Uma Coisa Te Falta! PDF
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O CHAMADO DE CRISTO
JAVIER O. RAVASI
Aspirantado: casa religiosa onde habitam as pessoas que, ainda sem haver
terminado os estudos médios ou secundários, desejam ingressar na vida religiosa.
Claustro/clausura: parte de um mosteiro (monastério/convento) ou casa
religiosa que é utilizado apenas pelos religiosos.
Clero secular ou diocesano: sacerdotes que exercem seu ministério em uma
jurisdição ou diocese determinada e que normalmente não vivem em comunidade. Seu
superior é o Bispo diocesano.
Congregação Religiosa: comunidade religiosa que vive de acordo a uma Regra
ou Constituições e seus membros professam necessariamente votos de castidade, pobreza
e obediência, podendo algumas professarem outros associados a estes.
Leigos ou pessoas seculares: católicos que vivem no mundo e tentam
santificar-se em seu próprio estado de vida.
Noviciado: tempo estabelecido no qual o candidato se prepara para professar
temporariamente os votos religiosos, em um determinado instituto religioso, após o
Postulantado e sob a orientação de um mestre de noviços. Normalmente dura um ou dois
anos dependendo da congregação e, ao início do mesmo se recebe o hábito religioso.
Ordem religiosa: comunidade religiosa que vive de acordo com determinadas
regras, professando os seus membros os solenes votos de castidade, pobreza e obediência.
Existem, estritamente falando, somente 4 ordens religiosas: Carmelitas, Beneditinos,
Dominicanos e Franciscanos.
Postulantado: tempo de discernimento posterior ao Aspirantado e anterior ao
Noviciado, em que o candidato começa a conhecer a congregação religiosa ou o instituto
de vida consagrada sendo ao mesmo tempo conhecido por seus superiores. Usualmente
pode durar alguns meses, ainda que normalmente não passe de um ano.
Profissão: é a promessa dos votos religiosos que, realizada livremente e aceita
segundo os regulamentos e cânones da Igreja, alguém realiza temporária ou
perpetuamente, obrigando-se a cumpri-la dentro da vida religiosa.
Religioso: nome que se aplica frequentemente ao membro de uma família
religiosa que possui os votos de castidade, pobreza e obediência (e outros).
Seminário menor: casa religiosa onde habitam os moços que, ainda sem haver
terminado os estudos médios ou secundários, desejam ingressar na vida sacerdotal e/ou
religiosa.
Seminário maior (NdT): local de formação para a vida sacerdotal, onde os
seminaristas realizam os cursos de Propedêutica (introdução), Filosofia, Teologia e Prática
Pastoral, para então ordenar-se, primeiramente Diácono e após Sacerdote.
Sociedade de vida religiosa: comunidade de vida religiosa que vive de acordo
com uma Regra, mas sem os votos públicos.
Terceira ordem: modo de vida determinado pelo qual certos leigos desejam
santificar-se de acordo aos caminhos traçados pela Regra ou Constituição de algum
Instituto ou Ordem religiosa, gozando de seus frutos e vivendo o carisma de seu
fundador.
Vida ativa: modo de viver a vida religiosa na qual os religiosos se dedicam a
obras de misericórdia, tanto corporal quanto espiritual (hospitais, asilos, escolas,
orfanatos, catequese, retiros, sacramentos etc – NdT).
Vida contemplativa: modo de vida de alguns religiosos que se dedicam
principalmente à oração e à contemplação, sem excluir o trabalho manual.
Vida mista (NdT): ordens religiosas que possuem como carisma (característica)
tanto a contemplação como a ação, no sentido acima entendido.
Vida religiosa: vida devota realizada segundo determinada regra.
Voto: promessa livre e deliberada feita a Deus, pela qual alguém se obriga sob
pena de pecado grave a realizar algum tipo de obra por um tempo determinado ou
perpetuamente. Os votos podem ser tanto públicos (oficialmente aceitos pela Igreja)
como privados.
INTRODUÇÃO
mais íntimos, tanto na escola quanto no jogo, e agora diante de meu pai. Quando
aprenderei a calar-me?
E muito desgostoso, apoiou a cabeça na borda da janela, contemplando o céu de
novembro.
Lá no alto começava a brilhar a estrela vespertina. No poente remoto, a noite
aguardava prostrada como um monge de hábito negro esperando o toque de Completas
para findar o que havia sido um belo dia. Mas Roberto não via a estrela, o monge
encapuzado, nem o dia agonizando. Somente tinha diante de si o olhar de assombro que
seu pai lhe fulminara ao ouvir o que dissera ao seu primo:
– Eu nunca serei armado cavaleiro. Eu conheço um mais nobre cavaleirismo!
Às suas costas, um velho servidor retirava os restos do banquete oferecido em honra
de Jacobo, um primo de Roberto que habitava o outro lado do Sena e acabara de ser
armado cavaleiro. O ancião acendeu uma tocha, a pôs sobre a mesa e abandonou o vasto
aposento. Ao abrir a pesadíssima porta de carvalho maciço, a voz sonora e tonante de
Teodorico, o senhor do castelo, penetrou o lugar acompanhada de uma gargalhada.
Roberto se moveu intranquilo. Aquele gigante que era seu pai o atemorizava. Sabia que
seu comentário na mesa não lhe havia sido agradável e teria de dar contas dele antes de
terminar a noite. Durante um bom tempo permaneceu contraindo sua fronte contra a
janela. De pronto se endireitou e disse a si:
– Bom! Manterei o que disse, algum dia teria de sair à luz da verdade. Dá no mesmo
essa noite ou outro dia...
E apertou com as mãos o cinto de couro.
Assim o encontrou sua mãe ao regressar ao aposento após despedir os hóspedes.
Observou-o um momento enquanto o moço elevava os olhos ao céu. Sobre o céu azul
escuro do crepúsculo, os traços firmes do queixo e a mandíbula de Roberto pareciam um
baixo-relevo. Hemengarda pensou que o filho se ia fazendo homem com grande rapidez
e, suspirando, disse:
Os meninos se fazem moços e os moços se convertem em homens sem que nos
demos conta... Roberto se parece cada vez mais com seu pai... Vai ser altíssimo –
murmurou com orgulho.
1
Extraímos aqui as belas páginas do livro de M. Raymond, Três monges rebeldes, Herder, Barcelona 1981, 19-34.
Como Roberto não se movia, aproximou-se cautelosamente dele e, colocando-lhe as
mãos sobre os ombros, perguntou:
– Te hás tornado sonhador meu menino?
O moço surpreendeu-se ao sentir o contato, mas ao ouvir a voz materna estendeu os
braços e deixou que os de Hemengarda rodeassem carinhosamente seu pescoço.
Veja, mãe! – exclamou mostrando o argentino2 fulgor da estrela que brilhava solitária
no amplo dorso do entardecer.
É belíssima, mas está só... Terrivelmente só... Parece perdida, não é verdade?
Hemengarda apoiou a face sobre o ombro do moço:
– Sonhador!... Poeta!... Que vai ser de ti, filho meu?
O braço de Roberto enlaçou a sua mãe pela cintura, enquanto respondia a pergunta
com uma piscadela travessa:
– Tuas palavras são exatas, mãe, mas não na ordem que as pronunciastes. Deverias
ter-me perguntado o que meu pai irá perguntar quando retorne. Deverias ter dito: “Que é
que passará, filho meu?” Já verás com que tom se me pergunta!
Apenas pronunciada esta frase, Teodorico irrompeu na sala, exclamando com sua
grande voz:
– Hemengarda: diz meu irmão Leão que sua colheita há sido igual que a nossa, quer
dizer, três vezes maior que o corrente. A verdade é que vamos repor os últimos três anos
de...
Interrompeu-se e seu olhar se deteve em Roberto. O fulgor de seus negros olhos
mudou. Franziu a fronte e retraiu a barba até o peito. Aquele gesto feroz era o que
Hemengarda chamava “tragar-se a si mesmo em sua espessa barba negra”. A castelã
sorriu para si enquanto seu esposo pigarreava ruidosamente, se dirigia até à lareira e
acrescentava um grosso tronco ao fogo, pormenores que sempre considerava preliminares
necessários para abordar qualquer tema importante. Que homem tão transparente
resultava o gigantesco cavaleiro!
Enquanto aquecia suas mãos ao lume, Teodorico soltou:
– Roberto, filho meu, esta tarde hás feito ao teu primo uma observação a qual não
logrei compreender.
Hemengarda advertiu a tensão de seu filho.
– Quisera compreendê-la, filho, e compreendê-la no todo. Que hás querido dizer com
isso de que nunca serás armado cavaleiro?
Roberto agarrou-se nervosamente à mesa. De qualquer modo e de qualquer ponto de
vista que se lhe mirava, seu pai era um homem de extraordinária corpulência; mas visto
2
Prateado. (NdT)
naquele momento sobre o fundo das irrequietas chamas do lugar, sua figura parecia
gigantesca. O aposento se inundou de silêncio. Roberto sentia a garganta terrivelmente
seca. Sabia que toda ilusão do pai cifrava-se no dia em que seu único descendente fosse
armado cavaleiro de Champagne; sabia que sonhava com o momento em que ambos
pudessem dirigir-se juntos – armados até os dentes e cheios os dois de fortaleza e valor
temerário – a um torneio ou à guerra. Como não duvidava do carinho do pai, Roberto
não temia seus relâmpagos de furor, mas o afligia a ideia da dor que produziria naquele
bondoso gigante ao dizer-lhe a verdade. Teodorico interrompeu seus pensamentos com
um impaciente: “Bom, então?”, pronunciado ao mesmo tempo em que o último lenho
lançado ao lume saltava e crepitava fortemente, espalhando uma sorte de chispas
reluzentes que caíram em arco sobre o pavimento de pedra.
Aqueles sons repentinos sobressaltaram visivelmente a Roberto, mas ao mesmo
tempo aquele involuntário sobressalto lhe proporcionou, paradoxalmente, o domínio de si
que ansiava. Seus músculos se relaxaram. E ainda que seguisse com as unhas cravadas nas
palmas das mãos, sua voz e seu olhar eram firmes ao responder:
– Senhor, disse o que sinto. Eu nunca serei armado cavaleiro porque conheço uma
mais nobre e elevada forma de cavaleirismo.
– Não sei qual poderá ser – replicou Teodorico sondando com seus olhos negríssimos
os olhos pardos de seu filho.
– A forma mais elevada de cavalaria neste mundo, senhor. O cavaleirismo de ser
valoroso com Deus!
Ao pronunciar a última palavra, Roberto levantou a cabeça, elevou os ombros e fitou
a seu pai com um olhar quase desafiador.
Hemengarda conteve a respiração ao dirigir o olhar da erguida cabeça do moço à
submergida barbicha de seu esposo. Teodorico se deu conta, e deliberadamente deu as
costas ao moço, dedicando toda sua atenção a empurrar com a bota umas quantas brasas
que haviam caído fora do lugar. Depois, com calma forçada, se transladou até a poltrona
ocupada por sua esposa.
– Queres sentar-te, filho – disse apontando um tamborete –, e explicar-te com mais
claridade? Eu conheço somente um cavaleirismo digno dos nobres de Champagne. Em
que consiste esse mais elevado que tu afirmas conhecer?
Seu tom era mais profundo e sua voz mais suave; mas Roberto, ao contemplar
aqueles olhos negríssimos, viu neles o mesmo brilho.
– Se me dás vossa vênia senhor, prefiro manter-me em pé – retrucou o filho,
apartando-se da mesa em direção à lareira. Depois se voltou, mantendo-se de frente aos
seus pais. As chamas, dançantes, faziam passar sobre suas decididas feições os reflexos
mais curiosos.
Estudando aquelas feições, Teodorico compreendeu de pronto estar tratando não
mais com um meninote, com um homem. Mirou Hemengarda e viu que tinha as mãos
cruzadas sobre o regaço. Sua atitude denotava a calma mais perfeita. Alegrou-se de tê-la
mirado, porque sua compostura lhe fez sentir-se mais seguro de si. Ao levantar a cabeça
um instante após, não lhe surpreendeu descobrir um fugaz sorriso nos lábios de seu filho.
– Bom! – exclamou Teodorico enquanto Roberto, ao que parecia, esperava um
convite a falar.
– Senhor: crês que sou tão encorpado como meu primo Jacobo?
Teodorico assentiu com um gesto.
– E que monto a cavalo com tanta desenvoltura e galhardia como ele?
O pai tornou a assentir.
– E que posso lutar com a mesma destreza que meu primo Jacobo? Desmontei-lhe
duas vezes, rompendo umas lanças em nosso próprio pátio.
Perguntando-se aonde iria parar o filho, assentiu por terceira vez.
– Meu primo Jacobo recebeu a investidura em Troyes na semana passada. Esta tarde
lhe oferecemos um banquete para honrá-lo e mostrar nosso júbilo. Eu não o invejo.
Tampouco temo a cavalaria ou o quanto supõe o ser armado cavaleiro. Mas tenho tido
dois motivos para não ser armado à semana passada. Um, a idade; outro – acrescentou,
pondo a mão sobre ao coração –, este.
O rosto do moço pareceu iluminar-se ao acrescentar:
– Senhor, desejo ser um valoroso servidor de Deus. Quero fazer-me monge.
– Quê?! – rugiu Teodorico; o trovão de sua voz retumbando em todo o castelo.
Roberto empalideceu, mas seus olhos conservaram a fixidez do olhar. A exclamação
paterna não o surpreendeu o mínimo. Esperava-a. A semana anterior havia prometido a
sua mãe não dizer nada a Teodorico antes que terminasse o ano. E apenas começava
novembro, e já o sabia...! apesar de sua ansiedade, o moço sentiu-se aliviado. E antes que
seu pai se recobrasse da surpresa, decidiu seguir proferindo:
– Senhor, eu tenho sido educado pelos monges, de quem tenho aprendido algo mais
que o Trivium e o Quadrivium. Deles aprendi essa outra forma de fidalguia. Foi muito,
senhor, o que destes aos pobres e famintos durante esses três últimos anos de escassez.
Também fez muito por eles meu tio Leão do outro lado do Sena. Sinto-me orgulhoso do
sangue que levo em minhas veias. Mas – acrescentou com veemência – os monges deram
mais que vós, senhor!
Teodorico estava atônito. Nunca até aquele momento tinha ouvido falar daquela
maneira seu filho, que parecia inflamado e inspirado ao prosseguir:
– Durante os três últimos anos – disse Roberto – as portas de San Pedro de la Celle
estiveram abarrotadas de pobres. Nem um só apartou-se delas com as mãos vazias. Para
que isto sucedesse, os monges morriam de fome! Ouves-me, senhor? Morriam de fome e
necessidade!
Roberto fez uma pausa e prosseguiu:
– Vendo aquilo, compreendi não ser mister vestir a peça de malha ou empunhar a
lança de combate para ser valente. Então compreendi que existe um cavaleirismo maior
que a Cavalaria mesma!
O tom de Roberto se fez mais profundo.
– Desde então, senhor, tenho rezado muito e consultado aos meus mestres. Os
monges estão dispostos a receber-me. Mamãe consente que vá. Confesso minha covardia
ao não haver dito antes, meu pai, mas agora os suplico vosso perdão, vossa benção e
vosso consentimento.
As últimas palavras saíram precipitadas de sua boca. Era o discurso mais longo que
jamais pronunciara ante seu pai. Sabia que sua confissão havia sido temerária, e agora
sentia-se um pouco envergonhado. Sentia a tentação de recorrer à ajuda materna, mas
decidiu conservar-se em seu terreno e sustentar por si só sua atitude. Pareceu-lhe
descobrir nos lábios de seu pai – ocultos pela espessa barba – um gesto de perplexidade.
Apertou os punhos e esperou a reação.
– Quem inculcou semelhante ideia em tua cabeça? – perguntou Teodorico. Tua mãe
ou os monges?
Nem uma nem outros.
Quem então? – tornou a perguntar Teodorico em tom mais áspero.
Deus! – exclamou rotundo o moço, cuja voz ressoou no aposento com a mesma
contundência que o golpe da espada em um escudo. Mais ainda: produziu o efeito do
choque de uma catapulta. A solene palavra não encontrou eco. Ao contrário, o silêncio do
lugar se fez angustiante.
Teodorico mudou de postura, aproximando-se do encosto da poltrona ocupada por
sua esposa. A resposta dada pelo filho lhe havia surpreendido de tal maneira, ainda que
menos, talvez, que o descobrimento do fogo que ardia no profundo daqueles olhos
pardos, que tão fixamente lhe seguiam mirando.
Só se ouvia o suave crepitar do fogo e o murmúrio dos lenhos e das brasas lambidas
pelas chamas.
Teodorico ficara atônito ante a declaração de seu filho. Roberto era o sol de sua vida,
lhe queria com loucura e com frequência se vangloriava ante os demais nobres do fino
cavaleiro que chegaria a ser. As cerimônias presenciadas na semana anterior e o banquete
recém celebrado em honra do sobrinho lhe haviam feito acariciar uma áurea visão: seu
filho prostrado aos pés do conde de Champagne e rodeado dos demais cavaleiros do
reino para receber a investidura de seu senhor. Em troca, o quadro que lhe evocava o
anúncio feito por seu filho – o formoso adolescente com a cabeça rapada e o capucho –
não lhe resultava atrativo em absoluto. Ainda que sentisse ferver a cólera em sua alma,
soube dominá-la, por dois motivos: a presença gentil de sua esposa e o tom de voz com
que seu filho havia pronunciado a última palavra.
Apartando-se da poltrona de Hemengarda, Teodorico fez sinal ao filho convidando-o
a acomodar-se no tamborete que havia aos pés de sua mãe. Ele seguiu de pé diante da
lareira.
– Senta-te aos pés de tua mãe, Roberto. Todo este assunto requer mais explicações
das que hás dado. Dizes que Deus te sugeriu esta ideia. Posso perguntar-te quando o fez?
O rapaz assombrou-se da calma que denotavam a voz e os modos de seu pai.
– Seria muito difícil precisá-lo, senhor – respondeu. Em realidade creio que esta
tendência sempre há existido em mim.
– Ah! – exclamou Teodorico com satisfação. Então se trata apenas de uma tendência.
Deus não te há feito manifestações pessoais e diretas de nenhuma classe, não? Isso, filho
meu, muda muito as coisas.
Roberto tratou de pôr-se em pé, mas o impediu o gesto de sua mãe ao colocar-lhe a
mão sobre o ombro.
– Tem calma, filho – lhe aconselhou. Teu pai tem razão. É preciso aclarar tudo.
– Não sabes, filho meu – retomou Teodorico –, que todos praticamente, nos vemos
assaltados por essa ocorrência em alguma época de nossa juventude? eu mesmo senti esse
mesmo desejo!
Deixou-se rir alegremente e prosseguiu:
– Não creio que tua mãe possa negar que aquilo não passou de pura fantasia. Podes
imaginar a mim de monge, Hemengarda?
Novamente o largo riso de Teodorico retumbou no aposento. Hemengarda sorriu
com doçura, mas Roberto se contorceu inquieto sobre o assento. Teodorico lhe
observava atentamente. Havia esperado que um sorriso iluminasse também o rosto de seu
filho. Ver-lhe sério o desassossegou. Teodorico se impacientava ante a oposição, pois
poucas vezes a havia sofrido: seus servos eram sempre obedientes, e os senhores vizinhos
respeitosos. A atitude adotada por seu filho lhe fazia ferver o sangue.
Posto que não existisse alguma manifestação expressa de Deus, Teodorico acreditou
que a atração do claustro sentida pelo filho não era senão uma fase passageira de sua
idade, e se dispôs a terminar aquela conversação antes que se fizesse penosa. Com o
tempo, Roberto venceria aquela obsessão juvenil e algum dia sentiria o orgulho de ser um
cavaleiro de Champagne. Conservando a leveza de seu tom anterior, disse:
– Tens os ombros demasiado largos e os músculos demasiado fortes para ocultá-los
com um hábito, rapaz. Deus te há proporcionado um magnífico corpo de guerreiro. Teu
posto está em cima de um cavalo de guerra, empunhando a espada ou a lança.
– Acaso o claustro é só para os débeis? – se atreveu a objetar Roberto, desafiante.
– Claro que não – apressou a responder seu pai. Mas os verdadeiros guerreiros são
para o mundo – acrescentou, tratando de estimular o orgulho do filho exaltando a
profissão das armas. Tu serás um grande guerreiro. Me dizem os teus olhos. Tens algo
mais que uma esplêndida presença física. Possuis o fogo na alma!
A expressão distante de Roberto desiludiu ao pai, ainda que servisse para demonstrar-
lhe que não conseguiria nada por aquele caminho. Por isso, com ar de mando e confiança,
disse:
– Mas vamos, vamos... Se está fazendo tarde e é hora de que os jovens descansem. Já
te passarão estas fantasias!
– Senhor – exclamou de pronto Roberto, incorporando-se apesar da pressão da mão
de sua mãe, que tratava de evitar que o fizesse –, não são fantasias e não se passarão. Já
não sou um menino!
O jovem tremia. Seu semblante aparecia mais aceso que nunca. Plantara-se ante seu
pai com os punhos apertados e lhe mirava cara a cara.
Nunca até então havia Teodorico visto tão agitado seu filho, e lhe fitou surpreendido.
Percebeu o tremor de seus lábios, seus braços e suas mãos. Compreendeu que era ele
quem havia provocado a fúria do rapaz, e naquele momento não soube que fazer nem que
dizer. Uma palavra inadequada podia desencadear sua cólera contida; um gesto
equivocado, ferir seu coração jovem e impulsivo. Limitou-se a resistir a cintilante mirada
do filho com a sua, firme e tranquila.
Ao saltar Roberto de seu assento, Hemengarda se levantou da poltrona, aproximou
do filho, lhe rodeou lentamente com os braços e lhe disse, sorridente:
– Pode ser que teu pai tenha esquecido que o tempo retorne, filho, mas se te dedicas a
saltar como o hás feito, não poderá esquecer que já não és um menino, como dizes.
Contudo, sequer a doçura da mãe pode salvar o abismo que entre pai e filho parecia
haver-se aberto.
– Pai – disse Roberto com o tom mais sincero –, sentiria na alma haver-me mostrado
irreverente, mas gostaria – e o audaz tom anterior reapareceu em sua voz – que
recordásseis que tenho três anos mais que Theofilactyco, que segundo diz tio Leão, vai ser
eleito Papa.
Roberto não pode dizer coisa pior. Se houvesse sacado a espada para atacar-lhe não o
haveria ferido mais profundamente que com aquela alusão ao Papado. Teodorico era uma
alma vibrantemente católica. Nada o preocupava tanto quanto as circunstâncias que
atravessava a Igreja. Produzia-lhe grande inquietude ver que a casa de Tusculum
dominava o trono papal. Quando em 1024 morreu Benedito VIII, e seu irmão Romano
foi eleito para suceder-lhe apesar de ser secular, Teodorico pôs-se encolerizado. Mas
Romano, sob o nome de João XIX, ainda sem ser um pontífice santo, havia sido
moralmente limpo. Morto na semana anterior, ao chegar aos ouvidos de Teodorico a
notícia de que seu sobrinho Theofilactyco – de doze anos àquele tempo – ia suceder-lhe
na cátedra de São Pedro, sua fúria transbordou. Que seu próprio filho tomasse como
argumento naquele instante o deplorável episódio fez com que o sangue gelasse nas veias.
Seus olhos negros se converteram em duas brasas incendiadas. Apontou a porta ao filho,
dizendo com secura uma só palavra:
– Vai-te!
Roberto havia percebido com assombro a transformação operada em seu pai. Era
suficientemente agudo para compreender que aquela severidade fria era muito mais
perigosa que qualquer de seus estrepitosos enfados. Verdadeiramente estupefato saiu do
aposento para dirigir-se ao seu quarto. Não sabia o que lhe passava ao pai, mas desejava
não tornar a contemplar em sua vida aqueles carvões reluzentes que eram seus olhos.
Tendo saído Roberto, Hemengarda atravessou a sala, tomou seu esposo pelo braço e
lhe disse:
– Sente-se, meu senhor, temos muito a falar.
Teodorico se encontrava, entretanto, possuído daquele frio furor que o invadira ante a
menção do nome de Theofilactyco.
– Teodorico – começou Hemengarda, com suavidade –, a alusão de vosso filho foi
desditada. Mas Roberto vos ama profundamente, senhor. Adora-vos e respeita, e por
nada deste mundo seria capaz de feri-lo. Por isso não me deixou que vos falasse deste
assunto de sua vocação religiosa. Sabia quais eram suas esperanças com respeito a ele e
não queria defraudar-vos.
Teodorico, sentado, com os cotovelos sobre os joelhos e o olhar ausente, perdido
entre as chamas vermelho-azuladas que se agitavam na lareira, parecia não ouvir a voz da
esposa. Hemengarda esperava uma reação, e ao não obtê-la, decidiu utilizar um velho
estratagema: induzir-lhe a discutir. Assim, prosseguiu:
– Desde o início, Roberto há sido o que levou a melhor parte na discussão esta noite.
Teodoro levantou os olhos do fogo, cravando-os nela.
– Sim, insistiu Hemengarda –; a melhor parte. Ele tinha argumentos firmes e vós os
haveis limitado a vossas afirmações.
– Que queres dizer? – perguntou Teodorico. Vais insinuar que não fiz bem ao dizer-
lhe que ainda é um rapazote?
– A mim não me pareceu tão rapazote há pouco, quando susteve com firmeza o
olhar. Hemengarda sorriu evocando a cena:
Parecia, melhor, um guerreiro. Suas palavras eram as de um conquistador!
– É verdade que fisicamente está mui crescido para sua idade – concedeu Teodorico
resmungando. Mas não devemos olvidar que só tem 15 anos.
– Esse é um de vossos erros, senhor meu, porque Roberto tem algo mais que isso.
– Estamos em 1033 – respondeu Teodorico, irônico –, e nasceu em 1018. Segundo
meus escassos conhecimentos matemáticos, conta somente quinze anos, nada mais.
Hemengarda aproximou sua bancada à de seu senhor.
– Matematicamente estais correto, amado senhor, mas os anos podem contar-se de
mais maneiras. Qual é a idade da alma de Roberto?
– A mesma de seu corpo. Quinze anos. Nem um mais.
– Seguis cometendo um erro, Teodorico. Olvidas a chuva, meu senhor – prosseguiu
com uma repentina mudança na voz e no semblante. O sol madura os frutos. A chuva
madura os homens. Três anos sem sol, de escassez ininterrupta, trouxeram a fome; a
fome trouxe a morte; a morte abriu à vida os olhos dos homens. Os homens hão
madurado mais depressa nestes três últimos anos o que normalmente não haveriam feito
em trinta de bom tempo. Se hão orientado em direção a Deus!
As inquietas chamas do lugar lançavam às enegrecidas vigas do teto umas sombras
fantásticas que se elevavam ou caiam com vida própria e nervosa. Teodorico levantou a
cabeça, contemplando-as um instante. E murmurou:
– Se hão orientados em direção a Deus!... É uma frase, e, no entanto, é perfeitamente
expressiva. A chuva há conduzido, em efeito, os homens até Deus. Mas... – insistiu –
Roberto não é um homem. É demasiado jovem ainda para haver sido afetado pela
horrível prova de que Deus acaba de livrar-nos. A juventude toma a tragédia da mesma
forma que o prazer, somente como algo passageiro.
Não conheceis a vosso filho, Teodorico – disse Hemengarda com vigor. Em Roberto
não há nada de superficial. Sua alma é profunda e sua mente está madura. Depois do
debate dessa noite, não deveis duvidar. Duas vezes pelo menos vos há deixado sem saber
o que responder-lhe.
Teodorico assentiu:
– Sim, duas vezes pelo menos. Há-me assustado. Quando disse que Deus lhe havia
posto a ideia na cabeça, deixou-me intranquilo. Cri que falava de alguma revelação
especial.
– Que é o que esperavas? Crias que havia sido abatido de seu cavalo como São
Paulo?... Reconheceis, Teodorico, que nosso filho é fisicamente um magnífico mancebo,
não é certo?
– Assim o é. Está altíssimo para sua idade e promete ser um homem valoroso.
– Muito bem. Isso quer dizer que possui os requisitos físicos exigidos para a vida
monástica. É são e forte. Quanto às qualidades morais, não há sequer que mencioná-las.
É tão bom quanto o pão. Haveis surpreendido nele alguma vez um detalhe de maldade?
– É obstinado, e em algumas ocasiões veemente em excesso. A forma com que há
argumentado esta noite me deixou várias vezes sem respiração. Porém, o mais grave é sua
tenacidade.
– Seria filho de seu pai se não o fosse?... ademais, meu senhor, a tenacidade é uma
benção. Nenhum homem jamais chegou a parte alguma sem obstinar-se a isso. Contudo,
vós dais um sentido equivocado à tenacidade. Não se trata de um vício, senão de uma
virtude. Seu verdadeiro nome é “força de vontade” ou “persistência”. E Roberto a possui!
Não reconheceis agora que nosso filho tem as qualidades morais necessárias?
Os dentes de Teodorico brilharam entre seus lábios:
– Ao bem da discussão, o admito – disse. Hemengarda alegrou-se ao ver aquele
sorriso e seguiu falando:
– Em respeito à sua habilidade mental, já haveis visto uma boa mostra esta noite. Seus
estudos têm sido brilhantes. Não se pode dizer que seja um gênio, mas está certamente
acima do nível normal dos escolares de sua idade. Assim, pois, meu senhor, ao conceder-
lhe as qualidades físicas, morais e intelectuais necessárias, amém de um ardente desejo de
dedicar sua vida ao claustro, Deus há manifestado com tanta claridade seus divinos
planos, como se lhe houvesse derrubado do cavalo falando-lhe desde o céu. Qualquer
sacerdote dirá que estes são sinais evidentes de uma autêntica vocação.
– Mas, é demasiado jovem! – insistiu Teodorico. Que sabe da vida? Que sabe de si
mesmo?... Quinze anos não é idade de abandonar a vida, quando nem sequer se há
provado seu sabor!
– Que vergonha! – retrucou sua esposa. Que vergonha para Teodorico, para o gigante
de Champagne!... Em primeiro lugar, mentalmente Roberto tem mais de quinze anos. Em
segundo lugar, quem ingressa no claustro não abandona a vida. E por último, o que vós
homens chamais “provar o sabor da vida”, é esgotar-se até às fezes. Como dizeis isto,
senhor? Um moço nunca é demasiado jovem para aprender a montar, a pelear, a matar.
Isso, não. Em troca, existe uma profissão para a qual pode resultar em demasia jovem.
Somente uma...! É curioso como quem nunca é demasiado jovem para entrar ao serviço
de seu soberano temporal, ao mesmo tempo o seja para o serviço de seu Rei Eterno.
– Para entrar a servir a seu Rei Eterno, um homem tem que ser um homem! –
trovoou Teodorico.
– São Bento admitia meninos.
– São Bento morreu há muito tempo! – bradou enfadado o cavaleiro. Desde sua
morte até nossos dias o mundo há mudado muito. Quando São Bento vivia, o mundo era
bárbaro. O Império romano havia caído. Apodrecido por dentro, assediado por tribos
selvagens desde fora, sua ruína era inevitável. E não se encontrava a Igreja em melhores
condições que o Império. Desgarrada pelos cismas, assediada pelas heresias, também
parecia à beira da ruína. Não é de se estranhar que São Bento se tenha ido às pressas a
Subiaco! Que permitisse aos nobres oferecer ao Senhor seus recém-nascidos! O claustro
parecia o único lugar que um homem pudesse salvar sua alma. Mas isso faz já quinhentos
anos. Hoje é mui distinto. Atentai à nossa Trégua de Deus. Atentai à nossa Cavalaria.
Atentai ao que vós mesma haveis denominado orientar-se até Deus!
Hemengarda se deixou cair para trás, ladeou um pouco a cabeça e com o mais leve
abrir e fechar de cílios repôs:
– Chegais a intrigar-me, Teodorico. Não creio que exista em todo o reino um nobre
mais fiel à Igreja, e, no entanto, vos opondes a que vosso filho forme parte dela.
Teodorico se acercou ao fogo e deitou outro lenho sobre os que ardiam. Observou
um instante as línguas vermelhas e amarelas a lamber glutonas os flancos de sua nova
presa e tornou à sua esposa:
– Hemengarda, amada minha, precisamente porque sou tão fiel à Igreja e ao meu
filho, me oponho. Não quero que nosso herdeiro cometa um erro.
– Já se vê! Se nunca comete erros, nunca fará nada! Errar é humano. Equivocar-se
não é um crime. A tragédia consiste em não saber remediar os erros. Aí teria eu de pará-la
– interrompeu cortante Teodorico. Não me assusta que Roberto cometa um equívoco. O
que me abisma mortalmente é que seja um equívoco. Já conheceis um pouco nosso
mundo senhora. Já sabeis que entre as fileiras do clero há muitos que jamais deveriam
haver conhecido um claustro por dentro... Sim, já sei o que vais dizer – acrescentou
rapidamente antes que Hemengarda replicasse. É completamente vergonhoso que muitos
tenham sido nomeados bispos e pastores somente para satisfazer a ambição dos nobres
no lugar da vontade de Deus. A investidura laica é uma maldição. A maioria – por não
dizer todos os escândalos da Igreja – procede na realidade dos reis, dos condes, dos
imperadores e dos duques, que tomam os báculos e os anéis como emblema de poder,
antes de tomá-los como emblema de autoridade eclesiástica. Não querem que quem reja
estes cargos sejam pastores, senão ladrões que encham suas insaciáveis bolsas. Os garanto.
Apesar do que disse sobre seu progresso, a Igreja não é pura como a neve. Mas o que
quero dizer é que não existe nada mais lamentável em nossa pátria que o erro na aparência
clerical.
– Roberto não...
– Já sei que Roberto não representaria um erro desta classe, mas, francamente, temo
por sua idade. Não quero que o rapaz seja enganado. Não quero que vá pela vida com a
cicatriz de um horrível fracasso na alma que lhe recorde sempre a loucura de sua
juventude.
– Roberto não fracassará.
– Que os faz estar tão convencida, esposa minha? – perguntou Teodorico com uma
nota mui patente de incredulidade na voz. Os dais conta de tudo quanto existe no
claustro?... exige os homens mais nobres e o mais nobre do homem. Exige uma grande
resistência física e uma surpreendente singularidade de propósito. No claustro só podem
alcançar êxito quem possui a visão inflexível de uma invencível fé. Têm que contemplar
fixa e ininterruptamente a Deus, amada minha. Sim, ininterruptamente e a Deus. E muito
me temo que a maioria dos homens só possua olhos de morcego ante esse sol tão forte.
Os que queiram ingressar no cenóbio necessitam olhos de águia.
– E crês que nosso filho seja cego?
– De nenhuma maneira! O único que ponho em dúvida é que tenha os olhos
completamente abertos aos quinze anos.
– É pelo menos a décima quinta vez que os referis a Roberto e a seus quinze anos.
Mas, pela última vez, eu os repito que é muito maior que isso. No claustro, o que se
necessita não é de uma idade determinada, senão da maturação! E Roberto está maduro.
O homem está verdadeiramente maduro quando se dá conta de que pertence a Deus. E
essa lição foi ensinada à força pela chuva. A França se há orientado para Deus, Teodorico,
porque a falta de sol abriu nossos olhos para a Luz do mundo. Vamos, contemplai a
realidade face a face.
Com estas palavras Hemengarda se levantou de seu assento, aproximou-se a seu
esposo e com olhos suplicantes lhe disse:
– Meu senhor, eu os asseguro, nosso filho há nascido para o claustro. Não cometerá
nenhum erro. Ele mesmo não representará nenhum erro. Deus nos há dado.
Devolvamos-lhe a Deus.
A Teodorico lhe sobressaltou a seriedade da esposa. Lentamente estreitou-a sobre o
coração e inclinando a cabeça ao seu ouvido, lhe disse:
– Amada minha, nunca me haveis dito se há algo de verdade no conto que relatam
nossos servos a voz baixa. Dizem que uns meses antes de nascer nosso filho, a Santíssima
Virgem se os apareceu e falou de desposar ao fruto de vosso seio.
Hemengarda se estreitou ainda mais contra ele.
– A anciã esposa de Ulrico, o mais velho de nossos vassalos, disse que a Virgem pôs
um anel em vosso dedo como símbolo dos sagrados esponsais. Acaso é por isso que
dizeis que Roberto há nascido para o claustro?... É por isso?... Ou essa piedosa lenda se
deve somente à simplicidade dos servos?
O fogo convertido em brasa agonizava. Nem uma só chama dançava em seu lugar.
Nem uma sombra refletia na parede. Pareceu transcorrer muito tempo antes que
Hemengarda se repusesse:
– Sabes quando um sonho deixa de ser um sonho, amado meu? Teodorico inclinou-se
um pouco para trás a fim de fitá-la: – Não o sei. Dizei-me – suplicou.
– Quando é uma visão – respondeu.
Os olhos de Teodorico expressavam uma doçura que seu filho nunca havia visto
neles. Não pode falar, mas ajoelhando-se beijou as mãos de sua esposa.
Hemengarda se inclinou até ele sorrindo:
– Por que fazeis isso se em realidade não respondi a vossa pergunta? Talvez só fosse
um sonho, porém se o foi, não crês que resultou mui formoso? Poderias imaginar algo
mais celestial para uma pejada mãe? Se o foi outra coisa que um sonho, não estaria
obrigada a guardar o segredo da rainha? Venha, meu senhor, retiremo-nos. Nosso filho irá
a São Pedro a oferecer sua bravura a Deus.
E levou seu esposo para fora do aposento, onde o reflexo do fogo moribundo não
tardou em apagar-se, enquanto a lua de novembro lançava seus pálidos raios sobre o
pavimento.
Ao cruzar ante o cômodo de Roberto, não puderam suspeitar que se encontrasse
ainda desperto e de cotovelos no parapeito da janela. A princípio, seu propósito não foi
outro que o de respirar o ar fresco da noite; porém, logo os sons dos cascos de um cavalo
ao trote lhe fizeram pensar no primo Jacobo com seu flamejante título de cavaleiro. Num
átimo, esforçou seus olhos mirando rumo ao Norte, como se desejasse perceber através
da distância as esplanadas de São Pedro. Pensou que ali lhe aguardava uma forma mais
nobre de Cavalaria. Necessitava convencer seu pai de que devia ingressar naquele mesmo
ano. Teria de fazê-lo! Gradualmente, e sob o influxo da noite, a calma foi envolvendo seu
espírito. Quando seus pais passaram diante de sua porta, se maravilhava da multidão de
estrelas que haviam seguido à aparição do luzeiro vespertino. O som de seus passos lhe
fez descer do esplendor dos céus.
Enquanto tirava o jubón, se perguntou o que haveria dito sua mãe a seu pai. Ao lançá-
lo sobre um móvel, murmurou decidido:
– Pois bem: não serei armado cavaleiro! E o admita meu pai ou não, existe um mais
nobre cavaleirismo!
Depois de descalçar-se, deu as costas às estrelas, pondo-se de joelhos junto a seu leito.
†
CAPÍTULO 2
O QUE É A VOCAÇÃO?
1. As vocações de Cristo
“A história é mestra da vida”, segundo a certeira frase de Cícero, e segue sendo hoje
em dia!, é por isso que antes de seguir convém recordar um episódio ocorrido há dois mil
anos, em uma distante região da Judeia.
Contemplemos os personagens: trata-se de um jovem empreendedor e de um mestre
ambulante que tudo o fazia bem4:
– Bom Mestre, que farei para salvar-me? – foi a ansiosa pergunta de um jovem
afortunado, de influência entre os seus, e que havia vivido seriamente até então.
– Guarda os mandamentos – foi a resposta do taumaturgo.
– Os hei cumprido todos desde minha meninice, mas diz-me... Tudo tem gosto de
nada... que mais me falta fazer?
Com doce olhar, o Mestre lançou-lhe um amoroso sorriso e respondeu:
– Uma só coisa te falta: anda, vende tudo quanto tens e dá-lo aos pobres; deste modo
terás um tesouro nos céus; feito isso, vem e segue-me.
O mundo se deteve. Seguiu-se um momento de angústia, de turbação; era impossível
para um jovem de tal calibre não sentir a força e a doçura desse olhar. Como se haverá
enchido seu coração de ternos e viris afetos por aquele estranho homem! Ele se dava
conta de que o amava e que agora lhe pedia algo mais! Não obstante, narra o cronista, “o
jovem, entristecido, se foi mui afligido, pois tinha muitos bens”.
3
Tratando-se de um trabalho dedicado à vocação sacerdotal ou religiosa, esclarecemos que, em diante, quando nos
referirmos a “a vocação”, o faremos com respeito àquelas e não a outra, tão importante, como o é a do matrimônio
católico.
4
Cf. Mc 10,17-31.
Releiamos lentamente o belo episódio de Nosso Senhor e este ansioso jovem: Jesus
via algo nele, o convidava a algo mais, o chamava à perfeição: “Uma coisa te falta...”; faltava
embarcar no seguimento mais próximo de Cristo; devia renunciar a seus bens, às
“seguranças” do mundo, essas grandes ataduras... Não se tratava de deixar algo
necessariamente mau por algo bom, senão de abandonar, por amor a ele, seu próprio
amor, sua própria vontade: só havia que fazer um ato arrojado, um salto mortal, só um
passo mais.
Logo da resposta, tudo pareceu desmoronar-se... A resposta o turbou: “segue-me...”.
Esse bom jovem, que vivia segundo Deus, que cumpria os mandamentos, não se animou
a dar o último passo; quem havia chegado alegremente pronto se apartou pesaroso e
cabisbaixo...
São os mistérios de Deus. Os mistérios de seus chamados e as respostas que o
homem dá a seus convites.
Nem todos, entretanto, agiram igual. Houve outros casos na mesma época, como os
de Pedro e André, ou Tiago e João:
– Caminhando Jesus pela ribeira do mar da Galileia viu a dois irmãos, Simão,
chamado Pedro, e seu irmão André, que lançavam as redes no mar, e lhes disse: “Sigam-
me e eu os farei pescadores de homens”. E eles na mesma hora, deixando as redes, o
seguiram. Adiante, viu a outros dois irmãos, Tiago, filho de Zebedeu e seu irmão João,
que estavam na barca com seu pai consertando as redes; e os chamou. E eles no mesmo
instante, deixando a barca e seu pai, o seguiram5.
“E eles, no mesmo instante... o seguiram”.
À diferença do caso do Jovem rico, estes últimos não haviam ido buscar o Mestre;
estavam cuidando de seus afazeres, no entanto rapidamente o seguiram; bastou com que
lhes dissesse: “Venham e sigam-me”, e eles, os pobres trabalhadores, deixando o que era
seu, se abandonaram ao chamado do Redentor.
Eis aqui distintas vocações; pedidas, oferecidas, aceitas e rejeitadas. Com o passo dos
anos, a história se há repetido. Quantos chamados! Quantos oferecimentos por parte de
Deus!
Ainda que Deus continue convidando os homens a um seguimento mais íntimo, nem
todos percebem Sua voz. Por quê? Por uma parte, está o mistério da liberdade humana;
por outra, há uma grande ignorância do que a vocação à vida sacerdotal e religiosa
significa.
Adentremo-nos calmamente neste mistério.
a. A vocação em geral
Dentro do plano divino que conduz todas as coisas e especialmente o homem, de
modo livre, até ao fim, há distintos chamados ou “vocações” da parte de Deus:
5
Cf. Mt 4, 18-22.
Primeiramente, o chamado ao ser que resulta comum ao homem e a todo
o que é em realidade: os pássaros, as plantas, as flores etc; este chamado é o passo do
não-ser, da pura possibilidade à atualidade.
O chamado a uma vida eterna, comum a todos os homens, que por
serem homens, buscam uma felicidade que nunca termine.
O chamado a um determinado estado de vida, pelo qual Deus chama a
alguns ao matrimônio e a outros à vida consagrada.6
Este último é o que nos interessa e do qual falaremos de agora em diante.
b. A vocação à vida sacerdotal ou religiosa
A palavra vocação provém do verbo latino “vocare”, que significa em suas mais
simples acepções “chamar”, “advertir”, “avisar”. Em nosso âmbito específico trata-se
simplesmente de um ato de amor por parte de Deus que elege misteriosamente a certos
homens e mulheres para levar uma vida de maior intimidade com Ele e ajudá-lo mais de
perto na obra de salvação.
Vejamos ponto por ponto.
6
Ou ainda a um estado intermediário entre os dois anteriores, como o caso de santos como Giuseppe Moscati ou a
beata Alexandrina Maria da Costa. (NdT)
o mais perfeito PARA ELE, no pessoal; isto é, Deus faz que alguém se dê conta de que seguindo esse
estilo de vida, poderá chegar mais rápida e facilmente à vida eterna.
Não é um raciocínio simplesmente teórico, é uma certa determinação e convicção da
vontade, movida pela graça, pela qual alguém compreende praticamente que a vida religiosa
é o melhor para ele (ou seja, para João ou Maria, Pedro ou Cecília).
Sem essa graça interna e sobrenatural alguém poderia chegar a entender racionalmente
que a vida religiosa é mais perfeita enquanto estado de vida – a causa da entrega radical
que exige e sua assimilação com Jesus Cristo – mas não chegaria jamais à convicção prática
de que para ele ou para ela (com seu temperamento, dons, pecados e aspirações) este estado
de vida é o melhor caminho para conduzi-lo à consecução de seu fim.
Dita convicção interna, ainda que necessária, não basta de todo; finalmente será a
Igreja, mãe e mestra, a que confirmará ou não a vocação de seus filhos a partir dos votos
religiosos ou a admissão às sagradas ordens. Ao modo de resumo, poderíamos dizer que a
vocação se constitui destes três elementos fundamentais:
1º) A reta intenção de quem diz ser chamado por Deus, a qual consiste em que
esteja convencido de que para ele o estado religioso ou a vida sacerdotal o conduzirá
melhor e mais rapidamente à consecução de seu fim último, elegendo por conseguinte
e por motivos sobrenaturais, o estado religioso ou sacerdotal.
2º) Os dotes de estado que quer abraçar (isto é, possuir os dons intelectuais, morais, físicos e
psicológicos necessários).
3º) Ser admitido pelo superior do lugar no qual se sinta motivado a entrar.
Vejamos um pouco mais em detalhe que coisa é necessária por parte do candidato,
para aspirar ao sacerdócio ou à vida religiosa e discernir se Deus o está chamando ou não
a este estado.
3. Que se necessita para entrar na religião? Ser normal!
O estado de vida sacerdotal ou religioso não anula a natureza humana, tampouco a
supõe angelical; é por isso que, para que Deus chame a alguém a dito estado não faz falta
tanto, ou melhor, hoje em dia muito faz falta... Faz falta ser normal!
Sim, hoje em dia lamentavelmente o que mais bombardeado se encontra é nosso
sentido comum.
c. Dotes da inteligência
Apesar da Igreja ao longo dos séculos vir modificando os requisitos para ingressar
neste tipo de estado, geralmente as normas vêm se mantendo constantes. Deus não
chama a super-homens, mas a simples mortais, a homens e mulheres normais...
A respeito da inteligência Deus se serve normalmente de quem possa realizar os
estudos requeridos para o estado que desejam abraçar. Não se trata, porém, de exagerar
aqui nem em um sentido nem em outro: há quem, se escasseassem as vocações,
admitiriam com extrema facilidade ao primeiro que se lhes cruzasse o caminho e há
outros que desejariam que todos fossem superdotados para o ministério sacerdotal ou a
vida religiosa. Ambas as posturas, como todos os extremos, não parecem ser racionais.
É certo que a vida religiosa ou o sacerdócio implicam uma grande responsabilidade:
ser luz das nações, guia nos caminhos, conselheiro ante as dúvidas. Muitas vezes haverá
que sortear questões escabrosas, dirigir almas difíceis, estudar, pregar e quase sempre ser
um dirigente, um chefe, um distinto do montante, mas também é certo que nem todos
estão capacitados para combater no mesmo posto de batalha.
Quanto à inteligência, uma mediana pode bastar; exigir mais seria injusto, já que não é
justo tratar aos desiguais de modo igual, como aos iguais de modo desigual...
Frequentemente o bom sentido comum vale mais que uma grande inteligência; a vida da
maioria dos santos o atesta de sobra.
Se Deus chama, a cada um lhe caberá seu lugar.
d. Dotes da vontade
Mas a inteligência não é tudo; é necessário ver também para o que tende a nossa
vontade, que move a alguém a eleger esse estado de vida.
Uma grande vivacidade do entendimento não é suficiente e tem ocorrido que
sacerdotes ou religiosas brilhantes no intelectual se entregem à vida religiosa sem reta
intenção, por simples soberba, deixando-se levar logo por doutrinas chamativas e
estranhas; aqui, o que mais vale é a vontade, isto é, a boa índole de quem pensa ser chamado
por Deus, seu espírito de sacrifício, a docilidade aos desígnios divinos. Essas qualidades
são um bom sinal de um caráter sério e mostram um conjunto de maturidade espiritual
que é segura garantia de perseverança e seriedade no futuro trabalho sacerdotal ou
religioso.
Se se é dócil, se se tem vontade para os estudos (ainda quando custem), se se tem
bom caráter, se se é sincero e se se tem verdadeiro espírito de oração... já é suficiente para
ter a base necessária para que Deus, provavelmente, possa chamá-lo às suas fileiras.
A Igreja está formada por distintas peças e há ali muitas ferramentas; ao lado dos
gênios que dão um impulso extraordinário às obras religiosas e fazem coisas grandiosas,
se requerem outros gênios cotidianos que mantenham no silêncio de uma vida corrente o
trabalho constante de salvação e santificação das almas. Não é necessário ser Santo
Tomás de Aquino ou Santa Teresa de Jesus para entrar em um convento, basta ser o que
se é e buscar a santidade.
e. Dotes físico-psíquicos
Amém do anterior, também é necessário ter um corpo e uma mente sãos, livres de
enfermidades ou graves males que impeçam o gênero de vida que se há de levar.
Em geral, se pode dizer que uma saúde ordinária, ou seja, a que gozam os que “estão
bem”, é suficiente. Não é necessário uma robustez especialíssima, um absoluto domínio
dos nervos, uma natureza completamente livre de qualquer debilidade física... quem a
teria? Por mais são que se esteja, alguma pequena anomalia, alguma predisposição, algum
defeito nas funções orgânicas, quase sempre se encontram.
Contudo, se alguém vê claramente que Deus o chama a uma vida em determinada
congregação ou ordem religiosa onde o ritmo seja demasiado austero e penitente, deverá
ser consciente de que se lhe exigirá uma saúde mais forte e robusta.
Vale recordar, ao modo de resumo, que por ter uma boa inteligência, uma boa
vontade e até um bom equilíbrio psíquico-físico, não por isto significará que alguém tenha
vocação; tudo isto é “efeito” e não “causa”, sequer “sinal próprio” de que Deus o chama a
um tipo de vida superior. Se Deus chama, esta idoneidade não deve faltar, mas não
significa que porque dita idoneidade exista, deva existir também a vocação.
f. O sim livre
Tudo o que temos dito até aqui não basta para dar-nos a segurança em uma vocação. O
jovem que tem alguns destes sinais e todos os dotes requeridos tampouco pode dizer que
tem tudo. Requer-se, contudo, que ele, conhecendo seu estado e convencido da Vontade
divina, diga o sim de maneira livre e consciente, dizendo:
“Se queres ser perfeito...”
“EU QUERO!”
Nosso Senhor não se impõe à força, não quer escravos, mas voluntários, quer jovens
generosos que o sigam por amor e não forçosamente.
Isto é muito importante: ninguém decidirá em seu lugar. Ninguém quer que todos sejam
sacerdotes ou religiosas; quem assim pensa se equivoca enormemente.
Não muitos sacerdotes e religiosas, mas muitos sacerdotes e religiosas santos! O que
sim deve se buscar é que se faça a vontade de Deus no estado ao qual cada um foi
chamado.
Alguém poderá lhe aconselhar, outro iluminar, outro tirar as dificuldades que nasçam
de qualquer erro de juízo ou da vontade, mas em determinado momento a pessoa ficará só
com Deus e deverá fazer sua eleição de estado. Será sua decisão e de ninguém mais.
Recordo que quando éramos crianças, nos juntávamos com os filhos de uma família
amiga para jogar. Eles eram três irmãos; João, o maior dos homens, era um jovem
fascinante: educado, viril, desportista, divertido, inteligente etc; no entanto, havia algo que
eu não terminava de entender: sempre nos perguntávamos que seríamos quando
fôssemos grandes, ao que ele respondia com solenidade: “Eu serei sacerdote e
missionário”. No momento ninguém se dava demasiada conta disto; nos parecia divertido
e até estranho...
O tempo passou para todos e um dia, quando João terminou o colegiado nos chamou
e disse com ar solene:
– “Rapazes, vou para o seminário; serei sacerdote”.
Em todos houve um ar de admiração; nos despedimos sem saber que pouco tempo
depois, muitos de nós, à raiz de sua decisão, seguiríamos seu caminho.
É certo que Deus não chama a todos do mesmo modo, mas deve haver uma
constante... Algo que permita ver mais de perto os modos pelos quais Deus se digna
chamar a uma alma para a vida sacerdotal ou religiosa. Vejamos alguns deles.
1. Deus chama a alguns desde o berço
Há em alguns homens ou mulheres algo assim como uma vocação “inata”: ela não
aparece em um momento determinado de suas vidas; tem estado sempre ali! Quem a
possui sempre o percebeu assim e normalmente não se recorda de ter tido ideia diferente.
É o caso de alguns santos (São Luís Gonzaga, ou Santo Cura de Ars) e outros tantos
homens de bem, como o papa Bento XVI:
Eu estava convencido, ainda que não soubesse dizer por que, de que Deus
queria de mim algo que só podia levá-lo a cabo ordenando-me sacerdote. Não o
vi graças a um raio de luz que, de pronto, me iluminara e me fizera entender
que devia ordenar-me sacerdote, não. Foi, antes, um lento processo que ia
tomando forma paulatinamente; tinha uma vaga ideia, sempre a mesma, até
que, por fim, tomou forma concreta. Não sabia dizer a data exata de minha
decisão. O que sim posso assegurar é que Deus quer sempre algo de cada um
de nós. Sabia que tinha a Deus comigo e que queria algo de mim; esse
sentimento começou mui pronto. Logo, com o tempo, compreendi que se
relacionava com minha ordenação de sacerdote7.
“Tinha uma vaga ideia, sempre a mesma, até que, por fim, tomou forma concreta...”.
Esse foi o chamado do atual Santo Padre.
7
JOSEPH RATZINGER-PETER SEEWALD, La sal de la tierra. Quien es y cómo piensa Benedicto XVI, Ediciones Palabra,
Madrid 2005, 59.
Mas há mais; em seu tocante livro acerca das vocações8, o Pe. Busuttil narra o caso de
Santiago Tutain, nascido em Mans em 1922.
Sendo ainda duas crianças de quatro e seis anos, seu irmãozinho maior lhe declarou:
Eu serei doutor.
Pois eu – respondeu Santiago – serei sacerdote, porque é o melhor do mundo.
Certo, – respondeu o outro – mas necessitam também bons médicos, eles podem
fazer muito bem falando de Deus aos enfermos.
Aqui temos um menino que aos quatro anos fala de seu desejo de ser sacerdote. E
trata-se de uma coisa pensada e escolhida, porque para ele é “o melhor do mundo”.
Dois anos mais tarde ante seus persistentes desejos, sua mãe lhe pergunta:
Mas, sabes pelo menos, por que queres ser sacerdote?
Oh! – respondeu – por muitas razões; antes de nada para amar a Jesus, para mandar
muitas almas para o céu... e para ter a Jesus em minhas mãos durante a Missa!
Quantas vezes entre os meninos sucedem estas coisas e muitos pensamos que são
“coisas de menino”!
2. Outras vezes se manifesta de um modo quase superficial
A estima por um religioso, a admiração que despertam, muitas vezes faz com que
alguns jovens digam: “Quero ser como ele/ela...”. Em outros será o hábito de uma
determinada Ordem ou Congregação religiosa o que os atraia, seu modo de vida, os países
onde estejam... Tudo isso pode servir acidentalmente, ainda que não passe disto, como
um veículo que levará a pensar logo a vocação de forma mais séria.
O Padre Pio de Pietrelcina decidiu sua vocação porque lhe atraia... a figura e a barba
de um irmão leigo capuchinho que diariamente passava em frente à sua casa!
Santo Inácio de Loyola o fez durante uma terrível convalescência: estava de cama e os
únicos livros que havia para passar o tempo eram os de vidas de santos (outra tivesse sido
a história teriam lhe passado simplesmente livros de química ou física!).
O Pe. Busuttil9 narra também a história de dois jovens polacos que encontraram um
saborosíssimo prato de arroz com leite que um sacerdote lhes havia dado como prêmio
por haver ajudado na Missa. Logo após perguntaram se os outros padres da Ordem
comiam aquele arroz; resposta afirmativa, se puseram de acordo, e terminados os estudos
médios entraram na Ordem. Mais tarde, quando cresceram espiritualmente, examinaram
se haviam tido reta intenção em sua vocação, pelo que, chorando, expuseram ao Pe.
Mestre de noviços que a mesma não havia sido de todo espiritual. O Padre, com muita
calma perguntou:
8
EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones: encontrarlas, examinarlas, probarlas, El Mensajero del Corazón de Jesús. Bilbao
1961, 31.
9
EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 34-35.
Mas, além de arroz, tiveram também o desejo de salvar as almas e de ser santos?
Sim – foi a tímida resposta.
Bem, filhinhos meus. O arroz com leite foi o anzol com o qual Deus os pescou; agora
pensai no verdadeiro fim de vossa vocação.
Com o tempo foram grandes missionários.
Há, inclusive, casos até divertidos: se conta de alguém que ingressou como Irmão
leigo em uma ordem religiosa porque cria que os faqueiros eram todos de prata e ele,
pois... os queria roubar. Uma vez dentro tomou parte nas práticas, sermões, leitura
espiritual e tudo da vida de comunidade. Pareceu encontrar-se em um paraíso, se
arrependeu do projeto, confessou e logo logrou ser um grande religioso.
Como vemos, diversos são os modos que tem Deus de chamar.
3. Algum convite indiscreto
Nossas ações, sejam quais forem, têm sempre um efeito que nem sempre prevemos.
Muitas vezes é uma frase misteriosa, uma careta, uma saudação, um aperto de mãos, o que
faz pensar e conduz a alguém a refletir acerca da possibilidade da vocação.
O Pe. Busuttil10 narra que quando era Diretor em um colégio, escreveu umas palavras
de felicitação nas costas de uma estampa a um jovem que celebrava seu santo onomástico.
Era um rapaz que dava muita importância à sua personalidade, que buscava fazer-se notar
e chamar a atenção sobre si. O sacerdote, desejando corrigi-lo deste defeito, tomou a
caneta e escreveu na estampa: “Deus espera de ti coisas maiores”.
Essa frase acertou o alvo; ao dia seguinte o jovem se aproximou pedindo explicações:
que queria dizer essa frase misteriosa? O padre não sabia que responder-lhe, porque havia
escrito a frase sem nenhum fim preciso.
O jovem se retirou para voltar poucos dias depois, dizendo:
– Já sei o que Deus quer de mim. Ele quer que seja sacerdote.
Os caminhos de Deus são insondáveis e as vocações se despertam de mil modos
distintos.
4. A sã amizade
Segundo aquele grande gênio que foi Cícero, a amizade é “O perfeito acordo entre o
humano e o divino” 11 , e é por isso que muitas vezes são os mesmos amigos os que
“contagiam” de algum modo o dom que receberam.
Santo Inácio de Loyola e São Francisco Xavier, São Gregório Nazianzeno e São
Basílio Magno, Santa Clara e as donzelas de Assis, são só alguns exemplos de amostra.
Haveria milhares que citar; é que quando a amizade é verdadeira e está baseada na virtude
faz com que os que se amam tendam a imitar-se. É disto que Deus muitas vezes se vale
para atrair a algumas almas a uma vida de maior entrega e sacrifício.
10
Cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 39.
11
Cf. CÍCERO, De Amicitia, n.6.
Há quem se queixe disto e diga: “Não pode ser!”; “não podem todos ter vocação”! E
tem razão; de vários grupos de amigos virtuosos, nem todos têm vocação, mas somente
aqueles a quem Deus chama.
5. A vista dos religiosos
Na vida de São Bernardino Realino12 se narra que o santo decidiu sua vocação ao ver
passar dois noviços que iam modestamente pelas ruas de Nápoles.
Um dia passeava o santo com dois amigos seus por certa ruela napolitana, quando
cruzou com dois jovens religiosos: modestos na vista, graves em seu porte, viris em tudo...
São Bernardino os seguiu grande tempo com a vista e foi tanta sua admiração que
perguntou a seus companheiros se sabiam a que instituição religiosa pertenciam aqueles
sujeitos. Por sorte os amigos puderam satisfazer seu desejo informando-o que eram
noviços da Companhia de Jesus. Em pouco tempo o santo tocava as portas do noviciado
que o levaria ao céu.
Também é conhecida a história de São Francisco de Assis: um noviço que pedia
insistentemente ao grande Santo o poder sair do convento para fazer apostolado, um dia
pareceu lograr seu intento:
– Amanhã sairemos para fazer apostolado – disse Francisco.
Ao dia seguinte, o noviço estava pronto em sua cela: saindo bem cedo, deixaram atrás
de si as portas do convento e passearam pelas ruas de Assis; davam voltas pela praça,
saudavam gentilmente às pessoas, mas... com ninguém se detinham a conversar.
De volta ao convento o noviço enfadado disse ao irmão Francisco:
– Mas... finalmente não fizemos nada de apostolado! – ao que Francisco respondeu.
– Filho, o fato de que a gente simplesmente nos veja com nosso hábito religioso,
desperta neles o desejo de Deus e os chama permanentemente à conversão e talvez à vida
religiosa.
Outro episódio “causal” pode ser o da vida de São Romualdo quem, logo após um
duelo juvenil, foi buscar asilo em um mosteiro. Ali, teve ocasião de ver os monges e de
conhecer sua vida de entrega e santidade.
A vista destes o mudou por completo. Decidiu sua vocação e fundou logo a austera
ordem dos monges Camaldulenses.
6. A vaidade do mundo
Há vezes em que é necessário um fracasso para fazer ver a vaidade das coisas da terra
e orientar a alma rumo a uma entrega maior.
Na vida do Beato Tomás Pound – que era um grande bailarino – se lê que um dia
devia apresentar-se frente à rainha Isabel da Inglaterra; tudo foi genial. Ao terminar, os
fragorosos aplausos lhe enxugaram o suor da fadiga e sustentaram seus membros
cansados. Até a rainha havia se levantado do trono para beijá-lo e felicitá-lo!
12
Cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 47-48.
Tomás acreditava tocar o céu com as mãos. Que mais podia desejar desta vida? Todos
pediram um bis e ainda que o artista estivesse cansado não pode negar ante tantos
aplausos.
Continuando com todo entusiasmo, deu suas vertiginosas piruetas e, sem querer,
tropeçou em seus próprios pés, terminando no chão. Ante semelhante espetáculo a rainha
levantou-se, e a mesma que há uns instantes o havia aclamado, lhe disse sem piedade:
– Levanta-te, boi!
Tomás ergueu-se cheio de vergonha e amargura.
Por que esse insulto? Que valiam os louvores, apagados por um insulto tão
humilhante e injusto? Mundo infame!, disse a si – “vaidade das vaidades, tudo é vaidade”.
Desde esse momento decidiu sua conversão total e se determinou a abraçar a vida
religiosa.
Há outros casos: Santo Alfonso Maria de Ligório, quando ainda era famoso e jovem
advogado, deixou o mundo depois de um solene fracasso na defesa de uma causa judicial;
São Camilo de Léllis necessitou perder no jogo todos seus recursos para ao fim ver que
Deus o chamava à vida religiosa; Santa Faustina Kowalska tentou fugir de Deus e ficou
presa a Ele...
É certo que a vocação não é para os iludidos nem para os desiludidos, mas até disso
Deus se pode valer para chamar a quem e quando quer a uma vida mais radical. Não
somos nós os que devemos ensinar-lhe como conquistar as almas.
7. Quando a morte chama à vida religiosa
Mons. De Ségur em seu luminoso livro acerca do Inferno 13, narra a vocação de São
Bruno, primeiro cartuxo, da seguinte maneira.
A história se desenvolve no século XI: o professor Raymond Diocrès, doutor em
teologia e de grande fama de santidade, havia falecido no ano 1082 entre os prantos dos
estudantes de Paris. Uma multidão acudiu a velar seu corpo, que segundo o costume da
época repousava sobre um majestoso leito e coberto com um leve véu. Tudo estava
previsto para assistir ao enterro de um santo varão.
O Ofício de defuntos começou. A certa altura da liturgia, o sacerdote, seguindo o
ritual, proclamou em alta voz a seguinte pergunta ao defunto:
“Responde-me: Quão grandes e numerosas são tuas iniquidades?”
Qual não foi o espanto de todos ao escutar uma voz sepulcral, porém clara, saída de
baixo do véu mortuário:
– Pelo justo juízo de Deus, fui acusado.
13
Cf. DE SÉGUR, El Infierno, Iction, Bs. As. 1980, 36 y ss.
Imediatamente, o Ofício se interrompeu, todos levantaram o véu e puderam constatar
novamente que o professor Diocrès estava morto, frio e rígido, sem o menor sinal vital.
Pensando estar dominados pela emoção, se decidiu retomar o Ofício.
Novamente, ao chegar à mencionada pergunta (“responde-me”), o espanto foi muito
maior. Nesse momento, o corpo antes rígido se incorporou à vista de todos, e com voz
mais sonora e forte, declarou:
– Pelo justo juízo de Deus, fui julgado.
O cadáver se derrubou sobre o leito; em uma atmosfera de terror generalizado os
médicos o analisaram uma e outra vez, verificando cuidadosamente a ausência do menor
sopro de existência; tudo estava rígido, teso, sem vida.
Esse dia não havia clima para regressar às orações oficiais. Esperar-se-ia então até o
dia seguinte.
A cidade de Paris fervia de comentários e discussões sobre o caso: uns defendiam a
tese de que o homem tinha sido condenado e, portanto, era indigno das bênçãos da
Igreja; outros ponderavam que todos têm de ser ACUSADOS e logo JULGADOS. O
bispo tomou partido por esta opinião e decidiu reiniciar ao dia seguinte a interrompida
cerimônia, mais concorrida que nunca, com um público cheio de preocupação e
curiosidade.
Na mesma passagem da quarta leitura das matinas de Jó, o bispo proclamou:
“Responde-me...” Em meio a grande suspense, o falecido Raymond Diocrès se
incorporou para exclamar com voz aterradora:
– Pelo justo juízo de Deus, fui condenado para toda a eternidade. Não rezeis mais por
mim.
Em seguida, tornou a desplumar-se; não havia dúvidas: desfez-se o enorme equívoco
sobre sua imerecida reputação e falsa glória. Por ordem das autoridades eclesiásticas, o
corpo foi despojado de suas insígnias e lançado à fossa comum.
Entre os jovens que ali se encontravam, se achava um tal Bruno, vindo de Colônia. O
episódio o marcou tão profundamente, que foi suficiente para que decidisse com mais
quatro companheiros a abandonar o mundo e abraçar a vida religiosa, dando como
resultado a fundação da Ordem dos Cartuxos, uma das grandes glórias de nossa Santa
Mãe Igreja.
Mas esta não é a única vocação despertada pelos mortos.
Outro caso é o de São Francisco de Borja, terceiro Geral da Companhia de Jesus.
Logo após haver-se convertido e entregado a uma vida intensamente cristã, sofreu um
golpe de graça terrível, desta vez dado pelo cadáver da imperatriz Isabel: pouco tempo
depois de ter admirado sua beleza em vida agora a contemplava totalmente putrefata e
carcomida pelos vermes.
– E então, quê?, disse a si. Para que tanto se logo vem a morte?
Ferido por um sentido profundo da vaidade das coisas, o Duque de Gandia se
transformava assim, logo de ver a leviandade da vida, em um fervente religioso e
finalmente no grande santo da Companhia de Jesus.
Mas estas não são histórias passadas; eu mesmo tive um companheiro no seminário
que se converteu e em seguida entrou na vida religiosa por ver como literalmente seu avô
falecia em seus braços.
A vocação pode começar a manifestar-se de mil maneiras diversas; qualquer
argumento ou acontecimento pode servir para manifestar-nos a vontade de Deus; em
realidade, perguntar a alguém “como lhe surgiu” a vocação poderá servir para conhecê-lo
melhor, mas geralmente não será suficiente para julgar se a vocação é verdadeira ou não.
O primeiro impulso é uma ocasião que orienta a alguém à vida sacerdotal ou religiosa; mas
não é tudo. Haverá que discernir mais detalhadamente cada caso.
†
CAPÍTULO 4
TENHO VOCAÇÃO?
14
Cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 127.
15
TOMÁS DE AQUINO, Contra Retrahentes, 10, ad 4.
facilidade que este proporciona para cair naquele. Alguém pode pensar que este “escape
do mundo” tem a ver com certa covardia.
– “É mais cômodo o claustro! Claro! É mais valente ficar no mundo e lutar desde
dentro, e não esconder-se e escapar como os desertores do exército!”. Me ocorre que a
quem assim pensa lhe poderíamos contar esta pequena história:
Dois amigos iam pela selva e ao chegar frente a um rio caudaloso viram que não
podiam continuar; havia duas possibilidades: cruzar a nado ou tomar um galho que pendia
das árvores. Ambas as alternativas eram perigosas, entretanto havia uma diferença entre
eles: o primeiro não sabia nadar e o segundo tinha pânico de altura, pelo que cada um fez
o melhor que podia: rapidamente, um tirou suas roupas e começou a nadar com todas as
forças enquanto que o outro, tomando um grande impulso, se agarrou aos galhos que o
levaram até a outra margem. Chegando ambos à margem oposta, já no outro lado do rio
se abraçaram e começaram a felicitar-se pela façanha e por haver seguido cada um suas
inclinações naturais.
Algo similar sucede com a vocação; se Deus nos quer religiosos, nos dará os “meios”
e os “medos” para que nos manejemos nesta vida; em troca, se nos deseja casados, nos
dará todas as ferramentas para santificar-nos nessa vocação tão sublime como é o
matrimônio cristão.
A muitos de nós, é certo, em algum momento de nossas vidas o mundo nos dá
repulsa, mas nem todos pensamos seriamente na possibilidade de abraçar a vida
sacerdotal ou religiosa e abandonar tudo. Este desejo de abandonar o mundo é, segundo
alguns autores espirituais, sinal de verdadeira vocação.
b. Atração por uma vida de pureza
“Bem-aventurados os puros de coração porque eles verão a Deus” (Mt 5,8).
Há jovens que são uma exceção; passam através deste mundo de pecado como se
estivessem preservados por Deus de toda mancha; estou seguro de que muitos de nós
conhecemos alguns destes. Vivem, inclusive, em situações dificílimas e até em ambientes
promíscuos, mas vão como cegos, como se não notassem o mal que sucede ao seu redor.
Existe para eles como um desígnio especial da Divina Providência; enquanto outros
em ocasiões menos perigosas cairiam seguramente, eles se mantêm em uma vida de
pureza invejável. Deus os conserva intactos. Mas... por que razão? Certamente por
alguma. Mui provavelmente porque os reserva para um caminho no qual não se pode andar
sem esta “bela virtude”, como chamava São João Bosco à pureza.
Não obstante, há também outros que, tendo experimentado os vícios da impureza,
têm encontrado com trabalho e esforço o sossego que dá a graça e a virtude. Veem
claramente que desejam ofertar seus corpos e suas almas ao único marido, à única mulher
que não abandona ou trai: a Cristo e Sua Igreja.
São estes desejos de manter-se puro pelo Reino dos Céus o que faz ver um sinal
verdadeiro da vocação ainda que muitos não o entendam...
É de Nosso Senhor: “Nem todos entendem esta linguagem, senão aqueles a quem foi
concedido. Porque há eunucos que nasceram assim no seio materno, e há eunucos que se
fizeram tais a si mesmos pelo Reino dos Céus. Quem possa entender, que entenda” (Mt
19,11-12).
c. Desejos de ter vocação
Quantas vezes escutamos a um jovem dizer logo de ver um religioso pela rua: feliz
dele! Se eu tivesse também vocação! Certamente que nem todos os jovens pensam o
mesmo e há muitos que a vida religiosa não lhes inspira nenhum atrativo ou desejo.
Antes, o contrário. As ânsias ou o desejo da vida religiosa não podem provir nem do
demônio nem da natureza, e isto simplesmente porque a vida religiosa é uma vida cheia
de sacrifícios e de renúncias, todo o oposto do que inspira nossa natureza caída.
Tampouco pode provir do demônio, já que o que menos deseja um inimigo é que as
fileiras de seu adversário se vejam engrossadas e, como disse Santo Tomás, ainda que
viesse dele, teríamos de seguir este conselho, como recomendava mais acima.
Deve haver, portanto, algo de sobrenatural nesse desejo da alma. Quando alguém
começa a ter essa secreta inclinação de entregar-se por completo a Deus, bem pode
suspeitar que Deus esteja atuando em sua alma e, mesmo que este desejo não exista
atualmente, se o tivemos alguma vez na vida não se deve desprezá-lo; talvez se tenha
perdido no presente ou se tenha ocultado em uma breve letargia. Bastará então que o
avivemos com a oração e meditação para que torne a estar ali. Na prática, dito desejo se
sente de quando em quando e normalmente se reaviva durante a oração, durante a liturgia
bem celebrada, depois de receber o Corpo de Cristo ou ainda nos dias de calma.
Quantos sentem o desejo de ser sacerdotes ao assistir a ordenação sacerdotal de um
amigo ou aos votos religiosos de uma amiga, irmã ou parente! Quantos se comoveram
simplesmente ao pensar que a messe é muita e os trabalhadores poucos! E mais: muitas
vezes este desejo indefinido chega à certeza da convicção: “Sim, me farei religioso; o resto
de nada vale; é o que me convém...”. É aqui quando Deus chama claramente.
Um pequeno jovem de quinze anos se apresentou um dia ao Pe. Busuttil16 e lhe disse:
– Padre, necessito orações. Rogue por mim!
Tinha os olhos marejados de lágrimas.
– Bom! – lhe disse o sacerdote. Mas que queres conseguir?
– Tenho um desejo grande de ser sacerdote, mas temo que não chegarei. Temo que
não tenha vocação. Mas a quero ter. Não sei se isso é pecado, mas eu quero de verdade esta
graça!
Que sinal mais claro queria este jovem para estar seguro de que Deus o chamava?
O Pe. Doyle assinalava, apoiado na doutrina dos santos, que se alguma vez alguém se
propôs seriamente e por um bom tempo a possibilidade da vocação, esse seria um sinal
certo de possuí-la. Talvez se diga que é exagerado, porém o certo é que nem todas as
pessoas se o propõem, senão somente alguns.
16
Cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 66-67.
Geralmente todos nos propomos ter um carro, uma linda noiva, um bom marido etc,
mas um desejo deste tipo, tão “contrário” a nossa natureza caída e instintos desordenados
e que, além disso, dure normalmente certo tempo, não pode ser uma coisa passageira ou
banal.
d. Consciência da vaidade do mundo
“Vaidade das vaidades, tudo é vaidade” (Ecle 1,2).
Já falamos algo do tema, mas tentemos completar um pouco mais o quadro. Ocorre
que este sentimento de fastio pelas coisas do mundo começa a nos fazer enxergar as
inconscientes quimeras deste: “Tudo acaba, tudo é vão, tudo passa!”. Isto pensa para si
quem tem o germe da vocação.
– “Vale a pena empregar toda uma vida para conseguir estes bens caducos que não
valem, que não são capazes de dar um minuto de serena alegria?”.
Esta ideia se introduz em todo momento e de um modo particular durante as
diversões ou logo após elas.
– “Que estúpido é o modo de pensar e de agir dos homens!” – se diz – tudo é
artificial, tudo é passageiro!
Conta-se na vida de São Felipe Neri 17 uma história que vale a pena narrar e que
poderá ilustrar um pouco mais o que queremos dizer. É a história de Francesco Zazzera:
O jovem Francesco estudava Leis; era de belo aspecto, grande gênio e possuía uma
feição aristocrática que, somado à sua estampa de cavalheiro fazia com que ganhasse a
simpatia de muitos e muitas.
Acreditado de grande talento e de ótimas qualidades, cheio de ambição, se predizia de
si mesmo uma brilhante carreira como advogado e uma excelente fama na cidade de
Roma. Uma tarde, enquanto conversava com seus amigos ouviu falar por casualidade do
Padre Felipe Neri, de suas andanças, sermões e loucuras; escutava com atenção o que do
santo sacerdote se narrava e, cheio de curiosidade, resolveu dirigir-se até a paróquia para
escutar uma de suas famosas pregações.
Uma vez ali pode escutar o sermão inteiro e ficou, como muitos, edificadíssimo.
Terminada a homilia e para sua surpresa, o Pe. Felipe se acercou dele e abraçando-o como
a um filho, lhe disse:
Meu bom amigo, como te chamas?
Francesco Zazzera.
E a que te dedicas? – replicou o santo.
Sou estudante de Leis.
Querido Francesco, tu és mui afortunado... Feliz de ti! Agora estudas... mas logo serás
doutor em Leis... bravo! Logo começarás a ganhar uma boa soma... logo serás alguma
17
Cf. ORESTE CERRI, San Filipo Neri aneddotico, II villaggio del fanciullo di Vergiate, Roma 1986, 56-57.
coisa... um grande homem de negócios... Me olharás desde cima... Serás... serás... serás...
Feliz de ti, oh Francesco!... Feliz de ti...!
O jovem estudante escutava com grande orgulho as palavras do Santo e, pensando
que falava sério, sorria pelo belo prognóstico que lhe vaticinava o santo sacerdote.
Entretanto, interrompendo os louvores, São Felipe aproximou-se ao ouvido e lhe
sussurrou suavemente:
Serás... serás... serás... – e pondo-se sério, com acento compassivo acrescentou: E
depois? E depois de tudo isso...?
O jovem, que não esperava esta conclusão, ficou turbado e esboçando um forçado
sorriso saiu da igreja.
Essa noite lhe foi impossível dormir; sentia uma e outra vez aquelas palavras do Padre
Felipe: “E depois?...”; “E depois?...”; “E depois?...”.
Ao dia seguinte voltou junto ao Santo para pedir-lhe conselho; havia tomado a firme
determinação de abandonar a carreira de advogado para dedicar-se inteiramente a Deus;
em efeito, se havia dado conta da leviandade da vida e da vaidade do mundo. São Felipe
não tardou em aconselhá-lo e após um par de semanas vestiu a batina, tornando-se assim
um dos discípulos mais queridos do Santo da alegria.
e. Atração por uma vida de oração
Quem começa a propor-se seriamente a vocação, tem normalmente um desejo
indizível de sentir-se unido a Deus, de conversar com Ele, de rezar. Deseja estar só,
escondido do mundo para atrair o mundo para Deus... Tem-se desejos de orar, de
aproveitar realmente o tempo e fazer penitência pelos pecados do mundo...
E não são poucos os que assim pensam! Quantas vezes se vê, entrando em alguma
igreja, a um jovem ou a uma jovem ajoelhados e em oração! Quantos deles vão à Missa
durante a semana, fazendo muitas vezes grandes sacrifícios para poder chegar no horário
em meio ao trânsito do dia! Não será que talvez Deus os esteja chamando?
“Provavelmente seja um simples exercício de piedade!”, diremos...; mas poderia tratar-
se de algo mais, de um desejo maior, um desejo que não se apaga, como diz o salmo:
“minha alma tem sede de Deus vivo / Quando entrarei a ver o rosto de Deus?” (Sl 42).
f. Ânsia de sofrer e reparar os pecados
O amor, com amor se paga.
Nosso Senhor Jesus Cristo amando-nos primeiro nos deu exemplo de como amar.
– “Que fiz por Cristo, que faço por Cristo, que devo fazer por Cristo?” – se repetia
Santo Inácio de Loyola18.
O pensamento de tantos pecados e de tanta ingratidão para com Deus de parte dos
homens deixa, é certo, indiferentes aos demais, mas fere a outros no mais vivo de seu ser
e lhes faz sentir o dever de sofrer e sacrificar-se para assemelhar-se a Jesus. Muitas vezes
18
SAN INÁCIO DE LOYOLA, Ejercicios Espirituales no 53.
não pensam nos porquês, simplesmente há o desejo de sofrer por amor a Deus; então é
quando se vê estas almas entregarem-se ao sacrifício e renunciar voluntariamente aos
próprios gostos; alguns procuram até fazer penitência tirando tempo ao sono, jejuando ou
visitando aos enfermos e, desse modo, encontram o gozo e a paz de alma.
Um broto de santidade como foi Santo Dominguinhos Sávio, jejuava pelos pecadores
com a tenra idade de onze anos; Santa Teresa buscava dormir sobre tábuas para fazer
penitência; São Luís Gonzaga, atormentava seu sonho com pedrinhas metidas entre os
lençóis.
A vida de sacrifício e reparação resulta ser um dos sinais mais sólidos e seguros de
vocação, por isso é importante apresentar a vida religiosa tal como é, ou seja, como uma
vida de renúncia e sacrifício. É inútil procurar mitigar este lado incômodo da vida
religiosa; a vida religiosa é Cruz e nada mais que Cruz.
Conta o Pe. Busuttil19 que uma jovem que ele dirigia espiritualmente apresentou-se às
Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria para ser admitida em sua Congregação. Uma
vez com elas, as irmãs começaram a desanimá-la dizendo que sua Regra era mui rígida e
difícil, que poucas chegavam a resistir e que a maioria teria de voltar atrás. A princípio
ficou um pouco angustiada, mas logo quis ir ao Noviciado para ver e provar como era a
realidade.
Ao chegar, novamente a Mestra de noviças a preveniu:
Nem pensar! Nossa Regra é muito dura! Nunca poderás resistir!
Ao que a jovem respondeu.
Se há que sofrer, tanto melhor. Eu não quero fazer-me religiosa para estar bem, senão
para crucificar-me com Jesus.
É que quem possui verdadeira vocação nunca temerá o sacrifício; pelo contrário,
tentará buscá-lo. É por isso que, quem queira abraçar a vida religiosa e ao mesmo tempo
despreze o sofrimento e o anonadamento, provavelmente não a tenha.
g. O amor à Cruz
Junto ao desejo de sofrer os pecados, existe outro grande amor em quem está
perfilando-se rumo à vida religiosa ou sacerdotal: é a Cruz de Cristo que atrai e seguirá
atraindo até o fim do mundo.
A vocação não é um chamado a passar bem, senão a passar mal: “Filho, se entrares para o
serviço de Deus, prepara tua alma para a provação” (Eclo 2,1). “Há que morrer cada dia”
(1 Cor 15,31), ou como diz o Kempis 20: “é preciso viver morrendo”; há que crucificar-se
com Cristo (cf. Gal 2,19), já que o religioso é como um condenado à morte (cf. 2 Cor
4,11).
Se um jovem ou uma jovem está disposto a isto, pode ser que tenha vocação, e, se
ante a isto se assusta, é sinal de que provavelmente não a tenha. O que tem verdadeira
19
Cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 76.
20
Tomás de Kempis. A Imitação de Cristo. (NdT)
vocação está disposto a fazer coisas grandes, heroicas, inclusive épicas por Cristo e sua
Igreja.
A quem queira entrar na religião é oferecido “pobreza e perseguição”. E ninguém
pense mundanamente em que pedir estas coisas seja algo negativo, é o mais positivo e
talvez o mais belo que se possa desejar, porque é desejar poder viver a oitava bem-
aventurança que é a confirmação das sete anteriores e é pedir o mais eficaz para converter
o nosso mundo, dando assim testemunho de que “o mundo não pode ser transformado
nem oferecido a Deus sem o espírito das bem-aventuranças”.
A razão última das vocações numerosas se encontra na cruz de nosso Senhor Jesus
Cristo. É ela a que atrai as verdadeiras vocações.
Mas... Que queremos dizer com a cruz de Cristo?
1) Em primeiro lugar, queremos indicar a cruz que coroava o Gólgota e na que
Ele morreu, como fonte inexausta de todas as vocações à vida consagrada de todos os
séculos, como fonte primária e fecundíssima de todas as vocações que têm existido,
existem e existirão. Essa cruz de Cristo, com tudo o que nela fez e padeceu, está no
começo, desenvolvimento e perseverança final de toda a vocação consagrada. Que
muitos consagrados tenham medo da cruz de Cristo é sinal, mais que eloquente, da
decadência da vida consagrada e do porquê da falta de vocações em muitas
comunidades.
2) Em segundo lugar, com “a cruz de Cristo” queremos indicar a que Ele
preparou para cada um de nós em sua cruz, como bem disse São Luís Maria Grignion
de Montfort em sua Carta circular aos amigos da Cruz:
a que cada um deve carregar com alegria, com entusiasmo e com valentia;
a cruz que minha Sabedoria lhe fabricou com número, peso e medida;
a cruz cujas dimensões: espessura, longitude, largura e profundidade, tracei por
minha própria mão com extraordinária perfeição;
a cruz que fabriquei com um pedaço da que levei ao Calvário, como fruto do
amor infinito que te tenho;
a cruz que é o maior presente que posso fazer aos meus amigos neste mundo;
a cruz constituída, quanto à sua espessura, pela perda de bens, as humilhações,
menosprezos, dores, enfermidades e penalidades espirituais que, por permissão
minha, lhe sobrevirão dia a dia até a morte;
a cruz constituída, quanto à sua longitude, por uma série de meses ou dias em
que se verá abatido de calamidades, prostrado no leito, reduzido à mendicância, vítima
de tentações, sequidões, abandonos e outras angústias espirituais;
a cruz constituída, quanto à sua largura, pelas circunstâncias mais duras e
amargas de parte de seus amigos, servidores e familiares;
a cruz constituída, por último, quanto à sua profundidade, pelas aflições mais
ocultas com que lhe atormentarei, sem que possa encontrar consolo nas criaturas.
Estas, por ordem minha, lhe darão as costas e se unirão a mim para fazer-te sofrer.
É o desejo que tiveram todos os santos.
h. Espírito de generosidade para com Deus
Outro sinal é o não estar nunca satisfeito com o que se faz por Deus, não dizer nunca
basta, querer fazer sempre mais. Se um jovem começa a experimentar certa inquietude,
uma santa impaciência por fazer sempre mais pela causa divina, estamos frente a um amor
genuíno por Jesus, frente à compreensão prática do que Ele tem feito por nós, e do
pouco que fazemos por Ele.
Aquele querer amar a Jesus até a loucura, aquele atormentar-se continuamente porque
não se ama a Deus como gostaria, aquele querer fazer um não sei quê para demonstrar nosso
amor é o que empurra estas almas a verdadeiros heroísmos de generosidade. O amor de
Deus é fonte de tormento e alegria, ao mesmo tempo; alegria porque se tem de verdade,
tormento porque não é de todo como se gostaria.
Estado místico? Não necessariamente, mas sinal mui provável de vocação.
i. Horror ao pecado e delicadeza de consciência
Trata-se de um medo saudável a respeito do pecado.
Quem anda por estes caminhos considera suas faltas como o verdadeiro e único mal
da alma, ao mesmo tempo em que vê submergir a uma parte do mundo numa grande
corrupção e ruína espiritual.
É certo que todo cristão deve ter horror pelo pecado, mas nos referimos a um desejo
de perfeição muito mais forte, desejo não só de não pecar, como de fazer que o mundo não
peque, de pedir pelos pecadores, de perdoá-los, de ser testemunha e copartícipe da
misericórdia divina, como dizia o Apóstolo: “Revesti-vos... de entranhas de misericórdia”
(Col 3,12).
Junto com o horror ao pecado, encontra-se uma sensibilidade especial para guardar-se
mesmo das mais leves faltas. O temor de ofender a Nosso Senhor, por si, faz com que a
alma seja capaz de qualquer renúncia. Quem se sente atraído por Deus descobre em si ser
muito o que lhe falta e muito mais ainda o que deve corrigir.
Isto não significa que não caiam em pecado. Podem cair e inclusive em gravíssimos,
por permissão de Deus, mas com a graça tentarão levantar-se uma e outra vez para tornar
a empreender o caminho que os levará até a fonte de água.
j. Temor a ter vocação
Segundo Santo Alberto Hurtado às vezes é sinal de vocação o mesmo temor de que
Deus queira chamar alguém à vida religiosa.
Às vezes temos medo da vocação, se retira todo pensamento sobre essa matéria, o
qual volta com insistência e, até se reza para não tê-la! “Que Deus mantenha distante de
mim semelhante convite, o qual destruiria tantos castelos idealizados e acariciados”.
Há no jovem um pensamento similar ao seguinte: “Fulano ou cicrano querem ‘me
pescar’ para a vida religiosa”, “querem me convencer”; ante isto, alguns evitam o “perigo”
de conversar até com sacerdotes, de ir com religiosos ou com jovens que têm vocação, de
ir a um retiro ou a um acampamento por temor de que se fale de vocação ou que venham
esses estranhos desejos de consagrar-se a Deus.
Conheço muitos que, por temor a enfrentar-se com a realidade, até temem fazer os
Exercícios Espirituais de Santo Inácio porque devem esbarrar ali com sua própria alma e
fazer também a “escolha de estado” para ver o que Deus quer deles; há outros que (como
eu quando mais jovem), fizeram ditos Exercícios, mas “saltando” o momento de eleger
estado (vai que Deus me chama...).
Tudo isso, normalmente, é sinal de verdadeira vocação.
Sucede que o demônio pode conjeturar com certa probabilidade que, se chegassem a
ser sacerdotes ou religiosos, fariam muitíssimo bem, e por isso procura pôr em seus
corações esses temores infundados para distanciá-los do caminho que seria sua salvação e
a de tantas almas.
Os exemplos de vocações iniciadas neste terreno são muitíssimas.
Na vida de Santa Faustina Kowalska se lê que desde os quinze anos sentia o chamado
à vida religiosa. No início não fazia muito caso, mas finalmente, desejou fazer as coisas
como Deus manda e decidiu falar com seus pais.
A resposta foi negativa; não iria ao convento; tudo acabou ali e Faustina seguiu sua
vida sem pensar novamente sobre o tema. Cada vez que lhe vinha o pensamento da vida
religiosa, fazia o impossível por retirá-lo de sua mente.
A mesma Santa relata uma destas ocasiões em seu Diário:
No décimo oitavo ano de minha vida pedi insistentemente a meus pais a
permissão para entrar em um convento: foi categórica sua negativa. Depois
dessa negativa me entreguei às vaidades da vida sem fazer caso algum à voz da
graça, ainda que minha alma em nada encontrasse satisfação. As contínuas
chamadas da graça para mim eram um grande tormento, por isso tentei apagá-
las com distrações. Evitava a Deus dentro de mim e com toda minha alma
inclinava-me até as criaturas... mas a graça divina venceu em minha alma”
(Diário, No 8).
Durante esse mesmo ano teve uma experiência que marcou sua vida. Foi convidada a
uma festa junto com sua irmã Josefina, no parque de Veneza, na cidade de Lodz:
Uma vez, fui a um baile junto com uma de minhas irmãs. Enquanto todos
se divertiam muito, minha alma sofria tormentos interiores. No momento em
que comecei a bailar, de repente vi a Jesus junto a mim. A Jesus martirizado,
despojado de suas vestiduras, coberto de feridas, dizendo-me estas palavras:
“Até quando Me farás sofrer, até quando Me enganarás?” Naquele momento
deixaram de soar os alegres tons da música, desapareceu de meus olhos a
companhia em que me encontrava, ficamos Jesus e eu. Sentei-me junto a minha
querida irmã, dissimulando o que ocorreu em minha alma com uma dor de
cabeça. Um instante após abandonei discretamente a companhia e a minha irmã
e fui à catedral de São Estanislau Kostka. Estava anoitecendo, havia pouca
gente na catedral. Sem fazer caso de quem passava ao redor, me prostrei em
cruz diante do Santíssimo Sacramento, e pedi ao Senhor que se dignasse dar-me
a conhecer o que havia de fazer dali em diante. Então ouvi essas palavras: “Vai
imediatamente a Varsóvia, ali entrarás em um convento”.
21
Este Beato tornou-se conhecido como o autor do grito de guerra: “Viva Cristo Rei!”, na luta dos cristeros contra os
comunistas e a maçonaria laicista que governavam o México em princípios do século XX. Ver a este propósito o
filme Cristiada. NdT
semelhante. Recordo que antes de entrar, visitei um par de vezes a casa de formação que
logo seria meu seminário; via que todos estavam alegres e que, ainda que estivessem
limpando as folhas, ou os banheiros, ou cozinhando à intempérie, todos cantavam, todos
estavam felizes. Na verdade, pensava que estavam fingindo: “Não podem estar tão felizes
no meio de tanto nada – me dizia – aqui deve ter mutreta.”
Mas era assim mesmo; não fingiam e eu invejava essa felicidade que em pouco tempo,
sem sabê-lo, seria também minha.
Em realidade poderíamos continuar essa lista até quase o infinito, mas baste o escrito
até aqui para ilustrar algo do que pode passar pela alma de quem está sendo chamado à
vida sacerdotal ou religiosa.
É importante ter em conta que o que mencionamos aqui são simplesmente “sinais de
vocação”, ou seja, não significa que quem os tenha possua tudo o que se requer para poder
deduzir a presença de um chamado autêntico, senão que algum ou alguns desses “sinais”
adquirem já um fundamento certo de que alguém pode ter sido escolhido por Deus.
Há quem nunca tenha sentido nada disso e de todo modo entende claramente que
deva ser religioso ou religiosa, e isto porque Deus se manifesta de modo diverso. Ele é o
único médico das almas e dono de tudo, por isso não há regras ou métodos que valham
no momento de comunicar uma graça tão grande como é a da vocação.
†
CAPÍTULO 5
TOMANDO BOAS DECISÕES
Haverá, como sempre, tentações, momentos de dúvida e de desalento, mas a alma que
está realmente sendo chamada compreenderá que são tentações que passarão logo para
deixar atrás de si a calma inicial. Para este método, muito ajuda o escrever as determinações em
um papel, ou seja, anotar os motivos pelos quais se escolhe ou não o estado religioso; isto
serve para convencer à inteligência de que se têm razões suficientes para tomar tal
determinação. Esse escrito, fruto da meditação, ajudará sempre no momento da tentação
ou vacilação, tanto antes como depois de haver decidido tal modo de vida.
3. A eleição em tempo de calma
É a decisão fundada sobre o raciocínio; é o estado daqueles que não se sentem
movidos sensivelmente pela graça, mas que se encontram em um estado de tranquilidade
absoluta; têm tentações, porém, estas não são grande coisa; há neles uma santa indiferença
pelo que há de ser a vontade de Deus em suas vidas.
Quem se encontra em tal estado crê que Deus não o chame não por “não sentir nada”
(como alguns podem pensar), senão que Deus deseja que façam sua eleição considerando
com lógica cristã os seguintes pontos:
22
Cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 134.
Mas nos detenhamos mais no modo de decidir segundo este método “em tempo de
calma”.
a. Preparação remota para a eleição em tempo de calma
A decisão, como todas na vida, deve ser racional, isto é, ponderando e medindo as
vantagens e desvantagens do que terá de eleger com a inteligência iluminada pela graça;
terá de saber então o que é a vida religiosa, o alcance dos votos, o que implica abandonar
tudo, quais são os direitos e as obrigações, a beleza dessa excelsa dignidade, a vida de
pobreza etc; deverá entender ao menos no geral o que se está desejando (assim como quando
alguém se decide casar sabe que terá de renunciar a outras noivas ou que estará obrigado a
cooperar com Deus para a procriação da prole etc).
Além disso, para poder contrabalançar, deverá conhecer também em geral a beleza do
grande sacramento do matrimônio e o que significa.
É um momento de calma, por isso não deve haver pressas nem imaturidade, nem
apuros nem falsas razões.
b. Preparação próxima
Chegado o momento de propor a eleição, outra coisa que se há de fazer é apartar de
nossa inteligência toda classe de dificuldades aparentes. Costuma acontecer que no caso da eleição
de estado, o demônio começa a turbar ao jovem e impedir-lhe que faça bem sua escolha
apresentando para isso dificuldades insuperáveis, futurísticas, tentações do passado e do
futuro etc, de modo que, em vez de buscar com sinceridade a vontade de Deus, acabe se
convencendo antes do tempo de que não poderá ser nunca sacerdote ou que a vida
religiosa não foi feita para ele ou para ela; é por isso que há de evitar todo tipo de pré-
ocupação: a cada dia basta seu cuidado.
Pelo que foi dito, antes da eleição se deverá fixar bem o objeto da eleição mesma, isto é, se
deverá perguntar: “Quer Deus que siga o caminho ordinário, permanecendo no mundo, ou
deseja que me separe dele para entregar-me a uma vida mais perfeita?”.
Agora sim, após essa breve preparação, vejamos como explica Santo Inácio o modo
de fazer a eleição em tempo de calma:
c. Eleger serenamente, segundo Santo Inácio
O terceiro tempo, segundo o que diz Santo Inácio, é ter como objetivo o fim do
homem, isto é, para que nasceu: “para louvar a Deus nosso Senhor e salvar sua alma”, e
eleger em consequência o que seja mais conveniente com dito fim [cf. 177].
É necessário repetir que se deve aplicar este último método em tempo de
tranquilidade, ou seja, quando a alma não esteja agitada de vários espíritos e possa usar de
suas potências sem ver-se turbada; se não se tem em conta este ponto, é provável que não
seja de todo confiável o resultado da eleição. Se não há tempo tranquilo convém esperar
até que este chegue.
Este tipo de eleição possui, ainda, dois modos:
Prós Contras
1) Poder dedicar toda uma vida à salvação
1) Não poder formar família
das almas
2) Retribuir em algo todo o bem que Deus 2) Em alguns casos, estar longe da família,
nos fez dos amigos
3) Combater pelo reino de Deus e a 3) Experimentar solidão e não ser
restauração da sua Igreja compreendido por muitos
4) Não aguentar o voto de castidade que a
vida religiosa implica
Prós Contras
1) Não poder dedicar-me por completo a
1) Poder formar uma família cristã
Deus
2) Estar próximo aos meus pais 2) Estar ocupado com as coisas do mundo
3) Combater pelos ideais cristãos e para e não poder fazer tanto apostolado para a
que Cristo reine em nossa sociedade salvação das almas
Pensando e rezando se encontrarão muitas coisas mais para agregar no papel; logo,
analisando com um sacerdote experimentado, com uma alma espiritual (e inclusive só, se
não tiver remédio) se poderá fazer um balanço das vantagens e desvantagens, se
decidindo por fim.
Vale ressaltar que quem ajude a discernir a vocação, simplesmente “opinará”, isto é,
não decidirá em lugar de quem deve fazê-lo; será como um bom amigo que aconselha o
que crê prudente no momento.
d. Dois avisos e um erro: sentir a vocação?
Avisos
Um. Há que se ter em conta que este método não tem de ser simplesmente numérico,
mas moral; algumas vezes uma só desvantagem (na fila dos “contra”) pode anular todas as
vantagens e vice-versa.
Dois. Dito método para fazer a eleição de estado pode fazer-se quantas vezes se
deseja, enquanto não se tenha tomado uma decisão imutável (vida religiosa, matrimônio)
feita verdadeiramente em tempo de calma ante Deus; o ser humano é tão mutante que
pode suceder que um dia não esteja de todo com ânimo para fazê-lo e igualmente o tente;
a decisão dali surgida não será a mais conforme a realidade.
Sentir a vocação? Um grave erro
Como vimos acima, a vocação é algo bastante “racional”; as sensações são parte do
homem, é verdade, mas não somente dele: também os animais sentem e não por isso
chegam a ser homens nem decidem sua vocação...
Pio XI, em um documento solene sobre o sacerdócio dirigido aos católicos de todo o
mundo nos dá uma ideia do que é a vocação; leiamos com atenção as partes mais
importantes:
A vocação se revela, mais que em um sentimento do coração, ou em um
sensível atrativo que às vezes pode faltar, na reta intenção de seguir a Deus
(...) Quem se dirige ao sacerdócio ou à vida religiosa unicamente pelo nobre
motivo de consagrar-se ao serviço de Deus e à salvação das almas, e
juntamente, ou ao menos com o fim de alcançar seriamente uma sólida piedade,
uma pureza de vida a toda prova, uma ciência suficiente, esse mostra que há
sido chamado por Deus23.
É isto o que ensinam os santos ao dizer que a genuína vocação é simplesmente “um firme
desejo e vontade de servir a Deus”.
Há aqui três integrantes principais: a graça de Deus, que deseja chamar a um estado de
vida mais perfeito; a inteligência e a vontade do sujeito, com as quais se compreende e se
quer o que nos convém para a santificação, perfeição e salvação da alma.
Tenhamos em conta que Nosso Senhor não disse ao jovem rico: “Se o sentes...”, mas “se
queres”. O fervor sensível e o entusiasmo acompanham muitas vezes a uma vocação
verdadeira, mas não são estritamente necessários. Muitas vezes Deus os concede para que
23
PIO XI, Carta encíclica “Ad catholici sacerdotii”.
a alma se fortifique e supere uma série de lutas internas ou externas pelas quais se deverá
passar para chegar a alcançar seu ideal. São os caramelos de Deus, os consolos divinos.
De fato, quem tem vocação há de sacrificar família, trabalhos, amizades, talvez até
algum amor ou ideal humano etc, ou seja, coisas pelas que deveria “sentir” dor, mas que,
com a inteligência e a vontade dirá: “apesar de tudo, quero”.
Não se trata, porém, de sentir senão mais de entender com a inteligência pela Fé e
elevada pela Graça que, para mim, com todos meus defeitos, talentos, debilidades,
desejos, temperamento e circunstâncias, a vida sacerdotal ou religiosa é o mais apto
para salvar-me e dar glória a Deus.
Vimos – ao menos sucintamente – diferentes modos que, segundo Santo Inácio de
Loyola, podem ajudar-nos a tomar boas decisões a respeito do cogitar uma vida sacerdotal
ou religiosa; para uma maior informação, daremos agora alguns dos motivos, suficientes e
insuficientes, que poderão ajudar a alguém que esteja decidindo abraçar tal estado de vida.
†
CAPÍTULO 6
OS MOTIVOS PARA ENTRAR NA VIDA RELIGIOSA
No capítulo anterior vimos os diferentes modos que existem de fazer uma boa
eleição de estado. Como dizíamos, é necessário ter motivos suficientes e de peso para
poder realizar dita eleição. No presente capítulo tentaremos ver alguns deles que nos
permitam eleger tranquila e conscientemente.
É sabido que, normalmente, na vida religiosa estamos distante dos perigos e tentações
do mundo; o claustro é, de certo modo, uma espécie de morte por meio da qual o
religioso voluntariamente faz oblação de si mesmo para dedicar-se por inteiro a Deus: é
esta a razão pela qual vive longe do mundo e de seus prazeres, recebendo em recompensa
a vida eterna no céu e o cento por um neste mundo.
Então Pedro, tomando a palavra, lhe disse: “Vês, Senhor, que nós
deixamos tudo e te seguimos; que receberemos, pois?”. Todo aquele que tenha
deixado casas, irmãos, irmãs, pai, mãe, filhos ou terras por meu nome, receberá
o cento por um e herdará a vida eterna (Mt 19,27.29).
Nosso Senhor mesmo foi o primeiro a prometer que nem mesmo um copo d’água
dado em seu nome ficaria sem recompensa no Céu. Como poderia, então, deixar sem o
prêmio eterno aos que deixaram tudo por seu amor e o têm seguido entregando-se em
sacrifício? Sua promessa é contundente: “a quem me seguir... lhe darei a vida eterna”;
porém – é certo – isso não se segue automaticamente, mas requer a fidelidade até o fim de
quem se decidiu a abandonar tudo e o seguir.
b. Encontrar-se quase livre de pecado mortal
O sacerdote ou a religiosa vive sempre sob o olhar de Deus; tem as regras que lhe
serve de barreira contra as tentações; tem a seus superiores e companheiros que velam
por eles para apartar toda a ocasião de ofensa a Deus. Quem se entrega a Deus liga-se a
Ele com os santos votos ou promessas, mas não só eles, Nosso Senhor mesmo também
se ata a seus consagrados empenhando-se em derramar enormes graças para os
momentos de prova.
Segundo uma conhecida sentença de São Bernardo “o religioso vive mais puramente,
cai raramente, levanta-se prontamente, morre confiadamente, se lhe livra do purgatório
mais prestamente e é remunerado mais abundantemente”.
Mais. Poderíamos dizer com segurança que um bom religioso facilmente pode passar
toda sua vida sem cometer um pecado mortal. Mas não contente com isso, vejamos o que
diz Santo Tomás ao perguntar-se se em um mesmo gênero de pecado, peca mais um
religioso que um secular:
O pecado cometido pelos religiosos pode ser mais grave que o cometido
pelos seculares por três razões. Primeiro, se vai contra os votos religiosos,
como a fornicação ou o roubo, já que, ao fornicar peca contra o voto de
castidade, e ao roubar, contra o da pobreza, além de pecar contra a lei divina.
Em segundo lugar, se peca por desprezo, já que nesse caso parece que é mais
ingrato para com os favores divinos que lhe têm elevado ao estado de
perfeição. O Apóstolo diz a respeito, em Heb 10,26, que o fiel merece maior castigo,
posto que, ao pecar, passa por cima do Filho de Deus com seu desprezo. Por isso o
Senhor se lamenta em Jer 11,15: Que tem que fazer em minha casa meu amado, estando
coberto de iniquidade? Em terceiro lugar, o pecado do religioso pode ser mais
grave pelo escândalo, porque é objeto do olhar de muitos. Por isso se diz em
Jer 23,14: Nos profetas de Jerusalém hei visto adultério e mentira, e o dar o seu braço aos
perversos para que ninguém se converta de sua maldade. Mas se o religioso, por
debilidade ou ignorância, comete algum pecado que não vai contra os votos de
sua profissão, sem dar escândalo, mas de modo oculto, peca menos que o
secular que comete o mesmo pecado, porque, se seu pecado é leve, fica
absolvido, de alguma maneira, pelas muitas obras boas que realiza. Se o pecado
é mortal, se levanta dele mais facilmente. Primeiro, porque sua vontade está
dirigida para Deus, e se se desvia por um momento, torna com facilidade ao seu
estado anterior. Por isso, em seu comentário sobre o salmo 36,24: Quando caia
não se estatelará, diz Orígenes: quando o pecador torna a pecar não se arrepende nem sabe
emendar seu pecado. Mas o justo sabe emendar-se e corrigir-se, como aquele que havia dito
(Mt 14,71; cf. Mt 26,72): “Não conheço este homem”, pouco depois, ao ser mirado pelo
Senhor, começou a chorar amargamente; e aquele que, desde seu terraço havia visto e desejado
uma mulher (2 Re 11,2), soube dizer: “Hei pecado e hei cometido o mal ante ti”. Além
disso, seus irmãos o ajudam a levantar-se, conforme o que se diz em Ecle 4, 10:
Se alguém cai, o outro lhe levanta. Ai do que está só, porque, se cai, não tem quem lhe
levante24.
Isto mesmo é o que buscava o jovem rico do Evangelho (Mt 19,16-22): ele já havia
observado os mandamentos desde sua infância, porém, entendia que aquilo era pouco;
tudo lhe parecia pequeno...; sua alma anelava algo muito maior, queria fazer mais por
Deus, não se contentava com o estritamente obrigatório.
– “Se queres ser perfeito, vende tudo o que tens, vem, e segue-me” – disse Nosso
Senhor.
Mas o jovem se entristeceu...
Este estado de perfeição de que falamos várias vezes é simplesmente isso, um “estado”,
um modo de vida no qual se tende continuamente à perfeição; aclaremos: viver em um
“estado de perfeição” não significa já ser perfeito, tampouco que quem eleja o estado
matrimonial será um “cidadão de segunda”. Por “estado de perfeição” se entende o
24
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, II IIae pars, q. 186, a. 10.
seguimento não só dos preceitos evangélicos, como também dos conselhos evangélicos
buscados através dos votos religiosos; pode haver (e claro que os há!) matrimônios muito
mais santos que muitíssimos religiosos – disso a história pode dar inúmeros exemplos –
mas o que a teologia afirma é que o estado de vida religioso resulta mais perfeito que
qualquer outro por causa da entrega que nele se faz; naquele o homem dá tudo de si a
Cristo e à Igreja.
Foi Nosso Senhor mesmo quem disse ao jovem rico: “se queres ser perfeito...”, ou
seja, “se queres ser como Eu...”, dando-lhe logo os conselhos evangélicos; foi Ele quem
quis ser casto, pobre e obediente, propondo-se em seguida como modelo de perfeição
para os que se animassem.
d. Possuir muitos meios para alcançar a santidade
Para quantos jovens tem sido o pensamento acerca da morte o que os fez decidir a
ingressar na vida religiosa. Diz-nos também Santo Inácio quando aconselha o jovem que
faz a eleição de estado, que se considere o leito de morte com o sacerdote ao lado e aos
familiares chorando; que pense: Que preferiria ter escolhido na hora de minha morte?
Morrerei mais contente e tranquilo, mais confiado e sereno se morro rodeado de
religiosos e de religiosas, ou bem, se o faço rodeado de uma bela família cristã? Ante
minha morte... gostaria de ter abandonado o mundo ou permanecido nele? E então,
conclui Santo Inácio, escolhe agora o que haveria desejado escolher na hora de tua morte.
25
SAN JUAN DE LA CRUZ, Cautelas a un religioso, no 15.
Do religioso se pode dizer: “Ditosos os mortos que morrem no Senhor” (Ap 14,13).
Aquele viveu para Deus, morreu por Ele e nEle; acumulou verdadeiras riquezas que não
poderão ser roubadas por ladrões nem destruídas pela ferrugem.
Santo Alfonso Maria de Ligório narra assim a morte de um religioso:
Um santo religioso da Companhia de Jesus começou a rir na hora da morte, e como
lhe perguntassem por que ria, respondeu: “E por que não hei de rir?; não prometeu o
paraíso o mesmo Jesus Cristo ao que abandonou tudo por seu amor? Não disse também
que o que deixar a casa, o pai ou a mãe, receberá o cento por um e depois a vida eterna? Eu abandonei
tudo por Deus; e como Deus é fiel, não pode faltar a suas promessas; por conseguinte
não sobrarão razões para alegrar-me e sorrir, com tantos presentes que alcançarei no
paraíso?26
f. Estar certo de que sempre se faz a vontade de Deus
No caso dos religiosos, o voto de obediência obriga a submeter a própria vontade aos
Superiores legítimos, que fazem as vezes de Deus quando mandam algo segundo a Regra.
Com isso, o religioso se compromete a obedecer ao superior, referente a tudo que diz
respeito à vida religiosa e apostólica, imitando nisto a Jesus Cristo, feito obediente até a
morte e morte de cruz (Fl 2,8).
Este privilégio, como dizíamos, são os religiosos que unicamente o gozam, já que
qualquer coisa que façam, desde um sermão até varrer o chão, desde a penitência até o
dormir, se o fazem por ordem ou com a permissão de seus superiores, estarão fazendo
sempre a vontade de Deus. Um superior manda a seu súdito que vá assistir a um
moribundo: é a Vontade de Deus; outro manda que o religioso vá visitar sua família ou
descansar: não há o que discutir!, é a Vontade de Deus. Como dizia São Francisco de
Sales, “tudo é seguro na obediência e tudo é suspeito fora dela”27.
Eis aqui o segredo: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e
cumprir a sua obra” (Jo 4,34).
g. Gozar de uma grande felicidade na vida religiosa
Por esta razão não poucos escolhem a vida religiosa; o que quer sacrifício pode estar
seguro de que ama ao Senhor. Não há sinal mais claro e seguro de amor a Deus.
26
SAN ALFONSO, La vocación religiosa, Iction, Bs. As. 1981, 95.
27
SÃO FRANCISCO DE SALES, Tratado do amor de Deus, VI, 13.
Com quanta frequência estas almas generosas querem ser semelhantes em tudo a
Jesus, especialmente na cruz!
Este aspecto da vida religiosa é um dos mais belos e dos mais desejados pelas boas
almas. Basta citar Santa Margarida Maria de Alacoque, a qual costumava dizer a Jesus que
não creria em seu amor enquanto não a tivesse feito partícipe de sua Paixão e de sua Cruz.
Porém, não só os Santos sentiam assim: todas as almas que querem amar a Deus com
sinceridade são atraídas por uma vida austera e sacrificada.
i. Possibilidade imensa de aumentar os méritos
Na vida religiosa os méritos pelas ações se dão de forma mui simples e abundante, já
que, por exemplo, todos os religiosos de uma mesma congregação formam um único
corpo, um corpo moral em que tudo é comum, tudo se comparte: não só os bens
materiais e os méritos; as alegrias e as tristezas.
Um religioso que talvez não possa rezar ou trabalhar por encontrar-se enfermo,
recebe um contínuo aumento de graça pelos méritos e as fadigas de todos seus irmãos que
são missionários, professores, pregadores etc; mas por sua vez, esse mesmo enfermo pode
receber méritos por suas dores e sacrifícios que redundam em benefício dos pregadores,
professores enfermeiros etc.
j. Viver em companhia de boas almas
Na vida religiosa bem vivida, é difícil ter maus companheiros ou que arrastem ao mal;
podem existir, é verdade, mas não duram muito e se duram toda a vida, bem-vindos
sejam!: darão mais oportunidades de santificar-nos enquanto os suportemos.
Nas congregações onde se vive segundo a Regra há uma santa porfia de edificação
mútua. Se for verdade que “os exemplos arrastam”, os religiosos encontram uma ajuda
mui eficaz para sua vida espiritual achando-se rodeados de almas cheias de amor divino,
de desejos de perfeição, de boa vontade, de ajuda mútua para ser sempre melhores aos
olhos de Deus.
Se narra na vida de São João Berchmans que seus companheiros ficavam inflamados
de amor divino simplesmente por ter passado com ele um recreio, e que chegavam a
apreciar mais uma conversação com o santo que toda uma hora de meditação.
k. Para os jovens: a excelência do sacerdócio
O sacerdote é o guerreiro de Deus; haveria muitíssimo que dizer sobre dele, mas não
nos sentimos em condições de dizer muito mais do que escreveu a genial pena de Hugo
Wast28 em seu pequeno escrito intitulado “Quando se pensa...”:
Quando se pensa que nem a Santíssima Virgem pode fazer o que [faz] um
sacerdote.
28
HUGO WAST, Navega hacia alta mar, en Obras Completas, Fax, Madrid 1957, 1750-1751.
Quando se pensa que nem os anjos nem os arcanjos, nem Miguel nem
Gabriel nem Rafael, nem príncipe algum daqueles que venceram a Lúcifer
podem fazer o que [faz] um sacerdote.
Quando se pensa que Nosso Senhor Jesus Cristo na última Ceia realizou
um milagre maior que o da criação do Universo com todos os seus esplendores
e foi o converter o pão e vinho em seu Corpo e seu Sangue para alimentar o
mundo, e que este portento, ante o qual se ajoelham os anjos e os homens,
pode repeti-lo cada dia um sacerdote.
Quando se pensa que isso pode ocorrer porque estão faltando as vocações
sacerdotais; e que quando isso ocorra se comoverão os céus e estralará a terra,
como se a mão de Deus houvesse deixado de sustê-la; e as gentes gritarão de
fome e de angústia, e pedirão esse pão, e não haverá quem se os dê; e pedirão a
absolvição de suas culpas, e não haverá quem as absolva, e morrerão com os
olhos abertos pelo maior dos espantos.
Quando se pensa que um sacerdote faz mais falta que um rei, mais que um
militar, mais que um banqueiro, mais que um médico, mais que um mestre,
porque ele pode substituir a todos e nenhum o pode substituir.
Compreende-se que mais que uma Igreja, e mais que uma escola, e mais
que um hospital, é um seminário ou noviciado...
Até aqui Hugo Wast; o que de mais formoso se poderia dizer?
O Beato Miguel Agustín Pro, um ano antes de seu terrível martírio perpetrado pelos
marxistas mexicanos, escreveu o seguinte a um amigo que logo seria ordenado
sacerdote29:
Carta ao futuro sacerdote Benjamin Campos.
Esse algo que eu encontro em mim, que nunca o havia sentido, que me faz
conceber as coisas de outro modo, não é fruto dos estudos, nem de nossa
santidade, mais ou menos sólida, nem de nada que tenha o selo pessoal e,
portanto, humano. É a marca divina que o Espírito Santo vai imprimir em
nossa alma ao dar-nos o caráter sacerdotal; é uma participação mais estreita na
vida divina que nos eleva e edifica; é uma força superior que nos torna fáceis e
acessíveis aos desejos e aspirações que até agora talvez não tivéssemos
realizado...
E esta mudança eu não a havia sentido, senão até ver-me em contato com
as almas. Deixando de lado as falsas humildades e abrindo-lhe de par em par
meu pobre coração de irmão, posso assegurar-lhe que em meus seis meses de
ministério Deus Nosso Senhor se dignou tomar-me como instrumento para
fazer o bem. Quantas almas deixei consoladas, quantas penas destruídas, quanto
ânimo infundi para seguir o caminho difícil da vida! Duas vocações quase
perdidas voltaram a Deus; um seminarista decidido a deixar a batina, segue com
novos brios os desígnios da Providência.
29
Carta do Pe. Miguel Pro a seu amigo Benjamin Campos, em 27 de maio de 1926; ANTONIO DRAGÓN, Vida
íntima del P. Pro, Buena Prensa, México 2005.
E uma prova evidente de que não era eu o que fazia tudo isso, é que, dada
minha maneira de proceder, meu temperamento, minha discrição e meus
estudos, devia dizer “negro” e, todavia, disse “branco” e o disse mui
corretamente e com fruto.
Veja, meu Padre, que facilidade tenho para subir-me ao tablado e dar lições
ao que em verdade as devia de me dar. Mas da abundância do coração fala a
língua e eu estou cheio, acumulado de favores que o Senhor me tem feito desde
o dia feliz de minha ordenação, e não posso dizer outra coisa que não seja
agradecer-lhe tão imerecido amor de predileção... O Senhor levanta ao pobre
do lamaçal e o coloca com os príncipes de seu povo...
“Eu, ruim e miserável nada, protesto a meu Deus que quero submeter-me
e sacrificar-me a tudo o que Ele peça de mim; imolar meu coração ao
cumprimento de seu beneplácito, sem reservar-me outro interesse que o da sua
maior glória e seu puro amor, ao qual consagro e abandono todo meu ser e
todos os momentos de minha vida. Eu sou para sempre de meu Amado, sua
escrava, sua serva e sua criatura, posto que Ele é todo meu e eu sou sua indigna
30
Citado por EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 166-167.
esposa, Irmã Margarida Maria, morta ao mundo. Tudo de Deus e nada meu;
tudo a Deus e nada a mim; tudo para Deus e nada para mim”31.
A vida religiosa é um martírio lento e diário, não menos heroico e meritório que o
martírio sangrento. Muitos Santos Padres comparam os votos a um novo batismo e
creem que Deus perdoa completamente o Purgatório que o religioso mereceu pelos
pecados cometidos em sua juventude; até poderia se dizer que realmente começa uma nova
vida.
m. Possibilidade mais direta da defesa da Igreja
Sabemos que a Igreja é o Reino de Deus, o Porto de Salvação para a humanidade; esta
Igreja fundada por Jesus Cristo é sua Esposa imaculada, a pupila de seus olhos e, ao
mesmo tempo, um sinal de contradição para o mundo. Sempre sofreu ataques e hoje em
dia, ao que parece, mais que nunca.
Quantos jovens sentem o desejo e o dever de defendê-la! Dar a vida por ela! Neste
sentido, os religiosos podem dedicar-se a estudar sua doutrina, seus dogmas e seus modos
de ação. Há inclusive muitas almas que se decidiram pela via religiosa precisamente por
ver que esse era o modo que Deus lhes pedia para lutar contra os seus inimigos e os de
sua Igreja, já que não só a espada, mas também a pena e a pregação são necessárias para
defender as verdades que nunca passam.
n. Cooperar diretamente na salvação das almas
É um motivo que não falta quase nunca na decisão de um jovem que quer tornar-se
religioso ou sacerdote. É a messe dourada o que lhe atrai; é o lamento de Jesus que vê
perderem-se as almas pelas quais deu seu Sangue e sua vida; é a vista de tantos irmãos que
se perdem para toda a eternidade...
Há jovens que ardem de zelo e crescem neles o desejo de trabalhar pelas almas cada
vez que meditam no inferno. “Pensar – diria um – que aquelas almas terão de estar ali
para sempre distantes de Deus, sem a possibilidade de fazer jamais um ato de amor para
com Ele! Não sei que faria por impedir que uma só alma caísse naquelas chamas”.
– “Sitio!!!” – disse Nosso Senhor. “Tenho sede!!!”.
É a sede de almas o que atrai; é o mesmo sentimento dos beatos pastorzinhos de
Fátima, que depois de terem visto o inferno com os condenados que se agitavam e
moviam, começaram a fazer sacrifícios heroicos para impedir que as almas se
condenassem para sempre.
Vimos brevemente alguns dos motivos pelos quais vale a pena queimar os navios 32 ,
pelos quais vale a pena decidir pela vocação sacerdotal ou religiosa. Trata-se da
experiência dos santos, dos doutores; quem decide tornar-se religioso por algum ou
31
JOSÉ M. SÁENZ DE TEJADA, Vida y obras completas de Santa Margarida Maria de Alacoque, Mensajero, 3ª edición,
206 (cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 167).
32
O equivalente evangélico do: “pôr a mão ao arado e não olhar atrás”. Expressão ligada à história do conquistador
espanhol Fernando (Fernão) Cortez (1485-1547), que para obrigar a seus comandados a não abandonar a
expedição de conquista do México, tão logo aportou no novo território mandou atear fogo às embarcações para
que não houvessem deserções. (NdT)
alguns dos motivos anteriormente expostos, pode estar seguro de que possui reta intenção,
ou seja, o primeiro requisito necessário para a verdadeira vocação.
Se a isto se acrescenta a idoneidade da que anteriormente falamos, terá o segundo requisito
necessário. Finalmente, se tendo feito a petição aos superiores é aceito por eles, poderá
estar seguro de que Deus o chama a uma vida de maior entrega.
Porém, não contentes de ver os motivos válidos para entrar na vida religiosa, nos
pareceu também importante anotar aqui aqueles que não seriam de todo suficientes para
decidir o ingresso nesta vida.
1. Alguns motivos puramente naturais e insuficientes
O sacerdote ou a religiosa que caminham pela rua, normalmente são tratados com
certo respeito; a gente os saúda, lhes pede orações, comentam problemas...; não obstante,
hoje em dia e em especial devido à campanha de perseguição que sofre a Igreja, pareceria
suceder todo o oposto. De toda forma, talvez alguém ainda pense que este seria um bom
motivo para tornar-se sacerdote ou religiosa.
Do fato acima, há que dizer que se alguém deseja ser reconhecido pelo mundo pelo
único fato de ser louvado, não lhe conviria a vida religiosa; há muitos outros modos de
chamar a atenção (e a menor custo): a delinquência, a glamourosidade e o futebol são
simplesmente alguns deles, sem ter de fazer tantos sacrifícios.
b. É que... não sirvo pra nada
Então tampouco servirá para o sacerdócio ou a vida religiosa. Deus escolhe o pior
para elevá-lo ao melhor, mas não escolhe os quem têm vocação de fracassado.
c. Entrando na vida religiosa poderia estar tranquilo, livrar-me de minha família...
Diz o Pe. Busuttil33, e isto vai especialmente para algumas jovens, que – sem querer –
por momentos encontram certa simpatia nos véus, a cor, a forma do hábito ou as
sandálias... Outras, em troca, sentem uma simpatia natural por uma Irmã: “me quer tão
bem!”; “gostaria de estar sempre com ela porque é minha amiga!”.
Tudo parece “gracioso”, “bonito”, “delicado”. Qualquer coisinha, qualquer
sorrisinho... e já temos uma vocação! Não! Isto é sério! Não se pode fundar todo um
futuro em tontices.
É certo que o hábito pode despertar uma inquietude, mas em geral não passará disto;
o mais profundo não é o pano, porém o modo de levá-lo, o modo de viver com ele; aqui
sim vale o velho refrão: “o hábito não faz ao monge...” (ou à monja).
e. É que já prometi àquele sacerdote...
“O padre Fulano conversou comigo tantas vezes... me dá pena dizer que em realidade
não tenho vocação; lhe disse que sim porque todos os dias ajudava na Santa Missa, mas
em realidade não entrarei por minha conta, mas por compromisso, quem sabe com o
tempo talvez Deus me dê de presente a vocação”.
33
Cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 185.
Erro: quem assim age significa que não tem caráter, tampouco conhece o que é o não
ter respeito humano; aquele sacerdote seguramente se alegraria de saber que a pessoa lhe
fala com sinceridade. E se não se alegra, pior para ele!
Há que temer a Deus antes que aos homens; no fim das contas quem nos pedirá
contas é Ele; por isso, quem ingressa assim na vida religiosa não durará muito tempo ali,
salvo uma graça especialíssima de Deus.
f. Quando era pequeno, minha mãe me consagrou a Deus e...
Há muitas mães que quando seus filhos nascem, se os oferecem a Deus; esse belo
gesto deveria ser normal entre os católicos; elas não são donas de seus filhos, somente
custódias e guardiãs. De todo modo, isto não significa que Deus deva chamar à vida
religiosa todos os que foram oferecidos a Ele; o voto de fazer ou não tal coisa é de quem
o emite e não obriga mais que a essa pessoa.
Não obstante, pode ocorrer que Deus escute as orações dos pais porque são
conformes a Sua Vontade; por isso, algumas vezes essas coincidências podem ser sinal de
verdadeira vocação, mas como se trata de orações nas quais participa muito o sentimento
(amor ao filho, medo de perdê-lo por morte prematura, até desespero, desalentos etc) e
por outra parte a vontade do jovem não serve para nada, seria imprudente basear-se
somente em tais fatos para julgar como verdadeira uma vocação.
Além destas “razões”, haveria mil mais que seriam totalmente insuficientes para
ingressar na religião, mas fiquemos por aqui para poder seguir adiante.
Vimos rapidamente alguns motivos pelos quais uma alma pode decidir seu ingresso na
vida religiosa. Deus quer um coração sincero e não um artificial e macaqueador. Ele
perscruta nossas almas e nos conhece mais que nós mesmos; é por isto que saberá a quem
escolher, quando e como.
Alguém pode ter motivos retos para ingressar e em seguida, uma vez dentro, desviar
sua vontade para outro fim que não seja Deus; pelo contrário, pode existir também quem
ingresse com a intenção não de todo reta ou clara e em seguida Deus se digne levá-lo
igualmente pelo caminho da perfeição; como dizíamos acima, quem somos nós para pôr
limites a Deus?
Não obstante, quem pode pôr limites ao chamado de Deus pode ser o mesmo
candidato, seus amigos, seus parentes e até o mesmo demônio (que o que menos quer é
que haja mais e melhores sacerdotes e religiosas). É por isso que no próximo capítulo
tentaremos resumir as objeções mais comuns que se apresentam na vida de quem decidiu
retamente seguir mais de perto a Jesus Cristo.
†
CAPÍTULO 7
ROMPENDO ALGUMAS OBJEÇÕES
Para muitos esta é uma dificuldade importante e ao mesmo tempo uma terrível
tentação; é uma luta interna que se trava no coração de quem ama verdadeiramente a seus
pais e a Deus...
Santo Alfonso Maria de Ligório nos narra que a prova mais dura que sofreu na vida
foi a de informar a seus pais os propósitos de abandonar o mundo; era um advogado mui
exitoso e tinha adiante um futuro esplêndido.
Meu filho, não me deixes! Oh, meu filho, meu filho!; não mereço que te portes assim
comigo – lhe dizia o pai.
34
SANTO TOMÁS DE AQUINO, Contra retrahentes, c.9.
35
Cf. EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 284.
Era duro, duríssimo para ele desapegar-se dos seus e se não tivesse sido por sua
firmeza a Igreja teria perdido um de seus maiores santos e doutores. Afortunadamente
recordou as palavras dAquele que, podendo chamar-se o mais bondoso e terno entre os
homens, não obstante disse:
“Não penseis que vim trazer paz à terra... não vim trazer a paz, mas a divisão, a separar o filho de
seus pais e a filha de sua mãe... Porque o que ama a seu pai ou a sua mãe mais que a mim não é digno
de mim” (Mt 10,34-37).
Não é que Nosso Senhor nos peça para desprezar a nossos pais (coisa que iria contra
o 4º mandamento), senão que hierarquizemos nosso amor. “Se há de servir primeiro a
Deus que aos homens”, dizia Antígona.
É verdade que de início pode mui doloroso, mas também nisto há muita exageração;
o filho que se consagra a Deus não se perde nem está morto; normalmente, se pode ir
visitá-lo, falar com ele, se pode recebê-lo nas férias etc. Também há a experiência de
muitas mães, quem ao falar do filho ou da filha religiosos, dizem: “É o único que me
escreve...”, “é a única que se lembra de mim...”, “o único que me visita”.
Por outro lado, é a lei da vida!, como dizia São Paulo: “Por isso deixará o homem a
seu pai e a sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne” (Ef 5,31),
isto é, cedo ou tarde, casado, sacerdote ou religiosa, todos terminam por abandonar a casa
paterna. Nossos pais fizeram o mesmo quando deixaram as casas de nossos avós e
ninguém morreu por isso.
Se uma família compreendesse o tesouro enorme que recebe com a vocação de algum
de seus integrantes, não somente não sofreria como agradeceria enormemente a Deus.
3. Mas... tenho noivo/a e o/a quero...
Esta é uma objeção comum, porque pode ser que justamente Deus mande a vocação
no momento em que acreditávamos ter encontrado nossa “metade da laranja”. Que fazer
então?
Primeiro, é importante ter em conta que Deus só abençoa a união entre o homem e a
mulher no momento do matrimônio, onde ambos contraentes dão o sim definitivo frente à
sociedade; o noivado, até aí, seguirá sendo sempre um tempo de preparação e
conhecimento mútuo.
Nos desígnios de Deus, pode haver casos em que Ele queira preparar a vocação
religiosa por meio de um noivado são, levando-os suavemente pela mão até lá (conheço
um caso mui próximo em que um casal de noivos cristãos, após cinco anos e meio de
compromisso, decidiu deixar tudo para abraçar ao mesmo tempo a vida religiosa).
Mas, “que direi ao meu noivo ou à minha noiva?”.
Há que agir com total naturalidade; se a(o) ama de verdade, não há motivos para
ocultar o que ocorre. Nestes casos é melhor falar antes que depois, pois do contrário, o
demônio poderá fazer uma festa com as indecisões e os joguinhos sentimentais.
Se Deus chama a um dos dois a esta vocação sublime e ambos se amam realmente
haverá que dizer as coisas como são. Se realmente, quem tem vocação para o matrimônio
se inteira de que o outro a tem para a vida religiosa, deveria ser o primeiro a incentivar, já
que o amor verdadeiro busca primeiro o bem do outro. Forçar a alguém que permaneça no
mundo e se case, seria arruinar não somente a sua vida, mas a de toda uma família.
Mais de uma vez tenho escutado um homem ou uma mulher dizer que, antes de
casar-se, havia sentido a vocação, mas que, por temor ou respeito humano, não a havia
seguido; as consequências – pelo que os tenho ouvido – têm sido sempre desfavoráveis.
4. Estou na universidade e ainda não terminei meus estudos...
Na atualidade, dado que muitos jovens logo após sua preparação média seguem seus
estudos universitários, pode acontecer que nesta última etapa alguém comece a pensar
seriamente na possibilidade da vocação. Nisto não há norma fixa, mas tudo depende da
prudência sobrenatural e de um bom guia espiritual.
Existirão alguns casos em que será necessário terminar os estudos, contudo existirão
outros em que não valerá a pena fazê-lo. Nisto pode jogar-se a mesma vocação.
As circunstâncias, como dissemos, podem ser infinitas: um jovem que está a ponto de
graduar-se e que possui uma grande firmeza na vocação, poderá perfeitamente continuar
com sua carreira para ingressar em seguida na vida religiosa; outro, em circunstâncias
diversas, talvez não tenha as forças para seguir firme nesse intervalo e será então
conveniente ingressar imediatamente neste estado de perfeição.
5. Mas... gosto muito de meninos/as...
A mulher e o homem que decidem entrar para a vida religiosa não perdem em
absoluto sua feminilidade ou masculinidade, ao contrário: só sendo perfeitamente homens
e perfeitamente mulheres, podem ter vocação religiosa, ou seja: se um jovem não gostasse
de meninas e uma jovem de meninos, isso seria sinal claro de que não têm vocação,
porque lhe faltaria algo fundamental: a idoneidade.
Quando o homem ou a mulher decidem seguir a vocação, não por isso seus apetites
naturais desaparecem. Descartar a possibilidade de casar-se e formar uma família implica
um grande sacrifício, uma grande renúncia. É o exemplo de Jesus Cristo, casto, pobre e
obediente, o que impulsiona e dá a graça para poder imitá-lo.
A castidade não é impossível, mas quando Deus dá a graça.
6. Meus pais precisam de mim...
Este sim pode ser um obstáculo real e sério, por isso há que considerá-lo com diligência e
bom sentido.
Há casos em que a partida de um dos filhos pode chegar a ser de uma grande
dificuldade para os pais: poderia ocorrer, por exemplo, que com sua partida estes se vejam
privados do necessário para o sustento, ou passem sérias dificuldades econômicas, ou
fiquem sem cuidado ante uma grave enfermidade etc.
Nestes casos o filho deverá considerar seriamente que Deus esteja de fato chamando-
o à vida sacerdotal ou religiosa, mas que antes lhe exigirá um sacrifício extra.
Sobrepesadas prudentemente as circunstâncias terá de pensar que talvez ainda deva
permanecer mais um tempo no mundo, cumprindo assim seu dever como filho. Existem,
no entanto, alguns casos em que os mesmos pais, mesmo com toda dificuldade, permitem
o ingresso de seus filhos à vida religiosa, apesar dos inconvenientes que possam advir.
Trata-se de pequenas flores de santidade que Deus nos manda como exemplo.
Assim fez uma mãe italiana, mui pobre, a qual depois de ter dado a sua filha a
permissão para tornar-se religiosa teve também a generosidade de concedê-la ao filho que
lhe rogava dita vênia:
– “Eu vou pedir esmola, mas não quero pôr dificuldade nem aos teus ideais nem à tua
felicidade” – dizia36.
A pobre ficou só em sua casa, mas Deus a premiou com a santidade de seus filhos e
as frequentes visitas de muitos religiosos.
Se na prática, a necessidade dos pais não é tão grande, não há que pensar muito
(assim, não basta, por exemplo, que a mamãe diga que necessita do afeto de seu filho ou
que vai ter muita saudade); se nos ocupamos das coisas de Deus, Ele se ocupa das nossas.
7. Tenho cometido muitos pecados...
Deus chama como quer, quando quer, onde quer e quem quer; todo o imenso mar de
nossos pecados são nada ante uma gota da misericórdia divina.
Que penoso teria sido para a Igreja se São Paulo, Santa Maria Madalena ou Santo
Agostinho tivessem pensado assim!
Ante essa inquietude há que responder com o dito popular: “o passado pisado está”, e
não por isso deixar de fazer o que Deus manda.
Se alguém se arrepende e confessa, é de fé que os pecados se esfumam como cinza: já
não existem. Recordemos: “tudo coopera para o bem dos que amam a Deus”, inclusive os
próprios pecados.
8. Prefiro ter uma segurança total...
Este é um grave e típico erro; existem aqueles que para ter certeza da vocação
esperam que lhes apareça um anjo ou que Jesus Cristo mesmo lhes fale ao ouvido. A
certeza que podemos ter de nossa vocação é uma certeza moral, não física nem metafísica;
basta ter razões suficientes para saber que neste estado de vida se poderá dar maior glória
a Deus e cooperar para a salvação das almas; isso é tudo.
São Francisco de Sales dizia: “Para saber se Deus quer que alguém seja religioso, não
é necessário aguardar que o mesmo Deus lhe fale ou que desde o céu lhe envie um anjo
para manifestar sua vontade. Tampouco é necessário um exame de dez doutores para
resolver se a vocação deve ou não seguir-se; o que importa é corresponder a ela e acolher
36
EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 202-203.
o primeiro movimento da graça sem preocupar-se dos desgostos ou da tibieza que
possam sobrevir; porque, fazendo assim, Deus procurará que tudo redunde em sua maior
glória”37.
9. E se eu não perseverar?
Se a eleição de estado foi bem feita o medo de não perseverar é ridículo, precisamente
porque o perseverar depende de nossa vontade e da graça de Deus; é por isso que quando
foi decidida a vocação à vida religiosa – da mesma forma quando se decide casar – deve
deliberá-lo bem e uma vez tomada a decisão, não olhar atrás.
“Mas... que dirá a gente se voltar...? Se não aguentar?”. Na pior das hipóteses, a gente
esquecerá tudo em poucas semanas.
Em geral, quando alguém deixou o seminário ou a vida religiosa, as pessoas, depois de
curto tempo já nem sabem se quem voltou tinha ido de viajem, estava doente ou
trabalhava num circo... A gente esquece o que passou muito mais rapidamente que se
pensa; de todo modo, este é um tema menor: o importante é que Deus não abandona.
Além disso, maior vergonha seria apresentar-se no dia do Juízo sem ter feito o que Deus
nos pedia em seu tempo.
O fato de alguns, apesar de haver trabalhado com sinceridade, tenham tido de deixar a
religião antes de ter feito os votos perpétuos, não há de considerar-se como uma desonra,
mas uma honra, já que demonstraram ter tido a valentia de empreender o caminho rumo
à perfeição. Fora disto, é importante notar que nunca, mas nunca, os anos passados na
vida religiosa são vãos para um cristão, e isto o pode comprovar muitos dos que
ingressaram nela e após um tempo decidiram deixá-la38.
A respeito da perseverança como sacerdotes ou religiosas, é certo que ninguém a tem
assegurada: mas para isso estão os anos prévios à ordenação ou aos votos perpétuos, para
preparar-se, para estudar a vocação, para conversar com os superiores e diretores
espirituais. Daí que sempre devamos pedir a Deus com as palavras do Salmista: “Não
abandones, Senhor, a obra de tuas mãos” (Sl 138).
10. Não sinto...
Já falamos sobre “sentir” a vocação, mas insistamos ainda um pouco, pois nunca será
demais.
Recordo que uma vez me contaram uma história da vida de São Francisco de Assis.
Uns fiéis o viam rezar e ficavam maravilhados de seu recolhimento:
Diz-nos, Francisco: Que sentes quando rezas na Igreja? Te vemos tão recolhido...
E o Santo responde:
De verdade? Uma grande dor nos joelhos...
37
Cf. SAN ALBERTO HURTADO, Elección de carrera, no 13.
38
Eis um dos mais sublimes parágrafos deste livro; muitos certamente hão de se beneficiar com ele. (NdT)
É que nem sempre, necessária ou ordinariamente, a graça de Deus (como o é a
vocação) é algo sensível; geralmente não o é! Em um assunto tão delicado como este
devemos somente deixar-nos levar pela razão iluminada pela Fé.
É triste por isso ver alguém escravo de seus sentimentos, aferrado à suas paixões; é
como um cata-vento que segue dando voltas sobre seu eixo e vai aonde o leva o vento...;
há que tomar o leme, fazer com que o piloto e não as ondas conduza o barco. É uma
decisão da vontade racional e não do apetite sensível.39
11. Seria mais útil no mundo, estaria mais livre...
39
Outro parágrafo de suma importância a quem decide tomar a sua cruz e seguir a Cristo. (NdT)
40
No que concerne ao Brasil poderíamos destacar a mártir Beata Albertina Berkenbrock, considerada a Santa
Maria Goretti brasileira, e Francisca de Paula Jesus, conhecida como Nhá Chica. (NdT)
Sendo tão sublime a vocação à vida religiosa ou ao sacerdócio, alguns poderiam
pensar que todos deveriam abraçar tal estado de perfeição.
A resposta é NÃO. Todos não...!, mas somente aqueles que tenham vocação para isto;
sapateiro, a teus sapatos! Cada um deve estar no posto que Deus lhe assinalou; se se vê de
forma clara que, ponderadas bem as vantagens e desvantagens, o melhor caminho para
alguém é a religião ou o sacerdócio, quer dizer que o Senhor o está chamando a tal estado
de vida.
Do resto do mundo não há que se preocupar demasiado: Deus é Deus e há séculos
faz as coisas para que muitos se santifiquem por diversas vias.
13. É uma pena... não poderei desenvolver meus dons naturais
Há quem seja inclinado à música, à medicina, às letras, às ciências... que fazer com os
talentos que Deus derramou em cada um?
Esta aparente desvantagem é precisamente uma vantagem.
Quantos no mundo têm dons a explorar, mas não podem fazê-lo porque a família ou
o mesmo mundo lhes exige ocupações mais lucrativas? O religioso, em troca, livre dos
cuidados de uma família e das ocupações vãs do mundo, pode, sob mandato de seus
superiores, seguir suas inclinações naturais a respeito do estudo e do apostolado para
desenvolver, multiplicando ao máximo o que Deus lhe presenteou.
Podemos contar entre os religiosos muitíssimos cientistas, astrônomos, músicos,
juristas, pintores e escultores, escritores etc. Mais ainda, o religioso emprega o seu gênio
ainda melhor, porque o põe a serviço de Deus e da Igreja, Mãe fecunda de gênios e
inspiradora das mais belas obras de arte da Humanidade.
Recordo uma vez que no seminário onde estudava ingressou um moço já avançado
em anos. Durante grande parte de sua vida havia sido palhaço; viajava por todo o país em
um Renault 4, oferecendo suas obras em praças, colégios e lugares públicos.
Nem bem ingressou ao noviciado pensou: “Adeus a minha atuação...; de agora em
diante serei só para Deus e deixarei para trás minha vida de palhaço...”; depois desta breve
reflexão comunicou o decidido ao seu Mestre de Noviços.
– “Muito bem – lhe disse o sacerdote – tuas palavras parecem muito boas, mas agora
vai disfarçar-te, porque daqui a pouco vem um grupo de crianças e devemos entretê-los.
Temos de usar nossos talentos e saber aproveitá-los para ganhar muitas almas para Deus”.
E agora anda por aí, um grande missionário fazendo das suas com suas loucuras a granel...
14. Não sou digno de tal estado...
Não são precisamente essas qualidades que se necessitam para se ter vocação; estas se
necessitam para vender celulares ou roupa da moda...
Basta o chamado de Deus; tampouco Moisés tinha qualidades para falar aos judeus (e
mais, ele era gago!) e, no entanto levou adiante a obra da libertação de Israel de um modo
admirável. O bom religioso põe sua confiança em Deus, não em suas forças. “Os que
confiam no Senhor são como o monte Sião: não treme, está assentado para sempre” (Sl
125,1), porque... “quem confiou no Senhor e foi defraudado?” (Eclo 2,10).
16. É que hoje em dia muitos religiosos estão relaxados e...
41
JOÃO PAULO II, Carta Apostólica Parati semper aos Jovens e às Jovens do mundo com ocasião do Ano
Internacional da Juventude (31/03/1985), no 8.
42
Ver: ALGUMAS DEFINIÇÕES E NOÇÕES acima. (NdT)
43
PAULO VI, Decreto Optatam totius, no 3.
Nada mais longe da realidade. O ingresso ao Seminário Menor ou ao Aspirantado não
implica para a criança uma decisão definitiva. Este cursa seus estudos secundários com a
maior liberdade e se depois de um tempo – ou talvez ao término –, descobre não ter
vocação, não terá perdido nada; ao contrário, terá ganhado muito: uma formação
intelectual e espiritual sólida, que mui dificilmente poderia ter conseguido em outro
ambiente.
Além disso, na prática, nem todos chegam a abraçar a vida religiosa após terminar os
estudos secundários. Alguns se dão conta que, com o passar do tempo, essa não era a vida
que Deus lhes havia marcado e portanto decidem livre e conscientemente voltar a seus
lugares mais e melhor homens e mulheres do que eram antes. A experiência assinala que
após um tempo no Seminário Menor ou no Aspirantado, estes jovens se convertem em
muito bons pais e mães de família sem esquecer os benefícios que receberam em seus
anos de mocidade.
c. O que se sabe da vida nessa idade?
Até aqui algumas das objeções mais típicas; poderia se enumerar muitíssimas mais,
mas seria cansar o leitor. Na realidade, quem não tem reta intenção para raciocinar livre e
desapaixonadamente encontraria um milhão e nunca as resolveria.
44
Sugerimos aqui a edificante biografia da Beata Imelda Lambertini, cuja vida teve seu desfecho aos 13 anos de
forma surpreendente, sendo seus pais um modelo a ser seguido. (NdT)
Mas pode acontecer o caso de alguém que já tenha decidido ingressar neste estado de
vida. Que fazer? Como comportar-se? Vejamos então agora algumas normas prudenciais
que poderiam servir àquele que já decidiu sua vocação, mas que ainda não ingressou na
vida religiosa.
†
CAPÍTULO 8
JÁ ME DECIDI: AGORA QUE FAÇO? E SE NÃO SIGO?
Os santos são os exemplos a seguir, logo após Nosso Senhor Jesus Cristo; por isso
convém seguir seus conselhos no tocante à vida espiritual. Vejamos alguns deles somados
ao que dizem os grandes autores da vida espiritual.
a. Geralmente, convém comunicar a decisão apenas ao diretor espiritual
Quando um homem se decide por esse heroico gesto que implica a vocação ao
sacerdócio ou à vida consagrada, a coisa não termina ali, ao contrário, ali começa. Terá de
comentá-lo a amigos, parentes etc, e muitas vezes isto será o mais difícil.
Convém sempre conversar primeiro com o diretor espiritual, e isto não é uma atitude
egoísta: a história, mestra da vida, ensina que fora do prudente conselho de uma pessoa
experimentada, os parentes e amigos muitas vezes são os principais inimigos das
vocações. E isto com a melhor das intenções!
O que normalmente sucede quando se compartilha tal decisão com quem não se
deve, é que não somente a partida se fará mais dolorosa, como também a permanência no
mundo se tornará quase insuportável.
“Fica com a gente...”; “não nos deixe”; “vamos sair e beber pra nos despedir...”,
poderão ser algumas das frases ouvidas. Uma lagrimazinha por aqui, outra por ali, uma
oferta de um bom emprego, uma beca esperada durante vários anos ou outro sem-fim de
ofertas, são os modos pelos quais o demônio tentará neste momento tão delicado.
Se pedíssemos a alguns sacerdotes ou religiosas que recordassem esses momentos
prévios ao seu ingresso, em geral comentariam que justamente neste instante surgiram
oportunidades maravilhosas para permanecer no mundo, como casar-se, conseguir um
trabalho, ou ser correspondido por esse amor que nunca lhes havia dado bola...
O diabo sabe fazer as coisas e fará o impossível para tirar um só soldado das fileiras
do exército de Deus.
b. Uma vez decidido, é importante avivar os desejos de Deus
Os meios para fazê-lo são infinitos: a leitura de livros espirituais, a Missa diária, a confissão
e comunhão frequentes..., são só alguns modos pelos quais se pode manter a vocação antes de
ingressar na vida religiosa.
Neste momento, mais que nunca, a oração é a vida da alma e se não se reza,
possivelmente se perderá a graça do chamado; para isso não faz falta estar
necessariamente em uma igreja (ainda que fosse o ideal): basta elevar a alma a Deus desde
o lugar em que me encontro; o banco de uma praça, o assento de uma condução, uma
boa caminhada etc, serão belos “templos” que poderão servir de catedrais espirituais.
Durante todo esse tempo, Deus dará a graça para ter oração onde esteja, contanto que se
tenha o desejo fervoroso de unir-se a Ele.
c. Escapar dos perigos que possam atentar contra a vocação
Sabendo que a vocação é um dom que se pode perder, quem tiver decidido sua
entrega total a Deus deverá distanciar-se voluntariamente de todos os perigos que o
demônio lhe preparar. Aqui haverá de fugir não só de toda ocasião de pecado, como
também de toda circunstância que, ainda que lícita, não seja conveniente para este
momento da vida, recordando aquilo de São Paulo: “nem todo o bom me é conveniente”
(1 Cor 10,23).
2. Creio que tenho vocação, mas não penso em entrar! Então... o que pode
acontecer?
Repitamos algo que já foi dito. Quem viu claramente sua vocação deverá enfrentar-se
com um velho inimigo da humanidade: o mesmo demônio. Sim. Ele mesmo, o grande
mentiroso não ficará de braços cruzados enquanto souber que outra alma se prepara para
cooperar na obra da salvação e consagrar-se por inteiro a Deus.
O demônio – que é o grande sedutor e pai do engano – não se contentando em fazer
cair Adão e Eva, também quis fazer o mesmo com Nosso Senhor Jesus Cristo no
deserto... Acaso não fará o mesmo a nós, miseráveis criaturas?
Fará dar voltas, girará os argumentos, colocará dúvidas e porá mil desculpas para não
ouvirmos o chamado divino.
E isto ocorre – lamentavelmente – com constância, como narra o Pe. Busuttil45:
“Conheci um bom jovem, mui inclinado à piedade, amigo sincero da graça de Deus.
Falei com ele da vocação e lhe encontrei já quase decidido. Aos poucos dias estava
convencido de que Deus o chamava e radiante de alegria falava a cada momento de sua
vocação. Passaram dois meses; havia inclusive tentado atrair a outros até o ideal de vida
religiosa; meses de apostolado e de fervor.
Um dia veio a meu aposento todo desencontrado; senta-se e me diz com tom
nervoso:
45
EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 229-230.
– Já não quero ser religioso!
Cri que brincava e sorri.
– Não; falo sério.
– Mas, por quê? – perguntei, pondo-me sério eu também.
– Porque não quero.
– Mas, tem alguma dificuldade na vocação? Se deu conta agora de que Deus não o
chama?
– Não, estou convencido e seguríssimo de que tenho vocação, mas não a quero seguir. Não direi
sim ao Senhor.
Fiquei espantado! Procurei fazer-lhe ver que se tratava de uma tentação do demônio,
o qual certamente previa o grande bem que faria uma vez sacerdote. Tudo foi inútil.
Fechou-se em um mutismo hermético, nem sequer mirou-me uma só vez nos olhos.
Pouco tempo depois começou a deixar a comunhão, a oração...; falava contra os que
queriam fazer-se religiosos (provavelmente para aplacar sua consciência), depois deixou o
colégio e já quase nunca é visto.”
Mistérios da liberdade humana!
Que terá sido da vida deste jovem? Terá cometido um pecado ao recusar seguir o
chamado?
É verdade que segundo os princípios racionais e a moral cristã, de seu não há obrigação
estrita de seguir a vocação sob pena de pecado mortal: a vocação não é um mandamento, mas
um conselho evangélico, contudo, na prática pode haver ocasiões que, por diversas
circunstâncias, podem converter esta negação na causa da ruína completa de um
indivíduo.
Vejamos assim: um médico recomenda a seu paciente que faça esporte, que se
translade a um ar montanhoso, que tenha uma vida menos sedentária etc; mas o paciente,
ainda que compreenda perfeitamente o conselho, prefere – por capricho ou comodidade
– não segui-lo, pelo contrário. Terá então todas as forças para poder afrontar os futuros
mal-estares? Sua saúde será sempre a mesma ou por não seguir ditas recomendações se
verá cada vez mais débil?
Analisemos de perto este tema e as possíveis consequências de uma resposta negativa:
a. Consequências para o indivíduo que rejeita a vocação
Deus havia disposto desde toda a eternidade que ele ou ela fossem para Si; havia
semeado neles uma série de graças, de moções, de ajudas divinas, inclusive de caídas que
os acompanhariam passo a passo até conduzi-los à casa do Senhor. Mas agora é o mesmo
convocado que recusa voluntariamente aquele caminho querendo fabricar-se outro.
Que fará Deus com quem recusa seu chamado?
Certamente lhe outorgará as graças suficientes para salvar-se, porém... terá aquelas
graças eficazes, superabundantes e contínuas que Deus lhe havia preparado para o outro
estado de vida e sem as quais sua pobre natureza não poderia, sem muita dificuldade e
esforço, salvar-se?
Não o sabemos.
Certamente a misericórdia de Deus é infinita e tudo pode; o que é seguro é que não
existirão as mesmas graças que Ele havia pensado para aquele primeiro estado.
Poderia acontecer que Deus, em sua infinita providência, quisesse desde toda a
eternidade que alguém o seguisse mais intimamente na vida sacerdotal ou religiosa. Que
passaria se esse alguém não realizasse Sua vontade? Escutemos Santo Alfonso:
Crê o senhor que permanecendo no século poderá também santificar-se?
Sem dúvida que o poderá, meu senhor, mas não com pouca dificuldade. Porém,
se Deus o chama à vida religiosa e quer permanecer no mundo, sua santificação, como disse,
será moralmente impossível, porque no século se verá privado das luzes e auxílios que
Deus lhe dispensará na religião e sem uns e outras não logrará salvar-se46.
Quem apesar de ter visto claramente sua vocação, não a segue, se salvará? Talvez sim,
talvez não; mas seguramente será muito mais difícil.
É como se alguém que nasceu com dons enormes para o balé (corpo estilizado,
delicadeza de movimentos, ritmo gracioso etc) desse agora para ser fisiculturista. Ou
alguém que foi chamado à vida matrimonial, se pusesse a ser religioso ou religiosa. Será
fácil a vida em comunidade, o cumprimento dos votos, a oração etc?
Além disso, é um fato que, muitas vezes, os jovens que rejeitam voluntariamente a
vocação estando convencidos de que Deus os chamava, terminaram (normalmente) em
uma vida de pecado, cumprindo-se assim o famoso provérbio latino: “corruptio optimi,
péssima” (“a corrupção do melhor é o péssimo”).
Ao encontrar-se submergidos em um estado de contínuo remorso pela má decisão
tomada, buscam – em geral – afogar dita negação entregando-se mais exageradamente que
os outros às diversões e distrações do mundo. Começam abandonando a oração, depois
os sacramentos e por último até o mesmo Deus.
Isto, repetimos, não é matemático, mas é o que normalmente se vê. Quem rejeita a
vocação sacerdotal ou religiosa termina, na maioria das vezes, “dando voltas como peão”.
b. Consequências para Nosso Senhor
É evidente que a Deus nada lhe falta e que tudo o perdoa, entretanto, não deve ser
muito agradável para Nosso Senhor ter amado com amor de predileção a alguém para que
este logo o despreze... Adão e Eva receberam um dom e não obstante o traíram.
Com o jovem rico do Evangelho, ocorreu algo similar; não é que o Senhor se
desanimou (quem se foi triste foi o jovem) com a negativa, mas algo deve ter pensado ao
dizer com desgosto que a quem se aferra às riquezas será difícil entrar no Céu.
46
SAN ALFONSO, La vocación religiosa, 85.
c. Consequências para a Igreja e para o mundo
Se São Patrício não tivesse dito sim aos quatorze anos seria hoje católica a Irlanda? Se
São Francisco Xavier, que batizou milhares de pagãos, não tivesse respondido à sua
vocação, onde teria ido parar todas aquelas almas? E se São João Bosco, São Luís Orione,
Santo Inácio de Loyola, São Francisco de Assis e tantos outros santos tivessem dito não a
Jesus, onde estaria todo o bem que têm feito suas instituições e suas vidas de santidade?
“Mas eu não sou São Francisco!” – dirá alguém...; e é verdade. Contudo, acaso os
santos já eram “santos” quando aceitaram sua vocação ou, antes, se converteram em
santos por aceitá-la?
Além disso, São João Bosco costumava dizer que ao redor de cada sacerdote existe
um grande número de almas confiadas a ele desde toda a eternidade; é a ele a quem
corresponde salvá-las. Se ele não as salva, quem o fará por ele?
De uma só resposta depende a salvação de tantas almas!!!
Transcrevamos aqui uma carta de Santo Alberto Hurtado a um grande amigo que
retardava o ingresso na vida religiosa.
3 de julho de 1945, Loyola
47
SAN ALBERTO HURTADO, Cartas, Universidad Católica del Chile, Santiago 2003, 97-99.
com Ele ao esperar ainda mais; ou se não seria melhor afrontar a dificuldade da
forma mais valente que seja possível: fixar-te uma data, falar com teus pais,
queimar os barcos e lançar-te n’água, isto é, nos braços de Cristo para trabalhar
por sua glória e pela salvação das almas. Se tu em tua consciência crês que a
conduta deve ser outra, tem por não dito meus conselhos, mas se a voz de
Cristo persiste, tu que hás “posto a mão ao arado não olhes para trás”, porque
esse “não é apto para o Reino dos céus”. “O Reino dos céus sofre violência e
só os esforçados o arrebatam”. “O que ama sua alma a perderá e o que a perder
por mim a encontrará”. “O que queira vir após mim, negue-se, tome sua cruz e
siga-me”. [cf. Lc 9,62; 16,16; 17,33; 9,23].
Roga a Jesus que eu também não ponha obstáculos a seus desígnios sobre
mim. Caríssimo amigo e irmão em Cristo.
Vejamos um breve trecho de Santo Alfonso48 onde nos narra qual será a glória dos
sacerdotes e religiosos que perseverem em seus propósitos até o fim:
Considera, em primeiro lugar o que diz São Bernardo: que dificilmente se
condena o religioso que morre em sua vocação. “Da cela ao Céu – diz o santo –
é caminho trilhado; apenas haverá um que da cela baixe ao inferno”...
Considera, além disso, que o Céu, como diz o Apóstolo, é coroa de justiça, de
onde se segue que, ainda que o Senhor premie nossas obras mais do que
merecem, entretanto, dá a cada um o prêmio que merece segundo aquelas
palavras de São Mateus: “Dará o pago a cada um segundo suas obras”.
É o mesmo que são Pedro perguntou há dois mil anos a Nosso Senhor
(Mt 19,27-29):
48
Cf. SAN ALFONSO, La vocación religiosa, 107-110.
“Em verdade vos digo que vós, que me haveis seguido, quando o Filho do
Homem se sente no trono de sua glória, os sentareis também sobre doze
tronos, para julgar as doze tribos de Israel. Porque todo o que deixe casa, ou
irmãos ou irmãs, pai ou mãe, ou filhos ou campos por meu nome, receberá o
cento por um nesta terra e a vida eterna no Céu”.
Que a decisão é difícil, seguramente! Mas muitos já passaram por isso e sobreviveram;
vale a pena! A recompensa nesta terra é enorme e no Céu, infinita.
†
CAPÍTULO 9
SOCORRO, TENHO UM FILHO RELIGIOSO!
Já falamos bastante a respeito dos filhos, cabe agora falar um pouco sobre aqueles
que têm sido, em grande medida, os cooperadores indispensáveis da vocação.
O mistério da vocação transcende a quem recebe o chamado; Deus não só chama
aqueles que serão seus colaboradores mais íntimos, mas – de algum modo – faz
participantes deste grande dom os que foram generosos com a transmissão da vida. Sim,
os pais, de um modo diverso, têm sido eleitos para a vida religiosa: muitos deles
formaram um matrimônio e até perseveraram nele; outros, por distintas circunstâncias da
vida, não têm tido esta graça, mas de toda forma e quase sem dar-se conta, têm sido
participantes da graça através de seus filhos.
Ninguém nasce de uma abóbora... e é por isso que Deus quis em sua infinita
Providência que cada um surgisse em um lugar determinado, em uma época determinada
e com pais determinados. Não seria lícito, portanto, deixar de dar alguns conselhos
àqueles pais que tiveram a dita de que Deus chamasse a alguns de seus filhos.
Quando um filho ou uma filha comunicam aos pais que desejam entrar na vida
religiosa, normalmente há um shock do qual nem as melhores famílias se salvam.
– “Não é normal!”; eu esperava que você se casasse, que me desse netinhos...!”.
É certo que não é muito corrente ter um filho sacerdote, uma filha religiosa, mas isso
não significa que devemos nos assustar. O primeiro que convém fazer ao receber a notícia
é, como em tudo, não perder a calma: as paixões costumam nos trair nestes tipos de
circunstâncias e não nos deixarão agir com serenidade. Logo, há que conversar com o
filho ou a filha e perguntar-lhes se pensaram bem, se consultaram um sacerdote, se está
realmente decidido/a ou se é simplesmente “fogo de palha”.
É o mínimo que se deve fazer; os pais têm experiência nisto: quando um de seus
filhos diz que tem o propósito de se casar com alguém, normalmente examinam o caso;
perguntam pelo motivo ou pela pessoa e se interessam por saber se são conscientes de
que é para toda a vida...
49
SAN JUAN BOSCO, Biografía y Escritos, BAC, Madrid 1967, 320.
Aqui ocorre o mesmo; os pais conhecem seus filhos e logo saberão se a decisão é
sincera ou não.
É importante falar com calma; sobretudo escutar e depois colocar as dificuldades que
existirão, os temores futuros, as causas da decisão e os possíveis inconvenientes. Vale a
pena também examinar o filho, ou seja, seu modo de agir nestes momentos, seu modo de
vestir, seu comportamento para com as coisas de Deus, suas virtudes etc; se tudo isto tem
aumentado nos últimos tempos pode se suspeitar que a vocação de seu filho seja real e
não um capricho passageiro.
Ao contrário, se os pais veem que o filho, longe de ter se aproximado mais de Deus
nos últimos tempos, tem se mundanizado cada vez mais, não frequenta os sacramentos
ou renuncia às más companhias etc, poderão pensar com todo direito que o que está
dizendo é uma loucura.
No caso de que a vocação pareça séria, depois de escutá-lo, convém recordar-lhe as
dificuldades que segundo o parecer ordinário trará a vida religiosa (os votos, os sacrifícios,
o desapego dos seres queridos etc) e, pelo contrário, mostrar-lhe a beleza da vida familiar
a que pretende renunciar, as possibilidades de santifica-se no mundo etc; assim, depois de
tudo, se o jovem tem verdadeira vocação, tudo será para o bem e não o fará duvidar o
mínimo.
De todo modo, para se ter um juízo exato – como em todas as coisas – será
conveniente conversar com um sacerdote ou um religioso, já que normalmente conhecem
mais e melhor sobre estes casos; em especial vale a pena falar com o diretor espiritual do
jovem e expor a ele próprio as interrogações que faz a família.
Por fim, não há que passar ao largo pela coisa mais importante: pedir luz a Deus para
poder ver Sua divina Vontade, e a fortaleza para segui-la. Ninguém nega que seja uma
dura prova ter de se separar dos filhos, mas se o consideramos à luz da fé, é uma honra
enorme ter entre os filhos um escolhido de Deus, um que atraiu sobre a família o olhar do
Onipotente.
Porém, tenhamos presente isto: sem os olhos da fé nenhum destes conselhos servirá;
tudo será loucura, escândalo e nada mais.
2. O que nunca se deve fazer
Não seria justo deixar de prevenir a respeito do que muitos pais, sem saber (nem
querer), muitas vezes terminam por fazer no momento de receber esta notícia inesperada.
Eis aqui alguns exemplos do que se deve evitar.
a. Impedir por capricho o ingresso de um filho na vida religiosa
Assim como nunca convém forçar os filhos a casar-se, sem estar inteiramente
disposto a isso, tampouco é conveniente empurrar alguém que tenha vocação religiosa a
que não a abrace. A experiência neste caso é sempre mestra e tem mostrado
incansavelmente que os efeitos são sempre contraproducentes.
Como dizíamos acima, o jovem que tem vocação e se nega a segui-la, não é seguro
que cometa um pecado grave, mas quem quer que impeça ilegitimamente alguém de
abraçar o estado religioso (ou matrimonial), ou force a abraçá-los, comete ao menos um
grave pecado contra a prudência. E isto porque Deus criou o homem e a mulher livres e
quer que exerçam sua liberdade em tudo, mais ainda no que se refere à “eleição de
estado”; aqui não só está em jogo a liberdade do jovem e sua salvação pessoal, como
também a mesma vontade divina e a sorte daquelas almas que Deus quis fazer depender
de sua livre decisão.
Além disso, os filhos não pertencem totalmente aos pais; eles não são donos de sua
vida, mas simplesmente e por um tempo, seus guardiões; eles são inteiramente livres e –
se sobrepesaram corretamente sua decisão perante Deus – ninguém tem o direito de se
opor sem justa causa.
Aos pais, nesse sentido, não lhes foi dada nenhuma autoridade para dizer que “não”
quando Deus diz “sim”; tampouco a de obstaculizar ou frustrar Seus desígnios; os filhos
lhes foram dados como um dom, como um presente que devem cuidar e preparar para
que algum dia frutifiquem segundo os planos do Senhor.
b. Fazer com que corra perigo a vocação
“Acaso há alguém entre vós que quando vosso filho lhe pede pão lhe dá uma pedra?”
(Mt 7,9).
Um pai jamais irá querer o mal para o seu filho, no entanto, muitas vezes as paixões
os traem; assim ocorreu com os pais de Santo Tomás de Aquino, como narramos acima.
Ao tomar conhecimento da decisão do filho, os condes de Aquino resolveram prendê-lo
num castelo para que a ideia de monge dominicano passasse. Uma vez ali e para tentar
dissuadi-lo, introduziram uma prostituta para tentá-lo; por graça de Deus, Tomás resistiu
à tentação e terminou expulsando sua tentadora com uma tocha acesa, traçando em
seguida com o lenho encandecido uma cruz indelével na parede do aposento.
Conheci um caso parecido, de um jovem que queria tornar-se sacerdote. Seu pai, mal
havia se inteirado começou a tornar-lhe a vida impossível. Concebeu a ideia de que,
levando-o de viajem pelo mundo e mostrando suas belezas e prazeres, o faria desistir.
Dito e feito: como meta de viajem escolheu uma cidade onde todos os espetáculos e
prazeres estavam ao alcance das mãos; levava-o aos cinemas e teatros, a ver espetáculos
degradantes, e, tudo isso... porque amava a seu filho. Tudo estava disposto para fazer
correr perigo a vocação do jovem; este, enquanto caminhava e padecia o tormento, sem
que seu pai desse conta, fazia o impossível por pedir a Deus forças para manter sua
vocação. Finalmente, venceu as tentações e logrou ingressar na vida religiosa. Passado o
tempo, visto que o filho se encontrava afiançado e contente no lugar que Deus lhe havia
preparado, terminou refletindo e se encheu de orgulho pelo filho sacerdote.
Mas há outros que colocam os obstáculos deste modo: “se alguém tem realmente
vocação nunca a perderá”.
Sejamos coerentes! Todo o que brinque com fogo algum dia receberá uma pequena
chispa, mais ainda nos tempos correntes, onde tudo conspira contra Deus e seus direitos.
Além disso, se realmente pensamos que quem tem vocação verdadeira nunca a poderá
perder, deveríamos fazer o mesmo com quem tem vocação ao matrimônio: coloquemos a
todos os esposos à prova durante muito tempo sendo acossados por distintas senhoritas
que não sejam suas legítimas esposas: “se realmente é fiel, não trairá a mulher nem sua
vocação matrimonial...”.
É preciso ser racional: a vocação é também uma graça como todas as demais, e
portanto, se pode perder sem muitos esforços; é uma graça que se deve corresponder,
guardar, alimentar e defender, do contrário, pode perfeitamente desaparecer.
c. Tentar retardar o ingresso do filho na vida religiosa
“Não, não digo que não...; somente quero que espere um aninho mais e logo você
pode entrar...”. “Por favor, só alguns meses mais, para poder pensar melhor na sua
decisão...” – são frases que às vezes se ouve dizer, sem fundamentos.
O Pe. Busuttil50 conta uma pequena história que pode ilustrar este ponto:
Um mendigo estava à porta de uma cidade pedindo esmola quando passou
por ali o príncipe herdeiro e, vendo aquele pobre cheio de trapos, com paternal
solicitude baixou do coche e lhe deu uma bolsa cheia de moedas de ouro. O
mendigo, em vez de estender a mão e receber com gratidão a esmola,
permaneceu imóvel e impassível; finalmente voltou a cabeça dizendo que não a
aceitava.
Sinto muito – disse – mas não quero aceitar a esmola até a semana que
vem. Portanto se de verdade deseja dar-me terá que voltar novamente, baixar
do coche e oferecer-me a bolsa.
A comparação é clara. Que deveria dizer a Cristo um filho que tem vocação: -
“Senhor, tem paciência, minha mãe não se agrada muito da ideia. Volta o ano que vem e,
se ela mudar de opinião, eu te seguirei e farei tua vontade?”.
Obrigar injustificadamente a um filho a retardar o ingresso na vida sacerdotal ou
religiosa, é opor-se aos planos de Deus e nada mais.
3. Consequências de uma negativa para os pais
Recordemos que se trata de negar a alguém um bem, não um mal; a vocação é um dom
gratuito de Deus e o pai ou a mãe que se neguem por capricho, comodidade, vão
sentimentalismo etc, é como se estivessem negando uma grande coroa para seu filho. É o
oposto de Cristo: um filho pede pão e não somente lhe nega como lhe dá uma pedra.
Vejamos com alguns exemplos o que pode ocorrer quando há uma injusta oposição
por parte dos pais:
a. O filho andará perdido, como bússola sem ponteiro
50
EMVIN BUSUTTIL, Las vocaciones, 287.
O tornar-se religioso não é como seguir uma carreira como medicina, advocacia ou
arquitetura. Implica uma decisão radical, um modo de vida distinto, uma vida diferente.
Deus quer que tal ou qual pessoa deixe de viver como vivia para dedicar-se inteiramente a
Ele.
Normalmente, na prática (e isto é questão de olhar ao redor) quem não seguiu a
vocação religiosa ou quem a abandonou por culpa própria, termina como “perdido” no
mundo, deslocado, afligido; é que essa não é sua vida. Deus pensou outra coisa para ele.
Assim, os pais que fazem todo o possível para que seus filhos não ingressem na vida
religiosa, serão cooperadores das infelicidades futuras de seus filhos que começarão a
viver a história repetida do Jovem Rico do Evangelho.
b. Podem sobrevir dificuldades maiores
Assim, o jovem foi obrigado a tomar esposa e finalmente casar; tudo foi
uma tragédia: no mesmo dia de sua boda sentiu-se mal, se lhe administraram os
últimos sacramentos e faleceu. O pai nunca se perdoaria.
Deus me livre!
Jacinta não havia ouvido o diálogo; entretanto, mais tarde disse à sua
madrinha:
51
Cf. Ibd, 290.
52
LUIZ GONZAGA DA FONSECA-JIMENEZ, El mensaje de María al mundo. Las Maravillas de Fátima, Sol de Fátima,
Madrid 1990, 134.
Recordemos: Deus sabe como fazer as coisas e busca nosso bem escrevendo certo
por linhas tortas. Ele sabe o que nos convém e o que deve fazer de nossas vidas.
4. Consequências de se aceitar a vontade de Deus
Em vez de olhar somente o lado doloroso da vocação (que existe, não há dúvidas), é
necessário ver o que quer dizer ser pai ou mãe de alguém que foi escolhido por Deus.
a. Um filho sacerdote ou religiosa é uma honra para toda a família
Deve ser uma alegria que Deus se tenha detido precisamente diante desta alma e desta
família para escolher, do fruto do amor de seus pais, um de seus ministros, um predileto
de seu Coração, um continuador ou uma continuadora de sua obra redentora.
Deus, desta maneira, louva a educação dessa família que soube dar a seus filhos uma
formação adequada para não rejeitar os desejos divinos. De fato, salvo raras exceções,
Deus escolhe a meninos bons e moralmente sãos, de famílias boas e cristãs. Contudo,
para mostrar que nada o condiciona, também escolhe a outros de famílias mais distantes
de Si para que sejam os filhos os encarregados de evangelizar a própria família e ganhar as
almas para o Céu.
b. É garantia de salvação, se nos mantivermos fiéis
Recordemos o que dizíamos a princípio pela boca de São João Bosco: “Das famílias
dos consagrados se salvam até a terceira e quarta geração”.
A vocação de um filho significa a benção de Deus sobre toda a família; com um filho ou
uma filha religiosa, se recebe o cento por um nesta vida e além, a vida eterna; contrariamente ao
que sempre se pensa, não é unicamente o filho que usufruirá dessa promessa do
Evangelho. Jesus de fato disse: “O que deixar pai, mãe (e isto vai para o filho que deixa o
pai e a mãe), filho, filha (e isto vai para os pais de quem abraça a vida sacerdotal e
religiosa), trabalhos etc, terá o cento por um nesta terra e depois a vida eterna”. Assim, o
filho, com sua fidelidade à vocação mantém misteriosamente a família unida a Deus, já
que Aquele a quem serve, não deixará de derramar sobre seus seres queridos as graças
necessárias para a salvação eterna53.
A vocação não é questão de uma só alma; a família intervém e seguirá intervindo nela
como protagonista número um.
É fazendo a vontade de Deus que se logra alcançar a vida eterna, como dizia Nosso
Senhor: “Meu alimento é fazer a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra”
(Jo 4,34).
Deus permita a todos os pais compreender o dom tão belo que Ele lhes fez por meio
de seus filhos!
53
Outro sublime parágrafo desta obra, para meditarmos seriamente. (NdT)
CONCLUSÃO
Chegamos ao final destas linhas, restando o leitor com sua alma e seus pesares, suas
dúvidas e inquietudes. A vida continua. Passa e não torna...
Mas eu...
Que já fiz por Cristo?, que faço por Cristo?, que farei por Cristo?
Esta é a pergunta!
Se Deus chamou alguém ao sacerdócio ou à vida religiosa, então adiante!, não há
tempo a perder! Muitas almas dependem desse “sim”!
A decisão pode ser dura a princípio, mas toda a história de amor verdadeiro se escreve
com dor e esta não será a exceção; não há rosas sem espinhos.
Trata-se de dar a vida, nem mais nem menos que isso, porém, não a qualquer um,
senão a Aquele que disse: “quem quiser perder sua vida por mim, a encontrará” (Mt
16,27) e para isso há um só caminho que é seguir o que Deus mesmo traçou em cada
alma. O destino é incerto, mas se somos fiéis Ele marcará o caminho.
54
LEONARDO CASTELLANI, fragmentos da poesia Jauja, publicada no Apêndice do livro De Kirkegord a Tomás de
Aquino, Guadalupe, Bs. As. 1973.
Adiante marinheiro! Duc in altum!, navega mar adentro, porém timonando com
firmeza rumo à única meta que nos move: o Céu; lançando a âncora para manter-se na
Verdade que não passa, sem ceder em nada ao Inimigo. Haverá tormentas, mas passarão e
logo chegaremos à terra firme: molhados, cansados, mas contentes de algo ter feito por
Cristo e haver queimado as naves por esse Grande Capitão.
†
APÊNDICE 1
CONSELHOS DE SANTO ALFONSO MARIA DE LIGÓRIO
Resposta a um jovem que pede conselho sobre o estado de vida que deve
seguir
Meu irmão:
Em carta, o senhor me dá a conhecer que há algum tempo sente-se inspirado por
Deus a abraçar a vida religiosa. Ao mesmo tempo, me diz que têm surgido algumas
dúvidas em seu espírito, e especialmente aquela da qual se poderá santificar-se no século
sem tornar-se religioso (...).
Assunto de capital importância
Aqui somente lhe direi em poucas palavras que o tema da eleição de estado é de
capital importância, devido a que dele depende a salvação eterna. O que abraça ao estado que
Deus lhe chama, facilmente se salvará (...).
Portanto, se o senhor quer eleger aquele gênero de vida no qual assegure melhor sua
salvação, que é o único que deve nos importar, considere que sua alma é imortal e que
Deus lhe há posto no mundo, não a uma existência fácil para entesourar riquezas, nem
conquistar honras, nem levar vida cômoda e regalada, senão unicamente para alcançar a
vida eterna por meio da prática da virtude. “Tenhais, por fim”, diz São Paulo aos
romanos, “a vida eterna” (Rom 6,22). No dia do Juízo de nada servirá o haver reformado
sua casa e levado vantagem sobre os demais no mundo; o único que então se aproveitará
será o haver servido e amado a Jesus Cristo, que lhe há de julgar.
Sério erro
Crê o senhor que permanecendo no século poderá também santificar-se? Sem dúvida
que o poderá, meu senhor, mas não com pouca dificuldade. Mas se Deus o chama à vida
religiosa e quer permanecer no mundo, sua santificação, como disse, será moralmente impossível, porque
no século se verá privado das luzes e auxílios que Deus lhe dispensará na religião e sem uns e
outras não logrará salvar-se.
Para alcançar a santidade há que empregar os meios que nos conduzem a ela, como
são a fuga das ocasiões perigosas, o desprendimento dos bens da terra, a união com Deus
e a vida de recolhimento. Ademais, para não cansar-se no caminho empreendido, deve
frequentar os sacramentos, fazer todos os dias a oração mental, ler algum livro piedoso e
exercitar-se em outras práticas devotas, sem as quais não é fácil conservar o fervor. Agora
bem, exercitar-se em todas estas obras de piedade em meio ao rebuliço e tráfego do
mundo é fartamente difícil, para não dizer impossível. Os cuidados da família, as
necessidades da casa, os lamentos e queixas dos parentes, os negócios, as perseguições de
que está cheio o mundo, terão seu ânimo tão preocupado e tão carregado de temores, que
apenas lhe será possível encomendar-se a Jesus pela noite, e isto em meio a mil distrações
(...).
Falsidade do mundo
Os amigos do mundo, por sua parte, não terão objeção em inspirar-lhe temor à vida religiosa,
pintando-a como insuportável e cheia de amargores. Por outra parte, o mundo lhe brindará com
suas riquezas, prazeres e diversões: pense bem e não se deixe enganar, porque o mundo é
um traidor, que sabe prometer, mas não sabe cumprir. Oferece-lhe bens da terra; e ainda que lhe
desse tudo o que oferece, serão suficientes todos eles para acalmar as ânsias de sua alma?
Não, porque só Deus pode dar-lhe a paz verdadeira. A alma há sido criada unicamente
para Deus, para amar-lhe nesta vida e depois gozar-lhe na eterna, e por isso só Ele pode
satisfazer os desejos de seu coração.
Todos os prazeres e riquezas do mundo são incapazes de dar-nos a verdadeira paz; ao
contrário, o que maior caudal de bens possui no mundo anda mais turbado e afligido,
como confessa Salomão, quem depois de haver gozado tanto, exclama: “tudo é vaidade e
aflição de espírito” (Ecle 1,14).
Se o mundo com todos os seus tesouros pudesse encher os seios do coração humano,
os ricos, os grandes, os reis, que nadam em abundância, que gozam os prazeres, que são
por todos honrados, seriam plenamente felizes; mas a experiência nos ensina o contrário;
ensina-nos que quanto mais elevados e enaltecidos estão, tanto maiores são as angústias,
os pesares e as aflições que experimentam. Um pobre leigo capuchinho, vestido com
tosco saião e cingido com um cingidor de corda, que come pobremente e dorme sobre a
palha em cela estreita, vive mais feliz e contente que um príncipe que veste telas
recobertas de ouro e possui tesouros sem conta. Se sentará todos os dias à abundante
mesa, dormirá em acolchoado leito sob ricas tendas, mas os cuidados e as angústias do
espírito afugentarão os sonhos de suas pestanas. “Quão louco é, exclama São Felipe Neri,
o que por amar ao mundo não ama a Deus!”.
Situação na hora da morte
Contudo, se os mundanos levam uma vida de sobressaltos e tristezas, os
experimentarão maiores na hora da morte, quando o sacerdote que os assista lhes intime a
ordem de partir desta vida dizendo-lhes: “Alma cristã, sai deste mundo”, abraça-te com o
crucifixo, porque o mundo já se acabou para ti (...).
Portanto, se o senhor quer acertar na eleição de estado, procure que não deixe de considerar a hora da
morte, e, posto naquele duro transe, veja bem o tipo de vida que gostaria de ter levado. Então já não
poderá corrigir o erro, se agora tiver a má sorte de equivocar-se, menosprezando o divino
chamado por seguir sua liberdade e seus caprichos. Considere que tudo deste mundo
passa e desaparece, como diz São Paulo por estas palavras: “A cena deste mundo passa
num momento” (1 Cor 7,31). Tudo se acaba, e a morte nos sai ao encontro, de sorte que
a cada passo que damos nos acercamos dela e nos aproximamos à eternidade para a qual
nascemos. Porque escrito está: “Irá o homem à casa de sua eternidade” (Ecle 12,5).
Quando estejamos mais descuidados nos surpreenderá a morte, e naquele duro transe
todos os bens do mundo nos parecerão vã ilusão, mentira, engano, vaidade. “De que
aproveitará então o homem – pergunta Cristo – ter ganhado o mundo, se perder sua
alma?” (Mt 16,26). Só servirá para acabar de forma desgraçada com uma vida infeliz.
Consolos do que abandona o mundo
Pelo contrário, um jovem que abandona o mundo para seguir as pegadas de Cristo,
viverá feliz e contente (...). Verdade é que no mosteiro não terá nem concertos, nem
bailes, nem comédias, nem outras mundanas diversões, mas terá a Deus, que lhe recreará
com mil presentes e lhe dará gosto por aquela paz que se pode gozar neste vale de
lágrimas, lugar de trabalhos e padecimentos, onde temos sido postos para conquistar, à
força de paciência, aquela outra verdadeira e longa paz que Deus nos tem preparada na
glória. Quando se vive distante das diversões do mundo, um amoroso olhar dirigido de
quando em quando ao crucifixo, um “meu Deus”, que se escapa do coração, proporciona
à alma mais consolo que todos os passatempos e banquetes do mundo, que depois de
provados trazem após si não poucos gostos de amarguras.
E se viver contente durante a vida por ter abraçado o estado religioso, maior contentamento
experimentará na hora da morte. Que consolo experimentará então ao recordar que gastou sua
vida em oração, leitura espiritual, mortificação e outros exercícios devotos, e
especialmente se na religião empregou seus melhores anos, salvando almas por meio do
apostolado próprio do instituto, do ministério da pregação e da confissão! Tudo
aumentará na hora da morte a confiança que pôs em Jesus Cristo, o qual, mui agradecido,
sabe premiar com largueza aos que trabalharam por aumentar sua glória.
Dupla perspectiva
Mas tratemos mais de perto da eleição que o senhor deve fazer. Já que o Senhor lhe move
a deixar o mundo para dar-se todo a Ele na religião, têm sobrado motivos para alegrar-se e
temer ao mesmo tempo. Alegre-se, pois, e dê graças a Deus, porque o ser chamado a uma vida mais
perfeita é uma graça especialíssima que o Senhor não dispensa a todos. “Não tem feito outro tanto –
diz o salmista – com as demais nações” (Sl 147,20). Mas da mesma forma trema, porque
se não obedece à voz divina, põe em grande perigo sua eterna salvação. Não posso deter-
me a referir-lhe aqui os muitos exemplos de jovens que por não ter feito caso da vocação
divina, têm levado vida desgraçada, acabando-a com morte desastrosa. Tenha por certo
que se, apesar da inspiração que sente o senhor de abraçar a vida religiosa, permanecer no
mundo, levará uma vida sem paz ou sossego (...) pelos remorsos, devido não ter ouvido a
voz de Deus, que lhe chamava ao claustro.
Dupla resposta
Ao final de sua carta me pergunta o senhor que se no caso de não ter bastante ânimo
para entrar em religião, seria melhor casar-se, como querem seus pais ou fazer-se
sacerdote secular.
Ao primeiro direi que o estado matrimonial encerra grandes dificuldades pelas que
São Paulo não o aconselha em geral; a não ser que circunstâncias especiais o façam ver
como um remédio para a própria salvação e se o escolha com nobre aspiração.
Quanto a fazer-se sacerdote secular, advirta-se que o sacerdote no século tem todas as
cargas do sacerdócio, e ademais as distrações e os perigos dos seculares, posto que,
vivendo no meio do mundo, não pode evitar os tropeços e dificuldades que lhe causam os
negócios de sua casa ou de seus parentes, nem pode ver-se livre dos perigos que rodeiam
sua alma. Lhe cercarão as tentações em sua própria casa, posto que não poderá impedir
que nela entre mulheres, sejam da família, sejam criadas ou outras mulheres estranhas.
Deveria o senhor viver em uma habitação retirada, para não pensar mais que nas coisas
do divino sacerdócio; mas este gênero de vida é mui difícil na prática, e ao mesmo tempo
são contados os sacerdotes que, vivendo em sua própria casa, aspiram à perfeição,
sobretudo se não se tomam com decisão e obediência as novas disposições canônicas que
impõem aos clérigos precisas medidas de prudência com respeito ao pessoal doméstico,
negócios e diversões.
Vantagens positivas e multiplicadas
Pelo contrário, se o senhor entra em um instituto religioso onde reina a observância
regular, se verá livre dos cuidados que ocasionam o pensar na comida e no vestido,
porque de tudo o proverá a religião; ali viverá longe dos parentes, que de contínuo lhe
molestariam com os negócios e assuntos da casa; ali não encontrará mulheres que possam
turbar seu espírito; ali distante do ruído do mundo, nada lhe atrapalhará viver recolhido e
dedicado à oração.
Falo-lhe de uma religião onde “reine a observância regular”; porque se o senhor
quisesse entrar em um instituto do qual desapareceu o fervor, melhor seria que
permanecesse em sua casa, cuidando como melhor pudesse da salvação de sua alma;
posto que dando seu nome a um instituto que caiu no relaxamento, se expõe ao perigo de
condenar-se; pois no caso de que entrasse resolvido a dedicar-se à oração e a não pensar
mais que em Deus, arrastado todavia pelos maus exemplos dos companheiros e
ridicularizado por eles e talvez até perseguido por não querer levar sua forma de vida,
acabaria por abandonar todas as suas devoções e seguir as derrotas que lhe assinalam os
demais, como o comprova a experiência.
Recomendação final
Enfim, se Deus se digna conceder-lhe a graça da vocação, esforce-se por conservá-la
encomendando-se sem descanso a Jesus e a Maria em suas orações, e não esqueça que, se
se demora a entregar-se totalmente a Deus, o demônio se esforçará cada dia mais por
fazer-lhe cair em pecado e sobretudo para fazer-lhe perder a vocação.
Termino oferecendo todos meus respeitos e pedindo ao Senhor que lhe faça todo seu.
†
APÊNDICE 2
UMA VOCAÇÃO
Normalmente não convém pôr-se de exemplo, mas desta vez creio que possa servir.
Tratarei de contar brevemente como me ocorreu ingressar à vida religiosa, e quem
sabe, isto sirva um pouco para quem o esteja pensando como possibilidade.
Com 17 anos cumpridos terminei a escola; apenas saindo do colégio não sabia que
carreira seguir; me inscrevi em Economia e logo após uns meses vi que a coisa não
funcionava. Veio então Psicologia e Sociologia... e nada... Segui então o famoso provérbio
popular que diz: “serás o que devas ser, ou serás advogado...”; e foi assim sem mais nem
menos que me inscrevi na faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires.
Em umas férias, uma viajem ao norte da Argentina fez com que me tornasse noivo da
irmã de um grande amigo: quase a mesma idade e estudante de Direito, convergimos
rapidamente. Nossos gostos e afazeres eram similares: nos encantava a ambos a leitura, a
arte e a música; até logramos, com um grupo de amigos, fazer algumas viagens pela
Europa que despertaram nosso interesse pela Igreja e sua História.
O tempo foi consolidando esse noivado que ia crescendo dia após dia até que,
passados três anos nos comprometemos em uma Missa privada. Estávamos nisso quando
uma tarde seu irmão nos deu uma grande notícia: “Vou para o seminário”.
Foi uma grande alegria, mas ao mesmo tempo um balde de água fria em todos; entre
nossos amigos, havia alguns que já tinham abraçado a vida religiosa, mas essa foi uma
decisão surpresa, pois acabava de conseguir seu segundo título universitário.
Como para se despedir de meu amigo e irmão da que era minha noiva decidimos levá-
lo ao seminário (mais de 900 km de viagem), sem saber que com isso estávamos
acelerando nossos próprios destinos. Carregamos as valises e começamos a falar de sua
decisão, do futuro e do que faria na vida religiosa.
Ao chegar a San Rafael (assim se chama a cidade onde está aquele seminário)
visitamos um mosteiro e pedimos para falar com um monge que já conhecíamos. O Céu,
as dúvidas, a Santa Missa e a Igreja eram alguns dos temas que saíam quase naturalmente
durante a conversa. De repente, entre conversação e conversação, nos encontramos
perguntando acerca de nossas vidas: Que faríamos quando nos casássemos? como
poderíamos ser úteis à Igreja, à Pátria, a nossas famílias? era esse o estado de vida ao qual
Deus nos chamava?
O monge simplesmente se limitou a dizer: “Esse é um problema entre os senhores e
Deus; eu não posso fazer nada”. E assim nos deixou.
Nos despedimos e empreendemos o retorno a Buenos Aires; durante a viagem de
volta, como quem não quer nada, saiu o tema da vida religiosa e a possibilidade de que
Deus chamasse a algum de nós. Com plena liberdade consideramos a possibilidade de
“entrar em religião”.
Sabíamos que parecia uma loucura, mas algo nos empurrava, ao menos, para a
possibilidade desse chamado. Decidimos seguir juntos até que Deus dispusesse qual era
Sua vontade. Foram dois anos mais de um belo noivado, contudo, ao mesmo tempo, de
uma longa despedida. Quase ao final da carreira universitária, cada um por sua parte
decidiu ingressar na vida religiosa. Graduamo-nos e hoje, por graça de Deus, ambos
gozamos do cento por um na terra, esperando a recompensa no Céu.
Deus dá perseverança aos filhos que a Ele se encomendam.
†
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