Entrevista Daniel Marguerat
Entrevista Daniel Marguerat
Entrevista Daniel Marguerat
Entrevista com Daniel MARGUERAT, exegeta, professor emérito do Novo Testamento na Universidade
de Lausanne
De um ponto de vista programático, temos que ver, antes de mais nada, o sucesso de sua
ação missionária. Paulo é um homem de colaborações, de equipes, de redes de comunicação.
Geralmente, nós o imaginamos só, mas este não é o caso. Continuamente, ignoramos que
sua rede missionária, feita múltiplas colaborações, é o vetor de evangelização mais eficaz
(performant) que conheceu toda a Antiguidade.
No mais, Paulo é, sobretudo, um homem de duas culturas, a cultura judaica e cultura greco-
latina. Ele é um fariseu, que pertence a uma ala exigente do judaísmo na sua maneira de
pensar, na exegese da Torá e na aplicação do rito na vida individual. Ele é, também, um
homem perfeitamente dado à dialética e à retorica greco-romana, as quais ele aprendeu
certamente na escola estoica de Tarso, a maior escola de filosofia estoica do leste do
Mediterrâneo. Paulo vive em um cruzamento de culturas: por isso, sua maneira de pensar
vai permitir ao cristianismo de deixar a orbita originária do judaísmo para se abrir à
universalidade do mundo.
3 – Podemos precisar sua maneira de anunciar o Evangelho a culturas que nada conhecem
deste Evangelho?
A primeiríssima pregação de Paulo é difícil de ser identificada, pois seus escritos datam do
último período de sua vida. Não temos acesso à sua primeira pregação, mas, certo sentido,
da segunda. No entanto, o que podemos perceber em suas cartas é Paulo desenvolve uma
teologia de ruptura. Ele pratica o choque de pensamento. Exemplo: ele anuncia a cruz como
“escândalo” para os judeus e “loucura” para os gregos.
A cruz é um escândalo, pois ele evidencia um Messias frágil, inaceitável para a tradição
judaica. A cruz é, do mesmo modo, loucura para os pagãos: Paulo se refere à busca da
sabedoria pela filosofia grega, uma busca que é, ao mesmo tempo, filosófica e religiosa, que
expõe princípios de estruturação do mundo. Para esta sabedoria, a racionalidade fazia parte
da busca de Deus; era, pois, preciso mostrar de qual maneira Deus se identifica com a ordem
do mundo.
Ora, neste contexto, anunciar que Deus se revelou através de um corpo suspenso numa cruz
era, ao mesmo tempo, irracional e absurdo. Paulo consegue exprimir muito bem, na
linguagem destas duas culturas, como Deus que se manifesta na Cruz é um deus que escapa
à busca, à espera, ao imaginário de toda busca religiosa.
4 – Qual é o lugar da experiência pessoal na teologia de Paulo?
Existe uma grande discrição em Paulo. Paulo não é um exibicionista religioso. Certo, ele
nunca negou o fato de sua conversão, nem seu passado de perseguidor da Igreja, nem sua
convicção de que sua mudou completamente através do seu encontro com o próprio Cristo.
Se ele o lembre, não é nunca para colocar em evidencia seu “eu”, mas sempre para
manifestar o agir de Deus nele e através dele. Paulo faz uma leitura teológica da mudança
radical de sua vida pessoal. Sua teologia é uma teologia de ruptura que corresponde à
ruptura no percurso de sua vida. Se Paulo pode anunciar com veemência o fim da Torá
como via de Salvação e a revelação de Deus que converte nosso imaginário sobre aquilo que
é divino, isso ele o faz porque estas duas afirmações correspondem àquilo que ele mesmo
experimentou.
5 – Como a figura de Paulo pode ajudar a pensar situação dos cristãos hoje?
O que nos aproxima da situação de Paulo é a descoberta de que hoje o cristianismo constitui
uma minoria na sociedade do mercado concorrente e aberto das religiões; e que o
cristianismo deve justificar sua razão de ser. Neste contexto, Paulo nos ensina a formular a
identidade cristão como uma identidade aberta. O coração de sua teologia é, com efeito, o
fato de que o acesso a Deus não mais depende da pertença a uma etnia, não depende de sua
história, de seu sexo ou de sua performance religiosa: é isto que conhecemos por justificação
pela fé. A acolhida que Deus nos reserva é incondicional.
A partir disso, Paulo vai constituir comunidade que refletem aquilo que ele crê:
comunidades onde homem e mulher, mestre e escravos, judeus e gregos se reconhecem
como participantes de uma mesma entidade, o “Corpo de Cristo”, onde cada um tem
igualdade de direitos, de responsabilidade e de vocação. Estas são “comunidades de
discípulos iguais”, segundo a expressão de Elisabath Schüssler-Fiorenza. Por isso, ter Paulo
como antifeminista, como normalmente se repete, não significa simplesmente cometer um
anacronismo, mas sobretudo lê-lo mal... Mas Paulo é geralmente mal lido!
Acrescento que os escritos de Paulo nos lembram que o cristianismo é plural. Ele mostra
que o cristianismo nasceu plural, e que esta pluralidade é uma vocação desde da origem.
6 – Você fala de comunidades abertas, mas certas comunidades cristãs podem por vezes
reivindicar Paulo para si, mas sendo muito fechadas...
Com certeza, Paulo pode ser usurpado (confisqué). O que faz a diferença é o diálogo aberto
de Paulo com a cultura. As comunidades de identidades fechadas têm um olhar negativo
perante o mundo, pessimistas diante da cultura; geralmente elas trazem um olhar
catastrófico sobre a história. Estas comunidades são constituídas pela recusa da
modernidade e pela saída do mundo. Paulo prega a diferença em relação à sociedade, uma
diferença que se ver nas relações humanas e nos valores cujo os cristão são os portadores.
Mas ele nunca demoniza o mundo e a cultura. Ele está em constante debate. Paulo não pode
ser um modelo para movimento sectários ou integristas.
7 - O que mais você gosta em Paulo?
Paradoxalmente, o que mais aprecio em Paulo é seu humor. No entanto, ler as epístolas de
Paulo não é um exercício particularmente hilário. O que chamo humor é a capacidade de se
distanciar daquilo que vivemos. Exemplo: Quando Paulo, em Corinto, é acusado de ser um
pregador medíocre, dotado de prêmios carismáticos, mas que parecem mentirosos, ele reage
com humor. Ele responde: “Vocês têm de fato razão. No fundo a única coisa sobre a qual
posso me gloriar é a litania dos meus infortúnios: eu fui preso, flagelado, muitas vezes
naufraguei... mas se posso me gloriar é porque foi Deus que, em cada situação, me salvou
destes perigos. O fato de ter passado por tais provas é o sinal que uma graça de Deus age
por meio de mim”.
Paulo chega a mostrar pois que aquilo que lhe é motivo de crítica – o fracasso – é
precisamente o que funda a autenticidade de sua vocação! Eis o humor evangélico: mostrar
como, na fragilidade e na zombaria, se manifesta o poder secreto do Deus da Cruz. O
Evangelho de Paulo rompe definitivamente com a ideologia da performance.