Museu Da Maré PDF
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Museu da Maré:
entre educação, memórias e identidades
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0811294/CA
Tese de Doutorado
Rio de Janeiro
Março de 2012
Helena Maria Marques Araújo
Museu da Maré:
entre educação, memórias e identidades
Ficha Catalográfica
Araújo, Helena Maria Marques
CDD: 370
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Às minhas memórias:
Aos meus alunos e alunas de todos os tempos e lugares com quem tanto aprendi!
Agradecimentos
É muito difícil até agradecer porque foram tantas as ajudas recebidas, os carinhos,
os favores, os apoios, os afagos, as cumplicidades, as benções, as alegrias e
tristezas compartilhadas, enfim um muito obrigado a tod@s amig@s, colegas, que
comigo caminharam ajudando cada um de sua forma e do jeito como podia!!
Porém, seria uma ingratidão imensa não nomear alguns que partilharam mais de
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Aos pescadores dos três Núcleos de Pesca da Maré e do Canal do Fundão: Núcleo
de Pesca da Vila do Pinheiro, Núcleo de Pesca do Parque União e Núcleo de
Pesca da Vila Residencial da UFRJ minha gratidão, com quem também
compartilho parte deste estudo e que me geraram tanto encantamento com o tema
estudado. Pela sabedoria, generosidade e exemplo de vida com que nos
presentearam nas entrevistas concedidas, sem as quais parte deste trabalho
também não teria acontecido!!
À minha querida e sempre professora, orientadora, Vera Maria Candau, pela sua
orientação segura, competente, amiga e tranquila. Mas, especialmente por ter
aceito o desafio junto comigo dessa orientação por águas tão “novas”, ou melhor
por “marés” tão desconhecidas para nós!!
Aos queridíssimos estagiários Rodrigo Goulart, Raquel Jerez e Laysa Rosa, assim
como ao meu filho Daniel, que fizeram o trabalho “insano” e cuidadoso das
transcrições das entrevistas.
Ao Leopoldo Erthal, que apesar de tão jovem, manejou com tanta habilidade a
confecção dos dados transformando-os nos gráficos aqui utilizados.
Ao CAp/ UERJ pela força sempre dada aos pedidos de concessão e renovação da
licença de PROCAD, especialmente aos diretores e amigos, Miguel Mathias pelo
carinho, amizade e compreensão em todos esses momentos e à Lícia Maria Vieira
Vasconcellos, pela grata amizade e luta incansável na concessão da minha licença.
Aos amigos e colegas do CAp /UERJ com quem compartilhamos lutas e sonhos
por uma educação pública, de qualidade e efetiva, especialmente ao Lincoln
Tavares da Silva, Maria Beatriz Porto, Andréa Fernandes e Maria Cristina Ferreira
dos Santos.
À Cátia Regina de Souza pela incansável presença no cuidado com nossa família.
À Biba, um “anjo” disfarçado posto em nossa casa, que tanta alegria, ternura e
companhia me fez durante os inúmeros dias e noites de estudo e intensa “solidão
acadêmica”!
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Ao meu filho Pedro, tão atento, solidário e prestativo em seus carinhos e cuidados
comigo especialmente nos momentos finais desta tese.
Ao Felipe, querido enteado, por sua amizade e presença me provando desde nova
que “Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”!!!
Palavras-chave:
Museu da Maré; museus comunitários; espaços educativos não formais;
ecomuseus; Memória; Identidade; Nova Museologia.
Abstract
history and construction of local memories. I approach the concept, the theoretical
assumptions and challenges of community museums as non-formal educative
spaces, by using the Maré Museum as a case study .
The community museums and ecomuseums emerge in Rio de Janeiro with
the Eco-museum of Santa Cruz in 1983, but became more visible with the Maré
Museum as of 2006, since this is the first museum in Brazil's slums created by the
community itself.
The theoretical framework related to the concept of memory was essentially
based on work of Paul Ricoeur, Jacques Le Goff and Beatriz Sarlo. For the
theoretical framework associated with identity development, I have chosen the
studies performed by Stuart Hall, Manuel Castells, Vera Maria Candau and
Tomaz Tadeu da Silva. For the non-formal educational spaces theoretical basis I
have privileged Maria Gloria Gohn, Jaume Trilla and Elie Ganem. Finally, for the
concepts of New Museology, community museum and ecomuseum I rely
primarily on Mario Chagas and Hugue de Varine.
My methodological approach of ethnographic inspiration was based on oral
history. In the field research I used three types of approaches to the object of
study: observation of different activities in the Museum and of the community at
large, semi-structured interviews to fishermen of the Maré and to the directors and
staff of the Museum of the Maré and analysis of the institutional books of the
Museum, namely the Book of Signatures and the Book of Testimonies from
visitors.
As one of the main conclusions of my research on the educational
dimension of the Mare Museum I can state that this museum does have meaning
for the region of Maré and dialogues with the city, the country and elsewhere,
although it does not fully represent all its communities. However, this museum
has been able to develop a community related feature , as it was created by and
has the daily involvement of the social movement and the local community of
their surroundings.
Moreover, the fact that the Mare Museum display a museographic language
which raises references of local history and allows visitors to reflect on them and
build local memories enabling a strengthening of identity, makes its educative
dimension particularly evident and significant.
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Finally, the Maré Museum generates visions "of ourselves and others" by
establishing a more subtle and constant dynamic between individuals' identities
and their constructed memories and narrated stories.
Key-words:
Maré`s Museum; community museums; non-formal educative spaces;
ecomuseums; Memory; Identity; New Museology.
Sumário
José Saramago
1
Introdução, ou como cheguei a meu objeto de estudo
um museu comunitário.
Fazer a memória de minha caminhada profissional e existencial para chegar
até aqui, não é fácil para mim. Como escrevi nos meus agradecimentos, fazer
memória desse caminho é, no mínimo, desafiador!
Faço-me professora a cada dia (Freire, 1997) e cada vez mais! Porém, com
25 anos de magistério sem sair da sala de aula como professora de história, quer
na Educação Básica, quer na graduação e por ter entrado no CAp/ UERJ ainda
jovem, acabei tecendo minha rede profissional e acadêmica pela formação de
professores onde até hoje estou trabalhando, lecionando e me fazendo professora!
Entre 2004 e 2008 fiz parte da equipe da direção do CAp/ UERJ e assumi a
Coordenação da Iniciação Científica Júnior e a Coordenação Adjunta do NEPE
(Núcleo de Pesquisa, Editoração e Extensão) do CAp. Reencontrei-me com a
pesquisa na minha vida de professora. O trabalho mais de perto com os jovens do
Ensino Médio do CAp nos Programas de Vocação Científica (PROVOC) da
FIOCRUZ, CENPES/ PETROBRÁS e CBPF, além da própria UERJ, me fizeram
enveredar por caminhos fora da escola. Acompanhei a seleção dos alunos nessas
1 Os Estudos Culturais podem ser definidos segundo Silva (2002) como: “O que distingue os
Estudos Culturais de disciplinas acadêmicas tradicionais é seu envolvimento explicitamente
político. As análises feitas nos Estudos Culturais não pretendem nunca ser neutras ou imparciais.
Na crítica que fazem das relações de poder numa situação cultural ou social determinada, os
Estudos Culturais tomam claramente o partido dos grupos em desvantagem nessas relações. Os
Estudos Culturais pretendem que suas análises funcionem como uma intervenção na vida política e
social.” (p. 134).
25
2 A expressão “lugares de memória” foi cunhada por Pierre Nora, por isso, estamos usando-a entre
aspas. Será por nós discutida no capítulo 3, item 3.2.
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Um mundo em cada um deles se descortinava aos meus olhos... Como dar conta
disso tudo!!
Chega então, o momento da 1ª Qualificação em março de 2010. Apresento
um breve painel sobre os museus comunitários e ecomuseus do Rio de Janeiro
caracterizando-os. A banca me faz perguntas desafiadoras: Quanta diversidade
cultural, como você vai dar conta em apenas quatro anos, dois já haviam se
passado?” Por que não ficar com um só? Por que não escolher o Museu da
Maré? E a violência da região da Maré, como você vai lidar com isso, como vai
entrar no campo? Saí da Qualificação I com mais dúvidas do que entrei, estava
numa encruzilhada, era preciso redefinir o objeto, recortá-lo melhor. A banca
sugere que escolha apenas um museu comunitário ou um ecomuseu, pois havia
entre eles as duas categorias.
Sendo assim, aquele que além de me encantar, era o primeiro museu de
favela criado pela própria comunidade era o Museu da Maré. Por isso, era um
símbolo para o Rio de Janeiro, o Brasil e outros lugares do mundo. Mais uma vez,
encontros com a orientadora e finalmente, o recorte maior, estudaria o Museu da
Maré. Alívio por um lado, objeto de estudo a princípio definido, por outro um
enorme trabalho pela frente...
Porém, fica uma dúvida no “ar”: E a dita violência da região da Maré? Como
você vai encarar? Comecei a enumerar os prós e os contra de ter que frequentar
periodicamente aquela região, ir para lá semanalmente de ônibus, duas vezes na
semana ... Primeira ponderação é que o Museu da Maré se situa no Timbau,
considerado por alguns “uma área mais nobre da Maré”, melhor urbanizada e
localizada. O Museu fica num antigo galpão de fábrica de transportes marítimos
numa região da Maré à beira da Avenida Brasil, próximo à Escola Municipal Bahia,
numa rua larga e asfaltada, cheia de galpões, ruas de acesso ao próprio Morro do
Timbau, restaurantes, bares, biroscas, quiosques, um Quartel do Exército no início
da rua, uma igreja próxima (Igreja dos Navegantes) e um Posto de Saúde no final da
mesma rua. Numa das pontas da mesma, como já dissemos, a Avenida Brasil, na
outra os acessos à Linha Amarela, Linha Vermelha e à Ilha do Fundão.
Outro fator favorável à minha ida para a Maré é de que havia farta condução
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pela Avenida Brasil e descer na Escola Bahia era tranquilo, andar a pé por ali até o
Museu também. Na volta, o desafio da passarela da Avenida Brasil, mas sempre
movimentada, cheia de trabalhadores e estudantes no vaivém do cotidiano.
Outro ponto fundamental foi a disponibilidade e acolhimento com que fui
recebida desde o início no Museu da Maré, sempre um dos diretores se
prontificava a dar uma carona, na ida ou na volta, até à Central, ao centro da
cidade, ou mesmo até ao ponto de ônibus na Escola Bahia. Os outros diretores
também eram sempre receptivos e muito solícitos. Tudo muito prazeroso. Os
funcionários rapidamente me incorporaram ao grupo e quando eu sumia e ainda
agora, me falam: “Sumida, não veio mais. Por que ?”. Todo esse carinho e
acolhimento era um estímulo constante para me sentir bem e querida e reforçar
minha opção. Com eles participei de várias atividades no Museu, conversas no
pátio, na Loja das Marias Maré, nos Galpões, nas reuniões, entrevistando os
pescadores, nas festas como “Maré do Samba”, dentre outros.
Soma-se a isso tudo, ter sido convidada para participar do Grupo de
Memória do Projeto DaMARÉ (que será melhor explicado nas linhas abaixo)
tendo em vista ser indicada na UERJ por estar estudando a região. Aí, foi bom
demais!!! Digamos que estava começando a acreditar que havia uma “conjuntura
favorável” para eu entrar em campo num mergulho mais profundo como queria de
fato!! Vivenciar o campo com um grupo institucionalmente organizado é sempre
mais fácil! As idas nos Núcleos de Pesca ficaram bem mais viáveis, os carros da
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estudo da Maré, sou chamada pela UERJ em convênio com a Secretaria Estadual
de Ambiente para coordenar o grupo de Memória do Projeto DaMARÉ8 devido ao
meu trabalho de estudo que envolvia aquela região, precisamente o Museu da
Maré. Sem dúvida nenhuma, essa inserção facilitou em muito a minha entrada no
campo, nesse mergulho de inspiração etnográfica.
Novos encontros, novos encantamentos ... O Projeto DaMARÉ ,como
escrevi anteriormente, me permitiu conhecer os três Núcleos de Pesca da Maré e
da Ilha do Fundão (que descreverei detalhadamente no capítulo 5), andar por
diferentes comunidades da Maré, conhecer mais gente, sair dos muros do próprio
Museu da Maré. Passei então, a conhecer melhor - in loco- parte da história
narrada pelo Museu da Maré.
A história dos pescadores é também ressignificada no Museu da Maré, estão
lá as fotos, a palafita, o barquinho, a lanterna, o São Pedro etc. Os pescadores por
nós entrevistados foram muitos, as histórias contadas e ouvidas diversas. Cabe
lembrar que a Maré está até hoje ligada à pesca. O encontro com essas “águas” se
7 É muito forte no Rio de Janeiro, como em outras sociedades complexas, o poder da mídia em
colocar a questão da violência em foco indistintamente e discriminando determinados espaços
populares e demarcando territorialidades distintas.
8.O Grupo de Memória e História dos Pescadores da Maré vinculado ao Projeto DaMARÉ, nome
simplificado do Programa de Educação Ambiental vinculado ao Projeto de Revitalização e
Despoluição do Canal do Cunha e do Canal da UFRJ empreendido pela SEA (Secretaria Estadual
de Ambiente) em convênio com a UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro), tendo como
executora da obra de despoluição do Canal do Fundão a Construtora Queiroz Galvão.
31
século XIX, são novos elementos de suporte nas comemorações, como moedas,
medalhas, selos de correio, dentre outros. No caso do Museu da Maré, a venda de
blusas com imagens antigas das palafitas na região são muito comuns.
Meu caminho metodológico envolveu também a opção por utilizar
entrevistas semiestruturadas, acompanhadas de um roteiro prévio (ver Anexo). As
entrevistas podem ser divididas em dois blocos: com os pescadores da Maré
(sendo que um deles ajudou na criação do Museu da Maré) e da região do entorno
do Canal do Fundão; e um segundo bloco de entrevistas que foram feitas com os
diretores, funcionários do Museu da Maré e um morador antigo da região. Duarte
(2002) nos afirma, sobre as entrevistas semiestruturadas e a postura do
pesquisador no campo, o seguinte:
Por isso, era tão importante estarmos alerta no campo, pois se por um lado
meu apaixonamento pelo objeto de estudo me impulsionava, por outro corria o
risco de me perder e não tecer uma reflexão crítica sobre meu trabalho. Precisava
dialogar com os sujeitos entrevistados, retirando do material de coleta das
entrevistas apenas o que fosse necessário à minha tese fornecendo-lhes sentido e
relacionando nossas análises e conclusões ao objeto escolhido e às questões
/problemas levantados, como nos alerta Duarte (id). Esclarece-nos também sobre
as dificuldades comuns ao uso da metodologia qualitativa, especialmente
abordando aquelas inerentes aos trabalhos de campo, como delimitação do
universo de pesquisa, elaboração de roteiros para entrevistas etc.
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era importante equilibrar o número de pescadores por núcleo de pesca, uma média
de 3 a 4 por cada grupo de pesca; em terceiro lugar só entrevistei aqueles que
assim o desejassem, pois não adiantava entrevistar “à força”, a conversa não
aconteceria como desejava; como último quesito, perguntei às lideranças dos
núcleos pesqueiros e aos diretores do Museu da Maré, quais eram alguns dos
pescadores emblemáticos na região, conhecidos, respeitados pela população local.
Também era importante mesclar esses nomes com os de jovens pescadores que
fossem receptivos à minha abordagem nas visitas aos Núcleos Pesqueiros.
Alguns pescadores foram entrevistados nos Núcleos de Pesca, como os três
da Vila Residencial da UFRJ, assim como todos os do Parque União. Isto porque
eram regiões mais distantes do Museu da Maré e por isso, mais difíceis para
deslocamento dos pescadores. No caso do Parque União, cabe a ressalva que vários
deles me disseram que também não iam ao Museu pelo fato dele ser localizado em
região dominada por grupo de traficantes rivais à comunidade em que viviam, daí
temerem não conseguir entrar lá. Em várias ocasiões os funcionários do Museu
negaram esse risco e afirmaram aos próprios pescadores que nada lhes aconteceria
9
Como já expus anteriormente essas 12 entrevistas são resultado do trabalho de pesquisa do Grupo
de Memória e História dos Pescadores da Maré vinculado ao Projeto DaMARÉ, nome
simplificado do Projeto de Revitalização e Despoluição do Canal do Cunha e do Canal da UFRJ
empreendido pela SEA (Secretaria Estadual de Ambiente) em convênio com a UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro), tendo como executora da obra a Construtora Queiroz
Galvão.
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se fossem lá, mas o fato é que nenhum deles foi, pelo menos enquanto estive em
campo. No entanto, os pescadores da Vila do Pinheiro foram todos entrevistados
dentro do Museu da Maré porque essa colônia fica mais próxima, está sob o mesmo
domínio de comando de tráfico da região do Museu e também, não ser
recomendada para que nós a frequentássemos devido à violência nas redondezas.
As entrevistas com os pescadores foram todas gravadas, filmadas e
fotografadas por profissionais especializados tendo em vista que fizeram parte do
trabalho do Grupo de Memória do Projeto DaMARÉ, que elaborou um DVD sobre
os pescadores e editará um livro sobre os mesmos. Já as entrevistas do segundo
bloco que executei foram apenas gravadas e fotografadas por mim. Abordaremos
mais sobre isso no quinto capítulo que trata da análise dos dados dos pescadores.
Todas as entrevistas foram feitas num clima muito agradável e
descontraído. As dos pescadores foram precedidas de uma grande reunião em
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Com certeza o grupo de maior impacto das entrevistas foi o dos pescadores,
talvez até mesmo pelo desconhecimento do campo que eles me apontavam. Na
verdade, até mesmo de pesca pouco entendo, só pesquei em “pesque-pague”,
nunca havia visitado uma colônia de pesca, muito menos tinha conhecimento
técnico sobre a “arte de pescar”. O universo cultural dos pescadores é rico e
mitológico, cheio de metáforas e imagens!
Beatriz Sarlo (2007) e Paul Ricoeur (2007) consideram história e memória
dois campos em conflito, pois nem sempre a história acredita na memória, assim
como a memória duvida da história, quando esta não coloca no centro os direitos
da lembrança. Esta tensão foi vivida ininterruptamente em minha pesquisa, ela é
visceral nesse tipo de trabalho.
Sarlo (id) nos fala sobre a reconstituição da subjetividade, da razão do
sujeito a partir dos anos 60 e 70. Afirma que atualmente vivemos uma época de
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forte subjetividade.
2009 e 2010 através do estudo e análise dos seus Livros institucionais. Priorizo os
dados sobre gênero, idade, localidade/ origem e instituição a que está ligado o
visitante ou usuário, registrado no Livro dos Visitantes. Na análise do Livro de
Depoimentos priorizo alguns eixos temáticos, como a maioria daqueles abordados
no capítulo anterior (memória(s), história, espaços educativos não formais e
identidade(s)). Também analiso brevemente alguns depoimentos feitos por
estrangeiros que nos “saltaram aos olhos”.
No oitavo e último capítulo (Estamos quase chegando, mas a que futuro
queremos chegar?) concluo o trabalho retomando as indagações iniciais à luz da
teoria escolhida e dos dados e análises do trabalho de campo sobre a dimensão
educativa do Museu da Maré e as possibilidades de incidência na transformação de
subjetividades e produção de identidades. Também estabeleço as probabilidades de
futuro dos museus comunitários, devido às suas relações com os movimentos
sociais e a importância da sintonia dos mesmos com o protagonismo comunitário.
Por fim, esta tese teve o intuito de estabelecer um estudo e discussão sobre
caminhos ainda pouco trilhados estreitando a fronteira que ainda separa a
Memória da Educação. Portanto, tento aproximar a discussão dos “lugares de
memória” com a dos espaços educativos não formais que são seu nicho, também,
por excelência. Porém, sabemos que todas essas escolhas também passaram por
projetos e opções pessoais aqui expostas, vivenciadas e ampliadas através de
estudos, realizações e da intensa vivência do trabalho de campo.
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De quais memórias e identidades estamos falando?
Nessa parte apresentarei o quadro teórico por nós estudado relacionado aos
diversos conceitos de memória(s) e de identidade(s)
Vamos analisar as diferentes caracterizações de memória segundo o ponto
de vista de alguns autores fundamentais no tema, são eles: Jacques Le Goff, Paul
Ricoeur e Beatriz Sarlo.
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2.1
As “diferentes” memórias
2.1.1
A memória em Jacques Le Goff
2.1.2
A memória em Paul Ricoeur
“Não seria então tarefa de uma memória instruída pela história preservar o
rastro dessa história especulativa multisecular e integrá-la a seu universo
simbólico? Seria essa a mais elevada destinação da memória, não mais antes,
mas depois da história.”(id, p. 170)
2.1.3
A memória em Beatriz Sarlo
2.2
Os diferentes conceitos de identidade
2.2.1
O contexto histórico do surgimento do multiculturalismo
cultural não é, nunca, um ponto de origem: ela é, em vez disso, o ponto final
de um processo conduzido por operações de diferenciação.” (Silva, 2000,
p.100)
2.2.2
O que chamamos identidade(s)
auto suficiente, mas era formado na relação com outras pessoas importantes para
ele, que mediavam para o sujeito os valores, sentidos e símbolos - a cultura - dos
mundos que ele habitava, ou seja, se tornou a concepção sociológica clássica da
questão, a identidade é formada na interação entre o eu e a sociedade. O sujeito
ainda tem um núcleo ou essência interior que é o "eu real", mas este é formado e
modificado num diálogo contínuo com os mundos "exteriores" e os sujeitos
presentes neles.
A identidade, nessa concepção sociológica, preenche o espaço entre o
"interior" e o "exterior" - entre o mundo pessoal e o mundo público. A identidade,
então, costura o sujeito à estrutura. Argumenta-se, entretanto, que são exatamente
essas realidades que agora estão "mudando". O sujeito, previamente vivido como
tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto
não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou em
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A modernidade tardia inicia-se em meados do século XX. O autor prefere esta expressão a de
“pós-modernidade”.
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questiona a ideia de que as identidades nacionais tenham sido alguma vez tão
unificadas ou homogêneas, quanto fazem crer as representações que delas se
fazem. Entretanto, na história moderna, as culturas nacionais têm dominado e as
identidades nacionais tendem a se sobrepor a outras fontes, mais particularistas, de
identificação cultural.
Para o autor, o que está tão poderosamente deslocando as identidades
culturais nacionais, desde o fim do século XX é um complexo de processos e
forças de mudança, que, por conveniência, pode ser sintetizado sob o termo
globalização. Ele argumenta que a globalização se refere àqueles processos,
atuantes numa escala global, que atravessam fronteiras nacionais, integrando e
conectando comunidades e organizações em novas combinações de espaço-tempo,
tornando o mundo, mais interconectado. Essas novas características temporais e
espaciais, que resultam na compressão de distâncias e de escalas temporais estão
entre os aspectos mais importantes da globalização a ter efeito sobre as
identidades culturais.
Desde os anos 70, tanto o alcance quanto o ritmo da integração global
aumentaram enormemente, acelerando os fluxos e os laços entre as nações. Hall
(id) irá descrever as consequências desses aspectos da globalização sobre as
identidades culturais, examinando três possíveis consequências: as identidades
nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da
homogeneização cultural e do pós-moderno global; as identidades nacionais e
57
__ __
tornam desvinculadas desalojadas de tempos, lugares, histórias e tradições
específicas parecem "flutuar livremente". Somos confrontados por uma gama de
diferentes identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a
diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha. Foi a
difusão do consumismo, seja como realidade, seja como sonho, que contribuiu
para esse efeito de "supermercado cultural". No interior do discurso do
consumismo global, as diferenças e as distinções culturais, que até então definiam
a identidade, ficam reduzidas a uma espécie de língua franca internacional ou de
moeda global, em termos das quais todas as tradições específicas e todas as
diferentes identidades podem ser traduzidas. Este fenômeno é conhecido como
homogeneização cultural.
Em certa medida, o que está sendo discutido por Hall (id) é a tensão entre o
"global" e o "local" na transformação das identidades. As identidades nacionais,
como vimos, representam vínculos a lugares, eventos, símbolos, histórias
particulares. Elas representam o que algumas vezes é chamado de uma forma
particularista de vínculo ou pertencimento. Sempre houve uma tensão entre essas
identificações mais locais/ nacionais e identificações mais universalistas __ Hall usa
como exemplo uma identificação maior com a "humanidade" do que com a
"inglesidade" (Englishness). Esta tensão continuou a existir ao longo da
modernidade: o crescimento dos Estados-nação, das economias nacionais e das
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Além de Stuart Hall (id) foco básico de nosso trabalho sobre identidade
dialogamos com Tomaz Tadeu da Silva (2000), particularmente através do livro
intitulado “Identidade e diferença”.
A principal ideia de Silva (id) é afirmar que “identidade e diferença são
resultados de um processo de produção simbólica e discursiva” (p.81). Sob este
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O outro autor por nós estudado foi Denys Cuche (1999), cuja reflexão sobre
identidade muito nos interessa.
Segundo Cuche (id), o conceito de cultura é um grande sucesso fora das
Ciências Sociais e associado a ele frequentemente surge o conceito de identidade.
As crises culturais costumam ser vistas como crises de identidade. Para ele a
cultura pode existir sem consciência de identidade e as estratégias de identidade
podem manipular e até modificar uma cultura que não terá então, quase nada em
comum com o que ela era anteriormente.
A cultura depende em grande parte de processos inconscientes; já a
identidade remete a norma de vinculação, necessariamente consciente, baseada em
oposições simbólicas (Cuche, id).
Cuche (id) afirma que nas Ciências Sociais o conceito de identidade cultural
se caracteriza por ser polissêmico e fluido. Este conceito é relativamente recente e
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Outro autor por nós estudado foi Manuel Castells, sociólogo espanhol que
foi um dos precursores do estudo sobre o impacto das tecnologias na sociedade. O
estudo de Castells deu origem a uma trilogia de livros denominados: A Sociedade
em Rede (1996); O Fim do Milênio (1998) e o Poder da Identidade (1999).
Em nosso estudo nos detivemos no livro O Poder da Identidade. Neste Castells
examina de que forma a identidade do indivíduo, dos grupos, dos movimentos sociais
e dos Estados se refletem na transição para a organização em rede.
Castells (id) traz uma reflexão sobre o caráter múltiplo e fragmentário da
identidade e, empiricamente identifica que uma identidade, cultural ou individual,
pode sustentar múltiplas identidades (Castells, 1999, p. 22). No entanto o autor faz
uma distinção entre identidades e papéis sociais (trabalhador, mãe, vizinho,
militante socialista, sindicalista, jogador de basquete, frequentador de uma
determinada igreja e fumante, para utilizar os exemplos citados por ele), no
62
Por fim, também Candau em diversos de seus textos afirma ser a identidade
construída, fragmentada, múltipla e socialmente referendada. Ela defende a
interculturalidade, perspectiva que implica não só o respeito pelas diferentes
culturas (como nos apregoa o multiculturalismo), mas a prática do diálogo entre
diferentes grupos culturais, o dinamismo renovador das diferentes culturas, assim
como seu processo de hibridização cultural e a correlação entre diferença e
desigualdade (id, 2006).
identidade” (id, p. 176), porém uma identidade cultural, evidentemente não pode
existir sem um sistema cultural. A identidade cultural, por sua vez, é
compreendida através de processos conscientes de vinculações classificados por
oposições binárias. A noção de identidade, portanto, está relacionada à noção de
cultura.
Além disso, dialogando com Cuche (id) percebemos que devido à dimensão
mutável da identidade, o indivíduo lança mão de estratégias de identificação, que
dependem da situação social, relação de força entre grupos etc. O conceito de
estratégia pode explicar as variações de identidade, também chamadas de
deslocamento de identidade criando a separação entre dois grupos não por
diferença cultural e sim, por desejo de se diferenciar. As fronteiras são mutáveis,
logo os deslocamentos de fronteira podem ser provocados por mudança de
situação social, econômica ou política. Para Cuche (id), assim como para alguns
dos outros autores focalizados, não existe identidade cultural em si mesma
definível.
Com Silva (2000) percebemos que identidade e diferença são parte de um
todo. Além de construções sociais, elas são partes de um processo, não há como
conceituar identidade sem se falar de diferença. Esse autor enfatiza que a
identidade é instável, contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. Porém,
deixa registrado que identidade e diferença são processos de produção social, por
isso envolvem relações de poder, estando ligadas a sistemas de representação.
65
Portanto, é com todo esse instrumental teórico exposto acima que tentamos
compreender como o Museu da Maré constrói estratégias de possível
fortalecimento identitário tanto dos pescadores, quanto de outros sujeitos coletivos
da região da Maré, tendo em vista se configurar como um museu comunitário
nascido do movimento social. E é nessa sequência que o capítulo seguinte de
nossa pesquisa procura refletir sobre o surgimento e importância da Nova
Museologia, como também, conceituar museus comunitários e ecomuseus,
mapeando-os no Brasil e especialmente, no Rio de Janeiro.
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Na “Maré” da Nova Museologia
3.1
Do colecionismo dos Gabinetes de Curiosidades ao protagonismo
comunitário dos Ecomuseus
Portanto, podemos perceber que vários estudiosos dos museus afirmam que
estes possuem um caráter educacional vinculado à sua própria origem, se
configurando desde o início como espaços de pesquisa e ensino, que poderíamos
denominar também, como espaços educativos não formais. Porém, somente ao
final do século XVIII o enciclopedismo gera uma preocupação educativa do
museu. Mesmo assim, o processo de mudança da relação do público com o museu
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(Marandino, 2000).
No entanto, antes dos anos 80 a crise contemporânea que já se manifestava
nos museus se revela com intensidade na 9º Conferência do Conselho
Internacional de Museus ocorrida na França em 1971. A crise apresentava-se na
necessidade de dar ao museu uma dinâmica adequada para transformá-lo num
verdadeiro instrumento de desenvolvimento cultural da sociedade contemporânea
(Lacouture, 1985, p.1).
Assim sendo, a Nova Museologia toma forma na França em 1971, fruto da
insatisfação de vários museólogos que queriam renovar e alguns até mesmo
superar a instituição chamada museu sob a influência dos anseios populares dos
anos 70. No entanto, cabe lembrar que a expressão Nova Museologia foi cunhada
por G. Mills e R. Grove em 1958, segundo Fernandez (1999, p. 74).
No contexto da Nova Museologia nasceu o ecomuseu. No início dos anos
70, Hugues de Varine Bohan11 – então, Secretário Geral do Conselho
Internacional de Museus (ICOM) – e Georges-Henri Rivière12 – um dos primeiros
Secretários Gerais do ICOM – foram determinantes no surgimento do termo
Ecomuseu. Para alguns autores foi Varine que cunhou a palavra ecomuseu, para
11
Hugues de Varine é um pensador e gestor comunitário francês, foi presidente do ICOM
(Conselho Internacional de Museus), membro fundador do MINOM – Movimento Internacional da
Nova Museologia, consultor internacional em Comunidades, Patrimônio e Desenvolvimento.
12
O museólogo Georges-Henri Rivière serviu entre 1948-1965 como o primeiro diretor em
exercício do ICOM, o Conselho Internacional de Museus, sendo que a partir de 1966 permaneceu
como conselheiro permanente.
73
outros Rivière. Porém, o que temos certeza é que os dois foram fundamentais na
estruturação e difusão de tal conceito, segundo nos confirma a citação a seguir de
Priosti e do próprio Varine (2007):
3.2
O que são os museus comunitários e ecomuseus? Para que e por
que museus comunitários e ecomuseus?
Chagas (2000) nos alerta que o conceito de território exige cuidado, pois a
delimitação de um território também pode ser excludente e perversa. E acrescenta
a isso a tensão territorialização e desterritorialização como afirma no trecho
abaixo:
13
A I Jornada Formação em Museologia Comunitária (sobre ecomuseus e museus comunitários)
ocorreu em Santa Cruz/ RJ em outubro de 2009.
77
excluídos.
O ecomuseu envolve todo o patrimônio cultural e natural da comunidade.
Para Bellaigue (1992), são características para a constituição de um ecomuseu:
(1) identificar um território e seus habitantes, além de seus desejos e necessidades;
(2) atuar com os habitantes da comunidade, já que estes são os verdadeiros
herdeiros do passado e atores do presente;
(3) admitir que não seja necessário uma coleção para a existência de um museu.
Segundo Santos (2008), Hugues de Varine foi o mais inovador na
participação da Mesa Redonda de Santiago do Chile, em 1972, na defesa da
existência dos museus comunitários e ecomuseus, como nos mostra o trecho
abaixo do próprio Varine:
14
Paulo Freire foi convidado a participar da Mesa Redonda em Santiago do Chile em 1972, mas o
Brasil, que vivia sob o regime da ditadura militar, acabou por impedir Paulo Freire de participar
desse evento.
79
3.3
Panorama geral dos museus comunitários no Rio de Janeiro
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15
Este ano ocorrerá o IV Encontro Internacional de Ecomuseus e Museus Comunitários – IV
EIEMC no Ecomuseu da Amazônia no Pará entre 12 a 16 de junho de 2012.
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82
4) O outro museu é o Museu da Maré, que por ser nosso estudo de caso será
abordado separadamente no capítulo 4, onde narramos a história da Maré
relacionando-a à criação do próprio Museu da Maré (subitem 4.3.)
4.1
Não é só na escola que se educa...
A educação é uma prática social complexa, multiforme, permanente, por isso ela
não acontece só na escola, mas também nas bibliotecas, nos museus, nos cinemas, com
a televisão, a internet, na família, no clube, no bairro, com a vizinhança etc.
4.1.1
A educação não formal não é informal
Sabemos que muito se tem falado sobre educação formal, que tem como
lócus básico a escola. Com certeza a instituição escolar continua sendo o espaço
privilegiado do saber sistematizado na formação dos indivíduos. Mas, sabemos
também, que como seres humanos temos a capacidade de aprender em outros
lugares, muitas vezes de forma mais eficiente e prazerosa e não sistematizada.
Quais são esses lugares? Como eles se organizam? Qual a diferença então, entre
educação formal, não formal e informal? Como as práticas educativas desses
lugares podem fortalecer identidades?
São essas questões e suas relações com as práticas educativas de
empoderamento social e possível fortalecimento identitário através da construção
da memória coletiva que pretendemos analisar.
87
4.1.2
Contexto e fatores do desenvolvimento da educação não formal
Segundo Trilla (id), a educação não formal engloba diversos âmbitos como:
no trabalho (programas de reciclagem profissional, escolas-oficinas etc); no lazer e
na cultura (animação sociocultural, pedagogia do tempo livre etc); na educação
social (educadores de rua, programas para penitenciários etc); na própria escola
(atividades extracurriculares, visitação a museus, a outras instituições culturais etc).
Por outro lado, Ghanem (2008) afirma que a educação formal decorre de um
conjunto de mecanismos de certificação, além de referendar, também, seu caráter
sistemático e esquemático. Caracteriza o campo da educação formal como sendo
separado ou até contrário ao da educação não formal. Além disso, chama atenção
que na educação não formal os conteúdos, ao contrário da educação formal, são
selecionados e adaptados levando em consideração as necessidades autóctones e
imediatas das suas áreas de atuação, sendo mais contextualizados, funcionais, de
caráter “menos abstrato e intelectualista”. Por fim, frisa a não obrigatoriedade da
educação não formal de acoplar-se a estruturas, hábitos e formas organizativas
próprias da escola (calendários, horários e aspectos operacionais).
Cabe lembrar que a educação formal, não formal e informal se intercruzam
mutuamente. Por exemplo: na escola, os alunos recebem a educação formal
sistematizada, com a possibilidade da inclusão de atividades extracurriculares
16
Rede educativa do cotidiano é uma expressão cunhada por Nilda Alves em diversos de seus
escritos, como “O Sentido da Escola” (1999).
90
(educação não formal), além dos processos educacionais informais que resultam
das interações não planejadas entre os próprios alunos (educação informal).
Segundo Ghanem (2008) a educação não formal pode ser uma alternativa para
suprir as carências da educação formal para as classes menos favorecidas. Nesse
aspecto nos ancoramos novamente em Trilla (2008) quando afirma que não
podemos perder a crítica sobre a educação não formal, tendo em vista que ela pode
ser tão maléfica, elitista ou classista quanto à educação formal (id, p.54) porque
também pode ser tão alienante, burocrática, ineficiente, cara, obsoleta, estática,
manipuladora, estereotipada e uniformizadora quanto a formal. A educação não
formal não vai resolver magicamente todos os problemas da educação formal.
Assim como Trilla (id), Gohn (2010) entende que o aprendizado gerado e
compartilhado na educação não formal não é espontâneo, há intencionalidades e
propostas.
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Maria Glória Gohn (id) tem diversos pontos de encontro teóricos com Trilla
(id), porém em alguns se distancia dele. A seguir apresentaremos alguns aspectos
importantes do pensamento desta autora para nossa pesquisa.
A concepção de Gohn (id) sobre educação não formal se articula à educação
cidadã, pois ela entende que seu eixo deve ser formar para a cidadania e
emancipação social dos indivíduos. Além disso, afirma que essa educação está
muito articulada à ideia de cultura, tem um campo próprio, intencionalidades e
vem se consolidando desde as últimas décadas do século XX, embora para a mídia
e o senso comum não seja considerada educação porque não está constituída por
processos escolarizados.
Não discorda de Trilla (id) quanto à intencionalidade, mas apresenta uma
visão singular quando frisa que o eixo da educação não formal é formar para a
cidadania e emancipação social dos indivíduos.
As áreas, que segundo Gohn (id), demandam a educação não formal são as
áreas de formação para a cidadania e a de trabalhos voltados para a emancipação
social de indivíduos, grupos e coletivos sociais. A educação para a cidadania
incorpora a educação para a justiça social; os direitos humanos, sociais, políticos e
culturais; a liberdade; a igualdade e diversidade cultural; a democracia; a favor do
fim dos preconceitos e qualquer forma de discriminação; o exercício da cultura e
manifestações das diferenças culturais (Gohn, id.).
Sendo assim, Gohn (id) articula sua concepção de educação não formal ao
campo da educação cidadã, como fica registrado no trecho abaixo:
Gohn afirma que a expressão educação não formal se espalha nos anos 2000
e atribui a Combs (1968), o reconhecimento e a popularização de outras
concepções de formas e meios educacionais feitos fora da escola, mas com
objetivos educacionais. Na França, Alemanha e Espanha temos publicações com a
92
Além disso, Gohn afirma que os resultados da educação não formal são:
consciência de como agir em grupos coletivos; construção e reconstrução da
concepção de mundo; contribuição para um sentimento de identidade com uma
dada comunidade.
Sendo assim, veremos em seguida como esses espaços educativos não
formais também perpassam os territórios da memória.
4.2
Os “lugares de memória” também educam
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê
A arte de viver da fé
Só não se sabe fé em quê
Foto 9 do Acervo do Museu da Maré - Vista panorâmica dos “alagados” da Maré com suas
palafitas até à década de 80.
96
Mapa 1
ÁREA TOTAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO COM DESTAQUE PARA
A LOCALIZAÇÃO DO BAIRRO DA MARÉ
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Mapa produzido por Luana Caruso Nóbrega - Programa de Desenvolvimento Local da Maré
Rede de Desenvolvimento da Maré/ REDES HTTP:
http://www.redesdamare.org.br/projetos/retrato-da-mare/
17
Este mapa não inclui a delimitação da comunidade do Conjunto Marcílio Dias.
98
18
Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré
99
5.1
Do mar ao “sertão” 19
Esse capítulo foi pensado tendo em vista que a essência do Museu da Maré,
seu “conteúdo” é exatamente ressignificar, narrar, ensinar a história da Maré e
construir, reelaborar as memórias locais. É claro que percebemos que cada
comunidade tem sua história peculiar e todas juntas formam um todo complexo no
contexto da região da Maré, compondo o mosaico do bairro de mesmo nome. 20.
Porém, poderíamos imaginar e pensar que há algo em comum entre tais
comunidades, o que diria Lourenço César - um dos diretores do CEASM e do
Museu da Maré por mim entrevistado -, “... há algo de universal nessa história
que perpassa todas as comunidades da Maré”, como a pesca, o carregamento da
água em “rola-rola” em tempos passados, a luta pela terra, pela sobrevivência, que
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19
Este subtítulo baseia-se no título da dissertação de mestrado de Antônio Carlos Pinto Vieira,
defendida na UNIRIO em 2008, denominada Do engenho à favela , do mar ao chão, memórias da
construção do espaço na Maré.
20
Sobre a construção do bairro Maré temos a dissertação de Cláudia Rose Ribeiro da Silva
intitulada Maré: a invenção de um bairro, defendida na Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2006.
100
“No mesmo ano de 1565, foi concedido outra sesmaria ao leigo Antônio da
Costa, com “700 braças ao largo do mar e 1000 pela terra dentro de Inhaúma”.
Destaca-se um fato para nós de particular interesse: o limite entre a sesmaria dos
jesuítas e a de Antônio da Costa ficava justamente na região abrangida hoje pela
Maré, designada a época como tapera de Inhaúma.” (id, p.8)
Com a criação da ferrovia, que em 1897 passa a ser controlada pela The
Leopoldina Railway, toda a região fica conhecida por subúrbios da Leopoldina.
Com a inauguração das estações ferroviárias desloca-se o desenvolvimento do
núcleo urbano para próximo das estações de trem e o transporte marítimo vai
declinando. Por isso, o Porto de Inhaúma vai declinando e passa a ser habitado por
pequenos proprietários rurais portugueses e italianos, além de ter próximo
atividades de olarias, onde os donos usavam os gravetos da região dos mangues
em seus fornos. Essas produções ainda saiam dali pelo porto e este passa a ter
atividades de pesca a partir dessa época (Vieira, id).
A estação de Bonsucesso torna-se agregadora em seu entorno de várias
atividades e nessa região organiza-se um núcleo urbano através da divisão de lotes
e do incentivo à construção de prédios.
O Instituto Oswaldo Cruz foi a primeira grande instituição a se instalar na
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Foto 11do Acervo do MIS (Museu da Imagem e do Som) - Instituto Oswaldo Cruz com Baía de
Guanabara ao fundo e Ilhas do Pinheiro e do Fundão.
103
Graças ao Instituto Oswaldo Cruz, a linda Ilha do Pinheiro foi preservada até
à década de 80, onde a instituição fazia pesquisas principalmente sobre fauna da
região. Foi usada para criação de macacos Rhesus para experiências e pesquisas
científicas, daí a população local da Maré chamar essa ilha de “Ilha dos Macacos”,
segundo Vieira (1999). A Ilha dos Macacos aparece na fala dos pescadores
entrevistados como algo paradisíaco. Em geral todos os moradores da Maré de
“meia idade” ou mais velhos se remetem à Ilha do Pinheiro com saudosismo.
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Foto 12 do Acervo do Museu da Maré - Ilha do Pinheiro, pertencente ao Instituto Oswaldo Cruz
Foto 14 do Acervo do Arquivo Nacional - Aterro da década de 70 feito com o Projeto Rio
105
Foto 15 - Baía de Guanabara com Ilha do Fundão após anexação das outras ilhas do entorno; Ilha
do Pinheiro ainda separada e ponte de ligação com a Ilha do Governador
“No entanto, a forte reação dos moradores fez com que a fase de remoções
não fosse totalmente implementada, limitando-se à remoção das áreas
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que acabou desativado. Restou apenas a Usina de Lixo, que por falhas em suas
construções, atualmente não funciona regularmente.
5.2
Da favela ao bairro
Avenida Brasil faz parte da vida dos moradores da Maré de forma intrínseca
quer seja proporcionando trabalho, quer seja facilitando no deslocamento para o
centro da cidade ou proporcionando a chegada de material para aterros ou para
construir casas e barracos. Em compensação era perigoso atravessar a Avenida
Brasil e ir ao outro lado de Bonsucesso para apanhar água, trabalhar ou fazer
compras, pois com o crescimento esta passou a ter muitas pistas e ser a principal
21
O Canal do Cunha se localiza na região da Maré atual.
111
- O Timbau
- A Baixa do Sapateiro
Há várias hipóteses para o nome Baixa do Sapateiro, dentre elas: que aquela
região era propriedade de um morador do centro de Bonsucesso, que mantinha um
português como zelador, que era sapateiro. Outra versão era de que como na
comunidade havia alto índice de criminalidade e muitos nordestinos, especialmente
baianos, fazia-se uma alusão à “Baixa do Sapateiro”, numa referência à região com
esse nome em Salvador. Outra versão era de que como a região era de mangues,
cheia de vegetação chamada sapateiro no sopé do Morro do Timbau, era a Baixa do
Sapateiro, pois tinha essa vegetação na região baixa do morro.
A Baixa, assim chamada carinhosamente pelos moradores do local até hoje, era
um grande manguezal cheio de lama e caranguejos. No início sua ocupação se deu na
fronteira com Bonsucesso e foi se estendendo até á Baía de Guanabara. Logo, a Baixa
do Sapateiro é uma das mais antigas comunidades da Maré. Foi na década de 50 que
112
sua expansão foi em direção ao mangue e sobre a maré surgindo a construção das
palafitas, que deram uma marca muito forte à paisagem daquela região.
Diversos dos nossos entrevistados fizeram alusões às palafitas em que
moravam e alguns reconheceram nas fotografias do Museu da Maré seus
“barraquinhos”, como carinhosamente os denominaram.
Silva (2006) também nos fala da diferenciação positiva das comunidades do
Timbau e Baixa do Sapateiro inclusive pela inexistência nelas de palafitas como
demonstra o trecho abaixo.
Foto 16 do Acervo do Museu da Maré – Imagem emblemática das palafitas nos alagados da Maré:
Baixa do Sapateiro e Parque Maré
- Parque Maré
lama e mangue e sofria com o movimento das águas, tendo a partir da década de 60
ocorrido a grande expansão da ocupação em direção à Baía de Guanabara
predominando assim as palafitas nessa região. Os aterros nessa região eram rotineiros
até chegar o Projeto-Rio na década de 70 e eram feitos com carvão inicialmente e
depois com demolição. Eram executados em mutirão por familiares e vizinhos.
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Foto 17do Acervo do Museu da Maré - “Pontes de tábuas” interligando as palafitas da Maré
Não havia água, nem luz nas casas, inicialmente a luz era puxada por
“gatos” e depois por um medidor da Light e revendido para as demais casas. A
água chegava através de pequenas bicas, puxadas ilegalmente por ramais. Devido
114
às grandes filas, muitos moradores iam apanhar água do outro lado da Avenida
Brasil e para isso usavam os rola-rola (barril de madeiras com pneus em volta dele
puxados por uma alça de ferro). O esgoto era muito precário, feito pelos próprios
moradores. Na década de 60 surge a Associação de Moradores do Parque da
Maré, que foi muito importante na consolidação da comunidade, principalmente
na época do Projeto-Rio.
O Parque Rubens Vaz surgiu em 1951, era uma região de areal. Os poucos
habitantes que moravam ali sofriam muito quando a maré enchia porque
apareciam cobras e lagartos e deixava lama em quase tudo.
Não demorou e surgiu um líder para eles, chamado de João Araújo, um
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paraibano, que organizou a área, alinhou as construções e abriu ruas. A água também
era trazida em barris (“rola-rola”). Quando as pessoas chegavam tinham que construir
seus barracos a 40 metros da “Variante”, pois ela seria alargada como de fato foi. Os
barracos eram de madeira, a polícia não deixava fazer de alvenaria, derrubando-os.
O Parque Rubens Vaz tem uma história um pouco diferente das demais, pois
em 1958 aparece lá um advogado chamado Margarino Torres do PCB (Partido
Comunista Brasileiro) que defendia o direito das pessoas permanecerem ali com
dignidade. Como a população estava aumentando, a polícia aumenta a pressão
para expulsar a comunidade. Margarino lidera a população e torna-se figura
fundamental na consolidação da ocupação. O local chegou a ter seu nome, devido
à sua importância na história local. Em 1959 a população invade a área do Parque
União e Margarino Torres lidera também essa invasão. Em 65 a população sente
necessidade de dar um nome oficial para o local e escolhe Major Rubens Vaz, em
homenagem ao Major assassinado em atentado na Rua Toneleros em Copacabana.
- Parque União
se remeteram a este fato. Lembraram com graça das casas de alvenaria com
“cascas” de madeira para parecerem barracos.
- Nova Holanda
- A Vila do João
- A Vila do Pinheiro
Silva (2006) nos chama atenção no trecho abaixo para o fato de que a Maré ter
sido transformada por decreto num bairro, não significa a eliminação de seu contexto
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5.3
A criação do Museu da Maré
não só na comunidade local, como na cidade, assim como é referência para outros
museus comunitários e ecomuseus no Brasil inteiro.
O Museu fica localizado num antigo galpão de conserto de barcos, que foi
cedido ao grupo que o fundou22, como é mostrado em imagens abaixo. A oficina
dos barcos se localizava no prédio onde hoje está instalada a exposição
permanente do Museu da Maré.
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22
Este galpão foi cedido ao grupo dos fundadores do Museu da Maré por 10 anos.
119
Foto 20de Helena Araújo - O barquinho dos pescadores com São Pedro
Foto 21de Helena Araújo - A emblemática palafita na entrada da exposição permanente do Museu
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121
Foto 23de Helena Araújo – Interior da palafita e “visão” da favela pelo banner externo
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122
Foto 24 – Cenário externo à palafita, mulher com lata de água na cabeça e varal de roupas.
Foto 25de Helena Araújo - Os registros de posse das casas, jornal local e fotos
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Foto 26 de Helena Araújo - O tempo dos barracos acabou, surgem as casas de alvenaria e seu
cotidiano...
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Por outro lado, piões, petecas, carrinho de rolimã, pipas, bolinhas de gude nos
trazem a infância de volta - principalmente para quem tem mais de 40 anos-, no
Tempo da criança. Há ainda uma homenagem a uma criança assassinada na porta
de sua casa na favela vítima da violência do confronto entre polícia e traficantes.
Em oposição, logo depois vem o Tempo do medo, as paredes são escuras, é
um ambiente mais fechado, sem colorido, apenas muitas e muitas cápsulas de
tiros, fotos com paredes perfuradas por tiros ... é a violências de várias favelas, do
Rio de Janeiro, das grandes cidades, do mundo. Se antes a luta dos moradores da
favela da Maré era acabar com os alagados, ter casas de alvenaria e saneamento
básico, atualmente é acabar e combater a violência no local.
O Tempo do futuro se faz por ser um tempo que já começou na luta por uma
cidadania mais plena e justa, neste é mostrado apenas uma maquete com as
habitações e referências geográficas da região, como se fosse um mapa em
terceira dimensão.
As duas fotos abaixo mostram o restante do pátio do Museu da Maré com a
loja das Marias Maré e o anexo à exposição permanente aonde são feitas as
exposições temporárias.
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125
Foto 28 de Helena Araújo - Loja Arte da Maré de vendas de artesanato e costuras das
Marias Maré no pátio do Museu.
“Na Maré a iniciativa dos atores do CEASM tem sido justamente no sentido
de construir uma narrativa na qual o espaço compreendido pela região da
Maré e os seus moradores estejam intrinsecamente ligados à história da
cidade e do país, contada pela perspectiva de quem vive, ou viveu, do lado
até então esquecido pelos discursos historiográficos dominantes e pelas
instituições oficiais de memória.” (id, p. 29)
Também Chagas e Abreu (2007, p. 138) chamam atenção para o fato de que
num cenário tão desolador de uma comunidade carente carioca tenha surgido um
grupo de jovens moradores que tenham e continuam se empenhando na luta e
resistência cotidiana pela melhoria da qualidade de vida daquela população local.
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6.1
Apresentando os pescadores entrevistados
Foto 30de Terezinha Lanzelotti - Vila Residencial da UFRJ com obras de saneamento
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Foto 32 de Stela Caputo - Ancoradouro de barcos do píer da Vila do Pinheiro e o vão da Linha
Vermelha por cima.
Foto 33 - Píer do Núcleo de Pesca do Parque União e o vão da Linha Vermelha por cima.
dessa atividade. Foi a primeira colônia por nós visitada. Causou-nos enorme
impressão a miséria e pobreza do lugar. Fica exatamente embaixo da autoestrada
Linha Vermelha, num trecho cuja estrada é bem baixa, próximo ao mar, na área da
comunidade da Maré denominada Vila do Pinheiro. Apresenta um precário píer,
cheio de barcos pequenos e bem pequenos, denominados “caiaques”. Tem
pequenos boxes onde os pescadores guardam seu isopor, gelo e todo o material de
pesca (redes, anzóis, facas etc). Há também três imagens: de São Pedro, de Nossa
Senhora da Aparecida e de Iemanjá numa espécie de pequenos santuários ou
pequenas grutas. Ao lado do ancoradouro há ainda uma criação de porcos em
diferentes cercados, alguns andam soltos na lama imunda das águas daquela
região ao lado dos barcos, das redes, dos peixes pescados, dos gatos e de muito
lixo trazido da Baía. A água da Baía de Guanabara é muito poluída nesse local, é
preta e parece ser tão grossa, cheia de óleo que perto do píer é possível ver os
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porcos andarem por ali parecendo estarem pintados de preto, como mostra a
imagem abaixo! O cheiro do local é bastante desagradável.
vários objetos para seu acervo, como o barco da entrada do museu (feito por ele e
nele grafado JAQUETA), assim como a estátua de São Pedro colocada dentro do
mesmo. O conversador e encantador “Seu” Jaqueta, de nome Sérgio Jaqueta, é
muito querido e conhecido de todos no Museu da Maré. Tem 61 anos, nascido e
criado na Maré, morador do Timbau, sua casa fica muito próximo ao Museu da
Maré, casado com filhos e netos, hoje em dia é o único pescador por nós
entrevistado que trabalha na Construtora Queiroz Galvão, que está despoluindo o
Canal do Fundão. Em seus relatos apresenta sempre muita proximidade com os
diretores do Museu da Maré e suas atividades e demonstra muita apreensão com
os resultados do trabalho que a empresa vêm fazendo na obra de despoluição da
Baía de Guanabara. Sua fala é muito articulada e desembaraçada.
“Seu” Antonio é filho de um pescador famoso e lendário na região da Maré,
“Seu” Alvinho, já falecido. É casado e não tem outra atividade profissional, mora
na Vila do João. Tem 58 anos. Seu relato é muito rico e demonstra muita paixão e
tristeza com a situação da pesca na região. É de uma família tradicional de
pescadores, aprendeu com o pai a pescar e ensinou seus filhos. De todos os seus
descendentes, o único que pesca com ele é Alexandre.
Alexandre é relativamente jovem, tem 36 anos, pesca com o pai, mas
também trabalha com computadores. Demonstra certa timidez, mas aos poucos se
solta na entrevista. Percebe-se em sua relação com o pai admiração, respeito e
133
gratidão a tudo que ele lhe ensinou, principalmente os perigos do mar e como
pescar. Mora na Vila do João.
O Núcleo de Pesca do Parque União é bem mais arrumado, limpo e
agradável. Fica na extremidade oposta ao da Vila do Pinheiro, no Parque União,
uma das comunidades da Maré fronteira à Praia de Ramos. Ele apresenta barcos
bem maiores, alguns usados para lazer e pequeno turismo pela Baía de Guanabara.
Foi de lá que saímos de barco para conhecer o entorno da Maré na região da Baía
de Guanabara. Esse Núcleo também se localiza embaixo da Linha Vermelha,
porém tem como altura um vão bem maior do que o da Vila do Pinheiro, é
portanto, bem mais arejado, visível e agradável.
No Núcleo de Pesca de pesca do Parque União entrevistamos Jean, Vovô e
Marcos.
Jean é um dos mais jovens pescadores por nós entrevistado, tem apenas 29
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anos. Também possui outra profissão, tem uma firma de fazer obras, reformas de
casas, mas tem enorme prazer em pescar. É casado e tem filhos.
Por outro lado, Vovô, sugestivo do próprio apelido, é um dos mais “velhos”
desse Núcleo, tem 60 anos. Ensina muitas coisas aos outros, por isso desfruta de
certa autoridade entre os demais, é referência para quase todos ali e é apontado
como - daquele Núcleo- o que mais conhece a história da região e da pesca no local.
É casado com a mesma esposa há muitos anos e tem orgulho disso, é evangélico e
faz alusões bíblicas em seus depoimentos. Aluga seu barco para outros pescadores e
para passeios pela Baía. Mora no Parque União há muitos anos.
Marcos é o líder dos pescadores do Parque União. Tem 47 anos, já desempenhou
inúmeras profissões, como garçom no Hotel Copacabana Palace, já foi fotógrafo,
dentre outras atividades. Mora no Parque Rubem Vaz. Desfruta de certo prestígio entre
os pescadores e demonstra maior articulação no vocabulário e escolaridade.
O Núcleo de Pesca da Vila Residencial da UFRJ não se localiza na Maré,
mas fica do outro lado do Canal do Fundão, portanto, em frente à região da Maré.
Originou-se das moradias que aí foram deixadas da época da construção da Ponte
Rio - Niterói. É uma comunidade que já sofreu muito transbordamento das águas
em suas casas, falta de luz, de saneamento básico e de transporte, atualmente é a
mais beneficiada com as obras do Canal do Fundão. Suas ruas estão sendo
elevadas e urbanizadas para evitar o refluxo das águas. Possui uma Associação
dos Moradores muito arrumada e fomos lá recebidos para as entrevistas. Seu píer
134
é muito, muito simples e precário, o pior dos três que visitamos. Tem tanta lama,
areia e lixo na beira da ilha, que os pescadores quase não conseguem mais sair e
/ou voltar com seus barcos pelo Canal do Fundão. Não tem nem boxes dos
pescadores como os outros, a impressão que nos passou é que parece o mais
“amador” dos Núcleos de Pesca que visitamos.
Nesse Núcleo de Pesca entrevistamos “Seu” Cordeiro, “Seu” Foca e “Seu”
Carlos.
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“Seu” Cordeiro é muito sério, mas muito generoso em sua entrevista, além
de pescador, é funcionário da UFRJ há muitos anos. Veio morar na ilha porque
tornou-se funcionário da instituição e se fez pescador, aprendeu a pescar com os
outros pescadores do lugar. Demonstra muito prazer na prática desse ofício
complementando sua renda com a pescaria. É casado e tem 49 anos.
“Seu” Foca tem menos do que 50 anos, gosta de pescar, porém também
desempenha outra atividade. Demonstra muita reserva em sua entrevista, sua fala
é curta, não se expõe, mas não se negou a dar a entrevista.
Já “Seu” Carlos demonstra simpatia em ser entrevistado, é animado, tem 51
anos. Tem outra atividade paralela à pesca, assim como quase todos os outros
companheiros.
O último sujeito por nós entrevistado é o presidente da Colônia de Pesca de
Ramos - a Z 11 – e chama-se Siri. Tem 52 anos, é separado, muito falante,
135
Foto 37 de Helena Araújo – O pescador Siri na entrevista realizada dentro do Museu da Maré
6.2
Memórias e lembranças de pescadores
afetos e lá o tempo espera e passa diferente como percebemos nas entrevistas com
os pescadores, pois o tempo é sempre relacionado à maré, à ida, à volta, à maré
cheia, à maré viva ... Porém, sempre Lá é primavera, porque sempre se espera
uma pesca melhor no dia seguinte, um momento melhor, a despoluição do Canal
do Cunha ou do Canal do Fundão e em tantos outros exemplos que aqui poderiam
ser dados, como a fala esperançosa de “Seu” Cordeiro ou prazerosa de Jean,
respectivamente, apresentadas abaixo:
esqueço de tudo.
Porque a Ilha, lá era a maior dificuldade esse negócio de águas, esses troços. Às
vezes pra ir ao hospital tinha (...). Tinha que atravessar na canoa. Naquele tempo
era Getúlio Vargas, o Getúlio Vargas é um hospital antigo. Tinha que atravessar
de canoa às vezes, era uma dificuldade, aí, eles vieram morar na praia de
Inhaúma, quando eles vieram, fez o primeiro barraco deles ali, entendeu?
137
Nadei muito aí mesmo, nessa praia aí. Aí onde tem esses prédios de
apartamentos, aqui no Pinheiro, ali era uma colônia de Inhaúma, esperava
a maré encher e (...) peixe pequenino, peixe que vinha entrando como a
maré. Agora acabaram com tudo mesmo.
(...) o que eu tenho pra dizer pra vocês é:primeiro aí, na Praia de Inhaúma, era
bom demais pra se viver, pescaria era melhor, dava pra ganhar. Mas, agora,
com o decorrer do tempo, caiu mesmo, bastante, até tainha que é..., já tem uns
quatro ou cinco meses que a gente não mata peixe. Mas, é a realidade, de um
modo geral não sei o que tá havendo, que tá caindo mesmo a pesca, não sei! A
gente vai lá pescar, como eu fui a última vez, fui lá no Catalão, fui na Ponte
Rio-Niterói, fui até ao Cais do Porto, nada! Viemos em branco...
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A fala acima de “Seu’ Antonio nos mostra, com certeza, toda a reconstrução
de uma época, nos evoca a reflexão sobre a deteriorização da pesca, o aumento
enorme da poluição da Baía de Guanabara, a dificuldade de sobreviver desses
pescadores. Porém, sabemos que essa fidelidade da memória, pode ser interrogada
pela história. Essa tensão entre memória e História é uma questão central que
entrecruza toda a nossa pesquisa, embora saibamos que nesse caso específico da
resposta de “Seu’ Antonio não há dúvida que memória e história se encontram,
pois sabemos que “antigamente” havia mais peixe na Baía, menos poluição etc.
Nessa tensão memória e história, ás vezes convergente, outras vezes,
divergente, é a crítica histórica que nos permite pensar num viés mais equânime.
Foi assim, em vários momentos de nossas entrevistas quando tentávamos lembrar
aos nossos entrevistados se foi na época da construção da Linha Vermelha, ou por
exemplo, antes disso, como numa das frases muito repetida por nós: “Mas, o senhor
pescava tanta tainha até alguns anos atrás, antes da construção da Linha Vermelha
ou muito antes disso?”, ou “Será mesmo que foi antes até dos aterros na Maré,
antes do Projeto Rio ?”, ou “Foi na época das remoções ?”, perguntávamos.
Quando construímos ou reinterpretamos a história e a memória de um povo
ou comunidades populares afirmamos a importância da ideia de justiça, onde
todos falem, onde a comunidade ou comunidades se sintam mais representadas
(Ricoeur, 2007), onde através da história se elabore narrativas possíveis de gente
simples. Por isso, em minha pesquisa foi tão importante entrevistar alguns
139
“Seu” Antonio também nos fala com orgulho dessa memória de resistência e
luta quando reafirma o tempo de pesca ou sua própria lembrança sobre a
qualidade de vida e da água daquele lugar há décadas atrás.
Irmão do Picolé, Xanxão. O seu Alvinho era meu pai.... mas também de
colônia eu estou com 46 anos matriculado na Colônia de Ramos, a Z11.”
A água era boa, podia tomar banho, quase uns 8 metros de fundura, aí na
frente da ilha. Aí era uma ilha, Ilha dos Macacos, era fundo. A pessoa que
não sabia nadar pra atravessar pra lá tinha que saber nadar, que a maré
corria e era fundo. Tudo areal, não tinha lama, não tinha nada, agora....
Aprendi a nadar com meu pai. Eu sei nadar e todo mundo acha que
pescador sabe nadar, mas você sabe que uma vez fomos fazer um curso na
Marinha e teve pescador que não passou no curso porque não sabia nadar?
Nem boiar sabia! Então, ... todo mundo pensa, mas 80% dos pescadores
sabem nadar, o resto não sabe.
6.3
A rede da memória constrói a identidade dos pescadores
Essa memória coletiva - como a que foi mostrada pelos pescadores- para
Halbwachs (1990) é formada de diversos elementos referenciais para a
comunidade na qual o indivíduo vive. Tais elementos de referência - situações,
monumentos, paisagens, músicas, comida etc - são transmitidos pela tradição e
podem ter sido ou não vividos pelos sujeitos, como já afirmamos em diversas
passagens anteriores.
Quando o Museu da Maré reconstrói uma palafita dentro de seu próprio
espaço ou expõe fotos da região da Maré em diferentes épocas históricas - de
sujeitos pescando, costurando redes, dentre outras - tem a intenção de fortalecer os
laços identitários daquelas comunidades, assim como construir ou elaborar uma
possível representação de sua história e/ou memória. “Seu Jaqueta" demonstra
orgulho em seu sorriso ao apontar uma fotografia dos alagados da Maré dentro do
Museu e nos fala empolgado: Olha aqui. Olha aqui a canoa que o meu pai
pescava!, ou quando aponta outra fotografia mostrando os aterros da Maré e diz:
Isso aqui já era área de aterro. Isso aqui já é esse prédio aqui e eu moro aí atrás.
Nesse momento percebemos mais uma vez como o Museu se faz vivo e interage
com os moradores locais, com esses pescadores, pois também fala deles, de suas
vidas e suas emoções, vivências, por isso lá existe uma memória que emociona ...
Todas essas memórias que emocionam são a base de uma determinada
identidade, que é composta pelas referências culturais que permitem um
sentimento de pertencimento a um grupo. Sendo assim, construir a memória é
144
Porque 30, 40 quilos de peixe não é muito peixe, é pouco peixe e isso
íi você vende rápido. Pra quantidade de pessoas aqui dentro é pouco
e ainda tem outros colegas. Tem o Pelicano, que esse é que vive
exclusivamente atualmente da pesca mesmo, é um pescador...
Eles fizeram dragagem ali na época do Projeto Rio quando fizeram o aterro
do Pinheiro. Engraçado quando a draga puxava. Eu brinquei ali, a gente ia
brincar que era novidade. Quando aquela água vinha do fundo, ela vinha
cheia de areia, areia branquinha...”
Depois a gente foi lá pra onde é a área militar, onde mora o Waguinho. A
companhia onde passou a Linha Amarela deu uma “merrecazinha”.
Fizeram um barraco pra gente lá. Foi quando meu pai se preparou e fez a
casa dele. A gente morava aqui em frente á passarela, perto da passarela
que a gente morava, aquilo tudo era praia, tudo era mar. O estaleiro
McLaren, que fazia rebocador, fazia até navio, os mini navios eles faziam ali
naquela época, pra ver como era fundo em frente á ilha. Quem viu aquela
ilha, quem vê agora...
Fotos 42 e 43de Stela Caputo - Imagem de São Pedro, Nossa Sra. de Aparecida e Iemanjá no
Núcleo de Pesca da Vila do Pinheiro
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Se sente, é triste, porque isso ai vai piorando cada vez mais a Baía de
Guanabara, porque o certo da Ilha tinha que ter uma rede de tratamento na
Ilha toda, joga muito esgoto na Baía de Guanabara a Ilha, tinha que ter um
tratamento nela toda. Vê aí, tem uma vala negra, aí perto da pescaria Galeão
é um cheiro insuportável. Tinha que ter uma limpeza ali pelo menos...
Foto 44de Helena Araújo - Poluição do Canal do Fundão visto da Vila Residencial da UFRJ
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148
Foto 45 de Helena Araújo - Linha Vermelha ao fundo, embaixo da autoestrada o Núcleo de Pesca
da Vila do Pinheiro. Poluição do Canal do Fundão visto da Ilha do Fundão.
Aí, depois que eu troquei o NIT no INPS pra pescador... Já tenho uns 20
anos pra pescador...
Não vou dizer confortável, mas dá. (se referindo a poder viver da pesca). Aí,
eu faço serviço de pedreiro também.
10 ou Z 11, que impõe seus códigos e diferenciações para eles. Vovô fala sobre
essas relações do entreposto do Parque União com a Colônia de Pesca Z 10, que é
a colônia à qual estão ligados e legalizados:
Silva (2000) nos mostra como identidade e diferença são parte de um todo.
Além de construções sociais, elas são partes de um processo, não há como
conceituar identidade sem se falar de diferença. Portanto, a identidade é instável,
contraditória, fragmentada, inconsistente, inacabada. Porém, também deixa
registrado que identidade e diferença são processos de produção social, por isso
envolvem relações de poder, estando ligadas a sistemas de representação.
É da lua, como se diz, a natureza é uma coisa bonita, como acabou de falar
disso agora. É a natureza, o mar é vivo, não pode abusar dele. Eu não
mergulho, muito difícil, só quando for pra tirar algum lixo, aí, tu tem que
mergulhar... ou então, encho o caneco e tomo banho, dentro do barco tem
saída d’água, quando molhar, a água sai...
Não, nasci aqui mesmo. Meu nome é Jean Castro Pereira. Sou do dia 03-08-
1982. Eu nasci aqui no Rio mesmo. Meus pais não são daqui, são do Norte e
desde criança já venho pescando aqui no Catalão de rede, de tarrafa,
pescando siri e fui gostando. Passei a mergulhar, não aqui, na Urca. Fui
gostando mais, fui gostando mais, comprei uma lancha, da lancha depois eu
fiz um barco, agora peguei essa traineira e daí vai. A pessoa vai gostando,
sendo que eu não vivo especificamente da pesca, eu tenho uma firma, eu
trabalho com obra também, entendeu? E nos fins de semana eu trabalho
levando o pessoal pra pescar e a pesca em si não está dando mais pra pessoa
viver da pesca. Acredito eu que, talvez, meu filho nem me siga mais o que eu
segui e o que sempre gostei de fazer. Meu filho praticamente não vem aqui...
É numa proposta intercultural, onde haja não só respeito, mas diálogo entre
as diferentes culturas que acreditamos na construção de um projeto coletivo
social, político e econômico. Na prática do diálogo entre diferentes grupos
culturais, como com os pescadores da Maré, podemos vivenciar o dinamismo
renovador das diferentes culturas, assim como seu processo de hibridização
cultural e a correlação entre diferença e desigualdade (Candau, 2006).
Foi entrevistando todos esses pescadores que aprendemos e trocamos não só
informações, mas vivências, lembranças, saberes ... Enfim, aprendemos,
dialogamos, nos emocionamos, muitas vezes, através da riqueza de seus
depoimentos, testemunhos, das alegrias e tristezas reveladas, das angústias e
esperanças depositadas, entrecruzando não só nossas identidades e memórias,
como nossas próprias vidas.
No próximo capítulo daremos continuidade à nossa trilogia de dados do
campo, apresentando e analisando as entrevistas com os diretores e funcionários
do Museu da Maré.
7
Os “narradores” da Maré
Esse capítulo de nossa tese continua fazendo parte da análise dos materiais
recolhidos nas entrevistas e observações de campo, trata da reflexão sobre os
depoimentos dos funcionários e diretores do Museu da Maré e o capítulo seguinte
tratará das incursões feitas pelo Livros de Depoimentos e de Assinaturas dos
visitantes do Museu.
O roteiro das entrevistas feitas aos diretores, funcionários do Museu da
Maré e um dos antigos moradores e liderança local encontra-se no Anexo 1.
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7.1
Quem são “os narradores”?
24
O capítulo desta tese sobre história da Maré se baseia principalmente em sua dissertação de
mestrado em Memória Social sobre a História da Maré, como já afirmamos anteriormente.
156
7.2
Afinal de contas, o que eles querem narrar?
7.2.1
“Por que o museu em favela ?”
Essa foi a resposta dada por JB à pergunta que lhe fiz quando o entrevistei,
ou seja, indaguei: Você acha importante ter um Museu na Maré, ou em qualquer
outra comunidade popular ? Sem dúvida, em meu trabalho de campo, um dos
achados de campo foi a confirmação da crença que tínhamos de que toda a
comunidade popular também tem muitas vezes a vontade e sempre o direito de
narrar sua história e construir sua memória.
nessas áreas carentes não existe só coisa ruim, que nós temos aqui,
graças a Deus, boas coisas que podem ser mostradas, não só para os
moradores do Rio de Janeiro como pra qualquer cidade, tanto faz
brasileira como estrangeira, que venha para ver de perto o que
significa a Maré.
Eu vejo que o Museu traz muitas coisas que as crianças podem ver,
desfrutar, verem como era antigamente as coisas e qual o grau de
melhoria que traz para a gente essa coisa toda... Então, vai criando
uma nova mentalidade.
Da luta que nós fizemos... Essa coisa toda! Então, eu tive em Nova
Holanda25 há pouco tempo, e de lá eu digo “Vou aqui por dentro para
cortar caminho”. Aí, a moça: “Não... pelo amor de Deus! Não vai por aí...
que tem uma facção que é contra o teu lado.”Aí, eu digo: “Não filha, não
tem problema!”. Acontece o seguinte, que essa turma toda que hoje são
malandros, eu vi nascer!”
Às vezes eu vô passando: “Oi, Seu Atanásio!” Não tem problema! Graças a
Deus!...o cara tá lá, com escopeta na mão...pra mim não tá dizendo nada!
25
A Nova Holanda é uma das comunidades da Maré surgida nos anos 60 com a remoção de
diversos moradores da Favela do Pinto, do Esqueleto, dentre outras, para aquela região, como
explicamos no capítulo 4.
158
Não percebo isso, o tráfico não impede ninguém de circular, pelo menos
eu não consigo ver, porque eu circulo para todos os lados. Só os mais
novos mesmo, que estão chegando há cinco, quatro, três anos que
provavelmente sentem esse problema, sentem esse medo! Ah, não vou para
o lado de lá, não vou para o outro lado por causa do tráfico.
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Te falar que cinco anos para o Museu tá bebê ainda. Claro que o Museu da
Maré hoje ainda tem é ... ainda precisa fazer uma ação mais efetiva de
divulgação, de ampliação em toda a comunidade. É difícil você trazer
pessoas do Parque União para o Museu da Maré, é muito difícil devido à
distância, até mesmo questões da região do tráfico mesmo.
O depoimento acima de Lourenço, mais uma vez nos remete ao fato dos
museus comunitários e os ecomuseus serem museus que caminham com o
movimento social, contra-hegemônicos, pois o próprio Museu da Maré já nasce
contestando, também, o turismo feito nas favelas da zona sul da cidade do Rio de
Janeiro. Ainda, sua entrevista nos oferece um rico depoimento ao nos falar do
empoderamento positivo que os diretores do Museu da Maré tentam dar à palavra
favelado, tão estigmatizada na sociedade brasileira. Cabe lembrar que o Museu do
Cantagalo -Pavão-Pavãozinho chama-se Museu de Favela – MUF. Faz parte desse
movimento de museus populares e de outros movimentos, esse tipo de iniciativa,
ou seja, ressignificar palavras estigmatizadas, dentre ações.
Quando perguntamos ao nosso entrevistado quais as maiores mudanças
geradas pelo Museu da Maré, Lourenço respondeu: Ah, quer ver onde eu vejo uma
mudança mais gritante? É no comércio, os comércios todos estão usando o nome
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(...). E aí, quando veio essa ideia do Museu, a gente achou meio louco. Aí, a
gente ficou meio assim: Ah,.... Depois eu fiquei sabendo que foi dos
encontros, dos fóruns...que conheceram Mário Chagas, que foi uma das
pessoas que incentivou e meio que disse que existia um caminho para o
Museu.
Então, foi um trabalho que foi... e a comunidade recebia muito bem tudo que
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Então, foi assim muito bacana essa coisa. E aí, lá no Museu da República, a
gente então, resolveu... tiramos esse projeto e a ideia era fazer uma
exposição sobre a Maré no Museu da República. Quando o Mário soube
dessa coisa da dona Orosina, ficou muito encantado. Então, nós vamos fazer
a volta da dona Orosina ao Palácio do Catete, aí, ele fazia uma conexão
entre palácio e palafita; palácio - palafita.”
É. Então, foi uma parceria muito bonita, disso ficou a exposição que eram
dois ambientes. Ficou uma exposição bonita, com fotos, e nessa exposição
nós colocamos, também, objetos e fizemos uma vitrine com objetos da dona
Orosina e muitas fotos, e dois ambientes, um ambiente palafita e um
ambiente alvenaria, que seria mostrando a transição da favela. E aí, eu
161
Que esse Museu venha resgatar mais histórias e auto afirmar essas pessoas
que trazem essas histórias. Que elas se empoderem disso, né, com a sua
autoestima também, que isso é muito importante! E que as pessoas que vem
após a gente, elas não deixem isso morrer; os jovens que vierem, as crianças
que vierem, elas segurem esse Museu, para que ele siga seu curso por
longas datas.”
7.2.2
“Porque ele nasce desse projeto político de identidade e
pertencimento”
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“Lá tudo é tenso, palco de conflitos variados. Tudo está submetido a uma
dramaturgia especial, as identidades são cambiantes, deslizantes e híbridas.
O trabalho com a memória da Maré não foge à regra: também ele é tenso,
denso e dramático, também ele pode ser utilizado como um dispositivo que
tanto serve para cerzir e produzir coesão social como para esgarçar e
fragmentar relações.” (Chagas & Abreu, 2007, p. 135)
Ah, com certeza o Museu da Maré, toda a sua construção foi feita
juntamente com a comunidade, né. Antes de toda essa história de Museu da
Maré, se fazia, se fez muitos e muitos encontros, fóruns, né, com os
moradores pensando nessa construção coletiva do Museu da Maré. Então, o
Museu da Maré é sim, comunitário e vêm junto, já que esse movimento, que
essa militância do CEASM com toda essa construção, assim como o
CEASM, também foi construído, também, por coletivo de moradores. O
Museu da Maré, também seguiu essa linha e como filho do CEASM, também
seguiu essa linha no movimento social.
Não, estritamente ele representa toda a Maré! Porque todo mundo que
conhece, que fala do Museu da Maré, fala do Museu da Maré, fala que
abrange a 16 comunidades. Então, ele representa a toda a comunidade.
(Entrevistadora pergunta): Então, ele representa? (...)
“Representa! Representa! Infelizmente não é bem frequentado pelas outras
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Além disso, a fala de “Seu” Atanásio nos traz a preocupação de afirmar que
o Museu representa a história de todas as comunidades da Maré. Segundo ele, o
que muitas vezes atrapalha são as divisões internas do próprio tráfico restringindo
e intimidando as comunidades no seu direito de ir e vir. Essa fala, também, nos
conduz à questão sobre identidade, ou melhor, do possível fortalecimento
identitário da comunidade, ou das comunidades, através da construção da história
e memória da Maré.
Para Halbwachs (1990), a memória coletiva é constituída de vários pontos
de referência importantes para a coletividade à qual pertencemos. Tais elementos
de referência - situações, monumentos, paisagens, músicas, comida etc - são
transmitidos pela tradição e podem ter sido ou não vividos pelos sujeitos, como é
o caso da palafita, onde diversos indivíduos viveram nelas e outros não. Portanto,
a base de uma determinada identidade é composta pelas referências culturais que
permitem um sentimento de pertencimento a um grupo.
26
Nessa fala “Seu” Atanásio refere-se ao tráfico e suas divisões internas e territoriais do próprio
espaço da Maré, o medo da população local em frequentar áreas fora do domínio da facção do
tráfico que manda naquele local de sua residência. Isso também foi por nós abordado na análise
das entrevistas dos pescadores.
165
Roquete Pinto e Rubens Vaz.27 Além disso, JB também nos chama atenção para
as fotos expostas no Museu, pois a maioria delas são das comunidades mais
antigas, como: Nova Holanda, Timbau, Baixa do Sapateiro, Vila do João, locais
também que tiveram muitas visitas de governantes e grandes construções
No entanto, embora pontualmente algumas comunidades não se sintam tão
representadas como nos afirma Terezinha, concordamos com Lourenço quando
afirma que os objetos do Museu são como palavras geradores que perpassam e
tocam a todos os moradores das comunidades da Maré e de diversas outras
comunidades populares. Os trechos abaixo de Chagas & Abreu (2007) ilustram o
que acabamos de expressar de forma mais clara e precisa:
27
Cabe lembrar que tanto Terezinha, quanto JB, foram e ela ainda é mediadora do Museu, logo
mantém um estreito contato com o público visitante e são guias dos mesmos nas visitas.
166
Essa relação a que Terezinha se refere nos mostra mais uma vez a
proximidade e a luta de comunidades populares – como a da Maré - que vivem
dramas e desafios, que devido à ausência do poder público, geraram a união dos
mesmos lutando por uma qualidade de vida, ou apenas para poderem sobreviver.
E são lembranças como essas que, segundo Pollack (1989), partilhamos através da
memória coletiva.
barraco, que era muito grande, mas não dentro da água, dentro do
aterramento. Mas, a família do meu pai morava toda; e nós circulávamos
diariamente, pois vínhamos visitar nossas tias e avós.
JB nos chama atenção em sua fala anterior sobre o apelo que alguns objetos
geram no público, principalmente nos habitantes da Maré. Sem dúvida alguma a
palafita é a mais emblemática peça do acervo do Museu da Maré.
167
Não, morei quase nas palafitas, quer dizer, morei nas palafitas, porque meu
barraco tinha uma parte que aqui era no chão, outra parte era em cima
d`agua, tinha uns pés de madeira. Eu não tinha barraco não, quem tinha era
ela, e quando nos resolvemos nos casar...
Também o depoimento acima de “Seu” Atanásio nos remete ao fato dele ter
vivido nas palafitas e à situação de dificuldade passada por diversos desses
narradores. Assim sendo, eles se assumem como protagonistas dessa história local
e da construção dessa memória que será exposta ao público, recontada e revisitada
em momentos diferentes por eles mesmos e pelos outros moradores da região.
Mais uma vez a marca de museu comunitário se coloca ao Museu da Maré quando
a população local assume a autoria dessa iniciativa e construção.
com esses banners. Trabalhava muito nas festas, também, com slides. Foi
um nesses slides que vi meus irmãos na palafita. Só que isso se perdeu,
parece que foi devolvido para a Caixa Econômica e pegou fogo lá. E aquilo
me chamou muito a atenção, porque eu vi todos meus vizinhos da palafita...
criança ainda.
Tinha, tinha muita palafita ali também, e a gente fazia... tinha um posto
médico que eram uns médicos voluntários que iam atender as pessoas lá, eu
trabalhava nesse posto ajudando a preencher as fichas das pessoas e
auxiliando a médica lá para fornecer remédio para as pessoas, enfim, a
gente também fazia visita às famílias, as famílias mais pobres, a gente
aproveitava e levava alguns alimentos também. Então, era um trabalho
assim, dessa natureza social.
168
Sim, ele trabalhou nos aterros. A pavimentação que eles faziam de cimento,
recebiam um material de concreto, aí, durante a madrugada, as pessoas
acordavam duas horas da manhã correndo desesperadamente com resto de
concreto, e tinham que espalhar aquele concreto até que endurecesse.
Então, era um trabalho muito sacrificante.
169
Eles (os museus comunitários) querem perpetuar sua existência, suas lutas,
suas conquistas e derrotas também. E eu, acho que o museu tem muito essa
função. Porque ele nasce desse projeto político de identidade e
pertencimento. Então, ele nada mais é que um instrumento pra perpetuar a
luta política, fundamental que é de garantia de melhorias, discussão do
“eu”, justiça social... Então, era uma coisa diferente. Aí, quando veio
“museu”, museu pra quem, né? Para os moradores da Maré. A gente não
imaginava que muita gente de fora iria vir aqui ver o museu, né? A ficha só
caiu anos depois, quando começaram a fazer várias matérias...”
melhor, para que ele existe. Mas, sua fala também nos traz a importância do
projeto político de fortalecimento identitário, de sentimento de pertencimento,
como nos elucida Halbwachs ao nos afirmar que a memória compartilhada é
aquela que é gerada pelo compartilhamento de lembranças comuns a um grupo de
pessoas, como a lembrança das palafitas, onde vários deles moraram e que se
deparam ao entrar no Museu da Maré; ou as fotos de vários momentos históricos
na favela, como carregar água no rola-rola, que é exibido nas fotos expostas na
exposição permanente do Museu, dentre outros exemplos que poderíamos dar.
Portanto, para Halbwachs as lembranças sempre são fruto de uma experiência
coletiva num contexto social específico.
É. Tanto é que quando você fala com o Luiz28, por exemplo, ele sempre fala
que o incomodo dele é que ele quer que a Maré toda entre no Museu, né? E
se a gente fosse nessa onda do Ecomuseu, a impressão que dá é que você tá
mostrando muito mais pra fora do que pra dentro, né? Porque na realidade
nossa discussão era de identidade, de pertencimento, não necessariamente
do Museu pelo Museu, né?
essa memória não seja esquecida, mas seja, principalmente, ensinada às gerações
mais jovens. No capítulo seguinte abordaremos esse assunto melhor quando
analisaremos os depoimentos de moradores jovens que não viveram nas palafitas,
mas sabem dessa realidade pela história oral contada pelas comunidades, ou por
seus pais e avós que viveram em tal época e naquelas condições de precariedade.
Appadurai e Breckenridge (2007) reforçam o que acabamos de expor sobre a
importância desse processo educativo, que vão denominar de informal.
28
Luiz Antonio é o terceiro diretor do Museu da Maré e do CEASM que eu infelizmente acabei
não conseguindo entrevistar. Mas, que sempre foi muito receptivo e colaborador com o meu
trabalho de campo, quer nas observações, quer nas participações no Grupo de Memória do Projeto
DaMaré executadas no Museu.
171
O depoimento acima nos ilustra o tanto que JB se envolve com paixão e arte
na divulgação da história da Maré, de sua própria comunidade.
Então, na verdade é... Esse ano com a minha saída é... Nós tivemos que nos
reorganizar, né, pra continuar esse trabalho. Então, hoje há uma equipe
interna composta por quatro pessoas que acompanham os trabalhos dos
mediadores. Mas, mesmo assim, eu dentro das minhas possibilidades, ainda
faço uma espécie de consultoria com a equipe até dezembro. Então, todos os
sábados eu venho fazendo formações extensivas de capacitação”.
29
Juvenal é um dos personagens principais de uma história do Livro Contos e Lendas da Maré,
intitulada “Casamento na palafita”, onde no meio da festa do casório, enquanto os convidados
dançavam, o chão da palafita caiu. Essa história é sempre contada com bastante alegria pelos
mediadores.dentro do espaço da exposição permanente do Museu da Maré.
172
7.2.3
“O Museu conta minha história, a minha história da infância...”
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Não, tinha uma coisa já nossa que era todo o projeto nosso independente do
que ele fosse que fosse, de dança, de educação... ele já abria com histórico
da Maré.
O depoimento de Lourenço se refere à pergunta que lhe fiz sobre O que vocês
pensaram neste sentido assim da metodologia para educar, para ensinar alguma
coisa pelo museu? Podemos perceber que sem nominar, os “narradores da Maré” se
preocupam em escrever essa história de resistência e luta, de dar-se a ler o mundo
“com olhos de ver”. Logo, o empoderamento passa por essa democratização da
história da Maré e esta só acontece de fato se for por caminho educativo.
Sim, e elas gostam muito assim, isso é muito bom, né. Um Museu que traz a
história da gente, tem as fotos da gente, esse registro...
reformar, se a casa tivesse caindo, mas não podia fazer novas casas. E
assim mesmo, só podia fazer com o mesmo material, não podia fazer com
material diferente. Então, nós, eu e um presidente da, do Parque União, com
a minuta com o Mário Andreazza me deu.
Não, é porque antigamente nas comunidades não tinha luz. A light chegava
na entrada da favela, plantava uma casinha ali, que duas pessoas da
comunidade se responsabilizavam pela luz. Então, ...
Toda essa história de luta contada oralmente por “Seu” Anastácio e outros,
se encontra narrada no Museu da Maré nos diferentes Tempos em que é dividido o
Museu. Chagas (2007) desvela o significado da divisão dos tempos no Museu da
Maré no trecho a seguir:
Goff (1999) nos sinaliza o quanto a história oral tem se firmado nos dias atuais. A
partir de 1950 nota-se uma valorização e mesmo exaltação da memória coletiva,
busca-se a memória não só nos documentos e textos, mas nos gestos, nas imagens,
ritos, festas, dentre outros.
30
A “Primavera dos Museus” é um evento que ocorre todo ano envolvendo os Pontos de Cultura
do Brasil inteiro, ou seja, os museu comunitários, ecomuseus ou Pontos de Cultura promovendo ao
mesmo tempo uma semana de discussões e atividades sociais e culturais em seus espaços.
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175
Eu lembro que teve uma vez que a gente fez uma transmissão do desfile do
Corações Unidos de Bonsucesso que foi um alvoroço, todo mundo correndo
um para avisar o outro que estava na televisão aquela transmissão, "Ah, no
canal..." - acho que era o canal sete, ou nove - "...está passando o desfile do
Corações Unidos". Aí, todo mundo correu para assistir, foi muito
interessante essa experiência também; e aí nós tivemos a ideia de fazer um
vídeo sobre a história da região. Depois da gente conhecer, de ouvir várias
pessoas falando e começamos a fazer um roteiro e a fazer também algumas
entrevistas. O roteiro tinha a ideia das entrevistas e esses moradores que
davam entrevistas, eles falavam muito, eles tinham um carinho muito grande
pela história de vida deles, pela história da comunidade, como é que eles
chegaram ali, de onde eles vieram...
É... moradores mais antigos, a gente procurou aquelas pessoas que eram
referência, o pessoal mesmo dizia: "Vai lá, entrevista o “Seu” fulano,
entrevista o “Seu Manel”, entrevista o Atanásio, entrevista o Agamenon”.
Então, as pessoas... “Ah, entrevista o “Seu” Albano, que é pescador”.
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Então, nós fomos fazer todas essas entrevistas e essas entrevistas foram um
marco, porque elas revelaram uma memória do lugar que a gente não
conhecia
Isso. Na realidade eu conheci foi o CEASM, meu irmão foi lá fazer o pré
vestibular, uma das primeiras turmas, em 98. Aí, naquela época eu
trabalhava em loja e não tinha como fazer o pré vestibular. Então, o
CEASM, na época estava contratando pessoas pra trabalhar num projeto,
num trabalho de prestação de serviços que tinha para a Light. E aí, eles
fizeram um concurso público na Maré. Aí eu fiquei em primeiro pela Vila do
João, que era um por cada comunidade. Aí, foi quando eu conheci o
CEASM. E aí, a partir disso, também, eu conheci a Maré, através desse
trabalho, porque era um trabalho que a gente ia de casa em casa. Aí, a
gente redescobriu a Maré! Era um trabalho de educação, de consumo de
energia. E foi muito legal. Aí, logo depois, no ano seguinte, aliás, no final do
ano de 98, quase 99, eu entrei para o vestibular. (...)continuei a fazer o pré-
vestibular e envolvido com um monte de coisas. Militância já dentro do pré-
vestibular. (...)´Aí, eles me chamaram pra trabalhar. Na verdade, eu fiz
prova do IBGE, passei, mas abri mão para trabalhar no censo daqui. Aí,
voltei para o CEASM. Mas naquela época dentro do CEASM já se discutia
essa questão da memória da Maré. E se eu não me engano, em 99, já
estavam fazendo a rede de memória.... começando a nascer o jornal.
177
Habitação. Então, a gente juntou essa coisa da Eliana estar lá: "Ah tá,
vamos tentar fazer alguma coisa? Vamos tentar reativar o PT aqui na
Maré?" e começamos a fazer as reuniões no espaço onde hoje é o CEASM
do Timbau, que era um espaço que o pessoal chamava de CETOT. Estava
muito degradado, algumas famílias estavam morando ali...
E o Arquivo Orosina Vieira ele teve esse nome justamente por causa da
figura da dona Orosina, porque a gente quando fez a questão do vídeo, nós
acabamos descobrindo que a dona Orosina era uma figura fundamental.
Dona Orosina era uma moradora antiga. O pessoal dizia que era a mais
antiga; não era, depois a gente viu que tinha um pessoal da Praia de
Inhaúma, tinha os familiares do Conrado das Neves, que foi proprietário
daquela região e que a Maré também tinha sido formada por vários núcleos
de ocupação. Então, não era assim, cada núcleo tinha uma história, tinha
uma questão política envolvida de cada tempo. Então, a Maré não era uma
coisa única.
Chagas & Abreu (2007) nos afirmam que existe essa vontade de memória,
vontade de patrimônio e vontade de museu de diferentes grupos sociais, como nos
deparamos todo o tempo nas falas de nossos entrevistados.
7.2.4
“O Museu da Maré é um aparelho muito visual e auto educativo”
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Não, ele não representa, ele não representa e acho que nem pode representar,
é inviável representar, porque a gente tem aí, 16 ou 17 favelas, cada uma com
histórias diferentes umas das outras. E o que eu acho, que gosto do museu, é
que ele é, sabe aquilo que o Paulo Freire chama de palavras geradoras, o
museu para mim é isso: ele tem alguns objetos que fazem isso com a sua
mente, e você vê aquela foto, tanto é que ele não tem um roteiro, embaixo
assim desta foto aqui é referente a num sei o que ... num sei o que, porque
fulano fez tal, o museu não tem isso. Isso acho legal, porque a história, ela é
muito particular, a relação da pessoa com aquele objeto é muito particular.
Então, a pessoa olha aquela foto, aquela foto, abre uma gaveta na memória
da pessoa e vai transbordar aquele montão de coisas.
É, já era Rede de memória, mas um dos trabalhos da... porque o CEASM era
dividido em redes: rede de educação, rede de cultura, rede de memória, rede
de trabalho, rede de não sei o que, era tudo baseado nesse princípio de redes.
Então, toda a minha formação hoje como cidadão, né, vem do Museu da
Maré. Nesses cinco anos o Museu me proporcionou muitos aprendizados
enquanto profissional, enquanto pessoa, enquanto morador mareense,
né! Nesses cinco anos eu pude construir uma identidade, né, enquanto
pessoa, enquanto profissional; eu pude valorizar ainda mais o lugar
onde eu moro, as pessoas que me rodeiam.”
E já tiveram assim diversas falas de: “Olha, esse é o primeiro museu que eu
visito, né!”. Isso também é importante, né,? Essa referência hoje do Museu
da Maré. Eu fiz também um trabalho em uma escola no ano passado pelo
Museu da Maré, onde descobri que o plano pedagógico da escola era
justamente a memória local.”
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Esse trabalho é fazer o resgate histórico da Maré, né, com todo o nosso
acervo, tanto bibliográfico quanto de foto. Aí, eles conhecem e diante disso
a gente também faz uma exposição dentro do Museu da Maré, fala para ele
de cada espaço, de cada tempo, porque o Museu é dividido em doze tempos.
Então, de cada tempo, a partir daí, eles visualizam e começam a reproduzir
o que eles viram enquanto contamos para eles o que é o Museu da Maré e
essa tarefa é diária.”
31
No momento da entrevista JB ainda estava trabalhando no Museu da Maré, mas já em horário
restrito, pois estava deixando o trabalho lá para desenvolver um trabalho do gênero na Colônia
Juliano Moreira num Projeto vinculado à Fiocruz.
182
Assim sendo, mais uma vez fica claro que o Museu da Maré, como todo e
qualquer museu, possui um potencial pedagógico (Mesquita, 2006).
O Museu vem com a prática educativa quando ele traz as pessoas para
discutirem, né, a sua situação enquanto morador da Maré. Pré-vestibular,
ele fazia isso, ele trazia outras pessoas, ás vezes até de outras línguas.
Então, tinha um grupo muito grande de professores, também graduados,
pós-graduados, que vinham discutir dentro do Museu da Maré com os
alunos do pré-vestibular do CEASM.
(...) Porque dentro disso eu que, eu acho isso, os garotos que não entram
aqui, os garotos que não estão inseridos num (...) na questão educacional,
eu acho que é porque eles fazem parte de uma rede. Então, qual era a minha
ideia?! Esse espaço aqui deveria ser um espaço que influenciasse as redes,
que criasse uma outra rede. Então, um garoto que tá fora da escola, ele tem
uma rede dele, só de garoto fora da escola. Meu sobrinho faz parte desta
rede, não quer estudar de jeito nenhum, mas quando ele entra aqui, ele
entra em outra rede.
Museu, tudo era muito assim, muito a partir de experiências, e com essa
parte educativa assim, também não foi diferente. Então, a gente teve ali o
curso, a questão das entrevistas, o interesse das escolas da região pela
memória e pela história; a última página do jornal "O cidadão", que vinha
com a memória da Maré, era o nome da página com a história em capítulos,
fez um sucesso muito grande. Esse texto era usado nas salas de aula e os
professores começaram a demandar para os alunos pesquisas sobre a
história local. Então, isso nos chamou a atenção, ao mesmo tempo em que
você via o interesse desses alunos, você via que havia toda uma ... eles
tinham uma relação diferente com essa coisa da memória do lugar onde eles
viviam, que eles não conheciam, as mudanças que aconteceram ali. Então,
foi muito interessante [...]. Então, chamou a nossa atenção, e a gente viu
que precisava começar a desenvolver também, algumas ações que tocassem
mais os alunos da rede, os professores, que a gente pudesse também apoiar
esse trabalho que eles estavam desenvolvendo sobre a história local... E aí,
começamos a fazer assim, a pensar, primeiro a questão da construção de
história. Eu acho que é uma coisa ultra, super educativa, no sentido de que
você faz a encenação, a teatralização de histórias locais, e que criam um
contexto que abre possibilidade de você estar conversando e
contextualizando a forma de vida das pessoas ali no lugar. Então, foi uma
atividade bem interessante, [...] organizou um curso, é um curso de
contação de histórias, divulgamos esse curso e vieram várias pessoas fazer
esses cursos.
Carlinhos também nos “fala” acima sobre como as práticas educativas foram
sendo construídas. Em todas essas atividades identificamos o tempo todo uma
função inerente e visceral ao Museu da Maré, suas práticas educativas imersas no
universo cultural local.
É, por aí, 2005, 2006. Foi nesse processo que a gente começou já com essa
preocupação. Porque a preocupação da interlocução com as escolas, ela
184
A fala acima de Carlinhos nos confirma que mesmo pelo bom senso ou pelo
lugar da experiência, sempre houve uma busca, mesmo que não consciente por
uma prática educativa baseada na vivência para que a história da Maré fosse
divulgada e aprendida pelos alunos das escolas do entorno e prioritariamente
moradores daquela região.
É o arquivo lá, com fotos, com material, que sempre é muito utilizado pelos
alunos das escolas, exposições das escolas. Mas quando a gente fala em
educação, a gente não está falando só em escola, do ensino formal... (...). A
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Ainda Carlinhos nos presenteia com a fala acima sobre o fato do Museu por
si só ser educativo. Esta afirmativa nos remete a Kersten & Bonin (2007, p.120)
quando nos dizem que os museus tem como principais funções educar e entreter.
Também, se mostrou em nossa entrevista com uma visão ampla da educação, não
a restringindo apenas ao espaço escolar.
185
Chagas & Abreu (2007) nos falam da importância dessa memória depositada
e construída no Museu da Maré possibilitar o ressignificado da geografia cultural
da cidade.
Eu tô atuando, não tem nem trinta dias ainda. Tem pouquíssimo tempo que
eu tô... Então, não tenho como dar respostas concretas para você, porque eu
só percebo o seguinte, que o projeto “Prazer em ler”, que é da C&A,
patrocinado pela C&A, ele traz essas crianças para virem participar dentro
de uma biblioteca. Dá acesso a essas crianças a uma biblioteca, com um
acervo bem rico, e também ele... profissionaliza, ele prepara essas pessoas
para virem trabalhar na biblioteca do Museu da Maré, o nome da biblioteca
é Elias José:”
Pelo que nos disse acima Terezinha, o Projeto “Prazer em ler” funciona na
Biblioteca Elias José e traz muita alegria para a garotada. É um projeto de
incentivo à leitura e envolve profissionais competentes. Porém, o que nos chama
mais a atenção é o fato dele funcionar dentro das dependências do Museu da
Maré. E é tratado pela comunidade que frequenta o Museu, assim como pelos
funcionários e diretores do Museu como atividade do próprio Museu. Sendo
assim, mais uma vez nos revela um outro conceito de museu: um museu que de
fato vem ao encontro dos anseios da comunidade, serve ao movimento social e à
celebração da vida e do ser humano, como nos revela abaixo Vieira (2007).
7.3
Retomando nossas narrativas iniciais ou “A possibilidade de você se
emocionar!”
Uma outra conclusão que pode parecer óbvia, mas é recorrente nas respostas
de nossos entrevistados é o reconhecimento unânime do papel do Museu da Maré
para a comunidade como um todo. Embora vários deles tenham nos falado da
necessidade de o Museu contemplar mais algumas comunidades, que ainda se
sentem pouco representadas nesse espaço, todos ratificaram a importância do
Museu da Maré para a comunidade em geral.
Um outro item colocado de forma diversa, mas sobre o mesmo tema, é o
fato de todos acharem importante que se vençam os preconceitos e a guetificação
sociais e econômicas e o Museu da Maré seja um Museu para além da
comunidade, para a cidade, o país e o mundo.
Somente alguns “narradores” percebem no teatro uma forma de linguagem
utilizada para didaticamente contar as memórias narradas no Museu da Maré.
Por fim, constamos o quanto as redes educativas do cotidiano emergem nas
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8.1
O Livro de Assinaturas
8.1.1
Visitantes do Ano de 2009
Gênero
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Masc.
43%
Fem.
57%
32
Alguns visitantes ou usuários do Museu da Maré no item localidade do Livro de Assinaturas
escrevem, às vezes, o nome da instituição a que estão vinculados. E em geral, quando fazem isso,
não escrevem o nome do local em que moram.
33
A Maré possui diversas escolas municipais de Ensino Fundamental, segundo Nobrega Júnior em
2007 contabilizavam 16 unidades. Dentre elas, temos escolas bastante conhecidas na região, como
por exemplo: o CIEP Sérgio Perneta e a Escola Municipal Bahia.
191
Idade
A c im a 60
41 a 60
1% Até 10
10%
18%
31 a 40
10%
21 a 30
17%
11a 20
44%
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Ins tituiç ão
O utros
31%
E sc ola
Munic ipa l
59%
Unive rsida de s
10%
192
B a ix a do S a pa te iro
16%
Vila do J oã o
7%
T im ba u
2%
S a lsa e Mereng ue
R oqu ete P into R
2%u ben s Va z
0% 1%
P ra ia de R a m os
0% Nova Ma ré B en to R ib eiro Da nta s
2% 20%
P a rq ue Un iã o
1% No va Ho la nd a
8%
Ma rc ílio Dia s
P a rq ue Ma ré C onjunto P inh eiros
C onju nto E spera n ça
0%
1% 5% 3%
Mostraremos no item a seguir referido ao ano 2010 que parte desses dados da
origem dos visitantes se invertem, pois o Timbau passa para primeiro lugar em
número de visitantes, pelo menos entre os que declararam a sua origem de localidade.
Ainda em números quantitativos podemos analisar outro gráfico abaixo que
nos mostra que 60% dos visitantes do Museu são do município do Rio de Janeiro.
Em segundo lugar a população que mais visita o Museu da Maré
surpreendentemente, empatada com aquela originária do estado do Rio de Janeiro
34
Fogo Cruzado é uma alusão às ações da polícia contra os traficantes naquele local.
194
Orig em E xterna
Outro P aís
14%
2%
R e g iã o S ul
1%
R eg ião S udeste
6%
Munic ípio do R io
60%
E sta do do R J
14%
localidade, 59% são do município do Rio de Janeiro, tem entre 11 e 20 anos e são
alunos das escolas municipais, nos parecendo ser a maioria da própria Maré35.
Paralelo a essa conclusão nos deparamos com outra que já abordamos acima,
é o fato de que o grupo que mais visita o Museu da Maré é o do município do Rio
de Janeiro, depois vem empatado percentualmente os grupos de moradores do
estado do Rio de Janeiro e de estrangeiros. Na nossa observação de campo por
diversas vezes encontramos um grupo de holandeses36 bastante entrosado com a
comunidade, quer pintando os prédios do conjunto arquitetônico que compõe o
espaço do Museu, quer jogando bola no pátio ou participando da “Maré do
Samba”. Afora isso, nos deparamos também com alemães levados pelo Instituto
Goethe, franceses que ouviram falar do Museu e tinham interesse particular em
conhecer, dentre outros.
Em terceira colocação nos deparamos com os visitantes do Sudeste em geral.
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35
Percebemos que a maioria dos alunos devem ser de escolas municipais da própria Maré, já que
vários colocam os nomes das mesmas e sabemos que elas se localizam nas comunidades da Maré.
Porém, como não conseguimos o tabelamento de todos esses dados porque nem todos colocam o
nome da escola que estudam,, não podemos afirmar com toda a certeza que todos ou a maioria são
de lá, mas há grandes indícios que o sejam.
36
Alguns desses holandeses vieram para o Rio de Janeiro e aqui se instalaram para uma temporada
e como voluntários ligados a uma instituição holandesa estavam pintando as paredes externas do
Museu da Maré. O que de fato tornou-o mais bonito e agradável, bem colorido conforme fotos
mostradas em capítulo anterior.
196
fazer diversas deduções, como: isto se deve ao fato de tratar-se de grupos sociais
de menor poder aquisitivo e dificuldade de locomoção maior, ou o próprio fato de
haver menor longevidade nas camadas populares devido às circunstâncias de vida
inferiores, dentre outras causas. Enfim, não temos dados suficientes para
aprofundarmos essa questão, mas podemos levantar algumas pistas.
Como sexta conclusão percebemos que dos visitantes que declaram a que
instituição estão relacionados, o grupo que mais frequenta o Museu da Maré
depois dos escolares, são indivíduos ligados às universidades, quer sejam
universitários (em grande número) ou professores universitários e/ ou
pesquisadores. Porém, uma expressiva população dos visitantes não declara
instituição a que está vinculado, se é que está.
8.1.2
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A maior parte dos visitantes do Museu da Maré, ou seja, 36% tem entre 11 a
20 anos37. Sendo que dos visitantes que declararam sua instituição de origem,
87% (422) são de escolas municipais (a maioria delas das comunidades da Maré
ou de seu entorno). Conforme mostramos a seguir no gráfico 8.
37
Cabe lembrar que mais da metade dos visitantes não declararam idade.
199
8.1. 3
Entrecruzando os dados
declarou sua instituição e em 2010 só 7%. Será que as escolas municipais e seus
professores em suas visitas se preocuparam mais em fazer os alunos assinarem o
livro de visitações e declararem o nome de suas escolas? Será que os guias do
Museu da Maré ficaram mais atentos no pedido dessas anotações nos livros de
visitação do Museu? Não sabemos, mas o fato é que em 2010 há dados mais
precisos em relação às instituições de origem. Ainda assim, uma expressiva
população dos visitantes não declarou a instituição a que está vinculado ou não
tinha nenhuma instituição a declarar.
Também como mudanças percebemos que em 2010 o Museu teve uma baixa
no número total de visitantes, de 7803 em 2009 para 3080, ou seja, menos do que
a metade do número de visitantes. Paradoxalmente aumentou significativamente
seu número de visitantes estrangeiros, o que de certa forma fala a favor da
intenção de alguns dos diretores entrevistados que não desejam que o Museu da
Maré seja apenas um museu da comunidade, querem que ele seja um museu da
cidade, do país e do mundo. Em relação ao restante das regiões brasileiras já não
podemos afirmar o mesmo, pois os números baixos de visitações permanecem
percentualmente inalterados, mas em relação aos estrangeiros os dados mostram
que sim, houve um crescimento percentual no número de visitantes. Com certeza
haverá diversos outros motivos para esse crescimento de visitantes estrangeiros,
além do que Appadurai & Breckenridge (2007) nos alertam genericamente que há
uma expansão da “indústria do patrimônio”,como escrevem na citação abaixo:
204
“É, também, verdade que os museus em toda parte parecem estar cada vez
mais envolvidos com experiências de veículos de comunicação de massa
(Lumley, 1988). Finalmente, os museus em toda parte parecem estar em
expansão na medida em que a “indústria do patrimônio” (Hewison, 1987)
decola.” (Id, p. 23)
8.2
O Livro dos Depoimentos
Viktor. 2007, p. 1)
O trecho acima foi retirado do texto de Viktor Chagas (id) denominado Museu
é como um lápis, fonte de minha inspiração para analisar alguns depoimentos e
recorrências no Livro de Depoimentos relativo aos anos de 2009 e 2010.
8.2.1
De visitante a usuário: acompanhando Brenda
Cabe lembrar que além de todas as atividades oferecidas acima pelo Museu
da Maré, ele oferece um site extremamente informativo e bem elaborado.
Sendo assim, nesse tipo de museu pró-ativo encontramos alguns pontos
reincidentes deslizando pelos depoimentos dos Livros do Museu. Por exemplo, há
várias crianças/ adolescentes que vão conhecer o Museu e ficam indo lá repetidas
vezes e assinam várias vezes também, tantas quantas forem ao Museu. Nesses
depoimentos encontramos muitas “falas” como a de Lilian Britto Shumlesh em
março de 2009 que afirma: É muito legal (sic) gostei apesar de ter vindo umas
500 vezes (sic) muito legal. Ao buscarmos no Livro das Assinaturas mais
informações sobre a Lilian não encontramos diretamente, pois ela não declara sua
localidade, nem escola que frequenta e também não diz sua idade. Porém, pela
proximidade com outras Assinaturas de crianças entre 11 e 13 anos, trata-se
provavelmente de menina de 11 /12 anos e moradora da Baixa do Sapateiro, pois
206
um pouco acima de sua assinatura no Livro das Presenças há uma outra pessoa,
provavelmente parente - com o mesmo sobrenome dela- que se declara da Baixa.
Outro depoimento anônimo e enfático nos diz Gostei, vim 11 vezes, ou ainda
Eu adorei o museu, venho aqui sempre que posso! BJKS!! (Sic) Foi muito legal
Juliana. Juliana é provavelmente mais uma menina entre 14 a 16 anos moradora
ali da Maré, provavelmente também da Baixa do Sapateiro, porque seu nome foi
assinado no meio de alunos de uma escola e nessa faixa etária.
A maioria dessas crianças ou adolescentes são moradoras do entorno, logo o
Museu faz parte do cotidiano das mesmas e se torna referência em suas próprias
vidas já que elas passam por lá cotidianamente, pedem para beber água, ir no
banheiro, brincam na “casinha”, como chamam a palafita, correm pelo pátio etc.
Marceley nos diz em novembro de 2010: Eu adorei a casinha e tudo.
Ainda inspirada na experiência de Viktor Chagas (2007) que acompanhou o
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Uma provável colega de Brenda chamada Natalia, escreve logo abaixo dela
no dia 20/04/2009 e faz um depoimento interessante: “(Sic- é desenhado um
coração) Oi meu nome é Natalia tenho 12 Anos Adorei tudo do museu. (sic) é tudo
muito importante para sabermos como era o mundo antigamente Vocês estão de
Parabéns ! (sic – desenha um coração) Beijos: Natalia.
Como já escrevemos outras crianças e jovens pegam livros emprestados na
biblioteca do Museu, ou participam da sala de leitura, outras do PET ou ainda dos
cursos oferecidos no Museu, além de receberem toda a mensagem museográfica
transmitida na visita à exposição permanente e às temporárias do próprio Museu
através da livre observação e/ ou das explicações dos guias do espaço museal.
Portanto, mais uma vez o Museu se apresenta como um espaço não formal de
educação sob vários ângulos, tanto nas visitas às exposições, quanto na participação
nos cursos lá oferecidos de forma não escolar, mas sistematizada, não formal.
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38
Uma das exposições temporárias do Museu da Maré foi a”Exposição Anne Frank – Uma história
para hoje” que ocorreu de setembro a novembro de 2010 no Centro de Referência da Educação
Pública do Rio de Janeiro, no Museu da Maré e no Centro Cultural de Santa Cruz Dr. Antonio
Nicolau Jorge. Além da exposição houve também palestras com uma senhora sobrevivente do
holocausto aberta à comunidade e a algumas escolas públicas próximas.
209
8.2.2
Os eixos temáticos
depoimento que Isabela é uma moradora da Maré e que sua mãe morou nas
palafitas, e ela valoriza e percebe as melhoras materiais na comunidade. Porém,
no Livro de Assinaturas não encontrei mais informações sobre ela.
Também, achamos vários depoimentos que falam da alegria de saber como
era a vida antigamente, da emoção de ver como a mãe ou o pai viveram, de
conhecer a história da Maré e declarações semelhantes. Sendo assim, percebemos
que em todos esses tipos de declarações nos deparamos com o fato de haver um
grande desconhecimento prévio da história da Maré anterior à visita, Mas, através
da mesma novas informações são recebidas, introjetadas, recolhidas, somadas e
porque não, aprendidas sobre a história da Maré e a memória local. Mais uma vez
me deparo a possibilidade de subjetividades transformadas (Silva, 1999) deixando
claro o alcance da dimensão educativa do Museu. O depoimento de Rosa Gabriela
em 21/09/2009 confirma isso: Eu achei super interessante, pois explica não só
para mim quanto pra todas as pessoas que o mundo antigamente era bem
diferente de hoje !!; ou ainda, o depoimento de Thais Can que diz “Relembrei
muitas coisas da minha infância, vou voltar com minha filha para que ela reviva
comigo tudo isso!”.
O segundo eixo temático é o da memória. Thayane foi com sua avó Josenia
ao Museu da Maré. Ambas são moradoras da Vila do Pinheiro e não declaram
suas idades, nem na possível instituição escolar de Thayane. Esta dá o seguinte
depoimento: Rio, 20/07/09. Thayane Ramos Soares da Silva. Foi bom conhecer a
210
avó e vice-versa, compreendendo assim o que Ricoeur (id) afirma ser a memória
afetiva. Tanto o que fica na memória da avó, quanto da neta passa diretamente
pela afetividade.
Em final de julho de 2009, Cláudia dá o seguinte depoimento: Trouxe várias
memórias! Obrigada!”. Neste depoimento memória também está associada a
lembrança. O que queremos lembrar e o que queremos esquecer. Com certeza o
Museu da Maré e muitas pessoas das comunidades – como Cláudia – agradecem
ao Museu por ter trazido as lembranças que não querem esquecer.
Essa correlação entre as lembranças dos moradores – como Thayane,
Josenia e Cláudia- e o que o Museu da Maré apresenta na sua reconstrução de
memórias locais formam a base comum imprescindível que Halbwachs (1968)
associa ao testemunho, como exposto no trecho abaixo:
“Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que eles nos
tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre
ela e as outras para que a lembrança que os outros nos trazem possa ser
reconstruída sobre uma base comum.” (id, 1968, p.12)
O último eixo a ser analisado é o que tem a ver com os depoimentos dos
estrangeiros, já que estes foram o grupo fora da Maré que mais visitou o Museu
num ano (2010) e em segundo lugar, no outro (2009). Resolvemos dar alguns
exemplos de depoimentos recebidos, como o de Soledad, argentina que declarou:
Qué bueno es vernos y reconocernos, es lucha, el trabajo, los miedos, la resistencia
y los sueños. Buena lucha! Soledad La Matarza – Argentina” Soledad não data
seu depoimento, tampouco escreve sua idade ou instituição que possa estar ligada,
porém suas palavras são claras na valorização daquele espaço, nas memórias de
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8.2.3
Que aspectos destacar ?
Foi preciso coragem para começar essa caminhada, mas também, é preciso
coragem para finalizar a mesma, ou melhor, encerrá-la “provisoriamente”. Um
objeto de estudo tão querido e tão trabalhado deve ser deixado, no mínimo em
descanso... Depois do imenso caminho percorrido chegamos a algumas
conclusões e muitas reflexões. Quantas histórias vividas, quanto estudo e
interlocuções postas, quantas trocas intelectuais e afetivas, mas a hora é de saber
encerrar, para que possamos à frente continuar nossas buscas e inquietações
acadêmicas e existenciais...
O objetivo básico desta tese foi identificar e analisar a dimensão educativa
do Museu da Maré através da ressignificação da história e da construção das
memórias locais podendo, facilitar um empoderamento identitário de grupos
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plurais.
Ricoeur (2007) nos fala das lembranças e dos esquecimentos, do que queremos
lembrar e esquecer, Pollack (1989) também. Quais são os “silêncios” da história
daquelas comunidades não representados naquele (s) museu(s)? Com certeza todo o
trabalho de memória envolve sua tensão com a história, e são os esquecimentos que
possibilitam a sua reescrita da história, o devir (Ricoeur, id). Ao mesmo tempo em
que vários pescadores foram entrevistados e em seguida, conheceram o Museu da
Maré, se emocionavam ao verem as fotos antigas de seus “barraquinhos”, ao entrarem
na palafita etc. Isto também fica registrado no Livro de Depoimentos quando alguns
moradores “reclamam” porque queriam mais fotos de suas comunidades e não viram,
ou algo semelhante. Porém, é dialeticamente isto o que permite a sua própria
renovação, a sua reinvenção, o seu dinamismo, a sua recriação!
Por fim, nos deparamos com o eixo nodal de nossa tese, ou seja, as questões
sobre educação propriamente ditas relacionadas a memória e identidade, são elas: O
Museu da Maré possui preocupação com programa educativo auxiliando no
fortalecimento identitário? Qual o caminho educacional escolhido pelo(s) museus
comunitário(s ) para a exposição museográfica? Como é a sua prática pedagógica
museal?Esse tipo de prática educativa facilita a democratização do acervo e o
fortalecimento de identidades de resistência? Observamos que o Museu da Maré
constrói estratégias de possível fortalecimento identitário tanto dos pescadores,
quanto de outros sujeitos coletivos da região da Maré, tendo em vista se configurar
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Por fim, a Nova Museologia nos traz novos conceitos de museu, alargando
suas fronteiras tradicionais como nos afirma Aquino (2007). O Museu da Maré,
como um representante dos museus comunitários, gera visões “de nós e dos
outros” estabelecendo um jogo sutil e constante entre identidades e alteridades em
suas memórias construídas e histórias narradas que possibilitam fortalecimentos
identitários de resistência e de projeto, como nos afirma Castells (1999), tendo em
vista valorizar as memórias locais e ressignificar a história da região, fatos que
sem dúvida nenhuma podem favorecer o empoderamento das comunidades da
Maré em suas lutas políticas, sociais e culturais. Enquanto o Museu da Maré atuar
nessa tensão entre o “nós e o outro”, ele se faz cotidianamente comunitário e
referenciado na coletividade como um importante “lugar de memória”,
possibilitando a reconstrução do passado e a transmissão de valores, práticas
sociais e culturais, logo de identidades por extensão.
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nos fazem pensar e refletir sobre o futuro dos ecomuseus e dos museus
comunitários e, em especial, do nosso objeto de estudo, o Museu da Maré . Quais
serão os fluxos vindouros das “marés” no Museu da Maré ?
Para concluir nos remetemos à alegoria trazida pela citação abaixo de Ecléa
Bosi (1979) e relacionamos memória aos espaços educativos não formais:
Como nos afirma Bosi (id), a função da memória para os gregos antigos
significava vidência e êxtase. É com tal alegria e êxtase que esperamos construir
memórias através também de vivências extra -muros escolares nos espaços
educativos não formais e especialmente, nos “lugares de memória”, como os nos
museus comunitários. O experimento de vivências educativas diferenciadas
assegura, com certeza, uma ampliação da cidadania cultural.
Espero ressignificar a memória como esta aparece no conceito de
rememoração em Benjamin (1985), revisitando o passado para criar um presente e
futuro mais justos e igualitários para a construção de uma memória mais
equânime, segundo Ricoeur uma memória feliz (Ricoeur, 2007). Lembrando mais
uma vez Sarlo, a memória não é só um direito, é um dever, uma necessidade
moral, jurídica e política (Sarlo, 2007).
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HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
Anexos
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Anexo 1
I- Dados gerais:
II – Entrevista
12. Você acha que o Museu da Maré tem práticas educativas? Quais?
13. Você pensa que as identidades dos moradores da Maré podem ser
fortalecidas pelo Museu da Maré ? Como isto se dá ou poderia se dar?
15. Deixe registrado algo que você acha importante sobre o Museu da Maré.
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Anexo 2