que tire da cabeça idéias tão
horríveis. Dou-lhe minha garantia pessoal de que será feita uma investigação
completa por nosso pessoal de segurança e que não descansaremos enquanto os
responsáveis pelo atentado não forem entregues à justiça!
- Aceito prazerosamente essa garantia, Sr. Ministro, mas desejo lembrar que é o
seu Governo quem dá corpo a suspeitas tão detestáveis. As acusações na
Assembléia Nacional, por exemplo, sua notada ausência no funeral de nossos
fuzileiros, sua própria sugestão de que a nossa atitude favorece os vietcongs...
Como devo interpretar tudo isso, senão como declarações públicas de hostilidade
para comigo e meu país?
Era a conversa cortante comum, de diplomatas insatisfeitos, e certamente em
nada concorria para modificar a verdade da questão. Estávamos como que armados
de cacete e batíamos com ele na cabeça do Governo, de modo que a despeito de
minha vitória verbal, sentia-me pouco orgulhoso de mim mesmo, ao voltar à
Embaixada, naquela manhã ensolarada.
As ruas da cidade estavam cheias de gente. O sol irrompera vigorosamente
depois da noite chuvosa e havia uma atmosfera de animação reconfortante nas
pessoas, como se as mesmas, a despeito de todas as suas aflições, de todo o
conjunto sinistro de tramas e subversão, estivessem decididas a comer, beber e
divertir-se quanto pudessem sob o reinado puritano de Phung Van Cung. Se eu
tivesse morrido naquela manhã, estariam do mesmo modo tratando de suas vidas,
insensíveis e sem pensar em mim. Apenas os cristãos teriam orado por mim, com-
prometidos como estavam a uma crença em minha fraternidade com eles na
Comunhão de Santos. Quanto aos demais, minha lembrança estaria sepultada
dentro de uma hora, sob a vasta indiferença da Ásia. Era um pensamento sombrio,
que me trouxe logo de volta à consideração proposta por George Groton na noite da
véspera - a que fim se destinava todo nosso dispêndio de dinheiro, diplomacia,
trabalho e vidas humanas? Mais uma vez, lembrei-me do que Muso Soseki dissera:
"Você é chamado para aconselhar e orientar e, assim, na verdade, pode ajudar a
propor os objetivos que mais tarde lhe são propostos". Eu já vira isso acontecer, mas
em tudo que propusera me limitara ao imediato e transitório. Não estivera ainda
preparado para examinar por minha conta os pontos de vista em conflito com a
corrente política dos Estados Unidos. No entanto, certamente isso estava implícito
em minha missão e se não me dedicasse à questão, a marcha rápida e violenta dos
acontecimentos me encontraria despreparado.
Chegando à Embaixada, achei-a-a em intensa fermentação. A mesa telefônica
estava congestionada por telefonemas das outras Embaixadas, pedindo detalhes
sobre a tentativa de assassinato. A imprensa continuava pedindo mais comentários
e pontos interessantes para registrar em seus despachos e havia entrada e saída
constantes de tipos estranhos, que conferenciavam com Harry Yaffa e seus
auxiliares. A agitação estava a tal altura que mandei evacuar o lugar tão depressa
quanto possível e voltar à ordem normal de trabalho. Convoquei uma reunião dos
auxiliares principais para as duas da tarde e fui tratar de meus despachos diários.
As notícias vindas da ONU eram bem interessantes. Fora derrotada uma
manobra russa no sentido de enviar ao Vietnam do Sul a antiga Comissão de
Controle da Indochina. Ao invés de adotar essa medida, o Presidente da Assembléia
daquela organização mundial designara o Afeganistão, Brasil, Ceilão, Costa Rica,
Dahomey, Marrocos e Nepal como países que efetuariam investigações sobre a
questão budista. Os membros da Comissão deveriam chegar dentro de uma
semana, e antevi com certo humor sombrio os pensamentos do cavalheiro vindo do
Dahomey, tentando compreender as sutilezas asiáticas e o homem do Ceilão
tentando ser imparcial quanto aos erros de seus correligionários. No entanto, a
Comissão era problema de Cung, e eu sentia prazer em pensar que lhe caberia lidar
com ela.
O telegrama de Festhammer era curto, mas trazia um ferrão na cauda.
Capítulo oito
- E por que não? Acredito que Manson esteja tão preocupado com isso quanto
eu.
Fiz sinal a Manson, que veio juntar-se a nós, e lhe falei de meu pedido e da
objeção apresentada pelo escritor. Manson disse, de modo muito simpático:
- A questão é de nosso mútuo interesse e a resposta importante para todos nós.
- Está certo - disse o escritor. - E qual é a pergunta?
- Cung pretende, agora ou no futuro, ou em qualquer circunstância, entrar em
relações com o Vietnam do Norte?
Houve uma pausa, em seguida Manson deu a sua aprovação, mas acrescentou
alguma coisa:
- Talvez seja melhor o Sr. explicar o sentido da pergunta, Sr. Amberley.
- E o que depende da resposta, também - disse o escritor. - Estou perfeitamente
pronto a aceitar a responsabilidade por um relatório preciso, mas as conseqüências
já são outra coisa, de modo que desejo sua sinceridade no assunto.
O homem era por demais inteligente e bem informado para ser iludido por uma
meia-verdade, de modo que jogando com a opinião de Manson sobre seu
convidado, contei-lhe a coisa toda, até o ponto de minha conversa no coquetel da
Embaixada inglesa. Manson se mostrou bom aliado, dizendo que também ele ouvira
o mesmo tipo de conversa e gostaria de obter alguma confirmação. O novelista
ouviu em silêncio, e depois pensou na proposta por alguns momentos. Finalmente,
deu-nos uma resposta reservada:
- Compreendo de que precisam e porque precisam. Tenho deveres junto a meu
governo e uma atitude amistosa para com o da América. Mas parece que se eu
conseguir uma certa resposta, ela poderia precipitar uma certa ação. Estou certo?
- Sim.
- E se eu deliberadamente alterasse a resposta?
- Não acredito que o fizesse.
- Ou se a apresentasse de modo dirigido?
- Acho que o Sr. é inteligente demais para fazer isso. De qualquer modo,
nenhuma ação poderia ser empreendida na base de testemunho isolado, prestado
por fonte não-americana. A CIA verificaria seu relatório junto a seus próprios
informantes.
- Neste caso, apresentarei sua pergunta a Cung e tentarei ser claro na resposta.
Até as cinco da tarde de amanhã lhe mandarei uma transcrição escrita da entrevista.
- Obrigado.
Ele deu de ombros, tomou um gole de brandy e teve um sorriso malévolo.
- Quando era mais mocho, acreditava no desprendimento total do artista. Agora,
quando já sou bastante conhecido e independente para viver sem compromissos,
vejo-me todos os dias envolvido numa decisão moral. Esta é bem difícil, e se errar
não poderei perdoar-me facilmente.
- Ainda assim, decidiu com bastante rapidez.
- Tenho certas vantagens, Embaixador. Sei o que as palavras significam e as
respeito. Meu oficio é solitário. Olho o mundo com meus olhos, assumo meus riscos
e pago por minhas faltas. Compreendo o que quer dizer condenação e há muito
tempo aprendi que nunca se pode tomar de empréstimo a absolvição alheia.
Na manhã seguinte, os cambodianos estavam à minha porta, com irados
protestos e exigências de reparações. Uma unidade vietcong fora perseguida além
da fronteira, pela infantaria e por helicópteros, uma aldeia cambodiana fora destruída
por foguetes e havia vários mortos e feridos. Prometi investigar o incidente, e depois
de quarenta minutos de conversações enérgicas eles se foram.
Tratava-se de mais um dos amargos paradoxos daquela guerra corrosiva. Na
verdade, a neutralidade cambodiana fora violada, mas também na verdade os
cambodianos quebravam a sua neutralidade todos os dias, permitindo a passagem
de armas e homens pelo rio Mekong e oferecendo abrigo aos incursores que
atravessavam aquela fronteira à vontade. As verdadeiras vítimas eram os habitantes
de aldeias e povoados, já sepultados e cujo epitáfio único seria uma pilha de
recortes de jornal e correspondência diplomática. No entanto, numa pequena aldeia
tinham sido plantados, mais uma vez, os dentes do dragão, e a colheita cresceria,
inevitavelmente, transformando-se depois em homens armados...
Ao meio-dia, Harry Yaffa chegou com dois relatórios. Um deles vinha da CIA em
Hong Kong, onde um vietnamita, ex-funcionário do palácio presidencial e conhecido
defensor da "terceira farsa" estivera algum tempo sob observação. Fizera finalmente
contato com funcionário do Banco da China e logo em seguida estabelecera com o
Banco Francês de Comércio um crédito de meio milhão de libras esterlinas. Dois
dias depois, apresentara a um correspondente americano sua descrição bastante
colorida de intrigas no Palácio e dissensões no Alto Comando, oferecendo-lhe
quinze mil dólares americanos para que lhe tirasse a esposa e a família de Saigon
dentro de seis semanas.
O segundo relatório vinha de Vientiane, no Laos, onde um funcionário subalterno
do Ministério de Relações Exteriores do Vietnam do Sul se encontrara com
conhecido agente norte-vietnamita. Não havia informações sobre o assunto de sua
conversa, mas, duas horas depois, o agente partira da capital, em avião fretado a
um contrabandista francês de ópio.
Na complexa configuração de tramas e contragolpes, os dois incidentes
poderiam ter uma dúzia de interpretações diferentes, mas Yaffa estava convencido
de que se entrosavam com as nossas opiniões de que havia uma manobra para
dividir o Exército, formando e financiando uma terceira farsa que mais tarde seria
compelida a juntar-se aos vietcongs, e que Cung estava envolvido em negociações
experimentais, pelo menos, com o Governo de Hanói.
Quando falei com Yaffa sobre minha conversa no jantar da véspera, ele se
mostrou exultante e me pediu que o chamasse assim que o relatório fosse
apresentado. O romancista foi tão rápido quanto eu esperara, e exatamente às cinco
da tarde se apresentou em meu gabinete com cópia de sua entrevista com o
Presidente Cung. O original, disse sorrindo, fora entregue ao embaixador
australiano, de modo que as cortesias internacionais pudessem ser respeitadas.
Quando lhe pedi que esperasse e me fizesse alguns comentários, depois de eu ter
lido o documento, recusou-se cortesmente. Prometera registrar um diálogo, seu
relatório continha um comentário e resumo, e não queria fazer mais do que isso. Era
um ponto de vista bastante razoável, e eu agradeci e deixei-o partir. Invejava sua
independência e direito a limitar suas próprias responsabilidades, de modo tão
preciso. Já o meu encargo era quase ilimitado, mas eu não tinha direito algum a me
eximir dele.
Verifiquei que a transcrição era um documento admirável, simples, conciso e
rigorosamente limitado aos termos de referência. Reproduzo-o nesta crônica,
quando mais não seja para mostrar a clareza com que a questão final se apresentou
para mim.
P - Está claro que a questão budista ainda não se acha resolvida. Espera mais
alguma demonstração e atos de martírio, da parte dos budistas?
R - Se os houver, saberemos como agir. Mas a atitude americana conduz a
esse tipo de fanatismo... Os americanos estão destruindo a psicologia de nosso
povo. Eles não nos compreendem, mas nós compreendemos nossa gente, sabemos
como pensa e reage. Os americanos falam de democracia, mas a democracia de
que falam não serve para este país.
P - Que forma de governo acha melhor para o Vietnam do Sul?
R - A que temos agora. Uma autoridade central forte, que possa sustentar a
guerra e desenvolver o país... Se isso é ditadura, nesse caso precisamos de
ditadura, mas estamos lançando os alicerces para a democracia no campo... A
cidade [Saigon] nada significa para nós. Se for preciso, nós a abandonaremos de
todo e a organizaremos em povoados estratégicos, como fizemos no interior. O povo
na cidade está descontente, estragado, intoxicado pelo individualismo ocidental.
Nossa gente precisa desenvolver-se dentro da estrutura da família e da coletividade,
e das limitações de sua história, economia e ordem social. a isto o que entendemos
por personalismo.
P - Ainda aceitando as limitações naturais impostas pela história e pela ordem
social, não estarão sendo impostas limitações antinaturais e artificiais, como as
medidas repressivas contra os budistas e estudantes, por exemplo?
R - Decerto impomos limitações. Os monges budistas não querem lutar na
guerra, de modo que não devem ter o direito de interferir em seu curso. O Sangha
constitui apenas uma parte pequena da nação. Por que deveria ter direito a de-
terminar todo o curso de nossa história? Os estudantes, rapazes e massas,
deveriam estar prontos a participar em nossa luta contra os vietcongs. Por que
podem pleitear o direito a perturbá-la com demonstrações de desobediência? A
atitude americana fomenta essas coisas. Se quisermos vencer, o povo tem de ser
desintoxicado.
P - É óbvio para todos que, embora os soldados americanos estejam morrendo
nessa guerra, embora os vietnamitas estejam lutando com dinheiro e armas
americanos, existe agora hostilidade aberta entre o regime e os Estados Unidos..
Que medidas podem, ou devem, ser tomadas para sanar esse rompimento?
R - As medidas são claras. Que os americanos nos dêem armas, dinheiro,
helicópteros e transportes militares, e nós próprios continuaremos a guerra. A guerra
é nossa, não deles. Sou eu quem planeja a estratégia, o responsável pela
construção de oito mil povoados estratégicos. No entanto, todas as vezes que quero
usar um helicóptero, tenho de pedir permissão aos americanos.
P - O Sr. quer que os americanos saiam do país?
R - Exatamente.
P - Se o Sr. tivesse tudo quanto quer, armas, dinheiro, transportes e os
americanos fora do país, quanto tempo seria preciso para ganhar a guerra?
R - Dois ou três anos, no máximo.
P - E se os americanos ficassem, de quanto tempo precisaria?
R - Só Deus sabe.
P - Quando tiver ganho a guerra, que tipo de relação o Sr. vê com o Vietnam do
Norte?
R [em tom raivoso] - Nesta própria sala, funcionários americanos me acusaram
de manter relações com Ho Chu Minh. Eu lhes disse que os americanos fizeram
tudo quanto era possível para me forçar a juntar-me com ele, mas continuei fiel a
meus objetivos e ao país.
[Isto foi acompanhado por outra longa dissertação contra os métodos e doutrinas
dos Estados Unidos.]
P - Vejamos a coisa de outro modo. Como estrategista principal da campanha, o
Sr. deve estar interessado no que se passa no Norte, ainda que apenas do ponto de
vista das informações militares.
R - Naturalmente.
P - Como vê a situação de Ho Chi Minh e do Vietnam do Norte?
R - Há três grupos principais no Partido Comunista do Norte. Existe o Exército,
que depende da China quanto a armas, abastecimentos e treinamento. Há os que
seguem a linha branda de Moscou, mas não têm grande importância. Existe outro
grupo formado pelos que se tornaram comunistas por motivos nacionalistas, antes e
depois de Dienbienphu.
P - É esse evidentemente o grupo que mais lhe interessa.
R - É lógico.
P - Já conseguiu penetrar em suas fileiras? Tem alguma relação com eles, de
um ponto de vista de informações militares ou qualquer outro?
R - Sim, mas não fui eu quem tomou a iniciativa.
P - Suponhamos que os americanos não lhe dêem o que o Sr. quer, continuem
com as sanções e sua oposição declarada à sua política. Que fará, nesse caso?
R - Nesse caso, terei de tomar as medidas necessárias para dar um fim à longa
agonia de meu país.
P - Tais medidas acarretariam um acordo com Ho Chi Minh?
R - A política é a arte do possível. Tenho de examinar todas as possibilidades, e
é o que estou fazendo agora.
COMENTÁRIO - Nessa altura o Presidente Cung mudou abruptamente de
assunto e passou a outra longa dissertação sobre o personalismo, erros e
maquinações dos americanos. Consegui fazer mais uma pergunta antes de me
retirar.
P - Que pensa sobre o Sr. Maxwell Amberley?
R - Não há sinal algum de moralidade no que ele está fazendo. Pelo menos,
com seu antecessor existia um ponto de vista moral. Nesse homem, não existe
moralidade alguma, ou qualquer sinal de pensamento religioso.
RESUMO - Minha impressão final sobre a entrevista é de que Cung desejou me
usar como disseminador de seu forte sentimento anti-americano. Deixou claro,
também, que a questão de possíveis relações com o Norte era uma ameaça não
muito velada do que poderia acontecer, se o regime não conseguisse o que quer, a
neutralização do Vietnam do Sul por um acordo com o Norte, no qual se diria:
"Faremos os americanos deixarem o país se vocês terminarem a guerra". Não tenho
meios de julgar se Cung realmente julga possível um acordo assim, ou se poderia
sobreviver ao mesmo, caso se efetivasse...
Chamei Harry Yaffa ao meu gabinete e lhe dei o documento para examinar. Leu
em silêncio, depois depositou-o em minha mesa com um gesto expressivo.
- Acho que isso resolve o caso! É bem claro e confere com toda a informação de
que dispomos. Temos os generais em revolta, um possível motim no Exército e uma
clara ameaça de Cung, de que jogará sozinho no setor da esquerda... Acho que
devemos agir, e bem depressa.
- Concordo que talvez tenhamos de fazer isso, mas é Washington que tem de
resolver o caso.
- Vai mandar relatório?
- Dentro de quarenta e oito horas. Mas preciso fazer duas coisas antes.
- Quais são?
- Em primeiro lugar, quero que esse documento circule por todas as seções da
Embaixada e também passe por Tolliver e seu pessoal. Depois, quero uma
conferência de todo o pessoal aqui, amanhã à noite. Enquanto isso, vou visitar Cung
e mostrar-lhe essa informação.
- Acha que isso é prudente?
- É necessário.
Ele encolheu os ombros, em sinal de dúvida.
- Nesse caso, será melhor protegermos o homem que nos deu o documento.
Devemos tirá-lo do país bem depressa.
- Deixarei isso por sua conta, Sr. Yaffa.
- Vou também avisar aos generais, caso Cung resolva apertar o país de repente.
As cabeças deles estão em jogo, como sabe.
- Sei. Faça o que for preciso.
Depois que ele saiu, fiquei pensando nas palavras do talismã de jade e vi a luz
tomar-se rapidamente escuridão.
Trabalhei até tarde naquela noite, e dormi mal em seguida. Sonhei que estava
sentado, nu e sozinho, num espaço aberto tão liso quanto uma mesa de bilhar.
Havia luz, mas não conseguia ver de onde provinha. Contra essa luz, negras e
distantes, estavam formas retangulares altas, como edifícios de apartamentos.
Enquanto observava, ouvi uma música leve de palheta, como o som de samisens ou
biwas japoneses e enquanto essa música era tocada, as formas começaram a dan-
çar, inclinando-se, girando ora num canto, ora noutro. A música aumentou, as
formas que dançavam chegaram perto de mim, até que num momento de clímax
insuportável, rodearam-me, fechando-se, então, uma com outra, e me encerrando
numa peça sem telhado, de modo que ainda podia ver a luz lá em cima. Reinava
então o silêncio; o silêncio, a luz e eu, sentado de pernas cruzadas no chão e
olhando a luz lá em cima. Depois, por movimentos minúsculos, as paredes come-
çaram a avançar. A princípio, pensei que era ilusão causada pelo silêncio e tensão
de contemplação. Olhei a parede à frente. Estava imóvel. Olhei para o lado, e a
parede de trás estava mais perto. Enquanto observava, as da frente, da direita e da
esquerda adiantaram-se em minha direção. Olhei para cima, e a luz estava menor. O
terror se apoderou de mim e fiquei hirto, com os olhos fixos na luz que diminuía. As
paredes se aproximaram mais, a luz se reduziu pouco a pouco, até que senti a
primeira pressão nas costas, cotovelos e joelhos. A pressão aumentou, e eu sentia
já a carne e músculos sofrendo. A luz era cada vez mais minguada e repentinamente
gritei de pavor, e acordei sedento e suando, no quarto iluminado pelo luar. Olhei o
relógio - eram quatro da manhã. O pavor do pesadelo ainda me abalava; vesti-me
com roupas limpas e trabalhei no escritório até a hora do café.
Não era preciso um José para interpretar meus sonhos, pois eu sabia
exatamente o que significavam. Eu, juiz, júri, promotor e advogado de defesa, estava
prestes a ser julgado. Bem depressa as provas seriam apresentadas, os debates
encerrados e emitido o veredicto para Maxwell Amberley, enviado extraordinário.
Despido da roupagem de seu cargo, ele se poria de pé, em tribunal aberto, para
ouvir o julgamento imparcial, e depois disso viria a sentença - confinamento perpétuo
na solidão do eu secreto... Naturalmente, tudo aquilo era bobagem, que se
desvaneceria com o primeiro raio de sol e a primeira xícara de café. Maxwell Gordon
Amberley não estava em julgamento - era o homem sentado no trono dos
poderosos, tendo nas mãos a vida, a morte e o domínio dos outros. Seria justo, é
claro, e mesmo misericordioso, mas era homem encarregado de decidir, sem se
acovardar por medo ou inclinar-se ao favor. Seria magnânimo, mas prudente, faria
admoestações, mas sem rancor. Grandes questões lhe tinham sido confiadas, e ele
se comportaria magnificamente, como árbitro de todos os ontem e arquiteto do
glorioso amanhã. Amém!... E mais uma xícara de café, Anue, por favor. O dia vai ser
dos mais trabalhosos!
O encontro com Cung estava marcado para as onze da manhã, e às nove e
meia chegou o massagista. Estive deitado por uma hora sob suas mãos macias e
fortes, enquanto a tensão se escoava de meus músculos e eu punha em ordem os
pensamentos para aquela conferência final. Era, mesmo, a final, e eu sabia disso. O
tempo se esgotava para nós ambos, a roleta já girava e o crupiê anunciava, com sua
voz de papagaio: "Rien ne va plus!" A bolinha passava do vermelho para o preto,
voltava ao vermelho, enquanto Cung e eu estávamos ambos apostando contra a
banca e um contra o outro.
Uma coisa eu determinara: seria absolutamente sincero. Não usaria a
linguagem reservada do ofício, e diria toda a verdade que conhecia. Reconheceria
meus erros e enganos, confessaria, onde a confissão se justificasse, minha
ignorância e incapacidade. E chegado o momento de agir, não me furtaria a isso,
também... Um grande hurra para a minha retidão puritana! Só uma coisa eu não
podia admitir: minhas apostas estavam na mesa, mas eu era também a banca, e a
banca tinha de ganhar, senão tudo, pelo menos na percentagem. Mas que
desejavam os senhores, cavalheiros e apostadores? Vocês expulsaram os
franceses, os japonêses faliram e o jogo chinês não lhes agrada... Eu era o único
banqueiro da cidade! Minha pele estava oleada, os músculos bem flexionados, o
espírito estava claro e eu esquecera os pesadelos. Nessa vacuidade corajosa, parti
para o Palácio.
Cung me recebeu com chá verde e cortesia indiferente. Desta vez, não teve
qualquer preâmbulo, mas desafiou-me abertamente:
- Tem alguma coisa a me dizer, Sr. Embaixador? Estou pronto a ouvir.
O meu prólogo estava bem preparado e o recitei com tanta simplicidade e calma
quanto possível.
- Nossa última conversa, Sr. Presidente, terminou num impasse. Agora
chegamos, os dois, a uma crise. Quero encerrar a crise, se puder, e farei todos os
esforços possíveis para isso. Na semana passada, visitei as frentes de batalha e vi,
com os meus olhos, o quanto o Sr. realizou por este país. Reconheço
espontaneamente as suas realizações e as admiro muito. Admiro também o Sr.,
embora tenhamos tido divergências. Respeito a sua concentração de propósitos e a
sua integridade pessoal. Reconheço os erros de nossa política e admito minha
miopia em muitos pontos. Por outro lado, espero que reconheça as dificuldades e
problemas de nossa posição neste país, onde podemos orientar mas não podemos
lutar, onde devemos pagar mas não controlar, onde não temos uma voz em seu
Governo mas ainda assim temos de partilhar a culpa pelos seus erros. Espero estar
sendo claro, Sr. Presidente.
- Admiràvelmente claro, Sr. Embaixador. Por favor, prossiga.
- Reconhecer todas essas coisas, no entanto, não modifica um só ponto de
nossa situação ou da sua. Deixe-me mostrar-lhe a forma real das coisas, Sr.
Presidente. Os seus generais mais graduados estão em revolta e planejando
derrubá-lo. O seu Exército, ou pelo menos uma parte dele, está à beira do motim. Os
seus administradores estão prontos a desertar. Os budistas lhe são hostis, os
católicos acham-se divididos entre sua fidelidade a Roma e suas esperanças no Sr.
como libertador nacional. O Sr. não conseguiu atrair o povo comum, quer para seus
objetivos, quer para sua própria pessoa. O Sr. nos insultou e afastou, a nós que
somos seus amigos, e ainda assim não quer fazer qualquer concessão, um gesto
sequer, no sentido de uma recomposição. Mais do que isso, sabendo-se isolado, o
Sr. faz ameaças, ameaças repetidas, Sr. Presidente, de que embarcará noutra
aventura perigosa: um pacto com Ho Chi Minh, no qual espera conseguir uma
segurança que não pôde obter pelas armas, diplomacia ou simples fidelidade! Venho
aqui hoje para lhe dizer que estamos quase no fim dessa estrada onde marchamos
juntos. Ainda há tempo para voltar e tomar outro caminho, mas se o Sr. se recusar a
isso, marchará sozinho - e não há grande garantia de que possa sobreviver!
A seu favor, diga-se que recebeu muito calmamente a advertência. Esteve
sentado bastante tempo, silencioso, de olhos cobertos, encarando as costas de suas
mãos manicuradas. Quando falou, foi no estilo seco do conferencista, dedicado à
persuasão da lógica pura.
- Sr. Embaixador, aprecio a fraqueza de suas palavras iniciais, e acredito na
sinceridade de seus cumprimentos e intenções. Por isso, vou tentar ser franco com o
Sr. Fala em revoltas, tramas e dissensões. Sei que existem. Conheço melhor do que
o Sr. as pessoas envolvidas nelas. Mas, olhe em derredor! Quem está governando
aqui? Sou eu! Não é com facilidade, reconheço! Não é sem ansiedade, mas estou
governando e nas zonas em luta, que ordens dirigem o curso da campanha? As
minhas! Reconhecerá isso, acredito.
- Reconheço, mas existem...
Ergueu a mão para me interromper.
- Não, por favor, espere! O Sr. diz estar convencido de minha sinceridade e
concentração de propósitos.Pode dizer o mesmo quanto ao general Dao, ou ao
general Khiet, ou quanto a meu amigo Tho, no Norte? Que sabe a respeito desses
homens, a não ser o que eles próprios lhe contaram ou o que ouviu de outras
pessoas? São bons soldados, sim! Mas, economistas? Administradores públicos?
Financistas? Educadores? Eu vivi com esses homens, tramei com eles, também,
contra os franceses e japoneses. Eu os conheço! Digo-lhe uma coisa: Giap, no
Norte, vale cinqüenta deles! E o Sr. acha que pode formar um governo com esses
homens!... O Sr. deixaria o general Tolliver fazer o seu próprio trabalho, ou o
elegeria Presidente dos Estados Unidos? Examine as contas bancárias deles e a
minha! Sou mais pobre do que eles, acredite! Não encontrará um só de seus dólares
colado em meus dedos, mas nos deles verá muitos! Que deseja, Sr. Embaixador? O
que quer?
- Uma harmonização das divergências. Entre o senhor e os budistas, entre o Sr.
e os generais! Estou pronto a oferecer-me como mediador, se o Sr. desejar.
- Eu me esforço por fazê-lo ver, Sr. Embaixador, que esse é o processo
ocidental, não o nosso. Eles adorariam vê-lo servir de mediador, mostrar-se-iam
brandos e razoáveis, e durante todo o tempo estariam dizendo: "Cung já está batido.
Teve de chamar os americanos para ajudá-lo. Por isso, podemos pedir-lhe o dedo
hoje, e amanhã lhe tomaremos o braço!"
- Ainda isso poderia ser melhor do que o motim e a rebelião!
- Não!
- Por que não?
- Porque uma concessão cria outra ameaça, e outra em seguida. "É melhor uma
prova de farsa do que um desperdício lento.
- O Sr. poderá não sobreviver a ela.
- Se eu cair, Sr. Embaixador, a América sairá do Vietnam do Sul. Talvez não
imediatamente, mas sairá, mais cedo ou mais tarde! Vocês são estrangeiros, comem
os amigos como se fossem uvas, e depois cospem as cascas porque o gosto é forte
demais.
- Diga-me, então, uma coisa, Sr. Presidente. Que deseja fazer?
- É muito simples. Quero lutar. Quero terminar a guerra e dar paz ao meu povo.
- Estamos aqui para ajudá-lo nisso.
- Isso é o que acreditam. Na verdade, dão-nos uma arma e destroem, em
seguida, nossa vontade de lutar. Intoxicam o povo com idéias ocidentais de
individualismo e uma liberdade para a qual não estamos preparados.
- Então, repito a pergunta: o que deseja?
Dêem-me armas, dinheiro, transportes, aeronaves, e eu terminarei a guerra
ràpidamente. Mas vocês têm de se retirar!
- Não podemos. O Sr. sabe disso. Já estamos por demais comprometidos.
- Então, no fundo, são como os franceses, que precisam manter um pé na sala-
de-estar para provarem que são amigos. Que é isso, senão colonialismo à antiga?
- É outra coisa, Sr. Presidente. Vi armas que lhes demos voltadas contra o seu
próprio povo. Podemos fechar os olhos a isso?
- Mas fecharão os olhos quando os generais vierem me matar com essas
mesmas armas americanas, não é verdade? Ou o Sr. Harry Yaffa estará presente
para puxar o gatilho?
- A discussão não está adiantando, Sr. Presidente. Está deixando os fatos de
lado. O Sr. não pode sobreviver sem fazer concessões, mas não concede, não
negocia, não aceita mediação. Quer nossas armas e dinheiro, e não nos quer... Isso
fecha todas as portas... menos uma.
- E qual é ela?
- O Sr. poderia renunciar ou aceitar um Comitê de Governo tendo-o por
Presidente.
- Renunciar?!
A idéia pareceu causar-lhe verdadeiro espanto.
- Pede a seu Presidente que renuncie porque os republicanos discordam de sua
política?
- A bem dizer, pedimos, sim, de quatro em quatro anos! - Eu não farei! Nunca!
Não me vou retirar como Bao Dai, e ver este país ser destruído!
- Então, todas as portas se fecharam, menos aquela que o Sr. tenta abrir em
segredo: a porta para o Norte!
- Isso lhe dói, Sr. Embaixador?
- Profundamente. Acho uma loucura monstruosa!
- Por que loucura? - disse com um sorriso. - Sobrevivi aos americanos, e
sobreviverei a esses generais venais que tenho. Por que não sobreviveria a uma
aliança com Ho Chi Minh? Pelo menos, falamos a mesma língua.
- É isso o que deseja, por Deus?
- Não. É o que vocês poderão me forçar a aceitar.
Lutei com ele durante mais de uma hora, mas não consegui demovê-lo. Não
daria coisa alguma, não mudaria coisa alguma, não negociaria coisa alguma.
Finalmente, perguntou:
- E que vai fazer agora, Sr. Embaixador?
- Informarei a Washington e aguardarei instruções.
Deu de ombros, andou até a estante e percorreu os títulos dos livros, até
encontrar alquile que procurava. Abriu-o, e depois se voltou sorrindo para mim:
- O Sr. é admirador das coisas japonesas, Sr. Embaixador. Eis algo que talvez
lhe interesse: três grandes homens do Japão se viram diante de um cuco relutante.
Nobunaga disse: "Matarei o cuco, se ele não cantar". Hideyoshi disse: "Convidarei o
cuco a cantar". Iyeyasu disse: "Esperarei até que ele cante... " Esse é o enigma, Sr.
Embaixador. Qual deles estava certo?... E qual deles é o Sr.?
Capítulo nove
... O Sr. Mel Adams afirmou, nos termos mais enérgicos, que uma intervenção
nossa constituiria uma ilegalidade e desmentiria a integridade de nosso propósito
nacional; poderia também nos tornar acessórios e parceiros culposos num
assassinato político. Em teoria, eu poderia afirmar isso com vigor considerável, mas
na dura realidade de um jogo de poder, acredito que não possamos dar-nos ao luxo
do idealismo ou incorrer nos riscos da inação calculada...
Quando terminei a leitura, Anne tinha saído e eu continuava sozinho, o que era
lastimável, pois surgia agora uma pergunta para a defesa. Se eu tivesse a fé de S.
João da Cruz, ou o esclarecimento sereno de Muso Soseki, ter-me-ia saído melhor?
Não havia quem pudesse responder.
Em hora adiantada daquela noite, George Groton regressou da Cambódia.
Estava abatido e pálido, devido a uma intoxicação alimentar, mas vinha com uma
raiva bem saudável de Harry Yaffa que, como afirmava, lhe dera uma pista falsa.
Pnompenh era valhacouto de metade dos agentes profissionais e amadores no
sudeste da Ásia, e, para um recém-chegado como ele, era manifestamente
impossível executar qualquer trabalho de valor em poucos dias. Resolvera
sabiamente gozar o tempo, e passara dois dias passeando em Angkor. Depois
disso, adoecera e ficara preso no hotel durante o resto de sua estada. Não pude
deixar de achar graça em seu desapontamento juvenil e na esperteza de Harry
Yaffa, que se livrara dele com tanta habilidade durante a nova crise budista.
Jantamos juntos, ou melhor, eu jantei, enquanto Groton bebericava chá e comia tor-
radas sem manteiga, desanimadamente. No decorrer do jantar, esbocei para ele os
acontecimentos da semana, as conferências finais e minha recomendação a
Washington. Quando lhe falei sobre Mel Adams e minha conversa com Anne Beldon,
ele disse:
- Sei o que eles sentem, porque é o que sinto também. Não tenho experiência
ou informações para formar juízo seguro, mas instintivamente concordo com o ponto
de vista de Adams. O povo tem direito a determinar o seu futuro, por si mesmo,
ainda que a determinação se verifique pela simples inação. Conheço o outro ponto
de vista, o de que o povo se vê colhido, de qualquer modo, na política de força das
grandes nações, está sujeito todos os dias a campanhas de subversão e doutri-
nação política, e que o século XX chegou para ele, quer goste disso ou não... Mas,
de algum modo, esse tipo de ação, de "armas-sobre-a-mesa" e "vamos-mostrar-a-
essa-gente", parece perigoso, quando mais não seja porque não podemos medir as
conseqüências.
- Então também não aprova o que fiz, George?
Ele corou e respondeu com dificuldade:
- Eu disse que me faltam experiência e conhecimento. Estou exprimindo uma
atitude pessoal.
- Ponha-se em meu lugar, George. O que faria?
- A pergunta não é justa.
- Tem medo dela?
- Não, mas não estou em condições de respondê-la.
- Digamos, então, que você tem a impressão de que estou errado. Que acha que
eu devia ter feito?
Era brutal atormentar um novato desse modo, mas eu precisava
desesperadamente de algum sinal de apoio, ou pelo menos de algum tipo de
absolvição, em troca do afeto que lhe dedicava. Sua recusa teimosa a discutir dentro
das minhas condições me enraivecia. Seguiu-se uma longa pausa, durante a qual
Groton ficou sentado, olhando para a xícara. Finalmente, ergueu a cabeça e me
encarou de frente.
- Quer uma resposta? Vou dar. É em duas partes. Aquilo que precisamos de
aprender, a meu ver, é a arte da inação cautelosa. Acho que ainda não aprendemos,
pois nos mostramos vulneráveis demais à imprensa e à opinião pública. O homem
que salvou Roma dos cartagineses foi chamado Fábio, o Contemporizador. Eu
esperava, e muitos outros também esperavam, que o Sr. se mostrasse forte o
bastante para se mostrar igual a ele... O Sr. resolveu de outro modo e o tempo
poderá mostrar que está certo, e isso me leva à segunda parte da resposta. Sou
funcionário subalterno e minhas opiniões, certas ou erradas, não têm valor, de modo
que não sou obrigado a tomar a decisão dura que Mel Adams tomou. Posso chegar
a isso, algum dia. Quem sabe? Quanto ao presente...
Interrompeu-se, embaraçado, esmagando nos dedos nervosos um pedaço de
torrada.
- Quanto ao presente, George... ? - instiguei.
- Estou comprometido com o Sr. Não, o termo não é esse. O Sr. me deu
confiança, bondade e amizade. Quero retribuir, mas não posso fazê-lo na base de
aprovar tudo o que faz, ou mesmo tudo o que é. Tenho de dizer que em minha
opinião, o Sr. está errado, tremendamente errado! Acho que fez a si mesmo uma
coisa que ainda não pode definir. Mas, por tudo quanto valho, e pode não ser muito,
estou ainda a seu serviço. Não sei se estou falando claro, mas isso é como uma
questão de família, é como levar o pai para a cama quando chegou bêbado da rua, e
depois curar-lhe a ressaca na manhã seguinte!
Era um testemunho singular e canhestro de amizade, e fui suficientemente
indelicado para dizê-lo.
- Para um jovem diplomata, George, está usando linguagem muito pouco
diplomática.
- Porque o Sr. me está forçando a isso!
O amargor de seu tom de voz me chocava, e ele prosseguiu:
- O Sr. pede demais, uma aprovação total de tudo quanto faz, uma fidelidade
sem discussão. Age como um juiz que manda enforcar, e depois espera que os
amigos o louvem. Se quer ser perdoado, está muito bem! Mas, para isso, precisa de
um confessor, não de um colega ou auxiliar!
- Já falou demais, George!
- Demais, ou de menos. Que me fulminem, se eu sei! Não consigo achar as
palavras, Sr.!
- Nesse caso, sugiro que se vá deitar e acalmar.
- Estou de folga. Acho que vou ao Caravelle tomar alguma coisa.
- Faça isso, e amanhã pode ser que perceba que me deve pedir desculpas.
Ele se levantou e ficou de pé, indeciso, lutando com o guardanapo. Parecia tão
jovem e sentido, que meu coração se confrangeu por ele, mas não consegui
controlar minha ira e fazer qualquer gesto reparador. Finalmente, ele disse:
- Apresento agora mesmo as desculpas, Sr. Faltei ao respeito com um superior
no serviço diplomático. Sinto muito.
- Aceito as desculpas e nunca mais falaremos sobre isso.
- Obrigado. Boa noite.
Terminei sozinho o jantar e depois, precisando desesperadamente de
companhia, telefonei para o General Tolliver e atravessei a cidade até sua casa,
para tomar café e jogar bilhar. Dois de seus oficiais estavam lá, e jogamos a
dinheiro, até a meia-noite. Era bom estar de volta entre profissionais e prometi a mim
mesmo jamais deixar sua companhia em favor do território incerto dos sonhadores e
idealistas.
Capítulo dez
"Estando ele ainda falando, eis que chega um tropel de gente; e aquele, que se
chamava Judas, um dos doze, vinha à frente deles; e aproximou-se de Jesus para o
beijar. E Jesus disse-lhe: Judas, com um beijo entregas o Filho do homem?"
Tranquei o livro numa gaveta particular da secretária, para que Anne Beldon não
o pudesse ler. Mais tarde, como medida de segurança, mostrei-o a Harry Yaffa, que
deu de ombros com semblante sombrio.
- Sempre foi esse o problema com Cung, Sr. Embaixador. Ele é um bom homem
que se perdeu, porque sempre acreditou ser Cristo Onipotente.
Imaginei o que George Groton pensaria, mas, naturalmente, estava morto e livre
de qualquer preocupação. Pela primeira vez senti-me bem por estar separado dele.
Nos dias seguintes, conservei-me diligentemente ocupado. Pedi um relatório
diário de todos os departamentos da Embaixada, freqüentei as sessões de consulta
no quartel-general de Tolliver e conferenciei regularmente com Harry Yaffa e seus
ajudantes. Tornei-me livremente acessível à imprensa e mantive Anne Beldon e
suas auxiliares presas às suas mesas de trabalho, com resmas e mais resmas de
papéis. Precisava de toda essa atividade redundante, a fim de ocupar meu espírito,
precisava da companhia de homens práticos, a fim de confirmar minha fé hesitante
no caminho tomado.
Recusava-me a comer sozinho, e fazia os convidados conversarem até tarde, e
quando jantava fora era sempre o último a sair. Antes de deitar, tomava um uísque
duplo e soporíferos, de modo que não tivesse de enfrentar um interrogatório noturno
sobre mim próprio. A despeito de tudo isso, os dias se arrastavam e eu me agitava
na expectativa de um momento decisivo por parte dos generais. Pouco lidei com Mel
Adams e queria que ele sentisse, ao menos, que eu respeitava nosso acordo,
esperando, embora com pouca confiança, que ele mantivesse algum vestígio de
respeito por mim.
A atitude de Anne Beldon comigo era estranha. Não fizera qualquer retratação
ou apresentara qualquer desculpa por seu ataque após a conferência e eu, de minha
parte, estava decidido a nunca mais entrar em discussão com ela sobre os meus
atos ou as atitudes da Embaixada. Na noite em que George Groton morreu, ela
chorara comigo, mas no fim se retirara e me deixara aos cuidados de Mel Adams.
Agora, no escritório, eu a estava fazendo trabalhar pesadamente, e à noite, devido a
meus compromissos sociais, dificilmente nos víamos sozinhos. No entanto, de
quando em vez, durante uma pausa no ditado ou enquanto assinava a
correspondência, apanhava-a olhando-me com expressão de preocupação intrigada,
como se de algum modo receasse por mim, mas não pudesse exprimir esse receio
em palavras.
Certa noite, quando estava bebendo sozinho antes de sair para jantar no
restaurante da Força Aérea, ela me veio falar. Preparei-lhe uma bebida e tivemos
ligeiras escaramuças antes que ela entrasse no assunto. As suas auxiliares estavam
sobrecarregadas de trabalho, fazia-se serão todos os dias e poucas distrações lhes
eram proporcionadas em seguida. Eu estava complicando o problema pela minha
secura e aparente indiferença por seus esforços. No contexto da guerra e morte que
reinava no país, era uma reclamação bem insignificante, mas minha própria culpa
me tornava sensível à justiça do caso. Pedi desculpas.
- ... É um problema muito real, Anne, e receio não lhe ter dado a merecida
atenção. Que gostaria que eu fizesse?
- Fale com elas de vez em quando, sorria uma vez ou duas e pergunte, às
vezes, pela saúde ou pelas famílias. Não faria mal algum mandar-lhes uma refeição,
quando trabalham até tarde, ou presenteá-las com uma estola ou algum trabalho em
lacre. Elas são apenas humanas! Algumas são sozinhas e estão vivendo sob tensão
nesta cidade. Elas o admiram muito, mas quando passa pelo escritório como se
fosse a própria ira divina, ficam sentidas. Além disso, não compreendem realmente o
que está acontecendo...
- E você compreende, Anne?
- De início, não, mas comecei a entender na noite em que George morreu. Eu
nunca percebera a sua solidão, ou como suas afeições estavam ocultas. Desde
então, tenho-me sentido culpada.
- Não deve sentir-se assim, Anne. Não sou fácil de entender, nem é fácil gostar
de mim. Além disso, estamos em situação crítica e tive pouco tempo para fazer um
ajustamento pessoal.
- Agora, eu sei disso. Foi o que tornou tão injusto meu ataque a você, e o de Mel
Adams, e mesmo o de George Groton. Ainda não posso dizer que concorde com o
que está fazendo, mas pelo menos deveria dar-lhe o crédito de um objetivo honesto.
- Acho que a coisa vai muito além disso, Anne. O problema é que eu mesmo
não estou certo de ser ou não honesto.
- E alguém pode estar?
- A maioria, acredito.
- Somente porque eles nunca se desafiam ou examinam a si próprios. A maioria
é covarde.
- Você é covarde, Anne?
- Sou.
- Nunca reparei nisso.
- Não é coisa que apareça, como uma ponta da combinação ou um fio solto na
meia. É coisa que se esconde, como um sinal no rosto ou uma cicatriz. E esconder
faz parte da covardia.
- De que tem medo, Anne?
- Quer mesmo saber?
- Somente se você quiser dizer.
- Quer-me servir outra bebida, por favor?
Enquanto o fazia, ela se levantou e foi até as janelas, olhando para o jardim
escuro. Levei o copo até lá e, lado a lado, observamos as luzes da casa de guarda,
as linhas misturadas das árvores tropicais e as estrelas lucilando em meio às
nuvens. Senti-lhe o perfume e vi-lhe o rosto, meio iluminado, como um camafeu
esculpido em perfil contra um fundo escuro. A voz era sussurrante.
- ... Foi na noite em que George morreu. Eu estava terrivelmente abatida, porque
me fazia relembrar vivamente a morte de meu marido. Mais do que tudo, no entanto,
fiquei espantada com o seu sentimento pela morte de George. Você estava tão
desprotegido, tão desolado! Era um homem com todo o terror do mundo nos
ombros. Eu queria reconfortá-lo, mas não conseguia. Deixei-o com Mel. Mais tarde,
quando ele já se fora, ouvi você andando de um para outro lado no quarto. Vim e
fiquei do outro lado da porta, e queria de todo o coração entrar e estar com você,
abraçá-lo e ser uma mulher para você... Mas tinha medo...
- De mim, Anne?
- De você, não. Mas, naquela noite, eu poderia entregar alguma coisa, dar-lhe
uma coisa que não poderia mais recuperar. Oh, não seria a virtude, reputação ou
mesmo amor! Era eu, a covardezinha que eu escondia e protegia, e não queria gas-
tar-me ou expor-me, para não sofrer novamente. Por isso, disse a mim própria que
você não precisava de mim, era homem grande e importante, tão forte que poderia
sobreviver a qualquer coisa que lhe acontecesse. Voltei para a cama e chorei até
dormir. Na manhã seguinte, então, vi o que lhe tinha acontecido. Estava
transformado em homem de pedra, o seu coração se fechara e você jogara fora a
chave... Vi que lhe tinha falhado, falhara a mim mesma, também. Imagino, agora, se
não irei faltar a qualquer homem bastante imprudente que venha a me amar...
Passei o braço em volta dos seus ombros para achegá-la a mim e reconfortá-la,
mas Anne não correspondeu, e disse com muita doçura:
- Não, por favor! Não faça isso. Eu quero ser beijada e aquecida como qualquer
outra mulher, mas não tenho direito a isso, e me sentiria como se fosse uma
vagabunda.
Depois, voltou-se para mim com um sorriso triste e encostou os dedos frios em
meu rosto.
- Estamos os dois no mesmo barco, não é? Estamos ambos procurando quem
nos perdoe, mas não achamos. Talvez nunca achemos, até que aprendamos a
perdoar a nós próprios...
Era um pensamento obsedante, fazendo eco ao que eu ouvira da boca do
romancista - o de que homem algum pode tomar de empréstimo a absolvição de
outro. E ainda assim, sem ter, pelo menos, a ilusão de perdão, não era possível ao
homem sobreviver como criatura mentalmente sã, num mundo louco. Todo homem,
fosse qual fosse sua qualidade ou posição, tentava criar um meio de eximir-se da
própria culpa. Os Harrys Yaffas do mundo partiam de uma meia-verdade, a de que a
delinqüência era universal e, portanto, inevitável. No entanto, terminavam com uma
mentira completa, a de que a culpa era uma ilusão e empecilho na batalha selvática
pela sobrevivência. Os egoístas se punham acima da culpa e tornavam o resto do
mundo seu bode expiatório. Os budistas, diante da universalidade da imperfeição,
prendiam o homem à roda da vida e o mandavam girando por uma purificação
repetitiva e inexorável, numa longa sucessão de existências. Penalidade tão terrível
e desproporcional para a existência, isso era em si próprio um perdão e, às vezes,
um convite ao delito. O incrédulo ou ignorante, que cambaleava sob o peso de sua
natureza delinqüente, apelava às vezes para o recurso curativo da psiquiatria ou da
psicanálise. Os verdadeiros profissionais da arte visavam a formar no homem a luz e
a força necessárias para que se aceitasse como era, e gastar os seus traumas com
respeito, senão alegria. Já os outros, que buscavam conceder a absolvição negando
toda a responsabilidade, viam-se ao fim incapazes e indignos, pois o próprio
paciente começava a chorar da mentira que destruíra sua dignidade, juntamente
com a culpa.
Culpa e dignidade... Era uma justaposição singular, mas no fundo não se
mostrava autêntica, ou ao menos desejável? Para ser culpado era preciso ser livre, e
não totalmente sujeito a alguma pressão cósmica. Ser livre era poder fazer outra es-
colha, senão ser sempre capaz de modificar as conseqüências da primeira. Eu
sempre reconhecera grande sabedoria na prática católica da confissão sacramental,
com sua garantia de perdão judicial aos bons de coração, mas aceitar o sacramento
era aceitar também toda a fé em que se fundava, a de um Deus pessoal, um
Redentor encarnado, uma autoridade continuada no dogma e na moralidade. Mas
aceitar ou recusar eram coisas além de meu poder, conforme um velho e sábio
dominicano se esforçara por me demonstrar, e precisava esperar pacientemente
pelo esclarecimento que talvez jamais fosse concedido, por um Deus que eu talvez
jamais viesse a reconhecer.
Para qualquer lado que me voltasse, via-me apanhado em mistério, o mistério
da identidade, a natureza e responsabilidade do homem. E sabia que não existia
qualquer outra solução, a não ser continuar na peregrinação cega e esperar, sem
esperança, por uma luz ao fim da caminhada. Anne Beldon estivera certa, ao negar-
se ao perdão fictício de um ato casual de amor. Em longo amor partilhado alguém
poderia encontrar as raízes do céu, e às vezes encontrava mesmo, mas na
carnalidade rápida da pequena morte não havia absolvição, e tampouco na grande
morte, com todo o seu alívio ilusório... Portanto, é continuar a tocar, violinista!
Amanhã, estarei de volta à guerra!
Dois dias depois, às quatro da tarde, Harry Yaffa veio ver-me. Mostrava-se tenso
e exultante.
- Será hoje à noite, Sr. Embaixador! Para ganhar, perder ou empatar, o jogo
está feito! Vamos consultar nossos mapas e lhe mostrarei como vai ser. Vejamos
Saigon, em primeiro lugar - disse, espalhando os mapas sobre minha mesa e me
apresentando uma lição rápida e precisa sobre a tática da revolução. - Eis o
aeroporto. Os generais estabeleceram aqui o quartel-general de operações, bem ao
lado. Às duas da madrugada, os soldados deles tomam o aeroporto e centro de
comunicações. Aqui está a estação de rádio e ali o centro telefônico. São os
primeiros objetivos dentro da cidade. A partir disso, as ações convergirão sobre o
Palácio. Agora, veja as quatro artérias principais para se chegar à cidade: três do
norte, e uma do sul. Uma vem de Bienhoa, outra de Bencat, outra de Tayninh e
depois a Estrada Meridional, que vem de Tanan. Os tanques e infantaria deles já
estão prontos para marchar e os canhões atrelados aos transportes. À meia-noite,
estarão nos subúrbios da cidade. Às duas da madrugada, ter-se-ão apossado da
estação de rádio e do centro de comunicações, os tanques e a artilharia estarão em
posição. Depois disso, telefonarão a Cung no Palácio e exigirão que se renda. Se
não o fizer, será feito um bombardeio aéreo, uma barragem de artilharia e depois
um ataque completo, com tanques e infantaria... Agora, vejamos o resto do país. A
Academia Militar em Dalat está pronta a desertar e as tropas locais se acham
organizadas. Hué é considerada segura para os rebeldes. Danang está pronta, e
também Longxuyen, no sul, e Cantho. .. É um plano muito bom, Embaixador, e o
General Kiev tem certeza de que dará resultado, sem qualquer exposição indevida
aos vietcongs nas regiões vulneráveis.
- E que pensa Tolliver?
- Ele aprova. Os seus próprios agentes têm avaliado cada passo, à medida que
tomam conhecimento, e ele se mostra razoavelmente satisfeito quanto à segurança
de nossas próprias tropas. Todas as licenças foram canceladas para esta noite e
o pessoal já licenciado foi chamado de volta. As patrulhas do Exército já os estão
fazendo voltar aos quartéis, de modo que ninguém seja apanhado no fogo cruzado
desta noite.
- E que diz de nossas comunicações?
- Todos os nossos canais de rádio permanecerão abertos e funcionando sem
parar, e o General Khiet ordenou que sejam mantidas abertas todas as linhas para a
Embaixada, instalações militares e sua casa. Acho que cobrimos quase tudo, a não
ser a questão do pessoal da Embaixada. Que deseja fazer a esse respeito?
- Eu ficarei aqui, naturalmente. A Srta. Beldon ficará comigo. Mantenha o
pessoal todo do centro de comunicações a postos, mas mande os homens casados
para casa, a fim de tomarem conta de suas famílias. Os chefes de seção podem
ficar trabalhando, ou designar substitutos se quiserem. Avise a todos que não saiam
à rua e jantem em casa. Vou sair bem cedo e conversar com Tolliver. Jantarei
provàvelmente com ele e estarei de volta às nove horas. Se precisar de mim, tele-
fone para o gabinete de Tolliver.
- Duvido que precisemos do Sr. - disse ele, sorrindo e dando de ombros, em
sinal de resignação. - A coisa está fora de nossas mãos. Até Mel Adams não devia
sentir-se tão insatisfeito assim. Afinal de contas, isso é autodeterminação: dos
vietnamitas, pelos vietnamitas e para os vietnamitas! E que Deus ajude os generais,
se seus planos não derem certo!
Eu não podia manifestar-lhe a minha própria esperança perversa e secreta, de
que mesmo nessa décima terceira hora Cung conseguisse um milagre e,
surpreendendo-nos a todos, surgisse novamente como libertador e vencedor. A
despeito de todos os seus defeitos, impunha respeito, e sua coragem obstinada
merecia fim melhor do que os seus antigos camaradas preparavam para ele.
“... Daqui a três horas começarão os tiros e morrerão homens. Nas crônicas da
época, será escaramuça sem importância e logo se verá esquecida. Mas toda
batalha é um Armagedon para alguns pobres diabos... Todas as palavras que
pronunciei e escrevi logo se transformarão em balas, baionetas e granadas de
artilharia. É estranho, mas é verdade. No fim, os homens são mortos por palavras.
Talvez fosse isso o que o romancista quis dizer quando afirmou que conhecia o
significado das palavras e, portanto, as respeitava. Nós, que nos vemos afogados
em tantas palavras da imprensa, das telas de televisão e receptores transistorizados,
passamos a depreciá-las e torcê-las. Mas na verdade são dentes de dragão... Quem
lê das Kapital hoje? No entanto, de Vladivostok ao Muro de Berlim, de Hankow a
Havana, há bombas e baionetas em conseqüência daquele livro que ninguém
consegue ler... Nós também somos artesãos de palavras, fabricamo-las sem valor e
depois imaginamos por que as pessoas simples as atiram de volta ao nosso rosto.
Na semana passada, pronunciei sete palavras num brinde, e amanhã de manhã elas
poderão tornar-se o laço em volta do pescoço de um homem, ou uma bala em sua
cabeça... A palavra é a faculdade que nos dá a qualidade de homens. Por que a
usamos tão mal, que às vezes de bom grado preferiríamos ser surdos-mudos?...”.
"Os tanques devem estar chegando, com os caminhões e canhões. Nossos
tanques, nossos canhões. Nós os compramos com o dinheiro do povo e os demos a
nossos amigos, para sua segurança e liberdade. Mas os que ontem eram nossos
amigos estarão mortos amanhã, mortos pelas armas que lhes demos. Portanto,
quem está seguro e quem se acha livre, sob a ameaça de maldade mútua, na
servidão da desconfiança perene?...”.
"E eu, que escrevo isso com tanta clareza, por que complico a confusão? Ou
será que falo duas línguas, uma para dizer particularmente a verdade e a outra para
o intercâmbio numa sociedade cuja natureza e complexidade não compreendo? E
se não a compreendo, por que aceito a indicação como árbitro de seu destino?...”.
"Quem sou eu, que escrevo? Nem isso eu sei com certeza. Mostrem-me outro
homem, no entanto, que eu desconheça igualmente, e com grande certeza lerei sua
infâmia e assinarei a ordem de sua execução. Nisso, o homem que está perto de
morrer mostra-se mais afortunado do que eu. Acredito que sua vigília seja mais
calma do que a minha. Ele sabe quem é, ou pelo menos acredita saber. Sabe o que
é a morte e a aceitará como consumação e continuidade. Sabe o que significam as
palavras, também: 'No início havia a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a
Palavra era Deus... ' Ainda assim, faltou lamentavelmente nas questões do bem
comum e, por isso, a Palavra Brilhante de nada lhe valeu...”.
"No aeroporto estão enchendo os tanques de combustível e colocando os
foguetes nos aviões e preparando os fusos das bombas. Jovens como George
Groton voarão ao vento com fúrias vingadoras, despejando a destruição sobre
outros jovens a quem não podem ver... Que pensamento banal! Um lugar-comum de
nossos tempos esclarecidos. O espírito da árvore pode ser propiciado com incenso,
o da água é apaziguado com flores jogadas nela, o da casa está faminto e podemos
sossegá-lo com um bolo de arroz. Mas os vingadores do ar lá em cima, os que
viajam em carros de guerra cor de fogo, quem os pode aplacar, e como, a não ser
com sangue e fumaça do sacrifício humano?...”.
"Que farei amanhã, quando estiver tudo acabado? Voltar a um ermo e encher os
cabelos de cinzas? Eu sou o oráculo que deve proclamar um desfecho afortunado:
‘... uma rápida restauração de relações normais, um esforço renovado no setor
militar, governo estável e esclarecido, liberdade, igualdade, e vamos dançar nos
clubes novamente! Deixemos os profissionais continuar um pouco com sua
prostituição honesta, e ao diabo com os neutros e neutralistas franceses também! ’
Dixi! - Falei! E depois voltarei aos Estados Unidos assobiando Dixie, levando em
meu bolso uma vitória para a democracia... Por que diabo eles não começam?
Acabem logo com o morticínio, e talvez possamos todos dormir um pouco!...”
“E o Faraó disse a José: 'Tive sonhos e não há quem os explique...' Quem
poderá explicar-me a mim próprio? Quem me decifrará, o sonhador de seu próprio
sonho, o sonho do pássaro mudo e da terra plana, e o sonhador cercado por luz,
mas sem poder ver outra coisa senão um cuco silencioso...? Não posso suportar
esta solidão. Preciso casar-me, viver um pouco, ter um filho que dê continuação ao
meu nome. Até mesmo um pouco de amor bastaria, e eu seria reconhecido a ele,
como uma nova dádiva de vida. O presente da vida é de lágrimas e risos. Estou
vazio de lágrimas e faz muito, muito tempo que não rio...”
"Gabrielle, por que não está comigo? Onde está você agora? Já se encontrou
com o George? Ele fala de mim com bondade? Não consigo pensar em vocês dois
amarrados à roda da vida, girando sem cessar e atravessando uma cadeia de futi-
lidades, marchando para a calma imensa do nada. Há um horror nisso, uma loucura
insuportável!... Que eu, em alguma existência futura, possa violar aquela a quem
amei nesta existência, esmagá-la sob os pés, como um verme sob minha pata de
elefante, ou um micróbio em seu sangue, abatê-la numa segunda morte... Tudo isso
é bobagem primitiva, que afronta toda a razão! Mas ansiamos tanto pela promessa
da imortalidade, que estamos prontos a aceitá-la quase em qualquer condição..."
"Mel Adams e Harry Yaffa... Que contraste! No entanto, a quem respeito mais?
O homem que desempenha com eficiência, às vezes até com entusiasmo sexual as
tarefas mais sórdidas do Governo, ou o homem que se reserva sempre o direito de
discuti-las ou rejeitá-las? Por ser o Governo, neste lugar e neste momento, vejo-me
oscilando entre os dois. Sem Yaffa, não posso funcionar e ponho em perigo as vidas
de muitos homens. Sem Adams... Mas já estou sem ele. Firmou-se em nosso acordo
e negou-se a participar comigo na vigília. O que prova - ou prova, mesmo? - que a
consciência é ingrediente dispensável no equipamento social..."
"Na rua, ouço o rumor de tanques e caminhões pesados. Da janela, nada
consigo ver. Consulto o relógio. Uma e meia da madrugada... Que vigília longa...
Para Cung, talvez seja uma agonia em seu próprio jardim do Palácio. Para o seu
Judas - se é que sou mesmo um Judas - uma outra, ainda mais longa, está sendo
preparada. Por quanto tempo o zombeteiro Pilatos governou em Jerusalém, depois
da Crucificação? Quanto tempo poderei ficar aqui, a fim de provar que meu país não
tem qualquer culpa e se acha cheio de pensamentos nobres e benéficos para com
os seus bravos aliados asiáticos?... Um telefonema de Harry Yaffa. Tudo marcha
conforme os planos. Ele vai tentar manter contato... "
"Anne Beldon acaba de me trazer uma xícara de café. Estou fortemente atraído
por ela. Minha noite com Maggie Benton aguçou meu apetite sexual. Sei que poderia
eliminar os receios de Anne e arrastá-la ao casamento. Mas e depois? Uma união
entre o carrasco e a mulher que o viu atrás de sua máscara. Inimaginável,
imprevisível em seus terrores íntimos... Cessou o rumor dos veículos. Agora, é o
ruído de gente correndo, na cadência regular e disciplinada de soldados de
infantaria. Mais alto do que esse barulho, o zumbido de aviões que se aproximam...
Venham, por Cristo! Vamos ouvir esses malditos canhões!"
Capítulo onze
Passavam quatro minutos das duas quando ouvi os primeiros tiros, o ruído
surdo e duplo das baterias antiaéreas. Logo em seguida, começaram a cair as
bombas, fazendo estremecer as vidraças. Enquanto a primeira onda de aviões se
afastava, iniciava-se a barragem de artilharia, misturada ao som de morteiros e
rajadas ocasionais de metralhadoras. Sentia-me como homem preso enquanto o
mundo lá fora explodia e se tornava um caos. Depois de dez minutos, não pude mais
suportar, e chamei Anne Beldon e Bill Slavich. Saímos, dando a volta em frente ao
rio e rum ando para o Hotel Caravelle. Subimos para o jardim do terraço e olhamos a
cidade lá de cima.
Era um espetáculo fantasmagórico e sinistro. Toda a cidade estava acesa, o povo se
pusera sobre os telhados, sacadas e janelas abertas, como espectadores num jogo
de futebol. A região do Palácio estava envolta numa grossa coluna de fumaça e
rodeada pelos tiros da artilharia. Podíamos ver os tanques, rastejando como
monstros acocorados pela rua, enquanto a infantaria se escondia atrás deles ou se
encostava às paredes. Havia incêndios em lojas e edifícios, granadas de morteiro
explodiam nas calçadas. Os aeroplanos iam e vinham, bombardeando o conjunto do
Palácio, e quando se afastavam os tanques chegavam mais perto, disparando à
queima-roupa pelos bulevares.
Quando houve a última revoada, não havia fogo antiaéreo e o círculo de
homens e tanques se fechara mais em volta à cidadela. Os defensores reagiam
obstinadamente, com metralhadoras, bazucas, morteiros e armas ligeiras. Às vezes,
durante um intervalo nos disparos, ouvíamos gritos de homens, e de vez em quando
um grito longo, fino e distante como o de um passarinho. À nossa volta se formara
um grupo de gente, correspondentes, empregados do hotel, fotógrafos, negociantes
franceses ou simples freqüentadores do bar, que tinham ficado para assistir à festa.
Havia uma confusão de idiomas, e de vez em quando um grito, quando irrompia
nova barragem de fogo ou outro edifício se incendiava.
Ficamos ali talvez hora e meia e, de repente, desgostou-me aquele espetáculo
de destruição. Voltamos à Embaixada e me dirigi diretamente ao centro de
comunicações a fim de saber as notícias. A luta irrompera em Danang, mas Hué e
Dalat estavam em calma e as cidades do Delta tinham-se bandeado sem disparar
um tiro. Harry Yaffa telefonara para informar que todos os pontos estratégicos na
cidade estavam em mãos dos rebeldes e a Rádio Saigon já se achava no ar com a
notícia de que as defesas do Palácio deviam cair a qualquer momento. Telefonei
para o quartel-general de Tolliver. Todos os seus comandantes regionais haviam
dado notícias e o interior do país estava tranqüilo. Até os Vietcongs pareciam ter
interrompido as suas atividades, pela primeira vez em muitos meses. Às 3h40m,
cessaram os tiros e meia hora depois Harry Yaffa chegava com a notícia de que a
Guarda Palaciana se rendera, mas Cung fugira. Como, quando ou para onde tinha
ido, ninguém parecia saber. Muitos dos seus auxiliares tinham permanecido,
manejando as metralhadoras e lutando com carabinas e granadas, nas últimas
barricadas. De acordo com Yaffa, os soldados do Palácio estavam amargurados
pela deserção de Cung e pela loucura sangrenta de sua luta sem esperanças.
Por estranho que pareça, eu também via isso com amargura. Esperara coisa
melhor daquele homem, um heroísmo final, uma avançada selvagem, talvez, contra
toda a possibilidade. Mas não! Intrigante até o final, ele fugira e deixara sua
guarnição à morte, cobrindo a sua retirada ignóbil. E depois disso, após a amargura,
veio uma onda de alívio. Afinal de contas, minha decisão fora acertada. Eu
trabalhara bem para meu Governo e por aquele país. Arriscara muito, mas o
desfecho me absolvera finalmente. Mandei mensagem para Festhammer e depois
sentei-me com Harry Yaffa para tomar café com sanduíches.
Yaffa estava exultante.
- Funcionou como um relógio, Sr. Embaixador! Foi um golpe de mestre! Se Khiet
puder dirigir o país do modo como dirigiu esta operação, estaremos novamente bem.
Até as baixas não foram muitas, só uns cinqüenta mortos no Palácio e cerca de cem
feridos. É um custo pequeno, quando se pensa que todo o país poderia revoltar-se.
O Sr. devia sentir-se orgulhoso. Quando terminar o café, vamos andar pela cidade e
ver o que está acontecendo. Pelo que eu já vi, vai ser como Paris na tomada da
Bastilha...
A descrição se mostrou correta. Embora apenas uma hora tivesse transcorrido
desde o nascer do sol, as artérias da cidade estavam congestionadas de gente,
rindo, gritando, abraçando-se, passando garrafas de bebidas dos bares e
oferecendo-as a qualquer soldado que estivesse por perto. Rodeavam meu automó-
vel e batiam palmas, gritando vivas aos americanos e amigos da República. Alguém
suspendeu uma menina com um buquê de flores na mão, e porque ela não podia me
alcançar, puseram-na sentada no capô do carro como mascote, e a levamos por uns
cinqüenta metros pelo bulevar. Multidões de estudantes marchavam pelas calçadas,
de braço dado, com cartazes de papelão amarrados ao peito ou suspensos sobre a
cabeça. Em frente à Assembléia Nacional, um homem tocava acordeão e rapazes e
moças dançavam em volta, ao som de uma canção de amor antes proibida. Ao
longo da Catinat, outra multidão apedrejava uma loja e jogava jornais incendiados
pelas vitrinas partidas. Era a livraria pertencente a uma pessoa da família Cung.
Logo se incendiava, e a multidão e soldados aplaudiam, enquanto as chamas
aumentavam.
A região do Palácio fora isolada com soldados, mas quando viram a flâmula do
carro nos deixaram chegar perto para ver os destroços, as crateras de bombas e o
incêndio que ainda lavrava. Os saqueadores estavam ativos nas ruínas, tirando mó-
veis, ornamentos e garrafas de vinho. Noutra rua, tivemos de subir na calçada para
dar passagem a uma procissão de monges budistas que transportavam o coração
de seu primeiro mártir, numa caixa dourada, sob dossel de seda vermelha. O povo
os aplaudia, e alguns se punham de joelhos em veneração. Bandeiras esvoaçavam
em todos os pagodes, e sempre que aparecia um manto amarelo na multidão o povo
se comprimia em volta e enchia sua tigela de presentes. Sempre que alguém via a
flâmula em nosso automóvel, formava-se um tumulto de aclamações e éramos
cercados. Numa dessas vezes, o próprio automóvel foi erguido do chão e carregado
por uns 20 metros pela multidão que aclamava.
Embora fizéssemos um circuito muito curto, levamos mais de duas horas para
regressar à Embaixada, onde encontrei Arnold Manson, o australiano, esperando
por mim em companhia do Embaixador italiano.
Manson se mostrava constrangido e formal.
- Estivemos esperando pelo Sr. perto de uma hora, Sr. Amberley, e o assunto é
muito urgente. Estamos informados de que o Presidente Cung ainda se acha
escondido. O Sr. tem alguma outra informação?
- Nenhuma, infelizmente.
- Nesse caso, temos ainda algum tempo para agir. Telefonei aos nossos colegas
diplomáticos e estão todos acordes em que, por questão de simples humanidade e
tendo em vista a opinião mundial, deve ser garantida a segurança do Presidente
Cung. Meu colega e eu queremos ir imediatamente ao quartel-general do general
Khiet e lhe apresentar a questão nos termos mais enérgicos possíveis.
- Tem toda a liberdade para isso, Sr. Manson. Pessoalmente, aplaudo a sua
atitude.
- Gostaria de vir conosco, Sr. Amberley?
- Não creio que seja necessário. Já exprimimos nossos desejos ao general Khiet
e seus colegas, e recebemos garantias de que serão feitos todos os esforços por
preservar a segurança da pessoa do Presidente Cung. Minha visita, portanto, seria
uma redundância. Além disso, tenho muita coisa a fazer aqui. Ele me olhou
longamente, com expressão dura, e depois disse serenamente:
- Nesse caso, o Sr. nos daria uma nota assinada, exprimindo seu acordo com
nosso pedido?
- Repito, Sr. Manson, que já fizemos nosso pedido. Não vejo motivo para reiterá-
lo.
- Devemos ir, Manson - disse o italiano abruptamente. - Nada há a fazer aqui e
já perdemos um tempo precioso.
- Bom dia, cavalheiros.
Quando a porta se fechou atrás deles, Anne Beldon explodiu numa reprimenda
apaixonada:
- Por quê? Por que, em nome de Deus, não fez o que pediam?
- Porque sou o Embaixador, Srta. Beldon, e somente eu resolvo o que é melhor!
Mais alguma pergunta?
- Nenhuma, Sr.! - respondeu, e seu rosto era uma fria máscara de desdém. -
Nenhuma, nunca mais!
Meia hora depois, Mel Adams regressava à Embaixada. Trazia seu relatório, o
pedido de demissão e a notícia de que Phung Van Cung estava morto.
- Terminada a leitura, o rapaz se inclinou para o velho, para Cung e depois para
mim. Cung lhe agradeceu e depois voltou-se para o Chinês Número Um com
cumprimento solene, dizendo: "Ninguém mais teria pensado em tal coisa numa noite
assim. O Sr. ainda me dá lições, e sou-lhe grato. Deu-me luz, também, e agora sei o
que devo fazer".
- Depois, pediu-me que fosse ao orfanato católico na orla de Cholon e trouxesse
o Padre Wilhelmson. É um homem estranho, e o Sr. devia conhecê-lo se continuar
aqui, Sr. Embaixador. Nos dias da Longa Marcha, ele foi bom para Mao Tse-tung,
cuidou dele enquanto estava doente, ou lhe deu alimentos e remédios, não tenho
certeza. Depois da Revolução, foi preso com outros missionários europeus e passou
por muitos dissabores. Quando Mao Tse-tung soube de sua prisão, mandou deportá-
lo. Desde então, tem estado em Saigon, dirigindo um orfanato, publicando um jornal
chinês e mantendo contatos clandestinos com a China, por intermédio de Hanói e
Hainan. É um excêntrico, mas aparentemente Cung costumava usá-lo como
confessor. Era o que Cung desejava: confessar-se.
- Atravessei a cidade, trouxe o Reverendo. Cung estava realmente confessando-
se noutra sala quando começou a fuzilaria. Fiquei com o Chinês Número Um, que
me implorou que não pensasse na violência que havia lá fora e depois me ensinou
uma lição. "Nunca despreze esse homem, Sr. Adams. Ele tem muitos defeitos, e
cometeu grandes erros, mas ainda assim existe nele um elemento de grandeza.
Sabe por que ele veio em sua companhia esta noite?... Sei o que ele lhe disse, mas
não é o motivo verdadeiro. Para compreender, talvez seja preciso ser oriental.
Muitas vezes não compreendo como um americano pensa. Mas o motivo de Cung
foi o seguinte: ele não quer morrer secretamente, esmagado por uma coluna que cai
ou atingido por um estilhaço. Quer que seus inimigos o levem publicamente, a fim de
forçá-los a uma decisão clara: matá-lo ou julgá-lo abertamente, ainda que o matem
depois disso. Mas é preciso que o façam, e se saiba que o fizeram. E o seu Em-
baixador ficará então coberto de vergonha pelo acordo feito com Khiet e seus
colegas. E assim que ele pensa. Está claro que as coisas podem dar resultado bem
diferente".
- Perguntei, então, o motivo pelo qual Cung não ordenara simplesmente a
rendição da guarda do palácio, evitando assim um derramamento inútil de sangue. O
Chinês Número Um sacudiu a cabeça e terminou sua explicação: "Também é muito
oriental. Se não houvesse luta, isso significaria que não havia pessoa alguma no
país que acreditasse no regime, e ninguém disposto a morrer por essa crença.
Desse modo, seja como for o registro na história, a afirmação está feita".
- Perguntei-lhe se achava que Cung estava certo no que fazia. me apenas deu
de ombros e disse que o importante era que Cung acreditasse nisso. Qualquer coisa
que se fizesse sempre estaria um tanto errada, pois os homens jamais tinham
aprendido a ler o conjunto das correntes da história. Mas um homem sempre poderia
agir corretamente com respeito a si próprio e sua família, e isso era tudo quanto se
poderia esperar. Cung acabou, então, sua confissão, e o Chinês Número Um
mandou levar o confessor de volta a seu orfanato, em companhia de um de seus
filhos. Depois disso, o velho, que se achava muito cansado, pediu licença e retirou-
se. Cung e eu nos sentamos juntos, tomando chá e ouvindo os tiros. Ele estava
muito sereno, triste, ao que parecia, mas muito calmo. Grande parte de sua
arrogância terminara e aquele modo didático irritante que o fazia parecer um
professor do Lycée. Falava tranqüilamente, interrompendo-se às vezes para ouvir o
fragor da batalha, mas voltando ao mesmo tema.
- "Existe sempre um dilema terrível para um homem como eu, Sr. Adams: a
decisão entre um direito moral e um erro político... E o defeito de minha
personalidade e educação que eu tenha feito uma definição por demais clara de
ambos. É defeito curiosamente ocidental, Sr. Adams, e por esse motivo incorri nele
com mais facilidade ainda. Também é uma cilada daquele tipo de catolicismo de que
me tornei herdeiro por motivo de minha educação francesa. Produz uma teologia
árida e uma atitude moral tão rígida que chega a ser errada, porque lhe falta
tolerância, compreensão e simples caridade... Só ultimamente é que comecei a
compreender quanto meus julgamentos foram influenciados por meu temperamento,
e sei que me faltam certas capacidades. Penso demais e sinto de menos. Sou
fortemente incitado por grandes idéias, mas pouco me interessa o efeito que tenham
sobre as pessoas... Ouve os canhões? Acreditei, e ainda acredito, que esta batalha,
por mais desesperançada que pareça agora, tinha de ser travada. Agora, quando é
tarde demais, vejo o que representa em sangue e mortes inúteis... Foi o mesmo com
os budistas. O seu Embaixador jamais acreditará que não fui, no fundo, um fanático
contra
essa gente, um inquisidor católico. Mas a verdade é que tentei forçar todo um povo
asiático a um só molde e não o pude conseguir. Mao Tse-tung pode fazê-lo, Ho Chi
Minh também, porque têm um evangelho muito simples, que todos os homens
podem compreender e porque são tão impiedosos que o metem pela garganta de
todos, de modo que a pessoa se asfixia com ele ou o digere... Eu estava
empenhado na idéia de uma sociedade pluralizada, mas era rígido demais para
aceitar tôdas as suas conseqüências, e não tive sabedoria suficiente para fazer bom
uso dessas conseqüências... E estranho que o veja tão claramente agora, quando
nada mais posso fazer. Mas havia um fundo bom no que eu fiz, Sr. Adams. Havia
um fundo bom em mim, também. Mesmo nestas últimas horas de vida, à beira da
eternidade, posso afirmá-lo... Agora, se me der licença, gostaria de rezar um pouco.
- Devo ter dormido pouco depois disso, e quando acordei já amanhecera. Cung
inclinava-se sobre mim, e disse que telefonara ao quartel-general de Khiet e lhe
dissera que ia se entregar às sete horas no lado exterior da igreja católica, mais ou
menos a um quilômetro da casa do Chinês Número Um. Levei-o até a igreja, e
sentei-me num banco de trás, enquanto se dizia a missa das seis e meia. Cung
ouviu a missa, fez a comunhão, rezou um pouco e depois voltou para onde eu
estava sentado e disse: "Muito obrigado pelo que fez, Sr. Adams. Aceitei porque
queria que o Sr. soubesse que reconheço sua boa-vontade. Agora, o Sr. vai fazer
exatamente o que lhe disser. Sairemos juntos da igreja. Os soldados estarão
esperando por mim. O Sr. ficará no alto das escadas e esperará até que eu seja
levado por eles. Aconteça o que acontecer, o Sr. nada fará, absolutamente nada.
Compreendeu?"
- Fiz um último esforço no sentido de persuadi-lo a aceitar asilo conosco, e ele
se recusou. Saímos juntos da igreja e lá fora estava um caminhão militar,
estacionado ao lado da calçada e com um destacamento de homens armados de
carabinas automáticas. Cung se dirigiu a eles, que o seguraram com brutalidade e o
empurraram para a parte de trás do caminhão, subindo depois dele. O caminhão se
movimentou, e antes de ter percorrido cinqüenta metros, ouvi dois tiros. Acredito que
foi quando o mataram... E é só, Sr. Embaixador.
A narrativa me empolgou e preocupou, e por estar cansado e confuso, e por ter
sido novamente desafiado em minha correção recém-encontrada, fiquei furioso.
Durante algum tempo, fiquei deliberadamente em silêncio, e depois perguntei:
- Que deseja que eu diga, Mel?
- Nada, Senhor. Está tudo acabado! Cung morreu.
- Assim, sem mais aquela! E você foi o nobre amigo que o acompanhou nos
últimos passos, o bom americano num mundo mau. É isso?
- Não.
- Pois deixe-me dizer o modo pelo qual interpreto a sua história, Mel. Acho que
nela você se apresenta como um idiota sentimental, que fala muito sobre ação e
depois se atira de cabeça nela. Torna-o cúmplice de um assassinato que talvez
jamais ocorresse, se Cung permanecesse no palácio. Por seu intermédio, nosso
país participou do ato. Você se prestou a um martírio político como o dos budistas
que se queimaram. Você será responsável pelo descrédito que disso nos advir.
- Essa interpretação é sua, Sr., não minha - disse ele serenamente.
- E qual é a sua, Mel?
- A de que em algum lugar, em algum momento, em todo esse emaranhado
sangrento de política e diplomacia, é preciso haver um pouco de simples decência
humana. Alguém precisa afirmar que o chinês tem tanto direito a comer quanto o
californiano, que o marxista não é forçosamente um monstro, como não o é o
capitalista à antiga, e que o mundo não pode ser dirigido por policiais e agentes
secretos, nem por embaixadores! Talvez eu tenha cometido um erro diplomático,
mas, pelo menos, fiz a vigília da morte com outro homem enganado e talvez o tenha
ajudado a morrer com dignidade.
- E acha isso bastante?
- Nada é bastante, em momento algum, Sr. Embaixador. Um homem pode
apenas cuidar do seu jardim e dividir as maçãs de sua macieira com o vizinho.
Agora, se me der licença, Sr....
- Tem toda, Mel. Suas ordens de viagem estarão prontas esta tarde. Mas há
uma outra pergunta: você incluiu tudo isso em seu relatório?
- Não, Senhor. Se quiser, incluirei, mas achei que talvez o Sr. preferisse deixar a
questão entre nós dois, em caráter particular. Já acabou tudo. Deixemos os mortos
enterrar os mortos.
- Acho aconselhável.
Mas aconselhável para quem? Para Mel Adams que, se fosse mais hábil,
poderia tirar grande proveito de seu último ato quixotesco? Ou para mim, que só
poderia ser envergonhado pelo fato, aos olhos de um público sentimental? Desse
modo, eu poderia fazer um relatório pessoal ao Departamento de Estado e
interpretar a narrativa a meu modo.
A bem da verdade, tive de interpretá-la bem antes do que esperava. Pouco
antes do meio-dia, Arnold Manson e seu colega italiano chegaram do quartel-general
de Khiet. Mostravam-se frios e recriminadores, dizendo-me que no próprio momento
em que falavam com Khiet e recebiam dele garantias de proteção a Cung, chegava
pelo telefone a notícia de sua morte. O general Thuyen fizera violento protesto,
afirmando ter sido traído, e depois saíra para sua própria casa. Assim, antes mesmo
de estar instalada, a junta se achava dividida e Thuyen, forçado pelo dever familiar a
tirar vingança, poderia ser um inimigo poderoso.
Era claro que os meus colegas me consideravam responsável, pelo menos em
parte, pela morte de Cung e, por meu intermédio, o Governo dos Estados Unidos.
Era conclusão perigosa, com possíveis resultados de longo alcance, de modo que
lhes contei minha própria versão da narrativa de Mel Adams, que sendo tão
verdadeira até onde a apresentei, não me comprometia a uma mentira diplomática.
- Receio ter parecido brutal e indiferente quando os Srs. vieram ver-me hoje de
manhã, cavalheiros, mas não lhes podia dizer que nesse momento um elemento da
Embaixada se achava pessoalmente empenhado na tentativa de salvar a vida do
Presidente Cung. Antes de começar a luta ontem à noite, ele retirou o Presidente do
palácio em seu automóvel e passou a noite oculto com ele. Tentou repetidamente
convencer Cung a vir para esta Embaixada, onde eu estava pronto a lhe oferecer
abrigo, enquanto negociasse um salvo-conduto para deixar Saigon. Cung rejeitou
nossa oferta e insistiu em se entregar. Foi aprisionado em Cholon às sete da manhã
e provavelmente mataram-no a uns cinqüenta metros do lugar onde se entregou...
De modo, cavalheiros, que não sou o monstro que pareço ser.
Mostraram-se cheios de desculpas, naturalmente, e consentiram em tomar
alguma coisa em minha companhia antes de saírem. Se acreditaram ou não, é coisa
que não sei, mas a diplomacia é como outros tipos de teatro, onde dependemos de
uma suspensão da descrença e certo envolvimento numa ilusão de realidade. E se
tal definição nos torna, a todos, saltimbancos e truões, o que desejam os senhores e
senhoras, afinal? Vocês nos pagam por nossas belas ilusões, e nos deixam nos
bastidores, entre os acessórios empoeirados, sem ilusão alguma!
Capítulo doze
Não tenho muito a dizer sobre meus últimos meses de serviço em Saigon, pois
em seguida àquela última noite horrível eu sabia que minha sobrevivência pessoal
dependia de transigências. O que fizera estava feito, e tinha de manipular as
conseqüências no sentido de obter a maior vantagem política possível. Não podia
deixar precipitadamente o país sem condenar, implicitamente, a nossa política e a
execução que eu lhe dera. Por outro lado, jamais poderia arriscar-me novamente a
outro ataque tão ruinoso à estrutura de minha personalidade. Tendo renunciado ao
luxo de um ponto de vista moral, tratei dos negócios com calculado alheamento.
Discuti impiedosamente a renovação de nossos pagamentos de ajuda ao país,
recusei-me a qualquer intimidade com os membros da junta, a quem não poderia
conferir o respeito que tivera por Cung. Só conseguia desprezá-los, como a mim
próprio. Quando o General Thuyen, barbudo e procurando vingança, saiu das som-
bras para assumir o controle do Governo, mantive-me de lado e não fiz qualquer
tentativa de intervir.
Diante da prolongada e incessante agonia do país, mantive uma distância
clínica. Tínhamos falhado politicamente, mas sem nós a situação militar havia muito
teria entrado em colapso. O militar empenhado na guerra era, ainda, a figura mais
nobre em todo o quadro ignóbil, e quando irromperam choques sangrentos entre
budistas e católicos ameacei os generais com novas sanções e retirada total, mas
me recusei a participar em qualquer comentário público sobre a questão religiosa.
Tendo rejeitado todas as crenças, conseguia desprezar os excessos dos que
afirmavam possuir alguma. Quando minha consciência se revoltou com o espetáculo
de crianças assassinadas com machados de açougueiro, lembrei-me de George
Groton e endureci novamente o coração. Essa gente exigia o direito de escolher o
próprio destino. Fizesse-o, então, e limpasse o sangue depois. Mel Adams se fora,
de modo que eu estava livre da indignidade de sua comparação entre os controles
repressivos de Phung Van Cung e o laissez-faire assassino dos militares.
Em certo sentido, a disciplina desse desligamento me era necessária. Sem ela,
poderia muito bem descambar para a perturbação psíquica. Politicamente, no
entanto, era uma tremenda perda de prestígio para mim e meu Governo. Havíamos
participado de um assassinato para impedir a desordem pública e depois, quando
desordens piores ocorriam sob o novo governo declarávamo-nos impotentes para
detê-las. Havia também uma condenação pessoal para mim, embora conseguisse
manter a sentença em suspenso enquanto recuperava o vigor físico e mental
suficiente para resistir. Ainda que tivesse abdicado de qualquer posição espiritual, a
marca de minha fraqueza estava em não conseguir chegar à amoralidade total e
aparentemente satisfatória de Harry Yaffa. Eu sabia disso e compreendia com que
clareza Phung Van Cung julgara meu caráter. Sabia, também, que no final teria de
seguir o exemplo de Mel Adams e abandonar o Serviço Diplomático, mas minha
saída não me traria qualquer honra ou satisfação, pois não sairia por causa de um
princípio, mas apenas por incapacidade, não menos real porque somente eu a
conhecesse.
No serviço diplomático, era ainda o servidor bom e idôneo. "Deixem isso com
Max! Ninguém o amedrontará! Ninguém o enganará!". Era essa a metáfora usada
como elogio na mesa de conferências em Washington, mas Max tinha outra
metáfora, toda sua e bem mais próxima da verdade. Max era um corredor de
obstáculos que os ultrapassava em estilo certo, mas seu fôlego se acabara e jamais
ganharia outra corrida.
Era uma sensação amarga ver-me assim, em meio à carreira profissional,
destituído de ambição, honestidade e amor-próprio. Eu não era apenas o homem
irresoluto, era o homem vazio, estéril. Não acreditava no que devia fazer, e não tinha
qualquer convicção sobre o que devia ser; não via meios possíveis de restaurar o
capital que gastara. Estava agora isolado de qualquer contato íntimo com os
colegas, pois não me poderia arriscar a que vissem por trás da máscara o manequim
vazio que a usava. Anne Beldon pedira licença especial para visitar a mãe doente, e
enquanto se achava em Washington requerera transferência para uma vaga em
Roma. Nenhum de nós dois tivera coragem para enfrentar o possível desfecho
daquela noite de revelação e ternura desperdiçadas.
Por isso, precisando de qualquer outra amizade, comecei a me corresponder
com Muso Soseki e pouco a pouco lhe expus os meus problemas. Finalmente,
quando consegui preparar minha saída, supliquei-lhe que me recebesse de novo
como hóspede em Tenryu-ji. A sua resposta, escrita na caligrafia apurada em que
era mestre, foi curta e simples: "Quando estiver pronto, venha! Sei do que precisa..."
Para exprimir minha necessidade, escrevera o belo ideograma "homem-sob-árvore",
que significa descanso.
Quando me recebeu em sua casa e conversamos pela primeira vez, examinou-
me com séria preocupação e depois escreveu um sinal diferente para descrever o
meu estado. Era o ideograma de "coração-à-janela", designando a ansiedade. Em
seguida, desenhou o símbolo de "mulher-sob-telhado" para mostrar o estado para o
qual eu devia tender, paz e tranqüilidade. Depois disso, explicou-me os sinais feitos
com pinceladas, em parábola:
- O coração olha pela janela e vê o que não compreende, deseja que não pode
ter. O coração fica perturbado e receoso... A árvore olha mas não vê, está de pé e
não anda, cresce mas não deseja. O homem descansa sob a árvore, é apoiado pelo
tronco e protegido pelas folhas, e partilha da vida da árvore sem gastar a sua
própria. A casa abriga a mulher, esta circunda o homem, e a vida nasce da
tranqüilidade deles... Assim você, meu amigo, fechará a janela que dá para fora e
começará a olhar para dentro de seu eu verdadeiro. Você vai sentar-se em meu
jardim e Se tornar uma árvore...
- E a tranqüilidade?
- Vem com o esclarecimento, encontrado por quem não o busca.
Depois da dialética áspera e destruidora em que estivera empenhado tanto
tempo, era extraordinariamente difícil para mim acomodar-me mais uma vez aos
métodos da tranqüilidade. Por diversos dias, entediei-me no lugar, inquieto e
insatisfeito, às vezes também irritado, pois Muso Soseki se negava a entrar em
qualquer exame dos problemas que me perturbavam. Quando insisti com energia
demasiada, ele sorriu e desenhou para mim a palavra que representa desordem,
uma combinação de "fala" e "trabalho", e depois desenhou "água-numa-floresta",
descrevendo a natureza da solidão e contemplação. Levei bastante tempo para
digerir a gentil repreensão, mas lentamente a tranqüilidade veio chegando de novo e
no jardim sutil, na época dos bordos em fogo, comecei a sentir o início da liberdade
e ampliação. Dormia melhor, despertava de manhã sentindo crescente admiração
pela simplicidade da pedra, do tanque de lírios, da folha caída.
Assim retemperado, comecei a ansiar pelos exercícios de iluminação que tinha
começado a praticar tanto tempo antes,
mas Muso Soseki tinha outros planos.
- Também eu aprendi alguma coisa com você, meu amigo, como a água que
reflete o rosto do homem que a olha. Somos de países diferentes, fomos produzidos
por histórias diferentes, comunicamo-nos cada qual num idioma diferente. Por isso,
não devemos aceitar ou rejeitar imediatamente o equipamento de que dispomos.
Ambos olhamos a mesma árvore, mas se a descrevermos a um terceiro ele julgará
por algum tempo que se trata de duas árvores diversas. Assim, para começar, fala-
remos cada qual a seu modo, e veremos o que podemos ensinar um ao outro. Em
primeiro lugar, conte-me o que lhe aconteceu...
Suponho que se tratava de um tipo de confissão, mas havia muitas lacunas,
algumas ditadas pelo segredo necessário à minha profissão, outras pela vergonha
de minha fraqueza em idade madura. A atitude do ancião era de desligamento e res-
peito notáveis. Não era um psicanalista a explorar os segredos do subsolo de uma
mente perturbada. Não era um confessor fazendo um resumo judicioso de culpa e
arrependimento antes de pronunciar seu perdão. Aceitava a narrativa conforme eu a
fazia, sem perguntas, como se fosse um espectador de teatro, para quem o
dramaturgo apresentava os termos de referência e modo de interpretação.
Mencionei-lhe isso, e ele respondeu naquela forma simbólica que caracterizava toda
a sua exposição:
- Quando um homem resolve revelar-se a um amigo, este se toma testemunha
de um espetáculo de crescimento, como o nascimento duma criança ou o
desabrochar de uma flor. Há um desdobramento que vem da treva para a luz, a
revelação de uma vida oculta que, para desenvolver-se, precisa de ar, sol e
cuidados. Se a flor não desabrochar, murchará e morrerá em botão, e cairá do caule.
Se o homem não se revelar, seu crescimento é paralisado e, finalmente, a vida
secreta de seu espírito morre como um botão comido pelos vermes. No entanto,
devemos ser pacientes e não pedir para ver todo o crescimento de uma só vez.
Primeiro, o pequenino broto marcha timidamente para o sol, depois outro aparece, e
o pedúnculo cresce com firmeza e se toma botão e flor e fruta... Você tem reservas
comigo. Sei disso. Ser tímido não é ser medroso; é ser apenas cuidadoso com a
fragilidade do eu interior.
Com algum ressentimento, eu lhe disse que outros a quem eu amara e
respeitara não se tinham mostrado tão cuidadosos, haviam feito juízos sumários e
retiradas brutais.
Ele sacudiu a cabeça e me respondeu serenamente:
- Sumários, sim, mas não brutais. Também eles eram tímidos, sabe? Dependiam
de você no que lhes faltava a eles próprios. Quando você não pode preencher a
falta, ficaram raivosos, desapontados e, possivelmente, receosos.
- Mas não me davam o direito de ter medo!
- Eram mais jovens e de grau mais baixo - respondeu Muso Soseki com
tolerância. - Eu sou mais velho, e lhe concedo o seu direito. Por isso, vamos
começar onde paramos. Achou a resposta para a pergunta sobre o cuco?
- Achei. Eu matei o cuco.
- Então, agora não há canto para você, no inverno ou no verão?
- Não há canto, nem pássaros, só uma reprovação com que vivo todos os dias.
- O cuco o reprovou quando o matou?
- Em meu sonho, não.
- Mas o que mais era o cuco, senão um sonho?
- Quando o sonho terminou, o cuco se tomara um homem.
- Você matou o homem?
- Eu pronunciei a palavra que despertou o caçador, que o matou.
- Então o cuco está morto e o homem está morto. Falemos sobre um rio.
- Qual rio?
- O que é um rio?
- É água que corre do terreno mais alto para o mais baixo, a fim de juntar-se a
outra água.
- A água nunca é a mesma, mas o rio é sempre o mesmo. Assim sendo, como é
que a água pode ser o rio?
- O rio é o lugar por onde a água corre.
- Mas, sem água, esse lugar é um vale vazio.
- Então, o rio é o lugar, e mais a água, e mais o fluxo dela. - Olhe! Eu atiro no rio
um pau, uma pedra e um homem. Que acontece com eles?
- O pau flutua. A pedra afunda. O homem nada, ou se afoga.
- E o rio?
- Muda, mas é sempre o mesmo.
- Quer o homem nade, quer se afogue?
- Quer nade, quer se afogue.
- O rio se preocupa com o que o homem faça?
- Não, só o homem se preocupa.
- E por que se preocupa?
- Porque sabe que não é um rio. E saber isso é maravilhoso e terrivelmente
solitário.
- Agora, falemos sobre o saber. Você sabia, quando pronunciou a palavra, que
ela despertaria um caçador?
- Sabia, sim.
- Por que a pronunciou?
- Porque se não o fizesse poderiam vir feras selvagens e devorar-nos a todos.
Mas o caçador também era uma fera.
- Mas o caçador era um homem, também.
- Sim.
- Então, você despertou homem e fera com a mesma palavra
- Sim.
- E em você próprio despertou também uma fera.
- Também.
- Poderia ter impedido o despertar das feras?
- Se não falasse, sim.
- Mas você foi mandado para falar. Era seu dever falar. - Eu não devia ter aceito
esse dever.
- Então, por esse motivo, deve culpar-se, mas não pela morte do homem
- Mas um é extensão do outro.
- Como sabe?
- Parece-me que é.
- O que parece ser nem sempre é.
- Eu queria saber, realmente, o que é.
- Veja as folhas de bordo. Estamos no outono, época da queda das folhas. É o
vento que desnuda a árvore, ou a árvore que atira as folhas ao vento errante?
- Não faz diferença para mim, porque não sou folha nem vento!
- Mas é! Você é folha, é árvore, é fera e vento. Sendo um homem, está
envolvido em tudo, é um resumo de tudo.
- Não! Não! Não! - respondi com veemência que me surpreendeu. - Você não
compreende? Nisso está todo o erro, o erro pessoal, o político! Não sou árvore, e se
tentar determinar como a árvore deve crescer, eu a paralisarei e torcerei como o
bonsai de seu jardim. Não somos vietnamitas, japoneses ou malaios, e como
podemos dizer como eles devem viver, e no que devam acreditar, para estarem
contentes? Há assassinato nisso! Destruição e semeadura de ódio! Eu sei. Fui ins-
trumento disso.
O velho monge foi muito paciente. Não se esquivou à proposição, mas
examinou-a comigo, andando pelos caminhos de saibro, parando de vez em quando
para contemplar alguma beleza pequenina e oculta na intimidade antiga do jardim.
- ... Não deve ser demasiado áspero consigo, meu amigo, nem esperar
demasiado dos processos imperfeitos pelos quais a humanidade governa um
planeta complexo. É esse o paradoxo, a contradição visível além da qual tentamos
penetrar para chegar à harmonia invisível. Em termos ocidentais, é esse o fito do
satori: iluminar a harmonia e a unidade e tornar o homem novamente parte dela.
Mas até o satori não é estado permanente, só o Nirvana é a iluminação permanente
e eterna. Você diz que não deve determinar o crescimento da árvore, mas se ela
ameaçar sua casa, você não a poda e endireita?
- Mato-a, também?
- Se a árvore tombar sobre sua casa, ela morre, a casa é destruída e você é
morto, também.
- E três mortes são piores do que uma?
- Toda a morte é um morrer só, e no entanto não há morte. A fera que você
mata se torna uma fera em você. O bem que você mata brota novamente, como o
musgo numa sepultura.
De repente, senti-me tomado de fadiga e desagrado por aquele diálogo
simbólico, que agora me parecia uma marcha difícil em meio a teias de aranha. Eu
não era o mesmo homem que viera a Tenryu-ji na companhia de George Groton.
Estava mudado. Não pertencia mais àquele jardim. Estava cansado da linguagem
sutil do mondo, era realmente o gaijin, o homem de fora. Precisava de um tipo de
iluminação que não era o oferecido por Muso Soseki. Era difícil explicar tudo isso
sem parecer indelicado a meu mestre, mas ele o compreendeu intuitivamente e me
absolveu de qualquer descortesia.
- Foi o que pensei que poderia acontecer. Por isso, lhe disse que também
aprendi com você. Você mudou. Gastou uma parte de si próprio que não pode
substituir. A língua e símbolos que usamos juntos constituem agora um obstáculo, e
não uma ajuda, para o seu esclarecimento. Não deve desanimar com isso, pois
acontece a muitos. O caminho da iluminação e contemplação pura se destina a
poucos, e agora creio que apresente graves perigos para você.
- Pode-me dizer o que me sucedeu?
- Acho que sim. Você é como o viajante da antiguidade, que parte na jornada de
Kyoto a Edo e que, dizem todos, é cheia de interesse e diversidade. Ele sai. com
muita confiança, tem dinheiro na bolsa, boas roupas, corpo forte e companheiros
para se distrair durante a jornada. Mas antes do fim, descobre como errou nos
cálculos. As hospedarias são caras, as moças extorsivas, ele é roubado pelos
barqueiros e patifes inteligentes. Por isso, muito antes de chegar a Edo se vê sem
dinheiro, as roupas são leves demais para o inverno que se aproxima, os
companheiros debandaram pelo caminho e ele está numa província cujo dialeto não
compreende. Também está mais velho, o tempo encurtou. Quando fala com as
moças nas casas de chá, seu coração ainda está preso à sua casa. Quando observa
os mercadores que fazem negócios, sabe que o ouro logo se gasta e a seda
também. Que faz? Quer-se matar, mas não tem coragem. Deseja ser como os
patifes inteligentes que encontrou em sua viagem, mas para isso não tem inclinação
nem talento. Senta-se à beira da estrada e lamenta-se. Depois de algum tempo, no
entanto, não há mais lágrimas a derramar. Ouve os gongos do mosteiro e vê os
bordos cor de fogo, e diz: "Ali existe luz e a compaixão do Compassivo", mas não
encontra luz porque ela é um dom para cada homem em separado, não é um bem
comum. E a compaixão não o pode tocar, porque ele se prende à sua própria culpa
e não se poderá perdoar. A minha parábola narra a verdadeira situação Amberley-
san?
- Sim, mas pode terminar assim, com o viajante parado, sem lágrimas, sem luz e
recusando a compaixão? Há uma palavra para isso no Ocidente: accidie. Significa o
Nirvana falso e terrível fundado não na união, mas na separação, não na extinção do
desejo, mas no desprezo por ele. É onde estou agora. Por esse motivo, penso que
não posso continuar o mondo em sua companhia.
- Há outro final para a parábola, meu amigo. Se for um pouco mais paciente
tentarei mostrá-la. Ficamos com nosso viajante sozinho à beira da estrada e
abandonado, não foi? Ele não pode regressar. Nada há que o impulsione à frente.
Sem desejo, no entanto, continua a andar. Ao lado da estrada, vê uma imagem do
Buda, da Deusa Kuan Yin, de Rai-jin, o Deus do Trovão, um fumiejesu, talvez, ou
mesmo o Grande Urso dos anos. Trata-se de coisa morta, feita de madeira, pedra ou
barro cozido e que, para nosso viajante, nada significa. Sendo um homem, no
entanto, sabe que a imagem tem significado para outros homens, é uma expressão
de sua necessidade e desejo de esclarecimento, harmonia e elevação acima do eu.
Para ao lado da imagem que não tem significado para ele, recita uma oração em
cuja eficácia não acredita: "Se existe luz, mostra-me luz. Se existe poder, estende-o
a mim. Se existe perdão, perdoa. Se houver um amanhã, dá-me uma esperança
nele e se existirem essas coisas, mas não para mim, dá-me a paciência para
suportar essa inexistência".
- E como saberei se a oração vai ser respondida?
- Quando tiver a coragem de viver sem uma resposta. - E se eu não tiver
coragem?
- Então, andará mais um pouco na estrada e chegará a uma habitação de
homens.
- Como posso ter certeza disso?
- Porque, onde há imagens, sempre há homens!
- E depois?
- Verá o que viu o Senhor Buda: um homem doente, um homem velho, um
homem morto e um homem com a cabeça raspada, que não tem lar. E, então, você
dirá: “Nenhum desses é mais afortunado do que eu. Portanto, por que devo me quei-
xar?” E então, você aceitará conviver novamente na habitação dos homens, ou se
juntará àquele que não tem lar e continuará na estrada. Assim, de qualquer dos
modos sua oração será respondida e terá um começo de luz e o desejo de mais luz.
- E o perdão? Quem me perdoará pelo que fiz?
- O morto a quem dará sepultura, o doente a quem socorrer, o velho que
amparará, o desabrigado cuja solidão partilhará.
- E a imagem?
- Ainda é uma imagem do Desconhecido e Incognoscível, que poderá um dia
resolver esclarecê-lo, pois o Todo-Esclarecido tem pena da humanidade.
Era uma filosofia desolada e espartana, e enquanto ele a descrevia, eu sentia o
coração desanimar diante de sua aspereza. A oração ao Deus desconhecido é ato
terrível e desesperado, que pode lançar o homem na loucura ou na revelação
inimaginável. É o salto pela escuridão, que o atira no silêncio eterno ou na
sublimidade do abraço Divino. No entanto, que mais me restava? Minha pequena
herança de boas maneiras, costume polido e moralidade tradicional fora destroçada
pela marcha processional da história. Minha ação, ou qualquer ação, era um gesto
fútil contra o poderio esmagador dos elefantes. Que eu tivesse sobrevivido à mesma
e Phung Van Cung se visse destruído por ela, era acidente sem importância na
longa e violenta evolução da primeira forma de vida até aquela criatura caótica, o
homem, que ainda assim conseguira impor uma ordem ao planeta. Acidente ou
desígnio? Luz ou ilusão de treva total?
Se tudo era acidente e ilusão, eu nada queria de nada. O tempo era longo
demais, a vida excessivamente solitária na paisagem plana e vazia de meu
sonho. Mas se, como Muso Soseki prometia, existisse ainda que somente a
esperança de luz, uma necessidade de perdão, um significado no servir, uma tran-
quilidade no amor, então eu poderia concordar em continuar a ser um homem. Como
poderia saber outra vez, com certeza, eu que matara o pássaro do sonho que não
existia, e matara um homem sem tocar nele e, tendo destruído minha própria ima-
gem, olhava agora um espelho que nada refletia?
Como se adivinhasse meus pensamentos, Muso Soseki se inclinou e apanhou
no caminho uma pequena pedra, redonda, polida e cheia de veias verdes. Estendeu-
a para mim na palma da mão.
- Não é bela, meu amigo?
- É bela, sim.
Atirou-a no tanque e observou enquanto as ondulações se espalhavam na
superfície da água e atingiam a margem gramada. Depois voltou-se e me disse de
modo grave:
- Ela ainda é bela, embora você não a veja. Será bela ainda, quando os peixes
se tiverem esquecido dela, as plantas da água a encobrirem e ninguém mais, a não
ser você e eu, souber que ela já existiu.
- A beleza é bastante, contra toda a fealdade?
- Não, mas que exista alguém para ver a beleza e deliciar-se nela, isso é muito
mais.
- Mas ainda não o bastante.
- Ainda não, mas saber que vimos e desfrutamos é saber que o poderemos
fazer de novo.
- Mesmo quando se destruiu a beleza e criou a fealdade?
- Às vezes por causa disso... Você nunca perguntou, meu amigo, como vim para
este lugar.
Era verdade. Desde o primeiro momento em que nos víramos, eu o aceitara
como uma permanência, como os pinheiros, pedras e formas de areia e musgo. Ele
estava tão identificado àquelas coisas, que me pareceria impertinência perguntar de
onde viera. Disse-lhe isso, e ele aceitou o cumprimento com bom-humor moderado,
e depois me narrou:
- Tenho setenta e cinco anos de idade. Estou neste lugar há mais de trinta anos.
Em 1931, tomei parte na invasão da Mandchúria. Era então um oficial, orgulhoso de
minha longa alinhagem como membro de uma família Samurai. Matei muitos
homens e fui condecorado pelo Imperador por valor em campo de batalha. Depois,
adoeci e cheguei bem perto da morte. Pela primeira vez, compreendi a natureza da
morte que infligira a outros homens, quanta promessa fora assim destruída, quanta
dignidade violada. Também eu queria perdão, mas ao invés davam-me somente
louvor. Eu queria pagar, mas que adianta uma moeda na boca do morto? Como
você, encontrei-me na treva e nela vaguei muito tempo. Depois, cheguei a este
lugar, procurando luz...
- E encontrou?
- Aprendi a não exigi-la.
- Está mudado?
- Sou o mesmo. Mas mudei, porque sei que não posso mudar o que fui, e o que
fiz.
- E a luz?
- Esta é a luz.
- Mas você nada pagou.
- Paguei tudo, aceitando que nada posso pagar.
- Os cristãos exigem uma penitência para o pecado.
- O Senhor Booa ensinou que a própria vida é penitência para o desejo
obstinado.
- Os cristãos dizem que o homem espera a misericórdia de Deus.
- Para nós existe a Compaixão do Compassivo. Qual é a diferença?
O sol já se pusera e o jardim enchia-se de sombras. Os bordos não tinham mais
a cor do fogo, mas destacavam-se escuros contra o céu da noite. A carpa estava
imóvel na água escura e os lírios se tinham fechado para dormir. Muso Soseki pôs a
mão enrugada em meu braço e me levou para sua casa.
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Saigon - outubro de 1963.
Sydney - outubro de 1964.
1965