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...
COMPENDIO
I
~ - DE -
HISTORIA DA
. MUSICA
.
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SAO PAULO
1929
•
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A
Rena to Almeida
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A,.,/\ ?. '-1 c.
DO AUTOR:
HA UMA GOTA DE SANGUE EM CADA POEMA- 1917 - (poesia)
PAULICEA DESVAIRADA - 1922 - (poe!J!a)
A ESCRAVA QUE NA.O E' ISAURA- 1925- (tecnica)
LOSANGO C.AQUI - 1926 - (lirismo)
PRIMEIRO ANDAR - 1926 - (contos)
AMAR, VERBO INTRANZITIVO - 1927 - (idilio)
CLAN DO JABOTf - 1927 - (poesia)
MACUNAiMA - 1928 - (hist6ria)
ENSAIO SOBRE MUSICA BRASILEIRA - 1928 - (estetica e f olclore)
COMP£NDIO DE HIST6RIA DA MUSIGA - 1929
EM PREPARO :
HIST6RIAS DE BELAZART·E (contos)
GRAMATIQUINHA DA F·ALA BRASILEIRA
NA PANCADA DO GANZA' (folclore)
JOA.O BOBO (romance)
Preliminar
Este e o unico dos meus trabalhos para o qual
me sinto com direito de pedir uma especie de con-
descendencia. Sempre escrevi rapido porem sem-
pre live tempo de repousar sobre o escrito. Quero
dizer: o que eu publicava de ruim ou carecia so-
cialmente de sair ruim pra dinamisar, irritar, por
problemas em marcha, ou era o "meu" rizim que
eu nao percebia e nao podia milhorar. N ao e o
caso deste Compendio. Foi escrito no mes de ou-
tubro passado, eu premido por obrigw;oes inalie-
naveis, e quando me vi no repiquete da trabalheira
five de reconhecer que no momento nao possuia
nem for{:a, nem tempo, nem calma pra dar conla
do recado bern. Depois vieram viagens e mais tra-
balhos imediatos. Assim, a condescendencia que
eu pe<;o e a que deriva dessas franquezas. Quanto
ao Compendia, si os brasileiros contznuaram me
outorgando aquela curiosidade luminosamen.te
hospitaleira com que sempre fui recebido, pro-
meto milhora-lo nas edi<;oes futuras.
Usei a maiuscu/a para distin.gzzir os termos
tecnicos.
t
I
desenvolvimento. E com efeito entre as rac;as que apresen-
tam atualmente um estado de vida mais prirnario, os ele-
mentos musicais raramente sao empregados pra divertir. Sao
sempre rituais: fazem parte integrante das cerimonias de
cac;a, de morte, de magia, de .religiosidade. Ao passo que a
:pintura, a escultura e as proprias lendas poeticas ja se liber-
taram da fatalidade liturgica. Quem quer se enfeita como e
quando quer. As lendas sao contadas em qualquer hora e
qualquer dia. Mesmo a danya, a gente pode dizer que vive
desritualisada, porque os treinos de lanc;a, de flexa, e prin-
cipalmente os brinquedos esportivos, sao danyas legitimas c
funcionam >como arte porque atraem sexuahnente, comovem,
divcrtern, sujeitam-se a normas definidas, decoram a vida
quotidiana e nao possuem interesse imediato.
Ja e mais raro a gente encontrar urn primitivo que cante
por can tar ou toque urn instrumen to, so pelo prazer que a
Mt'1sica da . Entre os indios Aparai, por exernplo, conta Felix
Speiser que nenhum nao canta assim. Ficavam encantados,
gostavam bern, escutando algum homem da ex.plora~ao tirar
um canto qualquer mas nao eram ca'Pazes disso. Os elemen-
to · ·
s musicals que os Bororo e parece que a absoluta genera-
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Inicio dos ele- 0 que a gente pode afirmar e que OS elementos formais
mentos forrnais da Musica, Sam e Ritmo, sao tao velhos como o homem. 0
da Musica.
Ritmo e Som. homem ja os possui em si porque os movimentos do cora-
~ao, o ato de respirar ja sao elementos ritmicos, o passo ja
organisa urn Rltmo, as maos percutindo ja podem determi-
nar todos os elementos do Ritmo. E a voz prorluz o Sam.
Com efeito, os elementos da Musica existem em todos os
povos primitivos. 0 Ritmo bastante desenvolvido. 0 Som no
geral em estado muito precario. Entre as poes\as rituais co-
lhidas dos indios do Brasil, algumas sao entoadas sabre urn
som so, de principia a fim, apesar de muitas feitas atravessa-
rem a noite. Embora o Ritmo esteja as vezes nem desenvol-
vido e complexo, como a gente ve do exemrp lo abaixo, penso
que nao se pode chamar uma coisa dessas de Musica . Nao
passa duma dic~ao, horizontalisada dentro dum valor sonora
definido.
Andante A _A
voz : ~] Ba..kGJ'o_ro
JJJ IJ I:P.]J]IJ.
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A_ro_e I
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ChLba.itil A_ro~e I f..
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(Alexina Magalhiies Pinto,
.v IDijn.re_to_tel ·'Cantigas dat> Crean~ase
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A_ro_e I
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do Povo:• ed. Francisco
Alves, Rio de Janeiro)
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~·~·~&~ ~T.Koch-ZUffi 0 rmoco:'Streckerund
G~unberg:'Vorn Roro_
Schroder, Stuttgart, 1923)
. . Eis ainda, pobre mas bonito, urn Canto-~ie-Bebida dos
Indios Coroados, tendo a curio-s idade excepcional entre os
-12-
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MUSICA DA ANTIGUIDADE
0 que distingue espocialmente dos primitivos, a mani- Difcren~a en -
tre os primitivo~
festa9ao musical das civilisa9oes antigas e... o descobri-
e a Antiguidade.
mento da Musica. Si e verdade que certos cantos dos africa- Conceito esteti-
nos, dos amerindios atingem as vezes um grau legitimo de co de Mus ic..'l..
musicalidade, o conceito de Arte Musical nao se tornou pro-
:priamente consciente a esses povos. Pode-se afirmar isso
porque a Musica e a unica das manifesta9oes artisticas a que
nao e possivel encontrar entre OS primitiVOS, normalisada por
uma tecnica propriamente dita.
Si e certo que eles realisam o Som, nem rnesmo este a Conscicneia so-
gente pode afirmar que seja urna organisa9ao voluntaria nora.
deles. E' antes urna fatalidad.e dos instrurnentos de sopro e
do aparelho vocal, mais aptos a produzir sons que ruidos.
E rnesmo esse Som raramente e puro. Vive anasalado, vive
no falsete, pouco evidente no meio dos portamentos arrasta-
dos. Luciano Gallet verificou processos assim entre os in-
dios brasilicos, por intermedio dos fonogramas existentes no
Museu Nacional; Raquette Pinto me confirmou pessoalmente
a frequencia do som nasal entre os nossos indios; e Roberto
Lach ("Handbuch der Musikgeschichte", Guido Adler, Frank- Conscicncia da
furt am Main, 1924) generalisa esses processos aos prirniti- Esoola.
vos em geral. E si sernpre e possivel nas rnusicas primitivas
disce . .·nir o que ja se pode charnar de Escala, nao so essas
Escalas chegam as vezes a variar de documento pra do-
cumento, sao numerosas e irregularissimas (que nem as en-
contradas entre os indios do extrema-norte brasileiro) como
parecem derivar dos instrumentos usados. Talvez seja mais
ace·rtado falar que os povos primitivos constr.o.em instru-
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mentos apenas com o fito de obterem Som. Mas nao sons de-
terminados. (1)
Music.'\ "Sociali- Mas apesar dos povos antigos terem sistematisado a Mu-
sada. sica como Arte, ainda nao a puderam conceber livremente.
Entre eles a Mlisica viveu normalmeqte ligada a palavra e
socialisada. 0 homem na Antiguidade e urn ser mais pro-
priamente coletivo que individual. Todas as manifesta~oes
dele sao por isso muito m:ais sociais que individualistas. In-
telectualisada pela palavra a Musica tomava parte direta nas
manifesta~oes coletivas do povo. 0 canto coral teve impor-
tancia vasta ao passo que a musica instrumental isolada, a
bern dizer nao existiu.
Todos os povos da Antiguidade tiveram os sons organi-
sados em escalas, tiveram formas e formulas especificamente
sonoras de realisar Musica. Sao mui complicadas e numero-
sas pra fazerem parte dum compendio geral que nem este.
A Grecia que em Musica e a manifesta~ao mais conhecida e
provavelmente mais perfeita da Antiguidade, ja nos interes-
sa mais :p orque influi na Musica da Civilisa~ao Crista~
. (1) Is.so repete-.se m~smo na~ massas populares dos povos civi-
hsados. Num dos ma1s cunosos ballados populares do Brasil os "Ca-
hocolinhos", inda subsistentes no Nordeste, o instru.m.ento' melodico
usad~ e umG.. flauta. Possu.o 2 flautas feitas para executar as musi.cas
dos Cabocohnhos" do_ ba1rro de Cruz de Alma, na Pciraiba. Diferem
totalmente na entona~;ao. 0 que quer dizer que a mesma execu~ao
realisada nas 2 flautas da 2 melodies diferentes!
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Outra diferen!(a enorme 6 que nos possuimos Tonali- Modo c Ton ali-
dades e eles Modos. Estes variam na disposi~ao intervalar dade.
ao passo que nas Tonalidades o que varia e a eleva~ao do
som enquanto a disposi~ao intervalar permanece a mesma.
E' costume distinguir pela poesia duas fases na praHca Fases musicais.
musical dos g·regos: a Fase Lirica e a Tragica. Domina a
manifestac;.ao da Fase Lirica o fato de Terpandro de Lesbos
(sec. VII a. C.) ter dado a forma definitiva do Nomos. Tudo
se desenvolve entao do ,Nomos. Dele provem a lirica solis-
ta, o canto coral, o solo instrumental, e posteriormente a
tragedia cantada.
A MONODIA CRISTA
N a Grecia tudo tinha que concorrer harmoniosamente Indiv!dualismo
cristiio.
pra realisar o Cidadao, cujo conceito e inseparavel do do
Estado. Todas as especialisa~oes artisticas (o que entende-
mos agora por musico, arquiteto, poeta, etc.) eram dissol-
ventes do cidadao ideal e so foram conhecidas lit quando a
na~ao decaia de si mesma.
Quem trouxe a idea pnitica do homem-so, destruindo as
bases em que organisaram-se as civilisayoes da Antiguida-
de, foi Jesus. Foi o Cristianismo que firmou no individuo a
noyao da culpa em relayao ao individuo mesmo e substituiu,
por assim dizer a consciencia estadual anterior, por uma
consciencia individual nova. Com isso urn ideal novo de ci-
vilisayao ia nascer, provindo nao mais da noyao de Socie-
dade mas da de Humanidade. Porque so mesmo a mesqui-
nhez do individuo traz a idea de Humanidade . . .
Os homens antigos tiveram no<_;ao nitida e agente de so-
cialisa<;iio mas possuiram ideas imperfeitas, vagas e diletan-
tes sabre o que seja humanisa~ao e igualdade humana.
Ainda tern outra constatac;ao a fazer: Devido a esta pre- Concepciio ex-
ponderancia da Melodia sabre o Ritmo , a Musica se subtilisa pressiva da Mit-
. sicu.
e Val deixar gradativamente de ser sensa~ao pra se tornar
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Primeiros cantos. Desde inicio ·o canto foi introduzido no culto cristao, como
elemento util de purificac;ao e elevac;ao. Os chefes da Igreja
primitiva o recomendarr am e o empregaram. Como nao era
possivel inventar de SOipetao uma teoria e pratica musicais
novas, os cristaos foram buscar os canticos (alias ja conta-
minados pela musica grega) do culto hebraico a que o Cris-
tianismo viera apenas definitivar. Transplantaram pais esses
cantos pro culto novo, simplificando-os, tirando instrumen-
tos acompanhantes, repudiando o cromatismo "sensual", evi-
tando o mais possivel a recordac;ao das praticas gregas. Com
isso a Musica adquirira urn conceito exclusivamente vocal e
monodico.
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Cultivado ate o sec. XIII, desde o sec. IX que o Grego- Tropos e Se-
riano vai perdendo a pureza originaria e se enriquece de quencias.
prec.iosismos na escola franco-alema. Nesta fase aparecem
no ocidente europeu formas novas: os Tropos e as Sequen-
cias au Pros as. Os Tropos (des de o sec. VIII) trazidos de
Bizancio consistiam em po,r palavras nas vocalisac;oes sobre
vogais do texto. Essas interpolac;oes deram origem a cantos
independentes, as Sequencias.
Guido d'Arezxo Mas e com Guido d' Arezzo (sec. XI), sistematisador ge-
nial e realista, que a notac;ao adquire uma clareza ja satis-
fatoria . Si e que Guido tenha sido apenas urn sistematisador
dos processos do tempo e nao inventor de muitos deles ...
Pauta. Guido ja emprega uma pauta de 4 linhas, desenvolvida da
linha uni'ca usada nos manuscritos dos seculos anteriores. A
Claves. primeira e terceira linhas da pauta trazem respetivamente
no inicio as letras f (Fa) e c (Do) indican do o som que sera
grafado nelas. Essas letras foram a origem das claves de Fa
e Do. 0 G (Sol), como clave, aparece no sec. XII e se vul-
garisa no seculo seguinte. As notas escritas nessa pauta eram
os Neumas ja evoluidos e no sec. XII fixados nas chamadas
Notac;ao Quadrada ou Romana e na Notac;ao Coral Alema
ou De Ferradura.
POLIFONIA CATOLICA
Ja vimos que o Falsohordao era uma fonna coral que
conseguiu se implantar na musica erudita. Desde o sec. XI
pelo menos, a musica 1popular principiou influindo de .m uitas
maneiras nas pesquizas dos artistas. Os ritmos batidos das
marchas, dos cantos-de-trabalho, dan~as etc. foram muito
provavelmente a causa principal que levou compositores e
teoricos a imaginar na possibilidade de criarem obras eru-
ditas dotadas de combina~oes de valores-de-tempo diferen-
tes e no geito com que se po:deria grafar isso.
Apareceram enHio as primeiras manifesta~oes de Poli-
fonia propriamente dita, e, concomitantemente, · o Mensura-
lismo, isto e, uma orienta~ao que media o tempo sonoro e
praticava a Mtisica Medida ·o u Musica Pro1porcional.
A fusao dos intervalos empregados pela Antifonia, pelo
Organo e pelo Falsobordao, se fez necessaria desde que os
musicos influenciados por essas praticas corais, viram que
era possivel ajuntar varias melodias independentes. E como
esta independencia implicava tamhem independencia das li-
nhas melodicas, surgiu a idea de ajuntar melodias em mo-
vimento contrario, acabando com o paralelismo das praticas
existentes.
Carece notar que tanto a Antifonia oitavada ·c omo o Or- Primeiros pro-
gano e o Falsobordao nao e-r am processos de com\I)Or. Eram cessos de compor
apenas maneiras de cantar que o corista improvisava tendo polifonia.
0 Discante.
sob os olhos o cantochao que servia de melodia Tenor. Com
o emprego do movimento contrario ja a liberdade da segun-
da voz era maior e mais dificil de improvisar. Surgiu pois o
primeiro processo de compor a varias vozes: o Discante,
cuja primeira teorisa~iio conhecida e francesa e do sec. XI.
Esse Discante primitivo ja empregava sistematicamente o
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rica entre esses valores era ternaria. A Breve era a unidade-
de-tempo, continha 3 semibreves e valia a terc;a parte da
Longa:
I.------
- -
•••••••• t
Esta clareza e mais apatente que real p()is o valor-de-
tempo desses sinais variava ou na pec;a toda ou pela rela~iio
das notas vizinhas na escrita, Chamavam a ternaridade de
PrO"porc;ao Perfeita e a binaridade de Propor~ao Jmperfeita:
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Roma e Pales- Roma apesar das liberdades do tempo, cuidava pelo me-
trina. nos em aparentar urn espirito mais tradiciona1ista e conser-
vador. 0 movimento dos seus polifonistas esta simbolisado
na vit6ria de Joao Pierluigi de Palestrina (1525-1594) con-
seguindo que a Musica nao fosse expulsa do cerimonial ca-
tolico, pela solu~ao genialissima de equilibria tecnico, pureza
estetica de concep~ao, religiosidadc elevadissima de inven-
~ao, das obras dele. Porque naqueles tempos a musica reli-
giosa andava fazendo dispauterios ridiculos. 0 processo de
dar como canto-finne das Missas uma can9ao popular can-
-49-
I
Durante OS dez primeiros seculos do Cristianismo a mu- Musica profana.
sica artistica profana e quasi que pratkamente nula. Em
Roma inda aparecia quando sinao quando algum musico de
tradi~ao grega. Tanto assim que la o imperador merovingio
Clovis mandara buscar urn citaredo quando no sec. VI ten-
ta nas Galias a ressurreiyao dos costumes artisticos da An-
tiguidade. Porem esses artistas eram pouco apreciados, mal
compreendidos e nenhuma influencia nao tiveram no desen-
volvimento musical da Idade Media.
. Mais importantes parecem ter sido os musicos que os
barbaros do norte europeu traziam consigo nas correrias vi-
toriosas atraves da Latinidade. Pelo menos, desde os estudos
de Lederer, muita coisa sem explica~ao historica bern firme,
principiou beneficiando a importancia musical dos Bardos
celtas vindos de Gales.
&rdos e Me- Nao sabemos quasi nada da musica 1popular dos primei-
nestreis. ros dez seculos. Ficaram dela pouquissimos documentos que
nem o Lamento a morte de Carlos Magno e uma can<;ao mi-
licial de Modena (sec. IX) . Durante esse periodo a arte po-
pular se conserva na sombra e a nao ser os bardos celtas,
nao se reconhece influencia dela sobre a musica artistica.
Os bardos percorriam a Europa. E' provavel que das suas
cantigas de esta<;ao tenham provindos as festall(;as de pri-
mavera que eram usadas em maio: As Maias, Maierolles,
Maggiolatte. E' possivel imaginar tambem que a im ita~ao
do oficio meio popular meio cortezao dos bardos, e que tenha
surgido o trovador profissional no sec. XI. Em todo caso ha-
via desde muito na Europa continental uma ec;pecie de can-
tadores estradeiros, classe rebaixada, vivendo de ciganagem,
praticando por toda a parte feiti<;aria, crimes e doce . mu-
sica. Eram os Istri6es (Jograis, Menestreis), tocadores de
instrumentos populares como a Viela (Fiedel), a Rabeca, o
Tambor Basco, flautas, Cornamusa. Crescidos em importan-
cia quando os trovadores apareceram e principiaram se uti-
lisando deles, como acompanhadores, os menestreis chega-
ram a possuir escolas musicais chamadas Escolas de Menes-
tria. Afinal se reuniram em corpora<;6es musicais (como a
Confraria de S. Julii:io, iniciada no sec. XIII) que defendiam
os direitos dos individuos e da coletividade. Elegiam urn che-
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Ate que surge o sec. XVI. Estamos no periodo mais aven- Seculo XVI.
tureiro da Renascen~a . Tempo de descobrimentos variados
e de mudan~as ;p rofundas. A locubra~ao estetica se mani-
festa pode-se dizer que pela primeira vez na Civilisa~ao Cris-
ta. 0 desenvolvimento do Humanismo que se caracterisa
principalmente pelo estudo da Antiguidade classica, desco-
bre a dialetica grega, os estetas antigos e cai no n~ciocinio e na
discussao estetica. De primeiro se fazia Arte sob o costume
da tradi~ao e do momenta. Agora os problemas esteticos
inundam os cena-c ulos principescos onde os artistas vivem,
e toda a gente discute como se deve fazer Arte. As cortes
brilham pelos saraus de caracter quasi scientifico em que 0
sucesso da festa se condensa na discussao de problemas in-
telectuais. Ate as mulheres viraram sabichonas. Toda a gente
fala o grego e o latim. Agora se conhece aparentemente bern
a Antiguidade classica e o mundo e tornado duma verdadei-
ra furia 1pela Grecia. Exaltada pela moda, a civilisa~iio he-
lenica aparecia como urn ideal. Toda a gente s6 estuda a
Grecia, s6 quer saber da Grecia e imita a Grecia. Esta ma·ca-
quea~ao vai ser fecundissima pra. Musica.
Por outro lado o espirito de rebeldia religiosa se alas-
tra. 0 aparecimento de Lutero, de Calvina, de Zuinglio, vern
dar o impulso final a essa rebeldia, reformando sob normas
novas a Religiao Crista. E' a Reforma.
_os sabios vinham revolucionando as ideas, dando expli-
ca.~oes novas e uma liberdade inexistente de primeiro. Mon-
ta•gne, Copernico, Galileu, Gutenbergue, Fosler, Camoes,
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C'est a gr:rd tort que :noipauvr_!bt'e~ -
J - .J -, )J ~q_-
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moi pauvrctten_ du_rc
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_1 _L I : J I I I I I
MELODRAMA
Embora a Polifonia continue se manifestando ate mea- M~lodia acom-
dos do sec. XVIII, agora a M1isica vai mudar inteiramente panhada.
de a-speto na sua orientac;ao. A data de 1600, ano em que foi
representada a "Euridice" em Floren~a, pode ser retida como
a ... inaugura<;ao oficial duma fase nova, a fasc harmonica
que vai perdurar pelo menos ate os nossos dias.
Considerando pois a Musica pelo sen elemento mais es-
pecifico, o Som, o Cristianismo pode ser subdividido em 3
fases distintas: a fase monodica (sec. I a sec. X); a fase po-
lifonica (sec. X a sec. XVII); a fase harmonica (sec. XVII a
sec. XX).
0 sec. XVII apresenta uma fisionomia essencialmente
distinta dos seculos anteriores. Musicalmente ele pertence a
peninsula italica pois e la que nascem ou se fixam as tenta-
tivas novas. E' la que surgem o .conceito novo de mtlSica dra-
matica, as forrnas do Recitativo e do Melodrama, e se fixam
o genero sinfonico, os processos da Tonalidade e da Mclodia
Acompanhada.
A Melodia Acompanhada e o processo de acompanhar
por meio de harmonias uma melodia solista. Nas Can<;oes
polifonicas pouco a pouco a voz superior tomara pra si o
interesse melodico da pe<;a. Isso ajudara a distinguir a per-
sonalidade dos acordes e em seguida a correlac;ao entre eles.
Uma Harmonia rudimentar aparecera. 0 passo grande que
a Melodia Acompanhada deu sobre isso foi desassociar dos
acordes a Melodia, por em oposi<;ao morfologica Melodia e
Harmonia.
11. B··--··-..----·
Se fixam as 6 Claves atuais. As Notas ja sao redondas
e com haste do lado. Se generalisam as Partituras de con-
junto. Se fixam os sinais numerioos de Compasso. A quadra-
tura das dan~as faz surgir as Barras-de-Divisao de compas-
so. A quadratura principia afectando toda musica. 0 sec.
XVII marca de deveras o inicio da confusao entre Rilmo e
Compasso.
POLIFONIA PROTESTANTE
Do inicio do sec. XIV, quando os trovadores germanicos Mcstres Cantores
)a estavam rareando, se tern noticia duma Corporac;ao mu-
sical fundada em Moguncia pelo Minnesanger Henrique de
Meissen. Em corporac;oes desse genero e que a Musica foi
cultivada em todas as classes burguesas alemas durante os
seculos XIV e XV. Corporac;oes talvez urn bocado pedanti-
sadas pela importancia social que tiveram, usando pnl. Mu-
sica normas curiosas que nos iparecem ridiculamente cs-
treitas nos tempos de agora, os musicos dela, em vez de se
chamarem Cantadores de Amor que nem na epoca anterior,
se chamaram de Mestres Cantores (Meistersinger). Urn des-
tes se celebrisou especialmente, Hans Sachs (sec. XVI) duma
fecundidade prodigiosa 0 merito enorme dos Mestres Can-
tares foi, pela func;ao burguesa que tiveram, generalisar a
musica nacional e torna-la tao intima no povo germanico
que o canto social ficou como uma das manifestac;oes in-
tuitivas da rac;a.
D sec. XVI tern uma func;ao decisiva pro estabelecimen-
to da musica germanica. Lutero inicia a Reforma. 0 espi-
rito alemao se afasta do Catolicismo e isso vai ter conse-
quencias importantes pr:i Musica, entre as quais a criac;ao
do Coral Protestante.
MUSICA INSTRUMENTAL
Os instrumcntos no geral custaram muito a se desenvol'- Toz e instru-
Vel· porque a pl"ecisao de tornar intelectualmente compreen- Jnento.
sivel 1\ Musica obrigara a uma pratica sistematicamente vo-
cal. E a manifesta~iio erudita mais pura dessa pratica vocal
foi o Coro-a-Capela, a que Palestrina deu a solu~ao histori-
ca definitiva. -
Os instrumentos viviam na companhia do povo que, pela
propria ausencia de virtuosidade vocal, era obrigado a se
acompanhar de instrumentos que batessem o ritmo e sus-
tentassem o som cantado. Os cantadores populares se utili-
saram sempre de instrumentos acompanhantes.
Clavicordios c
E e so neste seculo XVI que principiam aparecendo como
cravos.
de uso generalisado os instrumentos profanos de teclado que
viriam a dar no "Clavicimbalo com piano e forte" (1711), o
Piano atual, construido por Bartolomeu Cristofori, com em-
prego de martelinhos pra percutir as cordas. Essa fora alias
a primeira formula de construgao dum instrumento pdmi-
tivo c pobrinho, o Santir asiatica, em que as ,c ordas eram
p1~rculidas com macetes de pau. Trazido pra Europa na ba-
gagem dos Cruzados, sofreu toda sorte de evolugocs ate
parar no Clavicordio, tambem fundado no principia de per-
eussao par intermedio de alavancas de pau ou metal. Apesar
de apreciaclo e perdurado ate Cristofori dar pra cle o·: desen-
volvimento pratico definitivo, o Clavicordio foi dominado
por um outro genero de inslrumentos de corda-e-teclado que,
saiJo dele, era dum. principia diferente. Em vez da percus-
sao, empregava a dedilha~ao, obtida por intermedio duma la-
mina vertical de pau a que atravessava uma pena de ave. A
lamina se movia ao !ado da corda e a pena encontrando esta,
a dedilhava. Este p·r incipio foi o do Virginal e do Cravo que
duninaram a mlisica de teclado nos sees. XVII e XVIII. 0
-93-
vida fornece; ao passo que a Ar·l eta e uma f.lor livre, despertando na
gente apenas efeitos mus~cais, v.aga, desintelectual, comovente por ser
Arte, por afectar exclus1vamente o campo da Beleza e jamais por
!lfectar urn elemento moral do Bem ou da Verdade. E' pelo menos
mutil. chamar de "musica pura" a "musica instrumental" pais que ja
Possuunos estas duas palavras inda mais imediatas e caracteristicas.
Mas dar pra Mu.s ica Pura urn conceito estetico que nem esta feito
neste livro ,e· unpresc:-m
tal · · d'1;re1 pre. che~ar a uma compreensao
' mais to-
dos elementos lustoncos e estehcos evolutivos da artc musical
-100-
CLASSICISMO
-
Por tudo isso care~o explicar urn bDcado o espirito mu- Conceito "clas-
sical a que entitulei de Classico. sico" de Musica.
No principia da vida intelectual do homem, quando os
sons produzidos pelo orgao vocal principiaram se distin-
guindD em sons orais e son~ musicais, aqueles mais variados
na silaba~ao, estes mais impressionantes na boniteza: os
sons orais se especificaram em valores intelectuais; os
sons musicais se especificaram em valores corporais. Os
sons orais criaram palavras que a inteligencia compreen-
dia imediatamente. Os sons musicais criaram melodias rit-
micas que o corpo com•p reendia imediatamente. As palavras
era1:n diretamente psicologicas. As melodias, os ritmos eram
diretamente dinamogenicos, fisiologicos. A precisao de ven-
eer no desconforto da natureza viva e na lnta da espccie.
-108-
Concertos pu- E' verdade que no sec. XVIII, a exemplo das tenta-
blicos. tivas inglesas do fim do seculo anterior, se iniciam par
toda a parte os concertos pagos com os "Concertos Espiri-
tuais" de Phillidor, e o "Concerto dos Am adores" de Gossec
em Paris; os Concertos Publicos, com osquestras de mulhe-
res em Veneza; as concertos de Hiller em Leipsig; os festi-
vais das Academias de canto coral (Singakademic), porem
jamais a musica artistica nao estcve tao afastada do povo
como agora. Dantes, mesmo refu gando as normas, f ormas
e espirito do povo, ela se dirigia pro povo. Agora, rnuitas
feitas ela se retempera na fonte popular mas para se en-
riquecer de brilho, de curiosidade, ate de exotismo nos
bailados sabre temas amerindios, asiaticos e africanos ...
Em Veneza quando camarotes dos teatros estao vazios,
permitem que as gondoleiros se abanquem neles. Mas a
Musica dirige-se intencionalmente pn'ls elites; e para obter
vozes gostosas, nos conservatorios nao hesitam de castrar
os orfaos do povo, como si fossem filhos de egua.
Individualismo. Outro caracter de nobreza do Classico e a expressao
'nova que vai tomando o indi~idualismo. Dantes, mesmo no
caso de figuras tao individualisadas que nem Orlando de
Lassus, Monteverdi on Vitoria, sao muito mais as escolas
que os individuos que apresenlam caracteres especificos.
E mesmo quando urn compositor, e e o caso dos citados,
se distingue urn bocado da orienta~ao que o cerca, a in-
dividualisa9ao dele, se manifesta como abertura de orien-
ta9ao nova, ou ainda funciona socialmente como expressao
historica, como inten9ao de ex.p rimir ou orientar ou enal-
tecer uma coletividade. Agora nao: alem dos caracteres
comuns que unem os Classicos ou os Romanticos em mani-
festa~oes ·c oletivas, a pesquisa individual principia domi-
nando, cada urn procura ter uma solu~ao pessoal. Basta ver
a dist:1ncia que separa urn Mozart dum Haydn, e estes de
Gluck; Rameau de Gretry; Domingos Scarlatti de Zipoli
ou Marcello, pra verificar que urn valor novo de iudividua-
lismo penetrara na vida musical. Eaglefield Hull ("Music",
--
- 119-
ROMANTISMO
Apesar de todas as maneiras com que a musica ar- Aristocracia e
tistica profana pretendia satisfazer as necessidades musicais Democracia.
do povo, nos vimos que ela, originada do canto popular,
sempre se retemperando na fonte popular, fora grada-
tivamente se aristocratisando, se divorciando do espi-
rito do povo. Chegara assim a se transformar em mani-
festa~ao orgulhosamente aristocratica, com a Musica Pura
dos Classicos. Se tornara por isso a reprodu9ao artistica
talvez mais fiel do espirito social do sec. XVIII em que as
monarquias tinham elevado ao cumulo a deforma9ao do
princftpio aristocratico do Cristianismo, cujo fundamento e
Deus-Rei Onipotente.
Contra esse estado-de-espirito absolutamente desumano
do sec. XVIII, contra essa especie de transposiya'o organisa-
da do Diletantismo pra dentro da vida social, uma verda-
deira socialisayao do Diletantismo: as rea9oes principiaram
aparecendo pouco a pouco. Sistematisadas em Fran9a pelo
movimento filosofico dos Enciclopedistas, tiveram a sua
explosao concreta na Revolu~ao Francesa (1779) que modi-
ficou o mundo. Transformou-se muito a sensibilidade social
e essa transformayao consistiu fundamentalmente na troca
do espirito aristocratico anterior :pelo espirito popular.
Criou-se urn novo estado-de-coisas geral que batisaram com Rom{l ntismo.
uma palavra de Goethe: Romantismo.
Drama Lirico. 0 Drama Lirico foi cria<;ao de Wagner. E' urn dos feno-
menos mais extraordinarios da historia musical. Reforman-
do a opera em sua totalidade, esse grande esteta e musico,
inventava com o Drama Lirico uma cria<;ao tao admiravel-
mente logica pela fusao teatral de poesia, musica, dan~a,
pintura, ao mesmo tempo que exemplificava as suas teorias
com obras sublimes ("Tristao e Isolda", "Mestrcs Canto-
-135-
tonal noutro grau (Debussy), sao acordes que vivern por si.
A sistematisayao disso foi que fez do Romantismo a fase
harmonica por ·e xcelencia. E foi o que o distinguiu da
Atualidade que acabou dissolvendo o Acorde totalmente.
A bern dizer nao existem mais acordes agora.
E' provavel que o canto portugues e alguma rara rna- Capelas e Teatro~,.
nifesta~ao instrumental ja vivessem aqui nos lares e sem
fun~ao historica. Esta nos 3 primeiros seculos da Colonia
s6 existe mesmo em manifesta<;oes teatrais e religiosas.
No sec. XVII as teatros ·principiam aparecendo na Baia,
no Rio de Janeiro, em S. Vicente, com vida curta e sem
-152-
Depois desse esplendor em que a Cap ela Imperial che- Musica prof'.lna
gou a ter 100 executantes, a independencia politica faz com no Imper~o .
que a vida hrasileira principie de novo. Tambem a Musica
sofre o abalo da mudan~a e no Primeiro Imperio se em-
pobrece bern. Mas renasce mais variada nas manifesta~oes
e mais dispersa no ·pais.
Em P ernambuco havia uma oficina de pianos. . . Por
to da a parte se organisava Bandas e Orquestras que nem
a de Campinas dirigida pelo pai de Carlos Gomes, Manuel
Jose Gomes. A musica religiosa inda muito apreciada e
escrita vai perdendo pouco a pouco a importancia domina-
dora que tivera de primeiro . N as provincias inda ela per-
manece bern, mas sem valor historico possivel. Dao Pedro I
era c6rn:positor. Ficou .dele o Hino da Independencia, apenas
uma curiosidade. Protegeu como poude a Musica e esta se
reabrini em fecundidade nova no Segundo Imperio. No Rio
de Janeiro o antigo teatro Sao Joao, seguido pelo Sao
Pedro de Alcantara, e continuado pelos teatros Sao Janua-
rio e Sao Francisco. Dao Pedro II, que a instancias de Fran-
cisco Manuel fundara em 1841 o Conservatorio de Mtisica
(hoje Instituto Nacional de Musica, 1890) fundou tambem
em 1857 a Academia Imperial de Musica e Opera Nadonal.
Esta Academia teve urn periodo de brilho nacional extraor-
dinario, em que fez cantar na lingua do pais, operas estran-
geiras e numerosa produ~ao brasileira. Nela Carlos Gomes
deu seus primeiros passos no melodrama com a "Noite no
Castelo" (1861) e "Joana de Flandres" (1863) .
Modinha Brasileira
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(Roquet~ Pinto, "Rondonia" ed. lmprensa Nacional, Rio de
Janeiro, 1917), tern uma coincidencia vaga de movimen-
to que faz a primeira parecer uma eloquentisa~ao reto-
rica da segunda. . . Essa mesma frase do "Guarani", topei
com ela numa Toada paranaense (Vide meu "Ensaio sabre
Musica Brasileira" ed. Chiara to, S. Paulo, 1928, pag. 80), nurn
canto do rio Madeira e ainda noutro canto paraibano. Seja
Carlos Gomes que conseguiu nacionalisar no povo uma in-
ven~ao dele, seja que colheu frase popular, como dizern que
fez e nao .parece, donde que vern essas coincidencias? E don-
de que vern essas estranhezas, essas inven96es barbaras, esses
acentos novas, essas for9as caracterisadoras sinao da essen-
cia brasileira se ensaiando atraves de todo • o italianismo
erudito dele ? Carlos Gomes e a retorica da barbarie, en-
quanta Vila-Lobos nao surgia pra ser tantas feitas barbara
duma vez. Me revolta a displicencia afobada e pedante corn
que estarnos tratando por vaidade e confian~a demais ern
noa mesrnos o rnaior dos musicos brasileiros do p~ssado,
o que mais penou :Para nos anunciar.
E nos, OS que ja estamos tomando posi9aO de veteranos
dentro da vida •c onternporanea brasileira, nos temos que
fazer justi~a a Carlos Gomes. Deixemos a ca~oada. o de-
hique. a indiferenc;a, a descompostura degolante pros mo~os.
Porque de fato a mocidade nao carece de justic;a pra ser
ntil, ser verdadeira e funcionar bern. Uma feita em que eu
quebrava lanc;as pra conseguir dum moc;o que reconhecesse
0
valor dum terceiro, quando nao teve mais argumento pra
contradizer a minha justic;a, o outro falou manso:
- Mas nao tenho obrigac;ao de fazer justi9a.
-164-
Nao tinha mesmo e ele que estava com a razao ... Muita
Justiya, muito reconhecimento de grandeza passada so pode
atuar mal na gente nova, influenciavel, terra inda por plan-
tar. Nos hoje nao temos que fazer o que Carlos Gomes
fez. So o exemplo da vida e das intenyoes dele e que pode
valer urn bocado. A nossa Musica sera totalmente outra,
e dela os trayos de Carlos Gomes tem de ser abolidos. Si
os moyos o de!):prezarem, muito bem! porque as exigencias
da Atualidade brasileira nao tem nada que ver com a
musica de Carlos Gomes. Mas alem dcssa afualidade moya,
tao feroz, exisle a realidade brasileira que transcende as
exigencias historicas e passageiras das epocas. E nesta reali-
dade Carlos Gomes tern uma colocayao excepcional.
0 que foi que ele tirou do aborigene ? Nao sabemos Influencia ame-
quasi nada de positivo. 0 chocalho, empregado como obri- rindia.
gac;ao nas orquestrinhas maxixeiras, niio passa duma a- Chocalho.
daptac;iio civilisada de muitos instrumentos amerindios de
mesma tecnica, por ex. o Maraca, dos Guarani.
Solo: - Oh li-li-li-6 !
Coro: - Boi Tungiio !
Solo: - Boi do Maioral!
Coro: - Boi Tungiio I
Solo: - Bonito niio era o boi . ..
Coro: - Boi Tungiio ! ·
Solo: - Como era o aboiar.
Coro: - Boi Tungiio I
(etc.).
(Colhido no R. G. do Norte).
"() U:
Voce gosta . de mim,
Maria,
Eu tambem de voce,
Maria,
Vou pedir pra seu pai,
Maria;
Pra casar com voce,
Maria.
(Colhido em S. Paulo).
>.OU:
Vou-me embora, vou-me embora,
Prenda minha,
1'enho muito que fazer;
Vou partir para Rodeio,
Prenda minha,
Pros campos do Bemquerer !
-169-
Influencia sre- Porem sobre isso nasce uma pergunta. Aparece quando
goriana. sinao quando no canto popular brasileiro frases oratorias,
livres de compasso e que ate pelo desenho melodico &e as-
semelham a formulas de Cantochao. Nao sera •possivel a
gente imaginar uma subsistencia do Cantochao em mani-
festa~oes as-sim ? A parte .dos padres foi formidavel na for-
ma~ao da vida brasileira. Quais eram os cantos que eles
cantavam e faziam os indios cantar nos 2 primeiros se-
culos ? Provavelmente muitos eram pe~as gregorianas. Ate
hoje elas sao empregadas e prodigiosamente deformadas no
pais todo. Nao tern mo~a possuindo voz cantante nem me-
nino cantador que nao sejain colhidos !pelos padres nas
vilas e povoados do interior, pra engrolar urn Credo e urn
Gloria em cantochao. Uma feita em Fonte Boa, no Amazo-
na·s, eu passeava com o filho do prefeito num solao de
matar. Saia urn canto feminino duma casa. Parei. Era uma
gostosura de linha melodica, monotona, lenta, muito pura,
absolutamente linda. Me aproximei com a maxima discre-
~ao pra nao incomodar a cantora, uma tapuia adormentan-
do o filho. 0 texto que ela cantava, lingua de branco nao
era. Tao nasal, tao desconhecido que imaginei fala de indio.
Mas era Ia tim. . . de tapuio. E o Acalanto nao passava do
Tantum Ergo, em Cantochao. Uma silaba me levou pra
outra e mais por intui~ao que realidade pude reconhecer
tambem a melodia. A deforma~ao era tamanha que nem
de proposito ! Porem j amais nao me esquecerei da como~ao
de beleza que recebi dos labios da ta•p uia. 0 Cantochao vive
-1
-171-
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CAPiTULO XIII
ATUALIDADE
Nem hem a guerra de 1914 acabou, todas as artes toma- Sentirnento da
1'am impulso. Houve influencia da guerra nisso ? Esta clara Atuo.lidade.
que houve. Os 4 anos de morticinio pode-se dizer que u-
niversal, tiveram o dom de precipitar as coisas. Preci1pita-
1·am os Governos novos; precipitaram sistemas renovados
de sciencias assim como artes novas. A forma principal
com que se manifestou esse precipitar de ideais humanos
foi eles de generalisarem universalmente e assumirem uma
tal correspondencia com a Atualidade que o que nao se
t·elacionava com essas manifesta~oes, cheirava a seculo-
dezenove, cheirava a mofo, era passadismo. Teve urn mo-
menta, rapido momenta desilusorio, em que o mundo viveu
duma realidade deveras universal. A universalisa<;ao das
ideas novas ou renovadas de religiao, de politica, de scien-
cias, de artes foi tao forte; a preocupa<;ao sedenta, inquieta
do Universal foi tamanha que a gente podia concluir que
o homem tinha realisado a universalisa<;iio eStpiritual da
Terra. Mas tudo se acalmava porem. Os espiritos foram
adquirindo uma consciencia mais profunda dos ambientes;
e uma vontade de se tornar menos idealista e mais eficaz,
levou os artistas a circunscreverem no possivel a manifesta-
<;ao deles. Se colocaram os pontos nos is. As celebridades
foram julgadas novamente. E 'no meio de muita festa, no
Ineio da fome de divertimento e brincadeira que agora
tomou o mundo (como toma em todas as epocas em que
Ulna civilisa<;ao acaba) se compreendeu milhor o que
havia de russo em Strawinsky, de ifmque no jazz-band, de
italiano no futurismo de Russolo, de alemao no expressio-
nismo de Schoemberg. Se deu mesmo uma nova exacerba-
~ao nacionalista que pra muitos paises nao tinha razao-de-
ser. foi patriotada pura, e de que nao participaram OS es-
-18U-
ESCALA ATONAL
(Schoemberg)
ESCALA FREQUENTE
no Brasil
(Modo Hipofrigio)
ESCALA OCORRENTE
no populario brasileiro
(Modo Hipolidio)
~sg~!:t~~~!J!mEL
· popula.rio bra.sileiro !
*i J J J i il J ~
Alem de escalas numerosas, os efeitos cromaticos gene·
ralisados, a sistematisa~ao de acordes alteradissimos e de
interpretac;ao variavel, provocaram uma perplexidade tonal
tamanha que Guido Alaleona .poude chamar essa verda-
deira anarquia tonal de "Tonalidade Neutra".
I
rninuto; cornpositores que fazern rnelodias pra urna quadra,
pra 2 versos, pra urna frase literaria, pra urn anuncio, pra
urn pregao (Castelnuovo Tedesco, Poulenc, Daria Milhaud;
Strawinsky: "Pribaoutki"; Vila Lobos: "Epigrarnas") .
-190-
Concepr;ii.o to- Mas todo esse desperdicio, todo esse derrotismo destrui-
talisada da Mu- dor e apenas aparente. Mudado o conceito de Musica, esses
sica. vicios modernos se tornam logicos. E de fato: e a maneira
de conceber a Musica que se mo.dificou talvez profunda-
mente. Paulo Bekker ("Musikgeschichte", Deutsche Verlags-
Anstalt, Stuttgart, 1926) constata que a Musica esta mudan-
do o principia de Expansividade antigo pelo principia de
Intensidade. . . Vou explicar como en tendo isso.
A Musica desde o inicio da Polifonia vinha sendo con-
cebida e criada rpor expansiio dos elementos musicais. Era
por isso espacial. Se orientou horizontalmente na Polifonia
e verticalmente na Harmonia. A propria constitui~iio da
orquestra. organisada por naipes separados (quarteto dos
arcos, quarteto dos cobres, quarteto das madeiras, bateria)
era espacial. 0 conceito de Forma e necessariamente es-
pacial. 0 conceito da m~lodia infinita que ondula sobre
a sinfonia, os processos de desenvolvimento dum tema siio
eS!paciais tambem. Hoje a Musica vai gradativamente aban-
donando esse principia de Expansividade dos elementos e
os amalgama todos pra se intensificar, pra ser mais totali-
sadamente Musica. De espacial se tornou temporal. Musica
antiespacial, antiarquitetonica. A Musica polifonica era com-
preendida horizontalmente. A Musica harmonica era com-
preendida verticalmente. Metaforas abusivas a que a Mi1sica
moderna niio se sujeita mais. A musica de hoje tern de ser
compreendida temporalmente no tempo, momento por mo-
menta. A grandeza da obra resultara mais duma saudade,
dum desejo de tornar a escuta-la que da relembran9a con-
templativa que fixa as partes, evoca, compara o que passou
com o que esta passando, crHica e julga. A relembran9a
pensa. A saudade sente. Nisto reside uma diferen<;a essen-
In:
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-195-
-197-
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E S T A E D I <; A 0 D E M I L EX E M P L A-
RE S D0 C 0 MP E N D I 0 D E H I S T 0-
E U GE N I 0 C U P 0 L 0, L A D E I R A D E
V I N T E U M, E M SA 0 P AU L 0
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