A Escuta e A Fala em Psicoterapia PDF
A Escuta e A Fala em Psicoterapia PDF
A Escuta e A Fala em Psicoterapia PDF
Coordenação editorial
Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa
Elaine Lopez Feijoo
Maria Bernadete Medeiros Fernandes Lessa
Myriam Moreira Protasio
Conselho Editorial *
Élida Sigelmann
Uui11ersidade Federal do Rio de Janeiro-UFRJ
Moniquc Augras
U11iversidade Po11tiftcia Carólica-PUC/RJ
Roberto Novaes de Sá
Universidude Federnl Fluminense- UFF
Thclma Donzclli
Universidade do Estado do Rio de Janeira-UERJ
Ued Ma luf
U11iversidade Federal do Rio de Ja11eiro-UFRJ
F328e
2.cd.
Inclui bibliografia
ISBN 978- 85-63850-00- 3
101
CAP(TULO 3 Uma proposta de psicoterapia f enom enol ógico-existencia l
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Ana Maria Lopez Ca lvo de Feijoa
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CAPÍTULO ·i Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial
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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa
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CAPÍTULO 3 Urna proposta de psicoterapia fenornenológico-existencial
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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoo
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À psicoterapia caberia, então, buscar o que afinal justifica
aquela existência em termos de eterno e necessário . O apelo para
a justificação no temporal revela a ausência de necessidade - o
que também é desespero, doença mortal. Em Migalhas filosófi-
cas (1991), Kierkegaard diz que a transformação se dá no ins-
tante - logo, no âmbito do eterno da existência temporal e do
n ecessário da existência frente aos possíveis .
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Hlld 1·1ana Lopez Laivo oe re1ioo
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CAPÍTULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial
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CAPITULO 1 Umil propoSlil cre ps1co1erap1a 1enomeno1og1co-ex1srenc1a1
____ __
_:_ da relação
d~ e t o existencial, _:_ ____
mântica interna - enfim, não são problemas do eu. São problemas
-
--,...t:..-----
ser-aí e mundo. A própria da-
seinsanálise, tal como assumida por Boss, consiste em uma ten-
-
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1-\llcJ l"ldl ld LU~t:"L \...dlVU UC' 1 C' I JUV
acerca de tal possibilidade ocorre uma vez que este filósofo nega
totalmente a existência de um psiquismo. Ele questiona, também,
a pretensão de uma atuação modificadora do comportamento hu-
mano a partir de um posicionamento que toma o homem como
algo da ordem do natural, logo passível de uma modificação pela
ação direta. É o próprio filósofo da daseinsanálise, contudo, que
aponta para a possibilidade de uma clínica psicológica com bases
na fenomenologia hermenêutica; e isso em seus Seminários de
Zollikon (1987/200 1). Heidegger, em Ser e tempo (1927; 1989),
refere-se à analítica do Dasein como a análise ontológica das es-
truturas da existência humana. Os psiquiatras Ludwig Binswan-
ger e Medard Boss , inspirados no filósofo , vão denominar de
daseinsanálise o exercício desta analítica em uma perspectiva ôn-
tica - ou seja, na relação com problemas materiais.
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CAPÍTULO 3 Urna proposta de psicoterapia fenornenológico·existencia l
S2!§
__.. --
nomenológica em Heideggg_p!QPÕe-se a buscar' o fenômeno nos
m01lõs-de-e:~1~licitação - s.9~aparên_cja, na manifesta~ão
-
~ F l tr errh:rlham-eat-0,,__
Este método também vai consistir no modo de investigação
que se dará na própria relação psicoterapêutica. Parte-se do prin-
cípio de que não é o método com seus parâmetros que conduz:
aquele que se investiga é que traça o caminho da investigação.
O psicoterapeuta, pautado na proposta da fenomenologia, vai
esti ação do homem em relação deixando ue o_
que se mostra, fa a-o a seu modo próprio, e a p,ar.tü:...de si mes~
Este método, em psicoterapia, vai seguir os seguintes aspectos,
propostos por Husserl e adotados por Heidegger:
- "Às coisas em si mesmas": o psicoterapeuta vai se dire-
cionar àquilo que se mostra em si mesmo, que se deixa ver,
a própria revelação do ser. As coisas que se deixam ver.
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Ana Maria Lopez Calvo ele Feijoo
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3.2 .1.2 - A hermenêutica e o círculo hermenêutico
A hermenêutica, em uma perspectiva metateórica, tomada
como processo de compreensão, constitui-se no círculo herme-
nêutico tal como proposto por Heidegger, em que o próprio su-
jeito da compreensão está inserido no círculo, por sua condição
originária de pré-compreensão.
Heidegger (1990) concorda que a hermenêutica, convenien-
temente ampliada, pode designar a teoria e metodologia de qual-
quer gênero de interpretação. Afirma, ainda, que emprega o
termo hermenêutica em Ser e tempo numa tentativa de determi-
nar a sua interpretação a partir do que é hermenêutico. Continua:
---------
Heidegger. Essa noção é aqui introduzida como princípio funda-
mental de uma clínica psicológica. O círculo hermenêutico é a ideia
--
de g~ nunca há _: possibilid~ nterpretativa~ a existência q~ nã~
seja a partir de um horizonte fático sedimentado, no qual sempfe
- -
_,_)
há uma visão prévia, uma conce ~,ãO_Jlrévia e uma posição prévy .
Na análise existencial, o que está em discussão é o como romper
círculo hermenêutico que aprisiona o ser-aí em comportamentos
sedimentados no impessoal. Rompimento que consiste na possibi-
lidade de, diante de uma experiência-limite, suspender o poder
prescritivo do horizonte hennenêutico em que estamos inseridos.
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CAPÍTULO 1 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial
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1• ~,. , _ .,,,.. l"',#'"''' "''VJ•' '-'' ICIIVlllt:IIVl\..,b,\,. V 1..Ãl~i\.:'JI\.IQI
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e impessoal, porém sempre como abe1iura para possibilidades de
outras formas de expressão, quais sejam pessoais, próprias e sin-
gulares. Ser-aí constitui-se em um ente aberto às possibilidades -
Jogo, em liberdade em seu modo de ser. Constitui-se, então, no jogo
do impróprio e do próprio. Na verdade, nada se estmtura como de-
finitivo, pois é o próprio caráter de abertura, que abre sempre às
possibilidades - tanto em direção à autenticidade como à inauten-
ticidade. Ao modo da impessoalidade e da inautenticidade, o ser-aí
tende ao fechamento. Os limites de sua abertura para o mundo res-
tringem suas possibilidades. Em fechamento, o homem esquece-se
do seu poder-ser e reconhece-se como presença à vista.
Na duplicidade "ente e ser", ser-aí pode esquecer-se do ser e
tomar-se como ente. Perdido no ente, escolhe o modo como o im- i/
pessoal determina que deva escolher. No mundo do das Man,
perde-se no impessoal, no impróprio e no inautêntico. Esquece-
se de sua liberdade de escolha das possibilidades e passa a viver
no "É". ·"É" apenas as propriedades que o mundo lhe atribui. "É",
apenas no conformismo da massa, mais uma "ovelha no rebanho."
Ser-aí, no movimento do ser e ente, clama, tomado pela an- 1
gústia por ser si próprio, pessoal e autêntico, que implica, em úl- \
tima instância, reconhecer-se como um poder-ser que ruma \
sempre para a finitude. Tal clamor ocone, mesmo que na forma
de estorvo e inquietude, mesmo que silencioso ou disfarçado nos
afazeres cotidianos. Incomoda, mas abre a possibilidade de uma
escolha singular. Muitas vezes, ainda esquecido de sua liberdade,
o homem justifica-se pelas situações exteriores: o governo, os
pais, o inconsciente, enfim. Outras vezes, no entanto, o incômodo
o mobiliza, e aí vai em busca de sua possibilidade mais própria\
seu poder-ser.
Na busca de cuidado, pode-se procurar um médico, um feiti-
ceiro ou um psicólogo. O médico, normalmente, confere o mal
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CAPÍTULO 3 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial
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CAPÍTULO J Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-existencial
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Ana Maria Lopez Laivo de re1Joo
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CAPÍTULO 1 Uma proposta de psicoterapia fenomenológico-exisrencial
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Ana Maria Lopez Calvo ele Feijoa
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CAPÍTULO '3 Uma proposta de psicoterapia ienomenológico-existencial
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CAPÍTULO 4
Metodologia
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CAPÍTULO 4 Metodologia
5 Sanitella Cappola Defelippe, Elaine Lopez Feijoo, Thays Babo, Cristine Mon-
teiro, Valéria Barbosa, Patrícia Rio, Elaine de Oliveira e Ana Margarida Chagas.
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Ana 1'1aria Lopez Calvo de Feijoo
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CAPÍTULO •I Metodologia
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CAPÍTULO 4 Metodologia
-
compartilhado, o ser-com. Relaciona-se com o outro de modo a
t utelá-lo e submetê-lo. As relações de convivência se dão na
forma de desconfiança e indiferença. Liga-se apenas a si próprio.
Fala uma cliente, referindo -se à sua mãe: Ela atrapalha meu ca-
samento. Está sempre ali. Meu filho diz que não tem nada de-
mais. Eu fico magoada com ele, ele não se coloca no meu lugar.
Não sabe o que é isto, acho que ele quer é me ver mal.
No discurso, coloca-se sempre no centro, utiliza-se demasia-
damente do pronome "eu". Diz que todos estão errados - ou que
são contra ele ou nutrem por ele uma grande inveja. Os fatos são
relatados com tamanha lógica, que não deixa possibilidade de
discordância, inclusive por parte do psicoterapeuta. Este modo
de mostrar-se requer muito tato do psicoterapeuta, uma vez que
este pode se tornar aos olhos do cliente um grande invejoso e,
desta forma, romper-se a confiança.
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CAPÍTULO 4 Metodologia
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CAPfrULO 4 Merodologia
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A11a Maria Lopez Calvo ele Feijoo
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como todo mundo. Fala o cliente: No meu campo de atuação,
tenho que me mostrar confiante. Se pareço muito carente, elas
não negociam comigo. Tenho que estar sempre bem-vestido, para
parecer bem-sucedido. Tenho que ser admirado. O psicotera-
peuta pode atuar pontuando, junto ao cliente, o seu modo de ser
na aparência, da seguin te forma: Você tem que representar muito
bem para que as pessoas te deem valo,~ não pelo que você faz,
mas pelo que você aparenta fazer .
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M.110 1· 10110 L UfJt'l. l.dlVU ue retJOO
-
Psicoterapeuta: Relata pra mim o que aconteceu.
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CAPÍTULO 4 Metodologia
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que ele tome consciência de sua verbalização e possa perceber
mais claramente seu ponto de conflito ou de desordem. Em psi-
co drama, diz-se que o terapeuta faz o duplo.
Diz o cliente: Bem, não quero irritar-me. Vou tentar falar sobre
isto de forma mais tranquila.
1
Psicoterapeuta: Estou vendo o quanto você está tranquilo fa- 1
!ando do seu fracasso.
Cliente: (Silêncio, reflete.) Não , não, na verdade estou nervoso
falando disto. Mas por alguma razão, não queria mostrar assim.
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Ana Mana Lopez Laivo de t-e1JOO
Diz o cliente: Claro, as coisas são como são e eu ... Não deve-
ríamos perder tempo com as coisas que não têm remédio.
Responde o psicoterapeuta: Você realmente não quer ver até
que ponto é escravo do desejo de preservar essa imagem de
homem confiante. Na verdade, está tentando impingi-la a mim
agora mesmo.
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CAPÍTULO 4 Metodologia
sempre que você teme como o vão avaliar a partir do que está
mostrando.
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Ana Maria Lopez Calvo de Feljoo
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!idade do mundo, urna vez que tal fato pertence ao espaço do
cliente. Cabe ao terapeuta ampliar a perspectiva do sentido do
cliente - através de sua fala, e através das reduções fenomenoló-
gicas realizadas pelo terapeuta.
O psicoterapeu1a acompanha o acontecer de seu cliente. Es-
tabelece uma relação libertando o outro para si mesmo. Na maio-
ria das vezes, o cliente procura o psicoterapeuta, colocando-se
corno ente - logo, com sentidos e determinações previamente
dados. O psicólogo vai, pouco a pouco, através da hennenêutica
do sentido daquilo que se mostra, abrindo o que aparenta e se
manifesta. O psicoterapcuta, na sua técnica como produção
mútua, vai - através do que se mostra - buscar o que se vela, de
forma a que as possibilidades se desvelem.
6 Trata-se de um caso vedd ico, cuja gravação e divulgação foram autorizadas pe!a
cliente. O nome foi trocado para preservm· a identidade da mesma.
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"'"-' '''-''"-''--VI-''-<- >..vi,v u,;: 1 <=IJUU
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tava. Você a realizou e ainda resolveu seus problemas financei-
ros. Do que você se lamenta agora?
Mariana pensa cm silêncio e responde:
·· Será que fiz certo? Não podia ter casado? Ter tido filhos,
como fizeram minhas irmãs? Elas não estão sozinhas, têm seus
maridos, seus filhos rw faculdade. E eu, doutora, não tenho
nada. De que adiantou aquela mulher linda, de cabelos lisos,
louros, bumbum grande e arrebitado. De que adiantou? Foi bom
na época, todos os homens me queriam, me desejavam. E hoje,
quem vai me quere,~ principalmente se souberem de mim? O que
minha família, minha mãe vai pensar de mim? Elas acham que
sou casada com o gringo. Eu combino com ele, ele liga para
minha mãe, como se fosse meu marido. É tudo mentira. Mas se
souberem, o que vão pensar de mim. Tive namorados, mas eles
também não sabem. Não enganava, não sacaneava, era minha
profissão. Com o que eu amei era diferente, fazia am01~ Com os
fregueses não, é profissionalismo. O namoro não dava certo, o
que eu amei me sacaneou com uma amiga. Eu não perdoei. Hoje
me arrependo. Não sei, acho que poderia ter dado uma chance.
Hoje ele está casado, somos apenas amigos. Como vou encontrar
alguém? É difícil, as pessoas hoje não querem envolvimento.
Fica difícil ter alguém. Fico com medo de ficar sozinha.
A culpa existencial, a lamentação pelas possibilidades não-
escolhidas, fazia-se presente em Mariana. Escolhen na época um
_possível, abriu mão de outros e agora, neste momento, queria que
nenhuma possibilidade lhe fosse negada pelo tempo. Impacien-
tava-se frente ao imprevisível e cmergía a angústia frente ao seu
caráter de indeterminação, portanto poderia escolher frente ao
nada, que se apresenta como futuro. Era preciso cautela, cuidado.
Pensei mais uma vez em Kierkegaard (1988): "O ataque direto
leva o homem a opor-se." Portanto, não poderia atuar de forma
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/-\lld J·ldl l<;l L.Uf.lt:'.l.. L.<llYV Ut:'. l ÇIJVV
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CAPÍTULO 4 Metodologia
mais volto aqui, o que esse cara está pensando? A minha amiga
me disse que era assim mesmo. Com ela também foi assim. Para
eu voltar, que ia ser bom para mim. Voltei, aí/ui de saia, dobrei
a perna para a esquerda, dobrei para a direita e ele só olhava.
Pensei: "Este é daqueles clientes bem difíceis."
-É claro, ele não tirava os olhos de mim. Levantei, fiz assim,
assim, e nada. No final, ele ainda me cobrou e eu lhe dei o di-
nheiro. lvlas, com a senhora, eu volto. A senhora/a/ou, me aju-
dou a falar, arrancou as coisas de dentro de mim. Eu preciso
disso,já estou mais aliviada.
Falei:
-Está bem.
Marcamos a próxima sessão e cobrei-lhe a consulta. Ela,
então, pediu-me para preencher o cheque. Preenchi e o devolvi
para que ela assinasse. Assinou com certa dificuldade e, ao aca-
bar, me disse:
- Sabe por que eu não preenchi? Não sei ler nem escreve,:
por isto não preencho cheques.
Na sessão seguinte, Mariana chega na hora marcada, faz os
cumprimentos do dia a dia, senta-se no mesmo lugar em que se
sentara na sessão anterior e inicia:
-Pois é, doutora, sinto-me muito.só. É muito ruim a solidão.
Tenho medo. O que vai ser da minha vida assim, sem ninguém?
Sinto-me muito frágil, incapaz de ficar sozinha. Em casa, aso-
lidão é enorme. Na rua, não saio sozinha de jeito nenhum. Para
vir aqui só se essa minha amiga que está lá embaixo me trouxe,~
senão não venho. Tenho medo de que aconteça algo na rua co-
migo, e eu estou só. Quem vai me socorrer? Assim, com alguém,
pode me socorrer. O que eu faço, doutora?
Mariana justificava-se no temporal. A presença do outro era
tomada como necessidade e não como possibilidade. O outro, en-
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Segue Mariana:
- Só, muito só, sem ter ninguém, Sem saber o que vai me
acontece,:
Outra vez, o medo da solidão. A consciência da sua vulnera-
bilidade frente ao mundo que, por ilusão, acreditava que, com o
outro, poderia superá-la. Havia a crença ainda de que, no pre-
sente, haveria alguma estratégia para controlar o futuro e, assim,
não ficando à mercê da vida. Resolvi trabalhar a vivência do
tempo, corno síntese de presente, passado e futuro. Corno o pas-
sado era percebido? Que experiência trouxe à tona a consciência
da vulnerabilidade? Será que tais relatos poderiam ajudar o pro-
cesso? Fui em busca de tal experiência, sua historicidade.
- O que te leva a temer tanto e o que pode te acontecer?
Com esta pergunta, poderia ela, então, me falar do que lhe
aconteceu, que ela não pode controlar ou) ainda, da vivência do
inesperado. Inicia, então:
- Eu sempre determinei como seria minha vida e assim foi.
Disse que eu não iria viver para sempre aquela vida de miséria.
Fiquei trabalhando pela casa dos outros por pouco tempo. Logo
depois, consegui com um vizinho meu. Pedi a ele: 'Sabe, queria
trabalhar assim, como aquelas moças'. Ele me/alou: 'Você tem
certeza disso?', eu disse que tinha e ele me arrumou um lugar.
Daí, fui conseguindo uma vida mais confortável e dei mais con-
forto para a minha familia. Sabe, ajudei muito, tirei todo mundo
daquela vida miserável. Comprei meu apartamento, meu carro,
viajei o mundo inteiro, dancei em boates do mundo inteiro. Sem-
pre chamei muito a atenção dos homens. Venci, mas agora, dou-
tora, tudo isso parece sem va/01: Eu queria outra coisa, sabe?
Segurança, não queria ficar só.
Optei por refletir o conteúdo verbal, com o objetivo de que pros-
seguisse, continuasse no terna e, assim, relatasse o que aconteceu:
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CAPÍTULO 4 Metodologia
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Repliquei:
- Não sabe sobre seus desenhos?
Ela disse:
- Não, como vou saber?
Coutinuei:
-Há coisas na tua vida que você faz, pensa, sente e que você
mesma desconhece.
Respondeu:
- Como assim?
- Não sabe de seus desenhos, não sabe de sua solidão, não
sabe de seus medos, não sabe de suas escolhas ..
- Não estou entendendo ..
- Você m.e disse logo que chegou aqui: não sei o que está
acontecendo comigo, doutora.
Este trecho mostra de que forma o psicoterapeuta consegue,
através do falatório da cliente, desde o início da sessão, partir
para revelações mais autênticas. A compreensão ao modo da cu-
riosidade da cliente sobre o desenho, através da hermenêutica,
buscando-se o sentido próprio ao modo da compreensibilidade.
Fica claro qne não é o cliente que deve ser rotulado como resis-
tente porque tagarela - aliás, nisto reside sua dificuldade. É o
psicoterapeuta com sua capacidade de escuta que deve buscar na
tagarelice a revelação daquele que lhe pede ajnda.
-Não sei. Não sei nada. Desenho porque é o que gosto e sei de-
senhm: A minha vida toda foi o que mais conheci. Sempre digo o
que tem mais valor para mim, que é minha verdadeira amiga é
minha perereca, é com ela que eu ganho a vida. Tudo o que eu tenho
devo a ela. (Fala mostrando a raiva da situação e fica em silêncio.)
Neste trecho, Mariana falou o que sabia de si e dos seus desenhos,
buscava o sentido de sua ação no mundo, não enquanto curiosidade,
porém enquanto compreensibilidade. Permaneci em silêncio, à es-
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pera do caminho que Mariana seguiria. Sem palavras, portanto) sem
se perder no falatório, a inquietude poderia clamar em silêncio.
- É isto que me apavora. Tenho de trabalhm~ preciso ainda
ganhar dinheh-o. Minhas economias estão acabando e eu não
tenho coragem, doutora. Não tenho coragem de viajar sozinha,
de viajar de avião, de receber os clientes. Eu não sei quem é. É
perigoso. Quanta coisa acontece! Eu posso ficar com os clientes
certos, mas sem anúncio, eu nào sei .. Eu não posso. Eu tenho
dignidade, não sou qualquer uma. Escolho meus clientes. São
homens direitos, têm familia. ]das pode acontece,: vê o anúncio,
chama à porta. Eu sempre vejo pela janela, se não gosto da apa-
rência, aviso ao porteh-o para dizer que não estou. A1as sabe
como é, doutora, tudo pode acontece,: Por isto, doutora, eu não
quero mais, tenho medo, é arriscado.
Questionando-se o que.teme - teme o risco. Corno teme, fu-
gindo das situações agora gue se sabe vulnerável. Para que teme?
Para não morrer. Desta forma, estruturava o seu mundo, de forma
que nenhuma possibilidade fosse percebida no horizonte de sua
existência, daí o "não posso", pois "tanta coisa acontece".
Atrevo-me a aprofundar seu sentimento de vulnerabilidade
frente ao mundo:
- Sabendo do que te pode acontecer, você prefere recua,; não
continuar e, desta forma, tentar proteger-se de tudo que pode te
acontece,:
-Ê, mas até quando? Eu tenho de trabalhar (chora), mas eu
não tenho vontade, não quero mais esta vida.
Acreditando que outra forma de viver a preservaria das con-
tingências do mundo) pensava em assumir outras atividades
como não trabalhar, não sair sozinha, não andar de avião. O ser-
aí em decadência foge da sua possibilidade mais própria. Foge
do seu ser-para-a-morte:
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Na quinta sessão, fv!ariana entrou, sentou e disse:
- É, doutora, vou ter que volta,: O dinheiro está acabando,
tenho de trabalha,: Fico pen.sondo em ter de pegar o avião. Tanto
acidente, lenho medo. Já pensou?
- Já pensou o quê?
- Se o avião coil: Tenho medo.
- Medo de quê?
- Não sei, estar sozinha.
- Estar sozinha no avião.
- É, não gosto de ficar sozinha, pode acontecer um acidente.
- Um acidente sozinha seria diferente de um acidente acom-
panhada.
- (Ri) Não, sim. É, só estaria com alguém.
- E o que pode acontecer se você estiver no avião e ocorrer
um acidente?
- Não tenho medo de morre,: Sou católica.
-De que você tem medo, então?
-Não sei.
- O máximo que pode acontecer é que você pode morrei:
-É.
- Todos dirão: }.//ariana morreu.
- Não, não quero, não quero morrer. Tenho muito que vivei:
Sobre a morte, diz Heidegger que aquele que teme a morte,
evita a vida. Na decadência, o ser-aí foge do seu poder-ser mais
próprio, vivendo ao modo da alienação e da tranquilidade. Pensei
e, então, lhe disse:
- Viver não saindo de casa, não viajando, não se relacionando.
- É, isto não é vive,: É brincar de vive,: Dizem que ter medo
da morte é ter medo da vida.
Mariana falava da morte ao modo do impessoal. Na não-verdade,
encobria sua possibilidade mais própria do seu ser-para-a-morte.
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- ]\;fas, doutora, eu nunca deixei de vive,: Era alegre, gostava
da vida, vh;ia rindo, nada me abalava. Eu quero ser a mulher
que eu era.
- Nfantendo a ilusão de que era imortal.
- Não entendi.
- Era alegre, vivia rindo, acreditando que você nunca iria
morrei:
- Como?
Nos mandamentos do psicoterapeuta existencial, descritos a
partir das reflexões filosóficas de Kierkegaard, encontra-se: "As
interpretações poéticas, muitas vezes, ajudam aquele que fala do
seu sofrimento, sem que ele saiba que não se compartilha de sua
paixão e) sim, que se quer livrá-lo dela." Resolvi recorrer à me-
táfora e contei a piada do careca:
- Era uma vez um homem careca, sem um fio de cabelo na ca-
beça. A morte resolveu avisá-lo que naquele dia ele, o careca, iria
embora com eia. Este, pretendendo ser muito astuto, comprou uma
peruca efOi-se para uma festa e, assim, esperava que a morte não o
encontrasse. Aconteceu que, já estando na festa, bateram-lhe no
ombro e, para seu espanto, era a morte, que lhe disse: eu vim buscar
um careca, mas como não o encontrei, resolvi levar mesmo um ca-
beludo ... É, parece que foi nisso que você acreditou: que poderia en-
ganar a vida fugindo e que, assim, a morte não existiria para você.
-Eu não quero morre,: Por isso vou continuar a me esconder.
- Vai continuar a não vive,; se escondendo. E assim mesmo
vai morrei: A morte é inevitável.
- Isso é triste, eu não quero.
- Como se você pudesse não querer.
~ Posso evita,:
-Até quando?
-Não sei. (Chora)
\65
CAPÍTULO 4 Metodologia
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CAPITULO 4 Me1oclolog1c1
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CAPÍTULO 4 Metodologia
longe, conto uma mentira para eles não sofrerem, mas eles tam-
bém não se interessam muito. Se preocupam com os meus medos,
se preocupam comigo, mas não estão juntos, sabe?
- E aí o sentimento de solidão aumenta ..
Novamente, lancei mão de uma fala compreensiva.
- É, aumenta. Se eu tivesse um namorado, uma namorada ...
Não, eu prefiro um namorado, sabe? Um homem de verdade.
Tudo bem, para não ficar sozinha servia até uma companheira,
mas um homem sempre é melho,; mas eu não tenho. Sabe, não
era para me sustentar, que a gente dividisse. Só não queria ficar
sozinha ... Também, onde vou achar esse homem?
Silenciei. Não sabia o sentido do que Mariana me dizia. Será
que era o companheiro que ela queria? Ou será que queria se
queixar? Deixei o silêncio e esperei que continuasse, desconhecia
o caminho pelo qual Mariana me levava) era cedo para arriscar.
Mariana, porém, continuou em silêncio. Pensei que precisava
ajudá-la e lembrei novamente de Kierkegaard, quando reco-
menda que, para se levar um homem ao seu centro, é preciso che-
gar onde ele se encontra e começar daí. Fui ao seu encontro.
- Se você arranjasse um namorado, de nada mais você senti-
ria falta, nem da companheira, nem da familia.
Tentei me aprofundar mais na disposição de Mariana, que
afeto fundamentava toda a sua solidão?
- Seria diferente, eu tinha meu companheiro, não ia mais às
festas de família, aos almoços de domingo sozinha. Todo mundo
com marido, mulhe,; e eu sempre sozinha. Isto me magoa. Todos
têm seu cúmplice e eu não tenho ninguém.
Parecia que Mariana ressentia-se pelo fato de não ter estabe-
lecido vínculos afetivos. Optava pela liberdade de ir e vir, porém
não queria viver as consequências de sua escolha. Agora queria o
vínculo, porém não havia cuidado para que isto acontecesse. No-
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Ana Maria Lopez Calvo de FeiJoo
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minhas contas. Sabe, doutora, eu não quero mais trabalha,: Sh1to
um vazio aqui no peito, uma dor. Não sei o que faze,~ Se ficar aqui,
nâo sei fazer nada; se vou, não quero mais trabalha,~ Não lenho
safda, dá um aperto aqui no peito. Aqui tenho um apartamento alu-
gado, mas não dá para nada, pensei também em dividir meu apar-
tamento: alugava um quarto ejá dava para pagar as contas. Viver
com tão pouco, eu também não gosto. Dá um aperto, doutora.fazer
o quê? Gosto de ter dinhéro para comprar as coisas de que eu
gosto, não gosto de me privar de nada. Não sei como fazer. Acho
que não tenho nada para fazei'. Sabe, não vejo nada à minhaj,-ente.
Mariana não havia me avisado que viajaria.
Ela só via duas possibilidades: continuar seu trabalho ou viver
com restrições financeiras, porém nenhuma a satisfaz. Nada mais
é possível. Tentei investigar o leque de possibilidades provocando
desvelar possíveis, mobilizar a compreensão de seu poder-ser:
-- O que mais, lv!ariana, você podia fazer?
- Sinceramente não vejo, doutora. Nunca dei para nenhum
tipo de trabalho. Só sei fazer isto. Não sei ler nem escreve,~ isto
já fica tudo difícil. Comércio, loja, não sei cuidar, não tenho jeito.
Já pensei, pensei, mas não vejo saída. Dá um vazfo, ai de mim.
Se pelo menos aquela moça voltasse, só para cuidar das coisas.
]das, também, sinceramente eu não quero. Tenho que voltar.
A angústia se pronunciava frente às possibilidades de escolha,
não vendo saídas: a única saída que emerge é o retorno à prosti-
tuição, já que a possibilidade do namorado não se fazia presente
e estava chegando o momento de decidir. Continuei:
-Hum, hum ..
Mariana prossegue:
- Tenho que ganhar mais dinheiro, desta vez juntar para
poder não voltar mais, mas agora tenho que volta,: O que eu
faço, doutora?
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Ana Maria Lopez Calvo de Feijoa
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CAPÍTULO 4 Metodologia
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Ana Maria Lopez Calvo'de Feijoa
ele se sentiria, você julgava que era assim que era bom para você,
da mesma forma que queria sua companheira, para resolvm' suas
coisas, e que cobrava da sua familia a atenção de que você pre-
cisava e não a medida da preocupação que eles tinham por você.
Por isto, talvez, você se sinta sempre sozinha: tudo o que o ou Iro
faz, só tem importância se for na medida do que você precisa ..
- Sérá? Sou eu quem espanta os outros, sou eu quem deixo
os outros? Não, não pode ser.
- Será?
- Eu sou muito materiaUsta. Quero tudo para mim. Fico preo-
cupada em te,: Dou as coisas e mostro que tenho. Dou e todos
me devem alguma coisa. Eu posso cobra,~ eu ajudei.
- Mesmo quando ajuda, está pensando em você?
- Não, também não é assim. Ajudo, dou coisas.
- Materiais.
- Não, também dou carinho, dou afeto.
-Dá? Como?
- Não sei, doutora. Mas dou, claro que dou.
- Conta para mim uma situação em que você deu afeto.
(Silêncio.)
- Não sei. Não lembro. Deixa eu pensar.
R;etorna, chorando:
- Não sei. Tive que ser fria, senão eu não sobreviveria.
Não hesitei, não senti pena, continuei firme:
- Mas os outros sobrevivem, não é?
- Como assim?
- Os outros não podem ser frios, têm de sobreviver e ser afe-
tuosos com você?
- Não entendi.
- Não importa o que você sinla ou deixe de sentir pelo outro,
desde que o outro cuide de você.
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-- -·-t,···-
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Ana Maria Lopez (alvo de Feijoo
177
CAPÍTULO 4 Metodologia
e aí... Minha família podia sabe,~ E isso, eu não quero. Mas, re-
solvi: vou sozinha mesmo porque, se o avião cai,~ com ela ou sem
ela, eu morro ... Então, eu vou sem ela mesmo, e economizo o di-
nheiro da passagem porque, eu juro: agora vou economizar para
voltar, comprar outro imóvel e poder viver sem ter de trabalhar
- E a solidão?
- É, isso é fogo, doutora. Lá eu fico muito só. De dia, tudo
bem. Pela manhã, eu sou obrigada a sai;~ para provar que eu
trabalho, senão não consigo continuar como residente. À tardi-
nha e à noite, eu trabalho em casa. Mas, ao final da noite - lá
pelas oito, nove horas, quando acabo tudo-, aí é que dói. Jantrr
sozinha, ficar na mesa só, é ruim, doutora: sinto falta de um
companheiro. Com aqueles homens de todo dia, é só trabalho: é
como se eu costurasse uma roupa, é um objeto, sabe? Não vejo
como gente. E, também, não tenho amigas. Nesse mundo da pros-
tituição, as pessoas são muito estranhas: eu não gosto, sabe, se
deixam explorar. Eu não concordo. Eu sempre digo: a minha 'pe-
rereca' é minha melhor amiga. É com ela que eu trabalho, é ela
quem me sustenta. Por isso, eu trato muito bem dela. Sempre tra-
tada com médico, cheirosa. Eu não descuido. Mas elas não, dei-
xam os caras delas maltratá-las, depois me meto com elas e
posso acabar em uma enrascada. Não, prefiro ficar sozinha. É
claro que, se aparecer um cara legal, não precisa ser rico, mas
que eu não preciso sustentar, aí eu quero. Senão, eu fico sozinha.
É diflcil porque, se eu conhecer o cara como freguês, eu não con-
sigo mais me relacionar como namorado. Pra mim, é objeto. Eu
aprendi isto na minha profissão, por isso sou boa profissional.
Freguês é freguês não pode deixar tér envolvimento. Nunca me
1
178
Ana MuriJ Lopez Calvo de Feijoo
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gostei da senhora." Acertou o pagamento, deu-me um forte
abraço e disse: "lvfuito obrigada, doutora."
Porém, não deixou o endereço. Não interpretei o esquecimento
como uma intenção inconsciente, que expressa um desejo incons-
ciente. Para uma compreensão com base na fenomenologia, falar
de esquecimento como mecanismo implicaria explicação, que em
nada contribui, uma vez que o fenômeno deve ser compreendido
na forma como ele se apresenta. O esquecimento pode constituir-
se como a privação da lembrança. (HEIDEGGER, 1987)
Passada uma semana, Mariana telefonou para minha casa e
deixou, na secretária eletrônica, o telefone e endereço de sua re-
sidência no Canadá que havia esquecido, além de insistir para
que eu não deixasse de ir vê-la.
No final deste mesmo ano, em dezembro, depois do Natal,
Mariana telefonou:
-Alô, doutora, é a Mariana, estou passando o Natal e o Ano
Novo aqui com minha família. Estou telefonondo para lhe dese-
jar um muito feliz ano de 1998. Como foi de Natal?
- Fui bem, e você?
- Também está tudo bem comigo, .s)nto saudades das nossas
conversas.
- Tudo de bom para você e também muito feliz 1998.
180
Discussão
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DISCUSSÀO A escuta e a fala em psicoterapia
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At1él Maria Lopez Calvo de Feijoo
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presentes nas orientações de futuros psicolerapeutas ·- "É por aí",
"Deixe-se sentir" - tão frequentes em supcrvisões que se deno-
minam existenciais mas que, no entanto, apresentam-se de uma
forma um tanto quanto infundadas.
Esta proposta não consiste em regras preestabelecidas nem
em um deixar-se ir como um barco à deriva. Trata-se de uma pro-
posta psicoterapêutica passível de transmissão didática, cm que
princípios orientadores de uma prática psicoterapêutica, partindo
do círculo hermenêutico em que nos encontramos, possam se es-
truturar. Estabelece-se uma relação supervisor-supervisando ao
modo da pré-ocupação libertadora, em que o futuro psicotera-
peuta seja livre para si mesmo. Pode-se, também, através de dis-
cussões pautadas em investigações rigorosas, apontar as relações
existentes entre a filosofia do existir e a possibilidade de uma
prática com base na filosofia, sem precisar recorrer a mecanis-
mos, reducionismos ou a elos causais.
Pode-se questionar se uma proposta como esta não recairia
em uma técnica interventiva ou manipuladora, tanto no que se
refere à transmissão didática quanto à psicoterapia. À tal questão,
responde-se com uma negativa. Trata-se aqui de uma technf! no
sentido originário - como desvelamento, de um deixar aparecer
aquilo que tinha possibilidades de ser. Da mesma forma, um es-
cultor frente a uma pedreira vê, na pedra, a possibilidade de dei-
xar aparecer sua escultura e, para tanto, atua com o seu
"poder-ver" em algo que tinha possibilidades de ser. Na sua obra,
utiliza seu instrumental, sem o qual não poderia jamais deixar
transparecer a arte que se deu na relação do escultor com a pe-
dreira. Assim também ocorre com o poeta e o escritor: que
"podem-ver", no cotidiano, situações tão sutis - das quais, o
leigo, só se dá conta ao revelar-se da obra do poeta ou do escritor.
Para escrever ou fazer poesias, o artista utilizou-se de um instru-
184
r-\l!O I IO! 10 LVfJCl. L.CllVV VC" 1 C"!JVV
185
DISCUSSÃO A escuta e a fala em psicoterapia
186
Conclusão
187
romper com os padrões de científicidade da psicologia, que dão
suporte a uma teoria e a uma prática em psicoterapia. A objetivi-
dade, a quantificação, a noção de linearidade do tempo e do es-
paço, a idéia de substância, constituindo a obrigatoriedade de
algo palpável e material, são os parâmetros exigidos pela ciência
para que qualquer área de estudo se torne científica. Romper com
a cicntificicladc implica abandonar os parâmetros da ciência e
acreditar que eles apenas falam de urna das perspectivas de abor-
dar a realidade e de construir urna verdade. Através da proposta
deste trabalho, viu-se como a realidade pode ser compreendida
tendo como princípios outros que não os da ciência moderna.
Esta foi a visão de mundo que predominou durante três séculos:
mecanicista, compartimentada, reducionista - mas que, sem dú-
vida, trouxe grandes contribuições para o conhecimento e para a
técnica. Deixou, por outro lado, de aba.rcar outros fenômenos que
não podem ser abordados nesla ótica.
Pautar-se cm uma proposta psicoterapêutica em uma instância
fenomenológica significa deslocar-se de uma perspectiva cientí-
fica em psicologia, cujo mundo consiste em uma estrutura lógica,
que permite a recuperação da ordem de experiência à luz da ló-
gica de invariantes: teorias, conceitos e leis gerais, e da matema-
tização de natureza do universo. O saber científico, na sua
inteligibilidade, permite configurar todo o conhecimento em fun-
ção de paradigmas. Corno consequência, tem-se a concepção de
um mundo infinito de idealidades. A crença de que os objetos
deste mundo só são possíveis de serem descobertos por um mé-
todo racional, sistematicamente unificados e que, em progressão
infinita, levariam a atingir todo o objeto na plenitude do seu ser
em si. O mundo passa a ser passível de determinação unívoca e
idêntica. Sem espaço para a singularidade, o singular não é pro-
jeto de ciência.
188
Através do modelo científico, fundaram-se psicologias ônti-
cas e suas respectivas psicoterapias. Propôs-se, neste trabalho,
repensar a psicologia, pautada na totalidade do ser. Parte-se do
pressuposto de que, na base de toda uma proposta - seja de psi-
cologia ou de psicoterapia - pode-se considerar uma ontologia
fundamental, que clarífica e norteia a reflexão acerca do ser do
homem. Pensa-se, aqui, em uma psicoterapia que não busca re-
sultados, maior produtividade humana, nem a adequação do
homem ao mundo do impessoal. Não se trata de uma psicoterapia
que tenha, corno fim, uma utilidade prática e, sim, o de ajudar o
homem a conquistar a sua liberdade, o seu poder-ser, o seu mo-
vilnento do existir - enfim, que encontre sua justificação no
eterno e sua transformação no instante.
Como aqui foi visto, essa empreitada pode se realizar. Não se
trata de um projeto que se perde no imaginário e, portanto, im-
possível. E nem que se repete incessantemente - o que já foi, por
muitos, realizado -, perdendo-se no ôntico, no real. Trata-se,
aqui, de vislumbrar novos possíveis, em que o método fenmne-
nológico e - mais especificamente - a hermenêutica constituam-
se como pano de fundo, juntamente com a filosofia do existir.
A tentativa de elaborar uma psicologia não-científica já se fez
presente com Bínswanger e Boss, quando trouxeram o pensa-
mento de Heidegger para a psicopatologia e a psicoterapia. O pri-
meiro, ainda sob forte inflnência da psicanálise, acabou, em
algnns momentos, por repeti-la. O segundo, pantou-se mais no
caminho fenomenológico do qne na ontologia de Heidegger.
Na década de 1950, Rollo May trazia, para os Estados Unidos,
o pensamento existencialista, onde recebeu a denominação de
"psicologia existencial-hnmanista". Maslow desenvolve o hnma-
nismo como nma proposta da psicologia, cnlminando nas Teorias
de Rogers, que propõem uma "psicologia centrada na }Jessoa,i.
189
CONCLUSÃO A escuta e a fala em psicorerapia
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Ana Maria Lopez Calvo ele Feijoo
191
Resta, agora, refletir se as amarras que a identificação com
uma determinada forma de pensar podem aprisionar o pensador.
Propor uma psicoterapia em uma perspectiva fenomenológjco-
existencial não seria novamente se aprisionar, desfazer-se das an-
tigas e atar-se a novas amarras?
A resposta a esta questão remete novamente às reflexões de
Heidegger sobre a serenidade que se deve ter com relação à ciên-
cia, sabendo dizer "sim" e "não" a qualquer forma de articulação
cio saber. Ao se abraçar qualquer modalidade do pensar sobre as
coisas, tomando-a como verdade única e inquestionável, a pro-
posta psicoterapêutica aqui pensada se constituirá como um apri-
sionamento também, corno qualquer outra proposta. Cabe, aqui,
retomar a resposta de Heidegger, ao esclarecer o porquê de seu
abandono à fenomenologia e à hermenêutica. Dizia ele que não
significava que havia abandonado tais metodologias, mas que
pretendia desembaraçar-se elos rótulos que sua vida acadêmica
lhe exigia.
Aind:1 hoje, no mundo acadêmico, tais identificações também
são exigidas. É o rótulo que, muitas vezes, abre caminho para
que o pensador ou o psicólogo ingresse na academia. Esta per-
tença, embora facilite a entrada, tem um preço: a restrição da li-
berdade. Para tanto, faz-se necessário meditar: poder dizer "sim"
e "não" a qualquer tentativa de aprisionamento ao sistema.
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Referências bibliográficas
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