Os Choros de Villa-Lobos

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GERSON STENCEL ARRAIS

OS CHOROS DE VILLA-LOBOS COMO

REPRESENTANTES MUSICAIS DA ESTÉTICA

NACIONLAISTA DE MÁRIO DE ANDRADE

Artigo apresentado para aprovação na


disciplina Tópicos Especiais em Música
Popular, do programa de Pós-graduação da
Universidade Estadual de Campinas. Prof.
Dr. José Roberto Zan.

CAMPINAS

2010
Escritos entre 1921 e 1930 a série Choros de Villa-Lobos exercem considerável

importância dentro do repertório do compositor e exemplificam diversas características

estéticas nacionais e modernistas em voga na década de 1920. Foram escritos em uma

época marcada política, artística e intelectualmente pela busca constante da identidade

nacional.

É o objetivo deste artigo evidenciar: como a série Choros, composta entre de

1921 e 1930, representa uma evolução estética em direção ao modernismo

vanguardista da Paris dos anos 20, pois reflete uma postura mais agressiva e avançada

em relação ao nacionalismo inicial de sua carreira (ou o nacionalismo ortodoxo) e

demonstra um projeto estético nacionalista primitivista, afinado com as ideias da Mário

de Andrade e Oswald de Andrade.

Desde a proclamação da República em 1889 a intelectualidade brasileira se

concentrava em promover na população, por meio de diversos artifícios, uma forte

concepção nacionalista. Moldado na busca por heróis e mitos históricos, pela

modernização e urbanização das cidades, pelo culto aos emblemas nacionais e a

educação para a sociedade de Olavo Bilac e Coelho Neto, o nacionalismo ideológico

desejava enterrar no passado a figura atrasada dos períodos colonial e imperial e

colocar o Brasil no rol das nações modernas.

No Rio, após a urbanização da cidade executada por Ferreira Passos, as elites

se orgulhavam das novas obras erguidas onde antes existiam cortiços com construções

coloniais. A Biblioteca Nacional, Escola de Belas Artes, Palácio Monroe contrastavam

com tudo que representava o Brasil ―atrasado‖. Manifestações artísticas populares como

a capoeira, o choro, o maxixe e o samba eram combatidos e tidos como selvagens pela

2
elite carioca. A elite paulistana da Belle Époque1 via na cultura francesa o ideal de

modernismo e desejava tornar São Paulo uma cidade ―francesa‖, ―paradigma de uma

cultura superior‖ (CONTIER, 2004, p.8).

Dentro das artes, entretanto, a estética tradicional europeia contrastava com a

visão de progresso da Belle Époque. A estética nacionalista encabeçada por Mário de

Andrade esbarrava naquilo que a elite não desejava aceitar, a cultura popular e

folclórica. Para Arnaldo Contier:

Mário de Andrade e os compositores Villa-Lobos, Camargo Guarnieri,


Lorenzo Fernandez e Luciano Gallet procuraram atribuir novos
significados às concepções sobre o ―popular‖ e o ―erudito‖, oriundos do
Romantismo do século XIX, tendo como ponto nodal o papel do povo
na elaboração de uma música erudita nacional modernista, não
deixando de abandonar os seus diálogos com as tendências estéticas
2
europeias. Para Peter Burke , a descoberta da cultura popular inter-
relacionou-se com a ascensão do nacionalismo na Alemanha, Suécia,
Finlândia, Grécia, Polônia, entre outros povos (2004, p. 9).

O modernismo musical nacionalista, em sua essência, dialogou com uma

tendência ―universal‖ que abrangeu diversos Estados europeus e das Américas. O lema

modernista ―do nacional para o universal‖, referia-se a uma circularidade de ideias

estético ideológicas surgidas, concomitantemente no pós-guerra (1918), por meio de

ideais estético-políticos, aflorados em muitos paises da Europa Ocidental, Oriental e nas

Américas.

1
O período entendido como Belle Époque vai do último quarto do século XIX até o início da
Primeira Guerra Mundial. Após o fim da Guerra um forte sentimento de afirmação nacionalista
tomou conta de várias nações do mundo.
2
BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna: Europa, 1500-1800. São Paulo: Companhia
das Letras, 1999.

3
Além da abominação por parte das elites da Belle Époque, a forte imigração

europeia ocorrida em São Paulo tornava a cidade distante das tradições folclóricas

brasileiras e mais presas àquelas europeias (ainda que discordantes entre si). O próprio

Mário de Andrade foi testemunha do embate entre adeptos da cultura francesa e os

professores de tradição italiana que monopolizavam o ensino de música no

Conservatório mais importante da cidade.

Neste contexto histórico, Mario de Andrade defendia a ideia de que a música

brasileira deveria ser nacionalista e que era na música popular que estavam os critérios

históricos para refletir as características musicais da raça.

O critério de música brasileira prá atualidade deve existir em relação à


atualidade. A atualidade brasileira se aplica aferradamente a
nacionalizar nossa manifestação... O critério histórico atual da Música
Brasileira é o da manifestação musical que sendo feita por brasileiro ou
indivíduo nacionalizado, reflete as características musicais da raça [...]
Onde que estas estão? Na música popular. (ANDRADE, 1972, p. 4)

Na Europa, o enfraquecimento do sistema tonal através do cromatismo

exacerbado, o uso de escalas não tradicionais, a exploração timbrística, o atonalismo,

relativização do conceito de consonância e dissonância abriram caminho para uma

série de tendências estéticas vanguardistas. Obras como Pierrot Lunaire (atonalismo),

Sagração da Primavera (violência sonora dos ruídos), Balé Parade (influenciado pela

música popular urbana) chocaram os ouvidos europeus. Embates entre passadistas e

vanguardistas da Belle Époque não poderiam deixar de ocorrer frente a posições

artísticas tão opostas.

No Brasil, a vanguarda modernista inspirou-se num outro movimento


europeu dos anos 1920: defesa da pesquisa e a apropriação pelos
compositores eruditos de elementos das chamadas culturas
―primitivas‖, ao mesmo tempo a defesa da nacionalização das artes
criando uma identidade cultural própria e singular. Essas duas
tendências redundaram num ―projeto‖ em prol do (re)descobrimento do
4
Brasil pelos intelectuais, opondo-se à sacralização das culturas
eurocêntricas defendidas pelos críticos e músicos da Belle Époque
(CONTIER, 2004, p. 13).

Mário de Andrade dá mais um passo a frente ao tentar impor uma tendência

musicalmente primitivista em seu Ensaio sobre a Música Brasileira de 1928. ―Toda a

arte socialmente primitiva que nem a nossa, é arte social, tribal, religiosa, comemorativa

[...] o indivíduo que não siga o ritmo dela é pedregulho na botina [...] A pedra tem que

ser jogada fora‖. Criticava até mesmo adeptos do nacionalismo por supostos ―desvios

de conduta‖ quando julgava que estes se utilizavam de estéticas ou materiais musicais

estrangeiros sem relevância para a corrente nacionalista primitivista. Defendia a ideia de

uma ―consciência criadora nacional‖ na pesquisa do folclore como eixo da modernidade

(1972, p. 4).

Em Villa-Lobos a maneira de polifonisar já não é mais o emprego direto


do processo popular mas uma ilação vasta dele. Si por vezes neste
compositor o processo se conserva nacionalmente reconhecível [...], se
por vezes a genialidade da invenção torna a obra impossível da gente
discutir [...] sempre isso contêm o perigo iminente de amolecer, abafar,
desvirtuar o carácter nacional da invenção. E é mesmo o que sucedeu
algumas feitas. A ilação, a generalização, o desenvolvimento dos
processos populares tem de ser feito sempre com muito critério porque
senão a peça pode perder o carácter nacional, como é o caso do trio
"Serrana", aliás esplêndido, de Henrique Osvaldo (1972, p. 19).

Ao citar os termos ―emprego do processo popular‖ Mário de Andrade se

concentrava em outra plataforma estética do nacionalismo, a tentativa de separar a ―boa

música‖ (apoiada na junção estética nacionalista com a ilação do folclore brasileiro) da

―música má‖ (popular urbana, massificadora ou até mesmo europeizante). Na

incorporação e sublimação da rusticidade do folclore o compositor da música de ―alta

cultura‖ não deveria se apropriar da cultura popular, rural ou urbana de maneira a copiá-

la, mas a buscar nessa música o espírito verdadeiro daquilo que é realmente brasileiro,
5
preservando, entretanto, o processo que torna sua música ―nacionalmente

reconhecìvel‖.

Na época das afirmações nacionalistas mais veementes de Mário de Andrade,

Villa-Lobos já possuía um projeto modernista independente, forjado por suas

experiências vividas em sua primeira passagem pela capital francesa. Em 1928, ano do

lançamento do Ensaio sobre a Música Brasileira de Mário de Andrade, o compositor

estava em plena atividade nacionalista, expressando um primitivismo nunca dantes

alcançado, nem posteriormente superado. A série Choros surge como resultado desta

manifestação estética de extrema vanguarda dentro da música brasileira. Vejamos

como isso ocorreu.

A Incorporação do Primitivismo Nacionalista por Villa-Lobos

Durante sua juventude Villa-Lobos participava frequentemente das rodas de

chorões. O primeiro grupo que ele começou a tocar foi o do violonista Quincas

Laranjeiras. Além deste chorão, Villa-Lobos tornou-se amigo de importantes músicos do

cenário do choro, entre eles João Pernambuco e Anacleto de Medeiros (NEGWER,

2009, p. 26 e 28). O biografo do compositor, Vasco Mariz, aponta que com a morte de

Raul Villa-Lobos, Heitor começou a vender os livros mais valiosos da biblioteca do pai

para pagar bebidas aos músicos com os quais queria tocar (MARIZ, 2005, p. 139).

Existem poucos documentos que descrevem os acontecimentos vividos pelo

compositor entre 1905 e 1912, o que leva os biógrafos de Villa-Lobos a admitirem o fato

de ele estar em viagens pelo país durante este período. Segundo relatos e descrições

6
do próprio compositor, foi nestas viagens que ele coletou materiais musicais dos povos

indígenas brasileiros, do sertanejo nordestino, do canto de pássaros da Amazônia e

teve contato direto com a cultura do norte e nordeste do Brasil. Embora os relatos feitos

pelo próprio compositor sobre suas viagens sejam bastante duvidosos, apenas dois

documentos pertencentes ao Museu Villa-Lobos comprovam que ele realmente

empreendeu tais viagens. O primeiro, um concerto dado por ele em Paranaguá, cidade

em que trabalhou entre 1907 e 1908. O segundo, um concerto em Manaus, destino de

uma companhia artística em que Villa-Lobos trabalhava como violoncelista

acompanhador de espetáculos de teatro. De fato, seus relatos de viagem são bastante

extensos, em determinado momento posterior ele afirmou que cruzou o interior do

Brasil, inclusive o rio Amazonas e o Xingu, a bordo de uma canoa.3 Entretanto, tais

afirmações foram feitas em um momento em que o compositor já se denominava

nacionalista e tentava ganhar a vida em Paris promovendo concerto em uma cidade que

valorizava o exótico (GUÉRIOS, 2003, p. 86).

GUÉRIOS continua:

Ao voltar de Manaus para o Rio de Janeiro em 1912, Villa-Lobos


passou a tirar seu sustento atuando como músico de orquestra em
sociedades sinfônicas, cinemas e cafés. Ao mesmo tempo, conviveu
com os músicos de rua da cidade, os ―chorões‖, em sua maioria
funcionários públicos de baixo escalão que tocavam à noite em festas
como batizados, casamentos e aniversários nas casas da periferia. Em
uma época em que discos e rádios eram privilégio das classes
superiores, a população pobre apenas ouvia música através de grupos
como os dos chorões.
Não é possível saber a intensidade e a qualidade do contato de Villa-
Lobos com os músicos populares de sua cidade. Por um lado, ele
convivia nos mesmos espaços, ocupava a mesma posição
socioeconômica e aprendera a tocar o instrumento dos chorões, o
violão, para o qual comporia extensa obra mais tarde; por outro, sua
formação erudita e seu trabalho em orquestras separavam-no dos
músicos amadores populares.

3
A escritora Lisa Peppercorn comenta detalhadamente as supostas viagens de Villa-Lobos no
segundo capítulo – Viagens Pelo Brasil - de seu livro: Villa-Lobos – Biografia ilustrada do
mais importante compositor brasileiro. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
7
Esse outro pertencimento de Villa-Lobos o afastou da música popular
em seus primeiros anos como compositor. De fato, a música popular
era muito depreciada no Rio de Janeiro até 1920; após esta data,
alguns estudiosos e folcloristas iniciaram sua valorização em um
movimento que a tornaria um dos símbolos da nacionalidade. Mas
durante a década de 10, quando um músico ―sério‖ queria ofender seu
concorrente, as categorias de acusação acionadas eram expressões
como ―compositor de maxixes‖ ou ―assobiador‖ (2003, p. 87).

Villa-Lobos parecia gostar e desejar o contato com a música e os músicos do

contexto popular, porém não desejava ser reconhecido como compositor popular, ou

como diriam os músicos sérios (e preconceituosos), ―compositor de maxixes‖.

Ele compôs várias peças entre 1912 a 1920. As que mais se destacam são suas

duas primeiras sinfonias, o poema sinfônico O Naufrágio de Kleonicos, a ópera Izaht, as

Danças Características Africanas e a Prole do Bebê. Refletem sua preocupação em ser

reconhecido como um compositor importante dentro do cenário nacional e não como um

compositor nacionalista necessariamente. As influências marcantes das peças

compostas nesse período remetem-se a Wagner, Franck, Debussy, Puccini, Saint-

Saëns e D‘indy. O Cours de Composition Musicale de D‘indy era amplamente divulgado

no Instituto Nacional de Música. Foi ali que Villa-Lobos teve contato com a obra de

D‘indy, quando frequentou aulas noturnas (GUÉRIOS, 2003, p. 87).

Villa-Lobos começou a dar concertos de suas peças camerísticas a partir de

1915. Em 1918 ele organizou um concerto com peças sinfônicas. O auditório do

Instituto nacional de Música serviu algumas vezes de palco para a estreia de obras

suas, visto que a filosofia do Instituto, desde a proclamação da República e as gestões

de Leopoldo Miguel e Alberto Nepomuceno a frente do mesmo, era contrária e

progressista em relação à estética tradicionalista da música italiana.

8
Em 1919 Villa-Lobos foi lembrado para compor uma sinfonia em comemoração a

Epitácio Pessoa, que retornava de Paris, após ter participado como representante do

Brasil de uma conferência sobre o fim da Primeira Guerra Mundial. Três obras deveriam

ser executadas, ―A Guerra‖, ―A Vitória‖ e ―A Paz‖. A primeira foi designada a Villa-Lobos,

a segunda a Otaviano Gonçalves e a terceira a Francisco Braga. Os Jornais da época

relatam como a peça de Villa-Lobos fora a mais aplaudida, o que contribuiu para que o

compositor fosse reconhecido como importante compositor no cenário carioca. A partir

daí ele passou a ser lembrado em concertos de regentes e pianistas de fama

internacional que passavam pelo Rio de Janeiro (GUÉRIOS, 2003, p. 89).

A primeira vez que Villa-Lobos apresentou peças de caráter nacional foi em um

concerto realizado em abril de 1921 e patrocinado por Laurinda Santos Lobo. Foram

apresentadas além do quarto ato da ópera Izaht as peças A lenda do Caboclo, Viola e

Sertão no Estio. O motivo da apresentação de peças com temática nacional foi por ele

mesmo explicitados nos jornais da época como comemoração ao centenário da

independência do Brasil. O compositor desejava que suas peças fossem aproveitadas

nos festejos da ocasião. Um segundo concerto foi promovido por dona Laurinda, incluía

além de peças influenciadas pela estética de Debussy, obras influenciadas pela cultura

brasileira. Este concerto chamou a atenção de um grupo de artistas modernistas de São

Paulo. Veio então o convite para a participação na Semana de Arte Moderna de 1922.

Como consequência do sucesso estético que a música de Villa-Lobos teve entre os

organizadores da Semana de 22, os anos que se seguem após a participação do

compositor na mesma são decisivos na vida do compositor, pois os preparativos para

uma temporada em Paris são feitos, o que acontece no ano seguinte.

As peças (ainda que nacionalistas) anteriores a sua primeira estada em Paris

apresentam um nacionalismo sob a ótica estético musical Debussysta, mais voltadas ao


9
objetivo de reconhecimento do compositor dentro do cenário brasileiro. As obras

posteriores ao retorno do compositor ao Rio em 1924 ou até mesmo as que foram

compostas durante sua segunda permanência em Paris 1927-30, das quais os Choros

constituem parte essencial, refletem influências muito mais associadas ao primitivismo

de Stravinsky. Uma declaração sua durante a Semana de Arte Moderna de 22, portanto

anterior à sua primeira viagem a Paris, demonstra concepções que vão além de suas

influências musicais e escancara um nacionalismo musical não amadurecido.

As eras assírias, as relíquias esculturais da Coreia, o misticismo da


Índia, o amor abnegado do culto de beleza entre os Visigodos, a
melopeia romana, a Epopeia grega, as excursões gregorianas, que
legaram à humanidade essa beleza eterna do cantochão, influíram
fortemente sobre certos aspectos da minha estética (GUÉRIOS, 2003,
p. 97).

Se comparada com uma declaração feita após seu retorno ao Brasil em 1924 é

notória a mudança de paradigma.

É na formação das artes de um país, que existe a cega necessidade


imprescindível de colher os principais motivos na sua própria natureza,
como fizeram todas as grandes nações que mais se distinguiram pela
sua maneira própria de ser, algumas delas chegando mesmo a dominar
o espírito artístico universal, implantando sugestivamente um Belo que
nada tem de comum com o Belo de outros povos de temperamentos
completamente opostos. É verdade que nestes casos resulta sempre
num curioso fenômeno de condições e paradoxos. Por exemplo, (sem
ironia) no Brasil [...] veneram com eloquência todos os feitos da
Grécia/Roma antiga e ridicularizam as façanhas dos nossos primitivos
selvagens. [...] É isso que se chama talvez, modernamente, esnobismo
(GUÉRIOS, 2003, p. 97 e 98).

A exaltação a natureza, incorporação de elementos folclóricos e acima de tudo o

exoticismo ganharam novas dimensões estéticas. A audição da Sagração da Primavera

foi descrita pelo próprio Villa-Lobos como ―a maior experiência musical de minha vida‖.

Ao observar a visão de Stravinsky frente à natureza selvagem e seu ―pulsar‖, Villa-

10
Lobos aos poucos altera a sua concepção estética frente ao primitivo e a rusticidade

naturais. A Paris da década de 20 supervalorizava o exótico, não importando sua

origem. Exposições artísticas e musicais do mundo inteiro eram acolhidas e absorvidas

pela vanguarda modernista da época. Daí a concepção antropofágica de Oswald de

Andrade. A própria figura de Villa-Lobos se constituía em um elemento exótico para sua

música.

Desde o Manifesto Pau-Brasil, os vanguardistas pretendiam criar uma


arte e uma literatura modernas no Brasil ‗autenticamente nacional‘. Mas
como renovar, ser moderno, sem copiar os modelos europeus? A
Antropofagia aparecia como maneira de conciliar o desejo de
abrasileiramento, de construir, pela arte, uma identidade cultural própria
com a admiração pelas vanguardas europeias: no canibalismo, o
inimigo era devorado somente se exibisse qualidades especiais; para
ser comido e não apenas morto, deveria ter atributos desejáveis como
valentia na luta e coragem na derrota. Assim, a degustação do inimigo
possibilitaria a aquisição de suas qualidades através de sua
destruição.‖ Assim, cultivando o mesmo princìpio, Oswald de Andrade
lançou seu Manifesto Antropofágico com a ideia de alimentar-se de
tudo o que o estrangeiro trazia para o Brasil, sugar lhe todas as ideias
e uni-las às brasileiras, realizando, assim, uma produção artística e
cultural rica, criativa, única e própria (CONTIER, s/d, p. 6 e 7).

Ao expor em 1923 na capital francesa uma estética apoiada na música de

Debussy colocou-se frente a um embate estético (e por pouco físico)4 com Jean

Cocteau.

4
Por ocasião da chegada de Villa-Lobos a Paris, Tarsila (do Amaral) ofereceu um jantar, no qual,
dentre muitos outros, estavam o poeta Blaise Cendrars e o compositor Eric Satie. Até mesmo
Jean Cocteu aceitara o convite: o gênio universal era considerado mentor intelectual da
vanguarda parisiense na literatura e sentia-se tão à vontade com as artes plásticas quanto à
música. O animado debate entre brasileiros e franceses concentrava-se progressivamente na
música e em sua improvisação. Villa-Lobos sentou-se com a habitual altivez ao piano da casa e
começou a improvisar, enquanto Jean Cocteau, atentamente ouvindo, colocou-se atrás do
instrumento. Passados os primeiros minutos, Cocteau sentou-se novamente em sua poltrona e
criticou sem piedade o que havia ouvido, condenando aquilo como uma fusão estilística à moda
de Debussy e Ravel. Villa-Lobos sentou-se novamente e tentou outra coisa, recebendo mais
uma vez protestos de Cocteau. Ele duvidava que uma improvisação ―sob encomenda‖ pudesse,
artisticamente ter algum sentido. A discussão acalorada que se seguiu entre Cocteau e Villa-
Lobos acabou em atos hostis. [...] Em 1918, Cocteau havia reivindicado, em sua obra Le coq et
11
Pode-se imaginar a decepção de Villa-Lobos quando, ao invés de ser
aclamado ao mostrar suas obras ―modernas‖ para artistas de
vanguarda franceses, foi duramente criticado. Na verdade, o
desentendimento entre Cocteau e Villa-Lobos pode ser visto como um
curto-circuito entre as concepções que ambos portavam enquanto
personagens de universos sociais muito distintos, apesar de tratarem
da mesma manifestação cultural — a produção de música erudita
ocidental moderna e anti-romântica. No Rio de Janeiro, Villa-Lobos era
considerado ousado e vanguardista por utilizar elementos da estética
de Debussy; em Paris, esse mesmo uso faria com que ele fosse
criticado pelo principal representante da vanguarda. Esse encontro foi
apenas o primeiro momento de todo um processo de mudanças que
sofreriam a partir de então as preocupações estéticas de Villa-Lobos.
Ao longo do ano em que ele ficou em Paris, sua obra sofreu uma
transformação significativa (GUÉRIOS, 2003, p. 93).

Inquietações provocadas por este (e outros) embate(s), as experiências vividas

entre a elite artística parisiense e o ambiente cultural da capital francesa, fizeram com

que Villa-Lobos alterasse consideravelmente sua visão de nacionalismo.

Entre 1923 e 1924 Villa-Lobos encontrou na Bibliothèque Nationale de Paris

diversos relatos de pesquisadores viajantes europeus contendo transcrições musicais

de melodias indígenas. Durante esse período ele consultou sistematicamente obras

como: História de uma viagem à terra do Brasil de Jean de Léry, Rondônia de Edgar

Roquette-Pinto e a coleção de lendas do Amazonas Poranduba amazonense,

compilada por João Barbosa Rodrigues. Segundo NEGWER (2003, p.162) ―as leituras

fundiram sua pseudocultura às suas experiências anteriores de viagem, transformando-

se em expressões programáticas conscientes‖, a ponto de Villa-Lobos declarar: ―O

folclore sou eu. As melodias que escrevo, assim como eu, que as recolho são folclore

puro‖.

l’arlequin, a renúncia ao Romantismo e ao Impressionismo e a abertura da música frente ao


teatro de variedades, ao cinema e ao jazz (NEGWER, 2009, p. 146-148).

12
As condições financeiras de Villa-Lobos no segundo semestre de 1924 não

permitiram que ele continuasse em Paris por muito mais tempo e no fim do mesmo ano

já estava de volta ao Brasil. Pouco tempo depois começou a ouvir no Museu Nacional

os fonogramas de gravações de música indígena compilados por Roquette-Pinto

durante a expedição Rondon de 1908. Para Negwer (2009, p. 159), o interesse

minucioso a respeito da música exótica dos indìgenas não foi resultado de ―pesquisas

aventureiras em anos precoces‖, mas sim de um compositor já maduro que depois da

―experiência em Paris‖ descobriu as bases da música de seu país.

É neste período que a maior parte da série Choros é composta, principalmente

os orquestrais, refletindo não apenas suas novas concepções estéticas ―pós-

Debussystas‖, mas também uma nova maneira de evidenciar a junção do maior número

de elementos folclóricos, populares e nacionais. Ao transformar a rusticidade do

sertanejo, a ginga do malandro carioca, o canto dos índios em música erudita moderna

vanguardista, Villa-Lobos monumentaliza musicalmente a estética mário-andradiana de

nacionalismo.

Wisnik (2004, p. 136) ressalta que durante a década de 1920 o grande projeto

de composição de Villa-Lobos foi a série Choros, onde trabalha a ―matriz popular

urbana, amalgamada com blocos de outras informações, primitivas negras e indígenas,

rurais, suburbanas e cosmopolitas – da vanguarda europeia‖. ―A sinfonização e a

ordenação do tumulto musical brasileiro‖ passavam pela confluência das entre as duas

maiores influências exercidas sobre sua formação, erudita e popular urbana, e foram

projetadas pela ―bricolage” de diferentes técnicas e fontes. ―O alcance deste processo

foi violentamente mais amplo do que o nacionalismo ortodoxo‖.

13
Os Choros

A série Choros de Villa-Lobos compõe uma parte importante do repertório do

compositor. Surge como expressão de liberdade composicional, expressa musicalmente

a junção das três raças constituintes da nação ou povo brasileiro, a saber: o índio, o

negro e o branco. Segundo França (1990, p. 163) ―são composições que nasceram da

convivência do compositor com os chorões do tipo popular‖, ―da orquestra de

seresteiros do morro e da rua‖.

Nobrega (1973, p. 9) afirma:

Os Choros representam uma nova fase na composição musical, na


qual são sintetizadas as diferentes modalidades da música brasileira
indígena e popular, tendo por elementos principais o ritmo e qualquer
melodia típica de caráter popular que aparece vez por outra,
acidentalmente, sempre transformada segundo a personalidade do
autor. Os processos harmônicos são, igualmente, uma estilização
completa do original.

Enquanto Negwer (2009, p. 165) destaca que:

Villa-Lobos, ao utilizar o termo ―choro‖, não pretendia contribuir com a


música popular nem criar uma nova forma abstrata de música erudita.
Ao contrário, seu objetivo era chegar a uma síntese de todos os
elementos estilísticos de formas da música brasileira que lhe pareciam
relevantes. Assim como o choro da música popular, que se tornou algo
novo através da mistura, a partir dos anos 1870, com as danças de
salão europeias, como polca, schottish, mazurcas e valsas, Villa-Lobos
também pretendia, aí, uma mistura mais ampla de estilos musicais
brasileiros. Os Choros de Villa-Lobos deveriam conter a música popular
urbana, o carnaval, e as serestas, bem como a música dos índios e dos
afro-brasileiros.

Segue abaixo uma breve descrição comentada de cada Choros, mostrando

como as influências da cultura nacional (popular urbana, indígena e europeia)


14
influenciaram tais peças no sentido de torná-las símbolos do nacionalismo dos anos 20

e expressão máxima da vanguarda villalobiana.

O Choros 1 para violão solo é o primeiro da série e foi composto em 1921.

Homenageia os chorões famosos da época com síncopes e passagens rítmicas bem

características da música popular urbana do Rio de Janeiro (NEGWER, 2009, p. 165).

O Choros 2 para flauta e clarinete foi escrito em Paris em 1924. É dedicado a

Mário de Andrade e apresenta uma instrumentação bastante reduzida. Evidencia dois

instrumentos solo muito utilizados nas rodas de choro e estiliza com grande liberdade

rítmica a música popular urbana. O compositor não desenvolve o conteúdo temático, de

maneira que através de superposições de entradas curtas a peça soa como

improvisação de dois músicos se preparando para tocar (NEGWER, 2009, p. 166).

Mário de Andrade traça o seguinte comentário sobre a peça:

Será possível descobrir ainda outras constarias melódicas porém isso


deixo para os músicos mesmo. Os admiráveis Choros de Villa-Lobos,
para conjuntos instrumentais de câmara (v. Choros 2, ed. C. Artur
Napoleão; Choros 4, ed. Max Eschig), todos são verdadeiros mosaicos
de constarias e elementos melódicos brasileiros‖ (1972, p. 17)

Dedicado a Oswald de Andrade o Choros 3 ―Pica-Pau‖ de 1925 é um dos que

mais evidencia a nova postura primitivista de Villa-Lobos. É clara a intenção do

compositor de harmonizar as três concepções básicas da música brasileira: a música

indígena (ameríndia), popular urbana e a erudita. É composto para coro masculino e

septeto de sopros incluindo clarinete, saxofone contralto, fagote, trio de trompetes e

trombone. Este Choros é conhecido pelo tema ―Nozani-na‖, originalmente dos ìndios

parecis, extraído da coletânea de Edgar Roquette-Pinto. Para NEGWER (2009 p. 166)

―a relação dessa melodia e da polifonia inexistente nos ìndios representa uma

15
miscigenação cultural consciente‖. A parte coral executa posteriormente as sìlabas da

palavra ―Pica-Pau‖ de maneira staccatto e causando o efeito onomatopéico5 do bico do

pássaro batendo na madeira. Seguem-se figuras rítmicas dos metais, que sugerem

danças de rituais nativos. ―Finalmente, o coro ―pica-pau‖ é adaptado a um ritmo popular

urbano, fazendo florescer uma atmosfera dançante‖. A peça também chama a atenção

porque tanto a parte do coro quanto a parte instrumental do septeto podem ser

apresentadas separadamente.

Este Choros representa muito bem a estítica agregadora do nacionalismo mário-

andradiano e o primitivismo oswaldiano, bem mais desenvolvidos após o retorno do

compositor de Paris (1924). Para Mário de Andrade:

O que a gente deve mais é aproveitar todos os elementos que


concorrem para formação permanente da nossa musicalidade étnica.
Os elementos ameríndios servem sim porque existe no brasileiro uma
porcentagem forte de sangue guarani. E o documento ameríndio para
propriedade nossa mancha agradavelmente de estranheza e de
encanto soturno a música da gente. Os elementos africanos servem
francamente se colhidos no Brasil porque já estão afeiçoados à
entidade nacional. Os elementos onde a gente percebe uma tal ou qual
influência portuguesa servem da mesma forma. O compositor brasileiro
tem de se basear quer como documentação quer como inspiração no
folclore. Este é, em muitas manifestações caracteristiquissimo,
demonstra as fontes donde nasceu. O compositor por isso não pode
ser nem exclusivista nem unilateral. Se exclusivista se arrisca a fazer
da obra dele um fenômeno falso e falsificador. E sobretudo facilmente
fatigante. Se unilateral, o artista vira antinacional: faz música
ameríndia, africana, portuga ou europeia Não faz música brasileira não
(ANDRADE, 1972, pp. 8 e 9).

O músico brasileiro deveria se aproveitar do material folclórico vindo de todas as raças

que compõem o povo brasileiro, sem ser ―exclusivista nem unilateralista‖. Além disso, a

participação do coro dentro do ambiente musical nacionalista agrega valores

representativos para o pensamento vigente da corrente modernista.

5
Muito comum nas obras Villalobianas.

16
O uso do folclore e o incentivo à prática coral como fator de educação
musical remontam a corrente modernista nacionalista (liderada por
Mário de Andrade), que pregava a música folclórica nacional como
fonte essencialmente brasileira de criação estético musical, desprovida
da contaminação dos gêneros musicais europeus. Além desses
elementos, a música coral viria carregada de valor social (ao contrário
da ―música de elite‖, tida então como individualista e sem engajamento
social), sendo considerado por Mário de Andrade como ―a mais coletiva
de todas as artes‖. O canto em conjunto era sìmbolo dessa coletividade
(Lisboa e Sekeff, 2005, p. 141).

No Choros 4, composto no Rio de Janeiro em 1926, Villa-Lobos optou por uma

instrumentação não usual. Três trompas e um trombone. NEGWER (2009, p. 167)

afirma que ―a peça é inspirada na música popular suburbana, da ―Cidade Nova‖, [...]

onde surgiram as novas tendências da música popular. Particularmente, a peça soa

como um ragtime, [...], misturam-se danças de salão europeias a uma rítmica

influenciada pela África‖.

―Alma Brasileira‖ é o nome como o Choros 5 ficou conhecido. Dedicado àquele

que patrocinara sua primeira viagem a Paris, Arnaldo Guinle, a peça escrita para piano

muito se utiliza de efeitos expressivos como rubatos e rittardandos. Inspira-se na

maneira de tocar dos seresteiros.

O Choros 6 é o primeiro das série que se utiliza da orquestra completa. Produz

um efeito de poema sinfônico de grandes proporções. Segundo o próprio Villa-Lobos a

peça foi escrita em 1926, entretanto o fato da mesma ter sido estreada apenas em 1942

levanta a hipótese de que esta tivesse sido composta em 1930, quando o compositor

retorna de Paris. Seria improvável que ele não tivesse estreado a peça na capital

francesa, visto ser ela de grandes proporções instrumentais, o que a tornaria atraente

para a visibilidade do compositor brasileiro naquele momento. Este Choros é marcado

na sua instrumentação pela grande seção de percussão, que inclui instrumentos

17
vernáculos brasileiros como: bombo, tartaruga, camisão grande, cuíca, reco-reco,

tambú, tambí, tambores, chocalho, tamborim de samba. Inicia-se com acentos de um

instrumento bastante exótico, o roncador grave, que lembra ritos arcaicos dos índios e

remete sonoramente associações com a floresta tropical. Melodicamente, remete à

música rural do Nordeste, além de apresentar reminiscências da valsa e do samba.

Villa-Lobos reconstrói habilmente o ambiente sonoro de pequenos lugarejos do interior

do Brasil. Em alguns trechos ouvem-se alusões aos temas de Lundu característico de

Joaquim da Silva Callado e O Nó do trombonista Cândido Pereira da Silva (NEGWER,

2009, p. 169).

É notória a fusão de instrumentos tipicamente brasileiros com a massa sonora

da orquestra, composta de instrumentos tradicionais da música de concerto. Tal fusão

vai de encontro aos pressupostos nacionalistas de Mário de Andrade, que não

discriminava o uso de instrumentos tradicionais nem vernáculos. No Ensaio sobre a

Música Brasileira ele escreve:

O fato da maioria desses instrumentos serem importados não impede


que tenham assumido até como solistas, carácter nacional. O próprio
piano aliás pode ser perfeitamente tratado pelo compositor nacional
sem que isso implique desnacionalização da peça. O violino se acha
nas mesmas condições e está vulgarizadíssimo até nos meios
silvestres. Numa fazenda de zona que permaneceu especificamente
caipira, tive ocasião de escutar uma orquestrinha de instrumentos feitos
pelos próprios colonos. Dominavam no solo um violino e um violoncelo
[...] bem nacionais. Eram instrumentos toscos não tem dúvida mas
possuindo uma timbramento curiosa meia nasal meia rachada, cujo
carácter é fisiologicamente brasileiro (1972, p. 20).

Setimino ou Settimo são nomes pelos quais o Choros 7 ficou conhecido. Foi

composto em 1924 e sua instrumentação conta com: flauta, oboé, clarinete, saxofone

alto, fagote, violino e violoncelo. A fusão entre as culturas primitiva e urbana é mais uma

18
vez observada com a presença do tema ―Nozani-ná‖ (do Choros 3), desta vez

mesclada com elementos da música dançante urbana (NEGWER, 2009, p. 169).

A primeira audição do Choros 8 em 1927 causou grande impressão no cenário

musical parisiense. Provida de uma ―aglomeração imponente e descompromissada de

efeitos rítmicos e dissonantes, a peça recebeu até mesmo um complemento exagerado

de ―Sacre du Printemps” do Amazonas”. A rusticidade implícita entretanto assemelha-se

com a da Sagração. ―O acontecimento musical é executado por partículas e estilhaços

temáticos, que rompem cada vez mais os limites entre melodia e ritmo‖. É escrito para

orquestra e grande seção de instrumentos vernáculos percussivos como: cuíca,

matraca, caracaxá e cocos secos. Dois pianos completam a orquestração, um

percussivo e outro solista. Mariz (2000, p. 162) o descreve como ―o Choro do carnaval

carioca nos seus múltiplos aspectos e heranças‖.

Esteticamente Villa-Lobos se utiliza, nas progressões melódica iniciais, de um

contraponto atonal, evitando assim a sintaxe tonal. Neste Choros são raras as

caracterizações melódicas, pois prevalecem os fragmentos melódicos, entretanto em

alguns momentos é possível notar uma melodia caracterizada, geralmente ela é

inserida em um determinado ponto sobre uma massa orquestral quase imóvel. Villa-

Lobos emprega frequentemente a melodia diatônica, destacada sobre uma massa

orquestral cromática (ou vice-versa). Ao rememorar uma canção folclórica – no caso

uma variante melódica do Sapo cururu - o ouvido tende a associar a linearidade dessa

representação nacionalista com a densa massa orquestral (SALLES, 2009, pp 142 e

212). Posteriormente a melodia do tango Turuna de Ernesto Nazareth aflora-se de

forma distanciada como motivo rítmico, contribuindo para o movimento animado. A peça

termina apoteoticamente com predomínio dos instrumentos de percussão. Dentro desta

ideia estética Mário escreve:


19
O que a gente deve mais é aproveitar todos os elementos que
concorrem para formação permanente da nossa musicalidade étnica.
Os elementos ameríndios servem sim porque existe no brasileiro uma
porcentagem forte de sangue guarani. E o documento ameríndio para
propriedade nossa mancha agradavelmente de estranheza e de
encanto soturno a música da gente. Os elementos africanos servem
francamente se colhidos no Brasil porque já estão afeiçoados à
entidade nacional. Os elementos onde a gente percebe uma tal ou qual
influência portuguesa servem da mesma forma. O compositor brasileiro
tem de se basear quer como documentação quer como inspiração no
folclore. Este, em muitas manifestações de caracteristiquissimo,
demonstra as fontes donde nasceu. O compositor por isso não pode
ser nem exclusivista nem unilateral. Se exclusivista se arrisca a fazer
da obra dele um fenômeno falso e falsificador. E sobretudo facilmente
fatigante. Se unilateral, o artista vira antinacional: faz música
ameríndia, africana, portuga ou europeia Não faz música brasileira não
(1972 p. 8 e 9).

No caso do Choros 8 de Villa-Lobos o ―aproveitar todos os elementos que

concorrem para a formação permanente de nossa musicalidade étnica‖ representa

aproveitar aquilo que o compositor mais tinha em sua inconsciência musical, a música

popular urbana do Rio de Janeiro.

Segundo Villa-Lobos o Choros 9 foi composto no Rio de Janeiro em 1929. Teve

sua estreia na mesma cidade apenas em 1942. Esta obra, segundo NEGWER (2009, p.

170), reflete a busca por uma ―música pura, absoluta, [...], comprometida também com a

natureza brasileira‖, ―sem o empréstimo que caracteriza de forma decisiva o carnaval ou

as reminiscências da percussão da música indìgena‖. A canção ―Oh, Dandan‖ contida

neste Choros foi retirada por Villa-Lobos da coletânea de Roquette-Pinto. Trata-se de

uma canção rural do Mato Grosso.

Considerado o ponto alto da série, o Choros 10 ficou conhecido como Rasga

Coração. Mário de Andrade o denominou como ―o mais verdadeiro e apoteótico hino da

música brasileira‖ (HORTA, 1987, p. 54). Durante os, aproximadamente treze minutos

da peça, o compositor funde a atmosfera urbana do choro e do carnaval aos sons da

20
natureza. As vozes dos pássaros tropicais (azulão da mata), a revoada de pássaros

representada pelos tremolos dos instrumentos de madeira no agudo formam o ambiente

sonoro para a entoação do tema Mokocê-cê-maká, uma canção de ninar indígena. Na

segunda metade da peça uma fanfarra de trompetes introduz uma cadência marcial.

Negwer (2009, p. 171) destaca que:

cada registro de voz se agrega a uma combinação de sílabas que,


cantadas juntas, desenvolvem uma dinâmica rítmica própria e obtêm
um efeito polirrítmico partindo dos diferentes valores das vogais. A
língua indígena, inventada por Villa-Lobos, possibilita a entrada
grandiosa de elementos sonoros condensados em uma teia de sons
que se distanciam consideravelmente das palavras indígenas [...] A
rítmica de passagens de coro a sete vozes cria um efeito hipnotizador,
[...] Na última parte utiliza-se a canção Yara, de Anacleto de Medeiros.

Esta canção tornou-se muito conhecida na época em todo o país sob o titulo de

Rasga Coração. Se levada em consideração a complexidade rítmica do Choros 10

Mário de Andrade tinha razão ao afirmar:

O brasileiro se acomodando com os elementos estranhos e se


ajeitando dentro das próprias tendências adquiriu um jeito fantasista de
ritmar. Fez do ritmo uma coisa mais variada mais livre e sobretudo um
elemento de expressão racial (1972 p. 10).

O Choros 11 possui, segundo Negwer (2009, p. 172), a ―forma de um concerto

grosso moderno‖. Dedicado a Artur Rubinstein, é o Choros mais longo da série. Nele o

compositor na coloca o caráter nacional em segundo plano e concentra-se mais na

universalidade. Por ser extenso demais e extremamente virtuosístico o Choros 11

raramente é executado. O próprio compositor sugeriu que a peça fosse dividida em três

ou quatro movimentos e até chegou a fazer uma versão reduzida com 35 minutos de

duração.

21
O Choros 12 é caracterizado pela abundância de ideias melódicas. Apresenta

uma série de melodias brasileiras rurais e urbanas de diferentes regiões, que se

fundem, ―como um afresco surpreendente amplo‖ (NEGWER, 2009, p. 172). Foi

composto para grande orquestra. O compositor comentou sua peça como ―forte, grande

e robusto como um velho elefante‖. Para Mariz: ―percebe-se amadurecimento artístico e

desusado equilíbrio na construção‖ (2000, p. 163).

Completam a série Choros a Introdução aos Choros, para orquestra de violões

(com uma cadência ad lib. para o violão solo) que Villa-Lobos compôs como uma

introdução apropriada para todo o conjunto de peças da série, e o Quinteto em forma

de choro, composto em 1929. Os Choros 13 e 14 foram, segundo o próprio

compositor, perdidos quando seu apartamento foi desmontado em Paris por ocasião de

sua mudança para o Brasil em 1930 (NEGWER, 2009, p. 173). O biógrafo de Villa-

Lobos, Vasco Mariz (2000, p. 163), escreve que o Choros 13 foi instrumentado para

duas orquestras e banda. O Choros 14 seria o mais violento de todos e sintetizaria as

razões estéticas de toda a obra. Mariz faz tais afirmações baseado em depoimentos do

próprio compositor.

Após breve análise da instrumentação dos Choros é possível constatar que Villa-

Lobos parte do próprio ambiente do choro carioca com o violão (Choros 1), flauta e

clarinete (Choros 2) expandindo para instrumentações camerísticas (Choros 3, 4 e 7) e

orquestrais (Choros 6, 8, 9, 10, 11, 12). As últimas peças da série (Choros 13 e 14),

enquanto extraviados, impossibilitam a análise dos mesmos.

Na opinião de Negwer (2009, p. 174) nos Choros, Villa-Lobos se afastou das

―convenções da tradição europeia‖ como em nenhum outro conjunto de obras. ―A

dialética forma-sonata desenvolvida pela tradição ocidental, tanto quanto seus modelos

22
românticos e impressionistas posteriores, e os princípios atonal e serial mostraram-se

inúteis às intenções formuladas por Villa-Lobos‖. Salles amplia a compreensão sobre a

importância da série Choros e como ela trabalha (precursoramente) a ideia de

resultantes acústicas, e ambientação sonora.

Ao buscar uma compreensão ―a partir do som‖, Villa-Lobos pode ser


considerado (assim como Debussy, Stravinsky, Bartok e outros
compositores do início do século XX) um precursor intuitivo de certas
práticas que transformaram a percepção musical e foram devidamente
codificadas e reconhecidas com o advento da eletrônica após na
década de 1950 (embora ele jamais se mostrasse interessado por essa
tecnologia naquela época). Muitas de suas obras, especialmente os
Choros, apresentam elementos que ajudam a construir a noção de
autonomia entre camadas superpostas ou justapostas de materiais
musicais que culminou com a definição de objeto sonoro adotada pela
música concreta e eletrônica surgida no pós-guerra (2009, p. 166).

Em relação à diferença entre as séries Choros e a tão conhecida Bachianas

Brasileiras, Botti (s/a) ressalta a importância das estruturas harmônicas presentes na

série Choros, enquanto nas Bachianas sua ênfase é o retorno à tonalidade. ―Se em

grande parte dos Choros, podemos observar uma orientação harmônica voltada aos

experimentos atonais, modais e politonais, nas Bachianas predomina o encadeamento

harmônico tradicional‖ (apud SALLES, 2009, p. 155).

Esse retorno à tonalidade irá provocar alguns problemas interessantes


na poética villalobiana, já que na época em que inicia as Bachianas ele
é um compositor maduro, enfrentando o desafio de adaptar sua
estética composicional, adquirida em um contexto sem restrições
harmônicas e contrapontísticas, em um contexto mais convencional no
qual ele iria tentar deixar sua marca pessoal (SALLES, 2009, p. 155).

As Bachianas Brasileiras talvez tenham sido uma tentativa de responder a

questão de: como voltar a empregar a tonalidade sem soar como Wagner, Puccini e

outras influências importantes do período anterior? Essa é uma pergunta para outro

23
estudo. Entretanto a hipótese levantada por Salles merece consideração se vista pela

ótica de Negwer, que ressalta a importância vanguardista da série Choros como a mais

afastada das tradições europeias Enquanto as Bachianas ganharam popularidade pela

beleza formal e retorno às tradições clássicas, os Choros continuam a despertar a

atenção de estudiosos interessados em desvendar as principais contribuições de Villa-

Lobos para a estética musical modernista da primeira metade do século XX. A evolução

estética mais significativa da carreira de Villa-Lobos ocorreu em solo francês, motivada

pelo ambiente cultural parisiense e pelo pensamento modernista de Cocteau, Satie e

Stravinsky. A audição de A Sagração da Primavera despertou um sentimento primitivista

no compositor brasileiro que aflorou um projeto nacionalista muito mais significativo e

amadurecido. A pregação de Mário de Andrade ―A arte nacional já está feita na

inconsciência do povo‖ ou ―O perìodo atual do Brasil, especialmente nas artes, é o de

nacionalização. Estamos procurando conformar a produção humana do país com a

realidade nacional‖, passou a fazer real sentido na música de Villa-Lobos.

24
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