Artigo Bruno Gilaberte
Artigo Bruno Gilaberte
Artigo Bruno Gilaberte
No que concerne à masturbação, por exemplo existiam diversas posições: (a) crime de
estupro (art. 213 do CP, adotando-se a vaga e criticável ideia de violência simbólica); (b)
estupro de vulnerável (art. 217-A do CP, especialmente quando a vítima era atingida em
situação de temporária vulnerabilidade, como ao dormir no transporte público); (c) violação
sexual mediante fraude (para quem deixava de lado a interpretação analógica exigida pelo
art. 215 do CP); (d) ato obsceno (que considerávamos a mais correta, em que pese a
inconstitucionalidade do art. 233 do CP, apontada por boa parte da doutrina nacional); e a
contravenção penal de importunação ofensiva ao pudor, que se encontrava no art. 61 da
LCP e foi revogada pela lei ora em apreço.
Teoricamente, a nova incriminação alcança boa parte dessas situações, mas nem de longe é
suficiente para resolver os problemas.
De início, já parece criticável a expressão “praticar contra”. É uma inovação em relação aos
crimes de estupro e estupro de vulnerável, que usam a palavra “com”, ao invés de “contra”.
Quando a norma diz praticar “com”, a palavra pressupõe que o ato recaia sobre o corpo da
vítima, ainda que esta adote uma postura passiva, ou que não haja contato físico entre autor
e vítima.
Por exemplo, apalpar os seios da vítima enquanto está distraída é um ato praticado com a
vítima; obrigar a vítima a se desnuar e contemplar seu corpo nu, também (não se quer dizer,
com isso, que em ambos os casos haja estupro ou estupro de vulnerável; os exemplos se
limitam à expressão estudada).
Em ambos os casos, o ato é praticado com a vítima. “Contra” a vítima, imaginamos, pode
contemplar a hipótese em que esta é atingida pelas consequências do ato praticado pelo
agente, resultado por ele pretendido. Por exemplo, ejacular sobre a vítima, ainda que não
haja qualquer toque em seu corpo ou sem qualquer participação corporal desta no ato
libidinoso em si, embora não seja um ato praticado “com” a vítima, é praticado “contra” ela.
De toda sorte, parece-nos que o legislador poderia brindar a norma penal com uma redação
mais precisa, o que não ocorreu. Da forma como veio à lume, ela flerta com a ausência de
taxatividade.
Outro ponto importante: se o dolo do agente não é o de praticar o crime “contra” a vítima,
mas esta é atingida por descuido ou acidente, não se caracteriza o crime do art. 215-A. O
sujeito que, v. g., se masturba em um coletivo sem a intenção de ejacular sobre ninguém,
mas cujo esperma acaba respingando em outrem, pratica crime diverso (possivelmente, ato
obsceno, mas para quem advoga a inconstitucionalidade do delito, a conduta é atípica).
Aliás, o crime de importunação exige um especial fim de agir, qual seja, a intenção de
satisfazer a lascívia própria ou de terceiro. Essa intenção abrange o fato de a conduta ser
praticada “contra” a vítima. Em outras palavras, essa é a forma através da qual o agente
alcança a satisfação da lascívia.
O texto é bem mais adequado, pois permite a devida gradação da pena de acordo com o
meio executório mais gravoso. Na redação atual, o agente que constrange a vítima
mediante grave ameaça, obrigando-a a observá-lo enquanto se masturba, terá a mesma pena
daquele que, aproveitando-se do metrô lotado, esfrega seu órgão genital nas nádegas da
vítima (em ambos os casos, crime do art. 215-A).
Sendo um tipo penal expressamente subsidiário, o art. 215-A também não resolve a antiga
discussão sobre quais são os atos libidinosos aptos à caracterização do estupro.
Pensamos que o art. 213 do CP exige a interpretação analógica: só podem ser considerados
atos libidinosos caracterizadores do estupro aqueles tão reprováveis – ou mais reprováveis –
que a conjunção carnal. Ou seja, carícias, beijos, o ato de desnudar e outros não integrariam
o âmbito do art. 213 (desde a reforma promovida pela Lei n. 12.015, frise-se).
Todavia, poderiam se subsumir ao atual art. 215-A. Entretanto, a questão não é pacífica –
basta a referência à posição do STJ sobre a contemplação lasciva (RHC n. 70.976-MS) – e
nem nos parece que o novo dispositivo solucione a celeuma. Novamente, é preferível a
redação do art. 182 do Projeto, que limita o estupro aos casos de sexo vaginal, oral e anal,
transformando as demais hipóteses em molestamento sexual.
Trata-se de incriminação semelhante aos arts. 241 e 241-A da Lei n. 8.069/1990 (ECA).
Todavia, o ECA se restringe às imagens de crianças e adolescentes em cenas de sexo
explícito ou pornográficas, ao passo em que o objeto do art. 218-C é mais amplo,
contemplando fotografia, vídeo ou outro registro audiovisual que contenha: (a) cena de
estupro ou de estupro de vulnerável; (b) apologia ou indução ao estupro ou ao estupro de
vulnerável; (c) cena de sexo, nudez ou pornografia de pessoa que não consentiu com os
verbos incriminados no tipo penal.
A atual previsão legal é mais taxativa e, pensamos, razoável. Perceba-se que o dispositivo
não incriminou o sexting, que é a conduta de trocar fotos, vídeos e congêneres com
conteúdo erótico, a fim de excitar a libido de alguém. A prática continua permitida e é uma
decorrência da liberdade sexual, como aspecto da autonomia da vontade.
Se pessoas querem trocar imagens eróticas entre si, não há vedação legal sequer para o
armazenamento, ao contrário do que acontece quando há crianças ou adolescentes
envolvidos. Pune-se, no art. 218-C, um comportamento posterior: após a obtenção da
imagem, que pode se dar por qualquer meio, sua difusão desautorizada.
Não é necessário que a obtenção se dê diretamente por ato voluntário da vítima, isto é, o
sujeito ativo pode conseguir a imagem de forma clandestina ou através de terceiros.
Suponhamos que uma pessoa instale uma vulnerabilidade em computador alheio, valendo-
se desse expediente para ter acesso remoto à máquina, o que lhe permite a ter acesso às
fotos da vítima nua, por exemplo.
A obtenção, nesse caso, configura o crime do art. 154-A do CP. Posterior divulgação, crime
do art. 218-C. Outro exemplo: a mulher repassa ao namorado uma foto em que aparece nua
e esse namorado, sem autorização, divulga a foto em um grupo de WhatsApp. Vários dos
participantes desse grupo armazenam a foto consigo e um deles confere nova publicidade,
publicando-a em um site de fotos eróticas.
O namorado, ao obter a foto, não comete crime algum, mas sim ao repassá-la; os integrantes
do grupo de WhatsApp que armazenaram a foto, igualmente não cometem crime, desde que
não tenham estimulado a divulgação (se estimularam, são partícipes da conduta do
namorado), mas aquele que expôs a foto a pessoas indeterminadas, comete o crime do art.
218-C. Pensamos, inclusive, que os administradores do site, desde que tenham ciência de
que a foto ali se encontra publicada de forma não autorizada, cometem o mesmo delito.
O último exemplo é interessante para que se trabalhe a causa de aumento da pena prevista
no § 1º do art. 218-C, aplicável ao sujeito ativo que mantenha ou tenha mantido relação
íntima de afeto para com a vítima (namorado, marido, companheiro, ex-namorado, ex-
marido e ex-companheiro).
Há outra causa de aumento de pena prevista no dispositivo: quando o crime é praticado por
vingança ou com o fim de humilhação (naquilo que se convencionou chamar de porn
revenge). Nessa hipótese, dispensa-se a afetividade, bastando o especial fim de agir.
Caso a imagem contenha duas ou mais pessoas filmadas ou retratadas, todas em cena de
sexo, nudez ou pornográfica, teremos concurso formal de crimes. O número de crimes será
equivalente ao número de pessoas que foram expostas de forma não autorizada.
3. Demais dispositivos
Além dos tipos penais, a Lei n. 13.718 promoveu diversas outras alterações na disciplina
dos crimes sexuais. O art. 217-A (estupro de vulnerável) ganhou um § 5º, com a seguinte
redação:
As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se
independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter
mantido relações sexuais anteriormente ao crime.
Em outras palavras: caso a pessoa menor de 14 anos possua maturidade sexual, a prática de
atos libidinosos com ela invariavelmente configura crime ou a regra admite flexibilização?
Sustentamos em nosso livro Crimes Contra a Dignidade Sexual que
punir o agente simplesmente por manter relações sexuais com pessoa
menor de quatorze anos é limitar a aplicação do dispositivo à análise do
atingimento do objeto material do delito (a pessoa menor), sem qualquer
consideração ao objeto da tutela penal. (GILABERTE, 2014, p. 67)
A ação penal, nos crimes contra a liberdade sexual e contra vulneráveis, foi transformada
em ação pública incondicionada, sepultando a regra anterior que previa a representação do
ofendido como regra nos crimes contra a liberdade sexual. O estupro, a violação sexual
mediante fraude, a importunação sexual e o assédio sexual, doravante, não mais exigem
condição de procedibilidade.
Acreditamos que o inciso IV somente é aplicável aos crimes de estupro, não aos demais
crimes contra a liberdade sexual e contra vulneráveis. Embora a norma não contemple essa
limitação, é uma interpretação que se impõe a partir do nomen juris dos dispositivos
(estupro, usado como gênero, do qual são espécies o estupro propriamente dito e o estupro
de vulnerável). Isso significa que a importunação sexual corretiva, por exemplo, não é
majorada; se praticada por duas ou mais pessoas, aplica-se a majorante do inciso I do
mesmo artigo, que surpreendentemente não foi revogado (aumento da pena em 1/4).
As impressões constantes deste artigo são meramente iniciais, dada a recenticidade da nova
lei, de modo que muitas certamente prosperarão e outras acabarão relegadas aos escaninho
de convicções do articulista, até que essas convicções sejam abaladas.
Por óbvio, não se pretende um texto definitivo sobre o tema. Mas há uma verdade absoluta:
nas sucessivas reformas incidentes sobre os crimes sexuais, o legislador continua ignorando
o lenocínio e as normas anacrônicas que permanecem no Código Penal como cadáveres
insepultos.
REFERÊNCIAS
GILABERTE, Bruno. Crimes Contra a Dignidade Sexual. Rio de Janeiro: Freitas Bastos,
2014.