Mística Cidade de Deus - 3º Tomo
Mística Cidade de Deus - 3º Tomo
Mística Cidade de Deus - 3º Tomo
M A R I A DL
ÁQRCDA
TERCEIRO TOMO
MARIA NO MISTÉRIO DA REDENÇÃO
(na vida pública de Jesus)
5o LIVRO
Maria, primeira discípula de Cristo
714. Determinou o Altíssimo que a divina Senhora fosse a
primeira discípula de sua escola, a primogênita da nova lei da
graça, o retrato fiel de sua idéia, a matéria dócil, a cera
branda onde se imprimisse a marca de sua doutrina e
santidade. Filho e Mãe seriam as duas tábuas (Ex 31,18)
verdadeiras da nova lei que vinha ensinar ao mundo.
6o LIVRO
Ultimas recomendações de Jesus
1505. Meus amados filhos, Eu subo para o Pai de cujo seio
desci para salvar e redimir os homens. Por amparo, mãe,
consoladora e advogada, vos deixo em meu lugar a minha
Mãe, a quem deveis ouvir e obedecer em tudo. Assim como
tenho dito que, quem vê a Mim vê a meu Pai (Jo 14,9), e
quem me conhece, conhecerá a Ele também; agora vos
asseguro que, quem conhecer minha Mãe, conhecerá a Mim;
ofender-me-á quem a Ela ofender, e me honrará, quem a Ela
honrar. Todos vós, e vossos sucessores, a tereis por mãe,
superior e chefe. Ela esclarecerá vossas dúvidas e resolverá
vossas dificuldades; n'Ela me encontrareis sempre que me
procurardes, porque n Ela estarei até o fim do mundo.
Pedidos ao:
MOSTEIRO PORTACELI
Caixa Postal, 595
84001-970 - Ponta Grossa - Paraná - Brasil
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Registro: 284.420 Livro: 514 Folha: 80 da Fundação BIBLIOTECA NACIONAL/RJ
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central - UEPG/Pr.
CDD: 232.91
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SOROR MARIA DE ÁGREDA
MÍSTICA CIDADE
DE DEUS
(Obra clássica do sóc. XVII)
VIDA DA VIRGEM MÃE
1655- 1660
DE DEUS
TERCEIRO T O M O
4 a Edição
Mosteiro Portaceli
Ano 2012
III
MÍSTICA
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IV
MÍSTICA CIDADE DE DEUS
v
Ilustrações:
desenhos das Irmãs Servas do Espírito Santo,
extraídas da edição alemã, 1954.
Outras gravuras e fotos.
Capa:
Nossa Senhora da Piedade
por Michelângelo.
Agradecimentos da Tradutora:
às minhas co-irmãs que colaboraram na impressão deste 3o Tomo,
com sua fraterna e dedicada laboriosidade.
- aos estimados amigos Paulo Schiniegoski e sua esposa Verônica
que transcreveram os originais em computador e forneceram
o disquete, e a todos quantos, de qualquer modo, colaboraram,
e cujos nomes estão escritos no livro de Deus.
VII
QUINTO LIVRO
VIII
CAPÍTULO 1
EM NAZARÉ, O SENHOR PREPARA MARIA SANTÍSSIMA
COM SOFRIMENTO ESPIRITUAL. OBJETIVO DESSAS
PROVAÇÕES.
Convivência entre Jesus e Maria. formar uma discípula tão sábia e ex-
celente, que depois fosse mestra consu-
712. Estabelecidos em Nazaré, Je- mada e vivo exemplar da doutrina de seu
sus, Maria c José fizeram da humilde casa Mestre. Assim o foi Maria Santíssima de-
em que moravam um outro céu. pois da Ascensão de seu Filho e Senhor
Para descrever os mistérios que se nosso ao céu, conforme se tratará na ter-
passaram entre o Menino Deus e sua Mãe ceira parte(2^. Era também conveniente e
puríssima, até Jesus completar doze anos, necessário, para a honra de Cristo nosso
e depois ao começar sua pregação, seriam Redentor, que a doutrina evangélica, com
necessários muitos livros e capítulos. e na qual seria fundada a nova lei da graça,
Ainda seria pouco, pela inefável grandeza tão santa sem mácula e sem ruga (Ef 5,
do assunto e pela minha pequenez de mu- 27), ficasse autorizada em sua eficácia e
lher ignorante.Com a luz que me deu esta virtude.
grande Senhora, direi um pouco, e sempre Deveria existir alguma pura cria-
ficará oculto o mais que se poderia dizer. tura, nela formada cabalmente, e em quem
Nesta vida, não é possível nem conve- se encontrassem seus frutos de modo per-
niente conhecer tudo, ficando reservado feito. Em seu gênero, seria o modelo para
para a futura que esperamos. as demais criaturas seguir e imitar. Era ra-
zoável que esta criatura fosse a bem-aven-
turada Maria, por ser a mais próxima do
Maria, perfeita discípula de Cristo. Mestre e Senhor da santidade, sua própria
Mãe.
713. Após alguns dias da volta do
Egito aNazaré, determinou o Senhor exer-
citar sua Mãe Santíssima, do modo que o Maria, primeira discípula de Cristo
fez em sua infância ' a i n d a que agora
Ela estava mais forte no amor e na pleni- 714. Determinou o Altíssimo que
tude da sabedoria. Sendo infinito o poder a divina Senhora fosse a primeira dis-
de Deus, imensa a matéria de seu divino cípula de sua escola, a primogênita da
amor, e a capacidade da Rainha superior nova lei da graça, o retrato fiel de sua idéia,
a todas as criaturas, ordenou o Senhor a matéria dócil, a cera branda onde se im-
elevá-la a mais alto estado de méritos e primisse a marca de sua doutrina e santi-
santidade. dade. Filho e Mãe seriam as duas tábuas
Verdadeiro mestre do espírito, quis (Ex 31, 18) verdadeiras da nova lei que
1 - está descrito no 2 o hvro, capítulo 27. 2-n°106, 183, 209.
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Quinto Livro - Capítulo 1
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Quinto Livro - Capítulo 1
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Quinto Livro - Capítulo 1
nem sempre a usava Às vezes, sentava-se com Ela. Examinava a divina Senhora
naquele áspero leito e se recostava num seu interior, esquadrinhava a ordem,
travesseiro simples, de 19, que a Senhora condições e circunstâncias de seus atos;
lhe havia feito. dava muitas voltas com a atenção e
Quando Ela lhe quis preparar mais memória pela celestial oficina de sua
confortável cama, disse-lhe o Filho san- alma e potências. Não podia encontrar
tíssimo que só na cruz se deitaria. Com nenhuma treva porque tudo era luz, san-
seu exemplo, ensinaria ao mundo (1 Ped) tidade, pureza e graça. Não obstante,
que não se entrará no eterno descanso sabia que aos olhos de Deus nem os
através dos deleites de Babilônia, e que na céus, nem as estrelas são puros como
vida mortal, o padecer é alívio. Desde esta disse Job (Job 15, 25: 4, 15, 5 e 18) e
ocasião, a divina Senhora, com nova encontram o que repreender ainda nos
atenção, imitou-o neste modo de descan- espíritos angélicos. Temia, portanto, a
sar. grande Rainha se, por acaso, ignorava al-
Ao chegar a hora de se recolher, gum defeito que a Deus era conhecido.
costumava a Mestra da humildade pros- Com este receio sofria delíquios
trar-se diante de seu Filho santíssimo sen- de amor, o qual sendo forte como a morte
tado em sua tarima. Todas as noites pedia- (Cant 8,6), nesta nobilíssima emulação
lhe perdão, por não o ter servido naquele causa dores de inextinguível pena. Durou
dia com mais cuidado, nem de ser tão muitos dias para nossa Rainha, este exer-
agradecida a seus benefícios como devia. cício, com que seu Filho santíssimo, com
Agradecia-lhe novamente por tudo e, com incomparável gozo, a provou e elevou ao
muitas lágrimas, o confessava por ver- estado de Mestra universal das criaturas.
dadeiro Deus e Redentor do mundo. Não Remunerou a lealdade e fineza de seu
se levantava do solo, até, que seu Filho a amor com abundante e copiosa graça,
mandasse e lhe desse a bênção. além da muita que já possuía. Depois
O mesmo exercício fazia pela ma- aconteceu o que direi no capítulo se-
nhã, para que o divino Mestre lhe orde- guinte.
nasse o que devia fazer naquele dia em seu
serviço. Com muito amor, Jesus a atendia. DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU,
MARIA SANTÍSSIMA.
Sofrimento e receios de Maria
Cristo é Mestre, sempre e para todos
722. Nesta ocasião em que pro-
vava sua Mãe, mudou o estilo e o sem- 723. Minha filha, vejo-te com de¬
blante. Quando a inocente Mãe chegava sejo de ser discípula de meu Filho san-
para adorá-lo, conforme costumava, ainda tíssimo, assim como eu o fui, segundo
que acrescentasse suas lágrimas e íntimos entendeste e escreveste. Para teu con-
gemidos, Jesus não lhe respondia palavra solo, digo-te que o Senhor não exercitou
e depois de ouvi-la, muito sério, mandava- seu ofício de Mestre só no tempo que,
a retirar-se. em forma humana, ensinou sua doutrina
Não há ponderação que chegue a conservada nos Evangelhos (Mt 28,20)
manifestar o que sentia o puríssimo co- e em sua Igreja.'Desempenha o mesmo
ração da amorosa Mãe ao ver seu Filho, ofício com as almas sempre, até o fim
Deus e homem verdadeiro, tão mudado no do mundo, admoestando e inspirando o
semblante, tão grave e parco nas palavras, melhor e mais santo para o praticarem.
tão diferente do que costumava se mostrar Isto faz com todas, absolutamente, ainda
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Quinto Livro - Capítulo 1
que conforme sua divina vontade e a esconder (Heb 4,13) e quando a criatura
atenção e disposição de cada uma, rece- é ingrata e negligente em obedecer-lhe
bam maior ou menor ensinamento (Mt e ser reconhecida a tão alto favor, retira-
11, 15). Se desta verdade sempre te se com desgosto. Não devem as almas
tivesses aproveitado, sabes por longa pensar que, sempre que o Senhor delas
experiência que o Altíssimo Senhor se esquiva, lhes acontece o mesmo que
não se dedigna ser mestre do pobre, e aconteceu a mim. Comigo foi sem culpa
ensinar ao desprezado e pecador, se de minha parte, e com excessivo amor,
quiserem ouvir sua doutrina interior. enquanto nas demais criaturas com
Como agora desejas saber quais as dis- tanto pecados, grosserias, ingratidões e
posições que Deus requer de tua parte, negligências, costuma ser pena e mere-
para fazer contigo o ofício de Mestre, cido castigo.
no grau que teu coração ambiciona, em
nome do mesmo Senhor quero dize-lo
e te garantir: se te encontrar disposta, Sinais da verdadeira doutrina
comunicará à tua alma, como ver-
dadeiro e sábio artífice e mestre, sua 725. Atende, pois, minha filha, e
sabedoria, luz e doutrina com grande adverte tuas omissões e faltas em fazer
plenitude. digna estimação da doutrina e luz que em
particular, tens recebido do divino Mestre
e de minhas admoestações. Modera teus
Disposições para ser discípulo de infundados temores, e não duvides mais se
Cristo é o Senhor quem te fala e instrui, pois a
própria doutrina dá testemunho de sua ver-
724 Em primeiro lugar, deves ter dade e te assegura quem é seu autor. Ela é
a consciência limpa e tranqüila, com in- santa, pura e perfeita; ensina o melhor e
cessante cuidado para não cair em culpa repreende qualquer defeito, por mínimo
ou imperfeição, por sucesso algum deste que seja. Além de tudo isto, é aprovada por
mundo. Junto com isto, deves abstrair-te teus mestres e pais espirituais.
de todas as coisas terrenas, de modo que Quero também que tenhas o cui-
(como em outras vezes tenho admo- dado imitando-me no que escreveste, de
estado) não fique em ti imagem e memó- vir a mim todas as noites e manhãs, sem
ria de coisa alguma visível, mas apenas o falta, já que sou tua mestra. Humilde-
coração simples, sereno e claro. mente me dirás tuas culpas, reconhe-
Quando tiveres o interior as- cendo-as, contrita, para que Eu seja tua
sim despojado e livre de espécies terre- intercessora junto ao Senhor, e como-Mãe
nas, e das trevas que produzem, então te alcance o seu perdão. Além disso, logo
ouvirás o Senhor. Quando inclinares o que cometes alguma falta ou imperfeição,
ouvido, (SI 44,11) como filha caríssima reconhece-a prontamente, chora-a e pede
que esquece seu povo da vã Babilônia, perdão ao Senhor, com desejo de te emen-
e a casa de seu pai Adão, e de todos os dares. Se fores atenta e fiel nisto que te
vestígios de culpa, afirmo-te que então mando, serás discípula do Altíssimo e
Deus te falará palavras de vida eterna minha, como desejas. A pureza da alma e
(Jo 6, 69). Importa que imediatamente a graça são a mais eminente e adequada
o escutes com reverência e humilde gra- disposição, para receber as influências da
tidão, e ponhas sua palavra em prática, luz divina e ciência infusa que o Redentor
com exatidão e diligência. A este grande do mundo comunica aos que são seus ver-
Senhor e Mestre das almas, nada se pode dadeiros discípulos.
Maria, a primeira discípula de J e s u s
8
CAPÍTULO 2
MARIA RECEBE NOVAMENTE A VISÃO DA ALMA DE SEU
FILHO* ESTE COMEÇA INSTRUI-LA NA LEI DA GRAÇA.
O amor divino bondade e quer ser amado não só com
doçura, mas também com sabedoria e
726. Grandes e longas exposições ciência do que se ama.
têm sido feitas pela inteligência humana,
sobre a natureza, os predicados do amor,
suas causas e efeitos. Para eu explicar o Causas e efeitos do amor
santo e divino amor de Maria Santíssima
Senhora nossa, seria necessário acrescen- 727. Estes amores têm alguma se-
tar muito a tudo o que já foi dito e escrito melhança, mais nos efeitos do que nas
em matéria de amor. causas. Se alguma vez vencem o coração
Depois do amor que a alma santís- e dele se apoderam, saem com di-
sima de Cristo, nosso Senhor possui, ne- ficuldade. Daqui nasce a dor que sente o
nhum houve tão nobre e excelente, quer coração humano quando encontra frieza,
nas criaturas humanas, quer nas angélicas, indiferença e fuga em quem ama, pois, tais
como aquele que teve e tem a divina Se- atitudes obrigam-no a se despojar do
nhora, merecendo o título de Mãe do amor amor. Como este se apodera tanto do co-
formoso (Ecli 24,24). Para todos, o único ração, e não se conforma facilmente em o
objeto do amor santo é Deus, em si mesmo deixar, mesmo que se lhe proponha as
e nas demais coisas por Ele criadas. Em razões, este duro conflito vem a lhe causar
cada pessoa, porém, as causas que geram dores de morte.
este amor e os efeitos que produzem, são No amor cego e mundano, isto é
muito diferentes. insânia e loucura. No amor divino, porém,
Em nossa Rainha alcançou o su- é grande sabedoria. Onde não se podem
premo grau possível em pura criatura. encontrar motivos para deixar de amar, a
Nela foram sem medida a pureza de co- maior prudência é procurá-los para mais
ração, a fé, a esperança, o temor santo e intimamente amar e atrair o Amado.
filial, a ciência, a sabedoria, as graças, a Como nesta busca a vontade emprega toda
memória e apreço delas, e todas as demais sua liberdade, quanto mais livremente
causas que pode ter o amor divino. ama ao sumo Bem, tanto menos livre fica
Esta chama não se ateia ao modo para o deixar de amar. Nesta gloriosa por-
do amor tolo e cego que entra pela estul- fia, sendo a vontade a senhora e rainha da
tice dos sentidos e depois não encontra sua alma, vem a se tornar feliz escrava de seu
razão e sentido. O amor santo e puro, entra amor, sem querer, e sem quase poder fugir
pelo conhecimento nobilissimo, pela a esta livre sujeição.
força de sua bondade infinita e inex- Nesta voluntária e forte doação de
plicável suavidade. Deus é sabedoria e si, quando vê o sumo Bem se esquivar»
9
Quinto Livro Capítulo 2
sofre dores e delíquios de morte, como a Certo dia, entrou a humilde e so-
quem lhe falta a fonte da vida, pois só vive berana Rainha à presença do Menino Deus
de amar e saber-se amada. e lançando-se a seus pés, com íntimos sus-
piros e lágrimas, lhe disse: Dulcíssimo
amor e bem meu, que valor tem a insigni-
O martírio de amor ficância deste pó e cinza, comparada ao
vosso imenso poder? Que representa toda
728. Daqui se entenderá algo do a miséria da criatura para a vossa bondade
muito que padeceu o ardente e puríssimo sem fim? Em tudo, ultrapassais nossa
coração de nossa Rainha com a ausência baixeza, e no imenso pélago de vossa mi-
do Senhor, velando-se o objeto de seu sericórdia afogam-se nossas imperfeições
amor e deixando-a sofrer tantos dias com e defeitos. Se não acertei a vos servir como
o receio de O haver desgostado. reconheço que devo, castigai minhas ne-
Sendo Ela um compêndio quase gligências e perdoai-as, porém, veja eu,
imenso de humildade e amor divino, e não Filho e Senhor meu, a alegria de vossa face
sabendo a causa daquela severidade e que é minha salvação e aquela suspirada
afastamento de seu Amado, veio a sofrer luz que me dava vida. Aqui está a pobre
o martírio mais doce e mais doloroso, apegada ao pó, e não me levantarei de vos-
jamais compreendido por inteligência hu- sos pés até que veja o claro espelho em
mana ou angélica. Só Maria santíssima, a que minha alma se contemplava.
Mãe do santo amor (Ecli 24,24), chegou
ao máximo que pode caber em pura
criatura. Só Ela pôde sofrer este martírio Fim da provação
que ultrapassou a todos os tormentos dos
mártires e penitências dos confessores. 730. Estas e outras razões cheias
Nesta ocasião, Maria esqueceu e de sabedoria e de ardentíssimo amor, ex-
considerou como nada todas as coisas pôs nossa grande Rainha humilhada di-
criadas e visíveis, até encontrar a graça e ante de seu Filho santíssimo.
o amor de seu santíssimo Filho e Deus, Jesus que, mais do que a mesma
que temia ter perdido, embora sempre o Senhora, desejava restituí-la a suas
possuísse. Não se pode explicar com delícias, com muito agrado, lhe disse:
palavras o cuidado, solicitude, desvelo e Minha Mãe, levantai-vos. Estas palavras,
diligências que empregou para comover pronunciadas por quem é a Palavra do
seu querido Filho e o eterno Pai. Eterno Pai, teve tanta eficácia que, instan-
taneamente, transformou e elevou a divina
Mãe em altíssimo êxtase no qual viu a
Oração de Maria divindade abstrativamente.
Nesta visão, o Senhor a recebeu
729. Passaram-se trinta dias nesta com dulcíssimos abraços e palavras de Pai
prova, e pareciam muitos séculos, para e Esposo, transportando-adas lágrimas ao
quem não podia viver um só momento júbilo, do sofrimento ao gozo e da amar-
sem a satisfação de seu amor e do seu gura à suavíssima doçura. Manifestou-lhe
Amado. Deus grandes mistérios de seus altos
A nosso modo de entender, o co- desígnios sobre a nova lei evangélica.
ração do infante Jesus já não podia resistir Para escreve-la toda em seu puríssimo co-
à força do amor por sua querida Mãe, pois ração, destinou-a a santíssima Trindade
Ele também sofria suave violência em como primogênita e primeira discípula do
mantê-la tão aflita e suspensa. Verbo humanado. Ela tomar-se-ia o pa-
io
Quinto Livro - Capítulo 2
drão por onde seriam modelados todos os pousei na cidade santa, e em Jerusalém
santos: Apóstolos, Mártires, Doutores, está o meu poder. Tomei raízes no meio
Confessores, Virgens e os demais justos de um povo glorioso, e nesta porção do
da nova Igreja e lei da graça que o Verbo meu Deus, que é a sua herança, e na as-
estabeleceria pela redenção humana. sembléia dos santos, estabeleci a minha
assistência."
Maria descrita no livro Eclesiástico
731. A este mistério corresponde Maria, reservatório da sabedoria
tudo o que a divina Senhora disse de Si 732. Continua o Eclesiástico ou-
mesma, como a santa Igreja lhe aplica, no tras excelências de Maria santíssima, e
capítulo 24 do Eclesiástico, sob o tipo da volta a dizer (Ecli 24, 22): "Estendi os
sabedoria divina. meus ramos como o terebinto, e os meus
Não me detenho em explicar este ramos são ramos de honra e de graça.
capítulo, pois conhecido o fato que vou Como a vide lancei flores dum agradável
descrevendo, pode-se compreender como perfume e as minhas flores dão frutos de
se aplica à nossa grande Rainha, tudo honra e de honestidade. Eu sou a Mãe do
quanto o Espírito Santo diz ali em nome amor formoso, e do temor, e da ciência, e
d*Ela. Basta referir um pouco do texto, da santa esperança. Em mim há toda a
para que todos entendam parte de tão ad- graça do caminho e da verdade, em mim
mirável mistério (Ecli 24 desde o v. 5). toda a esperança da vida e da virtude.
"Eu saí (diz esta Senhora), da boca do Vinde a mim todos os que me desejais, e
Altíssimo, a primogênita antes de todas as
criaturas. Eu fiz com que nascesse nos
céus uma luz inextinguível, e como uma
névoa cobri toda a terra. Eu habitei nos
lugares mais altos, e o meu trono é sobre
uma coluna de nuvem. Eu sozinha fiz o
giro do céu, e penetrei a profundidade do
abismo, andei sobre as ondas do mar, e
percorri toda a terra; e em todos os povos,
e entre todas as nações tive a primazia. E
sujeitei com o meu poder os corações de
todos os grandes e pequenos; e entre todos
estes povos busquei um lugar de repouso,
e uma habitação na herança do Senhor.
Então o Criador de tudo deu-me os seus
preceitos, e falou-me; aquele que mé criou
descansou no meu tabemáculo, e disse-
me: habita em Jacó, e possui a tua herança
em Israel, e lança raízes entre os meus
escolhidos.
Eu fui criada desde o princípio, e
antes dos séculos, e não deixarei de existir enchei-vos dos meus frutos; porque o meu
em toda a sucessão das idades, e exerci espírito é mais doce do que o mel, e t
diante dele o meu ministério na morada minha herança mais suave que o favo dt
santa. Eu fui assim firmada em Sião, e re- mel. A minha memória durará por toda a
Quinto Livro - Capitulo 2
12
Quinto Livro - Capítulo 2
mos mistérios vividos entre Cristo Senhor fôra natural. O Menino Deus obedecia-lhe
nosso e sua Mãe, nestes anos de sua infân- e passava muitos momentos com S. José
cia e juventude até a pregação, pois todas durante seu trabalho que era contínuo,
estas coisas se realizaram para a instrução para poder sustentar, com o suor de seu
da divina Mãe. Confesso, porém, de novo, rosto, ao Filho do Eterno Pai e à sua Mãe.
como nos números acima (712,713) a in- Quando o Menino Deus foi cres-
capacidade minha e de todas as criaturas cendo, ajudava S. José no que lhe permitia
para tão elevado argumento. Além disso, a idade. Outras vezes, fazia alguns mila-
tal exposição exigiria explicação de todos gres acima das leis naturais, para animar
os mistérios e segredos da Sagrada Escri- o santo esposo e lhe facilitar o trabalho,
tura, de toda a doutrina cristã, das virtudes, pois estes prodígios eram apenas para os
tradições da Santa Igreja, refutação dos er- três.
ros e seitas falsas, e tudo o que sustenta a
Igreja e a conservará até o fim do mundo. DOUTRINA QUE ME DEU A
Dever-se-ia acrescentar ainda, grandes RAINHA DO CÉU.
mistérios da vida e glória dos santos, por-
que tudo foi escrito no coração puríssimo
de nossa grande Rainha.
As obras realizadas pelo Redentor Amor à palavra de Deus
e Mestre, a fim de que a redenção e a dou- 736. Minha filha, chamo-te hoje
trina da Igreja fosse copiosa (SI 119, 7); novamente para minha discípula e com-
quanto escreveram os Evangelistas e panheira, na prática da doutrina celestial
Apóstolos, os Profetas e Antigos Padres; que meu Filho santíssimo ensinou à sua
o que depois fizeram todos os santos; a luz Igreja, através dos santos Evangelhos e
que receberam os doutores; o sofrimento Escrituras. Quero que prepares teu co-
dos mártires e das virgens; a graça que re- ração com nova diligência e atenção, e se-
ceberam. Tudo isso, e muito mais que não jas terra escolhida para receber a semente
se pode explicar, Maria santíssima conhe- viva e santa da palavra do Senhor, produ-
ceu individualmente, com grande pene- zindo fruto cem por ura (Lc 8,8). Mantém
tração e certeza. Quanto era possível à o coração atento a minhas palavras; ao
pura criatura, praticou concretamente, e mesmo tempo, lê assiduamente os Evan-
agradeceu ao Eterno Pai, autor de tudo, e gelhos e medita interiormente os mistérios
a seu Filho unigênito, cabeça da Igreja. A que neles entenderes. Ouve a voz de teu
respeito de toda esta matéria, falarei adi- Esposo e Mestre que a todos convida e
ante o que me for possível. chama, para ouvir suas palavras de vida
eterna (Jo 6,69). Tão grande é a perigosa
ilusão da vida mortal, que são poucas as
Maria e as obrigações do lar almas que desejam ouvir e entender o
caminho da luz (Mt 7,14).
735. Ocupada em atos tão impor- Muitos seguem o deleitável ofere-
tantes, atendendo a seu Filho e mestre, cido pelo príncipe das trevas, e quem
nem por isso faltava ao serviço de sua pes- nestas caminha não sabe onde acabará (Jo
soa e ao de São José. A tudo acudia sem 12, 35). A ti, o Altíssimo chama para o
falta nem imperfeição, servindo-lhes as caminho e as sendas da verdadeira luz; se-
refeições. A seu Filho santíssimo servia gue-as, imitando-me, e realizarás meu de-
de joelhos, com incomparável reverência. sejo. Renuncia a todo visível e terreno;
Cuidava também que o infante Jesus fosse não o conheças nem olhes; não o procures
o consolo de seu pai putativo, como se o nem lhe prestes atenção; foge de ser co-
Quinto Livro-Capítulo 2
nhecida; não tenham as criaturas parte al- Finalidade das graças especiais,
guma contigo; protege teu segredo (Is 24, recebidas pela escritora
16) e teu tesouro (Mt 13,44) da fascinação 736.b. A destra divina te con-
humana e diabólica. Tudo isto con- cedeu estas graças para te preparar e tor-
seguirás se, como discípula do meu Filho nar idônea e capaz de receber o ensino,
santíssimo e minha, praticares com a per- inteligência e luz de minha vida, obras,
feição que deves, a doutrina do Evangelho virtudes, mistérios, e escrevê-los. Dig-
que te ensinamos. nou-se o Senhor altíssimo te conceder
esta liberal misericórdia que não mere-
Noviciados de perfeição ces, por meus rogos e intercessào. As-
sim o fiz em recompensa de teres sub-
736.a. Para te incitares a tão alto metido teu juízo tímido e covarde à von-
desígnio, lembra o favor que te fez a dis- tade do Altíssimo, e à obediência de teus
posição divina, chamando-te para noviça prelados que muitas vezes te ordenaram
e professa da imitação de minha vida, dou- escrever minha História. O prêmio mais
trina e virtudes, no seguimento de meus favorável e útil para tua alma, foram
passos. Deste estado passarás ao mais ele- estes estados ou caminhos místicos,
vado do noviciado e profissão perfeita da altíssimos e misteriosos, ocultos à pru-
religião católica. Ajustar-te-ás à doutrina dência carnal (Mt 11, 25), mas agra-
evangélica do Redentor do mundo, cor- dáveis à aceitação divina. Eles contêm
rendo após seus perfumes, pelas sendas copiosas doutrinas, como as que tens re-
retas de sua vontade. cebido e experimentado e te levam a al-
O primeiro estado de discípula cançar sua finalidade. Escreve-as sepa-
minha será disposição para o ser de meu rado, num tratado, pois assim o quer
Filho santíssimo, e ambos para alcançar o meu Filho santíssimo. Seu título será
último da união com o ser imutável de como prometeste na introdução desta
Deus. Os três são favores de incomparável História: "Leis da Esposa, ápice de seu
valor, que te põem na obrigação de ser casto amor, fruto colhido da árvore da
mais perfeita que os elevados serafins. vida desta Obra."
CAPÍTULO 3
PEREGRINAÇÃO ANUAL J)A SAGRADA FAMÍLIA A
JERUSALÉM EM OBEDIÊNCIA A LEI DE MOISÉS.
Peregrinações anuais a Jerusalém São José ia às vezes sozinho
737. Alguns dias após a chegada 738. Nas duas vezes em que o
de Jesus, Maria e José em Nazaré, chegou santo esposo José subia a Jerusalém so-
a época em que os israelitas deviam se zinho, fazia a peregrinação por si e por sua
apresentar ao Senhor, em Jerusalém, con- Esposa, em nome do Verbo humanado.
forme o preceito da lei de Moisés. Esta Com sua doutrina e favores, ia o Santo
obrigação era três vezes ao ano, segundo cheio de graça, devoção e dons celestiais,
se lê no Êxodo (34,14) e no Deuteronômio oferecer ao eterno Pai a oferta que deixava
(16, 1). O preceito obrigava apenas aos reservada para o tempo oportuno.
homens e não às mulheres, mas tampouco Neste ínterim, como representante
proibia a estas. Deste modo, elas ficavam do Filho e Mãe que ficavam orando por
livres de ir por devoção, ou não ir. ele, fazia no templo de Jerusalém miste-
A divina Senhora e seu Esposo riosas orações, oferecendo o sacrifício de
pensaram como fazer nessas ocasiões. O seu louvor. Apresentando como oferenda
Santo inclinava-se a levar consigo sua a Jesus e Maria, sua oblação era mais
Esposa e o Filho santíssimo para oferecê- aceitável ao eterno Pai, do que todas quan-
lo no templo ao eterno Pai, como sempre tas oferecia o resto do povo israelita.
fazia. A Mãe puríssima era também Quando, porém, pela festa daPáscoa
atraída pela piedade e culto dó Senhor, ia o Verbo humanado e a Virgem Mãe com
mas como em coisas semelhantes não agia São José, a viagem era mais admirável para
sem conselho de seu mestre, o Verbo hu- ele e para os cortesãos do céu. Sempre se
manado, consultou-o sobre o caso. formava aquela procissão soleníssima de
Resolveram que São José fosse nas que já falei em outras ocasiões semelhan-
duas primeiras vezes sozinho, e na terceira tes^: os três caminhantes, Jesus, Maria e
iriam os três juntos. Estas peregrinações José e os dez mil anjos que os acompa-
a Jerusalém eram feitas nas solenidades nhavam em forma visível. Refulgentes de
'dos Tabernáculos (Dt 16,13); na das se- beleza, iam com a profunda reverência que
manas (Dt 16,9) que é pelo Pentecostes; costumavam, servindo a seu Criador e à sua
e na dos Ázimos (Dt 16, 8) que era a Rainha, como de outras viagens tenho escrito.
Páscoa de Parasceve. Nesta última, Esta era de quase trinta léguas,
subiam Jesus, Maria e José juntos. Durava distância entre Nazaré e Jerusalém. Tanto
sete dias, e nela aconteceu o que direi no na ida como na volta, os santos anjos ob-
capítulo seguinte. Nas outras duas festas, servavam a mesma
subia apenas São José sem o Menino e a nhar e obsequiar oordem em acompa-
Verbo humanado,
Mãe. segundo sua vontade e precisão.
1 -n°456, 589,619.
15
Quinto Livro - Capítulo 3
16
Quinto Livro - Capítulo 3
o que deveriam fazer naquelas peregri- do-se de nova luz e sabedoria. Seu purís-
nações, e em que lugarese pousadas iriam. simo coração abrasava-se no divino amor,
Conhecia a celestial Princesa que nessas e o Altíssimo lhe comunicava novos dons
circunstâncias, seu Filho santíssimo dis- e favores, impossíveis de serem expli-
punha os meios oportunos para as ad- cados com minhas inadequadas palavras.
miráveis obras que sua sabedoria tinha Estes dons tinham o fim de preveni-la e
previstas e determinadas. prepará-la para os sofrimentos que havia
de passar.
Muitas vezes, depois de tão ad-
Maria reza com Jesus no Templo miráveis graças, se lhe representavam
como num mapa, todas as afrontas, ig-
742. Daqui procedia que pas- nomínias e dores que naquela cidade,
savam algumas noites nos pousos, Jerusalém, seu Filho santíssimo pade-
outras permaneciam no campo. O Me- ceria. E, para que, com maior dor, tudo
nino Deus e sua Mãe puríssima nunca se visse n'Ele próprio, costumava Jesus vir
separavam. A grande Senhora sempre orar na presença de sua doce Mãe. Con-
gozava de sua presença, atendendo a templando-o na luz da divina sabedoria,
seus atos para em tudo imitá-los e segui- amando-o juntamente como a seu Deus e
los. seu Filho verdadeiro, sentia-se traspas-
O mesmo fazia no templo. Via e sada pelo penetrante gládio de que falara
entendia as orações e pedidos que o Verbo Simeão (Lc 2,35).
humanado fazia ao eterno Pai e como, Derramava muitas lágrimas, pre-
vendo-se inferior pela sua natureza hu- vendo as injúrias que seu dulcíssimo
mana, humilhava-se e reconhecia, com Filho receberia (Is 53,3 em diante), as
profunda reverência, os dons que recebia penas e a morte ignominiosa que lhe
da divindade. As vezes, a Mãe santíssima dariam (Sab 2, 20); que aquela formo-
ouvia a voz do Pai dizendo: Este é meu sura maior que a de todos os filhos dos
diletíssimo Filho em quem me deleito e homens (SI 44,3) seria desfeita e redu-
ponho minha complacência (Mt 17,5). zida a aparência de um leproso (Is 53,
Outras vezes, a grande Senhora via 4). e que tudo veria com seus olhos. Para
que seu Filho rezava por Ela ao eterno Pai mitigar um pouco sua dor, costumava o
e a oferecia como verdadeira Mãe. Isto lhe Menino Deus voltar-se para Ela, di-
causava incomparável júbilo. Quando zendo-lhe que dilatasse o coração com
conhecia que Jesus rezava pela espécie a caridade que tinha pelo gênero hu-
humana, e por essa intenção oferecia seus mano, e oferecesse ao eterno Pai aquelas
trabalhos, ela o acompanhava nessas penas de ambos pela salvação dos ho-
súplicas. mens.
Filho e Mãe faziam juntos este
oferecimento de grande agrado à San-
Atos de Jesus e Maria na tíssima Trindade. Aplicavam-no espe-
peregrinação cialmente aos fiéis, e mais particular-
mente pelos predestinados que ha-
743. Acontecia que, tanto durante veriam de aproveitar os merecimentos
o trajeto, como quando entravam no tem- e Redenção do Verbo encarnado. Estas
plo, os santos anjos entoavam cânticos eram as principais ocupações que
com música suavíssima ao Verbo hu- preenchiam os dias que Jesus e Maria
manado. A feliz Mae via-os, ouvia-os e gastavam na peregrinação ao templo de
entendia todos aqueles mistérios, enchen- Jerusalém.
Quinto Livro - Capítulo 3
Armas espirituais
A lei de Deus é fardo leve
744. Minha filha, se com atenta e 745. Entre estes perigos, o da carne
profunda consideração ponderas ruas não é o menor, por causa da fragilidade
obrigações, muito leve te parecerá o tra- humana. Por esta razão, e por ser o mais
balho de que sempre te encarrego (Mt 11, freqüente e doméstico, leva muitos a
30): o cumprimento dos mandamentos do caírem e perderem a graça. O modo mais
Senhor e de sua santa lei. Este há de ser o direto e seguro de vence-la, para ti e para
primeiro passo de tua peregrinação, todos, é envolver a vida em sacrifício e
princípio e fundamento de toda perfeição mortificaçào. Não procurar descanso,
cristã. nem deleite dos sentidos. Fazer com eles
Os preceitos do Senhor devem inviolável pacto, para não se desorde-
ser cumpridos, como muitas vezes te narem nem exigirem mais do que a regra
ensinei; não com tibieza e frouxidão, da razão permite. A este cuidado, acres-
mas com todo fervor e devoção. Esta de- centa o de aspirar sempre ao maior agrado
voção te constrangerá a não te conten- do Senhor e ao último fim onde queres
tares apenas com a virtude comum, mas chegar.
a progredires acrescentando, livre- Para tudo isto, tem sempre em
mente, muitas obras, fazendo por amor vista imitar-me como te convido com o
o que Deus não te impõe por obrigação. desejo de que alcances a plenitude da vir-
E isto artifício de sua sabedoria, para tude e santidade. Lembra da pontualidade
mais se dar a seus verdadeiros servos e e fervor com que Eu fazia tantas coisas,
amigos, como Ele te quer. não por que o Senhor as ordenava, mas
porque eu conhecia serem de seu maior
agrado. Multiplica tu os atos fervorosos,
Perigo da vida mortal as devoções, os exercícios espirituais, e
neles as súplicas e ofertas ao Eterno Pai
744-a. Considera, caríssima, que o pela salvação dos mortais.
caminho da vida mortal à eterna é longo Ajuda-os também, com o exemplo
(3 Rs 19, 7), penoso e perigoso (Mt 7, e admoestações que puderes. Consola aos
14). Longo pela distância, penoso por tristes, anima osfracos,auxilia os caídos, e
causa da fragilidade humana e astúcia de por todos oferece, se for necessário, tua
seus inimigos. Além de tudo isto, o tempo própria vida e sangue. Agradece a meu Filho
é breve (1 Cor 7,29), ofimincerto (Ecle santíssimo a benignidade com que suporta
11,3). Depois do pecado de Adão, a vida a grosseira ingratidão dos homens, sem lhes
animal e terrena dos mortais escraviza recusar benefícios e a conservaçào^da vida.
quem a segue (Jó 7, 20); as cadeias das Observa o invicto amor que lhes teve e tem,
paixões são fortes, a guerra contínua (Jó e como eu o acompanhei e ainda o acom-
5,1). O deleitável aos sentidos fascina fa- panho nesta caridade. Quero que também
cilmente (Sab 4, 12). A virtude é mais tu sigas a teu doce Esposo, e a mim. tua
oculta em seus efeitos e conhecimento. mestra, em tão excelente virtude.
18
CAPÍTULO 4
VIAGEM DE JESUS, AOS DOZE ANOS, COM SEUS PAIS A
JERUSALÉM. FICA NO TEMPLO, SEM ELES SABEREM.
Jesus aos doze anos valeu-se o Senhor do costume e da aglo-
meração dos peregrinos nessas soleni-
746. Continuavam, como fica dito, dades. Sendo muita gente, agrupavam-se
Jesus, Maria e José a fazer todos os anos separadamente os homens e as mulheres,
a peregrinação ao templo, pela festa da para maior recato. Os meninos acompa-
Páscoa dos Ázimos (Lc 23,6). nhavam a mãe ou o pai, indiferentemente,
Chegando o Menino Deus aos pois nisso não havia inconveniência.
doze anos de idade, quando convinha Isto levou São José a pensar que o
começar a raiar os esplendores de sua Menino Jesus ia na companhia de sua Mãe
inacessível luz divina, subiram a Jerusa- santíssima (Lc 2, 44), com quem ordi-
lém, segundo costumavam (Lc 2,42). nariamente sempre ficava. Não pôde
A solenidade dos Ázimos durava imaginar que Ela estaria sem Ele, pois a
sete dias (Dt 16, 8), conforme determi- divina Rainha amava e conhecia seu
nava a lei, sendo o primeiro e o último os Filho, mais do que toda criatura humana
mais festivos. Por este motivo, nossos e angélica.
divinos peregrinos permaneciam aquele A grande Senhora não teve tantas
septenário em Jerusalém, celebrando a razões para julgar que Jesus ia com o pa-
festa com o culto do Senhor e orações triarca São José, porém, foi o próprio Se-
como costumavam os demais israelitas, se nhor que a distraiu com outros divinos e
bem que, no mistério que os envolvia, santos pensamentos. Isto impediu-a que,
fossem tão singulares e diferentes dos de- a princípio, percebesse sua ausência, e de-
mais. Nestes dias, a feliz Mãe e seu santo pois quando a notou, pensou que se en-
Esposo, respectivamente, recebiam do contrasse com o glorioso São José, a quem
Senhor dons e favores que ultrapassam o Senhor das alturas queria consolar com
todo pensamento humano. sua presença.
no lugar onde passariam a primeira noite, aquela ocasião tão meritória, e que não era
depois que partiram de Jerusalém. Vendo tempo de lhe manifestar o mistério. Ainda
a grande Senhora que o Menino Deus não que não perdiam a visão de seu Criador e
vinha com São José, como pensava, e este nosso Redentor, responderam-lhe conso-
que tampouco estava com a Mãe, ficaram lando-a com outras razões, mas não lhe
mudos de susto e admiração sem poder disseram onde se encontrava seu Filho
falar por alguns momentos. santíssimo e o que fazia.
Seguindo o juízo de sua profundís- Esta resposta que criou novas
sima humildade, cada qual atribuía ao dúvidas à prudentíssima Senhora, aumen-
próprio descuido haver perdido de vista tou sua dor e cuidado, lágrimas ê suspiros
ao Filho santíssimo. Ignoravam o mistério para procurar deligentemente, não a
e o modo como o Senhor procedera. Co- dracma perdida como a mulher do Evan-
brando algum alento, os divinos Esposos, gelho (Lc 15,8), mas a todo o tesouro do
namaior aflição, indagaram-se o que fazer céu e da terra.
(Lc 2,45).
Disse a amorosa Mãe a São José:
Esposo e Senhor meu, meu coração não Angústias de Maria
sossegará se não voltarmos com toda a
diligência à procura de meu Filho santís- 750. Cogitava a Mãe da sabedoria
simo. Assim o fizeram, começando a pes- consigo mesma, e no coração lhe nasciam
quisa entre parentes e conhecidos. Nin- diversas suposições. O primeiro pen-
guém lhes pôde dar qualquer notícia samento que lhe ocorria era que Arquelau,
d'Ele, nem aliviar-lhes a dor. Pelo con- imitando a crueldade de seu pai Heródes,
trário, aumentaram-na dizendo que não o teria tido notícia do infante Jesus e o pren-
tinham visto desde a saída de Jerusalém. dera. Sabia pela sagrada escritura^ pelas
revelações e pelo ensinamento de seu
Filho e mestre divino, que não era chegado
Maria põe-se a procurá-lo o tempo da paixão e morte do Redentor.
Temeu, contudo, que o tivessem apri-
749. Dirigiu-se a aflita Mãe a seus sionado e o maltratassem.
santos anjos. Os que levavam os dísticos Com profundíssima humildade,
do santíssimo nome de Jesus (referidos suspeitava também que talvez Ela o
ao se falar da Circuncisão, n° 523) tivesse desgostado no seu serviço e as-
haviam ficado com o Menino, e os outros sistência, e Ele se retirara ao deserto com
acompanhavam sua Mãe puríssima, como seu futuro precursor João. Outras vezes,
costumava acontecer quando se sepa- falando com seu Bem ausente, dizia-lhe:
ravam. A estes, que eram dez mil, disse a Doce amor e glória de minha alma, com
Rainha: Amigos e companheiros meus, o desejo que tendes de padecer pelos
bem conheceis ajusta causa de minha dor. homens (Heb 10, 5), nenhum trabalho e
Peço-vos que em tão amarga aflição sejais penalidade evitareis na vossa imensa cari-
meu consolo, dando-me notícia de meu dade. Antes, receio, Senhor meu que as
Amado para que eu O procure e encontre buscareis de propósito (Is 53, 7). Onde
(Cant 3,2 e 3). Dai algum alento a meu irei? Onde vos acharei, luz de meus olhos?
angustiado coração que longe de seu bem (Tob 10,4). Quereis que perca minha vida
e sua vida, arranca-se donde está para pro- pela espada que a separou de vossa pre-
curá-lo. sença? porém, não me admiro, bem meu,
Os santos anjos sabiam ser von- que castigueis com vossa ausência a quem
tade do Senhor dar à sua Mãe santíssima não soube aproveitar o benefício de vossa
t - Sab 2,13, h 53,2; Jer 11,18, Dan 9,26; Jo 7,3U
20
Quinto Livro - Capítulo 4
companhia. Por que, Senhor meu, me en- João estava. Inclinava-se a pensar que seu
riquecestes com os doces carinhos de Filho santíssimo estaria com ele, já que
vossa amável presença e doutrina? não havia indícios de que Arquelau o
Ài de mim! Se não pude merecer tivesse aprisionado. Quando já queriapôr-
ter-vos por Filho e gozar de vós este se a caminho, os santos anjos a detiveram,
tempo, confesso que devo agradecer ao dizendo-lhe que não fosse ao deserto por-
que vossa dignação me quis aceitar por que o divino Verbo humanado não estava
escrava (Lc 1, 48). Se apesar de indigna lá. Decidiu ir também a Belém, e ver se
Mãe vossa, posso valer-me desse título por acaso não estaria na gruta do nas-
para vos procurar como meu Deus e meu cimento, mas também desta resolução a
bem, dai-me, Senhor, licença para isso e fizeram desistir os anjos, dizendo que o
concedei-me o que me falta para ser digna Senhor não estava tão longe.
de vos encontrar. Convosco viverei no de- A divina Mãe ouvia essas ad-
serto, no sofrimento, nos trabalhos, nas vertências e sabia que os espíritos angéli-
tribulações, e em qualquer parte. Senhor cos não ignoravam onde se encontrava o
meu, minha alma deseja que, com dores e infante Jesus. Não obstante, foi tão adver-
tormentos me façais merecer: ou morrer tida, humilde e reservada por sua rara
se não vos encontro, ou viver em vosso prudência, que não lhes replicou nem lhes
serviço e companhia. perguntou onde o acharia. Compreendeu
Quando vosso ser divino se escon- que lho ocultavam por vontade do Senhor.
deu ao meu interior, ficou-me a presença de Com tanta magnificência e veneração
vossa amável humanidade. Ainda que se tratava a Rainha dos anjos os mistérios do
mostrasse severa e menos carinhosa do que Altíssimo e a seus ministros e em-
costumava, eu encontrava vossos pés, ante baixadores (2 Mc 2,9). Esta circunstância
os quais podia-me prostrar. Agora, entre- foi uma das ocasiões em que teve opor-
tanto, falta me essa felicidade, e comple- tunidade de revelar a grandeza de seu real
tamente se escondeu o sol que me ilumi- e magnânimo coração.
nava, só me restando angústias e gemidos.
Oh! Vida de minha alma, que suspiros do
fundo do coração vos posso dirigir! Mas, Perfeição de Maria no sofrimento
não são dignos de vossa grande clemência,
pois não me chega notícia donde vos en- 752. A dor que Maria santíssima
contrarão meus olhos. sofreu nesta ocasião ultrapassou a que to-
dos os mártires padeceram. Sua paciência
e conformidade não teve nem podem ter
Assistência dos anjos igual, porque a perda de seu Filho santís-
simo era maior do que a perda de toda a
751. Persistiu a cândida pomba nas criação. O conhecimento, o amor e estima,
lágrimas e gemidos, sem descansar, sem que tinha por Ele, supera qualquer imagi-
sossegar, sem dormir nem comer, três dias nação. A incerteza e a possibilidade de en-
contínuos. contrar a razão foram muito grandes,
Os dez mil anjos a acompanhavam como se disse.
corporalmente, em forma humana. Apesar Além disto, naqueles três dias
de a verem tão aflita e dolorosa, não lhe deixou-a o Senhor no estado comum em
manifestavam onde acharia o Menino per- que costumava ficar, quando lhe faltavam
dido. os favores especiais, quase no estado or-
No terceiro dia, a grande Rainha dinário da graça. Fora da visão e comuni-
resolveu ir procurá-lo no deserto onde São cação com os santos anjos, suspendeu
Quinto Livro - Capítulo 4
22
Quinto Livro - Capítulo 4
fundo do coração, enviava a seu Filho esta perda, porque nunca mereceram amá-
ausente. Logo supôs que, j á que não estava lo e possuí-lo pela graça. Como não lhes
com os pobres, estaria sem dúvida no tem- dói perder o bem que não amam e nem
plo como na casa de Deus e da oração. A possuíram, depois de perdido não cuidam
este pensamento, disseram-lhe os santos em recuperá-lo. Há, porém, grandes dife-
anjos: Rainha e Senhora nossa, vosso con- renças nestas perdas ou ausências do ver-
solo se aproxima e logo vereis a luz de dadeiro Bem.
vossos olhos. Apressai o passo ide ao tem- Não é a mesma coisa Deus escon-
plo. der-se da alma para provar seu amor e lhe
O glorioso São José encontrou-se aumentar as virtudes, ou afastar-se dela
neste momento com sua Esposa. Para du- por castigo de suas culpas. O primeiro
plicar as diligências, tomara outra direção caso é artifício do amor divino, e meio
à procura do Menino Deus, e fôra também para mais se dar à criatura que o deseja e
avisado por outro anjo, que se dirigisse ao merece. 0 segundo, é justo castigo da in-
templo. Padeceu nesses três dias incom- dignação divina. Na primeira ausência a
parável e excessiva aflição, indo de um alma se humilha pelo temor santo e filial
lado para outro, às vezes com sua divina e por não saber a causa. Ainda que a cons-
Esposa, outras sem Ela, mas com pro- ciência não o acuse, o coração sensível e
funda pena. Teria chegado a perder a vida, amoroso conhece o perigo, sente a perda
se o poder do Senhor não o confortasse, e e assim como diz o Sábio (Prov 28,14),
se a prudentíssima Senhora não o conso- será bem-aventurado. Vive sempre com
lasse. Cuidava que tomasse algum ali- temor dessa perda, porque o homem não
mento, e descansasse por momentos de sabe se é digno do amor ou do ódio de
sua grande fadiga. Seu verdadeiro e dedi- Deus (Ecli 9,1), e tudo é reservado para
cado amor pelo Menino Deus, levava-o a ofim(Ecii 9,2). E, no decorrer desta vida
procurá-lo com veemente ansiedade, sem mortal, comumente sucedem as coisas ao
se lembrar de alimentar a vida, nem justo e ao pecador, sem diferença.
sustentar a natureza.
Com o aviso dos santos anjos,
foram Maria puríssima e São José ao tem- Perigosa indiferença
plo, onde aconteceu o que direi no capítulo
seguinte. 756. Diz o Sábio, que este perigo
é o maior e péssimo entre todas as coisas
DOUTRINA QUE ME DEU A que acontecem debaixo do sol (Ecli 9,3),
RAINHA DO CÉU, MARIA porque leva os ímpios e réprobos a se
SANTÍSSIMA. encherem de malícia e dureza de coração.
Vivem em falsa e perigosa segurança,
vendo que, sem diferença, sucedem as
coisas a eles como aos demais (Ecli 9,12)
O temor santo e que não se pode saber, com certeza,
755. Minha filha, sabem os mor- quem é escolhido ou reprovado, amigo ou
tais, por freqüentes experiências, que não inimigo de Deus, justo ou pecador, quem
se perde sem dor, aquilo que se ama com merece o ódio e quem o amor. Se os
deleite. Esta verdade tão conhecida e homens, porém, recorressem, sem paixão
provada, devia ensinar e argüir os mun- e falsidade, à consciência, ela responderia
danos, do desamor que mostram por seu a cada um o que lhe convém saber (Lc 12,
Deus e Criador. Sendo tantos os que o per- 58). Quando ela acusa pecados cometidos,
dem, poucos são os que se afligem com é estultíssima ignorância não atribuir-se os
Quinto Livro - Capítulo 4
prova seria sentir, com íntima dor, a perda acontecer isso por castigo, deves procurá-
lo com tanta energia que nem a tributação,
S gozo espiritual e efeitos da ~ A
faltadestasensibüidadenumaalmacnada nem a angústia, nem a necessidade, nem
para a eterna felic.dade, é forte mdicio <le o perigo, nem a perseguição, nem a es-
que não a deseja nem ama. Dai não busca cada nem o alto, nem o profundo, possam
la com solicitude (Lc 15,8) e não chegar criar separação entre ti e teu Senhor (Rom
a ter alguma certeza e WguWçapjjgj 8,35).
possíveis nesta vida mortal, de não ter per
dido por sua culpa, o sumo Bem. Se tu fores fiel como deves, e nao
O quiseres perder, nem os anjos, nem os
nrincipados, nem as potestades, nem outra
Só o pecado faz perder a Deus qualquer criatura, serão capazes para
fS-teperdê-lo (Rom 8,38). Tão fortes
757. Eu perdi meu Filho Santís- são o vínculo e as cadeias de seu amor,
simo apenas quanto à presença corporal e que ninguém as pode quebrar, a não ser
com esperança de O encontrar. Todavia, o a própria vontade da criatura.
24
CAPÍTULO 5
DEPOIS DE TRES DIAS O MENINO JESUS É ENCONTRADO
NO TEMPLO, DISCUTINDO COM OS DOUTORES.
Razões da perda do Menino Deus modo ausentou-se deles, ficando em
Jerusalém. Quando, depois de certo prazo,
758. No capítulo passado, fica em a Rainha se viu sozinha, supôs que Ele
parte resolvida a dúvida que alguns estivesse com o Pai adotivo (Lc 2,44).
poderi am ter, ao pensar como nossa divina
Senhora, sendo tão cuidadosa e atenta no
acompanhar e servir seu Filho santíssimo, O Menino em Jerusalém
poderia tê-lo perdido de vista, ficando Ele
em Jerusalém. 759. Isto aconteceu próximo às
Bastaria saber que assim o pode
*
portas da cidade, donde o Menino Jesus
dispor o mesmo Senhor. Contudo, expli- voltou,' pondo-se a andar pelas ruas.
carei aqui melhor como aconteceu, sem Vendo em sua ciência divina o que nelas
descuido ou voluntária inadvertência da lhe haveria de suceder, tudo ofereceu a seu
amorosa Mãe. Além de valer-se da aglo- eterno Pai pela salvação das almas.
meração de gente, o Menino Deus usou Naqueles três dias pediu esmolas
outro meio sobrenatural, quase necessário para, daí em diante, enobrecer a humilde
para distrair a atenção da sua cuidadosa mendicância como primogênita da santa
Mãe e companheira. Sem isto, não pobreza. Visitou os hospitais dos pobres,
deixaria Ela de notar que se escondia o Sol e consolando a todos, repartiu com eles as
esmolas que recebeu. Ocultamente deu
que a guiava em todos os caminhos. saúde a alguns enfermos no corpo, e a mui-
Aconteceu que ao se separarem os tos na alma, pondo-os no caminho da vida
homens das mulheres, como ficou dito, o eterna.
poderoso Senhor infundiu em sua divina A alguns dos benfeitores que lhe
Mãe uma visão intelectual da divindade. deram esmola, concedeu graças em maior
A força deste altíssimo objeto atraiu-a abundância, cumprindo a promessa que
toda ao interior. Ficou tão abstraída, depois faria à sua Igreja: quem recebe o
abrasada e alheia aos sentidos, que, por justo ou o profeta, receberá recompensa de
grande espaço, só pode usar deles para justo ou de profeta (cf.Mt 10,41).
prosseguir o caminho. No mais, ficou toda
inebriada na suavidade e divina conso-
lação da vista do Senhor (Cant 5,1). Jesus vai ao templo
São José teve o motivo que já disse
* a i n d a que também foi arrebatado inte- 760. Tendo-se ocupado nesta e
riormente em altíssima contemplação, o que noutras obras da vontade do eterno Pai,
lhe tomoumais crível o misterioso equívoco foi ao Templo. No dia, do qual fala o evan-
de que o Menino ia com a sua Mãe. Deste
1 - acima, n° 747.
Quinto Livro - Capitulo 5
gelista São Lucas (2,46), reuniram-se os Esta opinião tinha grande influência
rabinos que eram os doutores e mestres da sobre aquele povo cego e carnal. Entendiam
lei, num lugar onde discutiam algumas ser só para eles a Redenção que o Messias
dúvidas e passagens das Escrituras. viria operar para seu povo, com o poder
Naquela ocasião, disputavam so- divino de sua majestade e grandeza. Esta
bre a vinda do Messias. Pelas novidades redenção seria temporal e terrena, como
e prodígios que se tinham visto naqueles ainda hoje esperam os judeus obcecados
anos, desde o nascimento do Batista e a pelo véu que obscurece seus corações (Is
vinda dos Reis orientais, crescera o rumor 6,10).
entre os judeus, de que chegara o tempo Ainda não se convenceram que a
do Messias e que já se encontrava no glória, majestade e poder de nosso Reden-
mundo, embora ainda não fosse conhe- tor e a liberdade que veio trazer ao mundo,
cido. não é terrena e perecível mas sim celeste,
Estavam todos assentados em seus espiritual e eterna. E, não só para os judeus
lugares, com a autoridade que costumam - ainda que foi oferecida a eles em
assumir os mestres e os que se têm por primeiro lugar - mas para toda a raça hu-
doutos. Aproximou-se o infante Jesus da mana de Adão, sem exceção (2 Cor 3,15).
reunião daqueles magnatas. Rei dos Reis
e Senhor dos senhores (Tim 6,15; Àpoc
19,16), Sabedoria infinita (1 Cor 1, 24),
aquele que emenda os sábios (Sab 7,15),
apresentou-se ante os mestres da terra como
discípulo humilde. Declarou que se aproxi-
mava para ouvir o que discutiam e se inteirar
da matéria que tratavam: se o Messias
prometido já viera, e se chegara o tempo de
sua vinda ao mundo.
26
Quinto Livro - Capítulo 5
que era Ele mesmo, não quis consentir Assim, como entenderemos o que diz o
nessa ocasião - quando importava tanto mesmo Isaías? Virá da terra dos viventes,
manifestá-la - que, pela autoridade dos e quem contará sua geração? (Is 53, 8).
sábios, ficasse estabelecido o erro con- Foi saciado de oprobios (Is 53,11); será
trário. Sua caridade imensa não tolerou conduzido á morte como a ovelha ao
ver aquela ignorância de suas obras e altís- matadouro, sem abrir a boca
simos fins, nos mestres que deviam ser Jeremias afirma que os inimigos
idôneos ministros da verdadeira doutrina do Messias se unirão para persegui-lo,
para instruir o povo no caminho da vida e para por veneno em seu pão e apagar seu
de seu autor, nosso Redentor. nome da terra (Jer 11,19), ainda que não
O Menino Deus aproximou-se prevalecerão. David diz que será o
mais do grupo em discussão, para mani- opróbrio dos homens qual verme pisado e
festar a graça que se derramava de seus desprezado (SI 21,7 e 8). Zacarias anuncia
lábios (SI 44, 3). Com rara majestade e que virá manso e singelo, montado num
formosura, pôs-se no meio deles, como humilde animal (Zac 9, 9). E, todos os
quem deseja expôr alguma dúvida. Seu Profetas apresentam os mesmos sinais do
aprazível semblante despertou naqueles Messias prometido.
sábios o desejo de ouvi-lo atentamente.
As duas vindas do Messias
As profecias sobre o Messias
764. Pois, como será possível -
763- Disse o Menino Deus: ouvi e acrescentou o Menino Deus - aceitar estas
entendi perfeitamente vossa conferência profecias, se supomos que o Messias virá
sobre a vinda do Messias e a conclusão a com majestade e poder, armado para vencer
que chegastes. Concordo que os Profetas todos os reis e monarcas, pela violência e
dizem que sua vinda será com grande derramamento de sangue alheio?
poder e majestade, como aqui se referiu Não podemos negar que virá duas
citando seus testemunhos. Isaías diz que vezes: a primeira para remir o mundo e a
será nosso Legislador e Rei que salvará segunda para julgá-lo. Sendo assim, as pro-
seu povo (Is 33, 22). Em outro lugar fecias devem ser aplicadas a estas duas vin-
afirma que virá com grande cólera (Is 30, das, dando a cada uma o que lhe compete.
27). David também assegurou que Como o fim destas duas vindas serão dife-
abrasará todos seus inimigos (SI 96, 3). rentes, também o serão suas circunstâncias,
Daniel afirma que todas as tribos e nações pois o papel desempenhado numa, será
o servirão (Dan 7,14). O Eclesiástico de- muito diferente do da outra. Na primeira
clara que com Ele virá grande multidão de vencerá o demônio, derrubando-o do poder
Santos (Ecli 24,3). Os Profetas e as Escri- que adquiriu sobre as almas com o primeiro
turas estão cheios de semelhantes promes- pecado.
sas, para manifestar sua vinda com sinais Para isto, em primeiro lugar, há de
muito claros e visíveis, se forem olhados oferecer a Deus reparação por todo o
com atenção e luz. gênero humano. Em seguida, ensinará aos
A dúvida, porém, se levanta, homens, pela palavra e pelo exemplo, o
quando estas e outras passagens dos Pro- caminho da vida eterna: como vencer os
fetas, parecem se contradizer. Uma vez inimigos, como servir e adorar seu
que todos são igualmente verdadeiros, é Criador e Redentor, como corresponder e
forçoso que se lhe dê o verdadeiro sentido bem usar dos benefícios e dons recebidos
que permita concordarem mutuamente. de sua mão.
2 - ídem v8.
27
Quinto Livro - Capítulo 5
A estes fins, o Messias ajustará sua Dentro de pouco tempo vieram do Oriente
vida e doutrina na primeira vinda. A alguns reis, guiados por uma estrela, a pro-
segunda, será para pedir contas a todos no cura do Rei dos judeus para adorá-lo (Mt
juízo universal, e dar a cada um a recom- 2 a v. 1). Tudo isso estava profetizado
pensa de suas obras, boas ou más, casti- (Miq 5 a v. 2; SI 71,10; Is 60,6).
gando a seus inimigos com furor e indig- O rei Herodes, pai de Arquelau,
nação. Isto é o que dizem os Profetas de acreditou sem duvidar, e mandou tirar a vida
sua segunda vinda. a tantos meninos (Mt 2,16) para, entreeles,
tirar a daquele rei recém-nascido, temendo
que o sucedesse no reino de Israel.
Correta interpretação das profecias
765. De acordo com isto, se quiser- Maria e José encontram Jesus
mos entender que a primeira vinda será
com poder e majestade, e como disse 766. Outros argumentos apresen-
David, que reinará de mar a mar (SI 71, tou o Menino Jesus, e sob forma de per-
8): que seu reino será glorioso, como guntas ensinava com poder divino. Os
dizem outros Profetas (Is 52,6; Jer 30, escribas e letrados ouviam-no mudos (Lc
9; Ez 37,22; Zac 9,10): tudo isto não se 4,32), e olhando uns para os outros, com
pode interpretar materialmente, de um rei- grande admiração perguntaram: que ma-
no e aparato majestoso, sensível e corpo- ravilha é esta? Que rapazinho prodi-
ral. gioso! Donde e de quem é este Menino?
Deve-se entender do novo reino Não foram além desta admiração,
espiritual que fundará numa nova Igreja e e não conheceram, nem suspeitaram que
se estenderá por sobre todo o orbe, com era aquele que os instruía e iluminava so-
majestade, poder e riquezas da graça e das bre tão importante verdade.
virtudes contra o demônio. Esta interpre- Neste momento, antes que o Me-
tação permite que as Escrituras concor- nino Deus terminasse sua explanação,
dem entre si, e não é possível dar-lhes ou- chegaram sua Mãe e o castíssimo esposo
tro sentido. São José, com tempo para ouvir as últimas
O fato do povo de Deus estar sob frases. Terminada a preleção, levantaram-
o império romano sem poder libertar-se, se todos os mestres da lei (Lc 2, 47)
não constitui sinal para negar a chegada tomados de espanto e admiração. Arre-
do Messias, mas, pelo contrário é prova batada pela alegria, a divina Senhora
infalível que já veio ao mundo. Nosso pa- aproximou-se de seu Filho amantíssimo,
triarca Jacó deixou este sinal para seus e em presença de todos os circunstantes
descendentes o saberem, ao ver a tribo de disse o que refere São Lucas (2,48): Filho,
Judá sem o cerro e o governo de Israel (Gn por que procedeste assim? Vede como
49,10). E agora confessais que nem esta vosso pai e Eu vos procurávamos cheios
tribo nem qualquer outra, tem esperança de aflição.
de o recuperar. Tudo isto é provado tam- Esta amorosa queixa foi feita pela
bém pelas semanas de Daniel (Dan 9,25) divina Mãe com tanta reverência quanto
que já se completaram. afeição, adorando-o como Deus, e repre-
Quem tiver memória há de se lem- sentando-lhe sua aflição como a filho.
brar do que ouviu contar. Há poucos anos Respondeu Ele: Por que me pro-
foi visto em Belém, à meia-noite, um grande curáveis? Não sabíeis que devo cuidar das
resplendor (Lc 2 a v. 9); e a alguns pobres coisas que se referem a meu Pai? (Lc 2,
pastores foi dito que o Redentor nascera. 49).
28
Quinto Livro - Capítulo 5
Queixa de Mana
767, Diz o Evangelista que eles
não entenderam o mistério destas palavras
(Lc 2, 50), porque então lhes foi oculto.
Isto procedeu de duas causas: o gozo in-
terior que colheram do que haviam se-
meado com tantas lágrimas, e a presença
do seu rico tesouro encontrado os ab-
sorveu, tirando-lhes qualquer outra
atenção. Também não tinham chegado a
tempo de se inteirar do assunto tratado
naquela disputa. Além de tudo isto, para
nossa advertidíssima Rainha havia a razão
de lhe estar encoberto o interior de seu
Filho santíssimo, onde poderia tudo co-
nhecer e que só depois lhe foi novamente
descoberto.
Despediram-se os doutores, co-*
mentando o assombro de terem ouvido a
Sabedoria eterna, embora ainda não a co-
nhecessem. Ficando quase sozinhos, disse prostrou em terra, adorou seu Filho san-
a Mãe santíssima a seu divino Filho, esten- tíssimo, e lhe pediu a bênção. Não o havia
dendo-lhe os braços com matemal afeto: feito, exteriormente, antes, por estarem no
Dai licença, meu Filho, a meu desfalecido templo entre estranhos. Assim advertida
coração para manifestar sua pena. Que e atenta era em não perder oportunidade
nela não perca a vida, se for de proveito de proceder com a plenitude de sua santi-
para vos servir; não me expulseis de vossa dade.
presença e aceitai-me como vossa escra- O infante Jesus levantou-a do solo
va. Se foi descuido meu perder-vos de e lhe falou com aprazível semblante e
vista, perdoai-me, tomai-me digna de vós carinhosas palavras. Ao mesmo tempo
e não me castigueis com vossa ausência. afastou o véu e lhe manifestou novamente
O Menino Deus recebeu-a com sua alma santíssima com todas suas ope-
agrado e se ofereceu para ser seu mestre e rações, com maior clareza e profundidade
companheiro até o tempo conveniente. que antes. No interior de seu Filho Deus
Com isto, sossegou o inocente e abrasado conheceu a divina Mãe todos os mistérios
coração da grande Senhora e partiram para e atos que Ele realizara naqueles três dias
Nazaré. de ausência. Entendeu tudo quanto se pas-
sara na discussão com os doutores: o que
o Menino Jesus lhes disse, as razões que
Maria goza de novo a visão da alma teve para não se revelar mais claramente
de Jesus como o Messias verdadeiro. Outros mui-
tos segredos ocultos manifestou á sua Vir-
gem Mãe, sendo Ela o arquivo onde se
768, Afastando-se um pouco de depositavam
Jerusalém, quando se encontraram a sós humanado paratodos os tesouros do Verbo
que em todos e por todos,
no caminho, a prudentíssima Senhora se
29
Ela lhe desse o tributo de glória e louvor Noutras viagens que deixo escri-
divino, como ao Autor de tantas maravi- tas, já falei sobre alguns destes prodígios
lhas. Assim o fez a Virgem Mãe, com sa- ®% e assim não me alongo a referir outros
tisfação do mesmo Senhor. Seriam necessários muitos capítulos e
Depois, pediu ao divino Filho que tempo para descrevê-los, quando outros
descansasse um pouco no campo e tomas- fatos mais importantes desta História
sem algum sustento. Ele aceitou, rece- pedem a atenção.
bendo-o da mão da grande Senhora que
de tudo cuidava como Mãe da Sabedoria
(Ecli 24,24). Jesus submisso à Maria e José
770. Chegaram a Nazaré, e mais
Durante a viagem fazem muitos adiante falarei sobre sua vivência ali. O
milagres Evangelista São Lucas resumiu os mis-
térios desta época em poucas palavras,
769. No decurso do caminho, a dizendo que o Menino Jesus era sujeito a
divina Mãe ia falando com seu querido seu Pai, a Maria santíssima e a São José, e
Filho sobre os mistérios que lhe mani- que sua divina Mãe meditava em todas
festara no seu interior, a respeito da dis-estas coisas guardando-as no coração: que
cussão com os doutores. O celestial mes- Jesus crescia em sabedoria, idade e graça
tre a instruiu vocalmente do que lhe diante de Deus e dos Homens (Lc 2,51-52).
mostrara intelectualmente. Adiante direi o que entendi sobre
Declarou-lhe, em particular, que isto. Agora, refiro apenas que a humildade
aqueles letrados e escribas não chegaram e obediência de nosso Deus e Mestre a
a conhecê-lo por Messias, por causa da seus Pais foi nova admiração para os an-
presunção e arrogância que tinham da jos. Igualmente, a dignidade e excelência
própria ciência. Seus entendimentos en- de sua Mãe santíssima a quem se entregou
contravam-se obscurecidos pelas trevas e submeteu o próprio Deus feito homem,
da soberba, e não puderam perceber a luz, para que sob o amparo de São José, O go-
ainda que foi tão intensa a que o Menino vernasse e d 'Ele dispusesse como sua pro-
Deus lhes propôs. priedade.
Suas razões os teriam convencido Ainda que esta sujeição e obediên-
suficientemente, se tivessem a vontade cia era conseqüente àmaternidade natural,
bem disposta pela humildade e desejo da foi necessária especial graça para a Se-
verdade, mas o obstáculo que opuseram nhora usar do direito de Mãe no governar
impediu-lhes de a encontrar, apesar de seu Filho, diferente da graça que tivera
estar tão clara ante seus olhos. para O conceber e dar à luz. Estas graças
Durante esta viagem, nosso Reden- convenientes teve Maria santíssima ple-
tor converteu muitas almas ao caminho da namente para todos estes ofícios. De sua
salvação, servindo-se de sua Mãe santís- plenitude transbordava-se em São José,
smiacomoinstrumentodessas maravilhas. para que também fosse digno pai adotivo
Com palavras prudentíssimas e santas ad- de Jesus e chefe da sagrada família.
moestações, esclarecia o coração de todos
com quem a divina Senhora falava. Deram
saúde a muitos enfermos; consolaram os Vivência espiritual entre Jtfãe e Filho
tristes e aflitos, e por toda parte iam der-
ramando graça e misericórdia, sem perder 771. A obediência e submissão do
oportunidade para isso. Filho santíssimo por sua Mãe, era por esta
3-n°624, 645, 669, 704
Quinto Livro - Capítulo 5
correspondida com virtudes heróicas. En- puríssimo de sua Mãe, era forçoso que o
tre outras excelências, teve uma quase in- fogo do divino amor, que ardia no peito
compreensível humildade e devotíssima de nosso Redentor e que viera acender na
gratidão de que Jesus se houvesse di gnado terra (Lc 12,49), operasse com suma ativi-
voltar a permanecer com Ela. Julgava-se dade, efeitos sem limites que só o Senhor
indigna de favor tão especial, e aumentou que os produziu conheceu.
em seu fiel coração o amor e solicitude no Advirto apenas uma coisa da qual
serviço de seu Filho Deus. Era tão inces- recebi inteligência. As demostrações ex-
sante em lho agradecer, tão pontual, atenta teriores do amor por sua Mãe santíssima,
e cuidadosa em servi-lo, sempre de joe- o Verbo humanado media-as, não pela
lhos e apegada ao pó, que admirava aos natural afeição e inclinação filial, mas sim
supremos serafins. pelo estado de viadora no qual a grande
Além de tudo, era oficiosíssima em Rainha deveria conquistar merecimentos.
imitar as ações do Filho, pondo toda a Reconheceu o Senhor que se, com
atenção em copiá-las e cuidado em prati- tais demonstrações a acarinhasse tanto
cá-las. Esta plenitude de santidade feria o como lhe pedia a natural inclinação de
coração de Cristo nosso Senhor (Cant 4,9) Filho por tal Mãe, o contínuo gozo das
e a nosso modo de entender, prendia-o com doçuras de seu Amado a impediria de
cadeias de invencível amor (Os 11, 4), merecer quanto convinha. Por este mo-
Entre a divina Princesa e seu Deus tivo, o Senhor deteve parte desta natural
e Filho verdadeiro, produzia-se uma cir- propensão de sua humanidade. Deu opor-
culação de amor e obras que excedem a tunidade para que sua Mãe, ainda que tão
qualquer entendimento criado. No oceano santa, pudesse padecer e merecer, sem
de Maria entravam todas as caudalosas gozar o contínuo e doce prazer dos cari-
correntes das graças do Verbo humanado, nhos sensíveis de seu Filho santíssimo.
sem que esse mar transbordasse (Ecli 1, Por esta razão, no convívio or-
7), porque tinha capacidade para contê- dinário, o Menino Deus guardava mais
las. A feliz Mãe da Sabedoria fazia-as gravidade. Não obstante a diligentíssima
voltar a seu princípio, atribuindo-as a Senhora ser tão cuidadosa em servi-lo e pre-
Ele, que as devolvia novamente para venir, com incomparável reverência, tudo o
Ela. Assim, estes fluxos e refluxos da que necessitava, o Filho santíssimo não lhe
divindade pareciam existir apenas para fazia tantas demonstrações de agrado, quan-
Filho e Mãe. to merecia a solicitude de sua Mãe.
Este é o mistério encerrado naque-
las humildes e reconhecidas palavras da DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU
Esposa nos Cânticos (2, 16 e 17): Meu MARIA SANTÍSSIMA.
amado é para mim e eu para ele que se
apascenta entre os lírios, enquanto se
aproxima o dia e se afastam as sombras. Esperança e solicitude
E noutra passagem: Eu sou de meu Amado
e ele é meu. Sou para meu dileto e ele se 773. Minha filha, todas as obras de
volta para mim (Cânt 7,10). meu Filho Santíssimo e as minhas estão
cheias de misteriosa doutrina e ensinamento
para os mortais que a considerem com atenta
Vivência exterior entre Filho e Mãe reverência. O Senhor ausentou-se de mim
para que, procurando-o com aflição e lágri-
772. Encontrando matéria tão mas (SI 125,5) o encontrasse com alegria
próxima e bem disposta como o coração e fruto para meu espírito.
Quinto Livro - Capítulo 5
Quero que tu me imites neste criaturas que se apoderam dos bens ter-
mistério, buscando-o com amargura que restres e se entregam aos falsos deleites
te desperte incessante solicitude. Du- como se fossem sua felicidade e último
rante toda a vida não descanses em coisa destino.
alguma, até possui-lo para não mais Esta suma perversidade vai de en-
perdê-lo (Cant 3, 4), Para entenderes o contro à ordem estabelecida pelo Criador
desígnio do Senhor, adverte que sua in- querem os mortais, na vida transitória e
finita sabedoria cria as criaturas com ca-breve, gozar das coisas visíveis como se
pacidade para a eterna felicidade. Colo- fossem seu destino, quando deveriam de-
ca-as no caminho para alcançá-la, mas las usar só para alcançar e não perder o
na ausência e incerteza (Ecle 9, 2) para sumo Bem. Adverte, pois, caríssima, este
que, enquanto não chega a possuí-la, vi- risco da estultícia humana, e tem por falso
vam sempre solícitas e dolorosas. todo deleitável ao seu gozo e prazer (Ecle
Esta solicitude gera na criatura 2,2). Diz à satisfação sensível que se en-
contínuo temor e aversão ao pecado, a gana, que é mãe da estultice, que embriaga
única coisa que a pode fazer perder aquelao coração, que impede e destrói a ver-
felicidade eterna. Nesta disposição, não dadeira sabedoria. Vive sempre com
se deixa enredar pelas coisas visíveis e temor santo de perder a vida eterna, e não
terrenas, no meio do bulício da con- te alegres fora do Senhor até possuí-la.
vivência humana. O Criador vem am- Teme os perigos das relações hu-
pará-la neste cuidado, acrescentando à manas. Se Deus, por meio da obediência,
razão natural as virtudes da fé e espe- e para sua glória, te colocar nesta situação,
rança, estímulos do amor que procura e ainda que deves confiar na sua proteção,
encontra o destino final da criatura. nem por isso sejas remissa em te cuidares.
Além destas virtudes, e outras queNão te entregues à amizade e trato de
infunde no batismo, envia inspirações e criatura, o maior dos perigos para ti. O
auxílios para despertar a alma a não Senhor te deu temperamento reconhecido
esquecê-lo e a não se descuidar, enquanto e afetivo, para que tivesses facilidade em
carece de sua amável presença. Assim corresponder-lhe, e empregasses no seu
prossegue sua carreira até chegar ao alme- amor esse beneficio.
jado fim, onde encontrará a plena Se, porém, deres entrada ao amor
saciedade de sua aspiração e desejo (SI das criaturas, sem dúvida, te levarão longe
16, 15). do sumo Bem. Deste modo, perverterás a
ordem e as obras de sua infinita sabedoria,
e é indigno empregar o maior dom da
Engano das coisas visíveis natureza em objeto que não seja o mais
nobre que nela existe. Eleva-te acima da
774. Daqui entenderás a toipe ig- criação e de ti mesma (Tren 3,38); valo-
norância dos mortais. Poucos são os que riza as operações de tuas potências. Apre-
se detêm a considerar a ordem misteriosa senta-lhe o objeto nobilíssimo do Ser
de sua criação e justificação, e o sublime divino, o meu dileto Filho, teu esposo, o
desígnio das obras do Altíssimo. mais belo entre os filhos dos homens (SI
Deste esquecimento seguem-se 44,3), e ama-o de toda tua mente, alma e
tantos males como os que sofrem as coração.
32
CAPÍTULO 6
JESUS CONTINUA FORMANDO EM MARIA A IMAGEM E
DOUTRINA DA LEI EVANGÉLICA. VISÃO QUE MARIA
RECEBEU.
Protesto da Escritora Filho santíssimo. Foi escolhida, entre to-
das as criaturas, para imagem perfeita da
nova lei do Evangelho e de seu Autor. Se-
775. Nos capítulos 1 e 2 deste livro,
ria, em a nova Igreja, o padrão e único
comecei a tratar do assunto que neste e nos
seguintes continuarei. Faço-o com justo modelo por onde se formariam os demais
receio de minha balbuciante e pobre lin- Santos, frutos da redenção humana.
guagem e ainda mais da tibieza de meu Nesta obra, o Verbo humanado
procedeu como excelente artista que
coração, para tratar dos ocultos mistérios
que se realizaram entre o Verbo humanado domina a pintura em todas suas técnicas e
e sua Mãe santíssima, durante os dezoito modalidades. Entre todas suas obras, pro-
anos que estiveram em Nazaré. Foi o cura aprimorar uma com toda habilidade,
tempo desde a volta de Jerusalém, onde para servir de prova de seu mérito e ca-
disputara com os doutores, até os trinta pacidade, e ser o modelo de todas as que
anos da idade do Senhor, quando começou houver de executar. Não há dúvida que
sua pregação. toda santidade e glória dos santos foi obra
A margem deste pélago de mis- do amor de Cristo e de seus merecimentos
térios, sinto-me confusa e tímida, supli-(Ef 1,3; Jo 1,16). Todos foram obras per-
cando ao excelso Senhor, com íntimo feitíssimas de suas mãos, mas comparadas
afeto da alma, envie um anjo tomar a com a grandeza de Maria santíssima, pare-
pena, a fim de que o assunto não seja cem pequenas e borrões da arte, pois todos
prejudicado. Ou então, que Deus, pode- os santos tiveram alguns destes borrões
roso e sábio, fale por mim e me ilumine; (Jo 1,8).
encaminhe minhas potências, gover- Só esta viva imagem de seu
nando-as por sua divina luz; sejam elas Unigênito não os teve. A primeira
instrumento só de sua vontade e ver- pincelada em sua formação, foi mais pri-
dade, e nelas não tenham parte a fragili-morosa que os últimos retoques dos su-
dade humana e a limitação de uma igno- premos anjos e santos. Ela é o padrão de
rante mulher. toda a santidade e virtudes dos demais, e
o máximo onde pôde chegar o amor de
Cristo em pura criatura. A nenhum foi
Maria obra-prima de Cristo dada a graça e glória que Maria santíssima
não pôde receber, e Ela recebeu toda a que
776. Já disse acima ^ nos citados às outras não foi possível dar. Seu bendito
capítulos, como nossa grande Senhora foi Filho deu-lhe toda a que Ela pôde receber
a singular e primeira discípula de seu e que Ele pôde lhe comunicar.
Nn°714.
33
Quinto Li\ - Capítulo 6
34
Quinto Livro - Capítulo 6
Maria, a mais
perfeita imagem de
Cristo
780. Esposa e
pomba minha, prepara
teu coração para que,
conforme nosso bene-
plácito, te façamos par-
ticipante da plenitude
de nossa ciência, e para
que seja escrito em tua
alma o Novo Testa-
mento e lei santa de
meu Unigênito.
Afervora teus
desejos e aplica tua
mente no conheci-
mento e execução de
nossa doutrina e pre-
ceitos. Recebe os dons
de nosso liberal poder
e amor por ti.
Para nos ofere-
cer digna retribuição
adverte que, por dis-
posição de nossa infi-
J e s u s instrue sua Mãe Ssma. nita sabedoria, deter-
minamos que meu Uni-
gênito, na humanidade
pnmeira a palmilhar as sendas que, que de Ti recebeu, tenha numa pura cria-
descendo do céu, seu Filho revelara tura a sua imagem e semelhança no mais
naquele livro, sendas pelas quais osmor- perfeito grau possível. Seja como o fruto
taisdevenamsubirdaterraaDeus.N^la, proporcionado de seus merecimentos e,
sua verdadeira Mãe, seria depositado neste fruto seu santo nome seja glorificado
aqueleTestamento. e exaltado com digna correspondência.
Viu como o Filho do eterno Pai e Atende, pois, filha e eleita minha,
seu, aceitava aquele decreto com grande que se pede grande disposição de tua
beneplácito e agrado. A humanidade san- parte. Prepara-te para as obras e mistérios
tíssima o acolheu, com indizível com- de nossa poderosa destra.
35
Quinto Livro - Capítulo 6
36
Quinto Livro - Capítulo 6
DOUTRINA QUE ME DEU A Disposições para imitar Maria
DIVINA SENHORA.
784. Vem, pois, minha filha, vem
em meu seguimento. Para me imitares
Maria, síntese da perfeição conforme desejo, e seres iluminada no en-
tendimento, elevada no espírito, prepa-
783. Minha filha, muitas vezes no rada no coração, afervorada na vontade,
decurso de tua vida, e ainda mais agora, dispõe-te com a liberdade que teu Esposo
enquanto escreves a minha, tenho te pede. Abstrai-te das coisas terrenas e
chamado e convidado para me seguires visíveis, deixa todo gênero de criaturas,
pela maior imitação que te for possível, renuncia a ti mesma (Mt 16,24),fecha os
com o auxílio da divina graça. Encarrego- sentidos às falsas fabulações do mundo e
te novamente desta obrigação, depois que do demônio (SI 39,5). Nas suas tentações
a dignaçâo do Altíssimo te concedeu tão advirto-te a não te embaraçares nem te
clara luz e inteligência sobre o que seu afligires muito, porque se ele consegue
poder operou em meu coração, nele fazer-te parar no caminho, já terá obtido
gravando toda a lei da graça e doutrina de grande vitória, e não chegarás a ser forte
seu Evangelho. na perfeição. Atende, pois, ao Senhor,
Conheceste também o efeito que cobiçoso da beleza de tua alma (SI 44,
este benefício produziu em mim e o modo 12). Ele é liberal para concedê-la, pode-
como agradeci e correspondi, na perfeitís- roso para te confiar os tesouros de sua
sima imitação de meu Santíssimo Filho e sabedoria, e solícito para levar-te a re-
Mestre. Deves considerar esta ciência cebê-los.
como um dos maiores favores que o Se- Deixa-o gravar em teu peito sua
nhor te concedeu. Nela encontrarás, como divina lei evangélica. Nela estuda con-
num claríssimo espelho, a síntese da maior tinuamente, medita-a dia e noite (SI 1,
santidade e elevada perfeição. Serão mani- 2), seja alimento para tua memória, vida
festas á tua mente as sendas da divina luz de tua alma, néctar de teu gosto espiri-
(Prov 4, 18) para caminhares com segu- tual. Assim conseguirás o que o Altís-
rança, livre das trevas da ignorância (Jo' simo e eu queremos de ti, e que tu tam-
12,35) que envolve os mortais. bém desejas.
37
Quinto Livro - Capítulo 6
CAPITULO 7
EXPLICAÇÃO MAIS EXPRESSA SOBRE O MODO E A
FINALIDADE DO SENHOR AO INSTRUIR MARIA
SANTÍSSIMA.
A ordem das obras de Deus comunicação e privilégio, parecia outro
Cristo (Gal 4,4).
785. Qualquer causa que age com Entre Filho e Mãe realizou-se
liberdade e conhecimento de seus atos, divino e singular comércio: Ela lhe deu a
deve ter para eles algum fim, razão ou mo- forma e o ser da natureza, e o Senhor deu
tivo. Ao conhecimento da finalidade se- a Ela outro ser espiritual de graça, com
gue-se a consulta e escolha dos meios para semelhança ao de sua humanidade. Os
alcançá-la. Esta ordem não pode faltar nas fins que o Altíssimo teve em vista foram
obras de Deus (SI 103, 24), suprema e dignos de tão rara maravilha, a maior de
primeira causa de infinita sabedoria, com suas obras em pura criatura.
a qual dispõe e executa todas as coisas, de Já falei > ' um pouco sobre a con-
uma extremidade a outra, com fortaleza e veniência da grandeza de Maria para a
suavidade, como diz o Sábio (SI 8,1). Não honra de Cristo nosso Redentor e para o
criou nenhuma para a morte, mas para que crédito da eficácia de sua doutrina e mere-
todos tenham vida (Sab 1,13 e 14). cimentos. Era como necessário que em
Quanto mais admiráveis as obras sua Mãe santíssima se visse a santidade e
do Altíssimo, tanto mais singulares e ele- pureza da doutrina de Cristo nosso Se-
vados são os fins que nelas pretende a¬ nhor, seu autor e mestre; a eficácia de sua
tingir (Prov 16,4). Ultimo fim de todas é lei evangélica e do fruto da Redenção. E
a glória de Si mesmo e sua manifestação. tudo devia reverter na suma glória, devida
Isto, porém, é ordenado, por sua infinita ao Senhor. Tudo isto achou-se em sua
ciência, como por uma cadeia de inúmeros Mãe, com maior intensidade e perfeição
anéis que, sucedendo-se uns aos outros, do que em todo o resto da santa Igreja e
chegam da ínfima criatura até à suprema seus predestinados.
e mais imediata a Deus, autor e fim uni-
versal de todas (Apoc 22,13).
Cristo novo Adão, Maria nova Eva
Maria, imagem de Cristo 787. O segundo fim que o Senhor
visou nesta obra, refere-se também aos
786. Toda a excelência da santi- seus mistérios de Redentor. Nossa repa-
dade de nossa grande Senhora se encerra ração deveria corresponder à criação do
em tê-la Deus feito retrato ou imagem viva mundo, e o remédio do pecado à origem
de seu Filho santíssimo. Era-lhe tão se- deste.
melhante na graça e operações que, por O primeiro Adão (1 Cor 15, 47)
1 - Nos capítulos primeiro, segundo e sexto rf 713, 730, 782.
39
Quinto Livro - Capítulo 7
teve por companheira na culpa a nossa de todos, e o fim imediato ao qual todos
mãe Eva que o induziu e ajudou a cometê- os outros fatos deveriam se referir.
la. Nele se perdeu todo o gênero humano Para seguir esta ordem e pro-
do qual era a cabeça. porção, era conveniente que a divina Sa-
Convinha, portanto, que na bedoria, entre todas as criaturas, encon-
reparação de tão grande ruína, o segundo trasse alguma adequada a preencher seu
e celestial Adão, Cristo nosso Senhor, propósito de vir a ser nosso mestre e nos
tivesse por companheira e coadjutora na conferir a dignidade de filhos de sua dou-
Redenção a sua Mãe puríssima. Ela iria trina e graça (Gai 4,5).
concorrer e cooperar no remédio, ainda Se Deus não houvesse criado Ma-
que só em Cristo, nossa cabeça (Col 1,18; ria santíssima, predestinada entre todas as
1 Tim 2, 5) estivesse a virtude e a ade- criaturas com a máxima santidade e se-
quada causa da geral redenção. melhança da humanidade de seu Filho
Para que este mistério se realizasse santíssimo, faltaria a Deus, no mundo, a
com a dignidade e proporção que con- justificativa para, a nosso grosseiro modo
vinha, foi necessário que se cumprisse en-
tre Cristo nosso Senhor e Maria santís-
sima, o que disse o Altíssimo na criação
dos primeiros pais: Não é bom que o
homem fique só; façamos-lhe alguém se-
melhante que o ajude (Gn 2,18).
Assim o fez o Senhor com seu
poder, de tal modo que falando já pelo
segundo Adão, Cristo, pôde dizer: Eis o
osso de meus ossos, e a carne de minha
carne; chamar-se-á varonil porque foi for-
mada do varão (Gn 2, 23). Não me de-
tenho em dar maior explicação deste sa-
cramento, pois salta aos olhos da razão ilu-
minada com a luz divina da fé, a seme-
lhança entre Cristo e sua Mãe santíssima.
40
Quinto Livro - Capítulo 7
41
Quinto Livro - Capítulo 7
seguida por muitos demônios. Eles per- sobre a alma. Tendo-se ela sujeitado
manecem atentos e vigilantes, e no mo- quando tinha menos c menores culpas, de-
mento em que as almas deviam elevar sua duzem eles que o fará mais facilmente
mente ao conhecimento de Deus e começai* quando, sem temor, vai cometendo outras
a produzir os atos das virtudes infusas no mais numerosas e mais graves. Incitam-na
batismo, os demônios, com incrível furor e à louca ousadia de as cometer, porque cada
astúcia, procuram arrancar-lhes esta divina pecado diminui as forças espirituais da
semente. Se não o conseguem, procuram criatura e a vai sujeitando ao demônio.
impedir que dê fruto, inclinando-as a atos Este a subjuga na maldade e miséria de tal
viciosos, inúteis ou pueris. Com tal iniqüi- modo, que acaba por oprimi-la sob os pés
dade, distraem as criaturas para não exerci- de sua iniqüidade, e a leva onde quer, de
tarem a fé, esperança e outras virtudes. Não precipícios a despenhadeiros, de abismo
se lembrando que são cristãos, não cogitam a abismo (SI 41,8). Merecido castigo de
de conhecer a Deus, os mistérios da re- quem se lhe sujeitou pelo primeiro pe-
denção e a vida eterna. cado. Por este sistema, Lúcifer tem der-
Além disto, o mesmo inimigo ins- rubado inúmeras almas, e todos os dias as
pira aos pais grosseira negligência, cego leva ao abismo, para ostentação de sua so-
amor carnal pelos filhos, e incita os mes- berba contra Deus (SI 73,23).
tres a outros descuidos. Uns e outros não
advertem na má educação que ministram
a seus filhos e educandos. Deixam que se Memória dos novíssimos
depravem com a aquisição de muitos hábi-
tos viciosos, perdendo as virtudes e boas 794.b. Pelo mesmo processo, o
inclinações. Deste modo, vão trilhando o demônio estabeleceu no mundo sua tira-
caminho da perdição. nia e o esquecimento dos novíssimos do
homem: morte, juízo, inferno, paraíso.
Tal juventude, tal velhice Precipitou tantos povos de abismo em
abismo, até fazê-los cair nos erros tão ce-
794. Todavia, o piedosíssimo Se- gos e bestiais, como os de tantas heresias
nhor não se esquece de acudir a este perigo. e falsas seitas dos infiéis.
Renova a luz interior com novos auxílios e Cuidado, pois, minha filha, com
santas inspirações, com a doutrina da Santa tão formidável perigo, e nunca saiam de
Igreja, através de seus pregadores e minis- tua memória a lei de Deus (SI 118, 92),
tros, com o uso e eficaz remédio dos Sacra- seus preceitos e mandamentos, as ver-
mentos. Com estes e outros meios, procura dades católicas e doutrinas evangélicas.
fazê-los voltar ao caminho da salvação. Não passe dia algum sem neles meditares
Se, com tantos remédios, poucos longamente, e aconselha o mesmo a tuas
voltam à saúde espiritual, a causamais grave religiosas e a todos que te ouvirem.
para não recuperá-la é a tirania dos vícios e Seu adversário, o demônio (1
depravados costumes adquiridos na infân- Ped 5, 8), trabalha e se esforça por
cia. E o que afirma a verdadeira sentença do obscurecer o entendimento e fazê-lo
Deuteronômio (33,25): "Conforme os dias esquecer a divina lei. Sem o con-
da juventude, assim será a velhice." curso do entendimento, a vontade,
potência cega, não produzirá os atos da
O progresso da iniqüidade justificação que é alcançada com o exer-
cício de fé viva, esperança firme, amor
794.a. Com isto os demônios vão fervoroso e coração contrito e humilha-
cobrando mais ânimo e tirânico domínio do (SI 50,19).
43
Quinto Livro - Capitulo 7
44
CAPITULO 8
EXPLICAÇÃO DO MODO COMO A GRANDE RAINHA
PRATICAVA A DOUTRINA DO EVANGELHO ENSINADA
POR SEU FILHO SANTÍSSIMO.
Atos de Jesus adolescente Preenchia-o com oração, em instruí-la e
em conversar com Ela sobre a solicitude
795, Crescendo em anos e obras, que, como bom pastor (Jo 10,14), devo-
nosso Salvador já ia transpondo a idade in- tava a seu querido rebanho. Falava tam-
fantil, e sempre realizando o que o eterno Pai bém dos méritos que desejava conquistar
lhe encomendara em benefício dos homens. para salvá-lo e dos meios que determinara
Não pregava publicamente, nem realizava, na aplicar para isso.
Galiléia, tão claros milagres como faria de- A prudentíssima Senhora tudo ou-
pois, e como fizera antes no Egito. Todavia, via e cooperava com sua divina sabedoria
oculta e dissimuladamente, sempre operava e amor. Acompanhava-o nos ofícios de
grandes influências na alma e no corpo de pai, irmão, amigo, mestre, advogado, pro-
muitos. Visitava os pobres e enfermos; con- tetor e redentor do gênero humano. En-
solava os tristes e aflitos; a estes e a outros trelinham estas conferências por meio da
muitos, conduzia à salvação eterna de suas palavra ou pelos atos interiores, mediante
almas. Esclarecia-os com conselhos, movia- os quais Filho e Mãe também se falavam
os com interiores inspirações e favores para e entendiam.
que se convertessem a seu Criador, afas- Dizia-lhe o Filho santíssimo: Mi-
tando-se do demônio e da morte. nha Mãe, quero fundar a Igreja sobre o
Estes benefícios eram contínuos e fruto de minha vida e obras. Este fruto será
para fazê-los saía muitas vezes de casa. uma doutrina e ciência que, pela fé e a
Ainda que os favorecidos sentissem que prática, se tornará vida e salvação para os
eram renovados pela presença e palavras de homens. Será uma lei santa, fecunda, e
Jesus, ignorando o mistério, calavam-se, poderosa para extinguir o. mortal veneno
não sabendo a que atribuir o fato, a não ser que Lúcifer derramou no coração humano
ao próprio Deus. A grande Senhora do pelo primeiro pecado.
mundo conhecia estes prodígios no espelho - Quero que, por meio de meus pre-
da alma santíssima de seu Filho, eporoutros ceitos e conselhos, os homens se espiritu-
meios. Quando estavam juntos, prostrada a alizem e se elevem à minha participação
seus pés, adorava-o e lhe agradecia por tudo. e semelhança; sejam depositários de meus
tesouros enquanto viverem nà terra, é de-
pois cheguem à participação de minha
Conferências entre Jesus e Maria eterna glória. Quero entregar ao mundo a
lei que dei a Moisés, renovada e aper-
796. O resto do tempo, o Menino feiçoada com nova luz e eficácia, consti-
santíssimo permanecia com sua Mãe. tuída por preceitos e conselhos.
45
Quinto Livro - Capítulo 8
46
Quinto Livro - Capítulo 8
em vista dos altíssimos fins que Ele pre- nenhuma criatura é capaz de compreender
tendia. até onde chegava a ciência e inteligência'-
Se fôssemos aqui narrar quão da Mãe da sabedoria, sobre a doutrina de
adequada e plenamente assim o cum- Cristo. E o que se chega a compreender
priu nossa grande Rainha e Senhora, ultrapassa, os termos e palavras que
seria necessário contar neste capítulo usamos.
toda sua vida, pois ela foi a suma do Dêmos o exemplo da doutrina da-
Evangelho, copiada de seu próprio quele primeiro sermão que o Mestre da
Filho e Mestre. vida fez a seus discípulos, na montanha
Lembremo-nos de quanto esta (Mt 6, 1). Nele encerrou a suma da per-
doutrina produziu nos Apóstolos, Már- feição evangélica na qual fundava sua
tires, Confessores, Virgens e demais San- Igreja, declarando bem-aventurados os
tos e justos que existiram e existirão até o que a seguirem.
fim do mundo. A não ser Deus, ninguém
o poderia descrever e muito menos com-
preender. Bem-aventurados os pobres
Consideremos, agora, que todos os
santos e justos foram concebidos em pe- 800. Bem-aventurados - disse o
cado, apresentaram algum óbice à santi- Mestre e Senhor (Mt 4,3) - os pobres de
dade. Não obstante terem crescido na vir-espírito, porque deles é o reino dos céus.
tude, santidade e graça, sempre tiveram Este foi o primeiro e sólido fundamento
alguma falha. Em nossa divina Senhora, de toda a vida evangélica. Os apóstolos e
porém, nunca houve estas lacunas e min- nosso Pai São Francisco a compreen-
guantes da santidade (Rm 5, 12; Uo 1, deram altamente, mas só Maria santíssima
8). Só Ela foi matéria plenamente ade- chegou a penetrar e avaliar a grandeza da
quada, sem resistência à atividade do pobreza de espírito. E, assim como a en-
poder divino e de seus dons. Sem impedi- tendeu, a praticou.
mento nem oposição, recebeu a impetuosa Não entrou em seu coração ima-
torrente da divindade (SI 45,5) comuni- gem de riquezas temporais, nem sentiu
cada por seu próprio Filho e Deus ver- tal inclinação. Amando as coisas como
dadeiro. obras de Deus, afastava-as quando
Daqui entenderemos, que só na serviam de embaraço ao amor divino.
Usou-as parcamente e só enquanto a
clara visão do Senhor na felicidade eterna,
chegaremos a conhecer, o quanto nos for auxiliavam a glorificar o Criador. Sendo
possível, a santidade e excelência desta Rainha de toda a criação, admirável e
maravilha de sua onipotência. perfeitíssima foi sua pobreza. Tudo isto
é verdade, mas ainda é muito pouco para
expressar o quanto compreendeu, apre-
Incompreensível a ciência de Maria ciou, e praticou nossa grande Senhora a
pobreza de espírito, primeira das bem-
799. E agora, ao querer explicar, aventuranças.
mesmo em geral sem descer a por-
menores, um pouco do que me foi mani-
festado, não encontro termos para o Bem-aventurados os mansos,
dizer. Nossa grande Rainha e Mestra bem-aventurados os que choram
guardava os preceitos e conselhos
evangélicos de acordo com a profunda 801. Segunda bem-aventurança: -
inteligência que deles recebera. Ora, Bem-aventurados os mansos, porque ele$
47
Quinto Livro - Capitulo h
possuirSo a terra, Nesta doutrina c sua Bem-aventurado* os que tem fome e
prática, com sua mansidão amcnissima, sede de justiça. Bem-aventurados os
excedeu Maria santíssima não só a todos misericordiosos.
os mortais, como se di/. de Moisés (Nm
12,3) em relação a seus contemporâneos, 802. Conheceu nossa divina Se-
mas aos mesmos anjos e serafins. Na nhora 0 mistério da fome c da sede de
carne mortal, esta inocentíssima pomba, justiça (Mt 5, 6). Sentiu-a mais inten-
teve seu interior e potências mais invul- samente do que 0 fastio que dela tiveram
neráveis à ira e perturbação, do que os e terão todos os inimigos dc Deus.
espíritos que não têm sensibilidade como Chegando ao cume da justiça c santidade,
nós. Foi, em grau inexplicável, senhora sempre esteve sedenta dc fazer mais por
de suas faculdades espirituais c corporais ela. A esta sede correspondia a plenitude
e também do coração de todos com quem da graça com que a saciava o Senhor,
tratava. De todos os modos, possuía a dirigindo-lhe a torrente dos tesouros c
terra que se sujeitava à seu amável suavidade da divindade.
domínio. A quinta bem-aventurança dos
Terceira bem-aventurança: (Mt 5, misericordiosos que alcançarão dc Deus
5) - Bem-aventurados os que choram, por- misericórdia (Mt 5,7), teve-a em grau tão
que serão consolados. Entendeu Maria nobre c excelente, que só Ela pode mere-
santíssima, mais do que qualquer língua cer o nome dc Mãe de misericórdia, assim
possa explicar, a excelência das lágrimas, como Deus é chamado Pai das mi-
seu valor, como também a estultice e sericórdias (Cor 1,3). Sendo Ela inocen-
perigo do riso e alegria mundana (Prov tíssima, sem culpa alguma para suplicar
14,13). Quando os filhos de Adão, con- misericórdia, teve-a em supremo grau por
cebidos no pecado original e depois man- todo o gênero humano e com ela o socor-
chados pelos pecados atuais, se entregam reu (Is 30,18). Conhecendo, com altís-
ao riso e deleite, esta divina Mãe, sem sima ciência, a excelência desta virtude,
culpa alguma, sentiu que a vida mortal era jamais a negou nem negará a quem lha
para chorar a ausência do santíssimo Bem, pedir. Nisto, imita perfeitissimamente a
e os pecados que contra Ele foram e são Deus, como também em se antecipar (Si
cometidos. 58,11) ao encontro dos pobres e necessi-
Sentidamente chorou por todos, tados para lhes oferecer amparo.
e suas lágrimas inocentíssimas mere-
ceram as consolações e favores que re-
cebeu do Senhor. Seu puríssimo co- Bem-aventurados os puros de
ração vivia contristado à vista das coração, os pacíficos, os perseguidos
ofensas feitas a seu amado Senhor e
Deus eterno. Seus olhos eram duas 803. A sexta bem-aventurança que
fontes (Jer9,1), e seu pão dia e noite se refere aos puros de coração para ver a
era chorar (SI 41, 4) as ingratidões dos Deus (Mt 5, 8), foi sem semelhante em
pecadores a seu Criador e Redentor. Maria santíssima. Escolhida como o sol
Nenhuma pura criatura, nem todas (Cant 6,9), imitava o verdadeiro Sol da
juntas, choraram mais do que a justiça e ao astro material que nos ilumina
Rainha dos Anjos, não obstante estar e cuja luz não se mancha nas coisas inferi-
naquelas a culpa, causa do pranto e das ores e sórdidas. Jamais entrou no coração
lágrimas, enquanto em Maria santíssima e potências de nossa puríssima Princesa
se encontrava a graça, fonte do gozo e espécie ou imagem de coisa impura. Era-
da alegria. lhe isto impossível, pois sempre a ocu-
Quinto Livro - Capítulo 8
49
Quinto Livro - Capítulo 8
narram sua vida, são respeitadas e digna- contigo. Atende, pois, com grande cui-
mente estimadas pelos homens. Ao con- dado, como lhe deves corresponder e não
trário, considera o Senhor grande injuria deixar ocioso o amor que concebeste pelas
que os Evangelhos e sua doutrina sejam divinas Escrituras, principalmente pelos
esquecidos pelos filhos da Igreja. Há mui- Evangelhos e sua altíssima doutrina. Esta
tos que não entendem, não advertem, não há de ser a lâmpada acesa em teu coração
agradecem este benefício, nem fazem dele (SI 118,105), e minha vida o retrato para
mais memória do que se fossem pagãos modelares a tua.
sem a luz da fé. Pondera quanto vale e te importa
empregar nisso toda diligência, pelo
prazer que darás a meu Filho e Senhor e
pelo empenho que novamente sentirei
A palavra de Deus de exercitar contigo o ofício de mãe e
806, Tua dívida neste ponto é mestra. Teme o perigo de não responder
grande. Recebeste conhecimento da aos divinos apelos, pois, por este
veneração e apreço que tive pela dou- esquecimento perdem-se inúmeras al-
trina evangélica, e de quanto trabalhei mas. Sendo tão freqüentes e admiráveis
para pô-la em prática. Se não pudeste os que recebes da liberal misericórdia
entender tudo quanto eu fazia e com- do Todo poderoso, se não correspon-
preendia, por ser impossível à tua ca- deres a eles, mostrarás ingratidão muito
pacidade, pelo menos, neste favor, censurável ao Senhor, a mim e aos seus
nunca mostrei tanta benignidade como santos.
50
CAPITULO 9
MARIA E OS ARTIGOS DE FÉ QUE
A SANTA IGREJA IRIA CRER.
A fé, fundamento da Igreja trina Evangélica e lei da graça. Era ne-
cessário que do oceano destas maravilhas
807, O fundamento imutável de e graças,fizesseparte o conhecimento de
nossa justificação e a raiz de toda santi-
todas as verdades católicas que no tempo
dade é a fé nas verdades que Deus reveloudo Evangelho seriam cridas pelos fiéis,
à sua santa Igreja. Fundou-a sobre esta fir-
em particular os Artigos que lhes servem
meza, como arquiteto prudentíssimo que de princípios e bases.
edifica sua casa sobre pedra inabalável, De tudo isto Maria santíssima era
contra a qual nada podem os ímpetos das capaz e pôde ser confiado à sua admirável
chuvas e enxurradas (Lc 6,48). sabedoria, até os artigos e verdades católi-
Esta é a estabilidade invencível da
cas referentes a Ela e que deveriam ser
Igreja evangélica que é única, católica eensinados na Igreja. Tudo conheceu,
romana. Una pela unidade da fé (ITim 3, como direi adiante, com as circunstâncias
15), esperança e caridade que nela se fun-
dos tempos e lugares, meios e modos pelos
dam. Una sem divisões (ICor 1,13) nem quais, nos séculos futuros, tudo iria se de-
contradições, como existem em todas as senvolvendo conforme a necessidade e
sinagogas de Satanás (Apoc 2, 9). Estas oportunidade.
são as falsas seitas, erros, heresias tão Para informar a Mãe beatíssima,
tenebrosas que não só se contradizem principalmente nestes artigos, concedeu-
umas às outras e todas à razão, mas aindalhe ò Senhor uma visão da divindade, de
contradizem-se consigo mesmas, afir- modo abstrativo como falei noutras vezes.
mando e crendo coisas contrárias entre siNesta visão foram-lhe manifestados
e que se anulam mutuamente. ocultíssimos mistérios sobre os impers-
Contra todas, permanece sempre in-
crutáveis desígnios do Altíssimo e de sua
victa nossa santa fé, sem que as portas do
providência. Conheceu a clemência de sua
inferno prevaleçam um ápice contra ela (Mt
infinita bondade em estabelecer a graça da
16, 18), por mais que hajam pretendido santa fé infusa. Com esta, as criaturas
atacá-la para peneirá-la como o trigo. Assim
ausentes da visão da divindade, poderiam
o disse o Mestre da vida, a seu vigário Pedro
conhecê-la breve e facilmente, sem dife-
(Lc 22,31) e a todos seus sucessores. rença, sem esperar e procurar esta notícia
pela ciência natural que é muito limitada
e por poucos alcançada.
O dom da fé A fé católica, ao invés, desde o
primeiro uso da razão, nos leva logo ao
808. Cabia à nossa divina Senhora conhecimento, não só da divindade em
receber adequada notícia de toda a dou- três Pessoas, como também da humani-
51
Quinto Livro - Capítulo 9
dade de Cristo Senhor nosso, e dos meios oposição fez grandiosos atos de fé e re-
para conseguir a vida eterna. Tudo isto não verênciaaoDeusúnicoeverdadeiro,eou-
é descoberto pelas ciências humanas, trosmuitosdas virtudes exigidasporeste
estéreis se não as fecunda a força e a vir- conhecimento.
tude da divina.
A Santíssima Trindade
Maria e os 7 artigos da fé referentes à
divindade 810. Creu no segundo artigo, Deus
é pai. Conheceu que assim era revelado
809. Naquela visão, conheceu pro- aos mortais para que eles passassem, do
fundamente nossa grande Rainha todos conhecimento da Divindade ao da sua
estes mistérios e quanto neles se contêm: Trindade de Pessoas. Este conhecimento
que a santa Igreja teria, desde seu prin- seria conexão para entenderem os outros
cípio, os catorze Artigos da fé católica; artigos que explicam ou supõem a trin-
que depois, em épocas diversas, determi- dade das Pessoas. Chegariam, assim, a
naria muitas proposições e verdades que conhecer perfeitamente seu último fim,
estes artigos e as divinas Escrituras encer- como o haveriam de gozar e os meios para
ravam como raiz, cuja cultura produzia consegui-lo.
aqueles frutos. Entendeu que a pessoa do Pai não
Depois de conhecer tudo isto em podia nascer, nem proceder de outra. Era
Deus, na visão que referi, viu-o também a origem de tudo, e por isto se lhe atribui
na visão, que sempre gozava, da alma san- a criação do céu, da terra e de todas suas
tíssima de Cristo, e conheceu como toda criaturas. Sendo sem princípio, o é de tudo
esta estrutura estava ideada na mente do quanto existe. Por este artigo, nossa divina
divino Artífice. Em seguida, conferiu tudo Senhora agradeceu, em nome de todo
com o Senhor, e este lhe revelou como se- gênero humano, e fez todos os atos que
ria realizada, sendo a divina Princesa a esta verdade pedia.
primeira a crer nos Artigos, distinta e per- O terceiro artigo, crer que é Filho,
feitamente. creu-o a Mãe da graça, com especialíssima
Assim Ela o fez. O primeiro dos luz e conhecimento das processões ad in-
sete que se refere à divindade, conhe- tra. Desta, a primeira, na ordem de origem,
ceu e acreditou que o verdadeiro Deus é a eterna geração do Filho. Por obra do
é um só, independente, necessário, in- entendimento é e sempre será gerado só
finito, imenso em seus atributos e per- do Pai, não lhe sendo posterior, mas igual
feições, imutável e eterno. E, quão na divindade, eternidade, infinidade e
devido, justo e necessário era, para as atributos.
criaturas, crer e confessar esta verdade. O quarto artigo, crer que é Espírito
Agradeceu pela revelação deste artigo Santo, creu-o e entendeu que a terceira
e pediu a seu Filho santíssimo con- pessoa, o Espírito Santo, procedia do Pai
tinuasse a conceder este favor aos e do Filho como de um único princípio,
homens, dando-lhes graça para que o por ato da vontade. Igual às outras duas
aceitassem, recebendo o conhecimento Pessoas, sem outra diferença senão a
da verdadeira divindade. distinção pessoal que resulta das pro-
Nesta luz da fé, infalível e obs- cessões do entendimento e da vontade in-
cura, conheceu a culpa da idolatria que finitos.
ignora esta verdade e a chorou com dor Deste mistério recebera Maria san-
e amargura incomparável. Em sua tíssima notícias e visões noutras ocasiões
52
Quinto Livro - Capítulo 9
que já deixo descritas w . Desta vez se lhe todos os sacramentos e mistérios que a
acrescentaram as circunstâncias de virem santa Igreja havia de receber e crer, e na
a ser artigos de fé na futura Igreja, e a in- inteligência de todos fazia heróicos atos
teligência das heresias que, contra estes de muitas virtudes.
artigos Lúcifer semearia, como as tinha No sétimo artigo, que é glorifi-
forjado em sua idéia desde que caíra do cador, entendeu a felicidade preparada
céu ao lhe ser revelada a Encamação do para as criaturas mortais na fruição da
Verbo. Contra todos estes erros, fez a visão beatífica. Compreendeu quanto lhes
beatíssima Senhora grandes atos no modo importa crer nesta verdade para se dispor
que já descrevi. a consegui-la, considerando-se peregri-
nos na terra e cidadãos do céu (Ef 2,19).
Esta fé e esperança seriam seu consolo no
Deus criador, salvador e glorificador desterro.
811. No quinto artigo, o Senhor é
criador, creu Maria santíssima, conhe- Os sete artigos referentes à
cendo como a criação de todas as coisas, humanidade de Cristo
ainda que se atribui ao Pair^ é comum às
três Pessoas, enquanto são um só Deus in- 812. Dos sete artigos que per-
finito e poderoso; que dele dependem a tencem a humanidade, teve nossa grande
existência e conservação das criaturas e Rainha igual conhecimento, com novos
que nenhuma tem poder para criar outra afetos de seu puríssimo e humilde co-
produzindo-a do nada. Nem mesmo um ração.
anjo poderia criar um bichinho, porque só O primeiro seria que seu Filho san-
Deus que é independente em seu ser, pode tíssimo fora concebido, enquanto homem,
agir sem dependência de outra causa, in- por obra do Espírito Santo; que este
ferior ou superior. Maria santíssima en- mistério se realizara em seu virginal tála-
tendeu como este artigo seria necessário mo. Ao entender que estas verdades se-
á santa Igreja, para se apor aos erros de riam artigo de fé na Igreja militante, foram
Lúcifer, e para Deus ser conhecido e res- inexplicáveis os sentimentos da pruden-
peitado como autor de todas as criaturas. tíssima Senhora. Humilhou-se até o ín-
O sexto artigo, que é salvador, en- fimo das criaturas da terra; aprofundou a
tendeu-o novamente, com todos os consciência de que fôra criada do nada:
mistérios que encerra sobre a predesti- cavou alicerces e colocou-lhes o cimento
nação, vocação e justificação final. Com- da humildade, para o elevado edifício de
preendeu também a reprovação dos pres- ciência infusa e excelente perfeição que a
citos que, por não se aproveitarem dos destra do Altíssimo ia nela edificando.
meios oportunos que a misericórdia Louvou o Todo-poderoso e deu-
divina lhes oferecia, perderiam a felici- lhe graças por Si e por toda a raça humana,
dade eterna. Conheceu também a fidelís- por ter escolhido meio tão admirável e efi-
sima Senhora, como o atributo de Salva- ciente para atrair os corações, e mantê-los
dor convinha às três divinas Pessoas, e em sua lembrança mediante a fé cristã.
especialmente à do Verbo, enquanto Fez o mesmo quanto ao segundo
homem. Ele se entregaria como preço de artigo: Cristo Senhor nosso nasceu de Ma-
resgate, e Deus o aceitaria, dando-se por ria, virgem antes e depois do parto. A
satisfeito com essa reparação do pecado divina Rainha estimava grandemente o
original e dos atuais. mistério de sua intacta virgindade e de tê-
Contemplava esta grande Rainha la escolhido o Senhor por Mãe entre todas
2-l'parte,nM23,229,312. • 3-n°810.
53
Quinto Livro - Capítulo 9
as criaturas, em condições que empres- de Adão. Foi a Mestra da divina fé; foi
tavam tanto decoro e dignidade a este quem, à vista dos cortesãos do céu, ar-
privilégio, tanto para a glória do Senhor vorou o estandarte dos crentes na terra.
como para a dela. Tudo isto seria reco- Foi a primeira Rainha católica do orbe, e
nhecido e crido pela Igreja com a certeza não haverá outra que a iguale.
da fé católica. Os católicos a terão por verdadeira
Ao conhecer estas disposições Mãe, se a Ela recorrerem, pois aquele
divinas, não é possível manifestar com título os faz filhos seus. Não há dúvida
palavras a elevação de seus atos, dando a que esta piedosa Mãe e Capitã da fé
cada um destes mistérios a plenitude de católica olha com especial amor aos que
exaltação, culto, fé, louvor e agrade- a seguem nesta grande virtude, traba-
cimento que pediam, enquanto Ela mais lhando por sua propagação e defesa.
profundamente se humilhava. Na medida
em que era exaltada, aniquilava-se
apegando-se ao pó. Maria, depositária do Novo
Testamento
Maria, Mestra da fé 814, Esta exposição tomar-se-ia
muito prolixa, se eu quisesse manifestar
813. Terceiro artigo: Cristo nosso tudo o que me foi declarado sobre a fé da
Senhor sofre paixão e morte. nossa grande Senhora, seus predicados e
Quarto: desceu à mansão dos mor- as circunstâncias com que penetrava cada
tos e de lá tirou os santos Pais que no limbo um dos catorze Artigos, com as verdades
esperavam sua vinda. que eles encerram.
Quinto: ressuscitou dos mortos. As conferências que, sobre este
Sexto: subiu aos céus e se assentou assunto, mantinha com seu divino mes-
à direita do Pai eterno. tre Jesus; as perguntas que lhe fazia com
Sétimo: de lá virá julgar vivos e inaudita humildade e prudência; as res-
mortos no juízo universal, para dar a cada postas do seu querido Filho; os profun-
um a recompensa das obras que houver dos segredos que amorosamente lhe re-
praticado. velava, e outros sacramentos compre-
Estes artigos, como todos os de- endidos só por Filho e Mãe: não tenho
mais, Maria santíssima conheceu e creu, palavras para explicar tão divinos mis-
quanto à substância, ordem, conveniên- térios.
cias, e a necessidade de sua fé para os mor- Além disso, foi-me dado a enten-
tais. Ela sozinha preencheu as falhas e der, não ser conveniente que todos sejam
supriu os defeitos de todos os que não manifestados nesta vida mortal. Todo este
creram nem crerão, e compensou a es- novo e divino testamento ficou depositado
cassez de nossa tibieza em crer nas divinas em Maria santíssima que o guardou fide-
verdades, em dar-lhes a importância, a lissimamente, para em tempo oportuno ir
veneração e o agradecimento que mere- distribuindo aquele tesouro, conforme o
cem. pedissem as necessidades da Santa Igreja.
Que toda a Igreja proclame nossa Feliz e bem-aventurada Mãe! Se
Rainha felicíssima e bem-aventurada por- o filho sábio é a alegria do pai (Prov 10,
que acreditou (Lc 1, 45) não só no em- 1), quem poderá explicar a que recebeu
baixador do céu, mas também nos Artigos esta grande Rainha? Sua alegria era par-
que resultaram do fruto de seu tálamo vir- ticipação da glória que o Pai eterno re-
ginal. Creu-os por Ela e por todos os filhos cebera de seu Filho unigênito, de quem
54
Quinto Livro - Capítulo 9
Ela era Mãe. E essa glória resultava dos dissipam como os raios do sol a incon-
mistérios que o filho veio realizar, e que sistentes nuvens. Além disso, consti-
Ela conheceu nas verdades da fé da santa tuem alimento e substância espiritual
Igreja. que torna as almas fortes para os com-
bates do Senhor.
DOUTRINA QUE ME DEU A
DIVINA SENHORA MARIA
SANTÍSSIMA. Fazer frutificar a fé
816. Se os fiéis não sentem estes e
Defender a fé outros maiores efeitos da fé, não é porque
lhe falte eficácia e virtude para isso. A
815. Filha, o estado da vida mortal falta encontra-se nos" crentes: uns esqueci-
não tem capacidade para conhecer o que dos e negligentes, outros cegamente en-
eu senti e minhas potências realizaram tregues à vida carnal e animal (1 Cor 2,
com a fé e conhecimento infuso dos seus 14). Assim malogram a graça da fé e lem-
artigos, segundo meu Filho santíssimo bram-se tão pouco de usá-la, quase como
dispunha para a santa Igreja. se não a houvessem recebido. Vêm a in-
E forçoso que te faltem palavras felicidade dos infiéis que não gozam da
para declarar o que entendeste, porque to- fé, mas são piores que estes, pela de-
das são insuficientes para abranger e ex- testável ingratidão e desprezo que fazem
primir o conceito deste mistério. Desejo e por dom tão alto e soberano.
te ordeno o que, com o auxílio divino, Quanto a ti, minha caríssima filha,
podes fazer: guardar com toda reverência quero que o agradeças, com profunda hu-
e cuidado, o tesouro (Mt 13, 44) que mildade e fervoroso afeto; que a exercites
achaste na doutrina e na ciência de tão com incessantes atos heróicos; que
veneráveis sacramentos. medites sempre os mistérios que a fé te
Aviso-te, maternalmente, da cru- ensina e, sem embaraços terrenos, gozes
eldade tão sagaz com que teus inimigos os divinos e deliciosos frutos que produz.
se desvelam para o roubar. Sê atenta e cui- Eles serão tanto mais eficazes, quanto
dadosa, para que te encontrem vestida de mais vivo e penetrante for o conhecimento
fortaleza (Prov 31,17), e teus domésticos que a fé te comunica. Colaborando de tua
- as faculdades e sentidos - com as vestes parte com o esforço que deves, crescerá a
duplas (idem, 31, 21) da vigilância inte- luz e a inteligência dos sublimes e ad-
rior e exterior, a fim de poderes resistir ao miráveis mistérios do ser de Deus uno e
ataque de suas tentações (1 Ped 5,9). Para trino: da união hipostática das duas
vencer, porém, os que te fazem guerra, naturezas, divina e humana: da vida,
serão armas ofensivas e poderosas os Ar- morte e ressurreição de meu Filho santís-
tigos da fé católica (Rom 1,17). Seu con- simo e de todos os mais que realizou.
tínuo exercício e firme crença, sua' medi- Deste modo, saborearás sua suavi-
tação e lembrança, afastam os erros, dade (SI 33, 9) e colherás fruto copioso e
descobrem os embustes de satanás e os digno do descanso e felicidade eterna.
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Quinto Livro - Capitulo 9
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CAPÍTULO 10
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Quinto Livro - Capitulo 10
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Quinto Livro - Capítulo 10
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Quinto Livro - Capítulo 10
solvessem guardá-la observando seus por Cristo nosso Senhor com um Sacra-
mandamentos, gozariam de felicidade mento (Mt 19, 4), tem produzido e pro-
deliciosa e do agradável testemunho da duzem imensos males, ocultos ou públi-
boa consciência. cos, entre os católicos.
Todos os gostos humanos não se Se pensamos que, muitos não
podem comparar à consolação de ser fiel aparecem aos olhos do mundo, aos olhos
no pouco e no muito da lei (Mt 25, 21), de Deus, justíssimo e reto juiz (SI 7,12),
Este benefício devêmo-lo principalmente não ficam sem castigo já nesta vida. Na
a Cristo, nosso Redentor, que ao reto pro- outra será ainda maisrigoroso,na medida
ceder vinculou a satisfação, a paz, o con- em que Deus os suportou (Rom 2,5), pois
solo e muitas felicidades na vida presente. se fosse castigar agora, segundo merecem,
Se nem todos gozamos esses efeitos, é por- destruiria o povo cristão.
que não guardamos seus mandamentos.
As tribulações, as calamidades e Os dois preceitos do amor a Deus e ao
desgraças do povo são efeitos inevitáveis próximo
das desordens das pessoas. Se damos o mo-
tivo, somos insensatos que, em chegando o 827. Nossa grande Rainha via to-
contratempo, logo vamos procurar a quem das estas verdades comtemplando-as no
atribui-lo, esquecendo que a sua causa se Senhor. Conhecia a vileza dos homens
encontra dentro de cada um de nós. que, tão levianamente, e por coisas insig-
nificantes perdem o decoro e respeito a
Transgressão da lei divina Deus que, tão benignamente, deu-lhes a
proteção de suas leis e preceitos.
826. Quem poderá medir os danos Apesar de tudo, a prudentíssima
que, na vida presente, procedem de furtar Senhora não se escandalizou da humana
o alheio, transgredindo o mandamento fragilidade, nem se espantou com nossas
que o proíbe? Porque não se contenta cada ingratidões. Como piedosa mãe se com-
qual com sua sorte, esperando o socorro padecia dos mortais. Amava-os com ar-
do Senhor que não despreza as aves do céu dentíssimo amor, por eles, agradecia os
(Mt 6, 26), nem se esquece dos mais benefícios do Altíssimo. Reparava as
pequenos bichinhos? transgressões que cometeriam contra a lei
Que misérias e aflições não estão evangélica e pedia para todos a perfeição
sofrendo os cristãos, por não se conten- de sua observância.
tarem os príncipes com os reinos que lhes Profundamente, compreendeu Ma-
deu o sumo Rei? A ambição de aumentar ria santíssima, que os dez preceitos se re-
o poder e seus domínios tiram ao mundo sumem nos dois de amar a Deus e ao
o sossego, a paz, as propriedades, as vidas, próximo como a si mesmo (Mt 22, 40;
e ao Criador, as almas. Rom 13,10). Entendeu que nestes dois
Os falsos testemunhos e mentiras amores bem compreendidos e prati-
que ofendam à suma Verdade e ás relações cados, se encerra toda a sabedoria, e
humanas, não causam menos prejuízos e quem chega a executá-los não está longe
discórdias. Destroem a paz e tranqüilidade do reino dos céus, como disse o Senhor
dos corações e os indispõem a serem habi- no Evangelho (Mc 12,34). E ainda, que
tação do Criador (1 Cor 3,17), única coisa a guarda destes preceitos se antepõe e
que deles desejava. vale mais que os sacrifícios e holocaus-
Cobiçar a mulher do próximo, tos (Mc 12,33).
adulterar contra a justiça, violar a lei santa Na medida de sua ciência, nossa
do matrimônio confirmado e santificado grande Mestra pôs em prática esta santa
Quinto Livro - Capítulo 10
lei, como se encontra nos Evangelhos, santa lei, assim como fez a mim. Afasta-te
sem faltar à observância de todos seus pre- e esquece todo o visível, de tal modo que
ceitos e conselhos até o menor deles. tuas potências fiquem livres e vazias de
Esta divina Princesa, sozinha, rea- outras imagens, fora daquelas que o dedo
lizou a melhor doutrina do Redentor do do Senhor lhes imprimir: sua doutrina e
mundo, seu Filho santíssimo, do que todo beneplácito, contidos nas verdades do
o resto dos santos e fiéis da santa Igreja. Evangelho.
Para que teus desejos não fiquem
DOUTRINA QUE ME DEU A frustrados ou estéreis, pede continua-
DIVINA SENHORA E RAINHA DO mente, de dia e de noite, ao Senhor que te
CÉU, tome digna desta graça prometida por meu
Filho santíssimo. Considera atentamente
Felizes os que amam tua lei, Senhor que teu descuido nisso seria mais repreen-
sível que em todos os demais viventes.
828. Minha filha, o Verbo baixou do Nenhum foi chamado e atraído a seu amor
seio do eterno Pai, e no meu assumiu a hu- com semelhante energia e graça, como a
manidade, para redimir a linhagem humana. que recebeste.
A fim de iluminar os que estavam nas trevas Durante o dia desta abundância e
e sombras da morte (Lc 1,79) e levá-los à durante a noite da tentação e tribulação,
felicidade que tinham perdido, era ne- não te esqueças desta dívida e do zelo do
cessário que o Salvador viesse, para ser sua Senhor, para que nem os favores te desva-
luz, caminho, verdade e vida (Jo 14,5). De- neçam, nem as penas e aflições te depri-
veria dar-lhes uma lei tão santa que os jus- mam. Conseguirás isso se, tanto em uma
tificasse; tão clara que os iluminasse; tão como em outra situação, atenderes à
segura que lhes desse confiança; tão forte divina lei gravada em teu coração, para
que os movesse; tão eficiente que os auxi- guardá-la fielmente, sem remissão e des-
liasse, e tão verdadeira que a todos que a cuido, com toda perfeição e advertência.
observassem desse alegria e sabedoria.
Este, e outros efeitos tão admiráveis, Amor ao próximo
são produzidos pela virtude da imaculada
lei evangélica, em seus preceitos e conse- 829.a. Quanto à prática do amor ao
lhos. Ordena e conforma de tal modo as próximo, aplica-lhe sempre aquela pri-
criaturas racionais, que sua observância é a
meira regra: faze aos outros o que desejas
única fonte de toda felicidade espiritual e
que te façam (Mt 22,39).
corporal, temporal e eterna (Prov 29,18). Se tu desejas que pensem e falem
Por aqui entenderás que a cega ig-bem de ti, isso também deverás fazer a
norância dos mortais os engana e faz cair na
teus irmãos. Se sentes quando te ofendem,
fascinação dos seus mortais inimigos (Gal ainda em ninharias, evita dar-lhes esse pe-
3,1). Desejando tanto a felicidade, são tão
sar. Se não achas certo quando os outros
poucos os que atinam com ela porque não a desgostam o próximo, não faças o mesmo,
procuram na lei divina (Jer 31, 33), onde pois já sabes que contradiz à regra e
unicamente a podem encontrar. medida da caridade ordenada pelo Altís-
simo. Chora também tuas culpas e as de
teu próximo, por serem ofensas a Deus e
Quem me ama, guarda meus preceitos à sua santa lei. Este sentimento é boa cari-
dade para com eles e o Senhor. Sofre com
829. Prepara teu coração com esta as dores alheias como com as tuas, imi-
ciência, para que o Senhor grave nele sua tando-me neste amor.
62
CAPÍTULO 11
DA INTELIGÊNCIA QUE TEVE MARIA SANTÍSSIMA,
SOBRE OS SETE SACRAMENTOS QUE CRISTO IRIA
INSTITUIR E OS CINCO PRECEITOS DA IGREJA.
Os Sacramentos da Igreja Sobre o primeiro Sacramento, co-
nheceu como a penosa lei da Circuncisão
830. Para complemento da for- seria honrosamente cancelada, entrando
mosura e riqueza da santa Igreja, foi em seu lugar o suavíssimo e admirável
conveniente que -seu artífice, Cristo sacramento do Batismo.
nosso Redentor, nela instituísse os sete Teve inteligência que a matéria
Sacramentos que seriam como o erário deste sacramento seria água pura e natu-
dos tesouros infinitos de seus mere- ral; que em sua forma seriam nomeadas
cimentos. Ele próprio neles estaria, por expressamente as três divinas Pessoas,
inefável modo de presença, mas real e Pai, Filho e Espírito Santo, para que os
verdadeiramente. Seus filhosfiéisali- fiéis professassem a fé explícita na santís-
mentar-se-iam com seus bens e se con- sima Trindade.
solariam com sua presença, penhor da
que esperam gozar eternamente, face a
face.
Era também necessário, para a
plenitude da ciência e graça de Maria san-
tíssima, que todos estes mistérios fossem
copiados em seu ardente e vastíssimo co-
ração, e no modo possível, nele ficasse
gravada e depositada toda a lei da graça,
como o estava em seu Filho santíssimo.
Na ausência d'Ele, Ela iria ser a Mestra
da Igrej a e iria ensinar a seus primogênitos
a fidelidade e exatidão com que estes Sa-
cramentos deveriam ser recebidos e ve-
nerados.
O Batismo
831. Tudo isto foi manifestado à
grande Senhora, no interior de seu Filho
santíssimo, com nova e distinta luz para
cada mistério.
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Quinto Livro - Capítulo 11
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Quinto Livro - Capítulo 11
substância em outra e permanecendo os tado quando chegasse a hora de se con-
acidentes sem sujeito. Entendeu como sagrar.
estaria, ao mesmo tempo, em tantas e di- Disse-lhe a divina Rainha: Altís-
versas partes; comove ordenaria o sacros- simo Senhor meu, e vida Verdadeira de
santo mistério da missa, para consagrá-lo minha alma. Por ventura, merecerá este
e oferecê-lo em sacrifício ao eterno Pai até vil bichinho e opróbrio dos homens rece-
o fim dos séculos; como seria adorado e ber-vos em seu peito? Serei tão ditosa de
venerado nos numerosos templos da santa voltar a receber-vos em meu corpo e em
Igreja católica, em todo o mundo; os efei- minha alm a? Meu peito será vossa morada
tos que sua recepção produzia, de acordo e tabemáculo onde descansareis? Possuir-
com as disposições de cada comungante, vos-ei gozando de vossos abraços, e vós,
e as fatais conseqüências para os que o meu amado, gozareis dos de vossa serva?
recebessem indignamente.
Teve inteligência da fé dos católi-
cos neste Sacramento, e dos erros dos Maria começa a se preparar para a
hereges contra este inefável benefício, e Comunhão
principalmente contra o amor imenso com
que seu Filho santíssimo determinara dar- 836. Respondeu-lhe o divino Mes-
se em alimento de vida eterna a cada um tre: Minha pomba e minha Mãe, muitas
dos mortais. vezes me recebereis sacramentado, e de-
pois de minha morte e subida aos céus,
gozareis deste consolo. Minha contínua
Maria pede a graça da comunhão habitação será no vosso puríssimo e
amoroso peito que Eu escolhi para morada
835. Ao receber estas e outras in- de meu agrado e beneplácito.
teligências sobre este augustíssimo Sacra- Ao ouvir esta promessa do Senhor,
mento, inflamou-se o coração de Maria humilhou-se novamente a grande Rainha
santíssima em novos incêndios de amor, e apegada ao pó lhe deu graças, admirando
incompreensíveis ao entendimento hu- o céu. Desde aquela hora, dirigiu todos
mano. Ainda que para todos os Artigos da seus atos e afetos na intenção de se
fé e sacramentos dedicou cânticos espe- preparar para receber a sagrada comunhão
ciais, neste grande mistério desdobrou seu de seu Filho sacramentado.
coração, e prostrada em terra fez novas Durante todos os anos que se pas-
demonstrações de amor, culto, louvor e saram depois desta ocasião, nunca se
agradecimento por tão alto benefício. Ex- esqueceu, nem interrompeu os atos da
primiu dor e sentimento pelos que o vontade. Sua memória era firme e cons-
haviam de usar mal e convertê-lo em sua tante como de anjo ®, e sua ciência mais
. própria condenação. elevada que a de todos eles. Como sempre
Abrasou-seem ardentes desejosde se lembrava deste mistério e de outros,
ver este Sacramento instituído, e se a força sempre agia conforme a memória e ciên-
do Altíssimo não a confortasse, os seus cia que possuía. Daí em diante, fez tam-
afetos lhe teriam arrebatado a vida, apesar bém grandes súplicas ao Senhor, para que
de se encontrar na presença de seu Filho desse luz aos mortais a fim de conhecerem
santíssimo que, ao mesmo tempo lhe e venerarem este altíssimo sacramento e
saciava e entretinha a sede, até chegar o o receberem dignamente.
tempo da instituição. Desde essa ocasião, Se, algumas vezes chegamos a re-
porém, começou a se preparar, pedindo a cebê-lo com esta disposição (queira Deus
Jesus a comunhão de seu corpo sacramen- que seja sempre), fora dos merecimentos
2-1'parte, if 537,604.
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Quinto Livro - Capítulo 11
67 •
Quinto Livro - Capítulo 11
sustento dos ministros sagrados, para que o memorial das maravilhas que desejava
eles empregassem toda a vida no culto realizar.
divino e serviço da santa Igreja.
DOUTRINA QUE ME DEU A
RAINHA DO CÉU.
Maria, letra promissória de Deus
842, Fui muito breve na sucinta ex- Ingratidão humana
posição de tão ocultos e grandiosos
mistérios, como os que se passaram no in- 843. Minha filha, muitas vezes
flamado e generoso coração de nossa tenho te mostrado quão injurioso é ao
divina Imperatriz, ao receber do Altíssimo Altíssimo, e perigoso aos mortais, o es-
a noticia da lei e nova Igrej a do Evangelho. quecimento e descuido com que despre-
O temor de errar, constrangeu meu co- zam as misteriosas e tão admiráveis
ração a não ser muito prolixo, em mani- obras que sua divina clemência ordenou
festar o que ele recebeu e conheceu através para a salvação. O materno amor me so-
da inteligência. licita a renovar em ti algo desta lem-
A luz da santa fé que professamos, brança e da dor por dano tão lastimável.
governada pelaprudência epiedade cristã, Onde está o juízo dos homens, que tão
esclarecerão o coração católico que aten- perigosamente desprezam sua salvação
tamente se aplicar na veneração de tão ele- eterna e a glória de seu Criador e Reden-
vados mistérios. Considere, com viva fé, tor?
a maravilhosa harmonia das leis e sacra- As portas da graça e da glória estão
mentos, doutrinas e tantos mistérios como abertas, e eles não só não querem entrar
encerra a Igreja católica, pelos quais ad- por elas, mas fecham as suas, quando a
miravelmente se regeu desde o princípio, mesma vida e luz lhes vai ao encontro,
e se regerá até o fim do mundo. recusando que entrem em seus corações
Tudo isto esteve reunido, por ad- cheios de trevas e de morte.
mirável modo, no íntimo de nossa Ó pecador, que crueldade mais de-
Rainha e Senhora. N*ele, a nosso enten- sumana a tua! Sendo tua enfermidade
der, ensaiou Cristo Redentor do mundo, perigosa e mortal, não queres aceitar o
a construção da santa Igreja. Anteci- remédio que te oferecem gratuitamente!
padamente, depositou-a toda em sua Qual seria o defunto, que não sentiria
Mãe puríssima, para que fosse a grande reconhecimento por quem lhe res-
primeira a gozar superabundantemente tituísse a vida? Qual o enfermo, que não
de seus tesouros. Quis que, gozando os agradeceria o médico que o curasse de sua
praticasse, amasse, cresse, esperasse e dolência?
agradecesse por todos os demais mor- Os filhos dos homens entendem
tais; que chorasse também os pecados isto e sabem ser agradecidos a quem lhes
deles, para que não impedissem a tor- dá a vida e saúde que logo hão de perder,
rente de tantas misericórdias para o e só serve para devolvê-los a novos
gênero humano. perigos e trabalhos. Porque, então,
Maria santíssima foi a escritura serem tão estultos e duros de coração
pública onde se registrou tudo quanto para não reconhecer e agradecer a quem
Deus havia de operar pela redenção hu- lhes dá a saúde, a vida do eterno des-
mana, ficando como que empenhado a canso, e o resgate das penas que não
cumprí-la. A virgem seria sua coad- terão fim nem podem ser suficiente-
jutora e em seu coração deixava escrito mente ponderados?
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Quinto Livro - Capítulo 11
de dor. Admirou-se do efeito que produ- Sejam abençoados por sua destra, os jus-
ziam em Cristo Senhor nosso os pecados tos e agradecidos que serão filhos de seu
e ingratidões dos homens, previstos pelo Pai! Sejam repletos de sua luz e dos
Senhor. tesouros de sua graça, os que hão de cor-
responder aos arden-
tes desejos de meu
Senhor, em lhes dar
eterna salvação.
Oh! quem
fôra humilde escrava
dos filhos de Adão,
que por seus serviços,
os obrigasse a por
termo a suas culpas e
à própria perdição!
Senhor meu, vida e
luz de minha alma,
quem terá coração tão
duro e vil, quem será
tão inimigo de si mes-
mo que não se reco-
nheça devedor em-
penhado de vossos
benefícios?
Quem tão in-
grato e indiferente,
que ignore vosso
amor ardentíssimo?
Como suportará meu
coração que os ho-
mens, tão beneficia-
dos por vossas mãos,
sejam tão rebeldes e
grosseiros?
Oh! filhos de
Adão, voltai contra
Mim vossa desumana
impiedade. Afligi-
Oração de Cristo e Maria pelos
homens. me, desprezai-me,
Com dolorosa angústia, a divina Mãe contanto que deis a
dirigia-se aos mortais dizendo; Oh! filhos meu querido Senhor o amor e reverência
dos homens, quase não compreendeis que deveis a suas finezas.
quanto o Criador estimava em vós sua Vós, Filho e Senhor meu, sois luz
imagem e semelhança! Em preço de vosso da luz, Filho do eterno Pai, figura de sua
resgate oferece seu próprio sangue, dando substância (Heb 1,3), eterno e tão infinito
preferência à vossa salvação! Oh! como quanto Ele, igual na essência e atributos,
quisera ser dona de vossa vontade para enquanto sois com Ele um só Deus e Ma-
converter-vos a seu amor e obediência! jestade suprema (Jo 10, 30). Sois esco-
Ti
Quinto Livro - Capitulo 12
lhido entre milhares (Cant 5, 10), mais Resposta do eterno Pai a seu Filho
formoso que todos os filhos dos homens,
santo, inocente e sem defeito algum (Heb 852. Acontecia muitas vezes que,
7,26). Como, Bem eterno, desconhecem estando seu Filho santíssimo nestas dis-
os mortais o objeto nobilíssimo de seu posições de sofrimento ou gozo, orando
amor, o princípio que lhes deu existên- ao eterno Pai, conferindo os mistérios
cia, o fim que consiste sua verdadeira altíssimos da Redenção, respondia-lhe a
felicidade? Oh! se me fôra possível dar pessoa do Pai, aprovando e concedendo o
a vida, para que todos saíssem de tal ig- que lhe pedia o Filho para a salvação dos
norância! homens. Representava também a humani-
dade santíssima os decretos da predesti-
nação ou reprovação de alguns.
Participação de Maria Nossa grande Rainha e Senhora
ouvia e entendia tudo isso. Humilhava-se
851. Outras muitas razões como até o solo, e com incomparável temor
estas, dizia a divina Senhora. Meu co- reverenciai adorava o Todo-poderoso.
ração e minha língua são incapazes de Acompanhava seu Unigênito nas orações,
explicar os ardentes afetos daquela ino- súplicas e ações de graças que oferecia ao
centíssima pomba que, com este amor e Pai por suas grandes obras e benignidade
profundíssima reverência, enxugava o a favor dos homens, e no louvor de seus
sangue que seu Filho querido suava. imperscrutáveis juízos.
Outras vezes, ao contrário o encontrava Todos estes segredos e mistérios,
cheio de glória e resplendor, transfigu- a prudentíssima Virgem meditava no seu
rado, como mais tarde apareceria no Ta- íntimo e guardava no arquivo de seu
bor (Mt 17,2). imenso coração. De tudo se servia como
Acompanhavam-no grande mul- de matéria e alimento, para mais acender
tidão de anjos, em forma humana, que o e conservar o fogo que ardia no santuário
adoravam e com sonora e melodiosa voz de seu interior. Nenhum destes favores
cantavam hinos de louvor ao Unigênito do permaneciam nela sem fruto.
Pai feito homem. Ouvia nossa Senhora A todos correspondia segundo o
estas músicas celestiais, e outras vezes as- maior agrado e gosto do Senhor. A tudo
sistia a elas, embora não estivesse Cristo dava a plena correspondência que con-
Senhor nosso transfigurado. A divina vinha, para que se realizassem os planos
vontade ordenava, em algumas ocasiões, do Altíssimo e todas suas obras se tomas-
que a humanidade do Verbo recebesse sem conhecidas e agradecidas, o quanto
aquele conforto. Em outras recebia-o era possível numa pura criatura.
quando transfigurado, pela redundância
da glória da alma sobre o corpo. Isto, DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU,
porém, foi poucas vezes. MARIA SANTÍSSIMA.
Quando a divina Mãe o via naquela
forma gloriosa, ou quando ouvia a música
dos anjos, participava com tanta abundân- Mãe de misericórdia
cia daquele júbilo e deleite celeste que, se
não fôra a fortaleza de seu espírito e o 853. Minha filha, uma das razões
auxílio de seu Filho e Senhor, desfale- por que os homens me dão o nome de Mãe
'ceria. Os santos anjos também a susten- de misericórdia, é o piedoso amor com que
tavam nos delíquios corporais que em tais intimamente desejo que todos cheguem a
ocasiões costumava sentir. se saciar nas torrentes da graça, e experi-
74
Quinto Livro - Capitulo 12
mentem a suavidade do Senhor (SI 33,9) coração esta advertência: antes de execu-
como eu. A todos os que têm sede, tar qualquer ato, interior ou exterior, per-
chamo e convido para comigo chegarem gunta a ti mesma, se meu Filho santíssimo
as águas da divindade. Venham os mais e eu faríamos ou diríamos o mesmo que
pobres e ailitos que, se me responderem vais dizer ou fazer, e com que reta intenção
e seguirem, ofereço-lhes minha pode- o ordenaríamos à glória do Altíssimo e ao
rosa proteção c amparo, e intercederei bem do próximo. Se achares que o
junto a meu Filho, pedindo o maná diríamos e faríamos com esse fim, exe-
escondido (Apoc 2,17) que lhes dará ali- cuta-o. Se, porém, entenderes o contrário,
mento e vida. Vem tu, minha amiga. Vem suspende e não o faças. Eu usava esta
e receberás o nome novo, conhecido só atenção com meu Senhor e Mestre, apesar
por quem o trás. Levanta-te do pó, sa- de não ter contradição para o bem, como
code e rejeita todo d terrestre e tran- tu, mas porque desejava imitá-lo perfei-
sitório e aproxima-te do celestial. Nega tamente. Nesta imitação consiste a partici-
a ti mesma e a todo o proceder da fragili- pação frutuosa de sua santidade, porque
dade humana. Contempla, na verdadeira ensina e conduz ao mais perfeito e
luz que recebeste, as ações de meu Filho, agradável a Deus.
as minhas que as imitaram, e sejam Além disto, advirto-te que, de hoje
exemplar e espelho por onde compor a em diante, nada faças, nem fales, nem
beleza que o sumo Rei deseja encontrar penses, sem pedir-me licença antes, con-
em ti (SI 44,12). sultando-me como tua Mãe e mestra. Se
eu te responder agradecerás ao Senhor, e
se não te responder, mas perseverares
Reproduzir a vida de Cristo e Maria nesta fidelidade, garanto e prometo da
parte do Senhor, que Ele te dará luz do que
854. O meio mais eficiente para for mais conforme à sua perfeitíssima
conseguires a perfeição que desejas, e dar vontade. Não obstante, faz tudo com a
plena eficácia a tuas obras, é o seguinte: obediência de teu pai espiritual, sem
Regula todas tuas ações, gravando no teu nunca esquecer este exercício.
75
Quinto Livro - Capítulo 12
Quinto Livro - Capítulo 13
CAPÍTULO 13
MARIA AOS TRINJA E TRÊS ANOS DE IDADE. SUSTENTA
A FAMÍLIA COM SEU TRABALHO.
A idade perfeita por nós sua humanidade santíssima, com
todos os dons da natureza e graça. Não que
855, Ocupava-se nossa grande Ele crescesse na graça, mas para que a
Rainha e Senhora nos santos exercícios e natureza fosse a ela correspondente, e
mistérios que até agora mais balbuciei do nada ficasse por sacrificar e doar ao
que expliquei, principalmente depois que gênero humano.
seu Filho santíssimo passou dos doze Por esta mesma razão, dizem que
anos. o Altíssimo criou nossos primeiros pais,
Correu o tempo, e ao completar Adão e Eva, na perfeição dos trinta e três
nosso Salvador dezoito anos de sua ado- anos. Deve-se, porém, pensar que na-
lescência, segundo o cômputo de sua En- quela primeira e segunda idade do mundo,
carnação e nascimento acima citado ^ \ a vida era muito mais longa. Dividindo a
atingiu sua Mãe santíssima os trinta e três idade dos homens em mais ou menos seis
anos da idade perfeita e juvenil. Chamo-a ou sete partes, cada uma seria composta
assim porque, segundo a comum divisão de muito mais anos do que agora, quando,
da idade humana, seja em seis ou sete par- depois de David a senetude chega aos
tes, a de trinta e três anos é o término de setenta anos (SI 89,10).
seu desenvolvimento natural. Segundo
uns, pertence aofimda juventude, ou ao
princípio dela segundo a contagem de ou- Maria aos trinta e três anos
tros.
Seja qual for a divisão das idades, 856. Ao completar trinta e três
o término da perfeição natural é comum anos, o virginal corpo da Imperatriz do
aos trinta e três anos. A permanência nesse céu, chegou à completa perfeição natural.
estado é pequena, pois a natureza corrup- Tornou-se tão bem proporcionada e bela
tível logo começa a declinar, como a lua que era admiração, não só para a natureza
depois de atingir sua plenitude. Neste de- humana, mas também para os próprios
clínio da idade mediana em diante, o corpo espíritos angélicos.
não cresce mais em altura. Se aumenta em Na altura, nos membros e em todo
espessura, isto não é perfeição, mas de- o porte, desenvolvera-se tão harmoni-
feito da natureza. camente que chegou â suma perfeição de
Por esta razão, Cristo Senhor uma criatura humana. Assemelhava-se à
nosso morreu na idade de trinta e três anos. humanidade santíssima de seu Filho,
Seu amor ardentíssimo quis esperar que quando Ele alcançou essa idade. Na cor e
seu sagrado corpo chegasse ao término de na fisionomia eram extremamente pareci-
sua natural perfeição e vigor, para oferecer dos, embora permanecessem os traços
r-n°I38, 475
77
característicos do sexo: Cristo, perfeitís- cia e de outras virtudes, permitiu que so-
simo homem, e sua Mãe perfeitíssima fresse algumas enfermidades e dores,
mulher. (como direi no capítulo seguinte), o que
Para todos os outros mortais, nessa lhe dificultava muito o trabalho corporal.
idade, geralmente, começa o declínio da Notou-o a prudentíssima Esposa que sem-
perfeição física. Diminui a umidade radi- pre o havia estimado e servido mais que
cal e o calor inato; descontrolam-se os hu- nenhuma outra do mundo a seu marido.
mores, prevalecendo os terrestres; o ca- Disse-lhe: Meu esposo e senhor,
belo começa a branquear, as rugas surgem sinto-me muito obrigada pela fideli-
no rosto, o sangue esfria, as forças en- dade, trabalho e desvelo que sempre
fraquecem. Todo o organismo começa a tiveste. Até agora, com o suor de vosso
declinar para a senetude e destruição, sem rosto, alimentaste a vossa serva e a meu
que indústria alguma consiga detê-la com- santíssimo Filho e Deus verdadeiro.
pletamente. Nesta solicitude gastaste vossas forças
Com Maria santíssima não aconte- e o melhor de vossa vida e saúde para
ceu assim. Seu admirável organismo e cuidar da minha. Da mão do Altíssimo
vigor conservaram a perfeição que al- recebereis a recompensa e as bênçãos
cançaram aos trinta e três anos, sem en- que mereceis (SI 20,4). Agora, suplico-
fraquecer e declinar. Quando atingiu os vos, senhor meu, que descanseis do tra-
setenta anos, término de sua vida, como balho, pois está acima de vossas fracas
direi em seu lugar ™\ possuía o mesmo forças. Quero ser agradecida, e trabalhar
físico que aos trinta e três, com as mesmas agora para vos servir no resto de vida
energias e aparências exteriores. que o Senhor nos conceder.
São José em seus últimos anos São José servido por Jesus e Maria
857. A grande Senhora teve 858. Ouviu o Santo as razões de
consciência deste benefício e sua amorosa Esposa, derramando mui-
privilégio que lhe concedeu o Altís- tas lágrimas de humilde gratidão e con-
simo, e lho agradeceu. Entendeu que a solo, Fez alguma insistência pedindo-
razão dele era para nela sempre se con- lhe que lhe permitisse continuar no tra-
servar a semelhança com a humanidade balho, mas por fim cedeu aos rogos de
de seu Filho santíssimo, mesmo na per- sua Esposa e Senhora do mundo. Daí em
feição natural, não obstante a diferença diante deixou o trabalho manual com
da duração da existência terrestre de que ganhava o alimento para os três. As
ambos: o Senhor daria a vida nessa ferramentas de seu ofício de carpinteiro
idade, enquanto a divina Senhora vive- foram dadas como esmola, para que
ria mais tempo. nada ficasse inútil e supérfluo naquela
Quando, pois, aSenhorado mundo família.
chegou aos trinta e três anos, São José, Livre desta preocupação, José en-
embora não fosse muito velho, sentia-se tregou-se inteiramente à contemplação
já muito alquebrado fisicamente. Suas dos mistérios de que era depositário e ao
viagens, os cuidados e contínuo trabalho exercício das virtudes. Sendo nisso tão fe-
para sustentar a sua Esposa e ao Senhor liz e bem-aventurado, por gozar da pre-
do mundo, o haviam enfraquecido, mais sença e convívio com a divina Sabedoria
do que a idade. O mesmo Senhor que o humana e sua Mãe, chegou o homem de
queria aperfeiçoar no exercício da paciên- Deus a tão elevada santidade que, depois
Quinto Livro - Capítulo 13
de sua divina Esposa, excedeu a todos os Laboriosidade da Virgem
outros santos.
A Senhora do céu e seu Filho san- 860. Não faltavam ao Senhor
tíssimo o assistiam nas suas enfermi- meios para sustentar sua vida humana com
dades, o serviam, consolavam e anima- a de sua Mãe santíssima e a de São José,
vam com a maior atenção. Nãohápalavras pois não só de pão se sustenta e vive o
para traduzir a reverência, humildade e
amor que estes favores produziam no
singelo e agradecido coração de José.
Seus sentimentos foram, sem dúvida, ad-
miração e gozo para os espíritos angéli-
cos, e de sumo agrado e beneplácito para
o Altíssimo.
O trabalho de Maria
859. Desde essa ocasião, encarre-
gou-se a Senhora do mundo de sustentar
com seu trabalho ao Filho santíssimo e
ao Esposo. Assim o dispôs a eterna Sa-
bedoria para plenificá-la em todo gênero
de virtudes e méritos e para exemplo e
confusão das filhas de Adão e Eva.
Apresentou-nos por modelo esta mulher
forte (Prov 31,10 seg.), revestida de for-
mosura e fortaleza, cingida com a ener-
gia que lhe tinha conferido naquela
idade. Fortificou seu braço para esten-
der as mãos aos pobres, comprar o homem (Mt 4,4). Como Ele mesmo disse,
campo e plantar a vinha com o fruto de poderia fazê-lo só com sua palavra;
suas mãos. Nela confiou, conforme diz " poderia também, milagrosamente, ofere-
o livro dos Provérbios, o coração de seu cer a alimentação de cada dia;
consorte, não apenas o de seu esposo O mundo, porém, não teria visto o
José, mas ainda o de seu Filho, Deus e exemplo de sua Mãe santíssima e Senhora
homem verdadeiro, mestre da pobreza, da criação, trabalhando para ganhar o sus-
pobre dos pobres. Nessa confiança não tento. A Virgem também ficava sem esse
foram decepcionados. prêmio, se não houvesse adquirido aque-
Começou a grande Rainha a traba- les merecimentos.
lhar mais, íiando e tecendo linho e lã e Tudo foi ordenado pelo Mestre de
realizando o que misteriosamente dela nossa salvação, com admirável providên-
falou Salomão nos Provérbios, capítulo cia, para glória da grande Rainha e nossa
31. Como expliquei este capítulo no fim instrução.
da primeira parte, não o repito aqui, ainda Não se podem explicar com
que muitas das coisas que lá disse, palavras a diligência e cuidado com que
referiam-se a esta ocasião, quando as acudia a tudo. Trabalhava muito, e porque
praticou nossa Rainha em atos mais exter- se conservava sempre recolhida em casa,
nos e materiais. acudia-lhe aquela feliz vizinha de quem
Quinto Liv - Capítulo 13
falei outras vezes (4) . Levava os trabalhos pouco: a prudência, a caridade e a justiça.
que a grande Rainha fazia, trazendo-lhe Com a prudência deves prevenir as neces-
as coisas necessárias. Quando a Senhora sidades do próximo e socorrê-las no modo
lhe dizia o que devia fazer ou trazer, nunca possível a teu estado. A caridade te levará
era mandando, mas sim pedindo-lhe com a remediá-las, amorosa e diligentemente.
suma humildade. Para reconhecer-lhe a A justiça te ensinará que é obrigação pro-
disposição, perguntava se tinha gosto e ceder assim com os necessitados, como o
desejo de o fazer desejarias para ti.
Ela e seu Filho santíssimo não Teus olhos devem servir a quem
comiam carne. Sua alimentação consistia não os tem (Jo 24,15); a quem não tem
só em peixe, frutas e verduras, com ad- ouvidos, deves ensinar, tuas mãos de-
mirável temperança e abstinência. Para verão trabalhar para aquele que não as
São José preparava carne, procurando pode usar. Ainda que sempre deves prati-
compensar a simplicidade e pobreza do car esta doutrina espiritualmente, de
cardápio, com o alinho e sabor que lhe em- acordo com teu estado, quero que a exer-
prestava, e o carinho e dedicação no servi- cites também no temporal, e em tudo sej as
lo. Dormia pouco a diligente Senhora, fidelíssima em me imitar.
ocupando grande parte da noite no tra- Quando vi meu Esposo em neces-
balho. Permitia-lhe o Senhor, mais do que sidade, dispus-me a servi-lo e sustentá-lo,
quando estavam no Egito, como descrevi como achei que era minha obrigação, e
então (5) . com ardente caridade assim o fiz por meu
Acontecia, algumas vezes, que seu trabalho, até sua morte. O Senhor mo
trabalho não bastava para comutar com havia dado.para que ele me sustentasse,
tudo o que necessitavam, pois São José, como o fez com suma fidelidade, en-
agora, mais do que antes, precisava de quanto teve forças. Quando, porém, elas
melhor alimentação e roupa. Nestes casos, lhe faltaram e o Senhor mas dava, era
intervinha o poder de Cristo nosso Senhor, minha aquela obrigação. Teria sido grande
multiplicando o que tinham em casa, ou falta deixar de lhe retribuir com dedicação
mandando aos anjos que o trouxessem. As e fidelidade.
mais das vezes, porém, fazia estes
prodígios através de sua própria Mãe, dis-
pondo que seu trabalho se multiplicasse Injustiça social. Opressão aos pobres
em suas mãos. e humildes
DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU 862. Não seguem este exemplo os
MARIA SANTÍSSIMA. filhos da Igreja. Por isto introduziu-se en-
tre eles uma ímpia perversidade, que cons-
trange o justo Juiz a castigá-los severa-
Prudência, caridade e justiça mente. Todos os mortais nasceram para
trabalhar (Jó 5, 7) não só depois do pe-
861. Minha filha, o que escreveste cado, como pena merecida, mas desde a
sobre meu trabalho, constitui altíssima criação do primeiro homem (Gn 2,15).
doutrina para tua orientação e parame imi- Apesar disso, o trabalho não é
tares. Afimde não a esqueceres, vou re- repartido com todos, mas os mais pode-
sumi-la em três pontos. rosos e ricos, os que o mundo chama se-
Quero que me imites nas três vir- nhores e nobres, procuram eximir-se desta
tudes que me vistes praticar no que escre- lei geral, e lançam todo o trabalho sobre
veste, e nas quais os mortais reparam os humildes e pobres da sociedade. O suor
4 - À c i m â i f 277, n° 423 - 5 - Acima tf 658
Quinto Livro - Capítulo 13
destes sustentam o fausto e a soberba dos bem porque são tuas irmãs, filhas de teu
ricos, e o fraco e pequeno serve ao forte e Pai celestial, obras do Senhor, teu Esposo.
poderoso. Em muitos soberbos, pode Havendo tu, sem merecer, recebido mais
tanto esta perversidade, que chegam a do que todas, também estás obrigada a tra-
pensar que lhes é devido este obséquio, e balhar mais do que qualquer outra. Alivia
nessa convicção oprimem, humilham' e as enfennas e fracas do trabalho corporal
desprezam os pobres (Tg 2, 6). Pre- e faze-os por elas. Quero que não encar-
sumem que só têm que viver para si e para regues outra de fazer o trabalho que te per-
gozar do ócio e das delícias e bens do tence e podes desempenhar, mas ainda
mundo, e aos que os servem nem sequer ponhas sobre teus ombros, quanto for
pagam o pequeno estipêndio de seu tra- possível, o das outras, sendo a serva e
balho. menor de todas, como desejo que enten-
Sobre o ponto de não remunerar os das e te consideres.
pobres trabalhadores, e no mais que en- Não podendo fazer tudo, convém
tendeste, poderias citar gravíssimas ofen- distribuir os trabalhos corporais a tuas
sas que se praticam contra a ordem e von- súditas. Nesta distribuição, adverte em
tade do Altíssimo. Basta, porém, saber guardai" imparcialidade e ordem. Não so-
que assim como eles pervertem a justiça brecarregues aquela que é mais humilde
e a razão, e não querem participar do tra- e disponível, ou a mais fraca fisicamente.
balho dos homens, assim também se in- Antes faço questão que humilhes a altiva
verterá para com eles a ordem da mi- e soberba que se aplica de má vontade ao
sericórdia concedida aos pequenos e trabalho. Faze isto, porém, sem irritá-las
desprezados (Sab 6, 7). Os que foram com muita aspereza, e com humilde man-
dominados pela soberba e sua malvada sidão e severidade obriga às tíbias e de
ociosidade, serão castigados com os caráter difícil a se porem sob o jugo da
demônios a quem imitaram. santa obediência. Nisto lhes fazes o maior
benefício que podes, e de tua parte cum-
pres tua obrigação de consciência, o que
também deves fazê-las compreender.
O trabalho conventual Conseguirás tudo isso, se não fi-
863. Tu, caríssima,atende em co- zeres acepção de pessoas, e se a cada uma
nheceres tal erro. O meu trabalho e exem- deres o trabalho segundo as próprias for-
plo estejam sempre diante de ti. Afasta-te ças, e as demais coisas que necessitarem.
dos filhos de Belial (2 Par 13, 7) que, na Com esta justiça e igualdade, sendo a
ociosidade, procuram o aplauso da vai- primeira em trabalhar e fazer o mais
dade (SI 4,3), e assim trabalham em vão. difícil, constrange-as a detestarem a ocio-
Não te consideres prelada e superiora, sidade e frouxidão. Procedendo assim,
mas sim escrava de tuas súditas, a menor, terás humilde liberdade paia mandá-las.
a mais humilde e serva de todas, sem dife- O que, porém, podes fazer, não o mandes
rença. Socorre-as, se for preciso, traba- a nenhuma, para não perderes o fruto e
lhando para alimentá-las, pois é teu de- recompensa do trabalho, e para me imitar
ver não apenas por ser prelada, mas tam- e obedecer ao que te admoesto e ordeno.
CAPÍTULO 14
OS ÚLTIMOS ANOS DE SÃO JOSÉ. SEUS SOFRIMENTOS,
ENFERMIDADES E COJVIO ERA SERVIDO PELA RAINHA
DO CEU, SUA ESPOSA.
Pela cruz à luz tico, e convençamo-nos que o padecer não
foi só para Cristo nosso Senhor, mas
864. Todos nós, chamados à luz e
também para nós. Se padeceu trabalhos
profissão da santa fé, à escola e se-
e morte como Redentor do mundo, foi
guimento de Cristo, nosso bem, incorre-
também, como Mestre, que nos ensinou
mos nesta geral inadvertência: pro- e convidou a carregar a cruz. Dela fez
curâmo-lo, como Redentor de nossas cul-
participantes os seus amigos, de modo
pas, e quase nunca como Mestre do sofri-
que o mais íntimo receberá parte maior,
mento (Lc 24, 26). Queremos gozar doe nenhum deles entrou no céu sem o
fruto da redenção humana, de nos ter aber-
merecer por suas obras. Desde sua Mãe
to as portas da graça e da glória, mas não
santíssima, os Apóstolos, Mártires,
atendemos tanto em seguir a Cristo noConfessores e Virgens, todos cami-
caminho da cruz, por onde Ele chegou à
nharam na estrada da cruz, e o que mais
sua glória e nos convida a procurar a nossa
sofreu, mais copiosa recompensa e
(Mtl6,24). coroa possui.
Nós os católicos, procedemos as- O exemplo do Senhor é o mais
sim, não por errar na fé como os hereges,
vivo e admirável, mas poderemos ter a
pois confessamos que sem obras e sem ousadia de dizer que, se Ele padeceu
trabalhos não há prêmios nem coroa (2como homem, também era Deus po-
Tim 2,5). Concordamos que é sacrílegaderoso, e a fraqueza humana só pode ad-
blasfêmia valer-nos dos méritos de mirar, mas não imitar seu exemplo. A
Cristo nosso Senhor, para pecar sem esta desculpa, o Senhor nos apresenta o
freio e sem temor. Não obstante estas exemplo de sua Mãe e nossa Rainha ino-
verdades, na prática das obras corres-centíssima, o de seu esposo São José e
pondentes à fé, alguns filhos da santao de tantos outros homens e mulheres.
Igreja pouco se diferenciam dos que Fracos como nós, e com menos culpas
vivem nas trevas; fogem do sacrifício,do que nós, o imitaram e seguiram pelo
como se acreditassem que, sem ele, caminho da cruz. Não foi só para nossa
podem seguir seu Mestre e chegar à par-
admiração que o Senhor sofreu,, mas
ticipação de sua glória. para ser exemplo admirável à nossa imi-
tação. O fato de ser verdadeiro Deus,
não impediu d'Ele sentir o sofrimento,
Seguir a Cristo sofredor antes, por ser impecável e inocente, foi
maior sua dor e mais sensíveis foram
865. Deixemos este engano prá- suas penas.
Quinto Livro - Capítulo 14
Por isto, costumava usar do seu poder Caridade de Maria para com São José
de Senhora e Rainha da criação. Aos
manjares que preparava para seu santo 869. A piedade da divina Senhora
enfermo, ordenava que dessem espe- não ficava satisfeita servindo a São José
cial virtude e força para o corpo e sabor como fica dito. Procurava ainda outros
para o gosto, pois era para conservar a meios para seu alívio e conforto. As vezes,
vida do santo, justo e eleito do Altís- com ardentíssima caridade, pedia ao Se-
simo. nhor que desse a Ela as dores que seu
Esposo sofria, pois se considerava mere-
Maria, divina enfermeira
868. Obedeciam as criaturas, e
assim como ordenava a grande Senhora
acontecia. Quando São José comia esse
alimento abençoado, costumava dizer
à Rainha: Senhora, esposa minha, que
alimento e manjar é este que assim me
reanima, deleita o gosto, restaura mi-
nhas forças e enche de júbilo meu espí-
rito?
A Imperatriz do céu servia-lhe as
refeições de joelhos. Quando ele se encon-
trava mais tolhido e indisposto, des-
calçava-o na mesma posição, e o am-
parava pelo braço. O humilde Santo pro-
curava reanimar-se para evitar à sua
Esposa esses trabalhos, mas não con-
seguia impedi-los. Conhecendo Ela as
dores e fraqueza do feliz doente, as horas
e ocasiões para socorrê-lo, acudia pron-
tamente a divina enfermeira, servindo-o
no que precisava.
Dizia-lhe também muitas palavras
de singular consolo, como Mestra da sa- cedora de todos os padecimentos das
bedoria e das virtudes. Nos últimos três criaturas, como a menor de todas. Assim
anos da vida do Santo, quando suas enfer- o alegava na presença do Altíssimo, a Mãe
midades se agravaram, a Rainha assistia-o e Mestra da santidade, representando-lhe
dia e noite, e só o deixava quando devia que era mais devedora do que todos os
servir seuFilho santíssimo. O Senhortam- nascidos e que não lhe dava a retribuição
bém a ajudava na assistência a São José, devida. Oferecia o coração para todo o
salvo quando era preciso cuidar de outra gênero de aflições e dores.
coisa. Alegava também a santidade de
Jamais houve, nem haverá outro São José, sua pureza e as delícias que o
enfermo tão bem tratado e servido como Senhor sentia naquele coração tão seme-
o homem de Deus, José. Só ele mereceu lhante ao Seu. Pedia-lhe muitas bênçãos
ter por Esposa Aquela que também o foi para o Santo, e dava-lhe reconhecidas
do Espírito Santo. ações de graças por ter criado um homem
Quinto Livro - Capítulo 14
tão digno de seus favores, cheio de santi- dias descansava, até que voltava a pade-
dade e retidão. Convidava aos anjos para cer, quando o Altíssimo assim ordenava
louvarem e exaltarem a Deus por esse fa- Noutras ocasiões, mandava aos
vor. Ponderava a glória e sabedoria do santos anjos, não com autoridade, mas
Altíssimo em suas obras e o bendizia com pedindo, que consolassem e animassem
novos cânticos. São José em suas dores e sacrifícios, corno
Por um lado, considerava as penas necessitava a frágil condição da natureza
e dores de seu amado Esposo, compade- Por esta ordem, os anjos se manifestavam
cendo-se delas; por outro, conhecendo ao feliz enfermo, em forma humana
seus méritos, a complacência do Senhor visível. Cheios de beleza e refulgênciai
por eles e pela paciência do Santo, ale- falavam-lhe da Divindade e de suas infi¬
grava-se e engrandecia o Senhor. nitas perfeições.
A respeito de todas estas obras, Às vezes, em coro de suave e ce-
praticava a divina Senhora muitos atos lestial harmonia, cantavam-lhe hinos e
das virtudes que se referiam àqueles fa- cânticos divinos, com que lhe confor-
tos, em grau tão eminente que admirava tavam o corpo e inflamavam-lhe de amor
os próprios anjos. Maior admiração a alma puríssima. Para cúmulo da santi-
ainda deveria causar à ignorância dos dade e gozo do felicíssimo Santo, recebia
mortais, ver que uma criatura humana especial compreensão e luz, tanto destes
atendesse plenamente a tantas coisas ao favores divinos como da santidade de sua
mesmo tempo, sem que a solicitude de virginal Esposa, do amor que Ela lhe de-
Marta estorvasse o lazer de Maria (Lc votava, da íntima caridade com que o
10, 41, 42). Nisto assemelhava-se aos servia e de outras excelências e prerroga-
anjos que nos assistem e guardam, sem tivas da grande Senhora do mundo.
perder a visão do Altíssimo (Mt 18, Tudo isto reunido, produzia tais
10). efeitos em São José e o colocava em tal
Na atenção a Deus, Maria purís- grau de merecimentos, que nenhuma
sima os excedia, além de, ao mesmo língua o pode explicar, nem entendi-
tempo, trabalhar com os sentidos corpo- mento humano compreender na vida
rais, que os anjos não têm. Sendo filha de mortal.
Adão, terrestre, era também espírito ce-
leste, estando com a parte superior da alma DOUTRINA QUE ME DEU A
nas alturas do amor, e com a parte inferior RAINHA DO CÉU MARIA
exercitando a caridade com seu santo SANTÍSSIMA.
Esposo.
87
CAPÍTULO 15
O FELIZ TRANSITO DE SAO JOSE
ASSISTIDO POR JESUS E MARIA.
Maria reza por São José delidade e solicitude por mim, e de como
alimentou a vós, Senhor, e a Mim vossa
873. Já fazia oito anos que as en- serva, com o suor de seu rosto.
fermidades vinham purificando, no
crisol da paciência e do amor divino, o
generoso espírito do feliz São José. Resposta de Jesus
Agravando-se com os anos, iam di-
minuindo suas forças, desfalecendo o 874. Respondeu-lhe nosso Salva-
corpo e aproximando-se o inevitável dor: Minha Mãe, vossos pedidos me são
termo da vida, pagamento do estipêndio agradáveis, e em minha presença se en-
da morte, dívida comum de todos os fi- contram os merecimentos de José. Eu o
lhos de Adão (Heb 9, 27). Aumentava assistirei agora, e a seu tempo, lhe darei
também o cuidado e solicitude de sua lugar entre os príncipes de meu povo (SI
divina Esposa, nossa Rainha, na sua as- 115,15). Será tão eminente que admirará
sistência e pontualíssimo serviço. aos anj os e dará motivo de louvor para eles
Conhecendo a amantíssima Se- e os homens. Com nenhuma geração farei
nhora, com sua rara sabedoria, que estava o mesmo que para vosso Esposo.
próximo o dia de seu castíssimo Esposo Agradeceu a grande Senhora esta
deixar este pesado desterro, foi à presença promessa a seu querido Filho. Durante nove
de seu Filho santíssimo e lhe disse: Senhor dias antes da morte de São José, Filho e Mãe
e Deus altíssimo, Filho do Eterno Pai e santíssimos o assistiram dia e noite sem o
Salvador do mundo, em vossa divina luz deixarem só. Nestes nove dias, por ordem
vejo que está a chegar o tempo determi- do Senhor, os anjos vinham três vezes por
nado por vossa vontade eterna, para a dia, cantar ao feliz enfermo, louvando ao
morte de vosso servo José. Suplico-vos, Altíssimo e celebrando as graças do próprio
por vossas antigas misericórdias e infinita José. Naquela humilde, porém riquíssim
bondade, que o braço poderoso de vossa casa, sentia-se suavíssima fragrância de per-
majestade o assista nesta hora. Que sua fumes tão agradáveis, que confortava não
morte sejapreciosa a vossos olhos (SI 115, só o santo homem, como a muitos que o
15), como foi agradável a retidão de sua sentiam de fora, até onde se difundia.
vida. Parta em paz, com a certeza de rece-
ber a eterna recompensa, no dia em que
vossa dignação abrir as portas do céu para São José, precursor de Cristo no Limbo
todos os crentes. Lembrai-vos, meu Filho,
do amor e humildade de vosso servo, de 875. Um dia antes da morte, todo
seus grandes méritos e virtudes, de sua fi- inflamado no divino amor, teve um êxtase
89
Quinto Livro - Capítulo 15
altíssimo que lhe durou vinte e quatro reno. Suplicou-lhe que, naquela hora, não
horas. Milagrosamente conservou-lhe o lhe faltasse a assistência e a intercessão de
Senhor as forças e a vida, e neste sublime seus rogos. A seu Filho santíssimo o santo
arrebatamento viu claramente a divina Esposo agradeceu também os benefícios
essência. Nela lhe foram manifestados, que, durante toda a vida, recebera de sua
sem véu, tudo quanto crera pela fé: a in- liberalidade, cm particular naquela enfer-
compreensível Divindade, os mistérios da midade.
Encamação e da Redenção e a Igreja mili- As últimas palavras que São José
tante com todos os sagrados bens que a dirigiu à Maria, foram: Bendita sejais en-
ela pertencem. tre todas as mulheres, escolhida entre to-
A Santíssima Trindade nomeou-o das as criaturas. Os anjos, os homens e
precursor de Cristo, nosso Salvador, junto todas as gerações conheçam, exaltem e en-
aos santos Pais e Profetas que se encon- gradeçam vossa dignidade. Por vós, seja
travam, no Limbo. Ordenou que lhes par- conhecido, adorado e exaltado o nome do
ticipasse novamente sua redenção e os Altíssimo em todos os futuros séculos.
preparasse para esperar a visita que o Se- Seja eternamente louvado por vos ter
nhor lhes faria, a fim de tirá-los do seio de criado tão agradável a seus olhos e dos de
Abraão e levá-los à eterna felicidade. todos os espíritos bem-aventurados. Es-
Maria santíssima conheceu estes pero gozar de vossa vista na pátria celes-
fatos no interior da alma de seu Filho, na tial.
mesma forma de outros mistérios e como
tinham sido concedidos a São José. Por
tudo, a grande Princesa deu dignas graças São José despede-se de Jesus e expira
ao Senhor.
877. Voltou-se o Homem de Deus
para Cristo, Senhor nosso, e para lhe falar
São José despede-se de Maria com profunda reverência, tentou por-se de
joelhos no chão. O amoroso Jesus, porém,
876. Saiu São José deste rapto, amparou-o nos braços. Com a cabeça ne-
com o rosto banhado de admirável les reclinada, disse-lhe o Santo: Senhor
resplendor e beleza, e com a mente toda meu e Deus altíssimo, Filho do eterno Pai,
deificada pela visão do Ser divino. Pediu Criador e Redentor do mundo, abençoai a
a bênção de sua Esposa santíssima, mas vosso escravo e obra de vossas mãos. Per-
Ela pediu ao Filho que lha desse, o que doai, Rei piedosíssimo, as faltas que, in-
Ele o fez. Em seguida, de joelhos, a mestra digno, cometi em vosso serviço e compa-
da humildade pediu a São José que tam- nhia. Eu vos reconheço, exalto e com sub-
bém a abençoasse como seu esposo e su- misso coração vos dou eternas graças por
perior. Por divino impulso, e para consolo terdes vos dignado escolher-me, entre to-
da prudentíssima Esposa, o homem de dos os homens, para esposo de vossa ver-
Deus abençôou-a e d'Ela se despediu. Ela dadeira Mãe. Vossa própria grandeza e
beijou-lhe a mão com que a abençoou, e glória sejam meu agradecimento por toda
pediu-lhe que, em nome dela, saudasse os a eternidade.
santos Pais do limbo. O Redentor do mundo lhe deu a
Para que o humilíssimo José cer- bênção e disse: Meu pai, descansai em
iasse o testamento de sua vida com o selo paz, na graça de meu Pai celeste e minha.
desta virtude, pediu perdão à sua divina Aos profetas e Santos que vos esperam no
Esposa do que em seu serviço e estima Limbo, dareis feliz notícia de que se
havia faltado, como homem fraco e ter- aproxima sua redenção. A estas palavras
90
Quinto Livro - Capítulo 15
de Jesus, e nos seus braços, expirou o fe- impedindo que fossem vencidas pela
licíssimo José, e o Senhor lhe cerrou os violência do amor. Faltando aquele apoio-
olhos. a natureza se rendeu, e soltou o laço que
A multidão dos anjos que assis- detinha aquela alma santíssima nas
tiam com sua Rainha e Rei supremo, en- prisões da mortalidade do corpo,
toaram com voz celestial cânticos de lou- separação na qual consiste nossa morte.
vor. A mandado de Jesus, levaram a alma Deste modo, o amor foi a última enfermi-
santíssima de José ao limbo dos Pais e Pro- dade, a maior e mais feliz, pois a morte
fetas. Todos o reconheceram como Pai pu- que ela produz é sono para o corpo e
tativo do Redentor do mundo, cheio de princípio de verdadeira vida.
resplendores de incomparável graça, ín-
timo do Senhor, digno de singular ve-
neração. Sepultamente de São José
Participando-lhes, conforme a or-
dem do Senhor, a proximidade de sua 879. Vendo que seu Esposo fale-
libertação, causou grande alegria àquela cera, a grande Senhora dos céus preparou
inumerável congregação de santos. seu corpo para o sepultamento. Vestiu-o
São José morreu de amor conforme o costume, sem que outras mãos
o tocassem, a não ser os santos anjos que,
878. Não se deve passar em silên- em forma humana, a ajudaram. Em atenção
cio que a preciosa morte de São José, ainda ao honestíssimo recato da Virgem Mãe, o
que precedida por enfermidade e dores tão Senhor revestiu o corpo de São José com
prolongadas, não foi conseqüência delas. admirável resplendor, deixando à vista ape-
Sua vida poderia, naturalmente, ter se pro- nas o rosto. Assim, a puríssima Esposa não
longado, não fossem os efeitos do arden- o viu, ainda que o vestiu para o enterro.
tíssimo fogo de amor que ardia em seu A fragrância que dele se despren-
retíssimo coração. Para que esta morte fe- dia atraiu algumas pessoas que, vendo-o
licíssima fosse mais triunfo do amor, do tão belo e flexível como se fora vivo,
que pena de culpas, o Senhor suspendeu encheram-se de grande admiração. "Vie-
a ação especial e milagrosa com que con- ram os conhecidos, parentes e muitas
servava as forças naturais do seu servo, outras pessoas. Reunindo-se ao Redentor
91
Quinto Livro - Capítulo 15
Aos avarentos e sensuais inclinam com para desmerecer a graça e favor divino €
muita força ao que cegamente amaram. não possuem as obras que os possam de-
De todos os maus hábitos e cos- fender contra o inimigo?
tumes, vale-se o cruel inimigo para ar- Meu santo esposo José foi um dos
rastá-los atrás de objetos e assim lhes di- que gozaram o privilégio de não ver nem
ficultar ou impossibilitar a salvação. Cada sentir o demônio naquele transe. Quando
ato pecaminoso praticado durante a vida, os malignos tentaram se aproximar, sen-
e que contribui à aquisição de hábitos vi- tiram que uma força poderosa os mantinha
ciosos, constitui penhor e arma para o distantes, e foram pelos santos anjos, re-
comum inimigo lhes fazer guerra naquela pelidos e precipitados no abismo. Ao se
tremenda hora da morte. Cada apetite sa- sentirem tão oprimidos e aterrados - a teu
tisfeito, abre-lhe o caminho para penetrar modo de entender - ficaram confusos, so-
na fortaleza da alma. Uma vez dentro dela, bressaltados e aturdidos. Isto deu motivo
lança-lhe seu depravado hálito e levanta para Lúcifer reunir no inferno uma junta
densas trevas que são seu efeito. Tudo isto ou conciliábulo, investigando se, por
para que não acolham as divinas inspi- acaso, nele já se encontrava o Messias.
rações, não tenham verdadeira contrição
de seus pecados e não façam reparação de
sua má vida. Tal vida, tal morte
883, Daqui compreenderás o
Desprezo dos meios de salvação grande perigo da morte, e quantas almas
perecem naquela hora, quando começam
882, Geralmente fazem estes ini- a frutificar os méritos e os pecados.
migos grande estrago naquela hora, suge- Não te declaro os muitos que se
rindo a ilusória esperança de que os enfer- condenam, para não morreres de pena, se
mos ainda viverão, e com o tempo poderão tens verdadeiro amor ao Senhor. A regra
executar o que, no momento, Deus lhes geral, porém, é que à virtuosa vida segue-
inspira por seus anjos. Com esta ilusão se se boa morte; o resto é duvidoso, raro e
enganam e perdem. Grande é também, contingente. O remédio e segurança é pre-
naquela hora, o perigo dos que durante a venir-se muito antes. Por isto, advirto-te
vida desprezam o socorro dos santos sa- que, ao veres a luz no amanhecer de cada
cramentos. dia, penses ser aquele o último de tua vida.
Este desprezo, muito ofensivo ao E, como se de fato fosse, pois não sabes
Senhor e aos santos, a divina justiça cos- se o será, ordenes tua alma de modo a re-
tuma castigar abandonando estas almas ao ceber alegremente a morte, se el a vier. Não
próprio conselho, pois não quiseram se demores um instante em te arrependeres
aproveitar do remédio no tempo oportuno. dos pecados, com propósito de os confes-
Tendo-o desprezado, merecem, por justos sar se os tiveres, e emendar até a mínima
juízos, serem desprezados na última hora, imperfeição.
para a qual prorrogaram com louca Não deixes em tua consciência
ousadia, a busca da salvação eterna. Pou- falta alguma repreensível, sem te doeres e
cos são os justos a quem no último com- te lavares com o sangue de Cristo, meu
bate, a antiga serpente não ataca com in- Filho santíssimo. Põe-te no estado em que
crível sanha. Se aos grandes santos pre- possas aparecer na presença do justo Juiz,
tendem então derribar, que podem esperar que te examinará e julgará até o mínimo
os viciosos, negligentes e cheios de pe- pensamento e movimento de tuas potên-
cados? Estes, que empregam toda a vida cias.
93
Quinto Livro - Capítulo 15
ocasiões, esclarece no que devem fazer,
Orar pelos agonizantes sem perturbá-las. Admoesta-as para que
884. Para ajudares, como desejas, recebam os santos sacramentos e sempre
aos que estão naquele perigoso fim, em os freqüentem. Procura animá-las e con-
primeiro lugar aconselha a todos o mesmo solá-las falando-lhes das coisas de Deus,
que te advirto: cuidem da alma durante a de seus mistérios e Escrituras. Que seus
vida e assim terão feliz morte. Além disso, bons desejos e afetos despertem e as dis-
rezarás nessa intenção todos os dias, sem ponham para receber a luz e influência do
falta. Fervorosamente, suplica ao Todo- alto. Fortalece-lhes a esperança, encoraja-
poderoso que aniquile os enganos do de- as contra as tentações e ensina-lhes como
mônio, quebre os laços e ciladas que armam deverão resistir a elas e vencê-las. Procura
aos agonizantes, e sejam humilhados por conhecê-las, e mesmo que a paciente não
sua destra divina. Sabes que eu fazia tal as revelar, o Altíssimo te dará luz para as
oração pelos mortais, e quero que me imites entenderes e aplicar a cada uma o conve-
nisso. Do mesmo modo te ordeno que, para niente remédio, porque as enfermidades
mais ajudá-los, mandes aos demônios que espirituais são difíceis de se conhecer e
deles se afastem e não os oprimam. Bem curar.
podes usar deste poder, mesmo que não este¬ Tudo o que te admoesto deverás
jas presente, pois o está o Senhor em cujo praticar, como filha caríssima, em ob-
nome hás de subjugá-los, para maior honra séquio do Senhor, e eu alcançarei de sua
e glória de Deus. grandeza alguns privilégios para ti e
para os que desejares ajudar naquela
temível hora. Não sejas escassa na cari-
A morte das religiosas dade, pois não agirás pelo que és, mas
sim pelo que o Altíssimo quiser fazer
885. Às tuas religiosas, em tais por meio de ti.
CAPÍTULO 16
PRIVILÉGIOSDE SÃO JOSÉ.
Idade de Maria, ao morrer São José Experimentou, porém, natural sentimento
pela morte de São José, pois o amava
886. São José, o mais feliz dos como esposo, como santo tão excelente na
homens, viveu sessentaanos e alguns dias. perfeição e como seu amparo e benfeitor.
Aos trinta e três desposou Maria santís- Esta dor da prudentíssima Senhora foi
sima e em sua companhia viveu pouco bem ordenada e perfeita, mas nem por isto
mais de vinte e sete. Quando o Santo mor- foi pequena. Seu amor era grande, princi-
reu, a grande Senhora contava quarenta e palmente porque conhecia o grau de san-
um anos e meio. Aos catorze desposou-se tidade de seu Esposo, colocado entre os
com São José' % acrescentando-se os vin- maiores santos escritos no livro da vida e
te e sete que viveram juntos, somam qua- na mente do Altíssimo. Se, o que se ama
renta e um, mais o prazo que vai de 8 de não se perde sem dor, maior será a dor de
setembro até a feliz morte do santo se perder o que muito se ama.
Esposo.
Nesta idade, continuava a Rainha
do céu, na mesma perfeição natural que As excelências de São José
atingiu aos trinta e três anos. Não enve-
lheceu, nem perdeu nada daquele per- 887. Não pertence à finalidade
feitíssimo estado que expliquei no desta História escrever, de propósito, as
capítulo 13 deste livro * A excelências da santidade de São José.
Tampouco tenho ordem para isso a não ser
de passagem, o quanto basta para mais re-
alçar a dignidade de sua Esposa e nossa
Rainha, a cujos merecimentos, depois dos
de seu Filho santíssimo, devem-se atribuir
os dons e graças concedidos pelo Altís-
simo ao glorioso Patriarca.
Mesmo que a Senhora não tenha
sido a causa meritória da santidade de seu
Esposo, foi pelo menos ofimimediato
para o qual essa santidade era ordenada.
O cúmulo de virtudes e graças que o Se-
nhor comunicou a São José, tinha a finali-
dade de o tornar digno esposo e guafda
daquela que ele escolhera por Mãe. Por
esta regra e pelo amor e apreço que Deus
teve por sua Mãe santíssima, deve-se
1 - 1 ' parte -2-n°856
95
1
Quinto Livro - Capítulo 16
medir a santidade de São José. Penso que, lhe atado o fontes pecati para o resto da
se no mundo existisse outro homem mais vida, e jamais sentiu movimento impuro
perfeito e de melhores qualidades, o Se- ou desordenado. Nesta primeira santifí-
nhor tê-lo-ia dado por esposo à sua Mãe. cação não lhe foi dado o uso da razão, mas
Já que lhe deu o patriarca São José, é por- só foi justificado do pecado original. Sua
que, fora de qualquer dúvida, era o melhor mãe, todavia, sentiu particular alegria do
que havia na terra. Espírito Santo, e mesmo sem entender
Tendo-o criado e preparado para todo o mistério, fez grandes atos de vir-
tão elevada missão, é certo que seu poder tudes e julgou que seu filho seria ad-
o tornaria idôneo e proporcionado a ela. mirável aos olhos de Deus e dos homens.
Esta proporção, segundo entendemos na
luz divina, deveria consistir nas virtudes,
dons, graças e inclinações infusas e Nascimento e vida de São José até
naturais. desposar Maria
889. 0 santo menino nasceu per-
São José milagre de santidade feitíssimo e muito belo, dando a seus pais
extraordinária alegria, como a que houve
888. Entre este grande Patriarca e " ao nascer o Batista, embora o motivo
os demais Santos, noto diferença a res- daquela fosse mais oculto. Apressou-lhe
peito dos dons com que foram agraciados. o Senhor o uso da razão, dando-a perfeita
A muitos Santos foram concedidos fa- aos três anos, dotada de ciência infusa e
vores e privilégios que não visavam dire- novo aumento de graça e virtudes. Desde
tamente à sua santidade pessoal, mas lhes esse momento começou o menino a co-
eram dados para outros fins a serviço do nhecer a Deus, tanto pela fé como pela
Altíssimo na pessoa do próximo. Eram inteligência natural, como causa primeira
dons ou graças grátis datas, remotas à san- e autor de todas as coisas. Compreendia
tidade. perfeitamente tudo o que se dizia sobre
Em nosso abençoado Patriarca, Deus e suas obras, e desde aquela idade
porém, todos os dons visavam o cres- teve elevada oração, contemplação e ad-
cimento de suas virtudes e santidade, mirável exercício das virtudes, o quanto
pois o ministério para o qual se desti- permitia sua idade infantil,
navam era expressar sua santidade e Aos sete anos, quando os outros
suas obras. Sendo mais santo e angélico, chegam ao uso da razão, São José já era
era mais idôneo para esposo de Maria homem perfeito, nela e na santidade. Pos-
santíssima e depositário do tesouro e suía temperamento manso, caritativo,
sacramento do céu. Devia ser um mila- afável, sincero e em tudo manifestava in-
gre de santidade, como realmente foi. clinações, não apenas santas, mas angéli-
Este prodígio começou com a for- cas. Crescendo em virtude e perfeição,
mação de seu corpo no ventre materno, levou vida irrepreensível até a idade em
Deus teve por ele particular providência, que desposou Maria santíssima,
e foi composto com proporcionados hu-
mores, excelentes qualidades, compleição
e temperamento. Foi terra abençoada que A santidade de São José: por Maria e
mereceu uma boa alma (Sab 8, 19) e para Maria
retidão de inclinações.
Aos sete meses de sua concepção 890. Nesta ocasião, intervieram as
foi santificado no ventre de sua mãe. Foi- súplicas da divina Senhora para o aumento
96
Quinto Livro - Capítulo 16
e confirmação dos seus dons de graça. Ela Senhor nosso e sua Mãe, que lhe perten-
pediu ao Altíssimo que, se Ele lhe orde- ciam mais do que qualquer outra criatura
nava tornar estado de matrimônio, santi- os pôde possuir. Era inevitável que aquele
ficasse José para que este sintonizasse fiel e puríssimo coração se dissolvesse nos
com seus castíssimos pensamentos e de- afetos e efeitos de tão peregrina caridade.
sejos. A divina Rainha compreendeu que Bendito seja o Autor de tantos
o Senhor a atendia, e com seu poder agia prodígios e bendito seja o mais feliz dos
copiosamente sobre o espírito e potências mortais, José que os recebeu. É digno de
de São José". Infundiu-lhe perfeitíssimos que todas as gerações e povos o conheçam
hábitos de todas as virtudes e dons, cujos e bendigam, pois com nenhum outro fez
efeitos não se podem traduzir em palavras. tais coisas o Senhor, nem manifestou tanto
Retificou novamente suas potên- o seu amor.
cias, encheu-o de graça, confirmando-a
nela por admirável modo. Na virtude e
dom da castidade, ficou o santo mais ele- Privilégios de São José
vado do que o supremo serafim, porque a
pureza que eles possuem sem corpo, foi 892. Das visões e revelações divi-
concedida a São José, em corpo terreno e nas com as quais foi favorecido São José,
carne mortal. Jamais entrou em suas disse alguma coisa no decurso desta
potências imagens nem espécie de coisa História ™ e muito mais se poderia dizer.
impura da natureza animal e sensível. O principal, porém, fica subentendido
Com esta abstração e com uma sin- pelo fato do Santo ter conhecido os
ceridade columbina e angélica, ficou em mistérios de Cristo Senhor nosso e de sua
condições de permanecer na presença e Mãe santíssima; de ter vivido na compa-
companhia da puríssima entre todas as nhia de ambos tantos anos, como ver-
criaturas. Sem tal privilégio, não seria dadeiro Esposo da Rainha e considerado
idôneo para tão grande dignidade e rara pai do mesmo Senhor.
excelência.
98
CAPÍTULO 17
VIDA DE MARIA DEPOIS DA MORTE DE SÃO JOSÉ.
Vida ativa e vida contemplativa A vida contemplativa é belíssima,
ainda que a princípio não se note sua
895. Toda a perfeição da vida cristã fecundidade. Seu fruto é mais tardio, pro-
se reduz às duas modalidades de vida, cede da oração e de méritos que supõem
como a Igreja ensina: a vida ativa e a vida grande perfeição e amizade com Deus.
contemplativa. Eles inclinam o Senhor a expandir sua li-
A ativa pertencem as operações beralidade com outras almas, e por isto,
corporais e sensitivas, praticadas com o seus frutos costumam ser de ricas e
próximo em coisas humanas, as quais são copiosas bênçãos.
muito diversas. Os atos da vida ativa pro-
cedem das virtudes morais e delas rece-
bem a perfeição que lhes é própria.
A vida contemplativa pertencem
as operações interiores do entendimento e
da vontade, cujo objeto é nobilíssimo,
espiritual e específico da criatura intelec-
tual e racional. Por este motivo, a vida
contemplativa é mais excelente que a vida
ativa. Por si mesma é mais amável, por ser
mais tranqüila, deleitável e bela; apro-
xima-se mais do fim último que é Deus,
em cujo altíssimo conhecimento e amor
consiste. Deste modo, participa mais da
vida eterna que é totalmente contempla-
tiva.
São as duas irmãs Marta e Maria
(Lc 10, 41 e 42); uma tranqüila e acari-
ciada, a outra solícita e agitada. Ou então,
às outras duas irmãs e esposas, Lia e
Raquel (Gn 29,17); a primeira fecunda,
porém feia e de olhos doentes; a segunda
formosa, agraciada, mas a princípio
estéril. A vida ativa, concretamente pro-
duz mais, ainda que se disperse e perturbe
em muitas e diversas ocupações. Mas,
daqui lhe vem olhos pouco claros para
penetrar as coisas elevadas e divinas.
99
Quinto Livro - Capítulo 17
vez, pela seis da tarde. Muitas vezes para alcançar deles e graça que deseja.
comiam apenas pão, em outras, a divina Não é possível a nenhum pen-
Senhora acrescentava frutas, ervas ou samento humano, compreender a ciência
peixe, sendo este o mais lauto cardápio que teve nossa Rainha para entender e
dos Reis do céu e terra. praticar tantas e tão divinas ações, como
A abstinência de ambos sempre as que praticou em companhia do Verbo
fôra admirável, mas quando ficaram sós humanado, durante estes anos em que
foi maior, reduzindo a qualidade e o viveram a sós. Só os anjos que os acom-
número das refeições. Quando eram con- panhavam e serviam, foram testemunhas
vidados, comiam sobriamente do que lhes oculares, admirados de se verem tão in-
serviam, sem recusar, começando a prati- feriores á sabedoria e pureza de uma
car o conselho que mais tarde Cristo daria criatura digna de tanta santidade. Só Ela
a seus discípulos, para quando fossem pre- correspondeu plenamente às obras da
gar (Lc 10,8). graça.
A grande Senhora servia seu Filho
santíssimo de joelhos, pedindo-lhe per-
missão para o fazer. As vezes preparava o Competição com os anjos
alimento com a mesma reverência, pois se
destinava ao Filho de Deus verdadeiro. 900. Nesta época, teve a Rainha do
céu encantadoras contendas e com-
petições com os anjos, a respeito dos tra-
Reverência de Maria por Jesus balhos caseiros, necessários ao serviço do
Verbo humanado e do seu humilde lar.
899. A presença de José não tinha Não havia outra pessoa para desempenhá-
sido impedimento para que a prudentís- los, senão a divina Senhora, e os angélicos
sima Senhora tratasse seu Filho santís- e fiéis vassalos que, para isto, assistiam
simo com toda a reverência, sem faltar o em forma humana, estavam prontos e
mínimo neste ponto. Contudo, depois que solícitos para acudir a tudo.
o Santo morreu, a grande Senhora fazia A grande Rainha queria, com suas
com mais freqüência as prostrações e próprias mãos, desempenhar os humildes
genuflexões que costumava^. Para tanto, afazeres de varrer, por em ordem os
sentia mais liberdade estando só na pre- singelos utensílios, lavar os pratos e
sença dos anjos, do que na de seu Esposo panelas, dispor todo o necessário. Os
que era homem. Muitas vezes permanecia cortesãos do Altíssimo, porém, verdadei-
prostrada em terra, até que o Senhor a ramente corteses e mais rápidos nas ope-
mandasse levantar. Com muita freqüência rações, ainda que não mais humildes, cos-
beijava-lhe os pés, as mãos, com lágrimas tumavam adiantar-se, fazendo esses tra-
de profundíssima humildade e reverência. balhos antes que a Rainha. Muitas vezes
Sempre permanecia na presença do Se- a Senhora os encontrava desempenhando
nhor em atitude de adoração e de arden- o que Ela desejava fazer. Imediatamente
tíssimo amor, suspensa ao seu divino obedeciam à sua palavra, e deixavam-na
beneplácito, atenta a seu interior para o satisfazer sua humildade e amor.
imitar. Apesar de não ter culpa, nem a Para não lhe impedirem os desejos,
mínima negligência ou imperfeição no dizia aos santos anjos: Ministros do Altís-
serviço e amor de seu divino Filho, estava simo, espíritos puríssimos, em quem se re-
sempre, melhor do que o disse o Profeta, flete a luz com que sua Divindade me ilu-
salmo 112,2, como o servo e a escrava, de mina; estes humildes trabalhos servis não
olhos atentos nas mãos de seus senhores, convém à vossa natureza e estado, mas
2-in8ã
101
Quinto Livro - Capítulo 17
102
Quinto Livro - Capitulo 17
103
Quinto Livro - Capítulo 17
quero que compreendas a razão de todas as mãs e súditas sem cerimônias e maneiras
coisas que o Altíssimo dispôs para mim, re- pretenciosas, mas trata a todas com
lativamente a meu santo esposo José. lhaneza e sinceridade columbina. Reza
Quando me desposei com ele, o quando elas rezarem. Come e trabalha
Senhor me ordenou mudar o modo de me quando elas o fazem, e acompanha-as na
alimentar e de outras coisas exteriores, recreação.
para acomodar-me ao seu proceder, pois A maior perfeição das religiosas
ele era o chefe e eu, na ordem comum, está em seguir a vida comum, e se o fizeres
inferior. O mesmo fez meu Filho santís- serás dirigida pelo Espírito Santo que rege
simo, apesar de ser verdadeiro Deus, por as comunidades bem ordenadas. Isto não
estar sujeito (Lc 2, 51) exteriormente a impedirá que te adiantes na abstinência,
quemomundojulgavaporseupai. Depois comendo menos que todas, ainda que te
da morte de meu esposo, ficando sós, vol- sirvam o mesmo que às demais. Com jeito,
tamos ao antigo costume no comer e em sem te tomares singular, priva-te do que
outras ações. quiseres, pelo amor de teu Esposo e meu.
Não quis o Senhor que S. José se Se não fores impedida por grave enfermi-
acomodasse a nós, mas nós a ele, como dade, não faltes jamais às comunidades, a
pedia a ordem comum de nosso estado. não ser quando, por obediência a teus pre-
Tampouco fez Deus milagres para ele lados, estiveres ocupada noutra coisa. As-
poder passar sem a alimentação que cos- siste aos atos comuns com especial re-
tumava tomar. O Senhor agia em tudo verência, atenção e devoção, que neles o
como mestre das virtudes, para a todos Senhor te visitará muitas vezes.
ensinar o mais perfeito: aos pais e aos fi-
lhos, aos superiores e superioras, e aos
súditos e inferiores. Atos só vistos por Deus
Aos pais ensinou que amem, aju-
dem, sustentem, admoestem e corrijam os 907. Quero também que deste
filhos, encaminhando-os à salvação, sem capítulo aprendas a seguir meu exemplo,
negligência ou descuido. Aos filhos ensi- no cuidado em ocultar os atos que puderes
nou a amarem e honrarem os pais, como fazer em segredo. Ainda que não havia
instrumentos, dos quais receberam a vida reparo nem prejuízo, fazê-los todos na
e o ser, e a obedecer-lhes com submissão. presença de meu santo esposo José, quis
Assim, cumpre que todos guardem o que dar-lhes o retoque de perfeição e prudên-
a lei natural e divina lhes ensina, pois violá- cia, fazendo-os só na presença de Deus.
las é horrenda monstruosidade. Os pre- Isto, porém, não é necessário nas coisas
lados e superiores devem amar e governar comuns e obrigatórias que devem difundir
aos súditos como a filhos. Estes devem a luz do bom exemplo, e faltar nelas
obedecer-lhes sem oposição, ainda que poderia ser escândalo digno de repreen-
possuam melhores dotes que os prelados. são. Outros muitos atos que se podem
Pela dignidade de representantes de Deus, ocultar aos olhos das criaturas, não devem
o prelado sempre é maior, ainda que a ver- ser levianamente expostos ao perigo da
dadeira caridade, de todos faça um só. publicidade e ostentação.
Entre estes, podes fazer muitas
genuflexões como eu as fazia. Prostrada e
Vida comum apegada ao pó, poder-te-ás humilhar,
adorando a majestade suprema do Altís-
906. Para adquirires esta grande simo, para que o corpo mortal, que agrava
virtude, quero que te acomodes a tuas ir- a alma (Sab 9, 15), lhe seja oferecido
104
Quinto Livro - Capitulo 17
como sacrifício aceitável. Isto servirá de Ordeno-te que não desprezes ne-
reparação pelos seus desordenados movi- nhum, nem o julgues sem importância,
mentos contra a razão e a justiça, e para mas em tua estima considera-o ines-
que em ti não fique coisa alguma, sem ser timável tesouro, e procura conquistá-lo
oferecida e dedicada ao serviço de teu para ti. Nisto, mostra-te cobiçosa e ava-
Criador e Esposo. Com estes exercícios o renta. Adianta-te nos trabalhos manuais
corpo compensará, de algum modo, o de varrer e limpar a casa, faze os mais hu-
muito que estorva e faz a alma perder com mildes de toda ela e serve às doentes e
suas paixões e terrenas imperfeições. necessitadas, como em outras ocasiões te
mandei. Em tudo, olharás para meu exem-
Humildade e mortificação plo: minha humilde solicitude servir-te-á
de estímulo, de alegria a minha imitação
908» Para este fim, procura man- e de confusão o descuido em praticares o
tê-lo sempre muito submisso. Os bene- que viste.
fícios que se lhe faz sirvam só para Para mim foi necessária esta fun-
sustentá-lo no serviço da alma, e não damental virtude, afim de achar graça e
para se deleitar em seus caprichos e ape- agrado aos olhos do Senhor, apesar de
tites. Mortifica-o e domina-o, morrendo nunca o haver desagradado e ofendido
a tudo o que deleita os sentidos, até que desde que tive o ser. Se para sua destra
os atos comuns necessários à vida, antes divina me elevar precisei me humilhar,
lhe causem pena do que gosto, e mais muito mais necessitas tu de apegar-te com
amargura do que perigosa deleitação. o pó e te aniquilar, já que foste concebida
Não obstante, em outras ocasiões eu te em pecado (SI 50,7) e o ofendeste tantas
haver mostrado o valor desta humil- vezes. Humilha-te até ó nada e reconhece
dade e mortificação, agora, com meu que empregaste mal o ser que o Altíssimo
exemplo, ficarás mais convencida do te deu. O fato de existir, portanto, deve te
apreço que deves ter a qualquer ato servir para mais te humilhares, e assim en-
destas virtudes. contrar o tesouro da graça.
105
CAPÍTULO 18
VIVÊNCIA ENTRE JESyS E MARIA
ANTES DA VIDA PUBLICA.
Jesus e Maria a sós durante quatro Cristo, nosso bem, durante toda a vida que
anos passou neste mundo. À medida em que se
aproximava do seu fim e da realização de
909. Muitos dos ocultos e ve- tão elevado sacramento, ia agindo com
neráveis mistérios passados entre Jesus e maior intensidade e eficácia de seu poder e
Maria, sua Mãe santíssima, estão reser- sabedoria. De todos estes mistérios, era fiel
vados para o gozo acidental dos predesti- arquivo e testemunha o coração de nossa
nados na vida eterna, como outras vezes grande Rainha e Senhora. Em tudo coope-
tenho dito. Os mais elevados e inefáveis rava com seu Filho santíssimo, como sua
realizaram-se durante os quatro anos que coadjutora nas obras da redenção humana.
permaneceram a sós em casa, desde a feliz De acordo com isto, para se com-
morte de São José até a pregação do Se- preender perfeitamente a sabedoria da
nhor. Impossível que alguma criatura divina Mãe, e sua cooperação nos mis-
mortal possa dignamente penetrar tão pro- térios da redenção, seria necessário enten-
fundos segredos. Quanto menos poderei der também quanto encerrava a ciência de
eu manifestar o que deles entendeu minha Cristo, nosso Salvador, e as obras de seu
rudeza! Pelo que disser, se verá a prova amor e prudência, pelas quais ia encami-
disso. nhando os meios oportunos e convenien-
Era a alma de Cristo, Senhor nos- tes, para os altíssimos fins que tinha em
so, espelho claríssimo e sem manchas, on- vista. No pouco que eu disser sobre os atos
de, como já disse' % sua Mãe santíssima de sua Mãe santíssima, sempre se há de
via todos os mistérios e sacramentos que subentender os de seu Filho santíssimo
o mesmo Senhor dispunha. Cabeça e artí- com quem Ela cooperava, imitando-o
fice da santa Igreja, reparador de toda a como seu modelo.
linhagem humana, mestre da salvação
eterna, anjo do grande conselho, cumpria
o que já estava predestinado no con- A redenção recusada
sistório da beatíssima Trindade.
911. Encontrava-se o Salvador do
mundo na idade de vinte e seis anos. Sua
Maria, coadjutora de Cristo humanidade santíssima agia acompa-
nhando a natural evolução dos tempos e
910. Para organizar e construir esta dos fatos. Ao passo que se aproximava
obra que seu eterno Pai lhe confiou, com nossa redenção, ia realizando maiores
a suma perfeição que lhe pôde dar como obras, como quem se avizinhava do cum-
homem e Deus verdadeiro, ocupou-se primento final de sua missão.
Quinto Livro - Capitulo 18
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Quinto Livro • Capitulo 18
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CAPÍTULO 19
CRISTO COMEÇA A PREPARAR SUA PREGAÇÃO, DANDO
ALGUMA NOTICIA DA VINDA DO MESSIAS. SUA MÃE
SANTÍSSIMA O ASSISTE. PERTURBA-SE O INFERNO.
A caridade de Cristo Jesus começa a percorrer as aldeias
920. O incêndio da divina caridade 921. Com estas saídas e ausências
que ardia no peito de nosso Redentor e de seu Filho santíssimo, a prudentíssima
Mestre, encontrava-se como aprisionado Senhora já começava a sentir os trabalhos
e coagido até o tempo marcado e oportuno e penas que se iam aproximando. Sua alma
para se manifestar. Quando este chegasse, e coração eram traspassados pelo gládio
seria revelado, ou quebrando o recep- previsto por sua devota piedade, transfor-
táculo de sua humanidade santíssima, ou mando-a toda em divino incêndio de ter-
ostentando seu amorpor meio da pregação nura por seu Amado. Nestas ausências do
e milagres visíveis aos homens. Filho, assistiam-na, em forma visível,
É verdade, como diz Salomão seus vassalos e santos anjos. A grande
(Prov 6, 27), que não se pode esconder Senhora lhes confiava sua dor e lhes pedia
fogo no peito sem queimar as vestes. Em trazer notícias de seu Filho e Senhor, de
todo tempo, nosso Salvador deixou enten- suas ocupações e exercícios. Obedeciam-
der o que trazia no coração, pelas cente- lhe os anjos como à sua Rainha, e com as
lhas e luzes que se refletiam em tudo o freqüentes notícias que lhe davam, do seu
que fez desde a Encamação. Contudo, em retiro Ela acompanhava ao sumo Rei,
comparação do que, a seu tempo, iria rea- Cristo, nas orações, súplicas e demais atos
lizar, e da imensa chama que ocultava, que realizava.
aquele fogo estava como que preso e Quando Jesus voltava, recebia-o
escondido. prostrada em terra, adorava-o e lhe agra-
Chegara o Senhor à idade da per- decia os benefícios que havia prodigali-
feita adolescência e entrara nos vinte e zado aos pecadores.
sete anos. A nosso modo de entender, . Servia-o, e como amorosa mãe,
parece que já não podia esperar mais, procurava repousá-lo e dar-lhe algum
nem deter o ímpeto de seu amor e o de- modesto repasto necessário à sua humani-
sejo de adiantar-se à obediência de seu dade verdadeira e passível, pois acontecia
eterno Pai, para santificar os homens. passar dois ou três dias sem descansar,
Afligia-se muito, orava, jejuava e per- sem dormir e sem comer.
corria as povoações para se por em con- A divina Mãe conhecia as solici-
tato com os mortais. Muitas vezes, pas- tudes do Salvador, pelo modo que já
sava as noites em oração nos montes, e disse*1*. Além disto, o Senhor a informava
costumava permanecer dois ou três dias sobre tudo o que fazia e sobre os ocultos
fora de casa. favores que comunicara a muitas almas,
1 -n° 911, 914, 915
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Quinto Livi - Capítulo 19
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Quinto Livro
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Quinto Livro - Capítulo 19
Origem das desgraças sociais gou a eles, permitindo a ação do poder das
trevas (Lc 22,53) que dominava os judeus
931. Outras vezes te falei que o em conseqüência de suas culpas.
número destes infelizes prescitos é tão Hoje, porém, os católicos não
grande e dos que se salvam tão pequeno, podem alegar esta ignorância, porque
que não convém te explicar melhor. estão envolvidos pela luz, e nela conhe-
Se és verdadeira filha da Igreja e cem e penetram os divinos mistérios da
esposa de Cristo, meu Filho e Senhor, Encarnação e Redenção. A santa Igreja
poderias morrer de dor, ao entender tal encontra-se estabelecida, propagada, ilus-
desgraça. Dir-te-ei o que podes saber. trada com prodígios, com santos, com as
Toda esta perdição e os males que padece Escrituras, conhecendo e professando
o povo cristão, no governo e em outras verdades que os outros não alcançaram.
coisas que afligem assim os chefes como Com todo este cúmulo de favores, bene-
os membros deste corpo místico, tanto fícios, ciência e luz, muitos vivem como
eclesiásticos como leigos, tudo se origina infiéis, ou como se não tivessem diante
e é conseqüência do esquecimento e des- dos olhos tantos motivos para os despertar
caso que fazem da vida de Cristo e das e tantos castigos para os atemorizar.
obras da redenção humana. Se fosse em- Em tais condições, como podem
pregado algum meio para despertar sua imaginar que outros pecados foram
memória e gratidão, se procedessem maiores e mais graves que os seus? E,
como filhos fiéis e reconhecidos a seu como não temem que seu castigo será
Criador e Redentor, e a mim sua interces- mais terrível? Oh! minha filha, pondera
sora, aplacar-se-ia a indignação do justo muito esta doutrina, e teme com santo
Juiz. A geral ruína e açoite para os católi- temor. Humilha-te até o pó, e diante do
cos teria algum remédio, e aplacar-se-ia o Altíssimo considera-te a menor das
eterno Pai que justamente zela pela honra criaturas. Contempla as obras de teu Re-
de seu Filho, e castiga com mais rigor aos dentor e Mestre, aproveita-as e aplica-as
servos que conhecem a vontade de seu à tua justificação, na contrição e penitên-
Senhor e não a cumprem. cia de tuas culpas. Imita-me e segue meus
caminhos, como na divina luz os conhe-
ces. Quero que trabalhes não só para ti,
Responsabilidade dos cristãos mas também para teus irmãos.
Farás isto rezando e sofrendo por
932. Osfiéisda santa Igreja re- eles, admoestando com caridade aos que
provam muito o pecado dos incrédulos puderes, e fazendo-lhes, por esta vir-
judeus em tirar a vida a seu Deus e Mestre. tude, o que não estarias obrigada. Sê
Realmente, foi gravíssimo e mereceu os mais solícita ainda em procurar o bem
castigos recebidos por aquele ingrato de quem te ofender, suportando a todos
povo. Os católicos, porém, não advertem e humilhando-te até aos menores. Aos
que seus pecados têm circunstâncias que necessitados na hora da morte, como
os tornam mais graves que o dos judeus. tens ordem de o fazer, sê diligente em
A ignorância destes, embora culpável, era auxiliá-los com fervorosa caridade e
real. Voluntariamente, o Senhor se entre- firme confiança.
CAPITULO 20
CONCILIÁBULO NO INFERNQ CONTRA CRISTO E SUA
MAE SANTÍSSIMA.
1
933.doDesde
Temores que se operou a Encar-
demônio Lúcifer934. Estando,
convoca pois, este inimigo
o conciliábulo
nação do Verbo, o tirânico império de desorientado com o que a ele e a seus mi-
Lúcifer no mundo já não se sentia tão nistros produzia a presença de Jesus e Ma-
seguro, como estivera nos séculos ante- ria, começou a inquirir consigo: por qual
riores. Desde a hora em que o Filho do virtude o expulsavam, quando tencionava
eterno Pai desceu do céu e tomou carne no perverter os agonizantes? Donde pro-
tálamo virginal de Maria santíssima, cediam os demais efeitos da presença da
aquele forte armado sentiu outra força Rainha do céu?
maior (Lc 11,21) que o oprimia e aterrava, Não conseguindo descobrir o se-
como já ficou dito. Sentira-a quando o gredo, resolveu consultar os seus primei-
Menino Jesus e sua Mãe entraram no ros ministros, os mais eminentes na
Egito, conforme referimos, e nas muitas astúcia e malícia. Fez ecoar no inferno tre-
ocasiões, em que este dragão se viu domi- mendo rugido, no modo em que se enten-
nado e vencido pela virtude divina, através dem os demônios, e convocou-os todos
de nossa grande Rainha. pela sujeição que eles lhe têm.
Acrescentando-se a estes fatos, a Estando reunidos, fez-lhes este ar-
novidade que sentiu com a atividade que razoado: Ministros e companheiros meus,
nosso Salvador começou a desenvolver,' que sempre tomastes meu justo partido:
descrita no capítulo passado, tudo isto pro- bem sabeis que no primeiro estado em que
duziu na antiga serpente, grandes suspeitas nos colocou o Criador de todas as coisas,
e receios de haver no mundo alguma outra reconhecêrrio-lo pela causa universal de
importante causa para tais alterações. nossa existência, e assim o respeitamos.
Como, porém, o mistério da re- Não demorou, porém, que ofendendo
denção humana era-lhe oculto,' andava nossa formosura e eminência de tanta dei-
alucinado em seu furor. Não atinava com dade, nos apresentou o preceito de adorar
a verdade, embora, desde sua queda do e servir a pessoa do Verbo na forma hu-
céu, andasse sempre sobressaltado e vigi- mana que desejava assumir. Resistimos à
lante, espreitando e investigando para sa- sua vontade porque, não obstante eu co-
ber quando e como o Verbo desceria para nhecer que lhe devia esta reverência como
assumir carne humana. Esta prodigiosa a Deus, sendo juntamente homem de
obra era a que sua arrogância e soberba natureza vil e tão inferior à minha, não
mais temia. Este medo obrigou-o a fazer pude aceitar sujeição a ele, e que não
conciliábulos, como já referi nesta coubesse a mim o que determinava fazer
História e para a frente ainda descreverei. com aquele Homem. Não sendo bastante
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- Capitulo 20
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Quinto Livro - Capitulo 20
Defende, Pai meu, as almas dos en- auxílios que o Senhor nos deixou em sua
ganos e crueldades da serpente e seus se- santa Igreja, não temos nenhuma desculpa
quazes, e concede aos justos a virtude se não pelejamos legítima e corajosa-
poderosa de tua destra para que, por minha mente para vencer o demônio, inimigo do
intercessão e morte, alcancem vitória de Deus eterno e nosso, a fim de seguir nosso
suas tentações e perigos. Salvador e imitar seu exemplo.
Nossa grande Rainha e Senhora
teve, na mesma ocasião, conhecimento da DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU,
maldade e dos projetos de Lúcifer, e viu MARIA SANTÍSSIMA,
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Quinto Livro - Capítulo 20
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•
CAPÍTULO 21
POR ORDEM DO ESPIRITO SANTO, SÃO JOÃO COMEÇA A
PREGAR E ENVIA A DIVINA SENHORA UMA CRUZ QUE
POSSUÍA.
São João Batista Santidade do Batista
942. Nesta segunda parte*1*, come- 943. Os favores que, em sua
cei a descrever alguns grandes favores que solidão e retiro, São João recebeu da
Maria santíssima prodigalizou à sua prima divina destra excedem ao humano pen-
Santa Isabel e a São João, tanto na ocasião samento. Só quando se chegar à visão do
em que Herodes tirou a vida dos meninos Senhor, conhecer-se-á sua excelente san-
inocentes, como depois, estando a Rainha tidade, merecimentos e a recompensa que
no Egito. O futuro precursor de Cristo, alcançou.
falecida sua mãe, permaneceu na solidão Não pertence a esta História falar
do deserto, sem sair dela, até o tempo de- sobre os mistérios que a esse respeito co-
terminado pela divina sabedoria. Sua vida nheci, sem repetiro que os santos doutores
foi mais angélica do que humana, mais de e outros autores escreveram sobre as gran-
serafim do que homem terreno. Sua con- des prerrogativas do santo Precursor. Só
versação era com os anjos e com o Senhor direi o que é forçoso para meu assunto, e
da criação. tiver relação com a divina Senhora, por
Sendo esta sua única ocupação, cuja intercessão o solitário João recebeu
jamais esteve ocioso, prosseguindo o grandiosos favores. Destes, não foi o
amor e o exercício das virtudes heróicas menor enviar-lhe alimentação por mãos
que começara no seio de sua mãe. Nunca dos anjos, até o menino João chegar à
recebeu a graça em vão, mas preencheu-a idade de sete anos, conforme disse
com a máxima perfeição que pôde comu- acima*2^
nicar aos seus atos. Estando afastado das Desta idade até os nove anos, en-
coisas terrenas, não sentiu o estorvo dos viou-lhe apenas pão, e daí em diante a
sentidos que costumam ser as janelas por Rainha cessou este favor, porque conhe-
onde entra na alma a morte, encoberta nas ceu que era vontade do Senhor e desejo
imagens da beleza enganadora das do mesmo Santo, alimentar-se só de
criaturas. raízes, mel silvestre e gafanhotos, (Mt
Neste feliz Santo a luz divina se 34) como aconteceu até começar sua pre-
antecipou a do sol material, e com a gação. Não obstante faltar-lhe o ali-
primeira relegou ao esquecimento tudo mento das mãos da Senhora, Ela con-
quanto a segunda lhe oferecia, fixando tinuou a enviar seus anjos para visitá-lo,
sua vista interior no objeto nobilíssimo cada oito dias. Iam consolá-lo com a
do ser divino e de suas infinitas per- notícia dos trabalhos e mistérios que o
feiçòes. Verbo humanado realizava.
í - n°6?6 2-n°676
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Quinto Livro - Capítulo 21
Comunicações entre Jesus, Maria e a idade perfeita de trinta anos, sendo assim
São João preparado pelo poder divino, para o mi-
nistério para o qual fora escolhido.
944, Uma das finalidades desta
graça, era tornar suportável a solidão de
São João. Não quer dizer que seu peso e Deus envia São João Batista
austeridade lhe causasse fastio. Bastava
para torná-la desejável e muito doce, sua 945. Chegou o tempo marcado
admirável graça e santidade. pela eterna Sabedoria, para que a voz do
Foi conveniente, entretanto, pelo Verbo humanado, o Batista, fosse ou-
amor ardentíssimo que tinha a Cristo, vida a clamar no deserto, como diz Isaías
nosso Senhor, e a sua Mãe santíssima, a (40,3) e o referem os Evangelistas (Mt
fim de sentir menos a ausência do con- 3,3).
vívio e presença de ambos
que, como santo e agrade-
cido, muito desejava.
Não há dúvida que a
insatisfação deste desejo, lhe
seria de maior mortificação
do que sofrer as intempéries,
os jejuns, as penitências e a
solidão dos montes, se a
divina Senhora, sua amorosa
tia, não lhe compensasse esta
privação, com o freqüente
consolo de lhe enviar os anjos
com notícias de seu Amado.
Com as amorosas ân-
sias da esposa (Cânt 1, 6), o
grande solitário interroga-
va-os sobre o Filho e Mãe.
De seu coração ferido por
seu amor e ausência envia-
va-lhes lembranças e sauda-
des. Por meio dos angélicos
embaixadores, pedia à divi-
na Princesa, que por ele, su-
plicasse a bênção de Jesus e
o adorasse humildemente
em seu nome; enquanto isso,
o mesmo João o adorava, em
espírito e verdade, da soli-
dão em que vivia. Fazia o
mesmo pedido aos santos
Anjos que o visitavam e aos
demais que o assistiam.
Nestas ocupações,
passou o grande Precursor até
126
Quinto Livro - Capítulo 21
Mais tarde, a prudentíssima Senhora dei- ficado por sua Paixão e morte. Por este
xou estas prendas, e outras, aos Apóstolos motivo é que, agora, se lhe deve adoração
como preciosa herança, e eles as levaram e reverência altíssima, como pratica n
para as regiões onde pregaram o Evan- Igreja. Se alguém, desconhecendo os mis-
gelho. térios e razões que eu e São João sabíamos
pretendesse dar culto e reverência à cruz
antes de redenção humana, teria cometido
Dúvida da Escritora idolatria e erro, porque adorava o que não
sabia ser digno de adoração verdadeira.
948. Sobre este misterioso acon- Em nós, porém, havia motivos di-
tecimento, veio-me uma dúvida que ferentes: tínhamos infalível certeza do que
propus à Mãe da sabedoria, dizendo-lhe: nosso Redentor realizaria na cruz; sabía-
santíssima entre os santos e escolhida en- mos que, antes disso, já começara a santi-
tre todas as criaturas para Mãe de Deus. ficar aquele sagrado sinal com seu con-
No que terminei de escrever, se me oferece tacto, pondo-se nela a orar e oferecendo-se
uma dificuldade, como à mulher ignorante livremente; e que o eterno Pai aceitara, por
e rude. Se me derdes licença, desejo pro- Imutável decreto, estas obras e morte de
pô-la a vós, Senhora, mestra da sabedoria, meu Filho santíssimo.
que vos dignastes fazer comigo ofício de Qualquer ação e contacto do Verbo
esclarecer minhas trevas e ensinar-me humanado era de infinito valor, e com ele
doutrina de vida eterna. santificou e tomou digno de reverência
Minha dúvida é a seguinte: entendi aquele sagrado madeiro.
que, não apenas São João, mas também Quando eu e São João o vene-
vós, Rainha minha, tínheis reverência à rávamos, tínhamos presente este mis-
cruz, ainda antes que vosso Filho santís- tério. Não adorávamos a cruz por si mes-
simo nela morresse. Sempre acreditei que ma e por sua matéria, pois não lhe era
até a hora de nossa redenção no sagrado devido culto de adoração até que nela se
madeiro, este servia de patíbulo para cas- operasse a Redenção. Atendíamos e
tigar criminosos, e por esta causa a cruz respeitávamos a representação formal do
era consi-derada ignominiosa e maldita que nela faria o Verbo humanado, a quem
(Ofício da Sta Cruz). A santa Igreja nos se dirigia a reverência e adoração que
ensina que todo seu valor e dignidade, pro- dávamos à cruz. A mesma intenção a
cedeu do contacto com nosso Redentor e Igreja tem agora em vista, quando cultua
do mistério da redenção humana que nela a cruz.
realizou.
RESPOSTA E DOUTRINA DA Devoção à cruz
RAINHA DO CÉU MARIA
SANTÍSSIMA. - 950. De acordo com esta verdade,
deves agora ponderar a tua obrigação, e a
de todos os mortais, cm reverenciar e es-
Razão do culto à cruz timar a santa Cruz. Antes de nela morrer
meu Filho santíssimo, eu e o Precursor 0
949. Minha filha, com gosto satis- imitamos, tanto no amor e reverência,
farei teu desejo e responderei à tua dúvida. como nos exercícios que fazíamos
E verdade o que disseste: a cruz era naquele santo sinal. Que devem fazer en-
ignominiosa (Dcut 21,23), antes que meu tão, os fiéis filhos da Igreja, depois que,
Filho e Senhor a tivesse honrado e santi- pela fé, nela vê crucificado seu Criador e
128
Quinto Livro - Capítulo 21
Redentor, e diante dos olhos corporais tem criaturas. Quando o Senhor te der obri-
suas imagens? gação de tratar com elas, procura sempre
Quero, pois, minha filha, que teu próprio mérito, e a edificação do
abraces a cruz com incomparável estima, próximo. De tuas conversações transpire
e a consideres preciosíssima jóia de teu o zelo e o espírito que vive em teu coração.
Esposo. Acostuma-te aos exercícios que As eminentíssimas virtudes que conheces,
nela fazes, sem jamais, voluntariamente sirvam-te de estímulo e exemplo a imitar.
os deixares e'esqueceres, a não ser que a Delas e de outras que souberes pela vida
obediência te impeça. dos santos, procura, qual diligente abelha,
Quando fores praticar estas ve- fabricar o favo dulcíssimo da santidade e
neráveis devoções, faze-as com profunda pureza que de ti quer meu Filho santís-
reverência e meditação da paixão e morte simo.
de teu amado Senhor. Procura introduzir Vê a diferença entre este inseto e a
esta devoção entre tuas religiosas, porque aranha: a primeira transforma seu ali-
nenhuma é mais legítima para as esposas mento em suavidade e utilidade para os
de Cristo, e feita com dignareverêncialhe vivos e até para os defuntos, e a segunda
será de sumo agrado. Além disto, quero em veneno maléfico. Colhe as flores e vir-
que, à semelhança do Batista, prepares teu tudes dos santos, no j ardim da santa Igrej a,
coração para o que o Espírito Santo nele e procura imitá-las, quanto puderem tuas
quiser fazer para sua glória e bem de ou- forças, auxiliadas pela graça. Industriosa,
tros. procura que tudo resulte em benefício dos
Quanto puderes, ama a solidão e vivos e defuntos e foge do veneno da culpa
retira tuas potências da confusão das prejudicial a todos.
Quinto Livro - Capítulo 21
130
CAPITULO 22
MARIA SANTÍSSIMA OFERECE AO ETERNO PAI SEU
FILHO PARA A REDENÇÃO HUMANA. RECEBE UMA
VISÃO CLARA DA DIVINDADE. JESUS D'ELA SE DESPEDE
PARA IR AO DESERTO.
Amor dc Maria por Jesus Os cumes do amor
951. O amor de nossa grande 952. Estas razões e estímulos de
Rainhae Senhora por seu Filho santíssimo amor, com outros muitos que só sua altís-
era a razão e a medida das outras opera- sima ciência penetrava, encontravam-se
ções da divina Mãe, inclusive dos efeitos depositados e como que incluídos na sa-
da paixão do gozo e da dor, segundo as bedoria da divina Senhora. Em seu co-
diferentes causas e motivos que os pro- ração não havia impedimento, pois era
duziam. inocente e puríssimo. Não era ingrata, mas
Para avaliar, porém, este ardente prudentíssima na humildade e fidelíssima
amor, nossa capacidade não encontra em corresponder. Não era remissa, mas
medida, e os anjos só a conhecem na clara veemente em colaborar com a graça em
visão do ser divino. Fora disto, tudo toda sua eficácia. Não era lenta, mas deli-
quanto se pode dizer por circunlóquios e gentíssima. Não era descuidada, mas
comparações, é muito menos do que este atentíssima e solícita. Não era esquecida,
divino incêndio encerra. porque de memória constante e fixa em
Amava-o como a Filho do eterno guardar os benefícios, razões e leis do
Pai, igual a Ele na natureza divina e em suas amor.
infinitas perfeições e atributos. Amava-o Encontrava-se mergulhada no
comofilhonatural, somente seu na natureza próprio fogo, em presença do divino ob-
humana, formado de sua própria carne e jeto e na escola do verdadeiro Deus de
sangue. Amava-o porque, neste ser humano, amor, na companhia de seu Filho santís-
era o Santo dos Santos (Dan 9,24), causa simo, contemplando seus atos e opera-
meritória de toda santidade. ções, copiando aquele vivo modelo. Nada
Era o mais belo entre os filhos dos faltava a esta excelente amante, para
homens (SI 44/3). O mais obediente (Lc chegar àquele modo de amor que consiste
2» 51) filho para sua Mãe, o que mais a em amar sem medida e modo.
honrou e beneficiou, pois fazendo-se seu Achava-se, pois, esta formosa lua
Filho elevou-a à suprema dignidade entre em sua plenitude, depois de contemplar o
as criaturas; sublimou-a entre todas e sol da justiça, face a face, durante quase
acima de todas, com os tesouros da Divin- trinta anos. Levantara-se como divina
dade, com o senhorio de toda a criação, aurora à suprema claridade, ao ardente e
com favores, benefícios e graças que ne- amoroso incêndio do luminoso dia da
nhuma outra poderia dignamente receber. graça. Abstraída de todo o visível, trans-
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Quinto Livi - Capítulo 22
formada em seu querido Filho, era por Ele deu ao Altíssimo: rei eterno e Deus onip0,
correspondida na dileção, favores e cari- tente, de sabedoria e bondade infinita
nhos. tudo o que tem ser fora de vós, recebeu-0
Nesta culminante época, ouviu a de vossa liberal misericórdia e grandeza
voz do Pai eterno que a chamava, como é de tudo sois Dono e Senhor absoluto
chamara o patriarca Abraão, para lhe pedir Como, a Mim, vil bichinho, da terra, man>
em sacrifício o seu querido Isaac, penhor dais que sacrifique e entregue à vossa dis-
de seu amor e esperança (Gn 22,1). posição divina o Filho que de vossa ine-
fável dignação recebi? Ele vos pertence
etemo Deus e Pai, pois em vossa etemj!
O Pai eterno pede a Maria o dade o gerastes antes da aurora, (SI 109,
sacrifício de seu Filho 3; 2,7) e o continuais a gerar sempre e por
todos os séculos.
953. Não ignorava a Mãe pruden- Se Eu o revesti com a forma de
tíssima que o tempo ia passando. Seu servo (Filip 2, 7) em minhas entranhas,
amado Filho entrara nos trinta anos e se com meu próprio sangue; se O alimentei
aproximava o fim do prazo para o pa- e servi como Mãe, aquela santíssima hu-
gamento da dívida contraída pelos ho- manidade é toda vossa, pois de vós recebi
mens. Contudo, a posse da felicidade que tudo o que sou e lhe pude dar. Que me resta
a fazia tão bem-aventurada, fazia-lhe pa- senão oferecer-vos quem é mais vosso do
recer distante a privação ainda não experi- que meu?
mentada. Confesso, entretanto, Rei altís-
A hora, porém, chegou. Estando, simo, que ao enriquecerdes as criaturas
certo dia, em altíssimo êxtase, sentiu que com vossos infinitos tesouros, usais tão
era chamada á presença do trono real da liberal grandeza e benignidade que,
santíssima Trindade,, e do qual saiu uma ainda ao vosso próprio Unigênito,
voz que, com admirável força, lhe disse: engendrado de vossa substância, a pró-
Maria, Filha e Esposa minha, oferece-me pria luz de vossa divindade, o pedis
teu Unigênito em sacrifício. Juntamente como livre oferenda, para vos conside-
com a voz, recebeu luz e inteligência da rardes devedor por ela.
vontade do Altíssimo. Nela conheceu o Com Ele me vieram todos os bens,
decreto da redenção humana, por meio da e de sua mão recebi imensos dons e hones-
paixão e morte de seu Filho santíssimo, e tidade (Sab 7,11). É virtude de minha vir-
tudo o que deveria precedê-la com a pre- tude, substância de meu espírito, vida de
gação e magistério do mesmo Senhor. minha alma e alma de minha vida, toda a
A renovação deste conhecimento alegria de meu coração. Agradável ofe-
na amorosa Mãe, produziu diversos efei- renda seria entregá-lo só a Vós que co-
tos em seu espírito: aceitação, humildade, nheceis quanto é estimável.
caridade para com Deus e os homens; Entregá-lo, porém, à disposição de
compaixão, ternura e natural sentimento vossa justiça para ser executada pela mão
pelo que seu Filho santíssimo teria de de seus cruéis inimigos, à custa de sua vida
padecer. mais valiosa que toda a criação! Grande
é, altíssimo Senhor, a oferta que pedis,
para o amor de Mãe! Não se faça, contudo
Resposta de Maria a minha vontade, mas a vossa; opere-se a
libertação da linhagem humana;fiquesa-
954, Não obstante, sem pertur- tisfeita vossa equidade e justiça; mau1'
bação e com magnânimo coração, respon- feste-se vosso infinito amor, seja conhe-
132
Quinto Livro - Capítulo 22
cjdo e exaltado vosso nome por todas as humana por aquele decreto, cuja execução
criaturas. dependia do consentimento da Mãe à von-
Entrego meu querido Isaac para ser tade do Pai eterno. Assim devedores nos
realmente imolado; ofereço o Filho de tomamos a Maria santíssima, nós os filhos
minhas entranhas para que, segundo o de Adão.
imutável decreto de vossa vontade, pague
a dívida contraída, não por Ele, mas pelos
filhos de Adão. Que n'Ele seja cumprido Maria é fortalecida por Deus
tudo o que vossos Profetas escreveram e
disseram por vossa inspiração. 956. Aceita a oferenda desta grande
Senhora pela beatíssima Trindade, foi con-
veniente que Deus remunerasse à vista, com
Sublimidade do sacrifício de Maria algum favor que a confortasse em sua dor.
Seria também fortalecida para as outras
955. Este sacrifício de Maria san- dores que a aguardavam, e conheceria com
tíssima, com as condições que o acompa- maior clareza a vontade do Pai e as razões
nharam, foi o maior e mais aceitável ao do que lhe havia sido ordenado.
eterno Pai, de quantos haviam sido feitos Estando a divina Senhora no
desde o princípio do mundo, e que se farão mesmo êxtase, foi elevada a outro estado
até o fim. Excedeu-o somente o sacrifício superior, preparada pelas iluminações e
de seu Filho, nosso Salvador, que afinal disposições que noutras ocasiões tenho
foi o mesmo da Mãe, na medida e forma explicado*1*. A divindade manifestou-se
possível a ela. lhe com a visão clara e intuitiva. Na serena
Se a suprema caridade se mani- luz do Ser divino, conheceu de novo a in-
festa em dar a vida por quem se ama (Jo clinação do sumo Bem em comunicar seus
15,13), Maria santíssima ultrapassou, sem infinitos tesouros às criaturas racionais,
dúvida, esta fronteira do amor pelos por meio da Redenção que o Verbo hu-
homens, tanto mais, quanto amava a vida de manado realizaria, e a glória que deste
seu Filho santíssimo sem medida e mais do prodígio resultaria, entre as mesmas
que a sua própria vida. Para conservar a vidacriaturas, para o nome do Altíssimo.
do Filho, teria morrido tantas vezes quantos Com esta nova ciência de ocultos
são os homens e ainda muitas mais. mistérios, a divina Mãe, alegremente, tor-
Não existe, entre as criaturas, pa- nou a oferecer ao Pai o sacrifício de seu
drão algum por onde medir o amor desta Filho unigênito. O poder infinito do Se-
divina Senhora pelos homens. Só pode ser nhor fortaleceu-a com aquele verdadeiro
comparado ao amor do Pai eterno, pois pão da vida e entendimento, para com in-
como disse Cristo, Senhor nosso, a Ni- vencível fortaleza acompanhar o Verbo
codemos (Jo 3,16): de tal maneira Deus humanado nas obras da Redenção. Seria
amou o mundo que deu seu Filho sua coadjutora na forma que dispunha a
unigênito, para que todos que n'Ele infinita sabedoria, como o fez a grande
cressem não perecessem. Senhora, em tudo o que adiante direi.
Parece que, na devida proporção,
fez o mesmo nossa Mãe de misericórdia,
a quem, na mesma proporção, devemos Jesus pede licença à Maria para
nosso resgate. Tanto nos amou que deu partir
seu Unigênito para nossa salvação. Se não
o desse, nesta ocasião em que o Pai eterno 957. Cessou este rapto e visão, e
lhe pediu, não se teria realizado a redenção não me detenho mais a explicar seu modo
1 - 1* parte, rfô^eseg.
Quinto Livro - Capitulo 22
134
Quinto Livro - Capítulo 22
i mentando-me com vosso trabalho e mãe vos peço, em retribuição da forma hu-
or. Por e s t a s r a z õ e s ' reconheço-me por mana que vos dei e na qual ides sofrer.
vossofilho,mais do que qualquer outro o Pediu-lhe também a divina Mãe
foi ou será, de sua mãe. que levasse algum alimento de casa, ou
Dai-me licença para ir cumprir a que lhe permitisse enviá-lo para onde se
vontade de meu eterno Pai. Chegou a hora encontrasse. Por então, nada aceitou o
de me separar de vossa carinhosa e doce Salvador, fazendo-lhe compreender que
companhia e dar princípio à obra da re- assim convinha. Foram juntos até aporta
denção humana. Termina o descanso e da pobre morada, onde pela segunda
começa a hora de sofrer pelo resgate de vez, de joelhos Ela lhe pediu a bênção e
m eus irmãos, os filhos de Adão. lhe beijou os pés. Deu-lha o divino Mes-
Esta missão que meu Pai me confiou tre e partiu. Dirigiu-se para o Jordão,
quero, porém, realizá-la com vossa assistên- como o bom pastor que sai em busca da
cia. Nela sereis minha companheira e coad- ovelha perdida, para a trazer de volta so-
jutora, participante de minha paixão e cruz. bre os ombros (Lc 15,5), ao caminho da
Ainda que agora é forçoso vos deixar só, eterna vida, do qual se havia desgarrado
ficará convosco minha eterna bênção, (SI 118,176).
rainha solícita, amorosa e invicta proteção.
Depois voltarei para me acompanhardes e
ajudardes em meus trabalhos, pois vou Dor da separação
padece-los na forma humana que me deste.
959. No começo do ano em que
nosso Redentor saiu de casa para ser bati-
Jesus e Maria se despedem zado por São João, já havia entrado nos
trinta anos de idade. Dirigiu-se dire-
958. Com estas palavras, Jesus tamente para as margens do Jordão, onde
abraçou sua Mãe temíssima, e ambos der- João batizava (Mt 3,13). Dele recebeu o
ramaram abundantes lágrimas, sem per- batismo, treze dias depois de haver cum-
derem a admirável majestade e doce gravi- prido vinte e nove anos, o mesmo dia em
dade como mestres na ciência do padecer. que a Igreja celebra seu batismo.
Ajoelhou-se a divina Mãe e, com Sou incapaz de ponderar ade-
indizível dor e reverência, respondeu a seu quadamente a dor de Maria santíssima
Filho santíssimo: Senhor meu e Deus nesta despedida, e a compaixão do Salva-
eterno, sois meu verdadeiro Filho e a Vós dor. Todo encarecimento e razões são
dedicarei todas as forças e amor que de muito insuficientes e inadequadas para
vós recebi. O íntimo de minha alma é co- dizer o que se passou no coração de Mãe
nhecido á vossa sabedoria, e minha vida e Filho. E, como esta ocorrência fazia
nada seria se pudesse dá-la em lugar da parte de suas penas, não foi conveniente
vossa; estaria pronta, se fosse conve- moderar os efeitos do recíproco amor
niente, a morrer muitas vezes para isso. A natural entre os Senhores do mundo.
vontade do Pai, porém, e a vossa se hão Permitiu o Altíssimo que eles o
de cumprir, e para isto sacrifico a minha. sentissem na maior medida possível e
Recebei-a, meu Filho e Senhor, como compatível com a suma e respectiva san-
aceitável oferenda, e não me falte vossa tidade de cada um. Nem serviu de conforto
divina proteção. Maior tormento seria para esta dor a pressa de nosso divino
para mim, ver-vos sofrer sem vos acom- Mestre em procurar nossa salvação, le-
panhar no sofrimento e na cruz. Mereça vado por sua imensa caridade; nem para
eu> Filno» este favor, que como verdadeira
sua amorosa Mãe conhecer este motivo.
135
Quinto Livro - Capítulo 22 1
Tudo isto, só tornava maior a certeza dos inspirada pelo amor, e pelo Senhor que a$,
tormentos que os esperavam. sim o queria.
Oh! meu doce amor! Como não Estas ânsias de padecer, e o amor
vos detém a ingratidão e dureza de nossos que Ele me tinha como Filho e como Deus
corações? Como não vos impede o fato me inclinavam a desejar o sofrimento
dos homens serem inúteis para vós, além Porque me amou com ternura mo cou!
de grosseiros em vos corresponder? Oh! cedeu, pois aos que ama corrige a aílige
etemobem,evidaminha! Sem nós, serieis (Prov 3, 12). Quis que a mim, sua Mae,
tão bem-aventurado como conosco: infi- não faltasse a excelência da perfeita se-
nito em perfeições, santidade e glória, pois melhança com Ele, naquilo que mais esti-
nada podemos acrescentar a esta glória mava na vida humana. Logo se cumpriu
que tendes em vós mesmo, sem dependên- em mim esta vontade do Altíssimo e
cia e necessidade de criaturas. minha, e me vi sem os favores e conso-
Pois, porque, amor meu, nos pro- lações que costumava gozar. Desde essa
curais com tanta solicitude? Porque, à ocasião, não me tratou com tanto carinho.
custa de tantas dores e da cruz, desejais o Foi esta uma das razões por que
bem dos outros? Sem dúvida, vosso in- não me chamou de Mãe e sim mulher, nas
comparável amor e bondade considera-o bodas de Caná, aos pés da Cruz (Jo 2,4;
como próprio, e só nós o tratamos como 19,26) e ainda em outras ocasiões em que
estranho para vós e para nós mesmos. me tratou com igual gravidade, deixando
de usar palavras afetuosas. Muito longe
DOUTRINA QUE ME DEU A estava isso de ser desamor. Pelo contrário,
RAINHA DO CÉU MARIA era a maior delicadeza tornar-me sua se-
SANTÍSSIMA. melhante, nas penas que escolhia para Si
como inestimável tesouro e herança.
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Quinto Livro - Capítulo 22
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Quinto Livro Capitulo 22
movimento (At 17,28). Quando Ele não me sigas, segundo puderem tuas fracas
te der ocupações, então gozarás de tua forças, auxiliadas pela graça. Parafazê-10
desejada solidão. deves primeiro morrer a todas as inclil
nações de filha de Adão, sem dizer quero
ou não quero, aceito ou recuso, por este
A suma perfeição e santidade ou aquele motivo. Tu ignoras o que te con-
vém, e teu Senhor e Esposo que o sabe e
964. Tudo entenderás melhor na te ama mais do que tu a ti mesma, quer
consideração da nobreza do amor que de cuidar disso, se te entregas toda à sua von-
ti quero, à imitação de meu Filho santís- tade. Só para ama-lo e imitá-lo no padecer
simo, e minha. Umas vezes te recrear ás te dou licença, pois no mais arriscas a te
com Ele em sua infância, noutras acom- separares do seu e meu gosto.
panhando-o em procurar a salvação eterna Isto acontecerá, quando seguires
dos homens ou imitando-o no retiro de sua tua vontade e as inclinações de teus dese-
solidão. Ora, transfigurando-te com Ele jos e apetites. Degola-os e sacrifica-os to-
em nova criatura, ora abraçando as tribu- dos, eleva-te acima de ti mesma, para
lações e a cruz e seguindo seus caminhos habitar com teu Senhor. Atende à luz de
e a doutrina que, como divino Mestre, nela suas influências e à verdade de suas
ensinou. Numa palavra, quero que enten- palavras de vida eterna (Jo 6,69). Para o
das que o meu mais elevado exercício e conseguires, toma tua cruz (Mt 16,24) e
propósito foi imitá-lo sempre, em todas as segue seus passos, após afragrânciade
seus perfumes (Cânt í, 3). Esforça-te em
suas obras. procurá-lo e achando-o não o deixes mais
Nisto consistiu a minha maior (Cânt 3,4).
perfeição e santidade, e nisto quero que
CAPÍTULO 23
MARIA NA AUSÊNCIA DE SEU FILHO. SUAS OCUPAÇÕES
Solidão de Maria COM OS SANTOS ANJOS.
Atos de Maria
965. Com a falta da presença cor- 966. Nestes exercícios ocupou-se
poral do Redentor do mundo, ficaram os a divina Senhora, sozinha em sua casa, du-
sentidos de sua amorosa Mãe como rante os dias em que seu Filho santíssimo
imersos em obscura sombra, por se permaneceu fora.
haver eclipsado o claro sol de justiça que Suas orações eram tão ardentes que
os iluminava e enchia de alegria. Não derramava lágrimas de sangue chorando os
perdeu porém a visão interior de sua pecados dos homens. Fazia todos os dias mais
alma santíssima, nem um só grau da de duzentas genuflexões e prostrações em
divina luz que a envolvia toda, ele- terra. Estimava muito este exercício, e o prati-
vando-a acima do supremo amor dos cou durante toda a vida, como expressão de
mais abrasados serafins. humildade, caridade e de incomparável re-
Na ausência da humanidade san- verência e culto a Deus. Sobre isto falarei
tíssima, suas potências aplicar-se-iam muitas vezes no decurso desta História.
unicamente no incomparável objeto da Com estes atos, ajudava seu Filho
divindade. Por isto, organizou suas tarefas santíssimo e nosso Redentor, quando Ele
de modo que, retirada em sua casa, sem estava ausente.
contato com as criaturas, pudesse entre- Tiveram estas súplicas tanta força e
gar-se ao lazer da contemplação e louvor eficácia junto ao eterno Pai, que pelos méri-
do Senhor. tos desta piedosa Mãe, e por estar Ela no
Completamente entregue a este mundo - a nosso modo de entender - o Se-
exercício, oferecia orações e súplicas para nhor esqueceu os pecados de todos os mor-
que a doutrina e semente da palavra que o tais que então não mereciam a pregação e
Mestre da vida ia semear nos corações hu- doutrina de seu Filho santíssimo. Este obs-
manos, não se perdesse pela dureza da in- táculo foi removido pelos ardentes clamores
gratidão, mas produzisse copioso fruto de e fervorosa caridade de Maria santíssima.
vida eterna e salvação das almas. Foi a medianeira que nos mereceu a graça
Pela ciência que possuía das in- de sermos instruídos por nosso Salvador e
tenções do Verbo humanado, a prudentís- Mestre, e que nos fosse dada a lei do Evan-
sima Senhora abstraiu-se de tratar com gelho pela própria boca do Redentor.
qualquer criatura humana, para o imitar
no jejum e solidão do deserto, conforme Maria e a saudade de Jesus
direi adiante(1). Em tudo, foi vivo retrato
de suas obras, tanto estando Ele presente 967.0 tempo que sobrava à grande
como ausente. Rainha, depois que saía da mais eminente
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Quinto Livro - Capitulo 23
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CAPÍTULO 24
JESUS É BATIZADO POR SÃO JOÃO NAS MARGENS DO
JORDÃO. SAO JOÃO PEDE SER BATIZADO PELO SENHOR.
Jesus dirige-se ao rio Jordão dor e suas circunstâncias tão dignas de
atenção. Não obstante, sucederam real-
974. Deixando nosso Redentor sua mente. Nosso grosseiro esquecimento, tão
amorosa Mãe na pobre casa de Nazaré, mal acostumado a não agradecer os que
sem companhia de criaturas humanas, nos deixaram escritos, menos ainda nos
mas ocupada nos exercícios de ardente leva a meditarmos na imensidade dos fa-
vores que recebemos e naquele amor, sem
caridade, conforme referi(1), prosseguiu o
Senhor em direção ao Jordão. João, o seu falha e sem medida, com que tão copio-
precursor, ali estava pregando (Mt 3,1 e samente nos enriqueceu e que, com tantos
seg.) próximo a Betânia na outra margem vínculos de oficiosa caridade nos quis
dorio,também chamada Betabara. atrair a Si. (Os 11.4).
Saindo de casa, aos primeiros pas- Oh! amor eterno do Unigênito do
Pai! Oh! bem meu e vida de minha alma!
sos, nosso divino Redentor elevou os olhos
Quão mal conhecida e menos agradecida
ao eterno Pai, e com sua ardentíssima cari-
esta vossa ardentíssima caridade! Porque,
dade lhe ofereceu tudo o que novamente em-
preendia a favor dos homens: os trabalhos,Senhor, meu doce amor, tanta fineza, des-
velo e sacrifício por quem não vos faz falta
dores, paixão e morte de cruz que por eles
queria sofrer, em obediência à vontade e ainda não há de corresponder nem aten-
der a favores, como se fossem imaginários
eterna do mesmo Pai; a natural dor que sen-
ou de comédia? Oh! coração humano,
tiu, como verdadeiro e obediente Filho, em
deixar sua Mãe, privando-se da sua doce mais rude e cruel que o das feras! Quem
companhia que gozara por vinte anos. te endurece tanto? Quem te impede, tira-
Caminhava o Senhor das criaturas niza e te faz tão pesado e inerte para não
sozinho, sem aparato, nem comitiva. O su-caminhar ao agradecimento de teu Benfei-
premo Rei dos reis e Senhor dos senhores tor?
(Apoc 19,16) ia desconhecido, sem a es- Oh! triste cegueira do entendi-
tima dos vassalos, tão seus, que só por sua
mento dos homens! Que letargo mortal
vontade tinham recebido a existência e a sofreis! Quem apagou de vossa memória
conservação (Apoc 4,11). Porequipagem verdades tão infalíveis, benefícios tão
levava extrema e suma pobreza. memoráveis e vossa verdadeira felici-
dade? Se somos de carne, e tão sensíveis,
quem nos tornou mais insensíveis e duros
Consideração da Escritora que as pedras inanimadas? Como não des-
pertamos e não recuperamos algum sen-
975. Os sagrados Evangelistas tido, com os clamores dos benefícios de
Passaram em silêncio estes atos do Salva- nossa Redenção? A palavra de um Profeta
1-971
143
Quinto Livro - Capítulo 24
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Quinto Livro - Capítulo 24
Batismo que, em virtude de seus méritos, tismo; ouviu e entendeu a voz do Pai) e
havia de tirar os pecados do mundo. conheceu outros mistérios dessa visão e
Humilhando-se a receber, antes de revelação.
todos, o Batismo das culpas, pediu e al- Além de tudo isto, foi batizado
cançou do eterno Pai, o perdão total para pelo Redentor. O Evangelho só diz qUe 0
todos os que o recebessem (1 Ped 3, 21). Batista o pediu (Mt 3,14), mas não nega
Seriam libertados da tirania do demônio e que o recebeu.
do pecado, sendo regenerados em novo ser Cristo, nosso Senhor, depois de ter
espiritual e sobrenatural, como filhos ado- recebido o batismo, conferiu-o a seu P re .
tivos do Altíssimo e irmãos de seu Reden- cursor. Ainda que o tivesse instituído nes-
tor, Cristo Senhor nosso. ta ocasião, só promulgou e ordenou seu
Os pecados dos homens, passados, uso geral mais tarde, após sua ressurreição
presentes e futuros, todos conhecidos pela (Mt 28,19; Mc 16,15).
sabedoria do eterno Pai, desmereciam este Como adiante direi1 batizou tam-
remédio tão suave e fácil, mas Cristo nos- bém sua Mãe santíssima antes dessa
so Senhor o mereceu por justiça, para que promulgação, na qual ordenou a forma
a equidade do Pai o aceitasse e se desse desse Sacramento.
por satisfeito. Isto, não obstante, saber que Assim, entendi que São João foi o
muitos dos mortais não se aproveitariam primogênito do Batismo de Cristo nosso
do Batismo recebido, e outros inumerá- Senhor e da nova Igreja que fundava sob
veis não o aceitariam. este Sacramento. Por ele, o Batista rece-
Todos estes impedimentos e óbi- beu o caráter de cristão e grande graça,
ces dos que iam desmerecer tal sacra- ainda que não tivesse pecado original a ser
mento, Cristo nosso Senhor removeu e perdoado, pois dele já fora justificado pelo
satisfez pelo mérito de se humilhar a re- Redentor antes de nascer, como fica dito
ceber o Batismo na aparência de pecador, em seu lugar^.
(Rom 8,3) sendo inocente. Por aquelas palavras que lhe disse o
Todos estes mistérios estavam en- Senhor - deixa agora, que convém cumprir
cerrados naquelas palavras que disse ao toda a justiça - não lhe negou o batismo, mas
Batista (Mt 3,15): Deixa agora, pois as- adiou-o para depois que o próprio Redentor
sim convém cumprir toda a justiça. fosse batizado em primeiro lugar e assim se
Para acreditar o Verbo humanado, cumprisse toda a justiça. Depois que o bati-
recompensar sua humildade e aprovar o Ba- zou, Jesus deu-lhe a bênção, e em seguida
tismo e seus efeitos, desceu a voz do Pai, e retirou-se ao deserto.
a pessoa do Espírito Santo (Mt 16,17), e
Cristo foi declarado Filho de Deus ver-
dadeiro. Assim se manifestaram as três Pes- Atos de Maria na ocasião do Batismo
soas em cujo nome seria conferido o Batismo. de Cristo
982. Volto agora a falar de nossa
Cristo batiza o Precursor grande Rainha e Senhora. Logo que seu
Filho santíssimo foi batizado, ainda que
981. O grande João Batista foi o tinha luz divina de suas ações, foi infor-
mais agraciado por esses prodígios e seus mada pelos santos anjos que assistiam o
efeitos. Batizou seu Redentor e Mestre; Senhor, de tudo quanto acontecera no
viu o Espírito Santo; o globo da luz celeste Jordão. Estes anjos eram daqueles que le-
que desceu sobre Jesus com inumerável vavam os distintivos da paixão do Salva-
multidão de anjos que assistiam seu ba- dor, conforme disse na primeira parte
4-n°1030eseg - 5 - n° 218, visitação - 6 - 1 ' p "* 3
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Quinto Livro - Capítulo 24
147
CAPÍTULO 25
DEPOIS DO BATISMO, CJRISTO DIRIGE-SE AO DESERTO,
ONDE VENCE NOSSOS VÍCIOS COM SUAS VIRTUDES. SUA
MÃE SSMA. O IMITA PERFEITAMENTE,
Cristo combate para nos obter vitória tíssima ao combate da tentação e dissimu-
lando, para isto, a superioridade que pos-
985. Com o testemunho que a suía sobre os inimigos invisíveis.
suma Verdade apresentara no Jordão, so-
bre a divindade de Cristo, nosso Senhor e
Mestre, ficou tão credenciada sua pessoa Cristo vence o mundo, a carne e o
e a doutrina que havia de pregar, que logo demônio
pôde começar a ensiná-la e a se dar a co-
nhecer. Confirmada pelos seus milagres, 986. Pelo seu retiro, Cristo nosso
obras e vida, todos poderiam reconhece-lo Senhor venceu e nos ensinou a vencer o
como Filho, por natureza, do eterno Pai, mundo. É verdade, que este costuma ig-
pelo Messias de Israel e Salvador do norar aos que não necessita para fins ter-
mundo. renos, e se não o procuram, também não
Com tudo isso, não quis o Mestre vai atrás deles. Contudo, aquele que ver-
da santidade começar a pregação, nem ser dadeiramente despreza o mundo há de de-
reconhecido por nosso Redentor, sem an- monstrar, afastando-se dele, o quanto for
tes triunfar de nossos inimigos - mundo, possível, pelos afetos e pelos atos.
carne, demônio - a fim de que pudéssemos Cristo venceu também a came, e
vencer os enganos por eles sempre for- ensinou-nos a vencê-la pela penitência de
jados. Com suas heróicas virtudes, Jesus tão prolongado jejum, com que afligiu seu
nos daria as primeiras lições da vida cristã corpo inocentíssimo que não oferecia
e espiritual, enviando-nos a combater e a oposição ao bem, nem tinha paixões incli-
vencer por suas vitórias. Com estas, foi o nadas ao mal.
primeiro a quebrantar a força destes co- Ao demônio venceu com a dou-
muns inimigos, a fim de que nossa fra- trina da verdade, como direi adiante^,
queza os encontrasse debilitados, anão ser pois todas as tentações deste pai da men-
que por nossa própria vontade quisés- tira, costumam vir disfarçadas e encober-
semos restituir-lhes a força. tas com falsidades.
Enquanto Deus, Jesus era infini- Em começar a pregação e se dar a
tamente superior ao demônio. Enquanto conhecer ao mundo, não antes e sim de-
homem, não tinha pecado (1 Ped 2, 22), pois destas vitórias, nosso Redentor nos
nias suma santidade e domínio sobre todas ofereceu outro ensinamento: alertou-nos
as criaturas. Não obstante, quis como do perigo que corre nossa fragilidade, em
homem santo e justo, vencer os vícios e acolher as honras do mundo, ainda que
s e u aut°r, expondo sua humanidade san- seja por favores recebidos do céu, quando
1 -n°997
Quinto Livro - Capitulo 25
ainda não estamos mortos às paixões e não mas vezes, nestas súplicas suava sangue
vencemos ainda nossos comuns inimigos. pela razão que direi quando falar de sua
Se o aplauso dos homens nos encontra oração no jardim das oliveiras.
imortificados, vivos, abrigando no íntimo
os inimigos domésticos, pouca segurança
terão os favores e benefícios do Senhor. Saudação dos animais
Até os mais pesados montes podem ser
abalados pela vangloria do mundo. 988. Muitos animais silvestres vi¬
A nós compete convencer-nos de nham ao encontro de seu Criador, quando
que levamos o tesouro em recipientes que- andava por aqueles campos. Com ad-
bradiços (2 Cor 4,7). Quando Deus quiser mirável instinto o reconheciam e corno
exaltar a força de sua graça em nossa que o saudavam com seus bramidos e
fraqueza, Ele saberá com que meios há de movimentos. Muito mais expansivas fo-
assegurar e ostentar suas obras. A nós in- ram as aves que vieram em grandes ban-
cumbe e pertence unicamente a sombra e dos. Com belos gorjeios o festejavam e, a
o apagamento. seu modo, agradeciam-lhe por te-las fa-
vorecido com sua companhia, santifi-
cando aquele êrmo com sua real e divina
Cristo chega ao deserto presença.
Começou Jesus o jejum, sem co-
987. Depois que se despediu do mer coisa alguma nos quarenta dias que
Batista no Jordão, Cristo prosseguiu em ali esteve. Ofereceu-o ao Pai em reparação
direção ao deserto sem deter-se no dos vícios e desordens que os homens
caminho. Ia acompanhado apenas pelos cometem pela gula, vício tão baixo mas
anjos que o serviam como a Rei e Senhor, tão aceito e até exaltado no mundo, sem
louvando-o com cânticos, pelo que ia re- nenhum acanhamento. Do mesmo modo,
alizando a favor da salvação da natureza Cristo nosso Senhor venceu todos os ou-
humana. tros vícios e compensou as injúrias feitas
Chegou ao lugar que havia esco- ao supremo Legislador e Juiz dos homens.
lhido (Lc 4,1). Era uma região desabitada Segundo compreendi, nosso Sal-
entre penhascos áridos. Entre estes havia vador assumiu o ofício de pregador e mes-
uma gruta escondida que Ele escolheu tre, tomou-se redentor e mediador junto
para pousar, nos dias de seu santo jejum. ao Pai, venceu todos os vícios dos mortais
Prostrou-se em terra e apegou-se a ela com e reparou suas ofensas, com o exercício
prudentíssima humildade. Era sempre das virtudes opostas ao mundo. Pelo jejum
esta a introdução que Ele e sua Mãe san- reparou nossa gula, e ainda que o praticou
tíssima usavam para começar a orar. durante toda sua vida santíssima com ar-
Adorou o eterno Pai; deu-lhe dente caridade, destinou para este fim,
graças pelas obras de seu poder, e por lhe especialmente, os atos de infinito valor
ter proporcionado aquele lugar e solidão deste jejum no deserto.
apropriada para seu retiro. Ao deserto
agradeceu por recebe-lo e escondê-lo do
mundo, durante o tempo que convinha Pelas virtudes, Cristo reparou nossos
estar assim. vícios
Continuou Jesus sua oração em
posição de cruz, e esta foi a sua mais fre- 989. Semelhante a bondoso pai de
qüente ocupação no deserto, pedindo ap muitos filhos delinqüentes, merecedores
eterno Pai pela salvação humana. Algu- de horrendos castigos, que vai oferecendo
Quinto Livro - Capítulo 25
seus bens para satisfazer por todos e livrá- Logo que a grande Senhora soube
los das penas que deveriam sofrer, assim, que nosso amado Salvador dirigia-se para
nosso amoroso Pai e Irmão Jesus, pagava o deserto e a intenção que o levava, fe-
nossas dividas: em desagravo de nossa so- chou-se em casa. Foi tal o seu retiro, que
berba, ofereceu sua profundíssima hu- até os vizinhos pensaram que se havia
mildade; para compensar nossa avareza, a ausentado como seu Filho santíssimo.
nobreza voluntária e o despojamento de Recolheu-se ao seu oratório e ali permane-
qualquer propriedade; pelos torpes praze- ceu quarenta dias e quarenta noites, sem
res humanos, ofereceu sua penitência e sair e sem comer coisa alguma, como sabia
austeridade; pela ira e vingança, sua man- estar fazendo seu Filho santíssimo. Am-
sidão e caridade com os inimigos; por bos guardaram o jejum na mesma forma
nossa preguiça e lentidão, sua diligentís- e rigor.
sima solicitude; e pelas falsidades e inve- Acompanhou o Senhor nos demais
jas dos homens, oferecia sua leal e cândida atos, sem deixar nenhum: orações, súpli-
sinceridade, veracidade, doçura e amor no
trato com o próximo.
Deste modo, ia aplacando o justo
Juiz e solicitando o perdão para os filhos
desnaturados e desobedientes. Não só al-
cançou-lhes perdão, mas ainda mereceu-
lhes nova graça, dons e auxílios para nos
conquistar sua eterna companhia, a visão
do Pai e a participação na herança de sua
glória por toda a eternidade.
Teria podido conseguir tudo isto
com o menor de seus atos, como nós
teríamos feito em seu lugar. Ele, porém,
transbordou seu amor em tantas provas,
para que nossa ingratidão e dureza não
tivessem desculpa nenhuma.
juntos, depois conhecia por visão intelec- propensão, arrastam a alma de um víCl
tual ou por informação dos santos anjos. para outro. Se, porém, refreia-se esta fer
com o freio da mortificação e penalidades
tira-se-lhe a tirania, enquanto a razào e
Maria, corredentora e medianeira luz da verdade passam a ser superiores
O segundo motivo é porque ne-
991. Enquanto esteve no deserto, nhum dos mortais deixou de pecar contra
nosso Salvador fazia trezentas genu- Deus. A culpa, necessariamente, exige a
flexões e prostrações por dia, e em seu pena e castigo, nesta ou na outra vida
oratório a Rainha Mãe as repetia. O tempo Visto que corpo e alma pecam juntos, p 0r
que lhe sobrava, preenchia-o ordinaria- retajustiça ambosdevem serpunidos, Não
mente em fazer cânticos com os anjos, basta a dor íntima, se a carne foge de pade-
como disse no capítulo passado^. cer a pena que lhe compete. Como a dívida
Nesta imitação de Cristo, nosso é grande, e limitada é a satisfação do réu
Senhor, a divina Rainha cooperou em to- ainda que faça muito durante toda a vida
das as orações do Salvador. Alcançou as não deve descansar até o fim dela, pois
mesmas vitórias sobre os vícios e, na res- não sabe se já terá satisfeito o juiz.
pectiva medida, os reparou com suas he-
róicas virtudes.
Visto isso, se Cristo, como nosso Exemplo de Cristo e Maria
Redentor nos mereceu tantos bens e pagou
nossas dívidas condignissimamente, Ma- 993. Imensamente liberal é a
ria santíssima, sua coadjutora e Mãe divina clemência com os homens. Se se
nossa, interpôs sua misericordiosa inter- prontificam a reparar seus pecados com a
cessão junto a ele, e foi medianeira, na pouca penitência que podem, o Senhor se
medida possível a uma pura criatura. dá por satisfeito das ofensas recebidas, e
ainda obriga-se, por sua palavra, a lhes dar
DOUTRINA QUE ME DEU A novos dons e recompensas.
MESMA RAINHA E SENHORA Apesar disto, os servos prudentes
NOSSA. efiéisque verdadeiramente amam a seu
Senhor, devem procurar acrescentar livre-
mente outras obras. O devedor que só
Pecado e reparação cuida em saldar as dívidas, ficará pobre e
sem bens, se nada sobrar e se não tratar de
992. Minha filha, as obras de mor- fazer novas aquisições. Assim sendo, que
tificação corporal são próprias e legítimas deverão esperar os que nem pagam, nem
das criaturas mortais. A ignorância desta fazem nada para isso?
verdade, o esquecimento e desprezo da O terceiro motivo que deveria es-
obrigação de abraçar a cruz, têm perdido timular mais as almas, é a imitação e
a muitas almas, e a outras põem no mesmo seguimento de seu divino Mestre e Se-
perigo. O primeiro motivo que obriga os nhor. Sem termos culpas e paixões, Ele e
homens a afligir e mortificar a carne, é eu nos sacrificamos ao trabalho, e toda
terem sido concebidos em pecado (SI 50, nossa vida foi contínua mortificação da
7). carne. Convinha que, por este caminho, o
Por este, toda a natureza humana Senhor entrasse na glória (Lc 24,26) de
ficou depravada, as paixões rebeldes à seu corpo e de seu nome, e que eu o
razão, inclinadas ao mal e opostas ao seguisse em tudo. Se houve razão pai*8
espírito (Rom 7, 23). Deixadas à sua agirmos assim, qual é a dos homens em
2-tf 982
Quinto Livro - Capítulo 25
procurar outro caminho, em vida suave, Deus, se não o recebessem das de meu
cômoda, de prazer e deleite? Porque de- Filho santíssimo. Se isto é verdade a res-
testam e fogem de todas as penas, afron- peito das obras inteiramente virtuosas e
tas, ignomínias, jejuns e mortificações? perfeitas, que será das que levam consigo
Foram elas só para Cristo e para mim, tantas falhas e imperfeições? Mesmo em
enquanto os réus, devedores e merece- matéria de virtude, os mais espirituais e
dores das penas ficam no descanso, en- justos têm muito que suprir e emendar em
tregues às feias inclinações da carne? As suas obras.
capacidades que receberam para empre- Que se dirá das demais que levam
gar no serviço de Cristo, meu Senhor, consigo tantas falhas e defeitos? Todas
deverão ser aplicadas no obséquio de estas lacunas foram preenchidas pelas
seus deleites e do demônio que as sus- ações de Cristo, meu Senhor, para que o
cita? Este absurdo, tão comum entre os Pai as recebesse como se fossem de seu
filhos de Adão, irritam muito a indig- Filho. Quem não procura fazer algumas,
nação do justo Juiz. mas vive ocioso, tampouco pode aplicar-
se as de seu Redentor, pois estas não terão
o que completar e aperfeiçoar, mas sim
Os atos de Cristo conferem valor aos muito para condenar.
nossos Não te falo agora, minha filha, do
execrável erro de alguns fiéis que fazem
994. Verdade é, minha filha, que penitência por sensualidade e vaidade
as penas e aflições de meu santíssimo mundana. Estes merecem maior castigo
Filho compensaram a deficiência dos pela penitência do que por outros pecados,
méritos humanos. De minha parte, como pois ligam às obras penais fins vãos e im-
pura criatura e como que substituindo to- perfeitos, esquecendo os sobrenaturais,
das as demais, também cooperei com Ele, que são os que dão méritos à penitência e
pela imitação perfeita em suas penas e ex- vida da graça à alma.
ercícios. Isto, porém, não teve a finalidade Noutra ocasião, se for necessário,
de dispensar os homens da penitência, an- falar-te-ei sobre isto. Agora, fica adver-
tes foi para encorajá-los a ela. Não seria tida para chorar tal cegueira, e instruída
necessário padecer tanto, só para satis- para trabalhar, mesmo que fosse o tanto
fazer por eles. Como verdadeiro pai e ir- que trabalharam os Apóstolos, mártires e
mão, quis também meu Filho santíssimo confessores. Castiga teu corpo, progre-
conferir valor às obras e penitências dos dindo sempre, e adhando que ainda falta
que o seguissem, pois as ações das cria- muito, pois a vida é breve e tu muito in-
turas seriam de pouco valor aos olhos de capaz de pagar o que deves.
153
Quinto Livro - Capítulo 25
CAPÍTULO 26
f RISTO PERMITE SER TENTADO POR LÚCIFER, DEPOIS
DO JEJUM. O SENHOR O VENCE, E SUA MAE SSMA. TEM
v NOTICIA DO QUE SE PASSOU.
Lúcifer aproxima-se de Cristo disse Lúcifer: Que homem é este, tão
severo para com os vícios dos quais nos
995. No capítulo 20 deste livro^, valemos para tentar os outros? Se está tão
foi dito como Lúcifer saiu das cavernas alheio ao mundo, tão mortificado e senhor
infernais à procura de nosso divino Mestre de sua carne, por onde entraremos a tentá-
para tentá-lo, e que o Senhor dele se ocul- lo? Como esperar vitória, se nos privou
tou até ir ao deserto onde, pelo fim do je- das armas com que fazemos guerra aos
jum de quarenta dias, permitiu que o ten- homens? Desconfio muito desta batalha.
tador se aproximasse, como diz o Evan- Tanto assim vale e tanta força tem
gelho (Mt 4,2). o desprezo das coisas terrenas e o domínio
Chegou ao deserto o Maligno e da carne, que aterroriza ao demônio e a
vendo sozinho a quem procurava, alvo- todo o inferno. Sua soberba não cresceria
roçou-se muito ao verificar que estava tanto, se antes de chegar a tentá-los não
sem sua Mãe santíssima, a quem Ele e seus encontrasse os homens já sujeitos a estes
ministros das trevas, chamavam "ini- infelizes tiranos.
miga" pelas derrotas que d'Ela haviam
sofrido. Como não haviam entrado em
combate com nosso Salvador, presumia a Oração de Cristo
soberba do dragão que, ausente a Mãe san-
tíssima, a vitória sobre o Filho seria certa. 996. Cristo, nosso Salvador, quis
Chegando, porém, a conhecer de deixar Lúcifer no engano de O julgar puro
perto o combatente, sentiram grande homem, ainda que justo e muito santo,
temor e covardia. Não o reconheceram para que reforçasse sua astúcia e malícia
como Deus verdadeiro, nem disso suspei- para a batalha, como costuma fazer
tavam, vendo-o tão só e humilde. Também quando reconhece tais vantagens nos que
não tinham ainda medido forças com Ele, deseja tentar.
mas só com a. divina Senhora. Apesar de Encoraj ando-se o dragão com a
tudo, ao vê-lo tão tranqüilo, com sem- própria arrogância, começou o mais forte
blante tão cheio de majestade, praticando duelo que jamais se vira nem será visto no
atos tão perfeitos e heróicos, foram toma- mundo, entre homens e demônio. Enfure-
dos de grande medo. cidos pela virtude superior que reco-
Aquele proceder e virtude não nheciam em Cristo, nosso Senhor, Lúcifer
eram como os dos outros homens a quem e seus aliados empregaram todo seu poder
tentavam e venciam tão facilmente. Con- e malícia, não obstante Jesus ter moderado
ferindo a situação com seus ministros, seus atos com suma sabedoria, ocultando
155
Quinto Livro - Capítulo 26
156
Permitiu-lhe o Senhor que prosseguisse e Lúcifer nunca pôde* oferecer bem
o levasse a Jerusalém, onde o colocou so- algum que lhe pertencesse, ainda dos bens
bre o pináculo do templo, donde se avis- terrenos e temporais, pelo que são falsas
tava grande número de pessoas, sem ser todas as suas promessas.
visto por elas. A esta que fez a nosso Rei, respon-
Propôs-lhe Lúcifer que se o vissem deu o Senhor com império e força: Retira-
cair de tão alto, sem sofrer lesão alguma, te, Satanás, pois está escrito: A teu Deus
o teriam por extraordinário e santo. E, va- e Senhor adorarás e só a Ele servirás (Dt
lendo-se também da Escritura, disse: Se 6,31).
és o Filho de Deus, lança-te daqui para Ao dizer, retira-te Satanás, Cristo
baixo, pois está escrito (SI 90,11): os anjos nosso Redentor tirou ao demônio a per-.
te levarão nas mãos, como lhes ordenou missão que lhe dera para o tentar, e com
Deus, para nada sofreres. seu poder precipitou Lúcifer e suas
Acompanhavam seu Rei os santos quadrilhas no mais profundo do inferno.
anjos, admirados da permissão divina em Ali ficaram como que colados e amarra-
se deixar levar corporalmente por Lúcifer, dos nas mais profundas cavernas, por
só pelo bem que disso resultaria para os espaço de três dias, sem se poderem
homens. Com o príncipe das trevas foram mover.
inúmeros demônios, e nesse dia o inferno Quando lhes foi permitido se le-
ficou quase sem nenhum. vantar, sentiram-se tão abatidos que
Respondeu o Autor da sabedoria começaram a suspeitar se Aquele que os
(Mt 4,7): Também está escrito: Não ten- vencera não seria o Filho de Deus feito
tarás ao Senhor teu Deus (Dt 6, 16). O homem. Continuaram com estes receios e
Redentor do mundo dava essas res- dúvidas, sem atinar com a verdade, até a
postas com incomparável mansidão, morte do Salvador. Despeitado com o mau
profundíssima humildade e inalterável êxito da demanda, Lúcifer se consumia no
majestade. Esta grandeza e serenidade próprio furor.
perturbou a feroz soberba de Lúcifer e
lhe serviu de novo tormento e opressão.
Jesus volta ao deserto e é servido
pelos anjos
Terceira tentação: ambição
1000. Nosso divino triunfador,
999. Apesar disso, forjou outro Cristo, enalteceu o eterno Pai com cânti-
novo expediente para atacar o Senhor do cos de louvores e ação de graças, pela
mundo pela ambição, oferecendo-lhe al- vitória que lhe havia concedido sobre o
guma parte do seu domínio. Levou-o a um comum inimigo do gênero humano.
alto monte donde se avistavam muitas ter- Grande multidão de espíritos ce-
ras, e com pérfido atrevimento, lhe disse: lestes cantaram-lhe a vitória e foi trazido
Todas estas coisas te darei, se prostrado de volta ao deserto, nas mãos deles,
em terra me adorares (Mt 4,9). ainda que seu poder não tinha necessi-
Exorbitante arrogância, mentirosa dade disso. Era-lhe, porém, devido
insânia e traidora proposta! Ofereceu o aquele obséquio angélico, em reparação
que não possuía e não podia dar a nin- da audácia de Lúcifer, em levar ao
guém. A terra, as orbes, os reinos, princi- pináculo do templo e ao monte, aquela
pados, tesouros e riquezas, tudo é do Se- humanidade santíssima à qual estava
nhor que os dá e os tira a quem e quando ' unida a divindade, substancial e ver-
quer e convém. dadeiramente.
157
Se o Evangelho não o dissera, não tosos movimentos e bramidos em horne
poderia vir ao pensamento humano que nagem a seu Senhor.
Cristo nosso Senhor tivesse dado tal per-
missão a Satanás. Entretanto, não sei qual
seja a causa de maior admiração para nós: Participação de Maria no jejum de
ser levado de um lugar para outro por Cristo
Lúcifer, ou ser vendido por Judas, ou dei-
xar-se receber sacramentado por aquele 1001. Voltemos à Nazaré, ao
mau discípulo e por tantos cristãos pe- oratório da Princesa dos Anjos. Ali es-
cadores que, conhecendo-o por Deus e tivera atenta às lutas de seu Filho santís-
Senhor, o recebem tão injuriosamente. simo, vendo-as por divina luz, como tenho
O que certamente nos deve admi- dito, e recebendo ao mesmo tempo con-
rar é que tenha permitido, e continue a per- tínuas embaixadas pelos seus anjos que
mitir, tanto uma como outra coisa, tudo iam e voltavam de seu oratório ao seu
por amor de nosso bem, a fim de atrair-nos Filho no deserto.
a Si pela mansidão e paciência de seu Fez a divina Senhora as mesmas
amor. orações, e no mesmo tempo que o seu
Ohí dulcíssimo Senhor! Que Filho santíssimo, antes de entrar no com-
suave, benigno e misericordioso sois para bate da tentação. Pelejou também com o
as almas (Joel 2,13)! Descestes do céu à dragão, ainda que invisivelmente. Do seu
terra por amor a elas, pela sua salvação retiro anatimatizou Lúcifer e seus se-
sofrestes e destes a vida. Com mise- quazes, abateu-os e cooperou em tudo
ricórdia as esperais; tolerando-as as com os atos de Cristo Senhor a nosso fa-
chamais, procurais e recebeis; entrais em vor.
seu peito, sois todo para elas e as desejais Quando viu que o demônio levava
para Vós. O que me traspassa o coração é o Senhor de um lugar para outro, chorou
que, atraindo-nos com verdadeiro afeto, amargamente por causa da malícia do pe-
fugimos de vós e a tão grande fineza, cor- cado, que obrigava ao Rei dos reis e Se-
respondemos com ingratidões! nhor dos senhores a permitir tal coisa. A
Oh! imenso amor de meu suave todas as vitórias que ele obtinha sobre o
Senhor, tão mal pago e agradecido! Dai, demônio, fazia novos cânticos de louvor
Senhor, lágrimas a meus olhos para chorar à divindade e humanidade santíssima.
coisa tão merecedora de ser lamentada, e Foram estes cânticos que os Anjos
nisto ajudem-me todos os justos da terra. cantaram ao Senhor. Pelos mesmos anjos,
Jesus, voltando ao deserto, diz o a grande Rainha enviou parabéns ao Filho,
Evangelho (Mt 4, 11), foi servido pelos pelo triunfo obtido e pelo benefício que
anjos. fazia a todo gênero humano. Por meio dos
Terminado o jejum e as tentações, celestes embaixadores, Jesus também a
serviram-lhe um manjar celestial, e tendo consolou e felicitou por haver participado
comido este milagroso alimento, recobrou em suas lutas com Lúcifer.
as forças naturais de seu sagrado corpo.
Não só os anjos assistiram esta refeição,
felicitando-o, mas também as aves daque-
le deserto vieram recrear os sentidos de Recompensa da Virgem
seu Criador humanado, com harmoniosos 1002. Como fôra companheira fiel
cânticos e graciosos vôos. O mesmo fize- no sacrifício e no jejum, era justo que o
ram, a seu modo, os animais do monte, fosse na recompensa. Enviou-lhe o anian-
depondo sua ferocidade e fazendo amis- tíssimo Filho, da comida que os Anjos lhe
Quinto Livro - Capítulo 26
trouxeram, ordenando-lhes que lhe servis- Senhor, vos faltava o comum alimento ter-
sem- restre.
Coisa admirável: grande número Chamei-o manjar celestial, porque
das aves que festejavam o Senhor, segui- não achei outros termos para me explicar,
ram os Anjos a Nazaré, embora com vôo e não sei se estes são apropriados, pois não
menos rápido que o deles, chegaram e en- conheço a origem e espécie dessa comida.
traram na casa da grande Rainha e Senhora Julgo que no céu não existem manjares
do céu e da terra. Quando estava comendo para alimentar os corpos, pois lá não será
a refeição que o Filho lhe enviara pelos necessário este modo terreno de se susten-
anjos, apresentaram-se com os mesmos tar. Ainda que os bem-aventurados te-
gorjeios que haviam feito na presença do nham, pelos sentidos, o gozo de algum ob-
Salvador. jeto deleitável e sensível, e também o gos-
Comeu a divina Senhora aquele to sinta algum sabor, não será através de
manjar celeste, ainda melhorado por ter comida, mas da redundância da glória da
passado pelas mãos de Cristo, e abençoa- alma no corpo e seus sentidos. Por ad-
do por Ele. Com este alimento recuperou- mirável modo, cada um gozará segundo
se do longo jejum, e agradeceu ao Todo- sua capacidade sensitiva, sem a imper-
poderoso humilhando-se até a terra. feição e grosseria que tem agora nas ope-
Foram tais e tão numerosos os rações e objetos da vida mortal.
heróicos atos de virtude que praticou esta Em tudo isto, desejo, como igno-
grande Rainha, durante o jejum e as ten- rante, ser instruída por vossa piedosa e
tações de Cristo, que não é possível re- matemal dignação.
duzir a palavras o que excede nossa ca-
pacidade. Vê-lo-emos no Senhor quando
O gozarmos, e então lhe daremos a glória Resposta de Maria
e louvor que a hnhagem humana lhe deve 1004. Minha filha, tua dúvida é
por favores tão inefáveis. justa. É verdade, conforme disseste, que
no céu não há manjares materiais. O man-
PERGUNTA QUE FIZ À RAINHA jar que os anjos serviram a meu Filho san-
DO CÉU MARIA SANTÍSSIMA. tíssimo e a mim, na ocasião que descre-
veste, corretamente o chamas celestial. Eu
é que te inspirei esta expressão, porque as
Pergunta da Escritora propriedades daquele alimento eram do
céu e não da terra, onde tudo é grosseiro,
1003. Rainha dos céus e Senhora muito material e limitado. Vou explicar-te
do universo, a dignação de vossa clemên- a natureza daquele manjar e o modo como
cia inspira-me confiança para, como a o formava a divina Providência.
Mãe e mestra, vos propor uma dúvida que Quando sua dignação dispunha
me ocorreu, ao escrever este e outros alimentar-nos com esta comida, para su-
capítulos. prir a falta de outra, nô-la enviava mila-
Por vossa divina luz e ensina- grosamente pelos santos anjos. Para for-
mento, conheci o manjar celestial que os má-la, usava de alguma coisa material,
santos anjos serviram a nosso Salvador no mais comumente de água, por sua
deserto. Penso que seria igual a outros que, claridade e simplicidade, e porque para
conforme entendi e escrevi, foram servi- estes milagres o Senhor não quer coisas
dos ao Senhor e a vós em algumas muito complexas. Outras vezes, man-
ocasiões em que, por permissão do mesmo dava-nos pão e algumas frutas. A
Quinto Livro - Capítulo 26
qualquer destas coisas dava o poder divino Acabo de esclarecer tua dúvida
tal virtude e sabor que excedia, como o Agora presta atenção à doutrina perten,
céu da terra, a todos os manjares, regalos cente a este capítulo.
e sabores da terra. Nesta, nada se encontra
que sirva de comparação, pois tudo é sem
virtude e insípido, ao lado deste manjar do Cristo vence o demônio e o pecado
céu.
Para entenderes melhor, ajudarão 1006. Para melhor se entender 0
os exemplos seguintes: Primeiro, o pão que nele escreveste, quero que advirtas o$
subcinerício (3 Rs 19,6) dado a Elias, e três motivos que, entre outros, levaram
que possuía tal virtude que o fortaleceu meu Filho santíssimo a travar combate
para caminhar até o monte Horeb. Segun- com Lúcifer e seus ministros infernais.
do, o maná, chamado pão dos anjos (SI 77, Esta compreensão te dará maior luz e força
25), porque estes o preparavam do vapor contra eles. O primeiro motivo foi destruir
da terra (Ex 16,14; Num 11,7; Sab 16, o pecado e sua semente que, pela queda
20,21). Condensado, caía sob a forma de de Adão, o inimigo semeou na natureza
grãos, tinha toda a diversidade dos sabores humana. Esta semente consiste nos sete
e extraordinária propriedade para alimen- vícios capitais - soberba, avareza, luxúria
tar o corpo. O terceiro exemplo, é o mila- e os outros - que são como as sete cabeças
gre que meu Filho santíssimo realizou nas do dragão.
bodas de Caná: converteu a água em Como disseste na primeira par-
vinho, dando-lhe tão excelente sabor que te^,Lúcifer destinou, para cada um des-
provocou a admiração dos que o provaram tes pecados, um esquadrão de demônios
(Jo 2,10). com seu respectivo chefe. Assim, nesta
perversa ordem e com as armas desses
pecados, tentam e fazem guerra aos
Alimentos miraculosos homens. Em oposição, meu Filho san-
tíssimo, com o poder de suas virtudes,
1005. Deste modo, o poder divino entrou em combate, venceu e deixou en-
dava virtude sobrenatural à água, ou a fraquecidos todos os príncipes das tre-
transformava em licor suavíssimo; o vas. Ainda que o Evangelho mencione
mesmo fazia ao pão ou fruta, deixando-os apenas três tentações, por terem sido as
mais espiritualizados, Esta comida ali- mais visíveis, a batalha e o triunfo foram
mentava o corpo e deleitava os sentidos, muito mais longe. Cristo, meu Senhor,
deixando a fraca natureza humana for- derrotou a todos esses chefes diabólicos
talecida, ágil e pronta para os trabalhos e seus vícios.
penosos, e isto sem fastio nem gravame Venceu a soberba com sua humil-
do corpo. Desta espécie foi a comida que dade, a ira com sua mansidão, a avareza
os anjos serviram a meu Filho santíssimo com o desprezo das riquezas, e por este
depois do jejum, e que em outras ocasiões modo, os outros vícios e pecados capitais
recebemos, e da qual participava também Maior ainda foi a derrota e desalento
meu esposo José. desses inimigos quando, ao pé da cruz,
A alguns outros seus servos e ami- conheceram que era o Verbo humanado
gos o Senhor mostrou esta liberalidade, que os tinha vencido. Por isto, como dira>
deliciando-os com semelhantes manjares, adiante, duvidaram muito poder entrarem
ainda que não tão freqüentes, nem com combate com os homens, se estes sou-
tantas circunstâncias miraculosas como bessem aproveitar-se da força e vitonw
sucedia conosco. de meu Filho santíssimo.
3-n°l03
160
Quinto Livro - Capítulo 26
161
••*t<».
162
CAPÍTULO 27
JESU§ DEIXA O DESERTO, VOJTA ONDE ESTAVA SÃO
JOÃO, TRABALHA NA JUDEIA ATÉ CHAMAR OS
PRIMEIROS DISCÍPULOS. MARIA SSMA. O IMITA EM
TUDO.
Cristo deixa o deserto Testemunho de São João Batista
1009. Cristo nosso Redentor pre- 1010. O divino Mestre dirigiu seus
enchera perfeitamente os ocultos e altos formosos passos para o Jordão, onde seu
fins de seu jejum e retiro no deserto: o tri- grande precursor João continuava a bati-
unfo sobre o demônio e sobre todos os zar e pregar, a fim de que, em sua presença,
vícios. o Batista desse novo testemunho de sua
Deixou, então, o deserto para divindade e de seu ministério de Redentor.
prosseguir a missão que seu eterno Pai Jesus quis também satisfazer o de-
lhe encomendara, a redenção humana. sejo de São João em vê-lo e falar-lhe no-
Para se despedir daquele êrmo, pros-
trou-se em terra, adorando e dando
graças a seu eterno Pai, por tudo o que
ali realizara em sua humanidade santís-
sima, para a glória da divindade e bem
da linhagem humana.
Fez fervorosa oração e súplica por
todos aqueles que, imitando-o se retiras-
sem por algum tempo ou por toda a vida
à solidão, para seguir seus passos, dedi-
cando-se à contemplação e exercícios de
devoção, afastados do mundo e de seus
embaraços.
O altíssimo Senhor prometeu fa-
vorece-los, falar-lhes ao coração (Os 2,
14) e conceder-lhes especiais graças e
bênçãos de doçura (SI 20,4) se eles, de
sua parte, se dispusessem para recebe-
las e a elas correspondessem. Feita esta
oração, como verdadeiro homem, pe-
diu licença ao Senhor, para deixar
aquele deserto e partir acompanhado
pelos anjos.
163
Quinto Livro - Capítulo 27
vãmente. Da primeira vez que o vira e ba- Em vista de tudo isto, quand
tizara, o coração do santo Precursor ficara nosso Salvador voltou do deserto e, pC]a
inflamado e cativo daquela oculta e divina segunda vez, se encontrou com o Batista
força que atraia a si todas as coisas. este o chamou Cordeiro de Deus. Referiü
Num coração tão bem disposto o testemunho que pouco antes dera aos
como o de São João, este fogo de amor se judeus, acrescentando que vira o Espírito
ateava com maior força e intensidade. Santo sobre sua cabeça, como lhe fôra
Chegou o Salvador à presença de revelado que veria.
São João, sendo a segunda vez que se viram. São Mateus (3,17) e São Lucas (3
Antes de qualquer palavra, vendo que o Se- 22) acrescentaram o que disse a voz do Paj
nhor se aproximava, o Batista disse o que vinda do céu. São João (Jo 1,32) só refere
refere o Evangelista (Jo 1,29): Eis o cor- o Espírito Santo na forma de pomba, p 0r .
deiro de Deus que tira o pecado do mundo. que foi só o que o Batista disse aos judeus
Deu este testemunho apontando
para Cristo nosso Senhor, fazendo-se ou-
vir por toda a gente que o cercava, vinda Exaltação do Batista
para ser batizada e assistir sua pregação.
Acrescentou ainda (Jo 1, 30): Este é 1012. A fidelidade do Precursor em
aquele de quem eu falei, que depois de confessar que não era o Cristo e em dar os
mim viria um homem maior que eu, por- testemunhos de sua divindade, conforme
que existia antes do que eu. Eu não o co- dissemos, foi conhecido pela Rainha do céu
nhecia e vim batizar em água para dar em seu retiro. Pediu ao Senhor que recom-
testemunho dele. pensasse a seu fídelissimo servo João. As-
sim o fez liberalmente o Todo-poderoso e,
em sua divina aceitação o Batista elevou-se
Concordância entre os Evangelhos acima de todos os nascidos de mulher. Por
não ter aceitado a honra de Messias que lhe
1011. O Batista disse estas pala- ofereciam, o Senhor lhe deu toda a que, fora
vras porque não tinha visto Jesus antes de desta, era capaz de receber entre os homens.
o batizar, nem tinha recebido a revelação Nesta ocasião, em que nosso Re-
de sua vinda, como fica explicado no dentor e São João se reencontraram, o
capítulo 24 deste livro, n° 978. grande Precursor foi repleto de novos
Em seguida, acrescentou o Batista, dons e graças do Espírito Santo.
que vira o Espírito Santo descer sobre Alguns dos circunstantes, quando
Cristo no batismo (Jo 1, 32), e que dera o ouviram dizer, "Eis o Cordeiro de Deus \
testemunho da verdade, de que Cristo era deram muita atenção às suas palavras, e
o Filho de Deus. lhe perguntaram quem era aquele de quem
Enquanto Jesus esteve no deserto, assim falava. Deixando-o a instruir os ou-
enviaram os judeus de Jerusalém a em- vintes da verdade, com as razões acima
baixada que refere São João evangelista referidas, o Salvador se afastou, dirigindo-
no capítulo Io, perguntando-lhe quem era, se à Jerusalém.
e o mais que diz o Evangelho. Respondeu Estivera muito pouco em presença
o Batista que ele batizava na água, e que do Batista. Não foi, porém, diretamente
no meio deles tinha estado quem não co- para a cidade santa. Durante muitos dias,
nheciam, pois Jesus estivera entre o povo andou percorrendo pequenas povoações
no Jordão. Deste, que vinha depois dele, e, sem se identificar, ensinava os habitan-
não era digno de desatar as correias do tes, participando-lhes que o "Messias ja
calçado. estava no mundo. Com sua doutrina en-
164
Quinto Livro - Capítulo 27
165
Quinto Livro - Capitulo 27
corridos pela Senhora dos anjos e de toda quando não fores obrigada, pela obediên.
a criação. cia, a conversar com as criaturas. Neste
caso, saindo de tua soledade e recolhi,
mento leva-o em teu coração, de modo qUe
Maria imita Jesus os sentidos exteriores não te afastem dele
Tua presença nos negócios mate-
1015. Nestas saídas, preencheu a riais seja transitória, enquanto no retiro e
divina Rainha o tempo em que seu Filho deserto interior deve ser permanente. Para
santíssimo andava na Judéia, e sempre o que ali tenhas verdadeira solidão, não dês
imitou em todas as suas obras, até em andar entrada a imagens e lembranças de criatu-
a pé como Jesus. Às vezes voltava à Nazaré, ras que, às vezes, ocupam mais do que elas
mas logo continuava suas peregrinações. próprias, e sempre embaraçam e tiram a
Nestes dez meses comeu muito liberdade do coração. Seria indigno que o
pouco. Aquele manjar celeste que no de- pusesses em alguma criatura, ou que al-
serto lhe enviou seu Filho santíssimo, guma nela entrasse. Meu Filho o deseja
como disse no capítulo passado, deixou-a vazio e eu quero o mesmo.
tão fortalecida que, não só teve força para
percorrer á pé muitos lugares e caminhos,
como também para não sentir tanto a ne- Apostolado
cessidade de outro alimento.
Tinha também a beatíssima Se- 1016.a A segunda recomendação
nhora notícia de que São João ia pregando é que, em primeiro lugar, atendas ao
e batizando nas margens do Jordão. En- apreço de tua alma, para conservá-la em
viou-lhe, algumas vezes, muitos de seus toda pureza. A isto acrescenta o zelo pela
anjos para o consolar e agradecer a leal- salvação de todas as outtas como é minha
dade que mostrava a seu Deus e Senhor. vontade. Em particular, quero que imites
Em meio a tudo isto, sofria a a meu Filho santíssimo e a mim, no que
amorosa Mãe grandes delíquios de amor fizemos com os mais pobres e despre-
pelas saudades de seu Filho santíssimo, zados pelo mundo.
cujo coração era ferido por aqueles divi- Estes pequeninos pedem, muitas
nos e castíssimos anseios. Antes de Jesus vezes, o pão do conselho e doutrina
voltar a vê-la, consolá-la e dar princípio a (Trenós 4,4) e não encontram quem lhos
seus milagres e pregação pública, aconte- distribua, como os ricos e estimados do
ceu o que direi no capítulo seguinte. mundo que dispõem de muitos ministros
para os aconselhar.
DOUTRINA QUE ME DEU A Muitos destes pobres e despre-
RAINHA DO CÉU MARIA zados recorrem a ti. Recebe-os compassi-
SANTÍSSIMA. vamente, consola-os com cannho para
que, em sua simplicidade, aceitem a luze
Solidão conselho, pois aos mais argutos pode-se
tratar de outro modo.
1016. Minha filha, dar-te-ei a dou- Procura conquistar essas almas
trina deste capítulo em duas importantes que, apesar de sua miséria material, são
recomendações: primeiro, procura amar e preciosas aos olhos de Deus. Para que elas
praticar a soledade com singular apreço, e os demais não percam o fruto da re¬
para mereceres as bênçãos e graças que . denção, quero que trabalhes sem cessar, e
meu Filho mereceu e prometeu aos que não te dês por satisfeita até morrer nessa
nisto o imitarem. Procura sempre estar só causa, se for necessário.
166
\
'- CAPÍTULO 28
167
Quinto Livro - Capítulo 28
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Quinto Livro - Capítulo 28
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Quinto Livro Capítulo 28
171
Quinto Livro - Capítulo 28
CAPÍTULO 29
VOLTA DE CRISTQ A NAZARÉ COM OS CINCO
PRIMEIROS DISCÍPULOS. BATISMO DE MARIA
SANTÍSSIMA.
Jesus fala de sua Mãe aos primeiros fundíssima reverência e amor por Ela, de
discípulos modo que ansiavam por vê-la e conhecer
tão divina criatura.
1025.0 místico edifício da Igreja Assim procedeu o Senhor pelo
militante que se eleva até as misteriosas grande zelo da honra de sua Mãe, e pelo
alturas da divindade, tem por- funda- interesse dos próprios discípulos, em ter
mento a inabalável firmeza da santa fé por Ela conceito e veneração. Ainda que
católica, sobre a qual assentou-a nosso todos ficaram divinamente instruídos,
Redentor e Mestre, prudente e sábio ar- quem mais se distinguiu neste amor foi
quiteto. São João. Desde que ouviu o divino Mes-
Para estabelecer nesta firmeza as tre falar da dignidade e excelência de sua
primeiras pedras fundamentais, os primei- Mãe puríssima, foi crescendo no apreço e
ros discípulos que chamou, desde logo estima de sua santidade, como quem
começou a instrui-los nas verdades e estava destinado a gozar dos maiores
mistérios relacionados com sua divindade privilégios no serviço de sua Rainha,
e humanidade santíssima. Para se dar a como adiante direi e consta de seu Evan-
conhecer por verdadeiro Messias e Reden- gelho.
tor do mundo, por nossa salvação descido
do seio do Pai assumindo a natureza hu-
mana, era como necessário e conseqüente Os discípulos desejam conhecer Maria
declarar-lhes o modo de sua Encarnação
no seio virginal de sua Mãe santíssima. 1026. Estes cinco primeiros dis-
Convinha que a conhecessem e veneras- cípulos pediram ao Senhor dar-lhes a sa-
sem por verdadeira Mãe e Virgem e, as- tisfação de ver e venerar sua Mãe. Con-
sim, instruiu-os sobre este mistério e os cordou o Mestre e depois que entraram na
demais que dizem respeito à união Galiléia, encaminharam-se diretamente à
hipostática e à redenção. Nazaré. Ia pregando e ensinando publi-
Com esta doutrina celestial foram camente, apresentando-se como Mestre
alimentados estes novos filhos primo- da verdade e da vida etema.
gênitos do Salvador. Antes de chegarem à Muitos começaram a ouvi-lo e a
presença da grande Rainha e Senhora, já acompanhá-lo, atraídos pela força de sua
tinham concebido alto conceito de suas doutrina e pel a luz da graça que derramava
excelências, sabendo que era virgem antes nos corações que a acolhiam. Mas, por en-.
do parto, no parto e depois do parto. In- tão, não chamou outros, além dos cinco
fundiu-lhes Cristo, nosso Senhor, pro- discípulos que levava.
173
Quinto Livro • Capítulo 29
t
E digno de reparo que, tendo sido rava-se para recebê-lo com os discípul0s
tào ardente a devoção que eles conce- que trazia. De tudo tinha notícia a grande
beram pela divina Senhora, e tão evidente Senhora e preparou a hospedagem. Arru¬
para eles sua dignidade entre todas as mou sua pobre casinha e, solícita, apron-
criaturas, não divulgaram sua admiração. tou a refeição necessária, pois em tudo era
Pareciam ignorar estes mistérios e prudentíssima e atenciosa.
ficar mudos para deles falar. Assim dispôs
a Sabedoria do céu, porque não convinha,
que no princípio da pregação de Cristo, Maria recebe Jesus c os discípulos
fosse publicado entre os homens. Estava
a nascer o Sol de justiça para as almas 1028. Quando o Salvador do mun-
(Mal 4, 2), e era necessário que seu es- do chegou em casa, a divina Mãe estava â
plendor se estendesse por todas as nações. porta esperando-o. Prostrou-se adorando-
Ainda que a lua, sua Mãe santís- o, beijou-lhe os pés e depois as mãos pe-
sima, estava no plenilúnio da santidade, dindo-lhe a bênção. Fez uma confissão
era conveniente que se conservasse ocul- altíssima e admirável à santíssima Trin-
ta. Brilharia em a noite que desceria sobre dade e à humanidade de seu Filho, tudo
a Igreja, quando aquele Sol se retirasse em presença dos novos discípulos. Este
subindo ao Pai. procedimento não era sem razão. A sobe-
Assim aconteceu, e então refulgiu rana Rainha, além de prestar a seu Filho
a grande Senhora, como direi na terceira santíssimo o culto e adoração que lhe era
parte. Por enquanto, sua excelência e san- devido como verdadeiro Homem-Deus,
tidade foi revelada só aos apóstolos, para quis também retribuir a honra com que Ele
que a conhecessem, a venerassem e a ou- a exaltara ante os discípulos.
vissem, como digna Mãe do Redentor do O Filho ausente os instruíra sobre
mundo e Mestra de toda virtude e santi- a dignidade de sua Mãe, e da veneração
dade. com que deviam tratá-la e respeitá-la. A¬
gora, em sua presença, a prudente e fiel
Mãe quis ensinar aos discípulos o modo e
Jesus e os discípulos dirigem-se para veneração com que deviam tratar seu
Nazaré divino Mestre que era seu Deus e Reden-
tor.
1027. Prosseguiu seu caminho Os atos de tão profunda humildade
nosso Salvador para Nazaré, instruindo e culto com que a grande Senhora recebeu
seus novos filhos e discípulos, não só nos e tratou Cristo Salvador, realmente in-
mistérios da fé como em todas as virtudes, fundiu nos discípulos nova admiração, de-
com palavras e exemplos, como o fez du- voção e reverenciai temor pelo divino
rante todo o tempo de sua pregação evan- Mestre. Daí em diante serviu-lhes de
gélica. modelo na virtude da religião.
Visitava os pobres e aflitos, conso- Desde esse momento, Maria san-
lava os tristes e enfermos nos hospitais e tíssima começou a ser Mestra e Mãe
nos cárceres, e por todos fazia admiráveis espiritual dos discípulos de Cristo, no im-
obras de misericórdia corporal e espiri- portante exercício da intimidade com seu
tual. Só não manifestou seu poder de fazer Deus e Redentor. Essa atitude aumentou
milagres, até as bodas de Caná, como direi a devoção dos discípulos por sua Rainha,
no capítulo seguinte. e de joelhos diante dela, pediram-lhe que
Enquanto nosso Salvador fazia os recebesse por filhos e escravos. 0
esta viagem, sua Mãe santíssima prepa- primeiro a fazer esta reverência e ofere-
174
Quinto Livro - Capítulo 29
cimento foi São João que sempre se avan- Naquela noite, após se terem reco-
tajou aos outros apóstolos, na estima e lhido os hóspedes, o Salvador foi ao ora-
veneração de Maria santíssima. Por sua tório de sua Mãe puríssima, como costu-
vez, a divina Senhora lhe devotou especial mava, e a humilíssima entre os humildes
afeição, pois além de ser virgem, era prostrou-se a seus pés, como sempre fazia.
afável, manso e humilde. Ainda que não tinha culpa de que
se acusar, pediu ao Senhor perdoá-la de O
servir tão pouco e não corresponder me-
Humildade de Maria lhor a seus imensos benefícios. Em sua
humildade, tudo parecia pouco à grande
1029. A grande Senhora hospedou Rainha, em comparação do que devia ao
os discípulo, serviu-lhes a refeição, sem- amor infinito e aos dons que d'Ele rece-
pre atenta a todas as coisas, com a solici- bera. Confessava-se por inútil quanto o pó
tude de Mãe e majestade de Rainha que da terra.
unia em sua incomparável sabedoria, com O Senhor levantou-a do solo e lhe
admiração dos próprios anjos. A seu Filho falou palavras de vida eterna, porém, com
santíssimo servia de joelhos com pro- serena majestade. Nesta época tratava-a
funda reverência. com mais gravidade para lhe dar ocasião
Além destes atos de veneração, de padecer, como adverti acima^ na
dizia aos apóstolos palavras de grande despedida do Salvador, quando este se
peso sobre a majestade de seu Mestre e dirigiu ao deserto.
Redentor, para catequizá-los na doutrina
verdadeiramente cristã.
Maria é batizada por Jesus
1030. A beatíssima Senhora pediu
a seu Filho santíssimo o sacramento do
Batismo que havia instituído, como já lhe
tinha prometido^. Para celebrá-lo com
solenidade digna do Filho e da Mãe purís-
sima, por divina ordem desceu do céu inu-
merável multidão de anjos em forma
visível.
Com esta assistência, o próprio
Cristo batizou sua Mãe puríssima, ou-
vindo-se então a voz do eterno Pai
dizendo: Esta é minha filha querida em
quem eu me comprazo. - O Verbo hu-
manado disse: Esta é minha Mãe amadá
que eu escolhi e que me acompanhará em
todas minhas obras. - O Espírito Santo se
fez também ouvir com estas palavras: Esta
é minha Esposa escolhida entre milhares.
Sentiu e recebeu a puríssima Se-
nhora tantos e tão divinos efeitos em sua
alma que não cabem em palavras hu-
manas. Foi realçada na graça, retocada a
beleza de sua alma puríssima, e toda ele-
l-n°960 - 2-n°831
175
Quinto Livro
FIM DO 5o LIVRO
176
LIVRO SEXTO E QUARTO DA
SEGUNDA PARTE
177
CAPÍTULO 1
INICIO DA MANIFESTAÇÃO DO SALVADOR PELO
MILAGRE NAS BODAS DE CANÁ A PEDIDO DE SUA MÃE
SANTÍSSIMA.
Jesus e seus discípulos são lado de SanfAna. Estando a grande
convidados para as bodas de Caná Rainha em Caná, os noivos tiveram no-
tícia da vinda de Jesus com os discípulos.
1 0 3 3 . 0 evangelista São João que, Por intermédio de sua Mãe santíssima e
no fim do capítulo 1 refere a vocação de vontade do mesmo Senhor, que assim dis-
Natanael, quinto discípulo de Cristo, punha para seus altos fins, Ele foi convi-
começa o segundo capítulo da narração dado com seus discípulos para a festa.
evangélica, dizendo: Ao terceiro dia, rea-
lizaram-se umas bodas em Caná da Gali-
léia, e a Mãe de Jesus ali se encontrava. Concordância da narração da
Jesus e seus discípulos também foram Escritora com o Evangelho
convidados paia a festa. (Jo 2,1).
Daqui parece que a divina Senhora 1034. O terceiro dia referido pelo
já estava em Caná, antes de seu Filho ser Evangelista, foi o terceiro dia da semana
convidado. Para concordar esta passagem dos hebreus. Ainda que não o diga expres-
com o que deixo dito no capítulo passado, samente, tampouco diz que foi o terceiro
e saber qual seria este "terceiro dia" fiz al- depois da vocação dos discípulos e da en-
gumas perguntas por ordem da obediência. trada na Galiléia. Se se referisse a isto te-
Foi-me respondido que, não obs- lo-ia dito. Era, porém, naturalmente, im-
tante, as diversas opiniões dos exposi- possível que estas bodas fossem ao ter-
tores, a História da Rainha concorda com ceiro dia depois da vocação dos discípulos
o Evangelho, e o fato foi nesta forma: e da entrada na Galiléia, pois Caná está
Cristo, nosso Senhor, com seus cinco situada nas fronteiras da tribo de Zabulom
Apóstolos, ao entrar na Galiléia foi direto com a Fenícia, ao norte onde se encon-
a Nazaré, pregando e ensinando. trava a tribo de A ser em relação à Judéia.
Nesta viagem levou alguns dias, Distancia-se muito do ponto da
mais que três. Chegando a Nazaré, batizou fronteira que Jesus transpôs paia passai'
sua Mãe santíssima como fica dito, e da Judéia pai a a Galiléia. Se o terceiro dia
saiu pelos lugares vizinhos a pregar com tivesse sido o das bodas, só teriam dois
seus discípulos. Neste ínterim, a Divina dias para vir da Judéia à Caná, cuja distân-
Senhora foi convidada paia a festa de cia leva três dias de viagem. Estaria, então
casamento, da qual fala o Evangelista. Era próximo de Caná, antes de ser convidado,
de^uns^primos seus, em quarto grau, pelo e para isto era necessário mais tempo.
T-n° 1030"
179
""1
Sexto Livro - Capítulo 1
180
Sexto Livro - Capítulo 1
trimônio graça para santificar aos que o e o retraimento que fecha a entrada de
abraçassem na Santa Igreja, e fosse um de muitos vícios e servem de coroa à mulher
seus sacramentos. casta e honesta.
182
Sexto Livro - Capítulo 1
O Redentor do mundo ordenou aos não negou que fez outros antes, de modo
serventes que enchessem de água as oculto, mas o subentendeu como se
hídrias (Jo 2, 7) ou talhas que os hebreus dissesse; neste milagre manifestou sua
usavam paia suas abluções. Tendo-as glória que não tinha manifestado em ou-
enchido, o Senhor mandou que tirassem tros anteriores, por não ser o tempo opor-
delas o vinho e o levassem ao arquitri- tuno determinado pela divina Sabedoria.
clínio que presidia a mesa e era um dos Só no Egito fizera muitos e admiráveis,
sacerdotes da lei. como a ruína dos templos e seus ídolos,
Tendo experimentado o milagroso conforme fica dito .
vinho, admirado, chamou o noivo e disse: Nestas ocasiões, Maria santíssima
(Jo 2,10) Qualquer homem bem avisado, fazia atos de insigne virtude em louvor do
serve primeiro o melhor vinho, e quando Altíssimo, e em ação de graças pela mani-
os convidados já estão satisfeitos, então festação de seu santo nome. Atendia ao
dá o pior. Tu, porém, fizeste o contrário, consolo dos novos crentes e ao serviço de
pois guardaste o mais generoso para o fimseu Filho santíssimo e a tudo acudia com
da refeição. incomparável sabedoria e prestimosa
caridade. Espiritualmente, exercitava-a
fervorosíssima, suplicando ao eterno Pai
Efeitos do milagre dispusesse o ânimo e o coração dos
homens a serem iluminados pela luz das
1041. Não sabia o arquitriclínio do palavras do Verbo Humanado, e arran-
milagre, quando provou o vinho, porque cados das trevas da ignorância.
estava na cabeceira da mesa, enquanto
Cristo Senhor nosso com sua Mãe santís- DOUTRINA QUE ME DEU A
sima e os discípulos estavam mais para GRANDE RAINHA E SENHORA
baixo. Praticavam o que depois ensi- DO CÉU.
nariam com a doutrina (Lc 14,8,10): que
nos banquetes não se cobice o melhor
lugar, mas voluntariamente escolha-se o A falta de zelo
último.
A maravilha de nosso Salvador ter 1042. Minha filha, não tem des-
convertido água em vinho, rapidamente culpa o esquecimento e descaso dos fi-
se propagou; manifestou-se sua glória e lhos da Igreja, em procurar que o santo
seus discípulos creram n'Ele, como diz o nome de Deus seja conhecido por todas
Evangelho (Jo 2,11), confirmando-se a fé as criaturas racionais, para manifestação
inicial que já tinham. Não só eles, mas ou- e aumento de sua glória.
tros muitos presentes, creram que era o Esta negligência é ainda mais
verdadeiro Messias e o seguiram, culpável, depois que o eterno Verbo se en-
acompa-nhando-o até a cidade de Cafar- carnou em meu seio, instruiu e redimiu o
naum (Mt4,13), para onde se dirigiu com mundo pai a o mesmo fim.
sua Mãe e os discípulos. Conforme diz o Paia isso estabeleceu a Santa
Evange-lista S. Mateus, nesta cidade Igreja, enriqueceu-a de bens e tesouros
começou a pregar, apresentando-se como espirituais, de ministros e outros bens
mestre. temporais. Tudo isto não deve servir ape-
Dizendo São João que, com este nas para conservação da Igreja e dos seus
milagre o Senhor manifestou sua glória, filhos atuais, mas ainda paia propagá-la e
4 -n° 643, 646, 665
183
Sexto Livro - Capítulo 1
184
CAPÍTULO 2
MARIA SANTÍSSIMA ACOMPANHA E COLABORA COM O
SALVADOR EM SUA PREGAÇÃO. CUIDA DAS MULHERES
QUE O SEGUIAM, E EM TUDO PROCEDE COM SUMA
PERFEIÇÃO.
Impossível escrever tudo quanto O mais, que não foi escrito pelos
Cristo realizou Evangelistas nos Evangelhos e nem eu
tenho ordem para escrever, fica reservado
1044. Não estaria fora do contexto para a visão beatifica onde, com especial
desta História, nela escrever as heróicas gozo para os Santos, será contemplado no
obras de Cristo, nosso Redentor e Mestre, Senhor, e ali O louvarão eternamente por
porque em quase todas sua Mãe santís- obras tão magníficas.
sima tomou alguma parte.
Não posso, contudo, empreender
tão árduo trabalho que excede as forças e Maria acompanha Jesus
capacidades humanas. O evangelista São
João, depois de haver escrito tantas ma- 1045. De Caná da Galiléia, nosso
ravilhas de seu Mestre divino, diz no fim Redentor se encaminhou para Cafarnaum,
de seu Evangelho, que Jesus fez muitas grande cidade, muito povoada, próxima
outras, e que se fossem todas escritas, os ao mar de Tiberíades. Ali esteve alguns
livros não poderiam caber em todo o dias, como diz o Evangelista São João (Jo
mundo. O que pareceu impossível ao 2,12), mas não muitos, porque chegando
Evangelista, como poderá presumir uma o tempo da Páscoa, foi se aproximando de
ignorante mulher, mais inútil que o pó da Jerusalém para celebrá-la no dia catorze
terra? da lua de Março.
O necessário e conveniente, o Tendo deixado sua casa de Nazaré,
suficiente e superabundante para fundar sua Mãe santíssima acompanhava-o, para
e conservar a Igreja, foi escrito pelos segui-lo na pregação até a cruz. Só em al-
quatro evangelistas e não é preciso gumas ocasiões se separavam por alguns
repetir nesta História. Todavia, para dias, como quando o Senhor foi ao Tabor
compô-la e não deixar em silêncio mui- (Mt 17,1), ou para cuidar de alguma con-
tos dos atos da grande Rainha que eles versão em particular, como a da Samaritana,
não escreveram, será forçoso referir al- ou porque a divina Senhora ficava termi-
gumas particularidades. Escrevê-las e nando de instruir e catequizar algumas pes-
guardá-las na memória, servirá de con- soas. Logo, porém, voltava para a compa-
solo e utilidade para meu aprovei- nhia de seu Filho e Mestre, seguindo o Sol
tamento. de justiça até o ocaso de sua morte.
Sexto Livro - Capitulo 2
poderosa Rainha, cuidando por sua ali- doçura das palavras de sua Mãe; in-
mentação e outras coisas necessárias à struídos , por sua sabedoria; submissos,
por sua humildade; moderados, por sua
modéstia. Naquele receptáculo do
Espírito Santo encontraram reunidos to-
dos os seus dons e graças.
Por todos estes benefícios, pela vo-
cação dos discípulos, pela conversão de
qualquer alma, pela perseverança dos jus-
tos e por qualquer ato de virtude e graça,
a divina Senhora agradecia com novos
cânticos, e era para Ela como dia festivo.
188
Sexto Livro - Capítulo 2
duziam atos grandiosos para iluminar, mortais. E, depois de sua morte não foram
atrair e resgatar inumeráveis almas. Nada menores meus cuidados, como entenderás
do que pedia ao Senhor lhe era negado, e ao escrever a terceira parte de minha vida.
nenhum de seus atos era inútil e com Entre a fadiga de meus trabalhos, porém,
menor santidade do que lhe competia. era de incomparável gozo para meu
Sendo a Redenção a principal de espírito, ver o Verbo encarnado operando
todas as obras, sem dúvida cooperou nela a salvação dos homens. Ia abrindo o livro
mais do que, na vida mortal, podemos (Apoc 5,8) fechado com os sete selos, dos
compreender. mistérios ocultos de sua divindade e hu-
Procedia a divina Senhora com manidade santíssima.
rara mansidão, qual pomba singelíssima, O gênero humano não me deve
com extrema paciência e-tolerância. So- menos pela alegria que eu sentia pelo bem
brelevava as imperfeições e rudeza dos de cada um, como pelo cuidado com que
novosfiéis,esclarecendo suas ignorân- lhes procurava esse bem, pois tudo pro-
cias, pois era grande a multidão dos que a cedia de um mesmo amor Neste amor
Ela recorriam, quando decidiam abraçar a quero que me imites, como freqüente-
fé do Redentor. mente te admoesto.
Mantinha sempre a serena gran- Ainda que não ouves corporal-
deza de Rainha, mas aliada a tão suave mente a voz, pregação e doutrina de meu
humildade, que só Ela foi capaz de unir Filho santíssimo, podes imitar-me na re-
estas perfeições, em sumo grau, à seme- verência com que eu o ouvia. Ele te fala
lhança do mesmo Senhor. Ambos trata- ao coração a mesma verdade e doutrina, e
vam a todos com tanta humanidade e sim- assim te ordeno que, ao reconheceres a
plicidade de perfeitíssima caridade, que voz de teu Esposo e Pastor, te ajoelhes
ninguém pôde ter desculpa de não ter sido com reverência para ouvi-la. Adora-o
ensinado por tais mestres. Falavam, con- com ação de graças e grava suas palavras
viviam e comiam com os discípulos e as em teu peito. Se estiveres entre outras pes-
mulheres que os seguiam, (Mt 9, 10; Jo soas, onde não possas fazer atos externos,
12, 2; Lc 5, 29; 7,36) com a moderação fá-lo-as interiormente, e obedece a tudo
conveniente, para que ninguém pudesse que ouvires, como se estivesse presente à
pensar que o Senhor não era verdadeiro sua pregação.
homem, realmente Filho de Maria santís- Assim como não terias sido feliz,
sima. Pela mesma razão, aceitava o Se- se a tivesses ouvido corporalmente sem a
nhor participar em outros banquetes, com praticar, agora o serás se praticares o que
tanta afabilidade, como consta dos santos ouves espiritualmente. Grande é tua obri-
Evangelhos. gação, porque grande é contigo a liberalís-
sima piedade e misericórdia do Altíssimo
DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU e minha. Não sejas de coração moroso e
MARIA SANTÍSSIMA. não permaneças indigente entre tantas ri-
quezas da divina luz.
189
Sexto Livro - Capitulo 2 1
também a seus ministros, sacerdotes ©pre- no pequeno, pois agir em tudo com pe
gadores. A vo/. deles c o eco da do Altís- feição sempre é coisa grande. Igualme ^
simo Deus e canais por onde cone a sã advirto a te mostrares igual com pobres 6
doutrina de vida, brotada da fonte pere-ne ricos, sem fazer diferença e acepçà0 ^
da verdade divina Neles Deus fala e faz pessoas. Esta é outra falta comum entre ^
ressoar a voz de sua divina lei. Ouve-os filhos de Adão, e meu filho e Eu a co/
com reverência, sem jamais julgá-los e denamos e reprovamos quando nos
reparar em seus defeitos. Para ti sejam to- mostramos a todos igualmente afáveis
dos sábios e eloqüentes e em cada um ou- dando preferência aos desprezados, afli-
virás a Cristo, meu Filho e Senhor. tos e necessitados (Tg 2,2).
Com isto ficarás advertida para A sabedoria humana considera a
não cair na louca ousadia dos mundanos pessoa, a ostentação mundana, e não ao
que. com vaidade e soberba odiosa aos ser das almas e de suas virtudes. A prudên-
olhos de Deus. desprezam seus ministros cia celeste, porém, olha em todas a ima-
e pregadores, porque não os acham con- gem de Deus. Tampouco deves estranhar
formes à sua satisfação e depravado gosto. de que teu próximo perceba que sofres as
Como não vão ouvir a verdade divina, só imperfeições da natureza, pena do
consideram as expressões e o estilo, como primeiro pecado, como são as enfermi-
se a palavra de Deus não fosse simples e dades, o cansaço, a fome e outras neces-
eficaz, (Heb 4, 12) sem o adorno e argu- sidades. Ocultar estas fragilidades, às
mentos apreciados pelo ouvido enfermo vezes pode ser hipocrisia e pouca hu-
dos que a escutam. mildade. Os amigos de Deus só devem te-
Não faças pouco caso deste aviso, mer o pecado e desejam antes morrer do
e atende a todos quantos eu te der nesta que o cometer. Todas as outras deficiên-
História. Sendo tua Mestra, quero ins- cias não mancham a consciência, nem e
truir-te no pouco e no muito, no grande e necessário escondê-las.
190
i
CAPÍTULO 3
HUMILDADE DE MARIA SANTÍSSIMA NOS MILAGRES DE
CRISTO. ENSINOU-A AOS APÓSTOLOS.
A humildade de Maria vence Deus e próprio Deus. Achou tanta graça a seus
os homens olhos (Ecli 3, 20-21) que nenhuma graça
lhe negou o Senhor, tanto para si como
1053. O principal argumento de para os outros, se ela a pedisse.
toda a História de Maria santíssima, se Na humildade, a humilíssima
bem se considera, é uma demonstração Senhora venceu a todas as criaturas. Em
claríssima da humildade desta grande sua casa - como fica dito na primeira
Rainha e Senhora dos humildes. Esta vir- parte - venceu sua Mãe SanfAna e os
tude foi n'Ela tão inefável, que não pode domésticos para lhe permitirem praticar
ser dignamente louvada, nem adequada- a humildade; no templo, venceu a todas
mente avaliada. Sua impenetrável pro-' suas colegas; no matrimônio venceu São
fundidade não foi suficientemente com- José; nos trabalhos humildes, aos anjos;
preendida, nem pelos homens, nem pelos nos próprios louvores, aos apóstolos e
anjos. evangelistas para que não os escre-
Assim como em todos os medi- vessem; ao Pai e ao Espírito Santo,
camentos entra a suavidade e a doçura, e venceu para que assim o ordenassem; e
a todos dá o seu sabor, ainda que seja de a seu Filho santíssimo, para que a
composição muito diversa, assim em to- tratasse de modo a não dar motivo para
dos os atos das virtudes de Maria santís- os homens a louvarem por seus milagres
sima entra a humildade, aperfeiçoando-as e ensinamentos.
e adaptando-as ao gosto de Deus e dos
homens. Por causa de sua humildade, o
altíssimo a olhou e escolheu, e pela A natureza humana e a humildade
mesma virtude, todas as nações a procla-
mam bem-aventurada (Lc 1, 48). 1054. Esta espécie de humildade,
Não perdeu a prudentíssima Se- tão generosa, foi apanágio da humilíssima
nhora, em toda sua vida, um só instante, entre os humildes. Nem os homens, nem
lugar ou ocasião, de praticar as virtudes os anjos podem atingi-la, quer pelas cir-
que podia. Maior prodígio, porém, foi unir cunstâncias pessoais diferentes, quer por
a todas elas sua rara humildade. sermos tão fracos nesta virtude.
Esta virtude elevou-a acima de Entenderemos esta verdade, ad-
todo quanto existiu, exceto Deus. E, assim vertindo que a mordedura da antiga ser-
como, na humildade, venceu a todas as pente deixou nos demais mortais o verme
criaturas, por esta virtude venceu até o da soberba. Para expeli-lo, ordenou a
191
Sexto Livro - Capítulo 3
divina sabedoria que os efeitos do próprio natureza terrena, têm os pecados pesSo
pecado servissem de remédio. O conhe- A humildade destes foi a conseqüência^
cimento dos defeitos pessoais nos fariam antes terem sido humilhados, e p e i a ^
conhecer a baixeza que pretenderíamos milhação entraram, como que à forç^
ignorar. humildade, e tiveram que confessar cc!!
É verdade que temos alma espiri- David (SI 118, 67. 71): Antes de me C
tual, mas nesta ordem ocupamos o mais milhar, errei, E outro verso: Foi bom, se*
baixo degrau, sendo que o supremo é de nhor, me terdes humilhado, para chegar a
Deus e o médio o dos anjos. conhecer as vossas justificações.
Quanto ao corpo, não somos ape- A Mãe da humildade, porém, não
nas do ínfimo elemento, a terra, mas de entrou nela pela humilhação e antes foi
terra suja, o barro (Gn 2,7). Tudo isto não humilde do que humilhada. Nunca humi-
foi ordenado pela sabedoria e poder lhada por culpas e paixões, mas sempre
divino sem finalidade, mas com grande generosamente humilde.
coerência. Deveria o barro conhecer sua Não se pode medir os homens
baixeza, procurar o último lugar e ali per- pelos anjos, porque estes são superiores
manecer, ainda que se visse bem moldado de natureza sem paixões e culpas. Apesar
e adornado de graças; saberia que estas se disto, não puderam estes soberanos espíri-
encontravam em recipientefrágile de pó tos alcançar a humildade de Maria santís-
(2, Cor 4,7). sima, apesar deles também se terem hu-
Contudo, todos nós perdemos o milhado ante o Criador, reconhecendo-se
juízo e desatinamos desta verdade e hu- criaturas d'Ele.
mildade tão própria do ser humano. Para Valeu-se Maria santíssima do fato
restituir-nos a ela é necessário que a con- de pertencer á natureza terrena e humana,
cupiscência, suas paixões e nossos erros para avantajar-se aos anjos nesta virtude.
nos façam experimentar quanto somos vis A natureza espiritual deles faltou aquela
e desprezíveis. Esta experiência de todos condição, para poderem se abater como a
os dias, ainda não basta para nos devolver divina Senhora.
o juízo e confessarmos que é iníqua per- Acrescente-se a dignidade de Mãe
versidade cobiçar honra e excelência hu- de Deus e Senhora das criaturas e dos mes-
mana, quem, por natureza é pó, e por suas mos anjos, excelência que nenhum anjo
obras indigno até do seu tão baixo e ter- possuiu e que sublimou tanto a virtude da
reno ser. humildade em nossa divina Mestra.
•
192
Scxlo Li\ro - Capitulo 3
sermàe nem por ser inocente, poderosa traviemos seus benefícios e nào tramemos
e agraciada , nem por seus milagres e ocultamente alguma rapina da glória que
«elos de seu Filho santíssimo, jamais lhe pertence como autor de tudo.
se u coração se levantou do lugar em Entendamos, pois, como é falsa
que se colocara, abaixo de todas as e insegura nossa humildade, ainda
criaturas. quando acontece que a pratiquemos,
Oh! humildade rara! Oh! Fideli- pois o Senhor - digamo-lo a nosso modo
dade nunca vista entre os mortais! Oh! sa- - precisa usar de tantas cautelas ao nos
bedoria que nem os anjos puderam al- confiar algum favor ou virtude. E tão
cançar! Quem há que sendo de todos co- frágil nossa humildade que, poucas
nhecido como o maior, só ele se desco- vezes recebemos seus dons sem os con-
nheça e se considere o menor? Quem taminar com nossa ignorância, ou pelo
soube esconder a si mesmo, o que todos menos com auto-complacência e vai-
os outros dele publicam? Quem se esti- dosa satisfação.
mou por desprezível, quando admirado
por todos? Quem, na suma excelência e
grandeza, não perdeu de vista a pequenez, Os anjos admiram a humildade da
e convidado para o supremo lugar, esco- Virgem
lheu o ínfimo (Lc 14, 8)? E isto, não por
necessidade, com impaciência e coagido, 1057. Para os anjos de Maria san-
mas livremente, de todo o coração, sincera tíssima foi admiração ver o procedimento
e fielmente? da grande Senhora, nas ocasiões em que
Oh! filhos de Adão, que tardos e Cristo nosso Senhor operava milagres.
ignorantes somos nesta ciência divina! E Nào estavam acostumados a ver nos filhos
necessário que o Senhor, muitas vezes, de Adão, e nem entre os anjos, aquele
nos oculte nossos bens, ou lhes acrescente modo de se abater, entre tanta grandeza e
algum contrapeso, para que não ex- fatos tão gloriosos. Os divinos espíritos
admiravam-se, menos pelas maravilhas
do Senhor cuja onipotência já conheciam
e tinham experimentado, do que pela in-
comparável fidelidade da beatíssima Se-
nhora. Todas aquelas obras eram por Ela
dirigidas à glória de nosso Senhor, en-
quanto se reputava tão indigna, como se
sua presença no mundo fora obstáculo
para as obras de seu Filho santíssimo, e
que ele as fazia só por favor de sua mise-
ricórdia.
Ao contrário, por suas orações, Ela
era o instrumento que inclinava o Salva-
dor a fazê-las. Além disso, como outras
vezes já disse, se Maria santíssima não
interferisse entre os homens e Cristo, o
mundo nào teria merecido receber a dou-
trina do Evangelho.
1 -n°788
193
Sexto Livro - Capítulo 3
Maria pede a Cristo que afaste d*Ela tes, bem-aventurados os que ouvem
o louvor dos homens palavra de Deus e a põem em prática riu*
12, 5; Lc 11,28) '«»
1058. As obras e milagres de Com estas palavras, à margein ri
Cristo, nosso Senhor, eram tão surpreen- honra que davam a Maria puríssima
dentes para o mundo que, logicamente qualidade de Mãe, deu-lhe a honra da s ^
atraiam grande glória e admiração por tidade. De passagem, ensinou aos ouVjn*
sua Mãe santíssima. Tornava-se conhe- tes o essencial da virtude, comum a todos
cida, não só pelos discípulos e Após- no que sua Mãe era singular e aojninW
tolos, mas também pelos novos fiéis. embora na ocasião não o tivessem comi
Quase todos se dirigiam a Ela confes- preendido.
sando-a por Mãe do verdadeiro Messias,
e dando-lhe muitas felicitações pelas
maravilhas operadas por seu Filho san- Esclarecimento sobre passagens
tíssimo. evangélicas
Estes sucessos eram novo crisol
para sua humildade. Apegava-se ao pó 1059. A outra passagem é referida
e se aniquilava em sua própria estima, por São Lucas, (8,21): estando o Salvador
mais do que qualquer pensamento pregando, disseram-lhe que sua Mãe e
criado possa imaginar. Por se abater seus irmãos o procuravam e não podiam
deste modo, não negligenciava a gra- se aproximar por causa da multidão. A
tidão. Ao mesmo tempo que se humi- prudentíssima Virgem, prevendo algum
lhava, dava ao eterno Pai dignas graças aplauso por parte dos que a conheciam,
por todas e cada uma das admiráveis pediu ao Salvador que o dissimulasse. Ele
obras de Cristo, suprindo assim a hu- assim o fez, respondendo: Minha Màe,
mana ingratidão. meus irmãos são os que fazem a vontade
Através da invisível comunicação de meu Pai, ouvem sua palavra e a cum-
que sua alma puríssima tinha com a do prem.
Salvador pedia-lhe que desviasse a glória Nestas expressões, o Senhor não
que os ouvintes de sua divina palavra excluiu sua Mãe da honra que merecia por
queriam dar a Ela. sua santidade, antes a subentendeu mais
Assim acontecia, e os Evangelistas que a todos. Deu-lha, porém, de modo a
se referem a algumas destas ocasiões, por não ser aplaudida pelos circunstantes, sa-
exemplo, Lucas (9, 27): Quando Jesus tisfazendo o desejo d'Ela para que só o
curou o endemoninhado e os judeus quise- Se-nhor fosse conhecido e louvado por
ram atribuir a cura ao próprio demônio, o suas obras.
Senhor inspirou a uma fiel mulher a ex- Advirto que descrevo estas pas-
clamar em alta voz: bem-aventurado o sagens como sendo distintas, tendo-se
ventre que te trouxe e os peitos que te ama- verificado em lugares e ocasiões diferen-
mentaram. tes, como entendi e como refere São Lucas
Ouvindo estes elogios a humilde e no capítulo VIII e IX. São Mateus, (12,45
prudente Mãe pediu, interiormente, a - 46) refere o milagre da cura do endemo-
Cristo nosso Senhor que desviasse dele ninhado mudo e logo em seguida, diz que
aquele louvor. Condescendeu Jesus, mas avisaram o Salvador que sua Mãe e seus
de tal modo que lhe aumentou o louvor, irmãos estavam fora e lhe desejavam falar,
ainda que ocultamente. Respondeu: An- e o mais que acabo de referir. Foi por este
194
Sexto Livro - Capítulo 3
motivo que alguns expositores julgaram e nestas ocasiões disse as palavras referi-
qu e os dois fatos sucederam na mesma das por São Mateus e São Lucas. Não se
ocasião. deve admirar que os repetisse em diferen-
Tendo eu, por ordem da obediên- teslugaresetempos,poisháexemplosdes-
cia, perguntado outra vez, foi-me respon- sas repetições, como a daquela sentença:
dido terem sido casos distintos, conforme O que se exalta será humilhado; e o que se
se pode coligir dos outros capítulos de São humilha será exaltado. É citada por São
Lucas, anteriores a essa narração. Lucas na parábola do publicano e do far-
As palavras "Bem-aventurado o iseu (Lc 18,9 -14); na parábola dos con-
ventre que te trouxe etc", foram ditas de- vidados às bodas (Lc 14, 7 -11); por São
pois do milagre a favor do endemoni- Mateus em outra ocasião (Mt 23,12).
nhado. O outro sucesso da Mãe e dos ir-
mãos do Senhor, São Lucas refere no
capítulo VIII, depois que o Senhor pregou Maria, mestra da humildade
a parábola da semente. Foi esta a seqüên-
cia dos fatos. 1061. Maria santíssima foi hu-
milde nào só para Si, mas nesta virtude
tomou-se a grande Mestra dos Apóstolos
Explicação das passagens evangélicas e discípulos. Era necessário que eles se
fundassem na humildade, pelos dons que
1060. Para melhor se entender que haviam de receber e os prodígios que, me-
os Evangelistas não discordam entre si, e diante os mesmos, iriam realizar. E isto,
qual a razão que levou a santíssima Rainha não só futuramente na fundação da Igreja,
a procurar seu Filho nas ocasiões descri- mas desde já, na pregação (Mc 3,14).
tas, advirto que para duas finalidades a Os evangelistas contam que nosso
divina Mãe ia ordinariamente onde Cristo divino Mestre enviou à sua frente, pri-
nosso Senhor pregava. meiro os Apóstolos (Mt 1 0 , 1 - 2; Lc. 9,
Primeiro, para ouvi-lo, como disse 10), e depois os setenta e dois discípulos,
acima^. Segundo, para pedir-lhe graças dando-lhes poder de fazer milagres, ex-
para as almas, conversão de algumas, pulsar demônios e curar os enfermos. A
saúde para os enfermos e necessitados. A grande Mestra dos humildes exortou-os
piedosíssima Senhora tomava por sua com o exemplo e palavras de vida, como
conta estas necessidades, como aconteceu haviam de proceder na realização dessas
nas bodas de Caná. maravilhas.
Por estes e outros justos motivos Com seu ensino e orações, desper-
ia procurar Jesus, quer avisada pelos san- tou nos Apóstolos novo espírito de pro-
tos anjos, quer inspirada pela luz interior. funda humildade e sabedoria, para conhe-
Esta foi % razão de ter ido onde se encon- cerem, com mais clareza, que aqueles mi-
trava o divino Mestre, nas ocasiões referi- lagres se faziam em virtude do Senhor,
das pelos Evangelistas. Como isto acon- Somente a seu poder e bondade se devia
tecia muitas vezes, e o número de pessoas toda a glória daquelas obras, das quais eles
que seguiam a pregação do Salvador era eram apenas instrumentos. Como ao
tão grande, os Evangelistas referem só pincel nào sedeve a glória da pintura, nem
duas vezes, e outras muitas passaram em à espada a da vitória, mas tudo é atribuído
silêncio. O mestre teve que ser avisado de ao pintor e ao soldado que os moveu e
que sua Mãe e seus irmãos o procuravam, dirigiu; assim, a honra e o louvor dos
195
Sexto Livro - Capítulo 3
portentos que fariam, deveriam remeter a mistérios, e como coadjutora de seu Filk
seu Senhor e Mestre de quem procede santí ssimo cooperava na obra da funda^°
todo o bem. da lei da graça. a°
É para se advertir que, nos Evan- Nos três anos de sua pregaç^
gelhos, não se vê que o Senhor dissesse Cristo nosso Senhor subiu três vezes0,
algo desta doutrina aos Apóstolos quando Jerusalém para celebrar a Páscoa, sendo
os enviou à pregar, porque já os instruíra sempre acompanhado por sua Mãe santí$
a divina Mestra. sima. Ela se achou presente na primeira
Apesar disso, quando os discípu- vez em que Jesus, com um açoite, expU|,
los voltaram à presença de Cristo nosso sou do templo os que vendiam ovelhas
Senhor, e muito alegres lhe disseram que, pombas e bois (Jo 2, 15).
em seu nome, os demônios lhes haviam Nestes atos e no mais que fez o Sal¬
obedecido (Lc. 10, 17); então o Senhor vador, oferecendo-se ao Pai naquela ci¬
lhes àdvertiu que não se alegrassem por dade e lugares onde havia de padecer
aquele poder que lhes dera; mas sim por- sempre o acompanhou a grande Senhora
que seus nomes estavam escritos no céu Seguia-o fazendo atos de heróicas vir-
(LclO, 20). tudes e admiráveis afetos de sublime
Tãofrágilé nossa humildade, que amor, de acordo com as ocasiões, sem per-
até nos discípulos precisou de tantos avi- der nenhuma. A todos seus atos dava a
sos e preservativos da parte do Senhor. plenitude de perfeição que cada qual
pedia, exercitando principalmente, a ar-
dentíssima caridade que recebia da Divin-
Maria, cooperadora na fundação da dade (1 Jo 4,16). Estando Ela em Deus e
lei da graça Deus n'Ela, era a caridade do próprio Se-
nhor que lhe ardia no peito e a impelia a
1062. Mais tarde, na fundação da solicitar, com todas as suas forças e dese-
igreja, foi ainda mais importante esta ciên- jos, o bem do próximo.
cia da humildade que Cristo, nosso Mes-
tre, e sua Mãe santíssima ensinaram aos DOUTRINA QUE ME DEU A
Apóstolos. Para confirmar a fé e autorizar MESMA RAINHA DO CÉU.
a pregação do Evangelho, iriam operar
grandes prodígios em virtude do Senhor.
Os gentios, acostumados a cegamente Origem da humildade e da soberba
atribuir a divindade a qualquer coisa
grandiosa e insólita, vendo os milagres 1063. Minha filha, a antiga ser-
que os Apóstolos fa-ziam, queriam adorá- pente estreou toda sua maldade e astúcia
los como adeuses. Assim aconteceu a São em apagar do coração humano a ciência
Paulo e a São Barnabé na Licaônia, ao da humildade, sempre santa,'nele se-
curarem um entrevado de nascença. (At meada pela clemência de seu Criador. No
14, 6); a São Paulo chamavam Mercúrio lugar dela espalhou o inimigo a ímpia
e a São Barnabé Júpiter. Depois, na ilha cizânia da soberba (Mt 13, 25). Para esta
de Malta, quando São Paulo sobreviveu à ser arrancada e se restituir a alma o bem
picadura de uma víbora, tomaram-no por da humildade perdida, é necessário q«e
um Deus (At 28, 6). consinta e queira ser humilhada por outras
Com a plenitude de sua ciência, criaturas, e que, com incessantes desejos
Maria santíssima previa todos estes e sincero coração, peça ao Senhor esta vir-
196
Sexto Livro - Capítulo 3
mde e os meios para alcançá-la. Raras são soalmente. Se ninguém pode negar esta
as almas que se aplicam a esta sabedoria miséria de sua natureza, que razão há para
conseguem a humildade perfeita. Esta não se humilhar diante de Deus e dos
requer um vencimento pleno e total, a que homens? Abater-se até a terra e colocar-se
chegam muito poucos, mesmo entre os no último lugar, não é grande humildade
que professam a virtude. O contágio da para quem pecou, porque sempre lhe resta
soberba penetrou tanto as potências hu- mais honrado que merece. O verdadeiro
manas que se reflete em quase todos os humilde deve descer abaixo do que lhe
seus atos. Quase nenhum deles fica isento toca. Ser desprezado e ofendido por todas
de algum ressaibo de soberba, tal como a as criaturas; considerar-se digno do in-
rosa com espinhos e o grão com a palha. ferno; tudo isto será mais justiça do que
Por esta razão, o Altíssimo estima humildade, porque é o que merece. A hu-
tanto os verdadeiros humildes. Aos que mildade profunda, porém, vai até desejar
obtêm inteiro triunfo sobre a soberba, maior humilhação do que lhe cabe por
eleva-os e coloca-os entre os príncipes de justiça. Por este motivo, nenhum dos mor-
seu povo (SI 112, 8); tem-nos por filhos tais pode chegar ao gênero de humildade
prediletos e os exime, de certo modo, dos que eu tive, conforme entendeste e escre-
ataques do demônio. Este os teme, não se veste. Não obstante, o Altíssimo se dá por
atreve tanto a atacá-los, porque as derrotas satisfeito que se humilhem no que, por
que sofre dos humildes o atormentam justiça, podem e devem.
mais do que as chamas do fogo que
padece.
Monstruosidade da soberba
197
Scxio Livro - Capitu
criaturas, te humilhar. Não te julgues almente com estas nações, como fln
agravada ou ofendida por qualquer delas. mente deveriam compreender. Humii^
Se detestas o fingimento e mentira, ad- te na divina presença para lhe apl acar a *
verte que o maior deles é apetecer honra indignação, por ti e por todos teus i m ^
e alto conceito, aquele que por qualquer como se tu só fosses culpada e devedor'
pecado, ainda leve, merece estar abaixo pois, durante a vida, ninguém pode sabe*
de todas as coisas do mundo, ainda a mais se já pagou o que devia. Pelos dons e fa
ínfima. Não atribuas às criaturas as vores que recebeste e recebes, mostra-te
aflições e tribulações que Deus permite agradecida como quem menos merece e
para humilhar a ti e a elas. Isto vem a ser mais deve. Assim estimulada, humilha-te
queixar-se dos instrumentos e da ordem mais que todas e trabalha sem cessar para
que a divina misericórdia estabelece, satisfazer, ao menos em parte, a divina
afligindo com castigos os homens que de- piedade que tão liberal se mostrou con-
seja levar à humildade. Assim o faz atu- tigo.
]9S
PERTURBAÇÃO DO DEMÔNIO ANTE OS MILAGRES DE
CRISTO. HERODES PRENDE E MANDA DEGOLAR SÃO
JOÃO BATISTA.
O batismo de João e o de Cristo os estivesse recebendo, agradecia a seu
autor com cânticos de louvor e grandes
1066. Prosseguindo sua pregação atos de virtudes. Com estas maravilhas,
e milagres, o Redentor do mundo saiu de adquiria novos e incomparáveis mere-
Jerusalém e permaneceu na Judéia algum cimentos.
tempo. O Evangelista São João (3,22) diz,
simplesmente, que batizava, mas adiante
(4,2) explica que batizava por mão de seus Conciliábulo de Lúcifer
discípulos, na mesma ocasião em que seu
precursor João batizava em Enón, às mar- 1067. Quando a vontade divina
gens do Jordão, nas proximidades da ci- permitiu que Lúcifer e seus ministros se
dade de Salim. erguessem da derrota que sofreram pelo
Seus batismos não eram iguais. O triunfo de Cristo no deserto, voltou o
do Precursor era apenas com água e ba- dragão a investigar as obras daquela hu-
tismo de penitência. O do Salvador era seu manidade santíssima. Assim o permitiu
próprio Batismo, a justificação mediante sua providência divina para que, permane-
o eficaz perdão dos pecados, com infusão cendo sempre oculto a este inimigo o prin-
da graça e virtude, como acontece agora. cipal mistério, conhecesse alguma coisa
Além, destes invisíveis efeitos e do que convinha para ser inteiramente ven-
eficácia do Batismo de Cristo, acrescen- cido através de sua própria malícia.
tava-se a eficácia de suas palavras, de sua Conheceu o grande fruto da pre-
pregação e a força da confirmação por gação, milagres e batismo de Cristo Se-
seus milagres. Por estes motivos, acor- nhor nosso, e que por este meio inu-
reram a Ele mais discípulos e seguidores meráveis almas se libertavam de sua tira-
que ao Batista, cumprindo-se o que o nia, saindo do pecado e reformando suas
Santo dissera: convinha que Cristo vidas. O mesmo conheceu a respeito da
crescesse e que ele fosse diminuído (João pregação e batismo de São João, embora
3,30). sempre ignorasse a diferença entre ambos
Ordinariamente, Maria santíssima os mestres e seus respectivos batismos.
assistia à administração do batismo de Destes fatos, porém, conjecturou a ruína
Cristo, nosso Senhor, conhecendo os divi- de seu império, se os novos pregadores,
nos efeitos que produzia nas almas aquela Cristo e São João, continuassem suas
nova regeneração. Como se fôra Ela que atividades.
199
Sexto Livro - Capítulo 4
Esta novidade deixou Lúcifer per- absurdas e sem base. Estavam alucinacj0
turbado e perplexo. Reconhecia a fra- e confusos por ver, de um lado tant S
queza de seu poder, para resistir à força prodígios, e de outro indícios compi^
celeste que emanava daqueles novos tamente diferentes dos que eles supunh^
homens e sua doutrina. Inquieto, em sua para a vinda do Verbo Encarnado.
soberba, por estes receios, reuniu outro Lúcifer reuniu os demônios
conciliábulo com os demais ministros das instruí-los melhor em seus malicioSos
trevas, e lhes disse: Nestes últimos anos planos. Deveriam inquirir e descobrir
temos encontrado, pelo mundo, grandes causa do abatimento que sentia, ofere,
novidades. Cada dia vão aumentando, e cendo-lhes grandes prêmios de domíni0s
com elas os meus receios, de que o Verbo em sua república de maldade.
divino já tenha vindo, conforme prome- Para que a malícia destes infernais
teu. Mas, ainda que eu tenha examinado ministros mais se enredasse em sua con-
todo o orbe, não acabei por descobri-lo. fusa indignação, permitiu o Mestre da
Contudo, estes dois homens que vida que tivessem maior conhecimento da
pregam e todos os dias me tiram tantas santidade do Batista.
almas, me põem em suspeitas e preocu- Ainda que não fazia milagres
pação. A um, nunca pude vencer no de- como Cristo nosso Redentor, os sinais de
serto. O outro, nos venceu e arrasou sua santidade eram grandiosos e mui ad-
quando lá esteve, e deixando-nos ame- mirável nas virtudes exteriores. Por sua
drontados e enfraquecidos. Se continuam vez, o Salvador lhe ocultou muitos dos
como começaram, todos nossos triunfos prodígios que operava, e deste modo, pelo
se converterão em derrotas. que chegara a saber, o dragão via grande
Ambos não podem ser o Messias; semelhança entre Cristo e João. Neste en-
tampouco entendo se algum deles o é. To- gano, não sabia ao qual atribuir o ofício e
davia, arrancar tantas almas de pecado é dignidade de Messias.
façanha tão árdua, que ninguém até agora Ambos, dizia consigo, são grandes
a conseguiu como eles. Isto supõe espe- santos e profetas. A vida de um deles, em-
cial poder que precisamos investigar e sa- bora sem coisas maravilhosas, é extraor-
ber donde procede, para acabarmos com dinária e singular. O outro faz muitos mi-
estes dois homens. Para este fim, segui- lagres. A doutrina que pregam é quase a
me, ajudai-me com vossas forças, astúcia mesma. Ambos não podem ser o Messias,
e sagacidade. Do contrário, virão a se ani- mas sejam o que for, são santos, grandes
quilar os nossos projetos. inimigos para mim. Hei de persegui-los
até liquidar com eles.
201
Sexto Livro - Capítulo 4
e de sua filha, semelhante â mãe nos cos- por Herodes. Na prisão, foi muito favore
tumes. cido por nosso Salvador e por sua divi
Fascinada pela paixão e sensuali- Mãe. A grande Senhora mandou seus san
dade, a adúltera estava bem disposta para tos anjos visitá-lo muitas vezes, e em a |
ser instrumento do demônio, em qualquer gumas ordenou-lhes que lhe levassem ali
maldade. Incitou o Rei para degolar o Ba- mento por eles preparado. Por sua vez õ
tista, sendo primeiro instigada pelo ini- Senhor da graça lhe concedeu grandes fa.
migo a conseguir tal intento, por qualquer vores espirituais.
meio. O demônio, porém, que desejava
Havendo aprisionado (Mc 6, 17) acabar com São João, não deixava o co-
quem era a voz de Deus, o maior entre os ração de Herodíades em paz até vê-lo
nascidos, chegou o dia em que Herodes morto. Aproveitou-se da oportunidade do
celebrava seus malfadados anos. Fez um sarau e inspirou ao rei Herodes aquele es-
banquete e sarau aos magistrados e gran- tulto juramento e promessa à filha de
des da Galiléia (Mc 6,21), de onde era rei. Herodíades. Em seguida, mais o obscure-
A desonesta Herodíades introduziu na festa ceu, para que impiamente julgasse
sua filha, para bailar diante dos convidados. desonra não cumprir o iníquo juramento
Agradou tanto ao adúltero e cego rei, que com que confirmara a promessa. O resul-
este se obrigou, com juramento, a dar à tado foi mandar cortar a cabeça do precur-
dançarina tudo quanto ela desejasse, ainda sor São João, como consta do Evangelho
que fosse a metade de seu reino. (Mc 6, 27)
Manejada pela mãe, e ambas pela Neste momento, Maria santíssima
astúcia da serpente, pediu mais do que conheceu no interior de seu Filho santís-
muitos reinos: a cabeça do Batista num simo, pelo modo que costumava, que se
prato. O rei acedeu por ter jurado e por se aproximava a hora do Batista morrer por
ter sujeitado a uma desonesta e vil mulher. causa da verdade que pregara.
Os homens reputam ignomínia e in- Prostrou-se a Mãe puríssima aos
sulto serem chamados mulher, porque este pés de Cristo nosso Senhor, e entre lágri-
nome os priva da superioridade e nobreza mas, pediu-lhe assistisse naquela hora seu
de seu sexo. Maior baixeza, porém, é ser servo e precursor João. Que o amparasse
menos que mulher, deixando-se governar e consolasse, para que, a seus olhos, fosse
por seus caprichos, porque menor e inferior mais preciosa a morte que sofreria por sua
é o que obedece e maior o que manda. Ape- glória e em defesa da verdade.
sar disso, há muitos que se sujeitam a esta
vileza, sem considerá-la rebaixamento,
tanto maior e mais indigno quanto é mais Jesus e Maria visitam o Batista
vil e execrável uma desonesta mulher. Per-
dida esta virtude, nada lhe fica que não seja 1073. Respondeu-lhe o Senhor
muito desprezível e detestável aos olhos de que se agradava de seu pedido e »na
Deus e dos homens. cumpri-lo plenamente, junto com Ela
Logo, por divina virtude, Cristo nosso
Senhor e Maria santíssima foram trans-
portados milagrosa e invisivelmente ao
O Batista na prisão cárcere, onde se encontrava o Batis*
1072. Por instigação de Hero- preso com cadeias e maltratado com
díades, o Batista já tinha sido encarcerado muita feridas.
202
Sexto Livro - Capítulo 4
203
vosso servo os clementíssimos olhos de recebeu em seus braços o corpo do maj0r
vossa amável piedade, e guardai-me sempre entre os nascidos, e sua Mãe santíssima
em vossa graça, como Mãe e causa de todo sustentou em suas mãos a cabeça. Ambos
nosso bem. Em toda minha vida desprezei ofereceram ao eterno Pai aquela hóstia no
a vaidade, amei a cruz que meu Redentor há sagrado altar de suas divinas mãos.
de santificar e desejai semear nas lágrimas Isto foi possível, não só por estarem
(SI 125,5). Apesar disso, jamais mereci esta os Reis supremos invisíveis para os circuns-
alegria que me tomaram doces os tormentos, tantes, como por haver surgido entre 0$
suaves minhas prisões e a própria morte criados de Herodes, a discussão sobre quai
apetecível e mais amável que a vida deles havia de lisonjear à infame dançarina
e à sua ímpia mãe, levando-lhes a cabeça de
São João. Nesta competição se emba-
Degolação do Batista raçaram tanto que, sem notar, um deles pe-
gou a cabeça que a Rainha tinha nas Mãos,
1076. Estava a dizer estas palavras, e seguido pelos outros foram entregá-la,
quando entraram no cárcere três criados de num prato, à filha de Herodíades.
Herodes e um carrasco, pois a implacável A santíssima alma do Batista foi
ira da tão cruel quanto adúltera mulher, enviada por nosso Redentor ao limbo,
tudo providenciara sem perda de tempo. conduzida por grande multidão de anjos.
A sua chegada renovou a alegria dos san-
tos pais que ali se achavam. Os Reis-do
céu, Jesus e Maria, voltaram ao lugar em
que estavam antes de ir visitar São João.
Sobre a santidade e excelência
deste grande Precursor, muito se escreveu
na santa Igreja. Ainda que faltem algumas
coisas das que entendi, não posso deter-
me a escrevê-las, para não me desviar de
minha finalidade nem alongar mais esta
divina História.
Digo apenas que o feliz Precursor
recebeu muitos e grandes favores de
Cristo, nosso Senhor e sua Mãe santís-
sima, durante toda sua vida: em seu ditoso
nascimento, no deserto, na pregação e em
sua santa morte. A nação alguma o poder
divino concedeu tantos benefícios.
DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU
MARIA SANTÍSSIMA.
205
CAPÍTULO 5
OS FAVORES QUE OS APÓSTOLOS DE CRISTO
RECEBERAM PELA DEVOÇÃO POR SUA MÃE
SANTÍSSIMA. POR NÃO A TER, JUDAS SE PERDEU.
Convívio de Maria santíssima muito pouco, mas suficiente para nossa
instrução.
1079. Milagre dos milagres da A todos os discípulos que recebia
Onipotência divina e maravilha de em sua divina escola, o Senhor infiindia-
prodígios era o procedimento da pruden- lhes no coração a devoção e reverência
tíssima Senhora nossa, no colégio dospor sua Mãe santíssima. Assim convinha,
pois iriam tratar com Ela e viver familiar-
mente em sua companhia. Esta semente
de luz divina não era igual para todos, por-
que o Senhor distribuía estes dons de
acordo com as disposições das pessoas e
os ministérios e ofícios a que eram desti-
nados.
O trato e convívio amabilíssimo e
admirável da grande Rainha e Senhora de-
senvolvia essa graça inicial, e iam cres-
cendo em seu reverenciai amor e vene-
ração. A todos Ela falava, amava, conso-
lava, ensinava e socorria em todas as ne-
cessidades, de modo que, de sua presença
e conversação, jamais alguém se retirava,
sem estar cheio de alegria interior e de
maior conforto do que tinha desejado. O
bom fruto, maior ou menor destes favores,
dependia das disposições do coração que
Apóstolos e discípulos de Cristo, nosso recebia esta semente do céu.
Senhor e seu Filho santíssimo. Esta sabe-
doria é indizível e se tentasse dizer tudo
quanto entendi sobre ela, ser-me-ia ne- Admiração dos Apóstolos por Maria
cessário escrever um grande volume só
sobre este assunto. Direi alguma coisa 1080. Todos ficavam cheios de ad-
ne$te capítulo, e nos demais, conforme miração e com altíssimo conceito desta
Su<"girem as oportunidades. Tudo será grande Senhora, de sua prudência e sabe-
207
dona, de sua santidade e pureza, de sua São João ficaria no lugar dQ
alta majestade unida à suavidade tão próprio Jesus, como filho da puríssima
aprazível e humilde, que ninguém encon- Senhora, para a acompanhar e assistir na
trava palavras para exprimir. terra.
Assim o dispunha o Altíssimo, Ao governo e guarda destes dois
pois como disse no livro 5o, capítulo 2$, Apóstolos seriam confiadas as duas igre.
não era tempo para ser manifestada ao jas: a Igreja mística Maria santíssima e a
mundo esta mística arca do Novo Testa- Igreja militante dos fiéis. Por esta razào
mento. E, como o que deseja muito falar foram particularmente agraciados pelà
e não pode manifestar seu conceito, mais grande Rainha do mundo.
o concentra no coração; assim os santos Não obstante, como São João era
Apóstolos, docemente constrangidos pelo o escolhido para servi-la e chegar à dig-
próprio silêncio, transformavam seus ar- nidade de seu filho adotivo, recebeu
dores de amor por Maria santíssima em dons particulares na devoção a Maria
louvores de seu Criador. santíssima e logo se distinguiu nisso.
Em sua incomparável ciência, co- Ainda que, em tal matéria, todos os
nhecia a grande Senhora as capacidades Apóstolos excederam nossa capacidade
de cada um, sua graça, disposição e minis- de compreensão, o Evangelista João
tério a que estava destinado. De acordo penetrou mais nos ocultos mistérios
com esta inteligência, em seus pedidos ao desta mística cidade do Senhor, e por Ela
Senhor, em seu ensinamento, palavras e recebeu tanta luz sobre a divindade que
favores, procedia com cada um deles, excedeu todos os Apóstolos, como
segundo convinha à vocação que tinham prova seu Evangelho (Jo 21, 20). Toda
recebido. aquela sabedoria lhe foi concedida por
Este modo de. proceder, numa pura meio da Rainha do céu e a prerrogativa
criatura, tão à medida do agrado do Se- de chamar-se apóstolo amado de Jesus,
nhor, foi nova e grande admiração para os também a alcançou pelo amor que devo-
santos anjos. Através de oculta providên- tou à sua Mãe santíssima.
cia, o Todo-poderoso inclinava os Após- Pela mesma razão, foi também
tolos a corresponderem aos benefícios e correspondido pela divina Senhora, vindo
favores recebidos de sua Mãe. Tudo isto a ser por excelência, o discípulo amado de
formava divina harmonia oculta aos Jesus e de Maria.
homens, e só dos espíritos celestiais co-
nhecida.
O Apóstolo predileto
São Pedro e São João 1082. Além da castidade evirginal
pureza, o santo Evangelista possuía algu-
1081. Nestes favores, foram privi- mas virtudes prediletas da Rainha. Entre
legiados os dois Apóstolos São Pedro e elas, sinceridade columbina que trans-
São João. O primeiro porque seria vigário parece também em seus escritos; hu-
de Cristo e cabeça da Igreja militante. Por mildade e serena mansidão que o tornava
causa desta excelência a que o Senhor o de trato aprazível.
elevaria, Maria santíssima tinha para com A divina Mãe chamava retratos de
São Pedro especial reverência, amor e res- seu Filho santíssimo, a todos os pacíficos
peito.
e humildes de coração.
Distinguindo-se, entre todos os santíssima de nossa grande Senhora, ele
Apóstolos, nestas virtudes, mereceu a produzia agradabilíssima harmonia. Na
predileção da Rainha e possuiu as dis- minha, desejo louvar com júbilo ao Se-
posições para se imprimir em seu coração, nhor, por que sem o merecer, sob este
reverenciai amor e desejo de servi-la. mesmo nome chamou-me à luz e fé da
Desde sua primeira vocação como santa Igreja e ao instituto religioso que
acima disse^, São João começou a dis- professo.
tinguir-se entre todos, na veneração a Ma- Os demais Apóstolos e discípulos
ria santíssima, dedicando-lhe reverente conheciam a graça que São João gozava
obediência de humilíssimo escravo. Mais junto a Maria santíssima, e muitas vezes
freqüentemente, quanto lhe era possível, recorriam a ele para que lhes servisse de
ficava com Ela e procurava ajudá-la em intercessor nas coisas que desejavam
trabalhos que a Senhora do mundo fazia pedir. Acedia o amável Apóstolo e inter-
por suas mãos. Algumas vezes, o feliz vinha com seus rogos junto à doce Mãe,
Apóstolo desempenhava estes serviços cuja amorosa piedade conhecia.
humildes, em santa porfia com os anjos A respeito deste assunto falarei
da Rainha, a qual vencia a todos, pois na mais, principalmente na terceira parte e
humildade jamais alguém pode superá-la poder-se-ia escrever uma extensa His-
ou igualá-la, ainda no menor de seus atos. tória, só dos favores que São João Evan-
O discípulo amado era também gelista recebeu da Rainha e Senhora do
muito diligente em referir à grande Se- mundo.
nhora todas as obras e maravilhas do Sal-
vador, quando Ela não se achava presente,
como também das pessoas que se conver- São Tiago, Santo André, as santas
tiam e abraçavam a sua doutrina. Cuidava, mulheres e demais discípulos
sempre atento, em saber no que mais a po-
dia agradar e servir, e como o entendia, 1084. Depois de São Pedro e São
assim o praticava. João, foi muito amado pela Mãe santís-
sima o apóstolo São Tiago, irmão do
Evangelista. Recebeu admiráveis favores
Veneração de São João por Maria da grande Senhora, como veremos na ter-
ceira parte.
1083. Distinguiu-se também São Santo André foi também caríssimo
João na reverência com que nomeava Ma- à Rainha, porque sabia que este grande
ria santíssima. Em sua presença tratava-a apóstolo seria especial devoto da Paixão
por Senhora, ou minha Senhora, e na e Cruz de seu Mestre e como este, nela
ausência chamava-a Mãe de nosso Mestre morreria.
Jesus. Depois da Ascensão, foi o primeiro Não me detenho a falar dos de-
a lhe dar o título de Mãe de Deus e do mais, mas a todos eles, pelas virtudes de
Redentor do mundo, e na sua presença, cada um, e por amor de seu Filho santís-
Mãe e Senhora. Dava-lhe também outros simo, amava e respeitava com rara
títulos; Restauradora do pecado, Senhora prudência, caridade e humildade.
dos povos, e foi ele que primeiro a chamou Deste grupo, fazia parte a Ma-
Maria de Jesus, como muitas vezes foi dalena a quem nossa Rainha olhava afetu-
nomeada na primitiva Igreja. Deu-lhe este osamente, por causa do amor que ela tinha
nome, porque compreendeu que na alma a seu Filho santíssimo, e porque viu que
o coração desta grande penitente era amou com seu amor infinito, sem reservas
idôneo para o Todo-poderoso ser nela glo- nem medida? Os anjos amam-na com to-
rifícado. Tratou-a Maria santíssima muito das suas forças espirituais. Os Apóstolos
familiarmente entre as demais mulheres, e Santos com íntimo e cordial afeto. Se
e a instruiu sobre altíssimos mistérios, todas as criaturas a amarem com entusi-
com que a enamorou ainda mais de seu asta porfia, ainda será menos do que Ela
Mestre e da mesma Senhora. merece.
A santa confiou à nossa Rainha A infelicidade de Judas começou
seus desejos de se retirar à solidão para por não se colocar neste caminho real
viver só para o Senhor, em contínua para chegar ao amor divino e seus dons
penitência e contemplação. A amorosa A inteligência que disso me foi dada para
Mestra lhe deu importantes instruções o escrever, é como segue.
para a vida que a Santa levou no êrmo,
onde a visitou pessoalmente, uma vez, e
muitas outras por meio dos anjos que en- História de Judas
viava para animá-la e consolá-la naquela
austeríssima solidão. 1086. Judas entrou na escola de
As outras mulheres que seguiam o Cristo, nosso Mestre, atraído exterior-
divino Mestre foram também muito fa- mente pela força de sua doutrina, e inte-
vorecidas por sua Mãe santíssima. A elas riormente, pelo bom espírito que movia a
e a todos os discípulos prodigalizou in- outros.
comparáveis benefícios, e todos foram in- Conduzido por estas graças,
tensamente afeiçoados e devotos desta pediu ao Salvador que o aceitasse entre
grande Senhora e Mãe da graça. Nela e seus discípulos, e o Senhor o recebeu
por Ela, todos encontraram copiosamente com sentimentos de amoroso pai que
esta graça, pois a Senhora era como que a não despreza ninguém que o procure
sua fonte e o reservatório, onde Deus a sinceramente.
depositava para o bem de todo o gênero A princípio, Judas recebeu outros
humano. favores da divina destra, de modo que se
Não me estendo mais sobre este as- distinguiu entre outros discípulos e foi
sunto. Além de não ser necessário, pelo nomeado um dos doze apóstolos. O Se-
conhecimento que existe na santa Igreja, nhor o amava realmente, conforme o
seria mister muito tempo para tratar desta estado de sua alma e boas obras que então
matéria. fazia.
A Mãe da graça também o olhou
com misericórdia, ainda que, por sua ciên-
Judas o apóstolo infiel cia infusa, logo conheceu a traição infame
que ele cometeria no fim de sua carreira.
1085. Somente do mau apóstolo Todavia, nem por isto lhe negou sua inter-
Judas direi algo do que compreendi, por cessão e caridade maternal. Pelo con-
ser menos conhecido. E exigido para esta trário, a divina Senhora tomou por sua
História, a fim de servir de lição aos pe- conta justificar, quanto lhe era possível
cadores, desengano aos obstinados e aviso a causa de seu Filho santíssimo com o in-
aos pouco devotos de Maria santíssima. feliz Apóstolo. A maldade do traidor não
Haverá alguém que o seja pouco, de deveria encontrar nenhuma desculpa»
criatura tão amável que o mesmo Deus mesmo aparente e humana.
Sexto Livro Capítulo 5
21!
Sexto Livro - Capítulo 5
má vontade pela amorosa Mãe, começou Cristo nosso Salvador e sua Mãe santís.
a aborrecer-se de seu Mestre, a desgostar- sima, a respeito de Judas, depois de sua
se de sua doutrina e a achar pesada a vida queda em pecado. De tal modo o toleraram
dos Apóstolos e a convivência com eles. em sua companhia, que jamais lhe
mostraram semblante carregado, nem
deixaram de o tratar com a mesma bon-
Judas não aceita correção dade como aos demais.
Esta foi a causa dos Outros
1089. Apesar de tudo, a divina Apóstolos nada suspeitarem do mal ín-
Providência não o abandonou logo, e sem- timo de Judas, ainda que seu procedi-
pre lhe enviava auxílios interiores. Ainda mento dava grandes indícios de sua má
que fossem menos especiais dos que re- consciência. Não é fácil, e quase im-
cebia antes, eram suficientes, se ele os possível, forçar sempre as inclinações
aproveitasse. para as dissimular. Não se estando muito
Além destas graças, não cessou a prevenido, sempre agimos conforme nos-
clementíssima Senhora de exortá-lo cari- sas tendências e costumes, e então, elas se
nhosamente para que se humilhasse, e revelam aos que convivem conosco.
pedisse perdão a seu divino Mestre e ver- O mesmo sucedia com Judas entre
dadeiro Deus. Em nome do Senhor, ofere- os Apóstolos, mas como todos viam a
ceu-lhe misericórdia, e de sua parte o afabilidade e amor com que Cristo, nosso
acompanharia, rogaria por ele e faria Redentor, e sua Mãe santíssima sempre o
penitência por seus pecados. D'ele só de- tratavam, julgavam enganar-se nas sus-
sejava que se arrependesse e se emen- peitas e maus indícios da queda do infiel
dasse. Apóstolo.
Todas estas oportunidades ofere- Por esta mesma razão, quando na
ceu-lhe a Mãe da gráça para remediar, no última ceia legal lhes disse o Senhor que
princípio a queda de Judas. Sabia que o um deles O havia de entregar (Mt 26,21;
maior mal não era cair, mas permanecer Mc 14, 18; Lc 22, 21; Jo 13, 18), senti¬
no pecado sem se levantar. ram-se todos assustados e duvidosos, e
O soberbo discípulo não podia cada um perguntava se iria ser o traidor.
negar o testemunho que sua consciência Gozando São João de maior in-
dava de seu mau estado. Não obstante, foi timidade com o Mestre, chegou a ter al-
se obstinando. Temendo a vergonha do guma luz sobre as maldades de Judas, e
que lhe podia conquistar glória, caiu na com isso se preocupava. Por este motivo
confusão que aumentou seu pecado. Com revelou-lhe o Senhor, por sinais, con-
tal soberba, não aceitou os salutares con- forme narra o Evangelho (Jo 13,26). Até
selhos da Mãe de Cristo, negou sua culpa, aquela hora, porém, o divino Mestre
protestando com fingidas palavras que nunca dera a perceber o que se passava
amava seu Mestre. E, quanto ao mais, em Judas.
nada tinha do que se emendar. Esta paciência é ainda mais ad-
mirável em Maria santíssima que, sendo
Mãe e pura criatura, via que já se aproxi-
Caridade e paciência de Jesus e Maria mava a traição que aquele desleal
discípulo cometeria contra seu Filho san-
1090. Foi admirável o exemplo de tíssimo, a quem amava como Mãe e nao
caridade e paciência que nos deixaram como serva.
212
.- — . , —,
Sexto Livro - Capítulo 5
nome, procedia do desejo que ele tinha de interiormente da fé, resolveu dirigir.Se
servir a ela e a seu Filho, com toda a dedi- pessoalmente a Cristo, seu divino Mestre
cação, pois nem todos tinham nisso o cui- e Salvador.
dado que era justo. Portanto, suplicava- Como arguto pretendente, vestiu
lhe que o alcançasse de seu Mestre. sua maldade com pele de ovelha, aproxi-
mou-se de Jesus e lhe disse: Mestre, de-
sejo fazer vossa vontade e vos servir
Maria procura dissuadi-lo sendo administrador das esmolas que re-
cebemos. Acudirei aos pobres, praticando
1093. Com grande mansidão, res- vossa doutrina de fazer com o próximo o
pondeu-lhe a Senhora do mundo: Consi- mesmo que desejamos seja feito a nós.
dera bem, caríssimo, o que pedes, e examina Procurarei distribuir com ordem e con-
se é reta a intenção com que o desejas. Re- veniência, de acordo com vossa vontade,
flete se te convém apetecer o que teus ir- melhor do que se fez até agora.
mãos, os discípulos, temem e só aceitariam Estas e outras razões disse o
obrigados pela obediência a seu Mestre e hipócrita a seu Deus e Mestre, cometendo
Senhor. Ele te ama mais do que tu a ti de uma vez, muitos e enormes pecados.
mesmo, e sabe, sem se enganar, o que te Em primeiro lugar, mentia, porque tinha
convém. Entrega-te à sua santíssima von- outra intenção. Além disto, fingia o que
tade, muda teus planos e procura entesourar não era: ambicioso da honra que não
humildade e pobreza. Levanta-te donde merecia, não queria parecer o que era, nem
caíste que eu te darei a mão, e meu Filho ser o que desejava parecer. Murmurou de
usará contigo de sua amorosa misericórdia. seus irmãos desacreditando-os e louvando
A quem não dobrariam estas doces a si mesmo. Caminhos estes muito batidos
palavras e enérgicas razões, ouvidas de pelos ambiciosos.
tão divina e amável criatura como Maria O mais grave é que perdeu a fé in-
santíssima? Todavia, não se abrandou fusa, pretendendo enganar Cristo, seu ce-
nem comoveu aquele feroz coração, duro lestial Mestre, com fingimento e hipo-
como diamante. Pelo contrário, irritou-se crisia. Se cresse firmemente que Cristo era
interiormente, dando-se por ofendido pela verdadeiro Deus como verdadeiro ho-
divina Senhora que lhe oferecia o remédio mem, não poderia pensar em enganá-lo,
de sua mortal doença. pois como Deus, conhecia o íntimo de seu
Um ímpeto desenfreado de am- coração (Jo 6,65).
bição e cobiça da paixão concupiscível, Não só com sua ciência infinita,
irrita à irascível contra quem a estorva, e mas ainda como homem, pela ciência in-
reputa os bons conselhos por agravos. A fusa e beatíssima, o conhecia. Se Judas
amantíssima e amável pomba, porém, assim cresse, teria desistido de seu pro
deixou passar e, por então, não falou mais jeto. A todos os outros pecados, portanto,
com o obstinado Judas. acrescentou o da heresia.
Nestes bens temporais que tanto cobiçam satisfazer seus desejos em coisas tempo-
já recebem a recompensa de algum bem rais, para afastá-los do perigo. Para que
que hajam feito. Nisto entenderás a ilusão não caias nele, te admoesto e mando que
de muitos seguidores do mundo que sejul- jamais apeteças, nem te inclines a coisa
gam ditosos e felizes, quando conseguem humana.
tudo o que desejam para satisfazer suas Afasta tua vontade de tudo; con-
terrenas inclinações. Esta é a sua maior serva-a livre e senhora; liberta-a do ca-
infelicidade, porque nada lhes fica para tiveiro e escravidão a que conduzem as
ser premiado na vida eterna. inclinações. Nada queiras fora da vontade
Os justos, ao contrário, despreza- do Altíssimo, pois que o Senhor tem cui-
ram o mundo, nele sofreram adversi- dado (Mt 6,30) dos que se entregam à sua
dades, e o Senhor, muitas vezes, recusa divina Providência.
De uma das estradas que levam de Nazaré à Judéia está bem à vista o monte Tabor, em
cujo vértice é levantado este Santuário.
2i7
218
CAPÍTULO 6
TRANSFIGURAÇÃO DE CRISTO, NO TABOR, COM A
PRESENÇA DE SUA MÃE SANTÍSSIMA. SOBEM DA
GALILÉIA PARA JERUSALÉM. A UNÇAO FEITA POR
MADALENA EM BETANIA.
A transfiguração Cristo, nosso Senhor, os dois profetas
Moisés e Elias com ele falando sobre sua
1099. Decorrera mais de dois anos Paixão. Enquanto se achava transfigurado
e meio da pregação e milagres de nosso veio uma voz do céu que, em nome do
Redentor e Mestre Jesus. Aproximava-se eterno Pai, disse: Este é meu Filho muito
o tempo marcado pela eterna sabedoria amado em quem me comprazo; a Ele de-
para voltar ao Pai, por meio de sua paixão veis ouvir.
e morte, e com ela deixar satisfeita a divina
justiça e redimido o gênero humano.
Como todas as suas obras eram or- A transfiguração e Maria
denadas à nossa salvação e ensinamento,
cheias de divina sabedoria, determinou o 1100. Não dizem os Evangelistas
Senhor, preparar alguns de seus apóstolos que Maria santíssima estivesse presente
para o sobressalto que sua morte lhes iria ao prodígio da transfiguração, mas tam-
produzir (Mt 26, 31). Quis, antes, lhes pouco o negam. Isto não pertencia à sua
mostrar glorioso, aquele corpo passível finalidade, nem convinha manifestar nos
que depois veriam açoitado a crucificado. Evangelhos o oculto milagre com que se
Vê-lo-iam transfigurado pela glória, antes realizou.
de o ver desfigurado pelas dores. Para escrever esta história, a mim
Pouco antes ele fizera esta foi dado a compreender o seguinte: ao
promessa diante de todos, embora apenas mesmo tempo que alguns anjos trouxeram
para alguns, como refere o evangelista a alma de Moisés e Elias, a divina Senhora
São Mateus (Mttó,28). foi levada por seus santos anjos ao monte
Para isto escolheu um alto monte, Tabor, para ver seu Filho santíssimo trans-
o Tabor, situado no centro da Galiléia, a figurado, e realmente o viu.
duas léguas de Nazaré para o oriente, Ainda que não fosse necessário
subindo até seu cume. Com os três fortalecer a fé da Mãe santíssima como a
Apóstolos, Pedro, Tiago e seu irmão João, dos apóstolos, pois nela estava confir-
transfigurou-se diante deles, como nar- mada e seguríssima, teve o Senhor muitos
ram três evangelistas: Mateus (17, 1-4); fins no prodígio da Transfiguração.
Marcos (9,1); Lucas (9,28). Acharam-se Além disso, para sua Mãe santís-
também presentes na transfiguração de sima havia outras razões particulares, para
Sexto Livro Capítulo 6
Cristo nosso Redentor celebrar tão grande estar habituada a tantas e tão grandes
mistério em sua presença. O que para os graças, fôra repleta de novas disposiçòes
apóstolos era favor, para a Rainha e Mãe iluminação e fortaleza para ver a divinl
era como devido, sendo ela sua compa- dade. Assim, pôde ver o corpo transfigu^
nheira e coadjutora da Redenção até a rado sem se ofuscar e sem sofrer o temor
cruz. Convinha, por esta graça, confortar e desfalecimento que os apóstolos so-
sua alma santíssima para os tormentos que freram na parte sensitiva.
iria padecer. Ficando depois, por Mestra A Mãe santíssima já vira outras
da santa Igreja, daria testemunho deste vezes o corpo de seu Filho santíssimo
mistério. Seu Filho santíssimo não lhe iria transfigurado, como acima disse*1*. Nesta
ocultar o que, tão facilmente, lhe podia ocasião, porém, foi com novas circunstân-
manifestar, pois lhe mostrava todas as cias que lhe produziram maior admiração
operações de sua alma santíssima. inteligência e outros singulares favores
Seu amor filial pela Mãe não lhe Em igual proporção, foram os efeitos pro-
negaria este favor, quando não deixou de duzidos em sua alma puríssima, tendo
lhe fazer quantos lhe provavam seu ternís- saído desta visão, toda renovada, infla-
simo afeto. Pessoalmente, para a grande mada e deificada.
Rainha, resultava em maior excelência e Enquanto viveu em carne mortal,
dignidade. Por estas razões e outras mui- nunca perdeu as espécies desta visão da
tas, que não é necessário referir agora, foi-humanidade gloriosa de Cristo nosso
me dado a entender que Maria santíssima Senhor. Serviu-lhe de grande consolo na
assistiu a Transfiguração de seu Filho san- ausência de seu Filho, enquanto não lhe
tíssimo e Redentor nosso. foi renovada sua imagem gloriosa em
outras visões, como veremos na terceira
parte. Não obstante, foi também motivo
Visão da Virgem para sentir mais as afrontas de sua
Paixão, tendo-o visto como Senhor da
1101. Durante o tempo em que se glória.
realizou este mistério, a Virgem viu, não
apenas a humanidade de Cristo transfigu-
rada e gloriosa, mas também a divindade, Explicação da Transfiguração
clara e intuitivamente. A graça feita aos
Apóstolos, foi para ela muito maior e mais 1102. Os efeitos que em sua alma
perfeita. santíssima produziu esta visão de Cristo
Mesmo na visão da glória do glorioso, não se podem explicar humana-
corpo, a todos manifesta, houve grande mente. Ver, com tanto esplendor, aquela
diferença entre a divina Senhora e os substância que o Verbo tomara de seu
apóstolos. Eles, a princípio, quando o Sen- próprio sangue, que trouxera em seu vir-
hor se retirou a orar, ficaram sonolentos, ginal seio e alimentara com seu leite; ouvir
como diz São Lucas (9, 32). Depois, ao a voz do Pai reconhecendo por Filho
ouvir a voz do céu, com grande temor aquele que também era seu, dando-o por
caíram com o rosto por terra, até que o Mestre aos homens; a prudentíssima Mãe
Senhor lhes falou e os levantou, como penetrava, agradecia e louvava digna-
narra São Mateus (17, 6). mente ao Todo-poderoso por todos estes
A divina Mãe, porém, em tudo mistérios. Fez novos cânticos com seus
conservou-se inalterável, pois além de anjos, celebrando aquele dia tão festivo
l-n°69S.851.
Sexto Livro - Capítulo 6
para sua alma e para a humanidade de seu fervoroso desejo de sofrer, e voluntaria-
pilho santíssimo. mente oferecer-se pelo gênero humano.
Não me detenho em explicar Não voltaria mais à Galiléia onde re-
outras coisas deste mistério, e em que con- alizara tantos prodígios.
sistiu a transfiguração do sagrado corpo Ao sair de Nazaré, adorou ao
de Jesus. Basta saber, que seu rosto eterno Pai agradecendo-lhe, enquanto
resplandeceu como o sol e suas vestes fi- homem, por ter, naquela casa e lugar, re-
caram mais brancas que a neve (Mt 17, cebido a forma e ser humano que, pela sal-
2). Esta glória no corpo resultou da que o vação dos homens, ofereceria à paixão e
Salvador sempre possuiu em sua alma morte. Nesta oração que não posso expli-
divinizada e gloriosa. car com palavras, entre outras muitas,
Na Encarnação, fez o milagre de Cristo nosso Redentor disse estas:
suspender os efeitos de glória que ela, per-
manentemente, devia refletir sobre o
corpo. Agora, na transfiguração, cessou, Oração de Cristo
de passagem, aquele milagre, e o corpo
puríssimo participou da glória da alma, 1104. Meu eterno Pai, para vos
sendo isso o esplendor e claridade vistos obedecer vou, com alegria e boa vontade,
pelos que a assistiam. Terminada a Trans- satisfazer vossa justiça e padecer até mor-
figuração, continuou o milagre de se sus- rer para reconciliar convosco todos os fi-
pender os efeitos da alma gloriosa. Visto lhos de Adão (Rom 5, 10). Pagarei a
que esta era sempre beatificada, foi tam- dívida de seus pecados, e abrir-lhes-ei as
bém prodígio que o corpo recebesse ape- portas do céu que estes tinham fechado.
nas de passagem, o que, normalmente, Vou à procura das almas que, dei-
sempre deveria ter. xando-me se perderam (Lc 19, 10), e se
hão de salvar pela força de meu amor. Vou
reunir os dispersos da casa de Jacó (Is 56,
Última viagem de Jesus 8), erguer os caídos, enriquecer os pobres,
refrigerar os sedentos, derrubar os sober-
1103. Celebrada a Transfiguração, bos e exaltar os humildes.
a Mãe santíssima foi trazida de volta à sua Quero vencer o inferno e enaltecer
casa em Nazaré. Seu Filho santíssimo des- o triunfo de vossa glória contra Lúcifer
ceu do monte e veio encontrá-la, para se (Uo 3, 8) e os vícios que semeou no
despedir de sua terra, e dirigir-se a Jerusa- mundo. Quero arvorar o estandarte da
lém onde deveria padecer na Páscoa, a cruz, sob a qual hão de militar todas as
última para o Senhor. virtudes e quantos a seguirem (M116,24).
Passados alguns dias saiu de Na- Quero saciar a sede de meu coração pelos
zaré acompanhado de sua Mãe santíssima, opróbrios (Tren 3, 30) e afrontas, a vos-
dos apóstolos, discípulos e outras santas sos olhos tão estimáveis. Quero humi-
mulheres, percorrendo o centro da Gali- lhar-me até receber a morte da mão de
léia e Samaria até chegar em Jerusalém na meus inimigos, para que vossos amigos
Judéia. e escolhidos sejam honrados e conso-
O evangelista São Lucas descreve lados em suas tribulações, exaltados
esta viagem dizendo que o Senhor, resolu- com eminente e copiosa recompensa,
tamente, encaminhou-se para Jerusalém quando a meu exemplo se humilharem
(Lc 9,51). Partiu com alegre semblante e a padecê-las (FHp 28),
221
Sexto Livro - Capítulo 6
Oh! cruz suspirada, quando me re- xamos a vaidade (SI 4, 3). Tendo diante
ceberás em teus braços? Oh! doces dos olhos a vida e a verdade, sempre so
opróbrios e dolorosas afrontas, quando mos arrastados pelo deleite, avessos ao
me levareis à morte para deixá-la vencida que é penoso.
em minha carne (Heb 2,17) quç em tudo Oh! lamentável erro! Trabalhar
foi inocente? Dores, opróbrios, igno- tanto para fugir de pequeno trabalho, can-
mínias, açoites, espinhos, paixão, morte, sar-se demasiado por não aceitar pequeno
vinde a mim que estou à vossa procura; incômodo, preferir estultamente sofrer
deixai-vos logo encontrar por quem vos uma ignomínia e vergonha eterna, a pade-
ama e conhece vosso valor. cer uma insignificante, e mesmo por nào
Se o mundo vos aborrece eu vos se privar de uma honra vã e aparente!
cobiço. Se ele, ignorante, vos despreza, Quem dirá, se tiver são juízo, que
Eu que sou a verdade e sabedoria, vos pro- isto é amar-se a si mesmo? Ofendendo a
curo porque vos amo. Vinde, pois, a Mim, Deus, nos prejudicamos mais, do que nos
receber-vos-ei como homem, e como poderiam lesar as perseguições do ini-
Deus vos darei a honra que vos tirou o migo.
pecado e quem o comete. Consideramos inimigo aquele
Vinde a Mim e não frustreis meus que, debaixo de lisonjas e carícias, nos
desejos. Se não vos aproximais porque arma traição, e louco seria quem, sabendo,
sou todo-poderoso, dou-vos licença para se entregasse a esta, por causa do pequeno
que em minha humanidade empregueis deleite daqueles. Se isto é verdade, onde
toda vossa ação. Não sereis por Mim re- está o juízo dos seguidores do mundo?
pelidos, como fazem os mortais. Acabe-se Quem lho roubou? Quem lhes estorva o
o engano e ilusão dos filhos de Adão que uso da razão? Oh! quão grande é o número
servem à vaidade e à mentira (SI 4, 3), dos néscios (Ecle 1,15)!
julgando infelizes os pobres, aflitos e in-
juriados pelo mundo. Quando virem o seu
verdadeiro Deus, Criador, Mestre e Pai Oração de Maria
padecer opróbrios, açoites, ignomínias,
tormentos, desnudez e morte de cruz, 1106. Somente Maria santíssima,
acabará o erro e terão por grande honra imagem viva de seu Unigênito, foi a única
seguir seu Deus crucificado. entre os filhos de Adão que se ajustou per-
feitamente à sua vontade e vida, sem dis-
cordar um ponto de todas suas obras e dou-
Incoerência dos homens trina. Ela foi a prudentíssima, plena de
ciência e sabedoria, que pode compensar
1105. Estas são algumas das razões as falhas de nossa ignorância ou estultice,
que me foi dado a entender brotavam do alcançando-nos a luz da verdade, para ilu-
coração do Mestre da vida, nosso Salva- minar nossas densas trevas.
dor. A realidade dos fatos manifestaram o Na ocasião de que vamos falando,
que minhas palavras não conseguem ex- aconteceu que a divina Senhora viu no
primir: o valor que via nos sofrimentos, espelho da alma santíssima de seu Filho,
na paixão, na morte e na cruz e o amor todos os atos e afetos interiores que ele
com que as desejou. fazia. Como essa visão era a norma de suas
Mesmo assim, nós, criaturas terre- ações, acompanhou-o naquela oração ao
nas, não abrandamos o coração e não dei- eterno Pai, dizendo interionnente: Deus
222
Sexto Livro - Capítulo 6
altíssimo e Pai das misericórdias, adoro Oh! filhos de Adão, tão enganados
teu ser infinito e imutável. Louvo-te e glo- e esquecidos de vós mesmos! Despertai
rifico-te eternamente porque neste lugar, de tão pesado sono e conhecei o peso de
depois de me haver criado, tua benigni- vossas culpas, pelo que custaram ao vosso
dade se dignou elevar-me à Mãe de teu mesmo Deus e Criador. Olhai meu
Unigênito, com a plenitude de teu espírito. delíquio, dor e amargura. Acabai de vos
Comigo, tua humilde escrava, convencer do mal que é o pecado.
enalteceste tuas antigas misericórdias.
Sem Eu o merecer, teu unigênito e meu na
humanidade que recebeu de minha su- Partida de Nazaré para Jerusalém
bstância, dignou-se conservar-me em sua
companhia, tão desejável, por trinta e três 1107. Não posso dignamente
anos. Durante este tempo gozei das in- manifestar todos os atos e conceitos que
fluências de sua graça e magistério e de a grande Senhora do mundo fez nesta
sua doutrina que iluminou o coração de última despedida de Nazaré: suas súplicas
tua serva. e orações ao eterno Pai, os doces e dolo-
rosos diálogos com seu Filho santíssimo,
Hoje, Senhor e Pai eterno, deixo a grandeza de sua amargura, os incom-
minha terra e acompanho meu Filho e meu paráveis méritos que adquiriu.
Mestre para cumprir tua vontade e assistir Entre o amor santo e maternal de
ao sacrifício de sua vida pelo gênero hu- verdadeira mãe com que desejava a vida
mano. Não há dor que se iguale a minha de Jesus e evitar-lhe os tonnentos que
dor (Tre 1» 12), pois hei de ver entregue havia de padecer, e conformidade com a
aos lobos sanguinários o Cordeiro que tira vontade dele e a do eterno Pai - seu co-
os pecados do mundo (Jer 11,19); aquele ração era traspassado pela dor, daquela es-
que é a viva imagem de tua substância pada penetrante que lhe profetizou Si-
(Sab 7,26; Heb 1,3) gerado ab aeterno e meão (Lc 2,35).
por todas as eternidades igual a ela; Nesta aflição, dizia a seu Filho
aquele, a quem Eu dei o ser humano em palavras prudentíssimas, cheias de sabe-
meu seio, verei entregue aos opróbrios da doria, meigas e dolorosas, por nào poder
morte de cruz, e desfigurada pelos tor- lhe evitar a Paixão, nem acompanhá-lo
mentos a beleza daquele rosto (Is 53, 2) morrendo com Ele. Nestas penas ultrapas-
que é a luz de meus olhos e a alegria dos sou, sem comparação, a todos os Mártires
anjos. que existiram e existirão até o fim do
Oh! se fora possível eu sofrer as mundo.
penas e dores que o esperam, e me en- Nestas disposições e sentimento,
tregar à morte para poupar sua vida! Re- ignorados pelos homens, prosseguiram os
cebe, Pai altíssimo, o sacrifício que com Reis do céu e terra, a viagem de Nazaré a
teu amado te oferece meu doloroso sen- Jerusalém, através da Galiléia, onde não
timento, a fim de que se cumpra tua san- mais voltou o Salvador do mundo, em sua
tíssima vontade e beneplácito. Oh! que vida mortal.
rápidos correm os dias e as horas, Como estava a terminar o tempo
aproximando a noite de minha dor e de trabalhar pela salvação dos homens,
amargura! Para a linhagem humana será foram maiores os prodígios que fez nestes
dia feliz, mas noite de aflição para meu últimos meses, antes de sua paixão e
coração tão contristado com a ausência morte, conforme é narrado pelos Evange-
do sol que o iluminava.
223
Sexto Livi - Capítulo 6
listas (Mt 13; Mc 10; Lc 9; Jo 7), desde morava a voltar.
a partida da Galiléia até o dia de sua en- O Senhor, como Deus e Filho, via
trada triunfante em Jerusalém, como direi o que acontecia à sua Mãe queridíssima.
adiante(2). Correspondia-lhe com a mesma fideli-
dade, dizendo-lhe interiormente as
Até esta ocasião, depois da festa palavras dos Cânticos que aqui se re-
dos Tabernáculos, o Salvador esteve per- alizaram literalmente: Feris.te meu co-
correndo a Judéia, aguardando o tempo ração, minha irmã, feriste-o com um dos
marcado para se oferecer em sacrifício, teus olhos (Cânt 4, 9). Ferido e vencido
quando e como Ele mesmo queria. por seu amor ia logo a seu encontro.
Conforme entendi, Cristo, nosso
Amor entre Filho e Mãe Senhor, enquanto homem, não poderia fi-
car longe da presença de sua Mãe, se aten-
1108. Nesta viagem, a Mãe santís- desse à intensidade da afeição que lhe
sima acompanhou-o sempre, salvo o dedicava, como Mãe que tanto o amava.
tempo em que se separavam para acudir a Sua vista e presença O consolava; a beleza
diferentes obras em beneficio das almas. daquela alma puríssima dava-lhe prazer e
Nestas ocasiões, era acompanhada e tomava-lhe suaves os trabalhos e penali-
servida por São João. Desde esse tempo, dades, dos quais Ela era o fruto, entre to-
o santo Evangelista percebia grandes dos, único e singular. Sua amabilíssima
mistérios e segredos da puríssima Virgem presença era de grande alívio para as
Mãe, sendo ilustrado com altíssima luz penas sensíveis do Senhor.
para entendê-los.
Entre as maravilhas que a pruden-
tíssima e poderosa Rainha operava, as Volta de Cristo à Betânia
principais e de maior caridade, consistiam
em dirigir seus anseios e súplicas para a 1109. Continuava nosso Salvador
justificação das almas. Também Ela, a realizar maravilhas na Judéia, entre elas
como seu Filho santíssimo, fez maiores a ressurreição de Lázaro na Betânia (Jo
favores aos homens, trazendo muitos ao 11, 17), onde veio a chamado das irmãs
bom caminho, curando enfermos, visi- Marta e Maria. Muito próximo de
tando pobres, necessitados e desampara- Jerusalém, logo se divulgou ali o milagre,
dos. Ajudava-os a bem morrer, servia-os e os pontífices e fariseus, irritados com o
pessoalmente, principalmente aos mais prodígio, fizeram uma reunião para decre-
abandonados, doentes e chagados. tar a morte do Salvador (Jo 11,47). Orde-
De tudo era testemunha o Dis- naram que, se alguém tivesse notícia
cípulo amado que se encarregara de servi- d'Ele, o denunciasse, porque depois da
la. ressurreição de Lázaro, Jesus retirara-se à
A força do amor de Maria purís- cidade de Efren (Jo 11, 54) até a festa da
sima por seu Filho e Deus eterno crescera páscoa que não estava longe.
imensamente. Vendo-o agora prestes a se Ao chegar o tempò de voltar a cele-
despedir para voltar ao Pai, sofria a Mãe brá-la com a sua morte, abriu-se mais com
beatíssima tão contínuos ímpetos do co- os Apóstolos, dizendo-lhes que subiam a
ração no desejo de o ver, que chegava a Jerusalém, onde o Filho do Homem seria
sentir amorosos desfalecimentos quando entregue aos príncipes dos fariseus, pa*'a
fek se ausentava ou quando Ele se de- ser preso, açoitado e velipendiado ate a
Sexto Livro - Capitulo 6
Revolta de Judas
1111. O Mestre da verdade defen-
deu Madalena a quem Judas repreendia de
pródiga e irrefletida. Disse o Senhor, a ele
e aos demais, que não a incomodassem
(M126,10) porque aquele ato não era feito
sem justa razão. Os pobres, por causa
disso, não seriam privados das esmolas
que lhes quisessem dar todos os dias, mas
à sua pessoa nem sempre poderiam fazer
aquele obséquio. Era a sua sepultura que
a generosa e enamorada Madalena, inspi-
225
Sexto Livro - Capítulo 6
rada pelo céu, estava prevenindo com chamou-o em particular e com palavr
aquela misteriosa unção. Testemunhava, de grande doçura, entre copiosas IágrjS
assim, que o Senhor iria se sacrificar pelo mas, lhe mostrou o tremendo perigo què
gênero humano, e sua morte e sepultura corria. Pediu-lhe que mudasse de re
estavam muito próximas. solução, e se nutria rancor por seu Mestre
Nada disso, porém, entendeu o que se vingasse n'Ela, pois seria menor
pérfido discípulo, encolerizando-se mal, sendo Ela pura criatura, e Ele seu
contra seu Mestre por ter justificado o Mestre e verdadeiro Deus.
ato de Madalena. Vendo Lúcifer a dis- Para saciar a cobiça daquele ava-
posição daquele depravado coração, rento coração, ofereceu-lhe algumas
lançou-lhe novas setas de cobiça, raiva coisas que para isso a divina Mãe recebera
e mortal ódio contra o Autor da vida. de Madalena. Nenhuma destas deligên-
Desde esse momento, Judas decidiu cias, entretanto, foram capazes de abran-
maquinar a morte do Mestre desacredi- dar o ânimo endurecido de Judas, nem tào
tando-o, junto aos fariseus de Jerusalém vivas e suaves razões puderam impres-
como realmente e com audácia o fez. sionar seu coração mais duro que o
As ocultas, procurou-os e lhes diamante.
disse que seu Mestre ensinava leis novas, Pelo contrário, não achando o que
contrárias às leis de Moisés e dos impera- responder às justas palavras da prudentís-
dores; que era amigo de banquetes, de sima Rainha, calou e se irritou ainda mais,
gente perdida e mundana; que acolhia mostrando-se ofendido. Mas, nem por isso,
muitos homens e mulheres de má vida e se envergonhou de aceitai* o que Ela lhe deu,
andava em sua companhia. Que os fari- pois era tão ambicioso quanto desleal.
seus tratassem de ver isso, não viesse Deixando-o, Maria santíssima
acontecer alguma tragédia que depois não dirigiu-se a seu Filho e Mestre, e cheia de
pudessem remediar. amargura e lágrimas atirou-se a seus pés.
Como os fariseus pensavam de Procurou consolá-lo com grande com-
igual modo, manejados, tanto eles como paixão, pois via que sua humanidade san-
Judas, pelo príncipe das trevas, aceitaram tíssima se entristecia pelas mesmas razões
o conselho, e combinaram a venda de que depois o fez dizer aos discípulos:
Cristo nosso Salvador. minha alma está triste até a morte (Mt 26,
38). Estas penas eram produzidas pelos
pecados dos homens que haviam de per-
Obstinação de Judas der o fruto de sua paixão e morte, como
adiante direi ,
1112. Todos os pensamentos de Ju-
das eram conhecidos, não só do divino DOUTRINA DA RAINHA DO CÉU
Mestre, mas também de sua Mãe santís- MARIA SANTÍSSIMA.
sima. Nem por isto, o Senhor deixou de
lhe falar como amoroso pai, e de lhe enviar
ao obstinado coração santas inspirações. Pela cruz à glória
A estas, a Mãe de clemência acrescentou
novas exortações e diligências para im- 1113. Minha filha, continuando a
pedir o discípulo de cair no precipício. escrever a história de minha vida, cada dia
Naquela noite da ceia, que foi no vais compreendendo melhor o ardentís-
sábado antes do domingo de Ramos, simo amor com que meu Senhor e tu,
Sexto Livro - Capitulo 6
227
Sexto Livro - Capítulo f»
CAPITULO 7
OCULTO SACRAMENTO QUE PRECEDEU A ENTRADA
TRIUNFANTE DE JESUS EM JERUSALÉM E COMO FOI
RECEBIDO POR SEUS HABITANTES.
Os mistérios e sua revelação jecturas humanas. Assim, escrevo os que
me são declarados, entendendo que ainda
1115. Entre as obras de Deus ficam ocultos outros muitos, veneráveis e
chamadas ad extra, porque as fez fora de admiráveis.
Si mesmo, a maior foi assumir carne hu- Quero prevenir a piedade e a fé
mana, padecer e morrer pela salvação dos católica dosfiéis:tudo o que escrevi sobre
homens. esta matéria, principalmente a respeito da
Este mistério não poderia ter sido Paixão de nosso Redentor, são comple-
cogitado pela sabedoria humana (Mt 16, mentos colocados sobre a base e funda-
17), se o seu Autor não o revelara por tan- mento das verdades católicas. Crendo
tos argumentos e testemunhos. Apesar de nestas, osfiéisnão acharão dificuldade em
tudo, a muitos sábios segundo a carne, foi admitir aqueles complementos.
difícil acreditar no seu próprio bem e
remédio. Outros acreditaram, mas sem as
condições e as autênticas implicações do Jesus e Maria em oração
fato.
Quanto aos católicos, crêem, con- 1116. No sábado em que Madalena
fessam e conhecem este mistério no grau ungiu o Salvador em Betânia, terminada
da luz que dele recebeu a santa Igreja. Na a ceia, como disse no capítulo passado,
fé explicita dos mistérios revelados, con- nosso divino Mestre retirou-se a sós. Sua
fessamos implicitamente os outros que Mãe santíssima, depois de falar com o
em si encerram, e que não foram mani- obstinado Judas, foi à presença de seu
festados ao mundo. Filho amantíssimo acompanhando-o, co-
Deus não os revelou, ou por não mo costumava, em sua oração.
serem necessários, ou por não haver Estava o Senhor para entrar no
chegado o momento oportuno. Outros, maior combate do itinerário que, como diz
Ele os reserva para o último dia, quando David no salmo 18, 7, percorrera do su-
os corações forem desvendados na pre- premo céu à terra, onde venceu o
sença do justo juiz. A intenção do Senhor demônio, o pecado e a morte, para voltar
mandando-me escrever esta História - novamente ao céu.
como outras vezes disse, e em muitas o Ia livremente ao encontro da Pai-
entendi - é manifestar alguns destes ocul- xão e da Cruz, mas como Filho obedien-
tos mistérios, despidos de opiniões e con- tíssimo, ofereceu-se de novo ao eterno
Sexto Livro - Capítulo 7
Pai. Prostrado com a face em terra adorou- Logo elevou o Verbo humanado ao
o, louvou-o e fez profunda oração da altís- trono em que estava, e colocou-o à sua
sima conformidade com que aceitava as direita com a sua mesma supremacia e
ignomínias de sua Paixão, as penas, in- poder.
júrias e morte de cruz, pela glória de Deus
e resgate da linhagem humana.
Estava sua Mãe santíssima um O Salmo 109
pouco afastada, a um lado do feliz ora-
tório, acompanhando seu querido Filho e 1118. Permaneceu Maria santís-
Senhor na oração que ambos faziam, do sima em seu lugar, mas toda elevada e
íntimo de suas almas santíssimas e entre transformada em admirável júbilo e
muitas lágrimas. resplendor. Vendo seu Unigênito sentado
à destra de seu Pai pronunciou as primei-
ras palavras do Salmo 109, no qual David
O eterno Pai aceita o sacrifício de profetizou este oculto mistério: "Disse o
Cristo e Maria Senhor ao meu Senhor, senta-te à minha
direita." (VI)
1117. Antes da meia-noite apare- Comentando estas palavras, fez a
ceu o eterno Pai em forma humana visível, divina Rainha misterioso cântico em louvor
com o Espírito Santo e multidão de anjos do eterno Pai e do Verbo humanado. Ces-
que assistiam ao ato. O Pai aceitou o sa- sando ela de falar, prosseguiu o eterno Pai
crifício de Cristo, seu amantíssimo Filho, o resto do salmo, como executando em seu
e que n*Ele se executasse o rigor de sua imutável decreto, tudo o que contêm aquelas
justiça, e o mundo fosse perdoado. misteriosas e profundas palavras.
Disse o Pai eterno à Mãe beatís- Muito difícil é traduzir, em meus
sima: Maria, filha e esposa nossa, quero limitados termos, a inteligência que tenho
que mais uma vez entregues teu Filho para de tão alto mistério. Direi alguma coisa,
que me seja sacrificado, pois eu o entrego como o Senhor me conceder, para que se
pela redenção humana. entenda parte de tão oculto sacramento do
Respondeu a humilde e cândida Todo-poderoso, e o que o Pai eterno quis
pomba: Aqui está, Senhor, o pó e a cinza, dizer a Maria santíssima e aos espíritos
indigna de que vosso Unigênito e Re- angélicos que ali assistiam.
dentor do mundo seja meu. Submissa,
porém, à vossa inefável dignação que
lhe deu forma humana em meu seio, Interpretação do Salmo 109
ofereço-o e, com Ele, a mim mesma para
cumprir vosso divino beneplácito. Su- 1119. Prosseguiu o Eterno Pai:
plico-vos, Senhor e Pai eterno, me "Até que eu ponha teus inimigos por es-
aceiteis para sofrer juntamente com cabelodeteupés."(Sl 109,1)
vosso e meu Filho. Como te humilhaste obedecendo à
Recebeu o eterno Pai a oblação minha eterna vontade (Filp 2, 8-9), mere-
de Maria santíssima, aceitou-a como ceste a exaltação que te dou sobre as
agradável sacrifício e levantando do criaturas. Em a natureza humana que rece-
solo a Filho e Mãe, disse: este é o ben- beste, reinarás eternamente à minha direi'
dito fruto da terra, que minha vontade ta. Para sempre, colocarei teus inimigos
deseja. sob teus pés e sob o domínio que possuis
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Sexto Livro - Capítulo 7
como Deus e Redentor dos homens. cedes, por eterna geração, de meu fecundo
Aqueles que não te obedeceram nem acei- entendimento.
taram, verão rua humanidade que são os Esta geração precedeu o luzeiro da
teus pés, elevada e exaltada. graça, o decreto de nos manifestarmos às
Enquanto não o executo, pois é ne- criaturas, formado nos resplendores que
cessário que se complete a redenção hu- gozarão os Santos, quando forem beatifi-
mana, quero que meus cortesãos vejam cados com nossa glória.
agora, o que depois os demônios e os Também está contigo teu prin-
homens conhecerão: a posse de minha cípio, aquele que tiveste enquanto homem
destra, em troca de te haveres humilhado gerado no dia de teu poder. Desde o ins-
à morte ignominiosa de cruz. Se te entrego tante em que recebeste o ser humano pela
a ela e ao capricho da malícia deles, é para geração temporal em tua Mãe, começaste
minha glória, e para que depois, cheios de a adquirir o mérito que agora está contigo
confusão, sejam postos debaixo de teus e te faz digno da honra e glória que hão
pés. de coroar tua virtude, neste dia e no de
- Para isto, "o Senhor estenderá o minha eternidade.
cetro de teu poder desde Sião: dominarás - "O Senhor jurou e não se arrepen-
no meio de teus inimigos" (SI 109, 2). derá: tu és sacerdote para sempre, segundo
Eu, Deus onipotente, sou o que a ordem de Melquisedeque" (SI 109, 4)
sou, verdadeira e realmente (Ex 3, 14). Eu que sou o Senhor Todo-poderoso para
Estenderei e governarei o cetro de teu in- cumprir o que prometo, determinei firme-
vencível poder, não só depois que tenhas mente, com imutável juramento, que tu
triunfado da morte consumada pela re- fosses o sumo sacerdote da nova Igreja e
denção humana, quando te reconhecerem lei do Evangelho, segundo a antiga ordem
por seu Redentor, guia, Cabeça e Senhor do sacerdote Melquisedeque. Serás o ver-
de tudo. Quero que desde hoje, antes de dadeiro sacerdote que oferecerá pão e
padecer a morte, obtenhas admiravel- vinho, figurado na oblação de Mel-
mente este triunfo, enquanto os homens quisedeque (Gn 14,18). Não me arrepen-
te desprezam e tramam tua ruína. Quero derei deste decreto, porque essa oblação
que triunfes de sua maldade e da morte; será pura, aceitável, sacrifício de louvor
que na força de teu poder sejam compeli- para mim.
dos a honrar-te, te confessem e te adorem, - "O Senhor está á tua direita e es-
dando-te culto e veneração. Os demônios magará os reis no dia de sua ira" (SI 109,
sejam vencidos e confundidos pelo cetro 5). Pelas obras de tua humanidade, cuja
de teu poder, e os Profetas e justos que te destra é a divindade a ela unida, e em cuja
esperam no Limbo, reconheçam com virtude as realizarás: com o instrumento
meus anjos, esta maravilhosa exaltação de tua humanidade, Eu que sou um Con-
que mereceste em minha aceitação e bene- tigo (Jo 10, 30), esmagarei a tirania e
plácito. poder dos chefes e príncipes das trevas e
- "Contigo está o princípio, no dia do mundo, tanto anjos apóstatas como
de teu poder; nos resplendores dos Santos homens rebeldes que se recusaram
eu te gerei antes do luzeiro de minha adorar-te, reconhecer-te e servir-te, como
fecundidade" (SI 109,3). a seu Deus, Superior e Cabeça.
No dia desta virtude e poder que Executei esta punição, quando
tens para vencer teus inimigos, estou em Lúcifer e seus sequazes não te reconhe-
Ti e contigo, como princípio de quem pro- ceram. Para eles, esse foi o dia de minha
231
Sexto Livro - Capítulo 7
ira. Depois chegará aquele em que farei o salmo pronunciado pelo eterno Pai. \\ n ^
mesmo aos homens que não te houverem que algumas são ditas em terceira peSso 9
recebido e aceito tua santa lei. A todos hu- dizia-as de Si e do Verbo humanado
milharei e esmagarei com minha justa in-
dignação.
- "Julgará as nações, restaurará as
ruínas, e na terra esmagará a cabeça de
muitos." (SI 109,6),
Justificada tua causa contra to-
dos os filhos de Adão que não se
aproveitaram da misericórdia que usas
com eles, redimindo-os gratuitamente
do pecado e da eterna morte; Eu, o Se-
nhor, julgarei com equidade e justiça a
todas as nações. Separando os justos e
escolhidos, dos pecadores e réprobos,
encherei as vagas das ruínas deixadas
pelos anjos apóstatas que não conser-
varam sua graça e lugar. Com isto, es-
magarei na terra a cabeça dos soberbos,
que serão muitos, por sua depravada e
obstinada vontade.
- "Beberá da torrente no caminho;
por isso levantará a cabeça" (SI 109, 7).
O Senhor, Deus das vinganças, a
levantará para julgar a terra e retribuir aos
soberbos. Bebendo à torrente de sua in- Todos estes mistérios se referiam
dignação, embeberá suas flexas no sangue principalmente a dois pontos: primeiro, as
de seus inimigos (Dt 32,42), e com a es- ameaças contra os pecadores, infiéis e
pada de seu castigo os confundirá no maus cristãos, que não aceitaram o Reden-
caminho por onde deveriam ter chegado tor, ou não guardaram sua divina lei.
à sua felicidade. Deste modo, levantará Segundo, as promessas que o
tua cabeça e a exaltará sobre teus ini- eterno Pai fez a seu Filho humanado de
migos, desobedientes à tua lei, infiéis à glorificar seu santo nome vingando seus
tua verdade e doutrina. inimigos.
Isto será justificado pelo fato de Como penhor e garantia desta
teres bebido a torrente dos opróbrios e exaltação universal de Cristo depois da
afrontas, até a morte de cruz pela sua re- Ascensão, e ainda mais no juízofinal,or-
denção. denou o Pai que recebesse ao entrar em
Jerusalém, aquele aplauso e glória de seus
habitantes, no dia seguinte ao desta mis-
Exaltação universal de Cristo teriosa visão.
Terminada, desapareceu o Pai e o
1120. Estas e outras muitas ocultas Espírito Santo, com os anjos que admira-
e altíssimas inteligências, teve Maria san- dos, presenciaram este oculto sacra-
tíssima das misteriosas palavras deste mento.
Sexto Livro-Capitulo 7
Cristo, nosso Redentor, e sua Màe Narraram o que foi presenciado por todos
beatíssima permaneceram em divinos os circunstantes. Durante o caminho, eles
colóquios o resto daquela felicíssima noite. e todo o povo, pequenos e grandes, acla-
maram o Redentor como verdadeiro Rei.
Uns diziam: Paz no céu, glória nas
Entrada de Jesus em Jerusalém alturas, bendito O que vem como Rei em
nome do Senhor. Outros exclamavam:
1121. Chegado o dia correspondente Hosana ao Filho de David; salvai-nos,
ao domingo de Ramos, partiu Jesus para Filho de David, bendito seja o reino de
Jerusalém em companhia de seus discípulos nosso Pai David que está para vir.
e de muitos anjos que o louvavam, por vê-lo Uns e outros cortavam palmas e ra-
tão enamorado pelos homens e tão solícito mos de árvores, em sinal de triunfo e ale-
por sua eterna salvação. gria, e com suas vestes forravam o
Tendo caminhado duas léguas, mais caminho por onde passava o vencedor das
ou menos, chegando a Betfagé, enviou dois batalhas, Cristo nosso Senhor.
discípulos á casa próxima de um homem
abastado, para dali lhe trazerem dois
jumentinhos (M121,2), um dos quais ainda Cristo aclamado
não havia sido montado por ninguém.
Os discípulos estenderam suas ca- 1122. Todas estas nobres demons-
pas sobre os dois animais, e Nosso Senhor trações de culto e adoração que os homens
dirigiu-se para Jerusalém, servindo-se de prestavam ao Verbo divino humanado,
ambos no seu triunfo, conforme as pro- manifestavam o poder de sua divindade,
fecias de Isaias (62, 11) e Zacarias (9, 9). principalmente pelo momento em que
Muitos séculos antes as deixaram escritas, sucederam. Era a ocasião em que os sacer-
para que os sacerdotes e sábios da lei não dotes e os fariseus o esperavam, para ti-
alegassem ignorância. rar-lhe a vida nessa mesma cidade.
Os quatro Evangelistas escreve- Se não fossem movidos inte-
ram este maravilhoso triunfo de Cristo: riormente por sua virtude divina, superior
(Mt21,4Mc 11,1; Lc 19,30; Jo 12,13) a seus outros milagres, não seria possível
Sexto Livro - Capítulo 7
que tantos homens, muitos deles gentios, O poder divino moveu o coraçg
outros inimigos declarados, ao mesmo de outros muitos viventes em todo
tempo, o aclamassem por verdadeiro Rei, mundo. Os que tinham fé ou notícia rjç
Salvador e Messias. Cristo, Senhor nosso, não só na Palestin
Além disto, inclinavam-se a um e seus limites, como também no Egit0
homem pobre, humilde e perseguido, outros reinos, foram inspirados parae
apresentando-se sem o aparato de armas naquela hora, adorarem, em espírito, a seu
e poder humano: nem riquezas, nem car- e nosso Redentor. Assim o fizeram, com
ros de triunfo, nem soberbos cavalos. a especial consolação que lhes produziu a
Com exceção de seu semblante visita e influência da divina luz, embora
grave, sereno e cheio de majestade, cor- não conhecessem expressamente, nem a
respondente á sua oculta dignidade, tudo causa nem a finalidade daquela inspi-
lhe faltava. Chegava num humilde jumen- ração. Não foi, porém, sem proveito para
tinho, desprezível para o fausto e vaidade suas almas, pois seus efeitos as fizeram
mundana, e em tudo o mais, nada tinha do progredir muito na fé e na prática do bem
que o mundo aplaude e exalta. Para que o triunfo, que nessa
Deste modo, eram manifestos os ocasião, nosso Salvador obtinha sobre a
efeitos da força divina que movia a von- morte, fosse mais glorioso, ordenou o Altís-
tade e o coração dos homens a se renderem simo que naquele dia, ela não atingisse ne-
a seu Criador e Redentor. nhum dos mortais. Por isto, nesse dia não
morreu ninguém no mundo, ainda que, natu-
ralmente, deviam ter morrido muitos. Im-
Repercussão do triunfo no Limbo e pediu-o o poder divino, para que em tudo
noutras partes do mundo fosse adiriirável a vitória de Cristo.
1123. Além do movimento geral
produzido em Jerusalém, pela inspiração Triunfo sobre o inferno
que o Senhor enviou aos corações a fim
de que todos reconhecessem nosso Salva- 1124. A esta vitória sobre a morte,
dor, o triunfo se estendeu a todas, ou a seguiu-se a vitória sobre o inferno, ainda
muitas criaturas racionais. Assim se cum- mais gloriosa, embora oculta. No momento
pria o que o Pai eterno havia prometido a em que os homens começaram a aclamar
seu Unigênito, como fica dito , Cristo, por Salvador e Rei que vinha em
Quando Cristo, nosso Salvador, nome do Senhor, sentiram os demônios a
entrou em Jerusalém, o anjo São Miguel força de sua destra. Todos quantos estavam
foi enviado para anunciar este mistério pelo mundo, foram derrubados de seus lu-
aos santos Pais e Profetas do Limbo, que, gares e precipitados ao fundo dos cala-
ao mesmo tempo, tiveram particular visão bouços do inferno, e enquanto durou aquela
da entrada do Senhor e do mais que então recepção, nãoficounenhum demônio sobre
aconteceu. Daquela prisão onde se encon- a terra, mas todos caíram"*nos abismos com
travam, reconheceram e adoraram Cristo, grande raiva e terror.
nosso Mestre e Senhor, como verdadeiro Desde essa hora, suspeitaram com
Deus e Redentor do inundo. Fizeram-lhe maior probabilidade, que o Messias já se
novos cânticos de glória e louvor, pelo encontrava no mundo, e logo conferiram
seu admirável triunfo sobre a morte, o pe- entre si este receio, como direi no capi*u
cado e o inferno. seguinte.
Sexto Livro - Capítulo 7
berbos, quando se enaltecem, são humi- Como estás querendo saber a razà
lhados e detestados. Esta ciência, minha por que Eu não estive presente ao triUnf°
filha, por poucos é compreendida, pelo de meu Filho santíssimo, vou satisfazer °
que os filhos das trevas não sabem apete- teu desejo. Deves lembrar-te do que mui°
cer e procurar outra honra e exaltação, tas vezes escreveste nesta história- n ò
além daquela que o mundo lhes dá. espelho puríssimo do interior de meu
Os filhos da santa Igreja sabem e amado Filho eu gozava da visão de todos
confessam que essa glória é vã, sem con- os seus atos. Por esta visão, eu conhecia
sistência e que não dura mais do que a flor sua vontade, quando e para que se ausen-
e o feno, mas não vivem essa verdade. taria de mim. Prostrada a seus pés, suplí.
Como a consciência não lhes dá teste- cavâ-lhe, então, me declarasse o que eu
munho das virtudes e graça que não pos- deveria fazer para cumprir sua vontade e
suem, procuram o crédito dos homens, prazer. Algumas vezes, Ele me dizia ex-
suas honras e aplausos, ainda que tudo pressamente, e noutras deixava à minha
seja falso e cheio de mentira. Só Deus é escolha, para eu fazer uso da divina luz e
que, sem engano, honra e exalta quem prudência que me dera.
merece. O mundo, ordinariamente, faz o Isto fez na ocasião em que deter-
contrário, dando suas honras a quem minou entrar em Jerusalém triunfando de
menos as merece, ou a quem, mais sagaz seus inimigos; deixou à minha escolha
e ambicioso, as procura e solicita. acompanhá-lo ou permanecer em
Betânia. Pedi-lhe licença para não me
achar presente naquele acontecimento e
Fugir dos louvores lhe supliquei me levasse depois, consigo,
quando fosse sofrer e morrer. Julguei mais
1127. Foge, minha filha, deste acertado e agradável a seus olhos, ofere-
erro, não te afeições ao gosto dos homens, cer-me a padecer as ignomínias de suas
nem aceites suas lisonjas e afagos. Dá a dores e paixão, do que participar da honra
cada coisa o nome e estima que merece, visível que lhe davam os homens, e da
pois nisto andam muito às cegas os filhos qual eu receberia parte como sua Mãe.
deste século. Nenhum dos mortais pôde Este aplauso, além de não me ser
merecer a honra e aplauso das criaturas apetecível, eu compreendia que era orde-
quanto meu Filho santíssimo. Apesar nado para demonstração de sua divindade e
disso, Ele não deu importância para a que poder infinito. Isto não se referia a Mim, e
lhe tributaram na entrada de Jerusalém, a honra que me tivessem dado então, não
pois sua finalidade era de só manifestar aumentaria a que lhe era devida como Sal-
seu poder divino, e assim tomar depois vador único do gênero humano. Para gozar
mais ignominiosa sua Paixão. a sós deste mistério e glorificar o Altíssimo
Quis ensinar aos homens, que em suas maravilhas tive, em meu retiro, a
ninguém deve aceitar as honras visíveis inteligência e visão de tudo o que escreveste.
do mundo por si mesmas, se não pu- Isto servirá para ti de ensinamento para me
derem ser dirigidas ao fim mais elevado imitares: segue meus passos humildes, abs-
da glória e exaltação do Altíssimo. Sem trai tua afeição de todas as coisas da terra,
isto, são vãs, inúteis, sem fruto nem eleva-te às alturas e assim fugirás das honras
proveito, porque nelas não se encontra humanas, e as desprezarás, conhecendo na
a verdadeira felicidade das criaturas fei- luz divina, que são vaidades e aflição de
tas para a eterna. espírito (Ecle 1,17).
236
CAPÍTULO 8
JUNTA DOS DEMÔNIOS NO INFERNO. REUNIÃO DOS
PONTÍFICES E FARISEUS EM JERUSALÉM.
O triunfo de Cristo abala o inferno escondem tantas coisas e principalmente
de seu interior que consigo perscrutar
1128. Todos os mistérios com- pouquíssimo.
preendidos no triunfo de nosso Salvador Se fosse apenas homem, como
foram grandes e admiráveis, como fica poderia fazer isto e ostentar tão absoluto
dito. Nào menos admirável, em seu poder sobre todas as coisas, como geral-
gênero, foi o invisível efeito produzido no mente publicam? E, sem se alterar nem
inferno, oprimido pelo poder divino, envaidecer, receber os louvores e a glória
quando nele foram lançados os demônios, que lhe dão os homens?
ao entrar o Senhor em Jerusalém. Neste triunfo que recebeu, ao en-
Desde o domingo, em que isto acon- trar em Jerusalém, demonstrou novo
teceu, até a terça-feira, estiveram dois dias poder contra nós e o mundo, pois me sinto
inteiros prostrados, cheios de penoso e com forças insuficientes para destruí-lo e
aturdido furor. Com rugidos pavorosos, que apagar seu nome da terra dos viventes (Jer
todos os condenados ouviam, aquele amoti- 11,19).
nado reino foi sacudido com maior susto e Nessa ocasião, foi aclamado ben-
torrnento do que de costume. dito, não só pelos de seu partido, mas
Lúcifer, o príncipe daquelas tre- ainda por outros muitos que eu mantinha
vas, mais confuso que todos, reuniu em sob meu domínio, dando-lhe o título de
sua presença todos os demônios que lá se Messias, o prometido em sua lei. Todos
encontravam, e tomando o seu lugar de lhe renderam culto e adoração.
chefe, dise-lhes: . E muita coisa para um puro
homem. Se este não for mais do que isso,
nenhum outro teve tanto a seu favor o
Temores do demônio poder de Deus, com que nos faz e fará
grandes danos. Desde que fomos expulsos
1129. Impossível não ser mais do do céu, nunca sofremos tantas derrotas,
que profeta este homem que assim nos nem vimos tal poder, como depois deste
persegue, arruina nosso poder e destrói homem ter vindo ao mundo.
minhas forças. Moisés, Elias, Eliseu e ou- Se por acaso, é o Verbo feito ho-
tros nossos antigos inimigos, nunca nos mem, como suspeitamos, este negócio
venceram com tanta violência, ainda que exige grande cuidado. Se consentimos que
operassem muitos prodígios. Não eram viva, com seu exemplo e doutrina levará
tào misteriosos como este, de quem me após Si todos os homens. Pelo ódio que
237
Sexto Livro • Capitulo 8
lhe tenho, procurei, algumas vezes, tirar- O inferno quer impedir a morte de
lhe a vida, e não o consegui. Na sua pátria, Cristo
esforcei-me para que o precipitassem num
despenhadeiro, mas Ele, com seu poder, 1131. Sobre esta proposta rj e
zombou dos que iam executá-lo (Lc 4,30; Lúcifer, tiveram longas conferências
Jo 10,39). Outra vez, em Jerusalém, pro- aqueles príncipes das trevas, enfUre.
curei que os fariseus o apedrejassem, mas cendo-se, com incrível sanha, contra
Ele desapareceu. nosso Salvador. Retratavam-se do engano
em que, já suspeitavam, tinham incorrido
pretendendo sua morte com tanta astúcia'
Arrazoado de Lúcifer. Reduplicando a malícia pretenderam
desde esse momento, impedir que mor-
1130. A questão agora está melhor resse, pois já se iam confirmando na sus-
encaminhada por causa de seu discípulo, peita de que era o Messias, ainda que não
nosso amigo Judas, a quem sugeri vender acabavam de o saber com certeza.
e entregar seu Mestre aos fariseus. A estes Este receio foi para Lúcifer de
preparei com furiosa inveja, e sem dúvida, tanto susto e tormento que, aprovando o
lhe darão morte cruel como desejam. novo decreto de impedir a morte do Sal-
Estão apenas aguardando ocasião opor- vador, encerrou o conciliábulo, dizendo:
tuna que vou dispondo com toda minha Crede-me, amigos, se este homem é tam-
diligência e astúcia, pois Judas, os bém Deus verdadeiro, com seu sofrimento
escribas e os fariseus farão tudo quanto eu e sua morte salvará todos os homens.
lhes propuser. Nosso império ficará destruído e os mor-
Apesar de tudo, encontro um tais serão elevados a nova felicidade e
grande tropeço que exige muita atenção: maior poder contra nós. Andamos muito
se este homem é o Messias esperado por errados em lhe procurar a morte. Vamos
seu povo, oferecerá os sofrimentos e a depressa acudir a este nosso perigo.
morte pela redenção dos homens. Satis-
fará e merecerá, por todos e para todos,
infinitamente. Abrirá o céu e os mortais Lúcifer e Judas
subirão para gozar dos prêmios que Deus
nos tirou, e isto será novo e duro tormento 1132. Com este acordo, Lúcifer e
para nós, se não o impedirmos. todos seus ministros dirigiram-se á cidade
Além do mais, este homem, pade- de Jerusalém. De sua ação resultaram
cendo e morrendo, deixará no mundo sin- aquelas diligências que Pilatos e sua mu-
gular exemplo de paciência. É mansís- lher fizeram para evitar a morte do Senhor,
simo e humilde de coração e jamais o vi- como consta dos Evangelhos (Mt 27,19;
mos impaciente e alterado. Assim ensi- Lc 23, 4; Jo 18,38), e muitas outras que
nará a todos, o que me será odioso, pois eles não referem, mas sucederam.
estas virtudes ofendem grandemente a Antes de tudo, os demônio pro-
mim e a todos os que seguem meu ditame curaram, com novas sugestões, dissuadir
e pensamento. Judas da venda do divino Mestre, ne-
Por estas razões, convém que discu- gócio que já havia fechado. Como o
tamos o que devemos fazer para perseguir discípulo não se impressionasse, nem
este homem novo, Cristo, e todos exponham pretendesse revogar seu propósito, o de-
suas idéias a respeito desta empresa. mônio apareceu-lhe em forma corporal
238
Sexto Livro - Capítulo 8
visível. Dirigiu-lhe a palavra procurando, Não era impossível para Deus re-
com muitos argumentos, induzi-lo a não duzir á virtude o coração daquele traidor
tirar a vida de Cristo por meio dos fariseus. discípulo. Todavia, para estefimnão eram
Conhecendo a desmedida cobiça do ava- meios convenientes a exortação do
rento discípulo, ofereceu-lhe muito di- demônio que o derrubara do estado de
nheiro, para não entregar o Mestre a seus graça.
inimigos. Para o Senhor não lhe dar outros
Lúcifer empregou nestas diligên- auxílios, havia a razão de sua inefável equi-
cias, muito mais empenho do que antes dade. Judas chegara á sua dura obstinação,
para induzi-lo a vender seu mansíssimo e resistindo á doutrina do divino Mestre, a
divino Mestre. inúmeras inspirações e imensos benefícios,
em sua própria escola. Desprezou, com tre-
menda temeridade, seus conselhos, os de
sua Mãe santíssima e dulcíssima Senhora,
o exemplo vivo de sua presença e o de todos
os demais apóstolos.
A tudo resistira o ímpio discípulo,
com pertinácia mais de demônio do que
de homem, dono de liberdade para fazer
o bem. Tendo caminhado tão longe no
mal, e chegado ao estado de ódio contra o
Salvador e a Mãe da misericórdia, tomou-
se incapaz de a procurar. Indigno da luz
para enxergá-la, insensível apropria razão
e lei natural que lhe teria podido impedir
ofender o Inocente, de cujas mãos rece-
bera tão liberais favores.
Terrível exemplo e lição para a
fragilidade e insânia dos homens que não
temem cair e perecer em semelhantes
perigos, acabando em tão infeliz e lamen-
tável ruína!
243
J e s u s d e s p e d e - se de sua Mãe.
244
CAPITULO 9
IESUS DESPEDE-SE DE SUA MÃE PARA IR MORRER. A
SENHORA PEDE-LHE PARTICIPAR DA EUCARISTIA.
ACOMPANHA-O A JERUSALÉM COM MADALENA E
OUTRAS PIEDOSAS MULHERES.
Domingo de ramos à quinta-feira tiveram, durante a paixão, a fortaleza de
santa cumprir o que antes prometeram, como os
fatos mostram, e adiante veremos 1 .
1141. Continuemos nossa história.
Deixamos o Salvador do mundo em
Betânia, depois de ter voltado do triunfo Jesus e Maria antes da paixão
em Jerusalém, acompanhado pelos após-
tolos. 1142. Naqueles dias imediatos à
No capítulo precedente, antecipei sua paixão, nosso Salvador tratou com sua
a narração do que fizeram os demônios Mãe santíssima tão elevados mistérios so-
antes da entrega de Cristo, e outras coisas bre a redenção humana e a nova lei da
resultantes de seu infernal propósito, as- graça, que muitos deles estarão ocultos até
sim como da traição de Judas e do concilio a visão do Senhor na pátria celestial.
dos fariseus. Dos que eu conheci, posso mani-
Voltemos agora ao que aconteceu festar muito pouco, mas no prudentíssimo
em Betânia, onde a grande Rainha acom- coração de nossa grande Rainha, seu Filho
panhou e serviu seu Filho santíssimo santíssimo depositou tudo o que David
naqueles três dias, do domingo de ramos chamou o incerto e oculto de sua sabe-
à quinta-feira. Todo este tempo, esteve o doria (SI 50, 8). Referia-se ao maior dos
Senhor com sua divina Mãe, salvo o que negócios que Deus tomara por sua conta,
levou para voltar a Jerusalém e ensinar no em suas obras ad extra: nossa reparação,
templo, na segunda e terça-feira, pois na a glorificação dos predestinados e nela a
quarta não subiu a Jerusalém, como já exaltação de seu santo nome.
disse. Ordenou Jesus tudo o que a pru-
Nestas últimas viagens, instruiu dente Mãe deveria fazer durante a paixão
seus discípulos, mais copiosa e clara- e morte que por nós ia sofrer, e a preparou
mente, sobre os mistérios de sua paixão e com nova luz e ensinamento. Nestas con-
da redenção humana. Apesar disso, em- ferências, falou-lhe o Filho santíssimo
bora todos ouvissem a doutrina e avisos com grandiosa majestade e serenidade
<* seu Deus e Mestre, cada qual reagia real de acordo com a importância do que
conforme a própria disposição, e sempre tratavam, pois então haviam cessado com-
u m tant<> remissos, Deste modo, não pletamente os carinhos de Filho e Esposo.
1 - n° 1240.
245
Sexto Livro - Capitulo 9
^ meu Filho santíssimo c minha, e por ti em minha dor, pois deves esta corres-
queremos ensinar aos outros. É ne- pondência por todos os favores que te
cessário, po is ' ^ u e d e t a l m o d o t e mostres prodigalizo.
agradecida a esta copiosa redenção, como
se elafôraunicamente para ti, e que seria
perdida se apenas tu não aproveitasses Estima pela Eucaristia
dela.
Assim a deves apreciar, pois meu 1155. Quero também que advirtas,
Filho santíssimo sofreu e morreu, com quão aborrecível é, aos olhos de Deus, aos
tanto amor e afeto por ti (Gl 2,20) como meus e aos dos bem-aventurados, o
se foras a única a necessitar de sua paixão desprezo e esquecimento dos homens em
e morte para se salvar. freqüentar a sagrada comunhão, e não
aproximar dela com devoção e fervor.
Para entenderes este aviso, te manifestei
Agradecer e participar na paixão. o que Eufiz,preparando-me durante tan-
tos anos, para o dia em que chegasse a
1154. Por esta regra deves medir receber meu santíssimo Filho sacramen-
tua obrigação e agradecimento. Conhece tado.
o grosseiro e perigoso esquecimento dos Isto, e o mais que escreverás adi-
homens, por benefício tão excessivo ante, servirá de ensinamento e confusão
como haver morrido por eles, seu mesmo para todos. Eu era inocente, sem impedi-
Deus e Criador feito homem. Procura mento de culpa alguma, com plenitude de
compensar esta injúria amando-o por to- todas as graças. Não obstante, procurei
dos, como se a retribuição desta dívida acrescentar nova disposição de fervoroso
coubesse toda a teu agradecimento e fide- amor, humildade e gratidão. Tu e os de-
lidade. Aflige-te pela cega estultice dos mais filhos da Igreja, que todos os dias, a
homens em desprezar sua eterna felici- cada hora incorrem em novas culpas e
dade, e entesourar a ira do Senhor contra fealdades, que deverão fazer para chegar
si próprios, frustrando os maiores afetos a receber a formosura da mesma divin-
de seu infinito amor pelo mundo. Para este dade e humanidade de meu Senhor e Filho
fim, te faço ciente de tantos segredos e dasantíssimo? Que desculpa alegarão os
indizível dor que sofri, desde a hora que homens no juízo? Tiveram consigo o
meu Filho santíssimo se despediu de Mim, próprio Deus sacramentado na Igreja es-
para se entregar ao sacrifício de sua perando, com a plenitude de seus dons,
sagrada paixão e morte. que o fossem recebê-lo. Em vez disso,
Não há termos para explicar a desprezaram este inefável amor e bene-
amargura de minha alma naquela ocasião. fício, para se ocuparem nos divertimentos,
Considerando-a, nenhum trabalho te deleites mundanos, ao serviço da vaidade
parecerá grande, não poderás apetecer aparente e enganadora. Admira-te de tal
descanso e deleite da terra, e só cobiçarás insânia, como o fazem os anjos e santos,
padecer e morrer com Cristo. Toma parte e guarda-te de nela incorrer.
251
Ave, verdadeiro Corpo nascido da Virgem Maria!
252
CAPÍTULO 10
V ÚLTIMA CEIA LEGAL DE CRISTO. O LAVA-PÉS. MARIA
TEVE CONHECIMENTO DE TODOS ESSES MISTÉRIOS.
O incansável amor de Cristo contra quem nos ofende, e julgamos ter
feito grande façanha em não tirar imediata
1156. Conforme fica dito, en- vingança.
caminhou-SC nosso Redentor para Jeru- O amor de nosso divino Mestre,
salém na tarde da quinta-feira que pre- porém, não se alterou com as injúrias que
cedeu sua paixão e morte. Nas conversas previa. Não se cansou com a ignorância
que mantinha com seus discípulos, sobre de seus discípulos, nem com a deslealdade
os mistérios que lhes ia ensinando, eles que logo experimentaria da parte deles.
lhe expunham suas dúvidas que o Mestre
da sabedoria, como amoroso Pai, esclare-
cia com palavras cheias de afetuosa luz Pedro e João preparam a ceia
que lhes penetrava o coração. Tendo-os
sempre amado, naquelas últimas horas de 1157. Perguntaram-lhe onde que-
sua vida, qual cisne divino, expandia mais ria celebrar a Páscoa do cordeiro (Mt 26,
intensamente a suavidade de sua voz e a 17; Mc 14, 12; Lc 22, 9) . Esta páscoa
ternura de seu amor. dos judeus era por eles celebrada na ceia
A proximidade de sua paixão, com daquela noite. Festa muito célebre e so-
a presciência de tantos suplícios, não era lene, era, na sua lei, a figura mais ex-
estorvo para seu amor. Pelo contrário, pressa do Senhor e dos mistérios que
como o calor concentrado pela oposição n'Ele e por Ele se iriam realizar, mas que
do frio, volta a se expandir com mais os apóstolos ainda não eram capazes dç
força, assim era o incêndio do divino amor compreender.
que ardia no coração de nosso amante Je- Respondeu-lhes o divino Mestre,
sus. Manifestava-se em maiores deli- enviando na frente São Pedro e São João
cadezas e atividade para inflamar os mes- para preparar a ceia do cordeiro pascal.
mos que o queriam extinguir, começando Seria na casa de um homem, na qual vis-
por atingir com as labaredas de seu incên- sem entrar um criado com um cântaro
dio, aos que lhes estavam mais próximos. de água. Falariam com o dono da casa,
Com exceção de Cristo e de sua pedindo-lhe que preparassem um apo-
Màe santíssima, aos demais filhos de sento para o Mestre cear com seus
Adão acontece, geralmente, que a perse- discípulos.
guição impacienta, as injúrias irritam, as Este homem residia em Jerusa-
Penas descontrolam. Qualquer adversi- lém, pessoa rica, distinta e devota do Sal-
dade nos perturba, desanima, nos indispõe vador. Acreditara em sua doutrina e mi-
253
Sexto Livro - Capitulo 10
pensava na infame traição que havia Dirigindo-se ao eterno Pai, fez in-
tramado, procurando levá-la a cabo secre- teriormente esta fervorosa e altíssima
tamente. oração:
O Senhor também mantinha re-
serva, porque assim convinha à sua equi-
dade e à disposição de seus altíssimos Oração de Cristo
desígnios. Não quis exclui-lo da ceia, nem
de outros mistérios, até que ele mesmo se 1162. Meu eterno Pai e Deus
excluiu por má vontade. O divino Mestre, imenso, vossa divina e eterna vontade de-
porém, sempre o tratou como seu dis- terminou criar minha verdadeira humani-
cípulo, apóstolo e ministro, respeitando- dade, para ser cabeça de todos os predesti-
lhe a honra. nados (Rom 8, 29) à vossa glória e inter-
Com este exemplo, ensinou aos fi- minável felicidade. Por minhas obras, eles
lhos da Igreja, quanta veneração devem vão adquirir as disposições para conseguir
ter aos seus ministros e sacerdotes, e a verdadeira bem-aventurança.
quanto devem zelar por sua honra, não Para estefim,e para redimir os fi-
publicando os pecados e fraquezas que ne- lhos de Adão de sua queda, vivi com eles
les notarem, pois também são homens de trinta e três anos. Já chegou, Senhor e Pai
frágil natureza. Nenhum será pior que Ju- meu, a hora oportuna e aceita à vossa
das, podemos supor. eterna vontade, para que vosso santo
Ninguém será como Cristo nosso nome se manifeste aos homens. Em todas
Senhor, nem terá igual autoridade e poder, as nações seja conhecido e glorificado,
pois isto o ensina a fé. Logo, se todos os através da santa fé que revelará a todos
homens são infinitamente menos que vossa incompreensível divindade.
nosso Salvador, não devem fazer com os Já é tempo de se abrir o livro
ministros do Senhor, melhores que Judas, fechado com sete selos (Apoc 5, 7) que
ainda que sejam maus, o que o mesmo vossa sabedoria me entregou, e sejam fe-
Senhor não fez com aquele péssimo lizmente cumpridas as antigas figuras
discípulo e apóstolo. Nem importa que se- (Heb 10, l)e sacrifício de animais. Signi-
jam superiores e prelados, pois também o ficavam aquele sacrifício de mim mesmo
era Cristo nosso Senhor, e no entanto su- que, voluntariamente, quero oferecer por
portou Judas e respeitou sua honra. meus irmãos, osfilhosde Adão, membros
deste corpo de quem sou cabeça, ovelhas
de vossa grei, para os quais suplico que
A humanidade de Cristo humilha-se olheis com misericórdia.
ante a sua divindade Se os antigos sacrifícios e figuras
que vou substituindo pela realidade, apla-
1161. Nesta ocasião, nosso Reden- cavam vossa ira, só pelo que simboli-
tor compôs misterioso cântico de louvor zavam, é justo meu Pai, que vossa indig-
ao eterno Pai, por se terem cumprido n'Ele nação se acabe, pois Eu me ofereço em
as figuras da antiga lei, e pela exaltação sacrifício, disposto a morrer na cruz pelos
que dela resultava ao seu nome. homens, sacrificando-me em holocausto,
Prostrado em terra, humilhando-se no fogo de meu próprio amor (Ef 5, 2).
em sua humanidade santíssima, confes- Senhor, modere-se origorde vossa
sou, adorou e louvou a Divindade como justiça e olhai com clemência ao gênero
infinitamente superior. humano. Concedamos-lhe anistia e lhe se-
255
Sexto Livro - Capítulo 10
jam abertas as portas do céu, até agora grande Rainha. Estavam ordenadas como
fechadas por sua desobediência. em coro, sem confundir-se nem se opôr
Encontrem o caminho certo e en- umas ás outras, e nesta ocasião, ope-
trada franca para entrar Comigo á visão ravam, todas e cada uma, na maior inten-
de vossa divindade, se quiserem seguir sidade.
minha lei e imitar meus passos. Estava a Senhora repleta das in-
teligências de que falei, e ao mesmo tempo
conhecia como em seu Filho santíssimo iam
Atos de Maria santíssima se realizando e terminando as cerimônias e
figuras legais, substituídas pela nova lei e
1163. Esta oração de nosso Salva- sacramentos, mais nobres e eficazes.
dor Jesus foi aceita pelo eterno Pai. Logo Via o fruto tão abundante da Re-
enviou das alturas inumeráveis exércitos denção nos predestinados; a ruína dos
angélicos para assistirem, no Cenáculo, as réprobos, a exaltação do nome de Deus e
maravilhosas obras que o Verbo huma- da santíssima humanidade de seu Filho Je-
nado estava para realizar. sus; a fé universal na Divindade que seria
Enquanto tudo isto acontecia no pregada em todo o mundo; via abrir-se o
cenáculo, Maria santíssima estava em seu céu fechado por tantos séculos, para nele
retiro, elevada em altíssima contempla- entrarem os filhos de Adão, graças à nova
ção. Igreja do evangelho com todos seus
Com distinção e clareza via, como mistérios.
se estivesse presente, todos os atos de seu Conhecia que de tudo isto, era
Filho nosso Salvador, e cooperava na artífice admirável e prudentíssimo o seu
forma que sua admirável sabedoria lhe di- Filho, com louvor e admiração de todos
tava, como coadjutora em todos eles. os cortesãos do céu. Por estas magnificas
Fazia atos heróicos e divinos dé to- obras, sem omitir um ponto, bendizia ao
das as virtudes, correspondentes às de eterno Pai, dava-lhe singulares graças, e
Cristo nosso Salvador. Todas ressoavam em tudo se alegrava e consolava com ad-
no castíssimo coração da Mãe, como mirável júbilo, a grande Senhora.
divino e misterioso eco, repetindo a doce
Senhora as mesmas orações e súplicas.
Além de tudo, fazia novos cânticos de ad- Dor de Maria
mirável louvor pelo que a humanidade
santíssima, na pessoa do Verbo, ia ope- 1165. Ao mesmo tempo, entre-
rando, em cumprimento da divina vontade tanto, via que todas estas inefáveis reali-
e preenchendo as antigas figuras da lei zações, custariam a seu Filho as dores, ig-
escrita. nomínias, afrontas e tormentos de sua
paixão e finalmente a morte de cruz, tão
dura e amarga. Tudo Ele padecia na hu-
Alegria da Virgem manidade que d'Ela recebera, e grande
número dos filhos de Adão, lhe seriam in-
1164. Grande maravilha e admi- gratos e perderiam o copioso fruto da Re-
ração seria para nós, como o foi para os denção.
anjos, e para todos será no céu, se conhe- Esta ciência enchia de dolorosa
cêssemos agora aquela divina harmonia amargura o cândido coração da piedosa
das obras e virtudes no coração de nossa Mãe, mas sendo vivo retrato de seu Filho
256
Sexto Livro - Capitulo 10
santíssimo, todos estes sentimentos e ope- Disse: Meu eterno Pai, Criador de
rações cabiam, ao mesmo tempo, em seu todo o universo, sou vossa imagem,
magnânimo e grande coração. Não se per- gerado por vosso entendimento, e figura
turbou, não se alterou, não deixou de con- de vossa substância (Heb 1,3). Havendo
solar e instruir as santas mulheres que a me oferecido, por disposição de vossa
acompanhavam, sem perder as alturas das santa vontade, para redimir o mundo com
inteligências, com salutares conselhos e minha paixão e morte, quero, Senhor, com
palavras de vida eterna. vosso beneplácito entrar nestes mistérios
Oh! Mestra admirável e exemplo por meio de minha humilhação até o pó,
mais do que humano para imitarmos! Ver- a fim de que a altiva soberba de Lúcifer
dade é que nosso arroio, em comparação seja confundida pela humildade do vosso
daquele oceano de graça e de luz, é im- Unigênito.
perceptível. Mas, é também verdade que Para deixar exemplo desta virtude
nossas penalidades e dores, em com- aos meus apóstolos e à minha Igreja que
paração daquelas, são quase aparentes e deverá ser fundada sobre este seguro
nada, pois Ela sozinha padeceu mais do alicerce da humildade, quero, meu Pai,
que todos os filhos de Adão juntos. lavar os pés de meus discípulos. Lavarei
Apesar disso, nem por sua imi- até os de Judas, o último de todos, por
tação e amor, nem pelo nosso bem eterno, causa da maldade que cometeu. Pros-
sabemos sofrer com paciência a menor ad- trando-me diante dele, com profunda e
versidade que nos sucede. Todas nos con- verdadeira h umildade, oferecer-lhe-ei
turbam, alteram, e as recebemos de má minha amizade e sua salvação. Sendo o
vontade. Soltamos as paixões, reagimos maior inimigo que tenho entre os mortais,
com ira, nos impacientamos com des- não lhe recusarei minha misericórdia e o
gosto; abandonamos a razão, todos os perdão de sua traição. Se ele não o aceitar,
movimentos maus se descontrolam e fi- céu e terra saberão que Eu lhe abri os
cam prontos para o precipício. braços de minha clemência, mas ele a
Por outro lado, o próspero nos desprezou com obstinação.
deleita e derrama. Nada se pode fiar de
nossa natureza infecta e manchada.
Nestas ocasiões, lembremo-nos de Amor e humildade de Cristo
nossa divina Mestra para ordenar nossos
desequilíbrios. 1167. Para dar alguma idéia do ím-
peto de amor divino com que o Salvador
realizou estes atos, não existem palavras
Oração de Cristo antes do lava-pés nem comparação adequadas. A atividade
do fogo é fraca, lenta a correnteza do mar
1166. Terminada a ceia legal e ou o movimento da pedra atraída ao seu
estando os apóstolos bem instruídos, le- centro, e débil qualquer força que quiser-
vantou-se Cristo nosso Senhor, como diz mos imaginar nos elementos, dentro e fora
São João (13,14), para lavar-lhes os pés. de sua esfera.
Começou com outra oração ao Não podemos, porém, ignorar que
Pai, prostrado em sua presença, como somente seu amor e sabedoria poderiam
fizera antes da ceia, conforme fica dito. inventar tal espécie de humildade: o su-
Esta oração não a fez vocal, mas men- premo da divindade e da humanidade hu-
talmente. milhar-se até o mais ínfimo do homem, os
257
Sexto Livro - Capítulo 10
pés, e estes os do pior dos nascidos, Judas. baixeza, entre perturbação e espanto, lhe
Não bastando isso, no mais imundo e diz (Jo 13, 6): Tu, Senhor, vais me lavar
desprezível colocaria sua boca, aquele os pés?
que era a palavra do eterno Pai, o Santo Respondeu Jesus, nosso bem, com
dos Santos, a mesma bondade por essên- incomparável mansidão: O que faço agora
cia. O Senhor dos senhores, o Rei dos reis, não compreendes, depois entenderás.
prostrando-se diante do pior dos homens Queria dizer: obedece agora à minha von-
parajustificá-lo, se compreendesse e acei- tade e não anteponhas teu próprio parecer,
tasse este favor, jamais suficientemente invertendo a ordem das virtudes. Primeiro
ponderado e estimado. tens de suspender teu juízo, crendo que é
conveniente o que Eu faço e, depois de ter
crido e obedecido, entenderás os ocultos
O lava-pés mistérios de meus atos, a cuja compreen-
são deves entrar pela porta da obediência.
1168. Levantou-se nosso divino Sem esta, o entendimento não pode ser
Mestre da oração, e de pé, com formoso, verdadeiramente humilde, mas sim pre-
sereno e aprazível semblante, mandou sunçoso.
seus discípulos sentar, por ordem, como Tua humildade não se pode ante-
se eles fossem senhores, e o Senhor, servo. por à minha. Eu me humilhei até à morte
Tirou o manto que trazia sobre a (Filp 2,8), e para humilhar-me tanto, obe-
túnica inconsútil que lhe chegava até os deci. Tu que és meu discípulo, não estás
pés. Nessa ocasião, calçava sandálias, seguindo minha doutrina, e sob pretesto
pois às vezes as tirava para andar descalço de humildade estás desobedecendo. Per-
em suas pregações. Eram as que sua Mãe vertendo a ordem, te privas, ao mesmo
santíssima lhe calçara no Egito, e foram tempo, da humildade e da obediência, por
crescendo na medida que cresciam seus seguir a presunção de teu próprio juízo.
pés, como fica dito em seu lugar.
Tirado o manto que o Evangelista
(13,4) designa por "vestes", recebeu uma Ameaça de Jesus
toalha ou amplo avental que prendeu à
cintura. Derramou água numa bacia (Jo 1170. Não entendeu São Pedro esta
13,5) para lavar os pés dos apóstolos que, doutrina encerrada na primeira resposta
admirados, observavam o que o divino de seu Senhor e Mestre, pois embora es-
Mestre ia fazendo. tivesse em sua escola, não chegara a ex-
perimentar os divinos efeitos de seu con-
tato naquele lavabo.
Resistência de São Pedro Confuso, no indiscreto sentimento
de sua humildade, replicou ao Senhor (Jo
1169. Chegou-se ao chefe dos 13,8): Jamais, Senhor, permitirei que me
apóstolos, São Pedro, para começar o laves os pés.
lava-pés. O fervoroso apóstolo viu, pros- Respondeu-lhe com mais severi-
trado a seus pés, o Senhor que havia co- dade o Autor da vida: Se Eu não te lavar,
nhecido e confessado por Filho de Deus não terás parte comigo.
vivo. Renovando interiormente esta fé Com esta resposta e ameaça, o
com nova luz que o esclarecia, conhe- Senhor canonizou a segurança da obe-
cendo com profunda humildade a própria diência. Ao juízo humano, parece que São
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Sexto Livro - Capítulo 10
Pedro tinha alguma desculpa em resistir a Quis dizer: ofereço meus pés para
^ fato tão inaudito. Não cabia em ca- correrá obediência, minhas mãos para
pacidade humana que um homem, terreno executá-la e minha cabeça para não seguir
e pecador, tivesse a seus pés, prostrado, o meu próprio juízo em desacordo com ela:
próprio Deus que conhecia e adorava. Aceitou o Senhor esta sujeição de
Tal desculpa, porém, não foi São Pedro e lhe disse (Jo 13, 10): Vós
aceita, porque o divino Mestre não podia estais limpos, ainda que nem todos - por
errar no que estava fazendo, e quando não estar entre eles o imundíssimo Judas - e
se conhece, com certeza, que existe en- quem está limpo, só precisa lavar os pés.
gano em quem manda, a obediência deve Isto disse Cristo, Senhor nosso,
ser cega, sem procurar razões para dela se porque os discípulos, com exceção de Ju-
eximir. das, estavam justificados e limpos do pe-
Neste mistério, queria nosso Sal- cado, por sua doutrina; só necessitavam
vador reparar a desobediência de nossos purificar-se das imperfeições das culpas
primeiros pais Adão e Eva, pela qual o leves ou das veniais, para se aproximarem
pecado entrara no mundo (Rom 5, 19). da comunhão com maior pureza e dis-
Pela semelhança e participação que a posição. Assim é necessário para se rece-
obediência de São Pedro tinha com ela, ber seus divinos efeitos com maior pleni-
Cristo Senhor nosso o ameaçou com um tude e eficácia, o que muito impedem os
castigo semelhante na essência: se não pecados veniais, distrações e tibieza.
obedecesse não teria parte com Ele. Isto Jesus lavou os pés de São Pedro e,
significava excluí-lo dos méritos e frutos em seguida, aos dos demais que obede-
de sua redenção, pelos quais nos tor- ceram cheios de assombro e emoção, re-
namos aptos à participação de sua ami- cebendo nesse lavabo novas luzes e dons
zade e de sua glória. da graça.
Ameaçou também de lhe recusar a
participação de seu corpo e sangue, que
logo iria sacramentar nas espécies de pão
e vinho. Aqui desejava o Senhor dar-se,
não em parte mas totalmente, e ardente-
mente queria comunicar-se por este mis-
terioso modo. Apesar de tudo, a desobe-
diência poderia privar o apóstolo deste
amoroso favor, se nela se obstinasse.
259
Sexto Livro • Capítulo 10
Judas no lava-pés mãos, nas quais o eterno Pai havia depo-
sitado todos os tesouros (Jo 13,3), o poder
1172. Chegou o divino Mestre a de fazer prodígios e de enriquecer todas
Judas, cuja traição e perfídia não lhe pu- as criaturas.
deram extinguir a caridade, nem impedir Ainda que a consciência dc Judas
de a manifestar com maiores demons- não tivesse recebido outros auxílios, resis-
trações do que aos outros apóstolos. Com tir aos que rcali/ava nas almas a presença
afável semblante e carinho, se pôs a seus da santíssima pessoa do Senhor da vida,
pés, lavou-os , beijou-os e apertou-os ao supunha no infeliz discípulo, malícia que
peito. Interiormente, enviou ao coração de ultrapassa qualquer ponderação.
Judas grandes inspirações, de acordo com Era a pessoa de Cristo, nosso bem,
o estado e a necessidade daquela de- fisicamente perfeitíssima e cativante; o
pravada consciência. semblante grave, sereno, de beleza
Estas graças foram maiores para aprazível e afável; os cabelos à moda dos
Judas do que para os outros Apóstolos. nazarenos, castanhos dourado; os olhos
Sua disposição, porém, era péssima. grandes com suma doçura e majestade; a
Contraíra hábitos viciosos intensos, boca, o nariz, todo o rosto extremamente
chegara voluntariamente a dura obsti- proporcionado, de expressão suave e en-
nação, e se encontrava com as potências cantadora. Todos os que o olhavam, com
da alma e o entendimento perturbados e sincero coração, eram atraídos à sua vene-
enfraquecidos. Afastara-se completa- ração e amor.
mente de Deus, entregando-se ao demô- A isto se acrescentava gozo inte-
nio que se instalara em seu coração, rior e admirável iluminação que gerava na
como num trono de maldade. Em tal alma divinos pensamentos e afetos.
estado, resistiu a todos os favores e ins- Esta pessoa de Cristo tão amável e
pirações que recebeu durante o lava-pés, venerável, Judas viu a seus pés, prodigalí-
contribuindo para isso também o medo zando-lhe novas demonstrações de agrado
dos escribas e fariseus, se faltasse ao e maiores impulsos que os ordinários. Sua
contrato feito com eles. perversidade, porém, foi tanta, que nada
A presença exterior de Cristo e apôde dobrar nem abrandar seu endurecido
coração. Pelo contrário, irritou-se com a
força interior de seus auxílios, parecia agir
de modo irresistível sobre seu entendi- suavidade do Senhor, não quis encará-lo
mento, desencadeando em sua tenebrosa nem lhe dar atenção. Desde que perdera a
consciência violenta borrasca. Encheu-se fé e a graça, começou a odiar Jesus e sua
de confusão e azedume, inflamou-se de Mãe santíssima e nunca os olhava de frente.
raiva e despeito que o separaram do Mes- De certo modo, maior foi o terror
tre e Médico que lhe queria proporcionar que sentiu Lúcifer na presença de Cristo,
salutar remédio. Converteu a medicação nosso Salvador. Conforme disse, este ini-
em veneno mortal e fel amaríssimo de migo instalara-se no coração de Judas, e
maldade, na qual estava mergulhado. não podendo suportar a humildade que o
divino Mestre estava a praticar com os
apóstolos, pretendeu fugir de Judas e do
Obstinação do traidor Cenáculo.
O Senhor, todavia, com seu poder
1173. A maldade de Judas resistiu não consentiu que Lúcifer se retirasse, mas
à virtude do contato daquelas divinas constrangeu-o aficarali e ver esmagada sua
260
Sexto Livro - Capítulo 10
soberba. Depois foi expulso, como direi ração e costumava demonstrar mais do
adiante' , e saiu cheio de furor e suspeitas que os outros. São João, porém, não lho
de que Cristo seria verdadeiro Deus. revelou, ainda que o conheceu pelo sinal
do bocado que Jesus deu a Judas. Guardou
segredo, praticando a caridade que apren-
Últimos ensinamentos de Cristo dera na escola de seu divino Mestre.
1174. Terminado o lava-pés, nosso
Salvador tornou a vestir o manto, assen- Privilégios de São João
tou-se no meio de seus discípulos e fez
aquele grande sermão referido pelo evan- 1175. São João foi o privilegiado
gelista São João. com este favor e outros muitos, quando
Começou dizendo: Sabeis o que Eu esteve reclinado sobre o peito de Jesus.
fiz convosco? Chamais-me Senhor e Mes- Conheceu altíssimos mistérios de sua
tre, e dizeis bem porque o sou (Jo 13,13). divindade e humanidade, e da Rainha do
Pois se Eu, que sou vosso Mestre e Senhor, céu, sua Mãe santíssima. Foi nesta ocasião
vos lavei os pés, também vós devei s lavar que Jesus a confiou aos seus cuidados,
os pés uns dos outros. Dei-vos este exem- pois na cruz não lhe disse, Ela será tua
plo para que façais como acabo de fazer. Mãe nem, Ele será teu filho, mas sim: eis
O discípulo não deve ser mais do que o aí tua Mãe, manifestando, em público, o
Mestre, o servo mais do que o Senhor, nem que já lhe havia ordenado antes.
o apóstolo maior de quem o envia. De todos estes mistérios que se
Continuou Jesus ensinando, ad- passaram durante o lava-pés, e das
moestando e preparando os apóstolos com palavras do divino Mestre, tinha sua Mãe
doutrina que não me detenho a repetir, re- puríssima clara visão, como noutras vezes
metendo-me aos Evangelistas. tenho dito, e por tudo oferecia cânticos de
Este sermão esclareceu no- louvor e glória ao Altíssimo. Ao se rea-
vamente os apóstolos sobre os mistérios lizarem estas maravilhas do Senhor, ela as
da Santíssima Trindade, da Encarnação, e contemplava não como quem as ignorava,
os preparou para o da Eucaristia, confir- mas sim como quem vê realizar-se o que
mando a compreensão que haviam rece- já sabia e tinha gravado no coração, como
bido da grandeza e profundidade de sua nas tábuas de Moisés estava impressa a lei
pregação e milagres. (Deut 5, 22).
Os mais iluminados foram Pedro e Informava e esclarecia as santas
João, pois cada apóstolo recebeu conhe- discípulas que a acompanhavam, de quan-
cimento , na medida da própria disposição to convinha, reservando o que ainda não
e da vontade divina. eram capazes de compreender.
São João refere as perguntas que,
a instância de Pedro, fez a Cristo nosso DOUTRINA QUE ME DEU A
Senhor, sobre quem seria o traidor que o GRANDE SENHORA DO MUNDO
entregaria, conforme Jesus mesmo dera a MARIA SANTÍSSIMA.
entender. Fez estas perguntas, enquanto
estava reclinado no peito de seu divino A suprema caridade.
Mestre (Jo 13,23). São Pedro desejou sa-
ber, para vingar ou impedir, com o fervor 1176. Minha filha, como esposa e
do amor por Cristo que ardia em se co- discípula caríssima, quero que imites ao
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Sexto Livro - Capítulo 10
máximo as três principais virtudes que meu que recebes. Neste caso, seria amar por
Filho e Senhor praticou, na ocasião que des- interesse, mais a ti mesma, do que ao
crevestes neste capítulo. São: a caridade, a próximo por Deus.
humildade e a obediência, nas quais Ele quis Quem ama por outros fins ou mo-
se distinguir mais, no fim de sua vida san- tivos de lisonja, nem conhece o amor de
tíssima. caridade, porque está possuído pelo cego
É certo que, a partir do momento amor próprio de seu deleite. Se amares a
em foi concebido em meu seio pelo quem não te solicita por tais meios, terás
Espírito Santo, manifestou seu amor pelos então por principal motivo e objeto o
homens e para eles realizou tão ad- mesmo Senhor, a quem amarás em sua
miráveis obras. No fim de sua vida, entre- criatura, seja ela quem for. Conforme tuas
tanto, quando estabeleceu a lei evangélica forças e as ocasiões que se apresentarem,
e Novo Testamento, irrompeu com mais deves praticar a caridade tanto corporal
força a chama da inflamada caridade e como espiritual.
amoroso fogo que ardia em seu coração. Como tens menos possibilidade de
Nesta ocasião, a caridade de Cristo, nosso praticar a corporal, exercita-te sempre
Senhor, pelos filhos de Adão, se revelou generosamente na espiritual, como o Se-
e agiu com toda sua eficácia nhor o quer. Com orações, súplicas, de-
Da parte do Senhor, concorreram voções, e também com prudentes e santas
as dores da morte que o cercavam(Sl 114, exortações, procura o bem espiritual das
3), e da parte dos homens a aversão ao sofri- almas. Lembra-te que meu Filho e Senhor
mento, a recusa do bem, a suma ingratidão nunca fez um beneficio temporal, sem o
e perversidade. Tratavam de tirar a honra e acompanhar de um espiritual, pois suas
a vida, a quem lhes estava dando a sua, a divinas obras teriam sido menos perfeitas,
fim de os salvar. Nesta contradição, elevou- se lhes faltasse essa plenitude.
se ao máximo o amor que não podia se ex- Daqui entenderás a preferência
tinguir (Cânt 8, 7), e encontrou ainda mais que se deve dar aos benefícios para a alma,
engenhosos meios, para permanecer entre os quais devem ser pedidos sempre em
os homens, apesar de os ter que deixar. Ensi- primeiro lugar. Os homens terrenos ordi-
nou-lhes com o exemplo, doutrina e obras, nariamente pedem, às cegas, os bens tem-
os meios seguros e eficazes para partici- porais, esquecendo os eternos e os que se
parem dos efeitos de seu divino amor. referem à verdadeira amizade e graça do
Altíssimo.
A verdadeira caridade
1177. Nesta arte de amar por Deus Humildade
ao teu próximo, quero que sejas muito 1178. A humildade e a obediência
sábia e industriosa. Farás isto, quando as foram engrandecidas por meu Filho san-
mesmas injúrias e penalidades que te fize- tíssimo no ato do lava-pés. Com a luz in-
rem, te despertarem a força da caridade. terior que tens deste raro exemplo, será
Terás certeza que ela é verdadeira, quando muito duro teu coração e indócil à ciência
da parte da criatura, não te inclinarem nem do Senhor, se não te humilhares mais que
os benefícios nem as lisonjas. Amar a o pó.
quem te faz bem, ainda que seja dever, não Fica pois, convencida, desde já:
sabes se o amas por Deus ou pelautilidade nunca digas, nem imagines que te humi-
262
Sexto Livro - Capítulo 10
lhaste suficientemente, ainda que sejas só não te pões no último lugar, mas te ele-
desprezada e posta aos pés de todas as vas acima dojuízo de quem é teu superior.
criaturas, por pecadores que sejam, pois Daquificarásadvertida do erro que
nenhum será pior que Judas, nem tu podes podes cometer furtando-te, como São Pedro,
ser como teu Mestre e Senhor. Se mere- em aceitar os favores e benefícios do Senhor.
ceres que te favoreça e honre com esta vir- Com tal atitude, te privarás não só dos dons
tude da humildade, será dando-te um e tesouros que recusas, mas do maior deles,
gênero de perfeição que te tornará digna a própria humildade, aquele que pretendes
do título de esposa sua e participante de conservar. Frustrar-se-á também a exaltação
certa igualdade com Ele. Sem esta hu- do nome do Senhor e o agradecimento que
mildade, nenhuma alma pode ser elevada lhe deves pelos altosfinsde suas obras.
a tal excelência e participação. Não te cabe sondar os seus ocultos
O alto deve antes se abaixar, e o e inescrutáveis desígnios, nem corrigi-los
humilhado é o que se pode e deve exaltar por tuas razões e pelos motivos que, em teu
(Mt 23,12). Sempre a alma é elevada, na julgamento, te fazem indigna de receber tais
medida em que se humilha e aniquila. favores, ou de realizar tais obras. Tudo isto
é semente da soberba de Lúcifer, disfarçada
Obediência em aparente humildade. Ele pretende te in-
dispor à participação do Senhor, dos seus
1179. Para não perderes esta jóia dons e amizade, como tanto desejas.
da humildade, quando julgas que a prati- Seja-te pois, regra absoluta, que
cas, advirto-te que seu exercício não se aprovando teus confessores e prelados os
deve antepor à obediência, nem se regular benefícios e favores do Senhor, os creias,
pelo próprio ditame, mas pelo do superior. aceites, estimes e agradeças com digna re-
Sepreferires teu próprio juízo ao de quem verência. Não andes vacilando com novas
te governa, ainda que seja sob pretexto de dúvidas e temores, mas procede com fer-
humildade, virás a ser soberba, pois não vor e serás humilde, obediente e mansa.
Jerusalém. Interior d o Cenáculo. A atual sala gótica data de 1342 e é obra dos
Franciscanos. As dimensões são as mesmas da sala d o tempo de Jesus.
263
Sexto Livro • Capítulo 10
CAPÍTULO 11
CRISTO CELEBRA A CEIA SACRAMENTAL,
CONSAGRANDO NA EUCARISTIA SEU SAGRADO CORPO
E SANGUE. MARIA SANTÍSSIMA COMUNGOU. OUTROS
MISTÉRIOS DESSA OCASIÃO.
Receios da Escritora os apóstolos, junto a uma mesa ou es-
trado, com seis ou sete dedos de altura
1180. E cheia de temor que começoacima do solo. Assim era o costume dos
a tratar do mistério dos mistérios, a ine-
judeus.
fável Eucaristia e sua instituição. Terminado o lava-pés, mandou
Elevo o olhar da alma para receber
preparar outra mesa alta, como agora
a luz divina que me dirige e governa nestausamos para comer. Encerrava assim as
ceias legais e figurativas, para inaugurar
obra, e participando na inteligência de tan-
tas maravilhas sagradas, na mesma luz o banquete no qual fundava a nova lei da
vejo e temo a minha insignifícância. graça. Daqui se originou o costume que
Minhas potências se confundem e se conserva na Igreja católica, de con-
não encontro nem posso dar adequada ex- sagrar em mesa ou altar elevado.
plicação para o que vejo, ainda que seja Estenderam sobre a mesa uma
muito menos de quanto entendo. toalha muito rica. Sobre ela colocaram um
Apesar de ignorante nos termos e prato ou bandeja e um copo grande em
forma de cálice, suficiente para conter o
sem habilidade nas potências, falarei para
vinho necessário, conforme a vontade de
não faltar à obediência, e para continuar a
Cristo, nosso Salvador, que com seu
história do que, nestas maravilhas, realizou a
grande Senhora do mundo, Maria santíssima.divino poder e sabedoria tudo prevenia e
Se não falar com a propriedade dispunha.
exigida pela matéria, sirvam-me de des- Foi divinamente inspirado que o
culpa minhas condições e deslumbramento. dono da casa lhe ofereceu estes vasos
Não é fácil traduzir em palavras o
tão ricos, ornados de pedras preciosas.
que a vontade deseja entender apenas peloMais tarde, quando chegou a ocasião
sentimento, e gozar a sós o que não pode oportuna, os apóstolos os usaram para
nem convém manifestar. consagrar.
Jesus sentou-se à mesa, com os
doze apóstolos e alguns outros discípu-
Preparativos da ceia sacramentai los. Pediu que lhe trouxessem pão del-
gado*1 sem fermento e o colocou no
1181. Cristo, nosso bem, cele- prato. Em seguida, vinho puro que pôs
brou a ceia legal, reclinado no chão com no cálice.
1 - Páo achatado, de pouca espessura;.mais ou menos na
forma de bolacha. (N.T.)
265
Sexto Livro - Capítulo 11
agrado, passando deste mundo à vossa duzam efeitos invisíveis, dos quais par-
destra. Levarei a Ti todos os que me deste ticipem suas almas imateriais.
(Jo 17, 12), sem que nenhum se perca,
pelo quanto depender de vossa vontade e
da suficiência de sua redenção. Súplica à misericórdia do Pai
Minhas delícias são estar com os
filhos dos homens (Prov 8, 31), e na 1186. Para estes altíssimosfinsde
minha ausência ficarão sós e órfãos, se os vossa exaltação e glória, peço, Senhor e
deixar sem minha assistência e presença. Pai meu, em meu nome e no de todos os
Quero, meu Pai, deixar-lhes penhor certo pobres e aflitos filhos de Adão, o vosso
e seguro de meu inextinguivel amor e da fiat. Se as culpas deles provocam vossa
recompensa eterna que lhes tenho pre- justiça, sua miséria e necessidade clamam
parado. Quero deixar-lhes lembrança im- por vossa infinita misericórdia.
perecível do que por eles tenho feito e Junto a ela interponho as obras de
sofrido. Quero que encontrem em meus minha humanidade, unida com laço indis-
merecimentos, remédio fácil e eficiente solúvel à minha divindade; a obediência
da participação que tiveram no pecado de com que aceitei ser passível até morrer; a
desobediência do primeiro homem, e lhes humildade com que me sujeitei aos
seja copiosamente restaurado o direito homens e a seus depravados julgamentos;
que perderam à felicidade eterna, para a a pobreza e trabalhos de minha vida; as
qual foram criados. afrontas, paixão e morte; o amor com que
tudo aceitei pela tua glória, para que sejas
conhecido e adorado por todas as criaturas
Súplica a favor dos homens capazes de tua graça e tua glória.
Fizeste-me, Senhor e Pai meu, ir-
1185. Como poucos se conser- mão e cabeça (Colos 1,18) dos homens e
varão na justiça, é necessário que tenham de todos os eleitos que conosco gozarão
recursos para a recuperar e aumentar. Re- de vossa divindade para sempre. Como
cebam outros altíssimos dons e favores de filhos, sejam Comigo herdeiros de teus
tua inefável clemência, para se justifi- bens eternos (Rom 8,17); como membros
carem e san ti ficarem por diversos meios (1 Cor 6, 15), participem do influxo da
e caminhos, durante sua perigosa peregri- cabeça, que lhes quero comunicar, segun-
nação terrestre. do o amor de irmão que lhes tenho. Quero,
Nossa vontade eterna em criá-los quanto está de minha parte, trazê-los
do nada à existência, foi para lhes comu- Comigo à tua amizade e participação.
nicar nossa divindade, perfeições e eterna
felicidade.
Teu amor, que me impeliu a nascer Batismo, Confirmação e Penitência
passível e a humilhar-me por eles até a
morte de cruz (Filip 2,8), não se contenta 1187. Com este imenso amor, Se-
nem se satisfaz, se não inventar novos mo- nhor e Pai meu, providencio desde agora,
dos de se comunicar aos homens, segundo que todos os mortais possam, com o sa-
sua capacidade e nossa sabedoria e poder. cramento do Batismo, ser plenamente re-
Isto deverá ser com sinais visíveis generados em tua amizade e graça.
e concretos, apropriados à natureza sen- Possam recebê-lo, assim que ve-
sível dos homens. Ao mesmo tempo, pro- nham ao mundo, e renasçam para o teu
267
Sexto Livro - Capítulo 11
amor. Não tendo ainda uso de razão, a von- desterro de sua vida mortal. Isto aconte-
tade de outros adultos suprirão a sua. cerá recebendo-me sacramentado, por
Desde logo sejam herdeiros de tua gloria; inefável modo, sob as espécies de pão e
fiquem marcados por filhos de minha vinho; nas do pão deixarei meu corpo e
Igreja, com um sinal interior que jamais nas do vinho deixarei meu sangue. Tanto
se apagará;fiquemlimpos da mácula do no pão, como no vinho estarei todo, real
pecado original; recebam o dom das vir- e verdadeiramente. Assim disponho este
tudes da fé, esperança e caridade, para misterioso Sacramento da Eucaristia, para
agirem como filhos, conhecendo-te, es- me dar em forma de alimento adequado
perando e te amando por Ti mesmo. às condições humanas e ao estado de
Recebam também as virtudes para viadores. Por eles faço estas maravilhas,
dominar e governar as paixões desorde- e com eles ficarei, por este modo, até o
nadas pelo pecado, e conheçam clara- fim dos séculos futuros (Mt 28,20).
mente o bem e o mal. Seja este Sacra- Para quando os homens chegarem
mento a porta de minha Igreja, e o que ao fim da vida, instituo o sacramento da
tome osfiéiscapazes de receber os demais Unção dos Enfermos, para os purificar,
Sacramentos e novos favores e benefícios defender e ser também penhor da ressur-
de vossa graça. reição de seus corpos marcados com este
Disponho também que, em segui- Sacramento.
da ao Sacramento do Batismo, recebam Todos os sacramentos se ordenam
outro (a Confirmação) para serem confir- a santificar os membros do corpo místico
mados na santa fé que professaram e de- de minha Igreja, e nela deverá haver per-
vem testemunhar e defender com for- feita ordem, tendo cada qual o seu con-
taleza, chegando ao uso da razão. veniente ministério. Visto isso, quero que
Como a fragilidade humana facil- os ministros destes Sacramentos sejam es-
mente esmorecerá na observância de tabelecidos por outro Sacramento que lhes
minha lei, e minha caridade não suportará confira o supremo grau de sacerdotes, em
deixá-la sem remédio fácil e oportuno, relação a todos os outrosfiéis.Este sacra-
quero que sirva para isto o Sacramento da mento será o da Ordem que os assinale,
Penitência. Reconhecendo, contritos, distinga e santifique com particular ex-
suas culpas, e confessando-as, osfiéisre- celência. Este sacerdócio, todos o rece-
cuperem o estado de graça; continuem a berão de Mim, mas através de um chefe,
adquirir méritos para a glória que lhes meu Vigário, representante de minha Pes-
prometi, e Lúcifer e seus sequazes não soa, supremo Sacerdote, a cuja vontade
fiquem triunfantes por os ter privado do entrego as chaves do céu, e deverá ser obe-
estado e segurança que tinham recebido decido por todos na terra.
no Batismo. Para maior perfeição de minha
Igreja, instituirei o último sacramento, o
Matrimônio, para santificar o vínculo
Eucaristia, Unção dos enfermos, natural que se ordena à propagação hu-
Ordem e Matrimônio mana. Deste modo, todos os graus na
Igreja fiquem enriquecidos e adornados
1188. Justificados os homens por por meus infinitos merecimentos.
meio destes Sacramentos, estarão em con- É esta, eterno Pai, minha última
dições defruira máxima participação que, vontade, pela qual faço todos os mortais
em meu amor e Comigo, podem ter no herdeiros de meus merecimentos que
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Sexto Livro - Capítulo 11
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Sexto Livro - Capítulo 11
trava o sagrado corpo de Cristo nosso Se- Esta determinação foi como que
nhor oculto sob os acidentes do pão e do uma dependência, voluntária e moral, da
vinho, sem alterar esses acidentes, nem existência milagrosa de seu corpo e san :
estes ao corpo, porque nem o corpo pode gue à existência incorrupta dos acidentes.
ser sujeito deles, nem eles podem ser Quando eles se corrompem e
forma do corpo. destroem pelas causas naturais que os
Os acidentes permanecem com a podem alterar - como acontece com o
mesma extensão e qualidades, antes e de- calor do estômago de quem recebe o Sa-
pois da consagração, ocupando o mesmo cramento, ou por outras causas - então
lugar que a hóstia. O corpo sagrado está Deus cria de novo outra substância, no
de modo indivisível, inteiro, sem con- último instante em que as espécies este-
fusão entre suas partes. Está todo em toda jam dispostas para receber essa transfor-
a hóstia, e todo em qualquer parte dela, mação. Com esta nova substância, fal-
sem que a hóstia o amplie ou o reduza, tando já a existência do corpo sagrado,
nem o corpo faça o mesmo à hóstia. A opera-se a nutrição do corpo que alimenta
extensão, porém, do corpo não tem re- e se introduz a forma humana que é a alma.
lação com a extensão das espécies aciden- Este prodígio de criar nova subs-
tais, nem a extensão destas com as do tância que assuma os acidentes alterados
corpo santíssimo. Corpo e espécies têm e corrompidos, é conseqüente à determi-
diferentes modos de existência, e o corpo nação da vontade divina, de não permane-
penetra a quantidade dos acidentes sem cer o corpo sagrado com a corrupção dos
alterá-los. acidentes. É conseqüente também à
Naturalmente falando, pediria dife- natureza, porque a substância do homem
rente lugar e espaço, a cabeça, as mãos, o que se alimenta, só pode aumentar com
peito e o mais. Todavia, pelo poder divino, outra substância que se lhe acrescente, e
o corpo consagrado se põe, com sua exten- os acidentes não podem continuar-se
são, num mesmo lugar. Não se sujeita ao nesta substância.
espaço que naturalmente ocupa, é inde-
pendente dessas leis naturais, pois sem elas
pode ser corpo quantitativo. Também não Maria supre a ingratidão humana
fica num só lugar e numa só hóstia, mas em
muitas ao mesmo tempo, ainda que sejam 1195. Todos estes, e outros mila-
inumeráveis as hóstias consagradas. gres, a destra do Onipotente reuniu neste
augustíssimo sacramento da Eucaristia. A
todos a Senhora do céu e da terra entendeu
Os milagres da rransubstanciação e penetrou profundamente.
São João, os outros apóstolos e os
1194. Maria santíssima entendeu Pais da antiga lei que ali se encontravam,
ainda que, embora o sagrado corpo não também compreenderam, segundo a pró-
tivesse dependência natural dos aciden- pria capacidade.
tes, no modo como expliquei, contudo não Vendo que este beneficio tão
se conservaria neles sacramentado, senão grande era para todos, a Mãe puríssima
enquanto os acidentes de pão e vinho conheceu também a ingratidão que os
durassem sem se corromper. Assim o or- mortais mostrariam por mistério tão ine-
denou a vontade santíssima de Cristo, fável, instituído para seu bem. Desde esse
autor dessas maravilhas. momento, encarregou-se de compensar e
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Sexto Livro - Capítulo 11
suprir, com todas suas forças, nossa peito, o mesmo que se recebia. Esta visão
dureza e desagradecimento, dando Ela ao produziu grandiosos efeitos em nossa
eterno Pai e a seu Filho santíssimo, as Rainha e Senhora.
graças por maravilha tão rara a favor do
gênero humano.
Esta atenção lhe durou toda a vida, Permanência eucarística na Virgem
e muitas vezes o fazia derramando lágri- 1197. Ao comungar-se, Cristo fez
mas de sangue de seu ardentíssimo co- um cântico de louvor ao eterno Pai, ofere-
ração, para reparar nosso repreensível e cendo-se sacramentado pela salvação hu-
grosseiro esquecimento. mana. Separou uma partícula do pão con-
sagrado e a entregou ao arcanjo São
Cristo comungando a Si mesmo Gabriel, para que a levasse a Maria san-
tíssima.
1196. Maior admiração me causa Este favor deixou os santos anjos
o que sucedeu ao mesmo Jesus, quando como que satisfeitos e consolados, de que
depois de elevar o santíssimo Sacramento a dignidade sacerdotal, tão excelente, to-
para ser adorado pelos discípulos, partiu-o casse aos homens e não a eles. Só por levar
com suas sagradas mãos e comungou-se nas mãos, em forma humana, o corpo sa-
a Si mesmo, antes de todos, como pri- cramentado de seu verdadeiro Deus e Se-
meiro e sumo sacerdote. nhor, causou grande e novo gozo a todos
Reconhecendo-se, enquanto ho- eles.
mem, inferior à Divindade que recebia em A grande Senhora e Rainha es-
seu mesmo corpo e sangue consagrados, perava, entre muitas lágrimas, o favor da
humilhou-se, retraiu-se e comoveu-se na sagrada Comunhão, quando chegou São
parte sensitiva, manifestando duas coisas; Gabriel acompanhado de inúmeros anjos.
primeira, a reverência com que se devia Recebeu-a da mão do príncipe celeste,
receber seu sagrado corpo; segunda, a dor sendo a primeira a comungar, depois de
que sentia na previsão da temeridade e seu Filho santíssimo, imitando-o na hu-
audácia com que muitos chegariam a re- mildade, reverência e santo temor.
ceber e tratar este altíssimo e eminente O santíssimo Sacramentoficoude-
Sacramento. positado no peito de Maria santíssima so-
Os efeitos que a Comunhão pro- bre o coração, legítimo sacrário e taber-
duziu no corpo de Cristo, nosso bem, náculo do Altíssimo. Ali permaneceu todo
foram divinos e admiráveis. Por alguns o tempo desde aquela noite até depois da
momentos, n'Ele redundaram os dotes da ressurreição, quando São Pedro con-
glória de sua alma santíssima, como no sagrou na primeira missa, como direi adi-
Tabor. Esta maravilha, porém, foi vista só ante*'.
por sua Mãe puríssima, e um pouco por O Senhor todo-poderoso operou
São João, Enoc e Elias. este prodígio, tanto para consolo da
Este favor, foi o último, de repouso grande Rainha, como para cumprir, an-
e gozo, que a humanidade santíssima re- tecipadamente, a promessa que depois
cebeu em sua parte inferior, até sua morte. faria à sua Igreja, de estar com os homens
A Virgem Mãe teve também espe- até ofimdos tempos (Mt 28,20).
cial visão de como Cristo recebeu-se sa- No prazo que mediou entre sua
cramentado, e como esteve em seu divino m o r t e e a consagração de seu corpo e
J-3" parte, n°112.
sangue, sua humanidade santíssima não Sacerdócio dos Apóstolos. Comunhão
poderia estar na Igreja, por outro modo. de Enoc e Elias
Permaneceu este verdadeiro maná depo-
sitado em Maria santíssima, arca viva, 1198. Depois que a divina Princesa
juntamente com toda a lei evangélica, comungou, nosso Salvador deu o pão con-
conforme estava figurado na arca de sagrado aos apóstolos (Lc 22, 17), man-
Moisés (Heb 9, 4). dando-lhes que o repartissem e o dessem
Durante esse tempo, não se consu- uns aos outros. Com estas palavras, con-
miram nem alteraram as espécies sacra- feriu-lhes a dignidade sacerdotal que
mentais no peito desta Senhora e Rainha começaram a exercitar comungando pelas
do céu, que agradeceu ao eterno Pai e a próprias mãos. Fizeram-no com suma re-
seu Filho santíssimo com novos cânticos, verência, derramando copiosas lágrimas
imitando as ações de graças que o Verbo e dando culto ao corpo e sangue de nosso
divino fizera. Redentor.
Segundo a pre-
eminência de antigüidade,
receberam os poderes sacer-
dotais, e foram constituídos
fundadores da Igreja do
evangelho (Ef 2, 20).
Em seguida, por or-
dem de Cristo nosso Senhor,
São Pedro deu a comunhão
aos dois antigos Pais, Enoc
e Elias. Com o gozo e efeitos
desta comunhão, foram
confortados novamente, pa-
ra esperar a visão beatífica,
até ofimdo mundo, con-
forme determinou a vontade
divina.
Os dois Patriarcas
deram fervorosos louvores e
humildes ações de graças ao
Todo-poderoso por este fa-
vor, e foram restituídos a seu
lugar, por ministério dos
santos anjos.
O Senhor realizou
este prodígio, para dar pe-
nhor e participação de sua
Encarnação, Redenção e
Ressurreição geral às leis
antiga, natural e escrita, pois
o sacramento da Eucaristia
encerra em si todos estes
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Sexto Livro - Capítulo 11
277
Sexto Livro - Capítulo 12
Mestre e dos outros apóstolos, sem que acreditou ser o homem que aparentava
estes o percebessem. Como estava sem a graça divina, não quis
No momento em que os perdeu de nem pôde deixar-se persuadir pelo demô-
vista, partiu a toda pressa para a própria nio, a retroceder em sua maldade.
perdição. Ia com grande sobressalto, agi- Quando Judas chegou, estavam os
tação e ânsia, testemunhos da maldade pontífices a discutir, como iria o infiel
que ia cometer. Com esta inquietação de discípulo cumprir a promessa de lhes en-
uma consciência insegura, chegou cor- tregar Jesus (Mc 14,44). Entrou o traidor
rendo e excitado à casa dos pontífices. e os informou que deixara o Mestre com
Durante o caminho, vendo Lúcifer os outros discípulos no monte Olivete
a pressa com que Judas procurava a morte Parecia-lhe a melhor ocasião para prendê-
de Cristo nosso bem, e suspeitando o lo naquela noite; que fossem com cautela,
dragão que Jesus seria o verdadeiro Mes- não acontecesse escapar-se pelas artima-
sias, (como fica dito no capítulo 10), saiu- nhas que sabia fazer.
lhe ao encontro na figura de um homem Alegraram-se muito os sacrílegos
muito mau, amigo de Judas, a quem havia pontífices, e puseram-se a reunir pessoal
confidenciado sua traição. armado para executar imediatamente a
Nesta figura, sem ser conhecido prisão do inocentíssimo Cordeiro.
por Judas, Lúcifer lhe falou sobre aquela
decisão de vender o Mestre: ainda que, a
princípio, lhe parecera acertado pelas O auge do bem e do mal
maldades que d'Ele lhe havia dito, pen-
sando melhor no caso, achava mais con- 1207. Neste ínterim, estava o Se-
veniente não o entregar aos pontífices e nhor com os onze apóstolos a tratar da
fariseus. Afinal, não era tão mau quanto eterna salvação de nós todos, inclusive
Judas pensava, nem merecia a morte. dos que tramavam sua morte. Inaudita
Além disso, poderia escapar por meio de porfia entre o cúmulo da malícia humana
milagres, e depois Judas teria que se haver e a imensidade da caridade divina.
com as conseqüências. Desde o primeiro homem, come-
çou no mundo este combate entre o bem
e o mal. Mas, na morte de nosso Redentor
Judas e os fariseus chegaram ambos ao máximo que puderam
atingir.
1206. Com este enredo, Lúcifer Ao mesmo tempo, umfrenteao ou-
quis desfazer, com novos temores, as tro, agiram no sumo grau possível: a ma-
sugestões que antes insuflara no pérfido lícia humana tirando a vida e a honra de
coração do discípulo traidor, contra o Se- seu próprio Criador e Redentor; e o Sal-
nhor da vida. vador dando-a por eles, com infinita cari-
Falhou, porém, esta sua nova ma- dade.
lícia. Judas, que voluntariamente perdera Nesta ocasião, a nosso modo de
a fé, e não tinha as mesmas suspeitas do entender, tornou-se necessário que a alma
demônio, quis aventurar antes a morte de de Cristo, nosso bem, e sua divindade,
seu Mestre, do que enfrentar a indignação concentrasse a atenção em sua Mãe purís-
dos fariseus, deixando-o com vida. Neste sima. Entre todas as criaturas, era a única
medo, e com sua abominável cobiça, não em quem encontrava a complacência, na
fez caso do conselho de Lúcifer, ainda que qual seu amor repousava e sua justiça se
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Sexto Livr - Capítulo 12
detinha. Nesta singular pura criatura, Ele sando, amando e louvando o Senhor que
via plena e dignissimamente aproveitada ele vendia, com tão injuriosa e desleal
a paixão e morte que iria sofrer pelos traição. Estava pronta a morrer por ele, se
homens. fosse necessário.
Naquela santidade, sem medida, a Pediu pelos que estavam urdindo
justiça divina encontrava certa compen- a prisão e morte de seu divino Cordeiro,
sação da malícia humana. Na humildade como prendas que se havia de comprar e
e caridadefidelíssimadesta grande Se- estimar com o preço infinito de tão pre-
nhora, ficavam depositados os tesouros de cioso sangue. Assim os considerava e
seus merecimentos. Depois, como de cin- valorizava a prudentíssima Senhora.
zas inflamadas, renasceria a Igreja, nova
fênix, em virtude dos mesmos mere-
cimentos e morte de Cristo, nosso Senhor. Jesus chega a Getsêmani
Esta complacência que a humani-
dade de nosso Redentor recebia da santi- 1209. Prosseguiu nosso Salvador
dade de sua digna Mãe, dava-lhe como seu caminho, passando a torrente do Ce-
alento e coragem para vencer a malícia dron (Jo 18, 1) para o monte Olivete e
dos mortais. Considerava bem empregada entrou no horto de Getsêmani, dizendo
a paciência em sofrer tais penas, por ver aos apóstolos: Esperai aqui, enquanto Eu
entre os homens sua Mãe santíssima. me afasto um pouco para rezar (Mt 26,
36); orai também vós, para não entrardes
em tentação (Lc 22,40).
Maria e os inimigos de Jesus Deu-lhes este aviso o divino Mes-
tre, para se manterem firmes na fé contra
1208. A grande Senhora, do retiro as tentações. Na ceia já os prevenira de
em que se encontrava, ia presenciando que todos se escandalizariam naquela
tudo o que acontecia. Viu os pensamentos noite, (Mt 26, 31) com o que o veriam
do obstinado Judas, o modo como se padecer; que Satanás os investiria para
separou do grupo dos apóstolos e como sacudi-los (Lc 22,31) e desnorteá-los com
Lúcifer lhe falou na figura daquele falsas sugestões. Como estava profeti-
homem seu conhecido. Viu tudo o que se zado (Zac 13, 7), o Pastor seria ferido e
passou, quando se encontrou com os prín- as ove-lhas se dispersariam.
cipes dos sacerdotes, e como se prepa- Chamando São Pedro, São João e
ravam, com tanta pressa, para prender ao SãoTiago(Mc 14,33), retirou-se com eles
Senhor. mais para longe, donde não podia ser visto
Nossa capacidade não pode ex- nem ouvido pelos outros.
plicar a dor que esta ciência produziu ao Elevou os olhos ao eterno Pai,
castíssimo coração da Virgem Mãe e os adorou-o e louvou-o como costumava. In-
atos de virtude que Ela exerceu diánte teriormente fez uma prece, cumprindo a
de tais maldádes. Basta dizer, que em profecia de Zacarias (Zac 13,7): Deu per-
tudo agiu com plenitude de sabedoria, missão à morte para se aproximar do ino-
santidade e agrado da santíssima Trin- centíssimo sem pecado, mandando à es-
dade. pada da justiça divina caísse sobre o Pas-
Compadeceu-se de Judas e chorou tor e sobre o Homem unido ao mesmo
a perdição do perverso discípulo. Com- Deus; executando nele todo seurigore fe-
pensou sua maldade, adorando, confes- rindo-o até tirar-lhe a vida.
279
Sexto Livro - Capítulo 12
Para tanto ofereceu-se Cristo, tão próxima, foi menor do que a outra
nosso bem, ao Pai em satisfação de sua Além da morte ser necessária para a Re-
justiça e resgate de todo o gênero humano. denção, sua vontade santíssima estava
Deu consentimento aos tormentos da pronta para vencer o natural apetite de
paixão e morte, para atingirem a parte em viver. Queria também nos ensinar que
que sua humanidade santíssima era pas- tendo, como viador, gozado da glória do
sível. Desde esse momento, suspendeu o corpo em sua Transfiguração, julgava-se
consolo e alívio que da parte impassível como obrigado a sofrer, para pagar devi-
lhe poderia advir, para que seus sofrimen- damente aquele gozo.
tos chegassem ao máximo da dor. Ficamos instruídos desta doutrina,
O Eterno Pai tudo aprovou e con- na pessoa dos três apóstolos, testemunhas
cedeu, segundo a vontade da humanidade da glória na Transfiguração e da tristeza
santíssima do Verbo. no Getsêmani. Por este motivo foram
escolhidos para presenciar ambos os mis-
térios, e assim o entenderam nesta oca-
A tristeza de Cristo sião, por especial luz que lhes foi dada.
1210. Esta oração foi o consenti-
mento que abriu a porta para o mar da Mistérios da tristeza de Cristo
paixão e da amargura entrar violenta-
mente até a alma de Cristo, como dissera 1211. Permitir que esta misteriosa
David (SI 68,2). Começou então a afligir- tristeza, tão profundamente o invadisse,
se e a sentir grandes angustias, dizendo foi como necessário para satisfazer o
aos três apóstolos: Minha alma está triste imenso amor de nosso Salvador Jesus por
até a morte (Mc 14,34). nós. Se não padecera a máxima intensi-
Como estas palavras e tristeza de dade desta tristeza, nào ficaria saciada sua
nosso Salvador encerram muitos misté- caridade, nem se conheceria, tão clara-
rios para nossa instrução, direi alguma mente, que ela era inextinguível pelas
coisa do que me foi mostrado e como o muitas águas das tribulações (Cânt 8,7).
entendi. No próprio sofrimento, praticou
Permitiu o Senhor que esta tristeza esta caridade com os três apóstolos pre-
chegasse ao máximo. Dilatou miracu- sentes, perturbados por saber que já
losamente sua capacidade natural, e exau- chegava a hora em que o divino Mestre
riu todas as possibilidades da condição havia de padecer e morrer, como Ele
passível de sua humanidade santíssima. mesmo havia declarado, por muitos mo-
Entristeceu-se, não apenas na parte infe- dos e avisos.
rior da natureza humana, pelo natural ins- Esta perturbação e covardia os en-
tinto de viver, mas também na parte supe- vergonhava e não se atreviam a revelá-la.
rior, vendo nos inescrutáveis decretos e Por isto, o amantíssimo Senhor os ani-
juízos da divina justiça, a reprovação de mou, manifestando-lhes a própria tristeza
tantos pelos quais havia de morrer. pelo que ia sofrer até a morte. Vendo-o
Esta foi a causa de sua maior aflito e deprimido, não se envergonhariam
tristeza, como veremos adiante®. das próprias penas e temores.
Não disse que estava triste por Esta tristeza do Senhor teve ainda
causa da morte, mas sim até a morte, por¬ outro mistério que dizia respeito aos três
que a tristeza pela morte que o esperava apóstolos, Pedro, João e Tiago. Dentre to-
2 - n° 1395.
280
Sexto Livro - Capítulo 12
dos os apóstolos, os três possuíam mais depois de ter ido ao encontro, com arden-
elevado conceito da divindade e excelên- tíssimo amor, das afrontas, das dores, dos
cia de seu Mestre, quer pela grandeza de tonnentos e da morte; depois de haver
sua doutrina, quer pela santidade de suas mostrado tanto apreço aos homens, que os
obras e poder de seus milagres. Admirava- quis redimir com o preço de seu sangue.
os o domínio que o Mestre possuía sobre Quando, poi s, com sua divina e hu-
as criaturas. mana sabedoria, e com inextinguível cari-
Para confirmá-los na fé de que era dade, ultrapassava tanto ao temor natural
homem verdadeiro e passível, foi conve- da morte, não parece ter sido só este o mo-
niente que, pessoalmente, O vissem triste tivo de sua súplica. Assim o entendi, na
e aflito. Com o testemunho destes três luz que me foi dada sobre os ocultos
privilegiados apóstolos, a santa Igreja fi- mistérios desta oração de nosso Salvador.
caria instruída e preparada contra os erros
que o demônio pretenderia nela semear,
negando a verdade sobre a humanidade de A redenção e os réprobos
Cristo, nosso Salvador.
Além disso, nós os demais fiéis, 1213. Para manifestar o que en-
teríamos essa consolação, quando aflitos tendo, advirto que nesta ocasião, tratava-
pelo sofrimento e atingidos pela tristeza.- se entre nosso Redentor Jesus e seu eterno
Pai, o mais árduo negócio de que se en-
carregara: a redenção humana e o fruto de
Vigiai e orai sua paixão e morte de cruz, para a oculta
predestinação dos santos.
1212. Ilustrados, interiormente, os Nesta oração, Cristo nosso bem
três apóstolos com esta doutrina, acres- apresentou ao eterno Pai seus tormentos,
centou o Autor da vida: Esperai aqui, velai seu sangue preciosíssimo e sua morte. De
e orai comigo (Mt 26,28). Com isto ensi- sua parte, oferecia-a por todos os mortais,
nou-lhes a prática do que antes lhes ad- como preço super-abundantíssimo para
vertira: que permanecessem com Ele todos, e para cada um dos nascidos que
cons-tantes em sua doutrina e fé, e não se existiram e haveriam de existir até o fim
desviassem para o lado do inimigo; que do mundo.
para conhecer a este e resistir-lhe, fi- Da parte do gênero humano, apre-
cassem atentos e vigilantes, esperando sentou todos os pecados, infidelidades, in-
que depois das ignomínias da Paixão, gratidões e desprezos com que os maus
veriam a exaltação de seu Nome. inutilizariam sua afrontosa morte, por eles
Distanciou-se o Senhor, um pou- aceita e sofrida, e os que realmente seriam
co, dos três apóstolos e prostrado com a condenados à pena eterna, por não se
face em terra, orou ao Pai eterno: Meu Pai, terem aproveitado de sua clemência.
se for possível, passe de mim este cálice Morrer pelos amigos e predesti-
(Mt 26,39). nados, era agradável e como desejável a
Cristo, nosso bem, fez esta oração nosso Salvador. Morrer e sofrer, porém,
depois de haver descido do céu para sofrer pelos réprobos, era muito amargo e
e morrer pelos homens; depois de haver penoso, pois não havia sentido sofrer por
desprezado a ignomínia de sua paixão eles a morte que não aproveitariam. A esta
(Heb 12,2), abraçando-a voluntariamente dor, Jesus chamou cálice, palavra que os
sem aceitar o gozo para sua humanidade; homens empregavam para significar uma
281
Sexto Livro - Capítulo 12
mento; que os justos e santos participas- São Miguel que não era possível - como
sem, com grande abundância, da Re- Jesus já sabia - que fossem salvos os que
denção e lhe fossem aplicados muitos não o desejavam ser. À aceitação divina
dons e graças, dos quais os réprobos se valia muito mais o número dos predesti-
fariam indignos. nados, ainda que fosse menor que o dos
Conformando-se a vontade hu- réprobos^. Entre os escolhidos, estava
mana de Cristo com a divina, aceitou a sua Mãe santíssima, digno fruto de sua re-
Paixão por todos, respectivamente: para denção. Esta seria aproveitada pelos pa-
os réprobos como suficiente e para que lhe triarcas, profetas, apóstolos, mártires, vir-
fossem dados auxílios suficientes, se os gens e confessores, almas extraordinárias
quisessem aproveitar; e, para os predesti- em seu amor, e que fariam coisas ad-
nados, como eficaz, porque eles coopera- miráveis para a glória do santo nome do
riam com a graça. Altíssimo. Nomeou o anjo alguns dentre
Assim ficou ordenada e como re- eles, depois dos apóstolos, como foram os
alizada a salvação do corpo místico da fundadores dos institutos de vida reli-
santa Igreja sob seu artífice e cabeça (Col giosa, com os predicados de cada um.
1,18), Cristo, nosso bem. Outros grandes e ocultos mistérios
referiu o anjo, que não é necessário expli-
car, nem tenho ordem para isso. Basta o
São Miguel conforta o Redentor que deixo escrito para continuar esta
História.
1216. Para completar este divino
decreto, estando o Salvador em sua oração
de agonia, pela terceira vez enviou-lhe o Vigiai e orai
Pai eterno o arcanjo São Miguel (Lc 22,
43). Veio confortá-lo e declarar, de modo 1217. Dizem os Evangelistas (Mt
sensível aos sentidos corporais do Reden- 26, 41; Mc 14, 38; Lc 22, 42) que nos
tor, o que este já sabia pela ciência de sua intervalos desta oração, o Salvador vinha
alma santíssima. exortar os apóstolos a que velassem e
O anjo nada pôde dizer ao Senhor orassem, para não entrar em tentação.
que Ele já nào soubesse, nem podia pro- Assim procedeu o vigilantíssimo
duzir-lhe no interior outra disposição para pastor, para ensinar aos prelados de sua
esse fim. Contudo, como acima se dis- Igreja, a forma do cuidado e governo que
(3) hão de usar com suas ovelhas. Se para cui-
sev \ Cristo, nosso bem, havia suspendido dar delas, Cristo Senhor nosso deixou uma
o conforto que de sua ciência e amor podia oração tão importante, está visto que os
redundar em sua humanidade santíssima. prelados devem antepor o bem de seus
Deixando-a, enquanto passível, para sof- súditos a todos outros negócios e interes-
rer ao máximo, como depois o disse na ses.
cruz'
No lugar deste alívio, recebeu al-
gum com a embaixada do santo arcanjo 5 - Ficamos chocados com esta asserção: o número dos que se
salvam é menor que o dos que se perdem. Talvez consideremos
através dos sentidos, ao modo de ex- o fato muito materialmente em função de quantidade, enquanto
periência, o que antes já sabia por outra Deus o considera em função de qualidade, como a frase
ciência. A experiência foi diferente, atin- explicativa Um fruto sadio vale mais do que inúmeros podres
Um só justo vale mais do que todos os pecadores Nesta
gindo os sentidos e faculdades naturais. perspectiva, è imensamente maior o bem que a redenção obtém.
Em nome do Pai eterno, disse-lhe
3-n°.|209 - 4 -Adiante n° 1395.
283
Sexto Livro - Capitulo 12
•
Para entender o perigo que corriam tros: Vigiai e orai para não entrardes em
os apóstolos, advirto que o dragão infer- tentação, pois os meus e vossos inimigos
nal, depois de ter sido expulso do Cená- não dormem como vós.
culo, como disse acima, permaneceu al- Repreendeu São Pedro em particu-
gum tempo prostrado nas cavernas do lar, não só porque era o escolhido para
abismo, até que o Senhor lhe permitiu sair, chefe e prelado de todos, mas também por-
pois sua malícia contribuiria á execução que, entre todos, havia se distinguido em
dos decretos do Senhor. protestar que morreria pelo Mestre e não
De um golpe, foram muitos inves- o negaria, mesmo que todos os outros, es-
tir Judas para impedir a venda do Mestre, candalizados, o negassem e abandonas-
como ficou acima declarado*7*. Não sem.
conseguindo dissuadi-lo, voltaram-se Repreendeu-o também porque,
contra os apósto-los, suspeitando que no com aqueles propósitos e oferecimentos
Cenáculo haviam recebido algum grande mereceu, mais do que os outros, a graça
favor do Mestre. Lúcifer desejava inves- da repreensão, pois não há dúvida que o
tigar para o descobrir e aniquilar, se pu- Senhor corrige aos que ama. Os bons
desse. propósitos e desejos sempre lhe agradam,
Viu nosso Salvador esta crueldade ainda que depois falhamos em cumpri-los,
e furor do príncipe das trevas e seus mi- como aconteceu ao mais fervoroso dos
nistros. Pai amantíssimo e Prelado vigi- apóstolos, São Pedro.
lante, acudiu a prevenir seus filhinhos, Pela terceira vez, voltou Cristo,
súditos principiantes, os apóstolos. Des- nosso Senhor, a despertar os apóstolos,
pertou-os e lhes ordenou orar e vigiar para quando Judas já se aproximava para en-
não entrarem na tentação que, oculta- tregá-lo a seus inimigos, como direi no
mente, os ameaçava e eles não advertiam. capítulo seguinte.
suS pendesse para Ela todo alívio e consolo Chorou a reprovação dos precitos, pois lhe
que pudesse impedir, na parte sensitiva e foram revelados grandes mistérios sobre
na alma, padecer o máximo com seu Filho, a eterna predestinação e reprovação das
e à sua imitação; que em seu virginal corpo criaturas humanas.
participasse das dores, chagas e tormentos Para imitar e cooperar em tudo
que Jesus teria de sofrer. com o Redentor do mundo, sofreu a gran-
Esta súplica foi atendida pela san- de Senhora suor de sangue semelhante ao
tíssima Trindade e a Màe sentiu as dores de Cristo, e por disposição da santíssima
de seu Filho santíssimo, como adiante di- Trindade foi-lhe enviado o arcanjo São
.(8)
rei .
Gabriel para confortá-la como São Miguel
Pela sua intensidade, poderia ter a nosso Salvador Jesus.
morrido muitas vezes, se o poder do Altís- O santo príncipe lhe representou a
simo, miraculosamente não o impedisse. vontade do Alríssimo, com as mesmas
Por outro lado, estas dores concedidas por ponderações de São Miguel a seu Filho
Deus, foram como o sustentáculo e con- santíssimo, pois em Mãe e Filho eram
forto de sua vida. Para seu ardente e in- iguais a súplica e o motivo da dor e tristeza
comensurável amor. teria sido mais vio- que sofriam. Assim, na respectiva pro-
lenta a pena de ver padecer e morrer seu porção, foram semelhantes no agir e en-
Filho bendito, sem sofrer com ele as mes- tender.
mas dores. Entendi nesta ocasião, que a pru-
dentíssima Senhora prevenira alguns
panos para o que na paixão de seu aman-
Nossa Senhora e as três Marias tíssimo Filho iria acontecer. Começou por
enviar seus anjos com uma toalha ao
1220. A Rainha escolheu as três horto, para enxugar e limpar o suor de
Marias*9* para a acompanharem durante a sangue do venerável rosto do Senhor. As-
Paixão, e para esta missão, foram mais ilu- sim fizeram os anjos, e o Senhor o aceitou,
minadas do que as outras mulheres, sobre por amor de sua Mãe e para lhe dar o
os mistérios de Cristo. mérito desta piedosa ternura.
Retirando-se com elas, a Màe Quando chegou a hora da prisão de
puríssima começou a sentir profunda nosso Salvador, a dolorosa Mãe par-
tristeza e aflição, e lhes disse: Minha alma ticipou-a às três Marias. Todas desataram
está triste, porque meu amado Filho e Se- em amaríssimo pranto, principalmente
nhor vai sofrer e morrer, e Eu não poderei Madalena, a mais ardente no amor e pie-
morrer com Ele nos mesmos tormentos. dade.
Orai, amigas, para nào cairdes em ten-
tação. DOUTRINA QUE ME DEU A
Ditas estas palavras, distanciou-se RAINHA DO CÉU MARIA
um pouco e acompanhando a oração que SANTÍSSIMA.
nosso Salvador fazia no horto, fez a
mesma súplica, de acordo com a sua par-
ticipação, e conforme conhecia na von- A perda das almas aumenta a
tade humana de seu Filho santíssimo. amargura da paixão de Cristo
Com os mesmos intervalos, voltou
Para exortar às três companheiras, pois viu 1221. Minha filha, se tudo o que
5^^emôniojse enfurecia contra elas. entendeste e escreveste neste capítulo, for
- n 1236 - <J . Mana Madalena, Mana de Clcolas e
Salame N T
285
Sc.xlo Livro • Capílulo 12
286
CAPÍTULO 13
A PRISÃO DO SALVADOR PELA TRAIÇÃO DE JUDAS.
MISTÉRIOS DESSA PASSAGEM. ATOS DE MARIA
SANTÍSSIMA.
O demônio instiga os inimigos de Judas conduz o bando inimigo de Jesus
Cristo
1224. Com esta ímpia temeridade
1223. Enquanto nosso Salvador se atiçou também a inveja dos pontífices
Jesus estava no Monte Olivete orando a e escribas. A instância de Judas, depressa,
seu eterno Pai e suplicando a salvação de reuniram muita gente: soldados gentios,
toda linhagem humana, o pérfido dis- um tribuno, muitos judeus. Guiados por
cípulo Judas apressava sua prisão e en- Judas, abalaram-se para prender o inocen-
trega aos pontífices e fariseus. tíssimo Cordeiro que os esperava, vendo
Como Lúcifer, e seus demônios, os pensamentos e os planos dos sacrílegos
nào puderam dissuadir a perversa vontade pontífices, como Jeremias havia expres-
de Judas e dos demais, do intento de tirar samente profetizado (Jer 11,19).
a vida de seu Criador e Mestre, sua antiga Todos estes ministros da maldade
soberba mudou de tática. Aumentando a saíram da cidade, em direção ao monte
malícia, administrou ímpias sugestões aos Olivete, armados e prevenidos de cordas
judeus para que, com maior crueldade e e cadeias. Iam com tochas acesas e lanter-
infames injúrias, atormentassem a Cristo. nas (Jo 18,3), como Judas lhes havia acon-
Andava o draeão infernal com mui- selhado, temendo que seu Mestre amantís-
(1) simo, a quem julgava feiticeiro ou mágico,
tas suspeitas, como tenho dito , que aquele fizesse algum milagre para escapar. Agiam
homem, tão diferente poderia ser o Messias, como se, armas e prevenções humanas pu-
verdadeiro Deus. Queria fazer novas ex- dessem alguma coisa contra o poder divino.
periências e tirar a prova desta suspeita, por Se Jesus quisesse, poderia usar
meio das atrocíssimas afrontas contra o Se- dele, como havia feito outras vezes antes
nhor, sugeridas aos judeus e seus ministros. de chegar a hora marcada para se entregar
Comunicou-lhes também sua formidável. livremente à paixão, afrontas e morte de
inveja e soberba como escreveu Salomão cruz.
(Sab 2,17), cujas palavras, nesta ocasião,
se realizaram literalmente.
Supunha o demônio que, se Cristo A união faz a força
não era Deus mas apenas puro homem,
fraquejarianaperseguiçãoetonnentos,e as- 1225. Enquanto nào chegavam,
sim O venceria. Se era Deus. mostrá-lo-ia voltou o Mestre, pela terceira vez aos
livrando-se
-n°999. 1129 por meio de novos milagres.
287
Sexto Livro - Capítulo 13
ministros de maldade. Com o semblante cepando-lhe uma orelha (Jo 18, 10). O
entristecido, o Mestre contemplou o re- golpe pretendia ferimento maior, não
trato do castigo dos réprobos, mas ouviu fosse a providência do Mestre da paciên-
a intercessão de sua Mãe santíssima para cia e mansidão em desviá-lo.
deixá-los levantar, pois a divina vontade Não permitiu o Redentor, naquela
tinha determinado que assim acontecesse ocasião, a morte de alguém, a não ser a
por meio da oração da Virgem. sua com suas chagas, sangue e dores. Se
Jesus orou ao Pai dizendo: Pai meu a aceitassem, vinha dar a todos a vida
e Deus eterno, em minhas mãos pusestes eterna com o resgate do gênero humano.
todas as coisas (Jo 13,3), e em minha von- Tampouco concordava com sua
tade a redenção humana que tua justiça vontade e doutrina, que sua pessoa fosse
pede. Quero, de plena vontade, satisfazê- defendida com armas ofensivas e que este
la e entregar-me à morte, para merecer a exemplo ficasse em sua Igreja, para ela
meus irmãos a participação de teus te- não se defender pelo mesmo sistema. Para
souros e da eterna felicidade que lhes pre- confirmar o que havia ensinado, tomou a
parastes. orelha cortada e a restituiu a seu lugar,
Por este oferecimento, o Altíssimo mais perfeitamente que antes.
deu permissão para que toda aquela malta Depois repreendeu São Pedro,
de homens, demônios e animais se levan- dizendo-lhe (Jo 18, 11): Toma a embai-
tassem, restituídos ao estado nonnal. nhar tua espada, porque todos os que
O Salvador perguntou-lhes segun- usarem dela para matar, por ela perecerão.
da vez: A quem procurais? Responderam Não queres que Eu beba o cálice que meu
novamente: A Jesus Nazareno. Replicou Pai me deu? Pensas que eu não lhe poderia
o Senhor com toda mansidão: Já vos disse pedir muitas legiões de anjos para me de-
que sou Eu; se buscais a Mim, deixai ir a fender e logo Ele mas enviaria? Mas, en-
estes que estão Comigo (Jo 18, 3-8). tão, como se cumprirão as Escrituras e
Com estas palavras, deu licença profecias? (Mt26, 53).
aos soldados e servos para o prender e exe-
cutar sua determinação que, sem eles
compreenderem, era sobrecarregar sua As armas da Igreja são espirituais
pessoa divina com todas nossa dores e en-
fermidades (Is 53, 4). 1232. Com esta amorosa correção,
São Pedro, chefe da Igreja,ficouinstruído
que as armas para sua propagação e defesa
Reação de São Pedro deveriam ser espirituais; que a lei do
Evangelho não ensinava combater e
1231. O primeiro que, audacio- vencer com espadas, mas sim com a hu-
samente, se adiantou para prender o Autor mildade, paciência, mansidão e caridade
da vida, foi um criado dos pontífices, perfeita, armas que vencem o demônio, o
chamado Malco. mundo e a carne. Mediante estas vitórias,
Ainda que os apóstolos estivessem a virtude divina triunfa de seus inimigos
perturbados e aflitos pelo medo, São Pe- e da potência e astúcia deste mundo.
dro acendeu-se mais do que os outros, no Atacar ou se defender com arma-
zelo pela honra e defesa do seu divino mentos, não é para os seguidores de Cristo
Mestre. Puxou de uma espada que trazia, nosso Senhor, e sim para os príncipes da
e desferiu um golpe sobre Malco, de- terra proteger suas possessões terrenas. A
291
Sexto Livro - Capitulo 13
Não é verdadeiro filho, o que não graças. Nada se lhes pode dar, porque não
imita seu pai, nem fiel servo, o que não o pedem em nome de Cristo, meu Senhor,
acompanha seu senhor; nem discípulo, o imitando-o e acompanhando-o em sua
qUe não segue o seu mestre. Também Eu paixão.
não considero meu devoto, quem não se
compadece do que meu Filho e Eu pade-
cemos. O amor com que procuramos a sal- A cruz, caminho da perfeição
vação eterna dos homens nos obriga, ao
vê-los tão esquecidos desta verdade e tão 1239. Abraça pois, minha filha, a
avessos a padecer, a enviar-lhes trabalhos cruz e fora dela não aceites consolação al-
e penalidades. Já que não os amam livre- guma em tua vida mortal. Pela Paixão,
mente pelo menos aceitem-nos e sofram- sentida e meditada, subirás ao cume da
nos obrigados e por este modo entrem no perfeição e adquirirás o amor de esposa.
caminho certo do descanso eterno que de- Imita-me muito nisto, segundo a luz que
sejam. recebes e a obrigação que te confio. Ben-
Apesar de tudo isso, ainda não des- dize e enaltece a meu Filho santíssimo
pertam. O cego amor e inclinação pelas pelo amor com que se entregou à Paixão
coisas visíveis e terrenas, os retarda e em- pela salvação humana. Pouco reparam os
baraça, toma-lhes o coração insensível e mortais neste mistério. Eu, porém, como
lhes rouba toda memória, atenção e afetos testemunha ocular, te advirto que, na es-
com que poderiam elevar-se acima de si tima de meu Filho santíssimo teve o
e das coisas transitórias. Daqui procede, primeiro lugar sua ascensão à destra do
que nas tribulações nào encontram ale- Pai. Em seguida, nada estimou mais e de-
gria, nem alívio nos trabalhos, nem con- sejou de todo o coração, do que padecer,
solo nas penas, nem gozo na adversidade, morrer e entregar-se para isso a seus ini-
nem tranqüilidade alguma. migos. Quero também que lamentes, com
Têm aversão por tudo isso, nada íntima dor de que Judas em suas maldades
querem que lhes seja penoso, como dese- e traição, tenha mais seguidores do que
javam os santos que se gloriavam nas Cristo. Muitos são os infiéis, muitos os
tribulações (Rom 5, 3), como quem con- maus católicos, muitos os hipócritas que,
seguia satisfação de seus desejos. Em com o nome de cristão, o vendem, entre-
muitosfiéistal ignorância é ainda maior: gam e novamente o querem crucificar.
alguns pedem ser abrasados no amor; ou- Chora por todos estes males que conheces
tros suplicam o perdão de suas muitas cul- e compreendes, para também nisto me
pas; estes que se lhes concedam muitas seguir e imitar.
Agonia de J e s u s no horto de Getsêmani.
2%
CAPÍTULO 14
MG A E DISPERSÃO D O S APÓSTOLOS. O QUE F E Z MARIA
SANTÍSSIMA NESTA OCASIÃO, CONDENAÇÃO D E JUDAS.
* PERTURBAÇÃO D O S DEMÔNIOS.
Fuga dos Apóstolos Não convinha, porém, que então fossem
presos e maltratados.
1240. Efetuada a prisão de nosso O Salvador manifestou este desíg-
Salvador Jesus, como fica dito, cumpriu- nio quando disse que, se procuravam a
se o que Ele dissera aos Apóstolos, du- Ele, deixassem ir livres os seus compa-
rante a ceia: naquela noite, todos se escan- nheiros (Jo 18, 8), e assim o dispôs pelo
dalizariam de sua pessoa (Mt 26, 31) e poder de sua divina providência.
satanás os investiria para peneirá-los co- Não obstante, o ódio dos pontífices
mo o trigo (Lc 22,31). e fariseus visava também os apóstolos, e
Os apóstolos viram prender e se pudessem, acabariam com eles. Por
amarrar seu divino Mestre. Verificaram este motivo, o pontífice Anás interrogou
que sua mansidão, palavras tão amáveis e o divino Mestre sobre seus discípulos e
cheias de poder, milagres, doutrina e ili- sua doutrina (Jo 18,19).
bada vida, não tinham podido aplacar a
violência dos servos, nem abrandar a in-
veja dos pontífices e fariseus. Ação do demônio
Desnorteados, aflitos pelo medo
natural, esquecendo o que deviam ao 1241. Também Lúcifer, nesta fuga
Mestre, começando a vacilar na fé, cada dos apóstolos, andou ora perplexo, ora en-
qual só pensava em se pôr a salvo do ganado, ora redobrando sua malícia para
perigo que os ameaçava, em conseqüên- diversas finalidades.
cia do que estava a acontecer a seu Mestre Desejava extinguir a doutrina do
e Chefe. Salvador do mundo e a todos seus dis-
O esquadrão de soldados e servos cípulos, de modo que detes não ficasse
concentraram toda a atenção em Jesus, memória. Para tanto era conforme seus
contra quem estavam irritados. Enquanto desejos, que fossem presos e mortos
encadeavam o mansíssimo Cordeiro, os pelos judeus. Mas isto não lhe pareceu
apóstolos aproveitaram a ocasião e fugi- fácil conseguir. Procurou então incitar
ram (Mt 26, 56), sem ser vistos e perce- os apóstolos com sugestões, para fugi-
bidos pelos judeus. Se o Senhor o tivesse rem e assim não presenciarem a paciên-
permitido, sem dúvida teriam prendido a cia de seu Mestre durante a Paixão, nem
tQdo o colégio apostólico, ainda mais fossem testemunhas do que nela suce-
vendo-os fugir quais covardes culpados. deria.
297
Temeu o astuto dragão que este em terem abandonado o Mestre fu
exemplo os confirmaria na fé, com que covardemente do perigo, não obs 0
resistiriam as tentações que lhes lançaria. haverem sido avisados, e ante
Pareceu-lhe que, se então começassem a prometido, pouco antes, de morrer ^
vacilar, os derrubaria depois com novas Ele, se fosse preciso. Lembravam-s^T
perseguições que lhes suscitaria por meio sua negligente desobediência e d
dos judeus, sempre prontos para acossá- cuido em orar e se prevenir contra as \ ^
los, como a partícipes do Mestre que tações, como seu mansíssimo Mest "
odiavam. Enganou-se o demônio com esta lhes havia mandado.
maligna suposição. Quando viu que os O amor que lhe devotavam, porsUa
apóstolos estavam medrosos, covardes e amável conversação e agradável trato, p0r
desanimados, julgou que aquela dispo- sua doutrina e milagres; a lembrança de
sição era a pior para o homem, e para ele, que era verdadeiro Deus, os animava para
o demônio, a melhor ocasião para tentá- voltarem a procurá-lo, expondo-se ao
los. Acometeu-os, então, com violenta perigo e à morte, comofiéisservos e
fúria, propondo-lhes grandes dúvidas a discípulos.
respeito do Mestre, e que o abandonassem A isto acrescentava-se a lembran-
e fugissem. ça de sua Mãe santíssima que deveriaestar
A tentação da fuga os apóstolos em grande sofrimento, necessitada de
não resistiram, como a muitas falsas su- consolo e amparo. Queriam ir procurá-la
gestões contra a fé, embora nesta também para assisti-la, mas por outro lado, lu-
fraquejaram, uns mais, outros menos, por- tavam com a covardia e o temor da cru-
que todos não foram perturbados e escan- eldade dos judeus e da morte na vergonha
dalizados em igual medida. e perseguição.
Se fossem à presença da dolorosa
Mãe, temiam que Ela os obrigasse a voltar
Conflito íntimo dos apóstolos junto ao Mestre, e se tal nào acontecesse,
não estariam em segurança, porque pode-
1242. Separaram-se uns dos ou- riam procurá-los onde Ela se encontrava.
tros, fugindo para diferentes direções, Além destas dúvidas, os demô-
pois todos juntos seria difícil se escon- nios lhes lançavam ímpias e terríveis
derem, o que então só procuravam. Só sugestões ao pensamento: se se entre-
Pedro e João ficaram juntos, para seguir gassem à morte, não passariam de suici-
de longe a seu Deus e Mestre, e ver no das; seu Mestre que nào pudera salvara
que acabariam os fatos (Jo 18, 15; Mt Si, menos ainda poderia tirá-los das
26, 58). mãos dos pontífices; iam tirar a vida de
No íntimo dos onze apóstolos, Jesus e com isso terminariam os com-
porém, travava-se um conflito de suma promissos com Ele, pois, não O veriam
dor e tribulação, que lhes triturava o co- mais; nào obstante, a sua vida parecer
ração e não lhes deixava consolo e des- corretíssima, ensinava algumas doutri-
canso algum. De um lado, impunha-se a nas muito duras e rigorosas, até então
razào, a graça, a fé, o amor, a verdade; do nunca vistas, motivo pelo qual os sábios
outro, as tentações, suspeitas, temor, co- da lei, os pontífices e todo o povo
vardia e tristeza. estavam indignados contra Ele; era in-
A razão e a luz da verdade repreen- sensato seguir um homem que ia ser con-
diam-lhes a inconstância e deslealdade denado à morte infame e desonrosa.
298
São Pedro e São João principalmente o devoto evangelista São
João.
1243. Nesta luta íntima do coração
dos fugitivos apóstolos, trabalhava Sa-
tanás para levá-los a duvidar da doutrina
de Cristo, e das profecias que falavam de Maria reza pelos apóstolos
seus mistérios e paixão. 1244. No Cenáculo, a divina
Perdendo a esperança de que o Princesa via, por inteligência clarís-
Mestre saísse com vida do poder dos pon- sima, não só a paixão e tormentos de seu
tífices, o temor deles degenerou em tris- Filho santíssimo, mas também tudo
teza e melancolia profunda, acabando na quanto acontecia com os apóstolos, in-
decisão de fugir do perigo e salvar a terior e exteriormente. Olhava sua tribu-
própria vida. tação e tentações, seus pensamentos e
Era tal sua covardia e medo que, resoluções, onde cada um se encontrava
naquela noite, nenhum lugar lhes pare- e o que fazia.
cia seguro e qualquer sombra ou ruído Sendo-lhe assim tudo conhecido,
os apavorava. Aumentou-lhes o temor a não se indignou a candíssima pomba con-
traição de Judas que não voltara a se en- tra os apóstolos, nem jamais lhes atirou ao
contrar com nenhum dos onze, e talvez rosto a deslealdade que haviam cometido.
irritaria também contra eles a raiva dos Pelo contrário, foi Ela o princípio e o ins-
pontífices. trumento de sua conversão, como adiante
São Pedro e São João, mais fer- direi.
vorosos no amor de Cristo, enfrentaram o Desde esse momento começou a
medo e as sugestões do demônio, mais do rezar por eles, e com amabilíssima cari-
que os outros, e ficando juntos resolveram dade e compaixão de mãe, dizia: Singelas
seguir o Mestre a alguma distância. Para e escolhidas ovelhas, porque deixais vos-
tomarem esta decisão, ajudou-os muito o so amantíssimo Pastor que de vós cuidava,
conhecimento que São João tinha com o dando-vos alimento de vida eterna? Por
pontífice Anás (Jo 18,15). Este alternava que, sendo discípulos de doutrina tão ver-
o pontificado com Caifás que o exercia dadeira, abandonais vosso Benfeitor e
naquele ano, e em assembléia dera o con- Mestre? Como esqueceis aquele trato tão
selho profético, de que importava mor- doce e amoroso que cativava vossos co-
resse um só homem para que todo o rações? Por que escutais o mestre da men-
mundo não perecesse (Jo 11,49). tira, o lobo carniceiro que deseja vossa
O conhecimento entre São João e perdição?
os pontífices fundava-se em que o após- Oh! meu querido e pacientíssimo
tolo era tido por pessoa distinta, de li- amor, que benigno e misericordioso vos
nhagem nobre e, pessoalmente afável, faz o amor pelos homens! Estendei vossa
cortês e de qualidades muito amáveis. piedade a este pequeno rebanho que o fu-
Nesta confiança, foram os dois ror da serpente assustou e dispersou. Não
apóstolos seguindo a Cristo nosso Senhor entregueis às feras as almas que crêem em
com mais coragem. Levavam a lembrança vós (SI 73,19).
da grande Rainha do céu, penalizados de Grande paciência tendes com os
sua amargura, desejando encontrá-la para que escolheis para vossos servos e gran-
a ajudar e consolar quanto lhes fosse des obras realizastes com vossos discípu-
possível. Este pensamento preocupava los. Não se perca tanta graça e não re-
299
Sexto Livro - Capitulo 14
proveis aos que vossa vontade escolheu dirigidos à sua divina pessoa, cuja di
para fundamentos de vossa Igreja. Não se dade Ela compreendia e venerava^'"
glorie Lúcifer de triunfar, em vossa pre- sumo grau, acrescentou-se a dor da qu
sença, do melhor de vossa casa e família. dos apóstolos, cuja gravidade só Ela saV
Filho e Senhor meu, olhai a vosso querido ponderar. la
Via a fragilidade e o esquecimç,
que demonstraram dos favores, doutrin
avisos e advertências de seu Mestre. Tud'
em tão pouco tempo: depois da ceia do
\ sermão que nela lhes fez e da comunhão
\ que lhes dera, com a dignidade de sacer-
\ dotes, na qual os deixava tão elevados e
\ comprometidos.
I Conhecia também o perigo de
I ' \ _ I caírem em maiores pecados, pela astúcia
T) / com que Lúcifer e seus ministros de trevas
I ( I trabalhavam por derrubá-los, enquanto
' eles, preocupados pelo medo dos homens,
não advertiam na ação diabólica.
Por todas estas razões, a divina
Mãe multiplicou suas súplicas até mere-
cer-lhes o remédio de que seu Filho san-
tíssimo os perdoasse, apressando seus
auxílios, para logo voltarem à fé e à ami-
zade de sua graça. De todos estes favores,
foi Maria o instrumento eficaz e poderoso.
Enquanto se passavam estes fatos, a
grande Senhora encerrou em seu coração
discípulo João, a Pedro e Tiago distingui- toda a fé, santidade, culto e veneração ao
dos por vossa predileção. Senhor. Toda a Igreja nela se concentrou,
A todos os outros também, voltai como em arca incorruptível, onde se guar-
os olhos de vossa clemência e abatera so- dou e conservou a lei evangélica, o sa-
crifício, o templo e o santuário.
berba do dragão que, com implacável cru- Nesta ocasião, só Maria santíssima
eldade, os desorientou. era toda a Igreja. Só Ela acreditava, ama-
va, esperava, venerava e adorava o objeto
Maria e a Igreja da fé, por si, pelos apóstolos e por todo o
gênero humano. Isto, de tal modo, que
1245. Excede a toda capacidade compensava, quanto era possível a uma
humana e angélica, a grandeza de Maria pura criatura, as falhas e faltas de fé de
santíssima nesta ocasião, pelos atos que todo o resto dos membros místicos da
realizou e pela santidade que manifestou I gr ej a
aos olhos e beneplácito do Altíssimo. Fazia heróicos atos de fé, espe-
Às dores corporais e espirituais rança, amor, veneração e culto, da ^
que sofreu, participando dos tormentos de dade e humanidade de seu Filho e u
seu Filho santíssimo, sentindo os ultrajes verdadeiro. Com genuflexoes e P
300
Sexto Livro - Capitulo i4
304
Sexto Livro - Capítulo 14
a'tentação Cnela caíram. Haviam com- terial e sensmvo. Eleva tua mente ao
preendido pouco os Mistérios e o sentido espiritual que se percebe com luz e ciência
espiritual do que tinham visto e ouvido na interior e não com o sentido animal (1 Cor
escola de seu Mestre. 2, 14). Se o sensível pode estorvar a vida
Com este exemplo e doutrina, fi- espiritual, que dizer do que pertence à vida
carás, minha filha, instruída para ser terrena, animal e carnal? Por isto, quero
minha discípula espiritual e não te acos- que esqueças e apagues de tuas potências
tumares ao sensível, ainda que sejam fa- toda imagem e lembrança de criaturas,
vores do Senhor e meus. Quando os rece- para seres idônea e capaz de minha imi-
beres, não te detenhas no que tem de ma- tação e salutar doutrina.
306
CAPITULO 15
JESUS É CONDUZIDO AO PONTÍFIÇE ANÁS.
SOFRIMENTO DE SUA MÃE SANTÍSSIMA.
Advertência da escritora compreensão; profunda a ponderação;
cordial o agradecimento e fervoroso o
1256. Da paixão, afrontas e tor- amor. Tudo será menos do que foi a reali-
mentos de nosso Salvador Jesus, dever- dade do acontecimento, e muito pouco,
se-ia falar com palavras tão vivas, eficazes para quanto devemos como servos, ami-
e mais penetrantes que espada de dois gu- gos e filhos adotivos, por sua paixão e
ines, até partir de dor o mais íntimo de morte santíssima.
nosso coração (Heb 4,12).
Não foram comuns as penas que
sofreu; não se encontrará dor semelhante Jesus acorrentado e amarrado
à sua (Trenós 1, 12); sua pessoa não era
como a dos outros filhos dos homens; não 1257. O mansíssimo cordeiro Je-
sofreu por Si, nem por suas culpas, mas sus, atado e preso no horto, foi levado à
por nós (1 Ped 2, 21) e pelas nossas. É, casa dos pontífices, primeiro à de Anás
pois, razão que as palavras para descrever (Jo 18, 13). O turbulento esquadrão de
seus tormentos e dores não sejam comuns soldados e servos ia avisado pelas ad-
e triviais, mas com termos fortes e expres- vertências do discípulo traidor (Mc 14,
sivos as apresentemos aos nossos senti- 44): não se fiassem do Mestre e o levas-
dos. sem bem amarrado, porque era feiticeiro
Mas, ai de mim, que não posso em- e podia escapar de suas mãos.
prestar energia às minhas palavras, nem Lúcifer, e seus príncipes de trevas,
encontro as que minha alma deseja para ocultamente os irritavam e enstigavam a
manifestar estes segredos! Direi o que tratar o Senhor, ímpia e sacrilegamente,
conseguir, falarei como puder e me for sem humanidade nem decoro. Sendo to-
concedido, ainda que a pobreza de meu dos instrumentos dóceis à vontade de
talento coarte e limite a grandeza da com- Lúcifer, de quanto lhes foi permitido, nada
preensão, e os termos inadequados não deixaram de executar contra a pessoa de
possam exprimir o conceito captado pelo seu próprio Criador.
coração. Ataram-no com um corrente de
Supra a insuficiência das palavras grandes anéis de ferro, de tal modo que,
a força e vivacidade da fé que professamos depois de rodearem a cintura e o pescoço,
como filhos da Igreja. Se os termos são com as extremidades, onde havia algumas
comuns, seja extraordinária a dor e o sen- argolas, encadearam também as mãos do
timento; altíssimo o conceito; veemente a Senhor que fabricou os céus (Heb 1,10),
307
Sexto Livro - C a p í t u l o 15
os anjos e todo o universo. Assim presas violência nunca imaginada, às vezes fa-
as mão lhe ficaram não na frente, mas nas ziam-no caminhar às pressas, atrope-
costas. lando-o, outras puxavam-no para trás, de-
Esta corrente servia, na casa do tendo-o; arrastavam-no de um lado para o
pontífice Anás, para erguer a ponte le- outro, conforme eram impelidos pela ins-
vadiça de um calabouço. Com a finalidade tigação diabólica. Muitas vezes o der-
de aprisionar o divino Mestre, tiraram-na rubaram por terra e, como tinha as mãos
de lá e a arrumaram com aquelas argolas amarradas, caía sobre o rosto, ferindo-o e
e fechos semelhantes a cadeados. Ainda cobrindo-o de pó. Nestas quedas, arre-
não ficaram satisfeitos nem seguros com metiam-no com golpes e ponta-pés, pi-
este estilo de prisão nunca vista. Sobre as sando sobre sua real Pessoa, magoando-
pesadas correntes, ainda amarraram duas lhe a face e a cabeça. Com algazarra e
cordas bem grossas. Uma, lançaram sobre vaias, aplaudiam essas injúrias, fartando-
o pescoço de Cristo nosso Senhor, cru- o de opróbrios, confonne a dolorosa pa-
zaram-na no peito, rodearam-lhe o corpo lavra de Jeremias (Tren 3,30).
amarrando-o com fortes nós, e deixaram
duas pontas livres para que dois soldados
fossem puxando e arrastando o Senhor. A Dúvida e ira de Lúcifer
segunda corda serviu para lhe atar os
braços, rodeando também a cintura em di- 1259. Em meio desta ímpia feroci-
reção às costas onde estavam suas mãos. dade que Lúcifer acendera naqueles seus
Daí pendiam duas extremidades que ou- ministros, observava ele, com atenção, o
tros dois servos seguravam. procedimento de nosso Salvador cuja
paciência pretendia irritar. Desejava che-
gar a saber se era puro homem, pois esta
Partida do horto dúvida atormentava sua péssima soberba,
mais do que todas suas grandes penas.
1258. Assim se deixou atar e Vendo a mansidão, suavidade e
aprisionar o Onipotente e Santo, como se paciência de Cristo entre tantas injúrias e
fôra o maior facínora dos homens e o maismaus tratos recebidos com semblante se-
fraco dos mortais. Sobrecarregou-se coyn reno, majestoso e impassível, enfureceu-
as nossas iniquidades (Is 53, 6) e com se mais o infernal dragão. Como se fora
nossa fraqueza e incapacidade para o bem. um homem louco furioso, pretendeu
Tendo-o amarrado no horto, ator- pegar nas cordas que os verdugos segu-
mentaram-no não só com as mãos, com as ravam, para ele e outros demônios pu-
cordas e cadeias mas também com as lín- xarem com maior violência e desafiar,
guas. Semelhantes a serpentes venenosas, com mais crueldade, a mansidão do Se-
lançaram a sacrílega peçonha em blas- nhor.
fêmias, contumélias e opróbrios incríveis, Maria santíssima que, do lugar
contra a Pessoa que os anjos e os homens onde se encontrava retirada, tinha clara
adoram e exaltam no céu e na terra. visão de tudo o que ia acontecendo àpes-
Partiram do monte Olivete com soa de seu Filho santíssimo, impediu o
grande vozerio e tumulto, levando no intento diabólico. Quando viu o atre-
meio o Salvador do mundo. Uns o puxa- vimento de Lúcifer, usou do poder de
vam pelas cordas da frente e outros pelas Rainha e lhe ordenou nào fazer ao Sal-
das costas amarradas nos pulsos. Com vador o que intencionava. No mesmo
308
Sexto Livro - Capítulo 15
adoravam, admirados pelos incompreen- Apesar desta resposta ter sido tào
síveis juízos de sua sabedoria (Rom 11* cheia de sabedoria, e tão de acordo com a
33): o Mestre consentindo em ser apresen- pergunta, um dos servos que assistiam ao
tado como réu e pecador; e o iníquo sa- Pontífice, com tremenda audácia, levan-
cerdote passando por justo e zeloso da tou a mão e deu uma bofetada no vene-
honra do Senhor a quem, sacrilegamente, rável rosto do Salvador, repreendendo-o:
pretendia arrebatar juntamente com a Assim é que respondes ao Pontífice? (J 0
vida. 18, 22).
Em silêncio, mantinha-se o man- Recebeu o Senhor este ultraje, ro-
síssimo Cordeiro sem abrir a boca, como gando ao Pai por quem o fizera, estando
disse Isaias (53, 7). O pontífice, com ar- pronto a oferecer o outro lado da face, se
rogante autoridade, lhe perguntou por fosse necessário, para receber outra
seus discípulos (Jo 18,19) e pela doutrina bofetada em cumprimento da doutrina que
que pregava. ensinara (Mt 5,39).
Fez esta pergunta, com intenção de Para que o estulto e atrevido mi-
tirar da resposta algum pretexto para o nistro não ficasse ufano e sem confusão
acusar. O Mestre da santidade, porém, que por tão inaudita maldade, replicou-lhe o
guia e emenda os mais sábios (Sab 7,15), Senhor com grande serenidade e man-
ofereceu ao eterno Pai aquela humilhação sidão: Se falei mal, declara-o edize no que
de ser apresentado como réu ante o pon- está o mal que me atribuis; e se falei como
tífice, interrogado como criminoso e autor devia, por que me feres? (Jo 18, 23).
de falsa doutrina. Oh! espetáculo espantoso para os
Respondeu nosso Redentor, com espíritos celestes! Só de ouvir-te contar
humilde e sereno semblante, à pergunta podem e devem tremer as colunas do céu
sobre sua doutrina: Sempre falei em e estremecer todo o finnamento! (Jó 26,
público, ensinando e pregando no templo 11). Este Senhor é aquele do qual disse Jó
e na sinagoga onde concorrem os judeus, (9, 4): é sábio de coração e tão forte que
e nada disse às escondidas. Por que per- ninguém lhe pode resistir, e ficar em paz;
guntas a Mim? Eles te dirão o que lhes com seu furor subverte os montes antes
ensinei. (Jo 18,20-21) que possam percebê-lo; move a terra de
Como a doutrina de Cristo, nosso seu lugar, sacode suas colunas umas con-
Senhor, era de seu eterno Pai respondeu por tra as outras; manda ao sol que não nasça
ela e por seu crédito. Remeteu-se aos seus e encerra as estrelas sob um selo; faz
ouvintes, porque sua resposta era esperada coisas grandes e incompreensíveis; nin-
não para ser aceita, mas para ser usada como guém pode resistir à sua ira, e diante dele,
acusação. Além disto, a verdade e a virtude dobram os joelhos os que sustentam todo
se impõem e se abonam por si mesmas, o orbe. Este mesmo é quem, por amor dos
ainda entre os maiores inimigos. homens, suporta que um ímpio criado lhe
fira a face com uma bofetada.
A bofetada do criado
1262. Não respondeu pelos após- Primeira negação de Pedro
tolos, por não ser necessário na ocasião, 1263. A resposta humilde e irre-
nem eles estavam em condições de serem futável de Cristo ao sacrílego servo, en-
louvados por seu Mestre. vergonhou-o de sua maldade. Mas, nem
310
Sexto Livro - Capitulo 15
esta confusão, nem a que o pontífice de- fica dito. Como tinha em seu peito o
veria sentir permitindo que, em sua pre- propiciatório e o sacrifício, seu próprio
sença, se cometesse tal desacato, bastou Filho sacramentado, dirigia a Ele suas
para levá-lo a abrandar o tratamento que súplicas e amorosos afetos, exercitando
dava ao Autor da vida. heróicos atos de compaixão, agradeci-
Neste ínterim, chegaram à casa de mento, culto e adoração.
Anás, São Pedro e o outro discípulo que Quando a piedosíssima Rainha viu
era São João. Este, sendo conhecido, en- a negação de São Pedro, chorou amar-
trou facilmente, enquanto São Pedro ficou gamente e não cessou de chorar, até en-
fora, até que a pedido de São João, a por- tender que o Altíssimo não recusaria a Pe-
teira, criada do Pontífice, o deixou entrar dro os auxílios para se levantar de sua
(Jo 18, 16). Queriam ver o que estava queda.
acontecendo ao Redentor. . Sentiu também a Mãe puríssima,
Entraram os dois apóstolos no em seu virginal corpo, todas as dores, feri-
pátio da casa, exterior à sala do pontífice, das e tormentos que seu Filho recebia no
e São Pedro aproximou-se do fogo que os dele. Quando Jesus foi atado com as cor-
soldados acenderam, porque a noite era das e correntes, sentiu nos pulsos tantas
fria. A porteira olhou atentamente São Pe- dores, que o sangue lhe saltou das unhas,
dro, desconfiada de que ele era um como se suas virginais mãos fossem ata-
discípulo de Cristo, e aproximando-se lhe das e apertadas. O mesmo aconteceu com
perguntou: Por acaso, não és um dos as demais feridas.
discípulos desse Homem? (Jo 18,17). Acrescentando-se a esta pena cor-
Esta pergunta da criada, feita com poral a do coração, por ver seu Filho pade-
certo desprezo e ofensa, envergonhou Sào cer, a Mãe amantíssima chorou sangue
Pedro. Acovardado, cheio de temor, res- vivo, sendo o poder de Deus o artífice
pondeu: Não sou seu discípulo. Com esta deste milagre. Sentiu também o golpe da
resposta, afastou-se do grupo e saiu da bofetada recebida por Jesus, como se
casa de Anás. Depois, seguindo o Mestre aquela mão sacrílega, houvera ferido ao
foi a de Caifás, onde negou mais duas mesmo tempo o Filho e Màe juntos. Neste
vezes, como adiante direi . ultraje, nas blasfêmias e desacatos, cha-
mou seus santos anjos, para com Ela exal-
tar e adorar seu Criador, em reparação dos
Compaixão de Maria opróbrios que recebia dos pecadores.
Com prudentíssimas palavras,
1264. Para o divino Mestre foi mais cheias de amargura e dor, conferia com os
dolorosa a negação de Pedro, do que a anjos a causa de seu pranto e dolorosa
bofetada do criado. A sua imensa caridade compaixão.
custava mais o pecado, do que os sofrimen-
tos pelos quais pagava nossas culpas. DOUTRINA QUE ME DEU A GRAN-
Na primeira negação, Cristo rezou DE RAINHA E SENHORA DO CÉU.
ao eterno Pai por seu apóstolo, e dispôs
que, pela intercessão de Maria santíssima,
lhe fosse prevenida a graça e o perdão para Ingratidão e esquecimento dos homens
depois das três negações.
A grande Senhora via de seu ora- 1265. Minhafilha,a divina luz que
tonotudo o que ia acontecendo, conforme recebes sobre os mistérios de meu Filho
L^>° 1278.
Sexto Li\ro - Capítulo 15 i
santíssimo e meu: a compreensão do de ti mesma. Eu te chamo e escolho para
quanto sofremos pela linhagem humana e me imitar e acompanhai', naquilo em que
a ingratidão com que nos retribuem tantos me deixam tão só, as criaturas que meu
benefícios: - tudo isto é convite para re- Filho santíssimo e Eu tanto beneficiamos.
alizares grandes coisas. Apesar de viveres Pondera, quanto te for possível, o muito
em carne mortal, exposta a estas ignorân- que custou a meu Senhor reconciliar os
cias e fraquezas, a força da verdade que homens com o Pai (Col 1, 22) e merecer-
entendes, desperta em ti muitos afetos: ad- lhes sua amizade. Chora e aflige-te de que
miração, dor, aflição e compaixão pelo tantos vivem esquecidos de tudo isso, en-
esquecimento e pouca atenção dos mortais quanto outros trabalham, com todo afinco,
a tão grandes sacramentos, e pelos bens para destruir e perder o que custou o sangue
que perdem em sua frouxidão e tibieza. e a morte do mesmo Deus, e o que Eu, desde
Qual será, então, a ponderação que minha concepção, procurei e procuro solici-
disso farão os anjos e santos? E qual será a tar e obter para sua salvação.
que Eu terei na visão do Senhor, ao ver o Desperta em teu coração dorido
mundo e osfiéisem tão perigoso estado e pranto, de que na santa Igreja haja tantos
tremendo descuido, depois que meu Filho imitadores dos pontífices hipócritas e
santíssimo sofreu e morreu? Agora, que sacrílegos que, a pretexto de falsa
dispõem do exemplo de nossa vida purís- piedade, condenaram a Cristo. A soberba,
sima, e a Mim por Màe e intercessora? fausto e outras graves culpas, encontram-
Na verdade, digo-te, caríssima, que se autorizadas e entronizadas, enquanto a
só minha intercessão e o oferecimento ao humildade, a verdade, a justiça e as vir-
Eterno Pai dos méritos de seu Filho e meu, tudes são oprimidas e desprezadas. Só
podem suspender o castigo e aplacar sua prevalecem a cobiça e a vaidade.
justa indignação. É isto que o impede des- Poucos conhecem a pobreza de
truir o mundo e açoitar, rigorosamente, os Cristo e menos ainda a abraçam. A santa fé
filhos da Igreja que conhecem a vontade do encontra-se imobilizada e não se propaga,
Senhor e não a cumprem (Jo 15,15). por causa da desmedida ambição dos
Vejo-me, porém, muito desobri- poderosos do mundo. Nos católicos per-
gada, por encontrar tão poucos, que se manece morta ou inerte, e tudo o que deveria
contristem comigo e consolem a meu viver está morto, a caminho da perdição. Os
Filho em suas penas, como disse David conselhos do Evangelho são esquecidos, os
(SI 68, 21). Esta dureza será motivo de preceitos transgredidos, a caridade quase
maior confusão para os maus cristãos no extinta. Meu Filho, verdadeiro Deus, entre-
dia do juízo. gou sua face, com paciência e mansidão,
Conhecerão, naquele dia, com ir- àqueles que a jeriam (Tren 3, 30).
remediável dor, que não apenas foram in- Quem perdoa uma injúria para O
gratos, mas até desumanos e cruéis com imitar? O mundo criou leis opostas à sua
meu Filho santíssimo, comigo e consigo e não apenas os infiéis, mas os próprios
mesmos. filhos da fé e da luz as seguem.
•
Wk
313
Julgamento de Jesus
314
CAPÍTULO 16
•
los, cuspiram em seu venerável rosto e vàva-a quase a perder a vida, mas logo era
davam-lhe socos no pescoço, espécie de fortalecida por virtude divina para con-
insulto vil com que os Judeus tratavam os tinuar a sofrer com seu amado Filho e Se-
homens da mais baixa condição. nhor.
tão alto lugar em sua divina aceitação e a fazer imprecações, dizendo que nào co-
agrado. nhecia aquele Homem (Mt. 26,72). Ime-
Por esta razào e por outras que co- diatamente) cantou o galo pela segunda
nheceu nestes atos de Cristo nosso Sen- vez, cumprindo-se exatamente a sentença
hor, com incomparável fervor escolheu e aviso que seu divino Mestre fizera:
novamente os trabalhos e desprezos, as naquela noite ele O negaria três vezes
tribulações e penas, para o restante da (Mt. 26,34), antes que o galo cantasse
Paixão e da sua vida santíssima. duas.
Mestre da vida, vivem quase como infiéis, mesma espécie da dos outros mortais que
e muitos são ainda mais culpados que cometeram a desobediência e ficaram
estes. Desprezam, realmente, o fruto da feridos pelos maus efeitos que prejudicam
Redenção que professam e conhecem. Na a natureza humana. Só por este paren-
terra dos Santos, praticam impiamente a tesco, achei que devia mortificá-los, hu-
maldade (Is, 26,10) e se fazem indignos milhá-los e privá-los das satisfações de
do remédio que, com maior misericórdia, sua natureza. Procedia comofilhafidelís-
lhe foi colocado nas mãos. sim,a que se considera envolvida na
dívida de seu pai e innãos. Ainda que nada
deve, procura pagar e satisfazer a dívida,
Humildade: disposição lógica à como se fosse sua, Fá-lo com tanto mais
condição de pecadores. diligência, quanto maior é o amor que
dedica à família. Não descansa até o con-
1282. Quanto a ti, minha filha, seguir, principalmente quando vê que o
quero que trabalhes por chegar a ser bem- pai e os innãos não têm possibilidade para
aventurada, seguindo-me por imitação a saldar.
perfeita, segundo as forças da graça que Era o que Eu fazia por todo o
recebes, para entender esta doutrina gênero humano, chorando suas misérias e
escondida aos prudentes e sábios do delitos. Por serfilhade Adão, mortificava
mundo (Mt. 11,25). Cada dia te manifesto em mim os sentidos e potências que ele
novos segredos de minha sabedoria, para usara para pecai*.
que teu coração se inflame e estendas tuas Embora inocente, humilhava-me
mãos a grandes coisas. (Prov. 31,19). como envergonhada e culpada de seu pe-
Já sabes que, desde o primeiro ins- cado e desobediência. O mesmo fazia
tante de minha conceição, fui cheia de pelos demais homens, innãos meus pela
graça, sem a mácula do pecado original e natureza.
sem participar de seus efeitos. Por este Tu não podes me imitar nas mes-
singular privilégio, desde esse momento mas condições, pois és participante na
fui bem-aventurada nas virtudes, sem sen- culpa. Por isto mesmo, estás mais obri-
tir repugnância e resistência para vencer, gada a imitar-me no resto que, sem ela, eu
e sem me ver devedora de culpa pessoal fazia. Ser culpada, e ter que satisfazer a
para pagar. Apesar de tudo isso, a divina divina justiça, te há de compelir a traba-
ciência me ensinou que, por ser filha da lhar sem cessar por ti e pelo próximo e a
natureza pecadora de Adão, embora isenta te humilhar até o pó. O coração contrito e
do pecado, Eu deveria humilhar-me mais humilhado atrai a verdadeira piedade para
do que o pó. Meus sentidos eram da usar de misericórdia (SI. 50,19).
322
CAPÍTULO 17
SOFRIMENTOS DO SALVADOR EM SUA PRISÃO
NOTURNA. DOR DE SUA MAE SANTÍSSIMA.
Exortação da Escritora graça e da glória. Serei a mais ingrata, en-
tre todos os nascidos, se desde hoje não
1283. Os sagrados Evangelistas odiar a culpa, mais do que à morte e ao
não declararam onde e o que padeceu o mesmo demônio. A todos os católicos, fi-
Senhor da vida, depois da negação de São lhos da santa Igreja, admoesto e intimo
Pedro e dos insultos que o Salvador sofreu esta minha obrigação.
na casa de Caifás, até a manhã seguinte.
Passaram em silêncio e só referem a nova
reunião que foi feita para apresentá-lo a O calabouço
Pilatos, como se verá no capítulo seguinte.
Eu duvidava se devia escrever esta 1284. Com os opróbrios que
passagem e manifestar o que me foi dado Cristo, nosso bem, sofreu diante de
a entender. Além disto, me foi mostrado Caifás, a inveja do ambicioso pontífice
que nem tudo será conhecido nesta vida, e a ira de seus coligados e ministros, fi-
nem é conveniente ser dito a todos. No dia caram bastante cansadas, não porém sa-
do juízo serão revelados aos homens, este tisfeitas. Como, entretanto, já passara de
e outros acontecimentos da vida e paixão meia-noite, determinaram que, en-
de nosso Redentor. quanto dormiam, ficasse o Salvador até
Para o que posso manifestar, não a manhã, bem guardado e seguro para
encontro palavras adequadas a meus con- não fugir.
ceitos e ainda menos ao seu objeto, pois Mandaram-no prender, atado
tudo é inefável e ultrapassa minha capaci- como estava, num porão que servia de
dade. Por obediência, entretanto, direi o calabouço para os maiores ladrões e
que conseguir, para não ser repreendida fascínoras do país. Este cárcere era tão es-
por ter calado verdades que tanto confun- curo que quase não tinha luz, e tão imundo
dem e condenam nossa vaidade e ede mau cheiro, que poderia infeccionar
esquecimento. a casa se não estivesse bem tapado. Fazia
Na presença do céu confesso muitos anos que não o limpavam, tanto
minha dureza, pois não morro de confusão por ser muito fundo, como porque, ser-
c dor, por haver cometido culpas que tanto vindo para encerrar tão grandes crimi-
custaram ao mesmo Deus que me deu o nosos, não duvidavam em metê-los
ser e a vida que tenho. Já não podemos naquele horrível calabouço, como agente
ignorar a gravidade do pecado que pro- indigna de qualquer piedade, mais feras
duziu tal estrago no próprio Senhor da do que homens.
323
Sexto Livro Capitulo t /
cada um por sua vez, feriam-no com so- terável em Cristo, nosso Senhor. Com in-
cos, pancadas e bofetadas. Porfiando em fernal idéia, pôs na imaginação daqueles
se exceder no escárnio e blasfêmia, man- seus escravos, que O despissem de todas
davam-no adivinhar e dizer quem estava as vestes e O tratassem com as palavras e
a lhe bater. ações forjadas em sua mente execrável.
Não se opuseram os soldados a
esta sugestão e quiseram executá-la. Im-
pediu este abominável sacrilégio a pru-
dentíssima Senhora com orações, lágri-
mas e usando sua autoridade de Rainha.
Pediu ao eterno Pai não concorresse com
as causas segundas daqueles atos, e às
mesmas potências dos verdugos mandou,
que não usassem a natural capacidade de
agir. Com esta ordem, aconteceu que
aqueles esbirros nada conseguiram fazer
de quanto o demônio e sua malícia lhes
sugeria.
Algumas coisas logo esqueciam;
para outras que tencionavam, não sentiam
força e seus braços ficavam como imobi-
lizados; quando desistiam, voltavam ao
estado natural, porque o milagre não era
castigá-los, mas só para impedir os atos
mais indecentes. Quanto aos demais que
o eram menos, ou de outra espécie de ir-
reverência, o Senhor continuava a lhes
permitir.
329
Cristo ou Barrabás.
33U
CAPÍTULO 18
PROCESSO DE JESUS NA MANHÃ DE SEXTA-FEIRA. E
REMETIDO A PILATOS. MARIA SAI-LHE AO ENCONTRO
COM SAO JOÃO EVANGELISTA E AS TRES MARIAS.
Jesus é conduzido ao concilio dos Desamarraram o Senhor e leva-
chefes judeus ram-no ao concilio, sem que Jesus abrisse
a boca. De mãos atadas, não pudera limpar
1297. Ao amanhecer da sexta- as salivas do rosto entumecido pelas
feira, dizem os Evangelistas (Mt 27,1; Mc bofetadas e maus tratos. Estava tão des-
15, 1; Lc 22, 66; Jo 18, 28), reuniram-se figurado e fraco que causou espanto, mas
os anciãos do governo, com os príncipes não compaixão, aos seus juizes. Tal era o
dos sacerdotes e escribas, respeitados pelo ódio que contra o Senhor haviam conce-
povo como representantes da doutrina e bido.
da lei. De comum acordo, iam fazer o jul-
gamento de Cristo para condená-lo à
morte, como todos desejavam, dando ao Jesus declara-se Filho de Deus
processo alguma aparência de justiça para
se justificarem perante o povo. 1298. Perguntaram-lhe nova-
O concilio foi reunido na casa do mente se era o Cristo (Lc 22,66), que quer
pontífice Caifás, onde Jesus se encontrava dizer o ungido. A intenção desta pergunta,
preso. Para interrogá-lo de novo, man- como de todas as outras, era maliciosa;
daram que o conduzissem do calabouço à não pretendiam obter delas a verdade, mas
sala do concilio. sim transformar sua resposta em matéria
Desceram os servos para trazê-lo de acusação.
amarrado, e ao soltá-lo do penhasco em O Senhor, que desejava morrer pela
que estava preso, disseram-lhe entre verdade, não se recusou dar resposta, mas
gargalhadas escarninhas: Vamos, Jesus deu-a de modo a não poderem desprezá-la,
Nazareno; pouco te valeram teus mila- nem atribuir-lhe aparência alguma de falsi-
gres para te defenderes. Aquelas artes dade que, absolutamente, não podia caber
com que dizias edificar o templo em três em sua inocência e sabedoria.
dias, agora não te ajudaram a escapar. Formulou a resposta em termos,
Vais pagar tuas vaidades e abaixar teus que se os fariseus tivessem alguma
arrogantes pensamentos. Vem, vem, que piedade, teriam também oportunidade
os príncipes dos sacerdotes e escribas te para penetrar o mistério oculto em suas
esperam, para dar fim a teus embustes e palavras.
te entregar a Pilatos que acabará Con- E, se não tivessem nenhuma boa
tigo de uma vez. vontade, ficava claro que a culpa estava
331
Sexto Livro - ;apítulo 18
em suas más intenções e não na resposta vida, queriam que fosse usada a maior cir-
do Salvador. cunspecção. Nenhum réu devia ser con-
Disse-lhes Ele (Lc 22,67 - 70): Se denado, sem antes ser interrogado, dando-
Eu afirmo que sou quem me perguntais, lhe tempo e oportunidade para se de-
não dareis crédito; se vos perguntar algo, fender. Nesta forma de justiça, os romanos
tampouco me respondereis, nem soltareis. se ajustavam à lei natural da razào, mais
Digo-vos, porém, que depois disto, o do que outros povos.
Filho do Homem se assentará à destra do No processo de*Cristo, alegraram-
poder de Deus. se os escribas e fariseus de que a morte
Replicaram os pontífices: Logo, és que lhe desejavam dar fosse decretada por
o Filho de Deus? - Respondeu o Senhor: sentença de Pilatos que era pagão. Servir-
Vós o dizeis, Eu o sou. lhes-ia de desculpa perante o povo,
Foi como se lhes dissesse: E muito dizendo que o Governador romano o con-
lógica a conclusão que tirastes de que sou denara, e não o teria feito, se não fosse
o Filho de Deus: minhas obras e doutrina, digno de morte.
vossas escrituras e tudo o que fazeis agora Tanto quanto isto os obscurecia o
Comigo, testemunham que Eu sou o pecado e a hipocrisia, como se não fossem
Cristo, o prometido na lei. os autores daquela maldade, e mais
sacrílegos que os gentios. Mas o Senhor
dispôs que esta malícia ficasse
Jesus condenado pelos judeus descoberta, justamente pelo proceder
deles junto a Pilatos, como logo veremos.
1299. Aquela maligna assembléia,
entretanto, não estava disposta a aceitar a
verdade divina. Embora os próprios juizes Jesus é levado a Pilatos
a pudessem deduzir de uma reta interpre-
tação, não a entenderam, não lhes pres- 1300. Os criados levaram nosso
taram crédito e a infamaram por blasfêmia Salvador Jesus da casa de Caifás à de Pila-
digna de morte. tos. Apresentaram-no como réu digno de
Vendo que o Senhor confirmava o morte, atado com cadeias e cordas.
que antes confessara, disseram todos (Lc Jerusalém encontrava-se repleta
22, 71): Que necessidade temos de mais de pessoas de toda a Palestina, vindas para
testemunhas, se por sua própria boca Ele a celebração da grande Páscoa do cordeiro
se acusou? - Imediatamente, de comum e dos ázimos. Pelo rumor que já corria en-
acordo, decretaram que era digno de tre o povo, e pela fama do Mestre, acorreu
morte e que fosse apresentado a Poncio grande multidão para vê-lo passar pelas
Pilatos que governava a Judéia, em nome ruas.
do Imperador romano, senhor temporal da Diversas eram as opiniões do
Pa-lestina. vulgo sobre o divino Prisioneiro. Al-
De conformidade com as leis do guns gritavam: morra esse malvado im-
império romano, os crimes de sangue e a postor que engana o mundo. Outros res-
pena de morte estavam reservados ao Im- pondiam que sua doutrina e suas obras
perador, ao Senado, ou a seus ministros não eram tão más, pois fazia tanto bem
que governavam as províncias distantes. a todos. Os que n'Ele acreditavam se
Não as deixavam aos povos naturais, por- afligiam e choravam, e toda a cidade se
que em negócio tão grave como tirar a agitava.
Sexto Livro - Capítulo 18
opróbrios, e não à vossa divina pessoa que maldades e como somos tão cuidadosos
sois a fonnosura dos anjos e o resplendor da justiça e de nossas obrigações, nào pro-
da glória de vosso eterno Pai? cederíamos contra Ele se nào fosse um
Como não desejarei vos poupar grande fascínora.
tais penas? Como suportará meu coração Apesar da resposta, replicou Pila-
ver-vos tão aflito, desfigurado vosso tos: - que delitos cometeu? - Está provado,
belíssimo rosto, e que só paia o Criador e responderam os judeus, que perturba a
Redentor não haja compaixão e piedade, nação, quer fazer-se nosso rei e proíbe que
em tão amarga paixão? Se, contudo, não se pague tributos a César (Lc 23,2); diz-se
é possível que Eu vos alivie como Mãe, Filho de Deus e pregou nova doutrina a
recebei minha dor e sacrifício de não o começar da Galiléia, prosseguindo por
poder fazer, como a Filho e Deus santo e toda a Judéia até Jerusalém (Lc 25, 5).
verdadeiro. - Pois tomai-o vós outros, disse
Pilatos, ejulgai-o confonne as vossas leis,
porque não encontro causa para o julgar.
Jesus apresentado a Pilatos Replicaram os Judeus: - A nós não
nos é permitido condenar alguém à morte,
1305. No interior de nossa Rainha nem lhe aplicar essa pena (Jo 18, 31).
do céu, ficou tão gravada a imagem de seu
Filho santíssimo maltratado, desfigurado
e preso, que durante toda a vida jamais se Oração de Maria para ser
apagou de sua imaginação aquele quadro, reconhecida a inocência de Jesus.
como se continuamente o estivesse con-
templando. 1306. A todo este inquérito
Chegou Cristo, nosso bem, à casa achava-se presente, Maria santíssima com
de Pilatos, seguido por muitos judeus do São João e as mulheres que a acompa-
concilio e por inumerável povo. Apresen- nhavam, pois os santos anjos a conduzi-
tando-o ao juiz, os judeus permaneceram ram onde tudo pudesse ver e ouvir.
fora do pretório (Jo 18, 28) ou tribunal, Sob o manto, chorava sangue em
fingindo-se muito devotos em não querer vez de lágrimas, pela força da dor que par-
se contaminar, para poder celebrar a tia seu virginal coração. Nos atos de vir-
Páscoa dos pães rituais, bem purificados tude, era um claríssimo espelho onde se
das impurezas legais. Estultíssimos refletia a alma santíssima de seu Filho, e
hipócritas, não reparavam no imundo sa- nas dores e penas reproduzia-lhe os sofri-
crilégio que lhes contaminava as almas mentos do corpo. Pedia ao Pai eterno lhe
homicidas do Inocente. concedesse não perder de vista o Filho, o
Apesar de pagão, Pilatos condes- quanto fosse possível, pela ordem natural,
cendeu com a cerimônia dos Judeus. até sua morte, e assim o conseguiu en-
Vendo que punham reparo em entrar no quanto o Senhor nào se encontrava preso.
seu pretório, saiu, e conforme o estilo dos Considerou a prudentíssima Se-
romanos, lhes perguntou: - Que acusação nhora que convinha ser conhecida a
tendes contra este homem? inocência de nosso Salvador Jesus, entre
Responderam os Judeus: - Se não as falsas acusações e calúnias dos judeus,
fosse grande malfeitor não o traríamos as- e que era condenado inocente. Com fer-
sim preso como o apresentamos. Era vorosa oração, pediu que o juiz não fosse
como se dissesse: - Averiguamos suas enganado e tivesse verdadeiro co-
335
. . . . . .
Sexto Livro - Capítulo 18
* nhecimento de que Jesus era entregue por Ali, a sós, perguntou-lhe (Jo 18,
inveja dos sacerdotes e escribas. Em vir- 33): Dize-me, és tu o Rei dos judeus? Pila-
tude desta oração de Maria santíssima, tos sabia que Cristo não estava reinando,
Pilatos teve claro conhecimento da ver- e sua pergunta visava saber se era rei por
dade, e se convenceu de que o Senhor era direito e se o tinha para reinar. Respon-
inocente e lhe fora entregue por inveja, deu-lhe o Salvador (Jo 18,34 - 36): - Per-
como diz Sào Mateus (27, 18). Por esta guntas isso de ti mesmo, ou alguém te
razão, Jesus dialogou mais com ele, ainda disse, falando-te de mim? Replicou Pila-
que Pilatos não colaborou com a verdade tos: - Sou acaso judeu, para saber? Tua
que conheceu. Deste modo, nào foi de gente e teus pontífices te entregaram a
proveito para ele, mas para nós e para meu tribunal; dize-me o que fizeste e o
provar a perfídia dos pontífices e fariseus. que há em tudo isso.
Respondeu o Senhor: - Meu reino
não é deste mundo, pois se o fosse, é certo
Barrabás preferido a Jesus que meus súditos me defenderiam, para
não ser entregue aos judeus, mas meu rei-
1307. A raiva dos judeus desejava no nào é daqui. Acreditou ojuiz, em parte,
encontrar Pilatos de pleno acordo com nesta resposta do Senhor e replicou: -
eles, para logo pronunciar a sentença de Logo és rei, e tens reino? Cristo não negou
morte contra Jesus. Ao verem que o go- e acrescentou (Jo 18, 37):
vernador punha tanta dúvida nisso,
começaram a gritar ferozmente, acusando
o Salvador de querer tomar o reino da
Judéia; que para isso iludia e sublevava as
populações (Lc 23, 5) chamando-se
Cristo, que quer dizer ungido e rei.
Apresentaram a Pilatos esta mali-
ciosa acusação (Lc 23,2), com a intenção
de o abalar com o zelo do reino temporal
que estava incumbido de conservar sob o
império romano.
Como, entre os judeus os reis eram
ungidos, por isto acrescentaram que Je-
sus se dava o nome de Cristo ou ungido
com a realeza, explicação necessária a
Pilatos pertencente á gentilidade, cujos
reis não eram ungidos.
Perguntou Pilatos ao Senhor (Mc
15, 4-5) -: Que respondes a estas
acusações? Estando presente os acusa-
dores, Jesus não respondeu palavra, pelo
que admirava-se Pilatos de tal silêncio e
paciência. Desejando, porém, examinar
melhor a questão da realeza, retirou-se
com o Senhor para dentro do pretório,
livre da gritaria dos judeus.
336
- Tu o dizes; sou rei e para dar teste- lo com o expediente de O enviar a
munho da verdade é que vim ao mundo: Herodes, como direi no capitulo seguinte.
todos os que procedem da verdade ouvem Estes auxílios, porém, não chegaram a ser
minhas palavras. Admirou-se Pilatos eficazes porque o desmereceu, come-
desta resposta e tornou a perguntar:- que tendo o pecado de se guiar por fins tem-
coisa é a verdade? E, sem aguardar res- porais e não pela justiça, seguindo mais
posta, saiu outra vez do pretório e disse as sugestões de Lúcifer , do que o conhe-
aos judeus: - Não encontro neste homem cimento claro da verdade.
culpa para o condenar. Tendes costume de Tendo-a entendido, mostrou-se
na festa da Páscoa, dar liberdade a um mau juiz, consultando a causado inocente
preso (Jo 39): com seus declarados inimigos e falsos
Quem desejais que seja solto: Je- acusadores. Daqui, incorreu em maior de-
sus ou Barrabás? Este era um ladrão e lito agindo contra a consciência: conde-
homicida que, naquela ocasião, estava nou-o á morte e, antes disso, á desumana
detido por haver matado outro numa de- flagelação, como veremos, só para con-
savença. tentar aos judeus.
Gritaram todos a uma só voz: -
Solta Barrabás e crucifica Jesus! E insis-
tiram neste pedido até conseguirem o que O pecado de Pilatos; a cegueira dos
desejavam. judeus
1309. Por estas e outras razões,
Pilatos reconhece a inocência de Jesus Pilatos foi iníquo e injusto juiz conde-
nando a Cristo a quem considerava apenas
1308. Muito se perturbou Pilatos homem, mas inocente e bom. Apesar de
com as respostas de nosso Salvador Jesus tudo, seu delito foi menor, comparado ao
e com a obstinação dos judeus. De um dos sacerdotes e fariseus.
lado, nào queria cair no desagrado destes, Estes agiam por inveja, crueldade
coisa dificultosa, estando eles tão acirra- e outros fins execráveis. O maior foi não
dos em pedir a morte do Senhor. Por outro, reconhecer Cristo por verdadeiro messias
entendeu claramente que o perseguiam e Redentor, homem e Deus, o prometido
por inveja mortal (Mt 17, 18), e as na lei que os hebreus criam e professavam.
acusações com que agitavam o povo eram Para sua condenação, permitiu o
falsas e ridículas. Senhor que ao acusarem o Salvador, lhe
Quanto á pretensão de ser rei que dessem o nome de Cristo e rei ungido,
imputavam a Cristo, ficara satisfeita com confessando nas palavras a mesma ver-
a sua resposta e atitude, tão pobre, hu- dade que negavam e recusavam crer.
milde e paciente ante as calúnias que lhe No entanto, deviam aceitá-la e en-
arremeçavam. Com a luz e auxilio que re- tender que Cristo nosso Senhor era ver-
cebeu, reconheceu a verdade e inocência dadeiramente ungido, não com a unção
do Senhor, embora ignorasse o mistério e figurativa dos antigos reis e sacerdotes,
dignidade da pessoa divina. mas sim com a unção que lhe falou David
O poder de suas palavras de vida, (SI 44, 8). Esta era diferente de tudo o
levou Pilatos a fazer grande conceito de mais, sendo a unção da divindade unida á
Cristo. Suspeitou que n'Ele havia um natureza humana na pessoa de Cristo,
segredo especial e por isto desejou soltá- Deus e homem verdadeiro. Em con-
2 - Como disse acima, n** 1134.
Sexto Livro Capítulo 18
seqüência, sua alma santíssima possuía que mais o acendiam naquela divina alma
todos os dons de graça e glória correspon- Pedia pelos pecadores, sumamente neces-
dente á união hipostática. sitados, porque a malícia dos homens atin-
A acusação dos judeus continha gira o cúmulo.
esta arcana verdade, embora, por sua per- Oh! Rainha das virtudes, Senhora
fídia, não a cressem e com inveja a inter- das criaturas e mãe dulcíssima de mise-
pretassem erradamente, culpando o Se- ricórdia! Quão dura e insensível sou de
nhor de querer se fazer rei sem o ser. A coração, pois a dor não o parte nem desfaz,
verdade era o contrário: sendo Senhor de pelo que meu entendimento conhece so-
tudo, não queria mostrar que era rei, nem bre vossas penas e as de vosso amantís-
usar de poder de rei temporal, porque não simo Filho! Se ainda conservo a vida, é
viera ao mundo para mandar, mas sim para razão que me humilhe até a morte! E ofen-
obedecer (Mt 20,28). der o amor e a piedade ver o inocente
Enorme era a cegueira judaica, padecer tormentos e pedir-lhe favores,
porque esperando o Messias como rei sem tomar parte em suas penas.
temporal, acusavam a Cristo dessa preten- Com que cara e com que razão, nós
são. Parece que só queriam um Messias as criaturas, diremos que amamos a Deus,
tão poderoso a quem não pudessem resis- nosso Redentor, e a vós minha Rainha e
tir. Então o aceitariam por força, e não por Mãe, se, enquanto vós bebeis o cálice
livre e reverente vontade como desejava amaríssimo de tão acerbas dores e paixão,
o Senhor. nós nos recreamos com o cálice dos
deleites de Babilônia?
Oh! se eu entendesse esta verdade!
Perfeições de Maria e sentimento da Se a sentisse e aprofundasse! Se ela pene-
escritora trasse o íntimo de meu ser, vendo meu
Senhor e sua dolorosa Mãe padecendo tào
1310. Nossa grande Rainha en- desumanos tormentos! Como poderei
tendia profundamente a grandeza des- pensar que me fazem injustiça quando me
ses ocultos mistérios, e os meditava na perseguem, que me fazem agravo em
sabedoria de seu castíssimo coração, re- desprezar-me, que me ofendem em me re-
alizando heróicos atos de todas as vir- pelir? Como hei de me queixar que sofro,
tudes. ainda que seja vituperada, desprezada e
Nos demais filhos de Adão, con- detestada pelo mundo?
cebidos e manchados com pecados, Oh! grande capità dos mártires.
quanto mais crescem as tribulações e Rainha dos fortes. Mestra dos imitadores
dores, também mais se perturbam e de- de vosso Filho: se sou vossa filha e
primem, alterando-se com ira e outras discípula, como vossa benignidade me
desordenadas paixões. O contrário acon- tem afinnado e meu Senhor me quis con-
tecia com Maria santíssima que não tinha ceder, nào recuseis aceitar meus desejos
pecado, não estava sujeita a seus efeitos, de seguir vossos passos no caminho da
e ainda era guiada, mais pela excelência cruz. Se, por fraqueza, tenho faltado, al-
da graça, do que pela natureza. As grandes cançai-me, Senhora e Mãe, fortaleza e co-
perseguições e as muitas águas das dores ração contrito e humilhado pela culpa de
e sofrimentos, não extinguiam o fogo de minha ingratidão. Pedi e obtende para
seu coração inflamado no amor divino mim o amor ao Deus eterno, dom tão pre-
(Cant 8,7), mas eram como combustíveis cioso que só vossa poderosa intercessão
Sexto Livro - Capitulo 18
pode alcançar, e meu Senhor e Redentor putado por iníquo e estulto, deixou aos
merecer que eu o receba. homens uma doutrina tão importante,
quanto pouco advertida pelosfilhosde
Adão. Como não consideram o contágio
DOUTRINA QUE A GRANDE que receberam de Lúcifer pelo pecado,
RAINHA DO CÉU ME DEU contágio que este sempre mantém no
mundo, não procuram no médico a cura
1311. Minha filha, grande é o des- de sua enfermidade.
cuido e inadvertência dos mortais em con- O Senhor, porém, por sua imensa
siderar as obras de meu Filho santíssimo caridade, deixou o remédio em suas
e penetrar, com humilde reverência, os palavras e atos. Considerem, pois, os
mistérios que nelas encerrou para remédio homens concebidos em pecado (SI 50,7),
e salvação de todos. Muitos ignoram isto, e vejam como se apoderou de seus co-
outros se admiram de que o Senhor con- rações a semente que o dragão neles se-
sentisse em ser levado como criminoso e meou: a soberba, presunção, vaidade,
malfeitor: que o reputassem e tratassem estima de si mesmos, cobiça, hipocrisia,
como homem estulto e ignorante; e que, mentira e todos os outros vícios.
com sua divina sabedoria, não defendesse Geralmente todos querem avanta-
sua inocência, provando a malícia dos jar-se na honra e vangloria, para serem
judeus e de todos seus adversários, preferidos e estimados. Os doutos que se
quando com tanta facilidade o poderia consideram sábios, com jaetância de sua
fazer. ciência, querem ser aplaudidos e celebra-
Nesta admiração, antes de tudo, dos. Os ignorantes querer parecer sábios.
devem-se venerar os altíssimos juízos do Os ricos gloriam-se das riquezas e dese-
Senhor que assim dispôs a redenção hu- jam ser considerados por causa delas. Os
mana, agindo com equidade, bondade e pobres querem serricosou parece-lo, para
retidão como convinha a seus atributos. ganhar a estimação daqueles. Os pode-
Não recusou a seus inimigos os suficien- rosos querem ser temidos, adorados e obe-
tes auxílios para bem procederem, se qui- decidos.
sessem cooperar com eles, usando a Todos se adiantam nesse erro, e
própria liberdade para fazer o bem. No que procuram parecer o que não são. Descul-
d'Ele dependeu, a todos desejou salvar (1 pam os próprios vícios, dão importância
Tim 2, 4) e ninguém tem razão para se a suas virtudes e qualidades, e atribuem a
queixar da piedade divina que foi super- si mesmos os bens que possuem, como se
abundante. não os houvessem recebido. Recebem-
nos, como se não fossem alheios e dados
gratuitamente.
A humildade da cruz, remédio para a Em vez de os agradecer, fazem deles
soberba armas contra Deus e contra si. Em geral,
andam todos inchados pelo mortal veneno
1312. Além disto, desejo, carís- da antiga serpente, e mais sedentos de o
sima, que entendas o ensinamento contido beber, quanto mais feridos e enfermos
nestes fatos, pois meu Filho santíssimo a deste lamentável achaque. O caminho da
todos realizou como Redentor e Mestre cruz e da imitação de Cristo, pela hu-
dos homens. No silêncio e paciência que mildade e sinceridade cristã, está deserto
praticou em sua paixão, tolerando ser re- porque poucos são os que andam por ele.
339
Sexto Livro - Capitulo 18
340
CAPITULO 19
PILATOS REMETE JESUS A HERODES. ESTE O DESPREZA
E REENVIA A PILATOS. MARIA ACOMPANHA JESUS.
Pilatos e Herodes consta no capítulo 13 de São Lucas.) (v.
1), misturando o sangue dos réus com o
1314. Uma das acusações que os dos sacrifícios. O fato indignou He-
judeus e seus pontífices apresentaram a rodes. À guisa de satisfação, Pilatos de-
Pilatos contra nosso Salvador Jesus, foi terminou enviar-lhe Cristo nosso Se-
que havia pregado e agitado o povo, a nhor (Lc 23,7), como vassalo natural da
começar pela província da Galiléia. (Lc Galiléia, para que examinasse e julgasse
23, 5-6). sua causa. Acreditava que Herodes lhe
Isto levou Pilatos a perguntar se daria liberdade, reconhecendo-o ino-
Cristo, nosso Senhor, era galileu. Como o cente vítima da maligna inveja dos pon-
informassem que ali nascera e crescera, tífices e escribas.
pareceu-lhe encontrar razão para se exo-
nerar da causa de Cristo, nosso bem, que
reconhecia inocente. Deste modo se Maria acompanha Jesus
livrava dos enfadonhos judeus a insis-
tirem para o condenar à morte. 1315. Saiu Cristo, nosso bem, da
Naquela ocasião, Herodes encon- casa de Pilatos para a de Herodes, amar-
trava-se em Jerusalém para celebrar a rado como estava. Seguiam-no os escribas
Páscoa dos Judeus. Este era filho do outro e sacerdotes que iam para acusá-lo perante
Herodes que degolara os Inocentes (Mt 2, o novo juiz, e muitos soldados e servos
16) perseguindo a Jesus recém-nascido. que o puxavam pelas cordas, abrindo
Tendo-se casado com mulher judia, abra- caminho pelas ruas repletas de povo
çou o judaísmo fazendo-se israelita atraído pela novidade.
prosélito. Seu filho também seguia a lei A soldadesca penetrava pela mul-
de Moisés, e nessa ocasião viera da tidão; os ministros e pontífices, sedentos
Galiléia onde era governador, para em derramar o sangue do Salvador
Jerusalém. naquele dia, apressavam o passo e le-
Pilatos e Herodes não estavam vavam o Senhor pelas ruas quase a correr,
em boa amizade. Governavam as prin- com desordenado tumulto.
cipais províncias da Palestina, a Judéia Saiu também Maria santíssima e
e a Galiléia. Fazia pouco tempo que seus companheiros da casa de Pilatos,
Pilatos, por zelo da dominação romana, para seguir seu amado Filho em todos os
havia degolado alguns galileus, en- passos que lhe restava fazer até a cruz.
quanto ofereciam sacrifícios, (como Não teria sido possível à grande Senhora
341
Sexto Livro - Capitulo 19
seguir este caminho à vista de seu Amado, Jesus tratado por louco
sem a colaboração dos santos anjos. Ia
sempre próxima de seu Filho, para gozar 1317. Encontravam-se ali os prín-
de sua presença e participar mais plena- cipes dos sacerdotes e escribas, acusando
mente de seus tormentos e dores. continuamente nosso Salvador (Lc 23
Tudo conseguiu com seu ardentís- 10), com as mesmas acusações que tinham
simo amor. Caminhando pelas ruas à vista apresentado a Pilatos.
do Senhor, ouvia também os insultos que O Senhor não abriu os lábios, nem
os criados lhe dirigiam, os golpes que lhe para responder ás perguntas, nem para se
davam e as murmurações do povo, com defender das acusações, porque Herodes
as diferentes opiniões que cada qual fazia por modo algum merecia ouvir a verdade;
ou contava de outros. justo castigo que os príncipes e poderosos
do mundo mais devem temer.
Indignou-se Herodes com o silên-
Jesus na presença de Herodes cio e mansidão de nosso Salvador, que
frustrava sua tola curiosidade. Para dis-
1316. Quando Herodes foi avisado simular a confusão, o iníquo Juiz, com to-
de que Pilatos lhe remetia Jesus Nazareno, dos seus comparsas, pôs-se a zombar do
muito se alegrou. Sabia que o Mestre era mestre inocentíssimo; desprezando-o
grande amigo de São João a quem man- tomou a enviá-lo a Pilatos. (ídem 11)
dara degolar (Mr 6, 27), e estava infor- Rindo-se, com muito escárnio, da
mado de sua pregação. Com estulta e vã modéstia do Senhor, os criados de
curiosidade, desejava que Jesus fizesse al- Herodes trataram-no de louco e deficiente
guma coisa extraordinária que o divertisse mental, vestindo-lhe uma túnica branca.
(Lc 28, 8). Era o sinal costumado pai a se precaverem
Chegou, pois, o Autor da vida à dos alienados. Em nosso Salvador, porém,
presença do homicida Herodes, contra esta foi símbolo e testemunho de sua
quem estava clamando ao mesmo Senhor inocência e pureza. Assim dispôs a oculta
o sangue de São João Batista, mais do que providência do Altíssimo, para que estes
o sangue do justo Abel (Gn 4,10). O in- ministros da maldade, inconscientemente
feliz adúltero, como se ignorasse os ter- testificassem a verdade que pretendiam
ríveis juízos do Altíssimo, recebeu-o le- negar, ocultando malignamente outros
vianamente, julgando-o algum mágico ou prodígios que o Salvador havia operado.
prestidigitador. Neste tremendo engano,
começou a lhe fazer diversas perguntas,
como para provocá-lo a fazer alguma Mudança da opinião popular
coisa maravilhosa que desejava (Lc 23,9)
presenciar. 1318. Herodes mostrou-se agrade-
O Mestre da sabedoria e prudên- cido a Pilatos, pela cortesia de lhe haver re-
cia, porém, não lhe respondeu palavra. metido a causa e a pessoa de Jesus Nazar eno.
Conservou-se sério e digno na presença Respondeu-lhe que não encontrava n*Eié
do indigníssimo juiz que, por sua culpa alguma e parecia-lhe apenas homem
maldade, bem merecia o castigo de não ignorante e de nenhuma consideração. Des-
escutar da boca de Cristo as palavras de de aquele dia, Herodes e Pilatos reataram
vida eterna que ouviria se estivesse dis- boas relações (idem 12), dispondo assim os
posto a recebê-las com reverência. ocultos juízos da divina sabedoria.
342
Sexto Livro - Capítulo 19
sem impedindo os malvados de pisar em Tudo via e ouvia sua Màe sant'
sua divina pessoa. sima, com invicto mas amargurado ^
Sendo em tudo prudentíssima, não ração. O mesmo, na devida propor^°*
quis que os anjos prestassem esse ob- acontecia com as Marias e Sào J0à°
séquio ao Senhor sem sua divina vontade. Chorando inconsolavelmente seonu °
Ordenou-lhes que, de sua parte, lhe pedis- Senhor na companhia da Màe puríssima
sem permissão, representando-lhe as an- Não me detenho a falar sobre as lágrimas
gústias que, como Mãe, padecia, vendo-o destas santas e de outras piedosas mu
tratado com aquela irreverência sob os pés lheres que assistiam à Rainha, pois seria
imundos daqueles pecadores. necessário desviar-me muito. Mais ainda
Para mais mover seu Filho santís- se fosse falar a respeito do procedimento
simo pediu-lhes, por meio dos mesmos de Maria Madalena, mais do que as outras
anjos, que substituísse aquele ato de hu- ardente no amor e gratidão a Cristo nosso
mildade de ser pisado por aqueles maus Redentor, conforme Ele disse quando a
servos, no de obedecer ou ceder aos rogos justificou: mais ama, quem de maiores
de sua aflita mãe que também era sua culpas foi perdoado (L. 7, 43).
escrava formada do pó.
Os santos anjos transmitiram a
Cristo, nosso bem, estas súplicas de sua Jesus volta a Pilatos
Mãe santíssima, não porque Ele as igno-
rasse, pois tudo conhecia e era Ele mesmo 1322. Chegou Jesus, segunda vez,
que as inspirava por sua divina graça. A à casa de Pilatos e de novo começaram os
grande Senhora, com altíssima sabedoria, judeus a pedir que o condenasse à morte
entendeu que o Senhor desejava que, nes- de cruz.
sas ocasiões, agisse pela ordem natural. Pilatos, que conhecia a inocência
Assim praticava as virtudes, por diversos de Cristo e a mortal inveja dosjudeus, sen-
modos e operações, sem serem impedidas tiu muito que Herodes lhe devolvesse a
pela ciência e previsão do Senhor que tudo causa, da qual desejava se eximir. Vendo-
prevê. se obrigado, como juiz, a resolvê-la, pro-
curou aplacar os judeus com diversos ex-
pedientes.
Jesus é protegido pelos anjos de Um deles foi conferenciar secre-
Maria tamente com alguns ministros e amigos
dos pontífices e sacerdotes, aconselhan-
1321. Acedeu nosso Salvador Je- do-os a que pedissem a liberdade de nosso
sus aos desejos e pedido de sua Mãe Redentor. Soltá-lo-ia depois de lhe dar al-
beatíssima e deu licença aos anjos, min- gum corretivo e que não pedissem mais a
istros de sua vontade, para fazerem o liberdade do bandido Barrabás.
que Ela desejava. No restante do Esta diligência fizera Pilatos,
caminho, até chegar à casa de Pilatos, quando voltaram a lhe apresentar Cristo
não permitiram que o Senhor fosse atro- nosso Senhor para que o condenasse. A
pelado, derrubado e pisado como antes. proposta para que escolhessem entre Je-
Continuou, porém, a permitir que os ser- sus e Barrabás (Mt 27, 17), não foi uma
vos dos juizes e a cega maldade popular vez só, mas duas ou três: uma, antes do
prosseguissem a insultá-lo com louca Senhor ser levado a Herodes e outra de-
indignação. pois; por isto os Evangelistas a referem
Sexto Livro - Capítulo 19
tra o sangue e a morte de Cristo nosso Se- em ser precedido por outrem, tão bom ou
nhor, e a carregá-lo sobre eles. mais benemérito que ele. No entanto, não
Seja Cristo ultrajado, cuspido, es- se encontrará alguém tão bom quanto
bofeteado, levantado numa cruz, despre- Cristo, nem tão mau quanto Barrabás.
zado, posposto a Barrabás e morto. Seja Não se podem contar os que, com
atormentado, açoitado e coroado de espi- este exemplo ante os olhos, se dão por
nhos por nossos pecados, que nós não ofendidos, ou se julgam infelizes, se não
queremos parte neste sangue, a não ser forem preferidos e melhorados na honra,
para que se derrame afrontosamente e nos nas riquezas, dignidade e em tudo o que
seja imputado eternamente. tem ostentação e aplauso do mundo. Isto
Sofra e morra o próprio Deus feito se solicita, se discute e se procura, nisto
homem: e nós gozemos dos bens aparen- se ocupamos cuidados dos homens, to-
tes. Aproveitemos a oportunidade, use- das suas forças e potências, desde que
mos as criaturas (Sab 2, 6-8), coroemo- principiam a usar delas até que as per-
nos de rosas, vivamos alegres, valhamo- dem.
nos do poder, ninguém nos ultrapasse. A maior lástima e pena é que não
Desprezemos a humildade, evitemos a po- se livram deste contágio, os que por sua
breza, ajuntemosriquezas,enganemos os profissão e estado renunciaram ao
outros, não perdoemos ofensas, en- mundo e lhe voltaram as costas. Man-
treguemo-nos ao deleite dos torpes praze- dando-lhes o Senhor que esqueçam seu
res, que nossos olhos cobicem tudo quanto povo e a casa de seu pai (SI 44,11), vol-
virem e o consigamos com nosso poder. tam a ela com o melhor de sua natureza
Esta seja a nossa lei, sem qualquer outra humana: empregam a atenção e solici-
consideração. Se com isto crucificamos a tude, a vontade e o desejo em tudo o que
Cristo, que seu sangue caia sobre nós e o mundo possui e ainda lhes parece
nossos filhos. pouco.
Caem na vaidade, e em vez de
esquecer a casa de seu pai, esquecem a de
A imitação de Cristo é esquecida Deus onde vivem. Não se lembram que
nesta recebem os auxílios divinos para
1328. Perguntemos agora aos conseguir a salvação, a honra e estima que
réprobos que estão no inferno, se foram jamais tiveram no mundo, e a subsistência
estas as palavras de suas obras, como temporal sem preocupações.
lhes atribui Salomão no livro da Sabe- Ingratos a todos estes benefícios,
doria. E, porque falavam tão insana- afastam-se da humildade que por seu
mente em seus corações, chamam-se e estado devem professar. A humildade de
foram ímpios. Cristo nosso Salvador, sua paciência, as
Que podem esperar os que inutili- afrontas que sofreu, os opróbrios de sua
zam o sangue de Cristo e o chamam sobre cruz, a imitação de suas obras, a doutrina
si, não como quem o deseja para seu bem, de sua escola; tudo é deixado aos pobres,
mas sim por desprezá-lo e para lhe servir aos abandonados, aos desamparados e
de condenação? marginalizados do mundo. Em con-
Quem, entre os filhos da Igreja, seqüência, os caminhos de Sião estão de-
aceitará ser posposto a um ladrão sertos e chorando (Trenós 1,4), por haver
facínora? Tão mal praticada anda esta tão poucos que venham à solenidade da
doutrina, que já se admira quem consente imitação de Cristo nosso Senhor.
Sexto Livro - Capítulo 19
não é nova e já entendeste outras vezes. da esperança que comunica ânimo e força
Apesar disso, quero que agora a relembres para vencer muitas dificuldades, fortalece
e não a esqueças durante toda tua vida. a fragilidade da criatura humana e a toma
Adverte, pois/ caríssima, que a queda de capaz de empreender magníficas obras.
mais alta posição é extremamente Outra razão há e não menos ter-
perigosa e seu dano é irreparável ou de rível: as almas acostumadas aos bene-
mui difícil remédio. fícios de Deus, ou por ofício, como os sa-
Eminente foi o lugar de Lúcifer no cerdotes e religiosos, ou pelo exercício
céu, pela natureza e dons de luz e graça, das virtudes e favores como outras pes-
porque excedia em beleza a todas as soas espirituais, ordinariamente pecam
criaturas. A queda de seu pecado o pre- pelo desprezo dos mesmos benefícios e
cipitou ao abismo da fealdade e miséria, mau uso das coisas divinas. Freqüente-
e à maior obstinação do que todos os seus mente em contato com elas, incorrem na
sequazes. perigosa grosseria de estimar pouco os
Os primeiros pais do gênero hu- dons do Senhor, e esta irreverência e
mano, Adão e Eva, . foram estabelecidos pouco apreço impedem os efeitos da
em altíssima dignidade e sublimes dons, graça.
como saídos da Mão do Todo-poderoso. Não cooperando com ela, perdem
Sua queda os perdeu com toda sua pos- o temor santo que desperta e estimula para
teridade, e seu remédio foi tão custoso bem agir e obedecer à divina vontade. Não
como o ensina a fé. E foi por imensa mi- se aproveitam oportunamente dos meios
sericórdia que eles e seus descendentes oferecidos por Deus, para sair do pecado
foram salvos. e alcançar sua amizade e a vida eterna.
Este perigo é notório nos sacer-
dotes tíbios que, sem temor e reverência,
Dificuldade para se reerguer freqüentam a Eucaristia e outros sacr
mentos; nos doutos e sábios, nos
1332. Outras muitas almas subi- poderosos do mundo que dificilmente se
ram ao cume da perfeição, e tendo infeli- corrigem e emendam de seus pecados.
cissimamente daí caído, viram-se deses- Perderam o apreço e veneração dos
peradas de conseguir se levantar. Este remédios da Igreja: os santos sacramen-
dano origina-se na própria criatura, por tos, a pregação e doutrina. Com estas
muitas causas. medicinas salutares para outros pecadores
A primeira, é o despeito e grande e ignorantes, adoecem eles, os médicos da
vexame que sente, quem caiu de mais altas saúde espiritual.
virtudes. Não apenas perdeu maiores
bens, mas não confia em futuros bene-
fícios, já que perdeu os passados. Não seA quem mais é dado, mais será pedido
promete maior constância nos que pode
adquirir com novo esforço, do que nos 1333. Este dano espiritual tem ou-
adquiridos e esbanjados por sua ingra- tros motivos que procedem do Senhor. Os
tidão. pecados das almas que, por estado ou vir-
Desta perigosa desconfiança, se- tude, são devedoras a Deus, pesam-se na
gue-se a tibieza no proceder sem fervor, balança da justiça divina, de modo muito
sem esforço, sem gosto e devoção. Tudo diferente dos de outras almas menos bene-
isto se extingue no desânimo, ao contrário ficiadas por sua misericórdia. Não obs-
Sexto Livro - Capitulo 19
tante os pecados de todos serem da mesma filha, ficará satisfeita tua dúvida P
espécie, tornam-se muito diferentes pelas derás quão prejudicial e amargaé aof ^
circunstâncias. Os sacerdotes e mestres, ao Todo-poderoso, quando procede de"?
os poderosos e prelados e os que têm mas redimidas pelo seu sangue, chamL
posição e título de santidade, causam e conduzidas por Ele no caminho da IlT
grande mal com o escândalo de sua queda Entenderás também como de elevad'
e dos pecados que cometem. Maior é a estado pode uma pessoa cair em mais per°
temeridade e audácia com que se opõem versa obstinação, do que outras inferiores
a Deus, a quem mais devem e melhor co- a ela.
nhecem. Ofendem-no com maior luz e Estas verdades ficam provadas
ciência, e por isto sua ousadia e desacato no mistério da paixão e morte de meu
é maior do que a dos ignorantes. Por isto, Filho santíssimo. Os pontífices, sacer-
os pecados dos católicos e, entre eles, os dotes e escribas e todo aquele povo
dos mais sábios e ilustrados, desobrigam comparados aos gentios, estavam mais
mais a Deus, como se lê na sagrada Escri- obrigados a serem fiéis a Deus. Por isto
tura. seus pecados os levaram à obstinação
Assim como está assinalado o cegueira e crueldade mais abominável
termo da vida humana para cada um rece- que aos mesmos gentios que ignoravam
ber a recompensa eterna, também está de- a verdadeira religião.
terminado para cada qual o número de pe- Quero também que esta verdade e
cados para a paciência do Senhor tolerar, exemplo te avisem de tão terrível perigo.
aguardando a conversão. Este número, Com prudência teme-o, e ao temor santo
porém, não é contado apenas pela quanti- acrescenta a humilde gratidão e elevada
dade, mas também segundo a espécie e peso estima pelos bens do Senhor. No tempo
de sua gravidade perante a divina justiça. da fartura não te esqueças da penúria (Ecli
Deste modo, pode acontecer que 18,25). Considera em ti uma e outra, lem-
para as almas que recebem maior co- brando que levas um tesouro em vaso que-
nhecimento e benefícios do céu, a quali- bradiço (2Cor 4,7) e o podes perder. Re-
dade supra a quantidade; com menor ceber tantos benefícios não é merecê-los,
número de pecados, serão abandonados e e possuí-los não é direito de justiça senão
castigados, do que outros pecadores com graça e liberalidade de quem os dá. Se o
maior número. Nem a todos pode aconte- Altíssimo te fez tão familiar sua, isto não
cer o mesmo que a David e a Sào Pedro é certeza para não caíres ou para viveres
(2 Rs 12,13; Lc 22,61) porque nem todos, descuidada, perdendo o temor e reverên-
antes da queda, realizaram tantas boas cia.
obras às quais Deus tenha atenção. Tam- Tudo há de estar em ti na medida
pouco o privilégio de alguns serve de re- das graças recebidas, porque também
gra para todos, pois nem todos são desti- cresce o ódio da serpente que te esprei-
nados para o mesmo ministério, segundo ta mais do que a outras almas. Ela sabe
os ocultos desígnios do Senhor. que o Altíssimo mostrou mais liberali-
dade contigo do que com muitas
gerações e que, se fores ingrata a tantos
Quem está de pé, veja que não caia benefícios e misericórdias, serias infe-
licíssima, sem desculpa e digna de ri-
1334. Com esta doutrina, minha goroso castigo.
•
CAPITULO 20
JESUS É AÇOITADO E COROADO DE ESPINHOS,
PARTICIPAÇÃO DE MARIA SANTÍSSIMA.
Erros de Pilatos e ódio dos judeus ódio e furor contra o mansíssimo Mestre
nãoeradehomensque,naturalmente,cos-
1335. Vendo Pilatos o obstinado tumamabraiidar-sequaiidovêmoinimigo
ódio dos judeus por Jesus Nazareno, e não vencido e humilhado. Estes têm coração
querendo condená-lo à morte, pois sabia de carne e o amor de seu semelhante é
ser inocente, pareceu-lhe que mandando natural e produz alguma compaixão.
açoitá-lo com rigor, aplacaria a fúria Aqueles pérfidos judeus, porém,
daquele ingratíssimo povo e a inveja dos estavam possuídos e como transformados
pontífices e escribas. Talvez desistiriam em demônios que, contra o mais humilde
de perseguir e pedir sua morte, se, por e aflito, mais se enfurecem. Quando o vêm
acaso, Cristo houvesse transgredido al- completamente desamparado (Ecl 4,10),
guns dos ritos e cerimônias judaicas, fi- então dizem: persigamo-lo agora, porque
cando suficientemente castigado. não tem quem o defenda e o livre de nós.
Pilatos fez esta suposição porque,
durante o processo, lhe disseram que
Cristo era acusado de não guardar o Pilatos condena Jesus à flagelação
sábado e outras cerimônias. De fato, vã e
estultamente disso acusavam a sua pre- 1336. Tal era a implacável sanha
gação, segundo consta no sagrado Evan- dos pontífices e dos seus confederados, os
gelho (Jo 9,16). Contudo, Pilatos sempre fariseus, contra o Autor da vida.
raciocinava como ignorante. Lúcifer, perdendo a esperança de
O Mestre da santidade não podia lhe impedir a morte, com espantosa malí-
cometer falta alguma contra a lei que viera cia irritava os judeus para a executarem
aperfeiçoar e completar e não abolir (Mt com desmedida crueldade.
5,17). Mesmo que a calúnia fosse ver- Pilatos, entre a luz da verdade que
dadeira, não a devia castigar com pena conhecia e os motivos humanos que o
tão desproporcionada como a flagela- aliciavam, seguindo a injustiça a que estes
ção. Tinham os judeus, em sua lei, ou- arrastam os chefes, mandou açoitar (Jo
tros modos de se purificarem das trans- 19, 1) rigorosamente a quem declarava
gressões com as quais, a cada passo, inocente.
ofendiam a lei. Para executar esta sentença inspi-
O maior erro desse juiz foi pensar rada pelo demônio, foram designados seis
que os judeus tinham alguma espécie de funcionários da justiça. De grande força
humanidade e natural compaixão. Seu muscular, homens vis e sem piedade, acei-
351
Sexto Livro - Capítulo 20
taram com muito gosto o ofício de verdu- lhação de expor seu sagrado e honestí
gos. O colérico e invejoso sempre se si mo corpo diante de tanta gente. ~
deleita em desafogar a ira, ainda que seja Parecendo aos verdugos q u e
com atos desonestos, cruéis e vergo- modéstia do Senhor retardava muito a
nhosos. operação, acabaram de lhe arrancar vio-
Imediatamente, estes ministros do lentamente a túnica. Ficou Jesus apenas
demônio, com outros muitos, levaram com a peça interior que lhe servia de
nosso Salvador Jesus ao lugar do suplício. calção, a mesma que sua Mãe santíssima
Era um pátio ou saguão da casa, onde cos- lhe vestiu no Egito com a túnica. Estas
tumavam torturar outros delinqüentes, vestes haviam crescido com seu sagrado
para forçá-los a confessar seus delitos. corpo, como também o calçado que lhe
Este pátio se encontrava numa fizera a mesma Senhora. Nunca as tirou,
construção não muito alta, rodeada de co- a não ser as sandálias, durante a pregação
lunas. Umas sustentavam a cobertura e que muitas vezes fazia descalço.
outras eram livres e mais baixas. A uma
destas, de mármore, foi Jesus fortemente
amarrado, porque sempre o julgavam Jesus não foi totalmente despido
mágico e capaz de escapar de suas mãos.
1338. Sei que alguns doutos pre-
sumiram e disseram que, para a flagelaçào
Jesus é despido e acrucifixão, nosso Redentor foi despido
totalmente, permitindo Ele esta confusão
1337. Despiram nosso Redentor, para seu maior martírio.
tirando-lhe primeiro a veste branca, não Havendo eu, por ordem da obe-
com menor insulto do que quando o ves- diência, indagado a verdade, foi-me de-
tiram na casa do adúltero e homicida clarado que a paciência do divino Mestre
Herodes. Ao desatar as cordas e correntes estava pronta para sofrer, sem resistir,
que trazia desde a prisão no horto, mal- qualquer opróbrio, conquanto não fosse
trataram-no impiamente, abrindo as cha- indecente.
gas que elas lhe haviam produzido nos Os verdugos pretenderam afrontá-
braços e nos pulsos, por estarem muito lo com a total nudez de seu corpo santís-
apertadas. simo e chegaram a tentar despojá-lo
Ficando com as divinas mãos daquela peça que lhe ficara. Nào o pu-
livres, mandaram com insolente autorita- deram conseguir. Em chegando a tocá-la,
rismo e blasfêmias, que o próprio Senhor seus braços ficaram rígidos e gelados,
tirasse a túnica inconsútil que levava. Era como sucedeu em casa de Caifás, quando
a mesma que sua Mãe santíssima lhe ves- pretenderam desnudar o Senhor do céu,
tira no Egito quando, menino, começara a como fica dito no Capítulo 17* .
andar conforme ficou narrado em seu Ainda que os seis algozes, suces-
lugar 0} . sivamente, empregaram toda a força para
No momento, o Senhor só trazia isso, aconteceu-lhe o mesmo. Não obs-
essa túnica, pois quando O prenderam no tante, depois, para açoitar o Senhor com
Horto, tiraram-lhe o manto ou capa que mais crueldade ergueram um tanto essa
costumava trazer sobre ela. Obedeceu o roupa; permitiu-lhe o Salvador, não
Filho do eterno Pai aos verdugos e porém, que a tirassem de todo.
começou a despir-se, para sofrer a humi- O milagre de se verem tolhidos
1 -n°691
2 - n° 1290
Sexto Livro - Capitulo 20
356
Sexto Livro - Capítulo 20
360
CAPÍTULO 21
JESUS E CONDENADO POR PILATOS. CARREGA A CRUZ
ATE O CALVÁRIO. E SEGUIDO POR SUA MÃE
SANTÍSSIMA.
Jesus retoma suas vestes zareno a morte, circular rapidamente por
toda Jerusalém. Em tropel, o povo todo
1354. Decretou Pilatos a sentença acorreu á casa de Pilatos para assistir a
de morte de cruz contra a mesma vida, Je- execução.
sus nosso Salvador, para gosto e satis- A cidade encontrava-se repleta de
fação dos pontífices e fariseus. Tendo-a gente porque, além de seus numerosos
declarado ao inocentíssimo réu, retiraram habitantes, havia os peregrinos vindos de
Jesus para outro lugar da casa do juiz, e toda a parte para a celebração da Páscoa.
lhe tiraram o andrajo de púrpura que lhe Atraídos pela novidade, correram en-
haviam posto, como a rei da comédia. chendo as ruas até o palácio de Pilatos.
Tudo encerrava mistério, ainda Era sexta-feira, dia de parasceve
que os judeus o fizessem por malícia. (Jo 19, 14) que em grego significa
Queriam que Jesus fosse levado ao su- preparação. Neste dia, os hebreus se
plício da cruz com suas próprias vestes, a preparavam para o dia seguinte, sábado,
fim de ser por todos reconhecido. Os açoi- sua grande solenidade, no qual não faziam
tes, escarros e coroa tinham-no desfigu- trabalhos servis, nem sequer cozinhar ali-
rado tanto, que só pela roupa poderia ser mentos. Tudo era feito na sexta-feira.
identificado. A vista de todo esse povo, trou-
Vestiram-lhe a túnica inconsútil xeram nosso Salvador com suas próprias
que os anjos, por ordem de sua Rainha, vestes, a divina face tão desfigurada pelas
lhe trouxeram. Os esbirros tinham-na ati- chagas, sangue e saliva, que ninguém o
rado a um canto do outro aposento, onde teria reconhecido. Apareceu segundo a
lhe haviam despido, para lhe pôr a púrpura palavra de Isaias, como leproso e ferido
de irrisão. Nada disto notaram os judeus, pelo Senhor (Is 53,4), e todo feito uma só
nem lhe deram atenção, preocupados chaga, pelo sangue e contusões. Das
como estavam em apressar a morte de Je- asquerosas salivas, os anjos o haviam lim-
sus. pado algumas vazes, por ordem da aflita
Mãe. Logo, porém, renovavam-lhe o in-
sulto , com tal excesso, que nessa ocasião
estava todo coberto dessa imundície.
Jesus é mostrado ao povo
A vista de tão doloroso quadro, er-
1355. Esta diligência dos judeus gueu-se do povo tal gritaria e alvoroço,
fez a notícia da condenação de Jesus Na- que nada se ouvia nem entendia, a não ser
361
Sexto Livro - Capítulo 21
com semblante cheio de júbilo, como se der. De todos tinha compreensão mais ele-
alegra o esposo com as ricas jóias de sua vada, do que os próprios anjos. O que não
esposa, acolheu-a dizendo-lhe intima- podia ver com os olhos corporais, co-
mente estas palavras: nhecia com inteligência e ciência de reve-
lação, manifestados nas operações inte-
Jesus saúda a cruz riores de seu Filho santíssimo. Nesta
divina luz, conheceu o valor imenso que
o santo madeiro da cruz recebeu em con-
1361. Oh! cruz desejada por minha tato com a humanidade deificada de Jesus,
alma, preparada e encontrada por meus nosso Redentor. Imediatamente, a Mãe
desejos, vem, minha amada, receber-me prudentíssima adorou e venerou a cruz
em teus braços e nele, como em sagrado com o devido culto, o mesmo fazendo to-
altar, receba o Pai o sacrifício da eterna dos os espíritos celestes que assistiam ao
reconciliação com o gênero humano. Senhor e à Rainha.
Para morrer em ti, desci do céu e Acompanhou também seu Filho
vivi em carne mortal e passível. Serás o santíssimo no afeto com que Ele recebeu
cetro com o qual triunfarei de todos meus a cruz, dirigindo-lhe palavras semelhan-
inimigos; a chave com que abrirei as por- tes, de acordo com seu papel de coadjutora
tas do paraíso aos meus predestinados (Is do Redentor. O mesmo fez orando ao
22,22); o sacrário onde os culpados filhos eterno Pai, reproduzindo seu modelo per-
de Adão encontrem misericórdia; a fonte feitissimamente como sua viva imagem,
dos tesouros para enriquecer sua pobreza. sem a mínima falta.
Em ti quero mostrar o valor das Ao ouvir o pregoeiro publicar e
afrontas e opróbrios recebidos das cria- repetir a sentença pelas ruas, compôs a
turas humanas, para que meus amigos os divina Mãe um cântico de louvor à ilibada
abracem com alegria e os solicitem com inocência de seu Filho e Deus santíssimo.
amorosas ânsias, seguindo-me no ca- Aos delitos que a sentença continha, para-
minho, que contigo, abrirei para eles. fraseava transformando-as em honra e
Meu Pai e Deus eterno, Eu te con- glória do Senhor.
fesso Senhor do céu e da terra (Mt 11,25), Os santos anjos acompanharam-na
e por obediência a teu divino querer, levo neste cântico. Alternando com eles o ia
sobre meus ombros a lenha do sacrifício compondo e repetindo, enquanto os habi-
de minha passível e inocentíssima hu- tantes de Jerusalém blasfemavam de seu
manidade, aceitando-o pela salvação Criador e Redentor.
eterna dos homens. Aceitai-o, meu Pai,
como agradável à vossa justiça, para que
de hoje em diante não sejam mais servos, Sabedoria da Virgem
porém, filhos e Comigo, herdeiros de
vosso reino (Rom 8,17). 1363. Durante o tempo da paixão
de Jesus, o grande coração da Mãe da sa-
bedoria encerrava toda a fé, ciência e
Participação e reparações de Maria digno conceito, do que representava o fato
de Deus sofrer e morrer pelos homens.
1362. A grande Senhora do mun- Sem perder a atenção para tudo o que ex-
do, Maria santíssima presenciava estes teriormente era necessário fazer, medi-
sagrados mistérios e atos, sem nada per- tava com sua sabedoria todos os mistérios
365
Sexto Livro - Capitulo 21
da redenção humana e como se iam reali- para recobrar novas forças e atend
zando, por meio da ignorância dos intensamente a seu Filho sofredo ^
próprios homens que deviam ser redimi- tivo de seus tonnentos. e m°"
dos. Com igual ciência, compreendi
Com digna ponderação, consi- malícia dos judeus e dos algozes, a n
derava quem era que padecia, o que, de sidade do gênero humano e sua ruína^"
quem e por quem padecia. Sobre a digni- ingratíssima correspondência dos
dade da pessoa de Cristo nosso Redentor, tais, por quem seu Filho santíssirí
suas naturezas divina e humana, com to- padecia. Tudo conheceu em grau emi°
das as perfeições e atributos de ambos, só nente e perfeitíssimo, e de igual modo o
Maria santíssima, depois do mesmo Se- sentiu mais do que todas as criaturas
nhor, teve a mais elevada e profunda ciên-
cia. Em conseqüência, só Ela, entre as pu-
ras criaturas, chegou a compreender o Começa a derrota dos demônios
devido valor da paixão e morte de seu
Filho e Deus verdadeiro. 1364. Outro oculto e admirável
A cândida pomba não só viu, mas mistério operou o Onipotente, nesta
também experimentou o que Ele padeceu, ocasião, por intennédio de Maria santís-
despertando santa inveja não só aos sima, contra Lúcifer e seus ministros in-
homens, como também aos anjos que nào fernais. Foi o seguinte: o dragão e seus
tiveram essa graça. Estes, porém, viram demônios assistiam atentamente a tudo o
como a grande Rainha e Senhora sentia que ia se passando na paixão do Senhor
na alma e no corpo as mesmas dores de que eles não conseguiam identificar com
seu Filho santíssimo e a inexplicável com- certeza. No momento em que o Salvador
placência que disso recebia a santíssima recebeu a cruz sobre os ombros, sentiram
Trindade. Com a glória e louvor que por os inimigos infernais novo abatimento e
isto deram a Deus, compensaram a dor fraqueza.
que não puderam sofrer. Não conhecendo sua causa, a novi-
Algumas vezes, quando a dolorosa dade deixou-os perplexos, cheios de
Mãe perdia de vista seu Filho santíssimo, tristeza, confusão e despeito. Estes irre-
sentia em seu virginal corpo e espírito a sistíveis efeitos levou o príncipe das tre-
ressonância dos tormentos que infligiam vas a recear, que aquela paixão e morte de
r
Cristo nosso Senhor, pressagiava alguma
ao Senhor. Sobressaltada exclamava: Ai irreparável catástrofe para seu império.
de Mim, que martírio causam agora a meu Não querendo sofrê-lo na presença
amado Senhor! Em seguida, logo recebia de Cristo, resolveu o dragão fugir, com
conhecimento claríssimo de tudo o que todos seus sequazes, para as cavernas do
faziam com Jesus. inferno. Quando, porém, ia executar este
Foi tão admirável e fiel em acom- propósito, foi impedido por nossa grande
panhá-lo e imitá-lo na dor que, durante a Rainha e Senhora de toda criação.
Paixão, não aceitou alívio algum tanto Naquele momento, o Altíssimo a
corporal como espiritual. Não descansou, iluminou e revestiu de seu poder, dando-
não comeu, não dormiu, nem procurou lhe conhecimento do que devia fazer.
pensamentos que lhe desse refrigério Dirigindo-se a Lúcifer e seus esquadrões,
espiritual, a não ser quando o Altíssimo a divina Mãe, com autoridade de Rainha
lhe comunicava algum divino influxo. En- os deteve na fuga, e lhes ordenou que ti-
tão o aceitava, com humildade e gratidão,
366
Sexto Livro - Capítulo 21
cassem até o fim da paixão, e a fossem leva o jugo da servidão e o cetro real.
presenciando até o monte Calvário. Ao Deste, despojava o demônio e o trasladava
império da poderosa Rainha não puderam a seus ombros, para que os cativos filhos
resistir os demônios, pois sentiram o de Adão, desde aquela hora em que tomou
poder divino que nela agia. a cruz, O reconhecessem por seu legítimo
Submetendo-se a seu mandato, Senhor e verdadeiro Rei. Devem segui-lo
como acorrentados, foram seguindo o Re- pelo caminho da cruz (Mt 16, 24), pela
dentor até o Calvário, onde a eterna Sabe- qual conquistou todos os mortais a seu im-
doria determinara deles triunfar sobre o pério (Jo 12, 32), fazendo-os vassalos e
trono da cruz, conforme veremos adi- servos seus, comprados a preço de sua
ante( \ vida e de seu sangue (1 Cor 6, 20).
Não encontro comparação para dar
idéia da tristeza e angústia que, desde esse
momento, se apoderaram de Lúcifer e Considerações da Escritora
seus demônios. A nosso modo de enten-
der, arrastavam-se para o Calvário como 1366. Mas, quão doloroso é o
condenados ao suplício, arrasados pelo nosso ingratíssimo esquecimento! Que os
temor do inevitável castigo que os pros- judeus e os executores da Paixão ignoras-
trava no desalento e tristeza. No mau sem este mistério, escondido aos prín-
espírito, esta pena foi na medida que com- cipes do mundo; que fugissem de tocar a
petia à sua natureza, à sua malícia e ao cruz do Senhor, por a julgarem ignomi-
dano que fez ao mundo, nele introduzindo niosa vergonha, foi culpa e muito grande.
a morte (Sab 2,24) e o pecado, para cujo Não, porém, tanto como a nossa, quando
remédio o mesmo Deus ia morrer. já está revelado este mistério, e pela fé
desta verdade condenamos a cegueira dos
que perseguiram a Cristo nosso Senhor.
Vitória de Cristo sobre o demônio Se os culpamos porque ignoraram
o que deviam saber, que culpa será a nossa
1365. Prosseguiu nosso Salvador que, conhecendo e crendo em nosso Re-
o caminho para o Calvário levando sobre dentor, o perseguimos e crucificamos
os ombros, como disse Isaias (9, 6) seu (Heb 6, 6) por nossas ofensas, tanto
império e principado, a santa cruz. Nela quanto eles?
havia de remir e sujeitar o mundo, mere- Oh! amado Jesus, meu amor, luz
cendo a exaltaçãò de seu nome sobre todo de meu entendimento e glória de minha
o nome (Filp 2, 9) e resgatando toda a li- alma! Não te fies, Senhor, em minha tar-
nhagem humana do tirânico poder (Col 2, dança e rudeza, para te seguir com minha
15) que o demônio conquistara sobre os cruz pelo caminho da tua. Toma por tua
filhos de Adão. conta fazer-me este favor: leva-me, Se-
Isaías chamou a esta tirania, jugo nhor, após ti, e correrei ao perfume de teu
e cetro de cobrador e executor que, com ardentíssimo amor (Cânt 1,3), de tua ine-
domínio e vexação, cobrava o tributo da fável paciência, de tua eminentíssima hu-
primeira culpa. mildade, e na participação dos desprezos,
Para vencer este tirano e destruir o angústias, opróbrios e dores que sofreste.
cetro de seu domínio, e o jugo de nossa Esta seja a minha parte e herança
servidão, Cristo nosso Senhor carregou a nesta mortal e pesada vida, esta minha
cruz na mesma parte do corpo, onde se glória e descanso, e fora de tua cruz e ig-
2~-n°1412.
Sexto Livro - Capítulo 21
nomínias, não quero vida nem conso- simo tomar o menor alento. Como
lação, sossego nem alegria. poucas horas n'Ele haviam despe" ^
Como os judeus e todo aquele aquela chuva de torturas, sua h u m a S ?
povo cego, nas ruas de Jerusalém, se arre- santíssima estava tão desfalecida e desfi
dassem para não tocar na cruz do inocen- rada que, ao vê-la, parecia estar a pontodt
tíssimo réu, o próprio Senhor ia abrindo expirar sob tantas dores e tonnentos e
caminho por onde passar. Sua gloriosa
desonra era evitada como se fosse con-
taminação, conforme a considerava a per- Encontro de Maria e Jesus
fídia de seus perseguidores.
Fora o espaço em que se achava 1368. Confundida na multidão a
Jesus, o resto das ruas estava apinhado dolorosa Mãe saiu da casa de Pilatos
pela multidão, confusa e barulhenta, so- seguindo seu Filho santíssimo, acompa-
bressaindo entre a gritaria e os berros donhada de São João, de Madalena e das
pregoeiro que ia publicando a sentença. outras Marias. Como o tropel da desorde-
nada multidão os embaraçava para seguir
Jesus de perto, a grande Rainha pediu ao
Torturas do Redentor eterno Pai lhe concedesse chegar ao pé da
cruz e ficar corporalmente na companhia
1367. Os algozes, sem qualquer de seu Filho e Senhor. Conhecendo que
humana compaixão e piedade, conduzi- assim lhe era concedido, ordenou também
ram nosso Salvador com incrível cru- aos santos anjos que providenciassem
eldade e desacato. como o conseguir.
Uns puxavam as cordas para a Com grande reverência, obede-
frente, apressando-o; outros, para o mal- ceram-lhe os anjos e com toda presteza
tratar, puxavam para trás, detendo-o. Com guiaram sua Rainha e Senhora pelo atalho
estas violências e o grave peso da cruz, de uma rua, nofimda qual, encontraram-
obrigavam-no a dar muitos vai-e-vens e se Filho e Mãe, face a face. Reconhecem-
quedas no chão. Chocando-se contra as se, renovando a dor que cada qual padecia,
pedras, abriam-se-lhe as chagas, em par- mas não se falaram vocalmente, nem os
ticular a dos joelhos que recrudesciam to- esbirros teriam dado tempo para isso.
das as vezes que caia. A Mãe prudentíssima adorou seu
O peso da cruz abriu outra no om- Filho santíssimo e Deus verdadeiro,
bro onde era levada. Nos vai-e-vens, umas oprimido pelo peso da cruz. Interiormente
vezes a cruz batia contra a cabeça, outras lhe pediu que, não podendo Ela aliviá-lo
a cabeça contra ela, e a cada golpe os do peso da cruz, nem permitindo Ele que
espinhos mais se enterravam na carne. os anjos o fizessem conforme ela dese-
A estas dores, acrescentavam jaria, que movesse a compaixão daqueles
aqueles malvados ministros insultos e homens a procurar alguém que O ajudasse
execráveis contumélias, imundíssimos levá-la.
escarros e poeira que lhe atiravam na Aceitou Cristo este pedido, e daí
divina face, cegando os olhos que, miseri- resultou a requisição de Simão Cirineu
cordiosamente, os fitavam. Assim, fazi- para levar a Cruz do Senhor (Mt 27,32),
am-se indignos de tão benigno olhar. como adiante direi. Os fariseus e os al-
Apressados e sedentos de lhe dar a gozes adotaram esse expediente, uns
morte, não permitiam ao Mestre mansís- movidos por alguma natural compaixão,
368
Sexto Livro - Capítulo 21
outros pelo receio de que o Salvador vi- seguiam o Senhor outras muitas mulheres
esse a morrer antes de ser crucificado, tal a se lamentar e chorar amargamente. Vol-
era o seu desfalecimento. tando-se para elas, o amoroso Jesus, lhes
disse: Filhas de Jerusalém, não choreis so-
bre Mim, mas chorai sobre vós mesmas e
Sentimentos de Maria vossos filhos. Porque virão dias em que
se dirá: Felizes as estéreis que nunca
1369. Excede a qualquer com- tiveram filhos para aleitar. E então,
preensão e idéia, a dor que a cândida começarão a dizer aos montes -: caí sobre
pomba e Virgem Mãe sentiu neste nós; e às colinas: soterrai-nos. Porque se
caminho para o monte Calvário, vendo e assim é tratada a lenha verde, que será da
acompanhando o Filho que só Ela sabia seca?
dignamente conhecer e amar. Com estas misteriosas palavras, o
Ter-lhe-ia sido impossível não Senhor deu valor às lágrimas derramadas
morrer, se o poder divino não a sustentasse por sua paixão santíssima, e de certo modo
conservando-lhe a vida. Nesta dor amarís- as aprovou, comprazendo-se nessa com-
sima, falou interiormente ao Senhor: Meu paixão. Pelo que disse àquelas mulheres,
Filho e Deus eterno, luz de meus olhos e quis ensinar-nos a finalidade que devem
vida de minha alma, recebei Senhor o do- ter nossas lágrimas, para serem bem em-
loroso sacrifício de não poder vos aliviar pregadas.
do peso da cruz. Eu, filha de Adão, é quem Aquelas compassivas discípulas
a deveria levar e nela morrer por vosso de nosso Mestre, então ignoravam isso.
amor, como vós querei s morrer, com ar- Choravam suas afrontas e dores, e não a
dentíssima caridade, pela raça humana. causa pela qual as padecia. Ainda assim,
Oh! amantíssimo mediador entre a mereceram ser instruídas. Foi como se o
culpa e a justiça! Como entretendes a mi- Senhor dissera: Chorai sobre vossos pe-
sericórdia entre tantas injúrias e afrontas? cados e os de vossos filhos, pois sofro por
Oh! caridade sem medida que, para mais se eles e não pelos meus, pois nào os tenho
abrasar e difundir, permite os tonnentos e nem me é possível os ter. Se a compaixão
opróbrios! Oh! amor infinito e temíssimo, por Mim é boa e justa, mais desejo que
quem me dera possuir o coração e a vontade choreis vossas culpas, do que as penas que
de todos os homens, para que não pagassem por elas padeço.
tão mal ao que por todos sofreis! Oh! quem Chorando por este motivo, lu-
pudera fazer o coração dos mortais com- crareis para vós e vossos filhos o preço de
preender quanto vos devem, pois tão caro meu sangue e o fruto da redenção que este
vos tem custado o resgate de seu cativeiro cego povo ignora. Virão dias - os do juízo
e a reparação de sua ruína! universal e seu castigo - em que se terão
Outras razões ainda, prudentíssi- por felizes as que não geraram filhos, e os
mas e sublimes, que não posso traduzir, precitos pedirão aos montes e colinas que
dizia a grande Senhora do mundo. os cubram, para não ver minha indig-
nação.
Se em Mim, inocente, causaram
Encontro com as piedosas mulheres tais efeitos suas culpas das quais me res-
ponsabilizei, que produzirão neles, tão se-
1370. Diz o evangelista São Lucas cos, sem frutos da graça e sem nenhum
(23, 27) que entre a multidão do povo, merecimento?
Sexto Livro - Capítulo 21
que nada negam à própria vontade, evi- verso à condição da carne mortal. Para que
tando as virtudes custosas à natureza. em todos estes exercícios me imites e
Poderiam sair deste engano se advertis- agrades, não quero que procures nem
sem que meu Filho santíssimo não foi ape- aceites alívio e descanso em coisas terre-
nas Redentor e Mestre; deixou no mundo, nas. Não deves te ocupar com teus sofri-
não só o tesouro de seus méritos, mas tam- mentos, nem revelá-los só para te
bém a medicação necessária à enfermi- aliviares. Menos ainda hás de encarecer
dade, da qual adoecera a natureza por ou exagerar as perseguições e moléstias
causa do pecado. que recebes das criaturas. Não se ouça de
Ninguém mais sábio que meu tua boca que é muito o que padeces, nem
Filho e Senhor. Ninguém pode entender a o compares aos sofrimentos dos outros.
natureza do amor como Ele que é a própria Não digo que seja culpa receber al-
sabedoria e caridade (1 João 4,16), além gum alívio honesto e moderado, ou
de onipotente para cumprir toda sua von- queixar-se do sofrimento. Mas, para ti,
tade. Não obstante, podendo tudo o que caríssima, este alívio será infidelidade a
queria, não escolheu vida cômoda e suave teu Esposo e Senhor, porque só a ti con-
para a natureza, mas sim trabalhosa e cedeu mais do que a muitas gerações. Tua
cheia de sofrimentos. Não teria sido sufi- correspondência no padecer e amar não
ciente e perfeito magistério redimir os admite falha, e não tem desculpa, se não
homens, sem lhes ensinar a vencer o for na plenitude da delicadeza e lealdade.
demônio, à carne e a si mesmos. Esta Tão semelhante a Ele te quer este Senhor,
magnífica vitória alcança-se com a cruz que nem suspiro deveras conceder a tua
dos trabalhos, desprezos, mortificações e fraca natureza, sem outro mais altofimdo
penitência, sinal e testemunho do amor e que apenas descansar e receber conso-
marca dos predestinados. lação.
Se fores conduzida pelo amor,
serás levada por sua força suave. Descan-
Sofrer com perfeição sarás amando, e logo o amor da cruz te
dará alívio, assim como entendeste que eu
1374. Conhecendo o valor da santa fazia, com humilde submissão. Para ti seja
cruz e a honra que ela confere às ig- regra geral que toda consolação humana
nomínias e tribulações, abraça, minha é imperfeição e perigo, e só deves aceitar
filha, tua cruz, levando-a com alegria no a que te enviar o Altíssimo, por Si e por
seguimento de meu Filho e teu Mestre (Mt seus santos anjos. Estes mesmos carinhos
16, 24). Na vida mortal, tua glória sejam de sua divina destra, hás de receber com
as perseguições, desprezos, enfermi- atenção, de modo que te fortaleçam para
dades, tribulações (Rom 5, 3), pobreza, mais padecer, abstraindo-te do saboroso
humilhação, e quanto for penoso e ad- que pode passar para a sensibilidade.
372
C A P I T U L O 22
CRUCIFIXÃO DE JESUS NO MONTE CALVÁRIO. AS SETE
PALAVRAS QUE FALOU NA CRUZ. MARIA SANTÍSSIMA O
ASSISTE COM IMENSA DOR.
Chegada aQ Calvário para os quais pediu e alcançou do Altís-
simo a grande graça de se acharem pre-
1375. Chegou nosso verdadeiro sentes e bem próximos do Salvador e sua
Isaac, Filho do eterno Pai, ao monte do cruz.
sacrifício. Foi o mesmo onde precedeu o
ensaio e a figura, no filho do Patriarca
Abraão (Gn 22, 9), e onde se executou, Cooperação de Maria no sacrifício de
no inocentíssimo Cordeiro, o rigor que foi Jesus
poupado ao antigo Isaac, sua figura.
Era o monte Calvário lugar imun- 1376. Entendia a Mãe prudentís-
do e desprezível como destinado ao cas- sima como se iam realizando os mistérios
tigo dos facínoras e condenados, de cujos da redenção humana. Quando viu que se
corpos recebia mau cheiro e maior ig- preparavam para desnudar o Senhor e o
nomínia. Nosso amantíssimo Jesus che- cruci ficar, converteu seu espírito ao
gou tão fatigado que parecia todo trans- eterno Pai e orou assim: Senhor meu e
formado em dores e chagas, banhado eiíi Deus eterno, Pai do vosso unigênito Filho.
sangue e desfigurado. Por eterna geração, Ele é Deus verdadeiro
A força da divindade, que deifi- nascido de Deus verdadeiro que sois Vós.
cava sua humanidade santíssima pela Pela humana geração, nasceu de minhas
união hipostática o sustentou, não para entranhas onde lhe dei a natureza de
aliviar seus tormentos, mas para lhe dar a homem na qual padece. Alimentei-o com
força necessária, até seu imenso amor fi- meu leite e, como ao melhorfilhoque
car satisfeito. Conservou-lhe a vida até o jamais pôde nascer de outra criatura, amo-
momento em que, na cruz, a morte rece- o como verdadeira Mãe, tendo direito
beu permissão para lha tirar. natural sobre a humanidade santíssima de
Chegou também a aflita Mãe, sua pessoa, direito que vossa providência
cheia de amargura, ao alto do Calvário, nunca recusa a quem pertence.
corporalmente muito próxima de seu Agora, ofereço este direito de Mãe
Filho. Espiritualmente, porém, estava e o entrego em vossas mãos, para que
como fora de si, transportada em seu vosso e meu Filho seja sacrificado pela
amado e no que Ele sofria. redenção da linhagem humana. Recebei
Acompanhavam-na São João e as meu Senhor a renovação de minha
três Marias, seus únicos companheiros, aceitável oferenda e sacrifício. Não daria
373
Sexto Livro - Capítulo 22
tanto, se Eu mesma sofresse e fosse sacri : Esta bebida, que para os dema"
ficada, pois meu Filho é verdadeiro Deus justiçados podia trazer algum alívio, apéS
de vossa mesma substância, e imensa é fida crueldade dos ímpios judeus, preteri
minha dor e pena. Se eu morresse para ser deu transfonnar em maior pena para noss à
conservada sua vida santíssima, seria para Redentor (Amós 2, 6). Prepararam-na
Mim grande alívio e satisfação dos meus amaríssima, misturada com fel, para qUe
desejos. não produzisse outros efeitos, senão ape¬
Esta oração da grande Rainha foi nas amargura.
aceita pelo eterno Pai, com inefável agra- Conheceu a divina Mãe esta desu-
do e complacência. Ao patriarca Abraão manidade, e com matemal compaixão e
foi pedida apenas a representação do sa- lágrimas, suplicou ao Senhor, que a não
crifício de seu Filho (Gn 22,12), porque bebesse. Condescendeu Jesus ao pedido
sua realidade e consumação o Pai eterno de sua Mãe, e sem evitar de todo este novo
reservava para seu Unigênito. tormento, provou a amarga poção, mas
Nem à Sara, mãe de Isaac, foi dado não a bebeu (Mt 27,34).
conhecimento daquela mística cerimônia,
quer pela pronta obediência de Abraão,
quer por não se fiar tal sacrifício do amor Jesus é despojado das vestes
materno. Apesar de ser santa e justa, Sara
poderia tentar impedir a execução da or- 1378. Chegara a hora sexta, que
dem do Senhor. corresponde ao meio-dia, e os verdugos
Não aconteceu o mesmo com Ma- despiram o Salvador da túnica inconsútil
ria santíssima a quem o Pai eterno, sem e das outras vestes.
receio algum, pôde confiar sua eterna von- Como a túnica não tinha abertura,
tade, para que, na devida proporção, co- procuraram despi-la pela cabeça sem tirar
operasse com Ele no sacrifício de seu a coroa de espinhos. Puxando violen-
Unigênito. tamente, arrancaram a coroa com a túnica,
com extrema crueldade. Abriram-se de
novo as feridas da sagrada cabeça e em
O vinagre com fel algumas ficaram as pontas dos espinhos
que, sendo tão duras e aceradas, que-
1377. Quando terminou esta braram-se com a força dos verdugos ao
oração, a invicta Mãe entendeu que os ím- arrancar a túnica e a coroa. Com ímpia
pios esbirros tencionavam dar ao Senhor crueldade, a repuseram na cabeça, abrindo
vinho misturado com fel, como dizem São chagas sobre chagas.
Mateus (27,34) e São Marcos (15,23). Além destas, reabriram todas as do
Para infligir este novo tormento ao corpo santíssimo. A túnica apegara-se a ele,
Salvador, os judeus se aproveitaram do e o arrancá-la, como diz David, foi recrudes-
costume vigente, de dar aos condenados cer a dor de suas feridas (SI 48,27).
à morte uma bebida de vinho forte e Quatro vezes, durante a paixão, ti-
aromático. A finalidade era confortá-los raram e puseram as vestes no Senhor. A
para terem mais força de suportar as tor- primeira, para açoitá-lo na coluna; a
turas do suplício. Esta piedade procedia segunda, para lhe por a púrpura de
do conselho deixado por Salomão nos escárnio; a terceira, quando lha tiraram
Provérbios (31,6): Dái sidra aos tristes e para lhe tornar a vestir a túnica; a quarta,
vinho aos de coração amargurado. no Calvário para ser crucificado. Nesta
374
Sexto Livro - Capítulo 22
última vez sofreu mais, porque as feridas seio, assumindo esta carne passível e mor-
eram mais numerosas, sua humanidade tal, para nela redimir os homens meus ir-
santíssima estava mais enfraquecida e no mãos.
monte Calvárioficoumais desabrigada e Comigo ofereço-te, Senhor, minha
exposta ao vento, que também teve per- Mãe queridíssima, seu amor, suas obras
missão para a afligir com o frio. perfeitíssimas, suas dores e sofrimentos,
seus cuidados e prudentíssima solicitude
em me servir, imitar e seguir até a morte.
Maria impede a nudez completa de Ofereço-te a pequena grei de meus
Jesus apóstolos, a santa Igreja e congregação
dosfiéisque agora existe e existirá até o
1379. A todas estas penas, ajun- fim do mundo, e com ela a todos os filhos
tava-se o constrangimento de estar des- de Adão.
pido na presença de sua Mãe santíssima, Tudo coloco em tuas mãos, seu
das devotas mulheres que a acompa- verdadeiro Deus e Senhor onipotente.
nhavam e da multidão. Ficou só com a Quanto de mim depende, por todos quero
peça que sua Mãe santíssima lhe pusera padecer e morrer, desejando que todos se-
sob a túnica, quando criança, no Egito. jam salvos, se de sua parte quiserem me
Nem quando o açoitaram puderam os ver- seguir e aproveitar de minha redenção. De
dugos tirá-la, como fica dito, nem para o escravos do demônio passem a ser teus
crucificar, e com ela foi ao sepulcro, como filhos, meus innãos e coherdeiros pela
me foi dito muitas vezes^. graça que lhes mereci.
Para morrer em absoluta pobreza, Ofereço-te especialmente, Senhor
sem coisa alguma ter, de quantas era o meu, pelos pobres, desprezados e aflitos,
próprio Criador e verdadeiro Senhor, por meus amigos que me seguirão pelo
sua vontade, o Salvador morreria total- caminho da cruz. Quero que os justos e
mente nu até sem aquela peça. Interveio, predestinados estejam escritos em tua
porém, a vontade de sua Mãe santíssima memória eterna.
que lhe pediu conservá-la. Acedeu Cristo Suplico-te, Pai meu, suspendas o
nosso Senhor, e com esta obediência filial castigo e o açoite de tua justiça com os
satisfez a suma pobreza na qual desejava homens, e não sejam punidos segundo
morrer. merecem suas culpas. Desde esta hora sê
Estava a cruz estendida no solo e os Pai deles como és meu Pai.
carrascos preparavam o necessário para cru- Rogo-te pelos que, com piedoso
cificá-lo, assim como aos dois outros con- sentimento, assistem minha morte, para que
denados. Neste Ínterim, nosso Redentor e sejam iluminados com tua divina luz; por
Mestre fez ao Pai a seguinte oração: todos os que me perseguem, para que se
convertam à verdade; e acima de tudo, peço
pela exaltação de teu inefável e santo nome.
Oração de Jesus antes da crucifixão
1380. Eterno Pai e Senhor meu A paixão de Cristo, reproduzida em
Deus, à tua incompreensível majestade de Maria
infinita bondade e justiça, ofereço meu ser
humano com todas as obras que nele rea- 1381. Conheceu a Mãe santíssima
lizei por tua vontade: descendo do teu esta oração e súplicas de nosso Salvador
1 -n° 1338.
375
Sexto Livro - Capítulo 22
376
Sexto Livro - Capítulo 22
foi uma das maiores aflições que sofreu Entretanto, não foi assim. Judeus
seu castíssimo coração, em toda a Paixão. e algozes - oh! temíveis e ocultíssimos
Entendeu a depravada intenção daqueles juízos do Senhor! - estavam transfor-
joguetes do pecado e anteviu o tormento mados no ódio mortal e obstinado dos
que seu Filho santíssimo padeceria ao ser demônios, despidos de sentimentos de
cravado na cruz. Nào pode remediá-lo, homens sensíveis e terrenos, agindo com
porque o Senhor queria sofrer também indignação e furor diabólico.
aquela tortura pelos homens.
Quando o Salvador se levantou
para que perfurassem a cruz, a grande Se- Jesus é cravado na cruz
nhora chegou até Ele, adorou-o e to-
mando-lhe a mão beijou-a com suma re- 1384. Tomando a mão do Salva-
verência. Permitiram isto os verdugos, dor, um dos verdugos assentou-a sobre
porque julgaram que a vista de sua Mãe o orifício da cruz e outro a cravou, enfi-
afligiria mais o Senhor, não lhe poupando ando à marteladas, na palma do Senhor
nenhuma dor das que lhe puderam in- um grosso cravo de quinas. Romperam-
fligir. se as veias e nervos, quebraram-se e des-
Enganaram-se, não entendendo o locaram-se os ossos daquela mão
mistério. Em sua Paixão, não teve o Re- sagrada que fez os céus e tudo quanto
dentor motivo de maior consolo e gozo existe. Ao irem cravar a outra mão, ela
interior do que ver sua Mãe santíssima, a não alcançava o orifício, pois além dos
formosura de sua alma, retrato de Si nervos se terem contraído, haviam dis-
mesmo, e nela o pleno aproveitamento do tanciado o buraco por maldade, como
fruto de sua paixão e morte. Este gozo, de acima se disse*4*.
algum modo, confortou a Cristo, nosso Tomaram, então, a corrente com
bem, naquela hora. que o mansíssimo Senhor estivera preso
desde o horto e lhe prenderam o pulso na
extremidade que terminava em algemas.
Homens, instrumentos do diabo Com inaudita crueldade, puxaram o braço
até a mão alcançar o orifício, cravando-a
1383. Feitos na santa cruz os três com outro cravo. Passaram aos pés.
buracos, mandaram segunda vez que o Puseram-nos um sobre o outro e puxando
Senhor se estendesse sobre ela para o pre- com a mesma corrente, com muita força
garem. O sumo e poderoso Rei, artífice da e crueldade, cravaram-nos juntos com o
paciência, obedeceu e deitou-se na cruz, terceiro cravo, um pouco maior que os ou-
estendendo os braços sobre o feliz tros.
madeiro, entregue a vontade dos fautores Ficou aquele sagrado corpo ao
de sua morte. qual estava unida a divindade, pregado na
Estava tão desfalecido, desfigu- santa cruz. Seus membros deificados, e
rado e exangue que, se na impiedade fonnados pelo Espírito Santo, ficaram tão
ferocíssima daqueles homens houvesse deslocados e fora de seu lugar natural, que
algum lugar para a natural razão e humani - se lhe poderiam contar todos os ossos (SI
dade, não era possível que a crueldade pu- 21, 18). Desarticularam-se os do peito,
desse ainda encontrar o que fazer com a dos ombros e das costas, e todos se
mansidão, humildade, chagas e dores do moveram de seu lugar, cedendo à violenta
inocente Cordeiro. crueldade dos verdugos.
4-n° 1382.
Sexto Livro - Capítulo 22
Os verdugos dobraram as pontas sem custar prata ou ouro (Is 40,1), dadas
dos cravos, sem perceber o prodígio que gratuitamente, só pela vontade de as rece-
lhes foi ocultado. O corpo estava tão rente ber.
à terra e a cruz tão firmemente sustentada
pelos anjos, que os malvados judeus
acreditaram estar no duro solo.
Os dois ladrões crucificados
1388. Em seguida, crucificaram os
Elevação da cruz dois ladrões fixando suas cruzes à direita
e à esquerda de nosso Redentor que ficou
1387. Encostaram a cruz com o no meio, como se fosse o maior deles.
divino Crucificado à cavidade em que se- Não se ocupando os pontífices e
ria arvorada. Alguns com os ombros, ou- fariseus com os dois bandidos, voltaram
tros com alabardas e lanças, elevaram a todo o furor contra o Impecável e Santo
cruz fixando-a na abertura do solo. Ficou por natureza. Abanando a cabeça com
nossa verdadeira salvação e vida no ar, escárnio e zombaria (Mt 27,39), atiravam
pendente do sagrado madeiro, à vista de pedras e poeira contra a cruz do Senhor e
inumerável povo de diversas raças e sua real pessoa, dizendo: Tu que destruís
nações. o templo de Deus e em três dias o recons-
Não quero omitir outra crueldade truís, salva-te agora a ti mesmo; salvou a
que conheci terem usado com o Senhor outros e a Si mesmo não pode salvar.
quando o levantaram. Com as lanças e as Outros replicavam: Se é o Filho de
outras armas o feriram, fazendo-lhe pro- Deus desça agora da cruz e acreditaremos
fundas feridas debaixo dos braços, pois nele (Mt 27, 42). Os dois ladrões, a
fixaram os ferros na carne para levantá-lo princípio, também zombavam de Jesus e
com a cruz. diziam: Se és o Filho de Deus salva-te a
Recrudesceu o clamor da multidão ti e a nós (Idem 44).
com maiores gritos e confusão: os judeus Estas blasfêmias dos ladrões fo-
blasfemavam, os compassivos se lamen- ram para o Senhor de tanto maior senti-
tavam, os estrangeiros se admiravam; uns mento, quanto mais próximos da morte se
convidavam a assistir o espetáculo, outros encontravam. Perdiam aquelas dores com
não o podiam olhar pela dor; havia os que as quais podiam satisfazer, em parte, seus
o consideravam uma lição corretiva, ou- delitos punidos pelajustiça. Um pouco de-
tros o chamavam justo. Esta diversidade pois, assim fez um deles, aproveitando a
de opiniões e palavras eram flechas que oportunidade que jamais teve outro pe-
se enterravam no coração da aflita Mãe. cador no mundo.
O sagrado corpo derramava muito
sangue pelas feridas dos cravos. Com a
queda da cruz no buraco, estremeceu, Maria defende a honra de Jesus
abrindo-se novamente suas chagas. Fi-
caram assim mais abertas as fontes con- 1389. A grande Rainha dos anjos,
vidando-nos por Isaías (12,3) a haurir de- Maria santíssima conheceu que os judeus,
las, com alegria, as águas para apagar a com sua pérfida e obstinada inveja, pre-
sede e lavar as manchas de nossas culpas. tendiam levar ao extremo a desonra de
Ninguém tem desculpa se não se Cristo crucificado. Desejavam que todos
apressar em beber, pois são oferecidas o blasfemassem, tendo-o pelo pior dos
379
Sexto Livro - Capitulo 22
homens, e que a memória de seu nome Deus. Assim fez o centuriào e muitos ou
fosse apagada e esquecida na terra dos tros, como dizem os Evangelistas (Mt 27"
viventes, como profetizou Jeremias (Jer 54; Lc 23, 48), que desciam contritos do
11,19). Calvário batendo no peito. Não eram SÓ
O coraçãofidelíssimoda divina os que antes tinham ouvido e acreditado
Mãe inflamou-se de zelo pela honra de seu em sua doutrina, mas também muitos que
Filho e Deus verdadeiro. Prostrada em nào o haviam conhecido, nem visto seus
adoração ante sua real pessoa crucificada, milagres.
pediu ao eterno Pai que defendesse a Por causa da oração da Virgem Mãe
honra de seu Unigênito com sinais, tão também foi inspirado a Pilatos que nào
sensíveis, que a perfídia judaica ficasse mudasse o título da cruz que haviam colo-
confusa e sua maligna intenção frustrada. cado acima da cabeça de Jesus nos três
Apresentada esta súplica ao Pai, idiomas: hebreu, grego e latim. Apesar dos
com zelo e poder de Rainha do universo, judeus terem reclamado (Jo 19, 21-22),
dirigiu-se a todas as criaturas irracionaispedindo-lhe que não escrevesse, Jesus Na-
e disse: Criaturas inanimadas, criadas pelazareno Rei dos judeus, mas sim, Este se
mão do Todo-poderoso, manifestai vós disse Rei dos judeus, respondeu Pilatos: O
outras em sua morte, o sentimento que que escrevi está escrito, e não quis mudar.
loucamente lhe recusam os homens do- Todas as criaturas inanimadas, por
tados de razão. Céus, sol, lua, estrelas, e vontade divina, obedeceram à ordem de
plantas detende vosso curso, suspendei Maria santíssima. Do meio-dia até às três
vossas influências aos mortais. da tarde, a hora nona em que expirou o
Elementos, alterai vossas pro- Salvador, mostraram o sentimento e al-
priedades, agite-se a terra, partam-se as terações narrados pelos Evangelistas (23,
pedras e os duros penhascos. Sepulcros 45; Mt 17, 51-52): o sol se escondeu, os
dos mortais, abri vossas secretas cavi- planetas alteraram seu influxo, os céus e
dades para confusão dos vivos. Véu do a lua seus movimentos, os elementos se
templo, místico, e simbólico, rasga-te em perturbaram, tremeu a terra e muitos mon-
duas partes; com tua divisão mostra o cas- tes se abriram; partiram-se as pedras umas
tigo que os incrédulos merecem e teste- contra as outras; os sepulcros se abriram
munha a glória de seu Criador e Redentor, e alguns defuntos saíram ressuscitados.
verdade que eles pretendem obscurecer. Tão insólita perturbação foi perce-
bida em todo o orbe. Em Jerusalém os
judeus ficaram atônitos e apavorados, mas
A confurbação da natureza sua inaudita perfidia e malícia impediu e
lhes desmereceu, chegarem ao con-
1390. Pelas virtudes desta oração hecimento da verdade que todas as
e poder de Maria, Mãe de Jesus crucifi- criaturas insensíveis pregavam.
cado, tinha disposto a onipotência do
Altíssimo tudo o que aconteceu na morte
de seu Unigênito. As vestes de Jesus
Deus comoveu e esclareceu o co-
ração de muitos circunstantes, quer du- 1391. Os soldados que crucifi-
rante os abalos da terra, quer antes disso, caram Jesus, nosso Salvador, tinham di-
para que confessassem o crucificado Je- reito às vestes do justiçado, e trataram de
sus por santo, justo e verdadeiro Filho de repartir entre si a roupa do inocente Cor-
380
Sexto Livro Capítulo 22
deiro. A capa ou rnanto que, por divina Assim agiu a ingratidão humana
disposição, levaram ao Calvário, era a que depois de tanta luz, ensinamentos e bene-
Jesus tinha tirado quando lavou os pés dos fícios, e assim agiu nosso Salvador Jesus,
apóstolos. Repartiram-na entre os quatro retribuindo com ardentíssima caridade os
(Jo 19, 23-24). A túnica inconsútil não tonnentos, espinhos, cravos, cruz e blas-
quiseram rasgar, ordenando-o assim a fêmias. Oh! amor incompreensível! Oh!
divina providência do Senhor com grande suavidade inefável! Oh! paciência nunca
mistério. Tiraram a sorte e ficou para quem imaginada pelos homens, admirável aos
ganhou, cumprindo-se literalmente a pro- anjos e temível aos demônios!
fecia de David no salmo 21, verso 19. Deste sacramento entendeu um
Os mistérios da túnica não ser ras- pouco Dimas um dos ladrões. Ao mesmo
gada, são explicados pelos santos e dou- tempo, auxiliado pela intercessão de Ma-
tores. Um destes simbolismos repre- ria santíssima, foi esclarecido inte-
sentava que osjudeustinham rasgado com rionnente para reconhecer seu Redentor e
tonnentos e feridas a humanidade santís- Mestre, por essa primeira frase dita sobre
sima de Cristo, a qual era como a capa que a cruz. Movido por verdadeira dor e con-
cobria sua divindade. Esta, porém, sim- trição de suas culpas, dirigiu-se ao com-
bolizada pela túnica, não puderam atingir panheiro dizendo: Nem tu temes a Deus,
na Paixão, e quem tiver a felicidade de ser continuando a fazer o mesmo que estes
justificado pela sua participação, recebe- blasfemos? Nós pagamos o que devemos,
la-á e a gozará inteira. mas este que padece conosco não cometeu
culpa alguma (Lc 23,40). Em seguida, diz
ao Salvador: Senhor, lembra-te de mim
Primeira palavra de Cristo quando chegares em teu reino (Idem v.
crucificado: Pai, perdoai-lhes... 42).
1392.0 madeiro da santa cruz era
o trono da majestade real de Cristo e a Segunda palavra de Cristo: Hoje
cátedra donde queria ensinar a ciência estarás comigo no Paraíso
da vida. Estando nela e confirmando a
doutrina com o exemplo, Ele disse 1393. Os frutos da Redenção co-
aquela palavra que encerra o cume da meçaram a se estrear neste felicíssimo
caridade e perfeição (Lc 23, 34): Pai, ladrão, no Centurião e nos demais que
perdoai-lhes, porque não sabem o que testemunharam Cristo na cruz.
fazem. O mais afortunado, porém, foi Di-
O divino Mestre chama "seu" o mas que mereceu ouvir a segunda palavra
mandamento da caridade e amor fraterno do Senhor (Idem v. 43): Em verdade te
(Jo 15,12) e em prova desta verdade que digo que hoje estarás Comigo no paraíso.
nos ensinara (Mt 15, 44), praticou-a na Oh! bem-aventurado ladrão, só tu
cruz. Não só amou e perdoou seus ini- ouviste a palavra desejada por todos os
migos, mas ainda desculpou-os alegando justos da terra! Não a puderam ouvir os
ignorância, quando a malícia deles antigos patriarcas e profetas que se jul-
chegara ao extremo que os homens garam muito ditosos em descer ao limbo
poderiam atingir, perseguindo, crucifi- e lá esperar, por longos séculos, o que tu
cando e blasfemando seu próprio Deus e ganhaste no instante em que, felizmente,
Redentor. mudaste de oficio.
Sexto Livro - Capítulo 22
382
Sexto Livro - Capítulo 22
entíssimo Pai da família humana, a Ele en- Redenção, seria também a testamentária,
tregue pelo seu eterno Pai. por cujas mãos seria executada sua von-
A razão natural ensina que o chefe tade. Como o Pai colocara todas as coisas
de alguma família, senhor de poucos ou na mão do Filho (Jo 13,3), este as pusera
muitos bens, não seria prudente adminis- todas nas mãos de sua Mãe. Esta grande
trador nem atento a seu oficio e dignidade, Senhora distribuiria os tesouros per-
se à hora da morte nào declarasse como tencentes a seu Filho, por ser quem é e por
desejava dispor os bens de sua família. tê-los adquirido com infinitos mere-
Declarando-o, os herdeiros e sucessores cimentos.
conhecerão o que pertencerá a cada um, Este conhecimento foi-me dado
evitando litígios e recebendo, justa e paci- como parte desta História, para maior
ficamente, o que herdaram. manifestação da dignidade de nossa
Por. este motivo, para morrerem Rainha e para que os pecadores recorram
despreocupados das coisas terrenas, a Ela. É a depositária das riquezas que seu
fazem as pessoas do mundo o testamento. Filho e nosso Redentor ofereceu como
Até os religiosos se desapropriam de tudo, penhor a seu eterno Pai. Todos os recursos
porque naquela hora, o peso das coisas ter- de que necessitamos serão expedidos por
renas e seus cuidados, estorvam o espírito Maria santíssima e Ela os distribuirá por
para se elevar ao Criador. suas piedosas e liberais mãos.
Nosso Salvador nada possuía na
terra, e ainda que possuísse, seu poder in- TESTAMENTO QUE NOSSO
finito nào seria por isto embaraçado. Con- SALVADOR FEZ NA CRUZ,
vinha, porém, que naquela hora dis- ORANDO A SEU ETERNO PAI.
pusesse dos tesouros e dons espirituais
que merecera para os homens, durante sua
peregrinação terrestre. Jesus agradece ao Pai
1401. Arvorado o madeiro da santa
O testamento do Redentor cruz no monte Calvário, o Verbo hu-
manado nela crucificado, antes de proferir
1400. Na cruz, o Senhor fez o tes- as sete palavras, assim falou inte-
tamento destes bens eternos, determi¬ rionnente, ao seu eterno Pai:
nando quem seriam os legítimos herdeiros Meu Pai e Deus eterno, da árvore
e quais os deserdados, com as respectivas de minha cruz Eu te confesso e enalteço,
razões. Tudo estabeleceu de acordo com louvando-te com o sacrifício de minhas
seu etemo Pai, justíssimo juiz de todas as dores, paixão e morte, porque pela união
criaturas. Nesse testamento estavam resu- hipostática da natureza divina elevaste
midos os segredos da predestinação dos minha humanidade à suprema dignidade
santos e da reprovação dos prescitos. Por de ser Cristo, Deus-homem, ungido com
isto, foi testamento fechado e oculto aos tua mesma divindade.
homens. Glorifico-te pela plenitude de to-
Só Maria santíssima o entendeu, dos os dons de graça e glória que, desde
porque além de lhe serem patentes todas o instante de minha Encarnação, comuni-
as operações da alma santíssima de Cristo, caste à minha humanidade. Desde aquele
era sua herdeira universal, constituída momento, deste-me para sempre pleno e
Senhora de toda a criação. Coadjutora dá universal domínio de todas as criaturas,
385
Sexto Livro - Capítulo 22
Agora, portanto, meu eterno Pai, Rainha e Senhora; que a sirvam, acom-
em teu nome e meu, exaltando-te, dis- panhem, assistam e a levem em suas mãos
ponho minha última vontade que é con- em todo o tempo e lugar, obedecendo à
forme à tua eterna e divina. Quero que, em sua autoridade em tudo quanto quiser lhes
primeiro lugar, esteja minha Mãe purís- ordenar.
sima que me deu o ser humano. Consti- Aos demônios, rebeldes à nossa
tuo-a por única e universal herdeira de to- vontade perfeita e santa, expulso-os e
dos os meus bens de natureza, graça e separo de nossa visão e companhia. No-
glória, para que deles seja Senhora, com vamente condeno-os ao nosso aborre-
pleno domínio sobre todos. cimento e à privação eterna de nossa ami-
Os bens da graça que, pessoal- zade e glória, e da visão de minha Mãe,
mente, como pura criatura, Ela puder re- dos santos e dos justos meus amigos. Dou-
ceber, todos lhe concedo efetivamente, e lhes por habitação sempiterna o lugar
os da glória lhe prometo para seu tempo. mais distante de nosso real trono, as cav-
Quero que os anjos e os homens sejam ernas infernais no centro da terra, com pri-
seus, que sobre eles tenha inteiro domínio vação de luz, no horror de penosas trevas
e senhorio; que todos lhe obedeçam e sir- (Jud 6). Declaro que esta é sua parte e
vam, e os demônios a temam e lhe estejam herança, escolhida pela soberba e obsti-
sujeitos. O mesmo façam todas as nação com que se insurgiram contra o Ser
criaturas irracionais: os céus, astros e divino e suas ordens. Naqueles cala-
plantas, os elementos com todos as bouços tenebrosos serão atormentados
criaturas animadas que contém: aves, com fogo inex-tinguível e eterno.
peixes e animais. De tudo a faço Senhora,
para que todos a bendigam e glorifiquem
Comigo. Herança da natureza humana
Quero também que Ela seja depo-
sitária e dispensadora de todos os bens 1405. Da natureza humana, com a
encerrados nos céus e na terra. O que Ela plenitude de minha vontade, escolho,
ordenar e dispuser na Igreja, com os chamo e reservo todos os justos e predesti-
homens, meus filhos, será confirmado no nados que, por minha graça e imitação,
céu pelas três divinas Pessoas. Tudo hão de ser salvos, cumprindo minha von-
quanto pedir para os mortais, agora e sem- tade e obedecendo à minha santa lei.
pre, concederemos à sua vontade e dis- A estes, em primeiro lugar, depois
posição. de minha Mãe puríssima, nomeio herdeiros
de todas minhas promessas e mistérios,
bênçãos e tesouros encerrados em meus
Herança dos anjos e dos demônios Sacramentos e Escrituras; de minha hu-
mildade e mansidão de coração;das virtudes
1404. Aos anjos que obedeceram da fé, esperança e caridade; da prudência,
tua vontade santa e justa, declaro que lhes justiça, fortaleza e temperança; de meus
pertence o supremo céu como sua habi- divinos dons e favores; de minha cruz, tra-
tação eterna, e nela o gozo da clara visão balhos, opróbrios, desprezos, pobreza e
e fruição de vossa divindade. Quero que despojamento.
a gozem, perpetuamente, em nossa ami- Esta seja sua parte e herança na
zade e companhia. Ordeno-lhes que re- vida presente e mortal. Para que eles ao
conheçam minha Mãe por sua legítima escolhê-la, o façam com alegria, consti-
387
Sexto Livro * Capitulo 22
tuo-a penhor de minha amizade, pois Eu com eles, na Igreja militante, sob as espécies
a escolhi para mim. Ofereço-lhes minha de pão e vinho, como penhor infalível da
proteção e defesa, minhas inspirações eterna felicidade e glória que lhes prometo
santas, os favores e auxílios de meu poder, Faço-os dela participantes e herdeiros
meus dons e justificação, segundo a dis- para que Comigo a gozem no céu em per-
posição e amor de cada um. Serei para eles pétua posse e gozo inamissível.
pai, irmão e amigo e eles serão meus filhos
(2 Cor 6,18), meus escolhidos e amados.
Por estes títulos, os nomeio herdeiros de Herança temporal dos reprovados
todos meus merecimentos e tesouros, sem
limitação alguma de minha parte. 1407. Aos prescitos e reprovados,
Quero que participem de minha apesar de terem sido criados para mais ele-
santa Igreja e Sacramentos e deles rece- vado destino, permito que sua parte e he-
bam quanto se dispuserem a receber; que rança nesta vida mortal seja a concu-
possam recuperar a graça e bens, se a per- piscência da carne (1 Jo 2,16), dos olhos
derem, e voltar à minha amizade reno- e a soberba com todos seus efeitos; que
vados e amplamente lavados pelo meu comam e sejam saciados da areia da terra,
sangue. Que todos se valham da inter- de suas riquezas, da lama e corrupção da
cessão de minha Mãe e de meus santos, e carne e seus deleites, da vaidade e pre-
que Ela os reconheça por filhos e os am- sunção mundana.
pare como teus; que meus anjos os guiem, Para adquirir esta propriedade tra-
defendam, protejam e os levem nas mãos, balharam e nessa diligência puseram sua
para que não tropecem (SI 15, 11-12); vontade e sentidos. Nela empregaram as ca-
mas, se caírem, ajudem-nos a se levantar. pacidades, dons e benefícios que lhe demos;
eles mesmos, voluntariamente, escolheram
o que é falso, detestando a verdade que lhe
Privilégios dos justos ofereci em minha santa lei (Rom 2,8).
Renunciaram à que Eu gravei em
V seus corações e a que minha graça lhes in-
1406. Quero também que estes spirou; desprezaram minha doutrina e fa-
meus justos e escolhidos sejam supe- vores, ouviram os meus e seus inimigos,
riores, em excelência, aos réprobos e aos aceitaram seus enganos, amaram a vaidade
demônios, e que estes meus inimigos os (SI 4,3), praticaram a injustiça, seguiram a
temam e lhes fiquem sujeitos. Que todas ambição; deleitaram-se na vingança,
as criaturas racionais e irracionais os sir- perseguiram os pobres, humilharam os jus-
vam; que os céus e planetas, os astros com tos, zombaram dos simples e inocentes,
suas influências, os conservem e dêem apeteceram a própria exaltação e desejaram
vida; a terra, os elementos e todos seus elevar-se sobre os cedros do Líbano (SI 36,
animais os sustentem; todas as criaturas 35), na lei da injustiça que seguiram.
que me pertencem (1 Cor 3, 22) e me
servem, sejam deles e os sirvam como a
meus filhos e amigos, (Sab 16, 24); sua Herança eterna dos réprobos
bênção seja o orvalho do céu e a fertilidade
da terra (Gn 27,28). 1408. Tudo isto praticaram contra a
Quero também ter com eles minhas bondade de nossa divindade, permane-
delícias (Prov 8,31), comunicar-lhes meus cendo obstinados em sua malícia. Renun-
segredos, conversar e viver intimamente
388
Sexto Livro - Capítulo 22
ciaram ao direito de filhos que Eu lhes manifestados. Eu, como tua Mãe e Mestra,
adquiri; por isto, os deserdo de minha ami- pedirei ao Senhor que com sua virtude
zade e glória. Como Abraão afastou de si divina, grave em teu coração as espécies
os filhos das escravas, com alguns dons, que te deu, para nele pennanecerem fixas
e reservou sua principal herança para e presentes, enquanto viveres. Com esta
Isaac (Gn 25, 5), o filho de Sara, a mulher graça quero que, perpetuamente, guardes
livre: assim eu privo os prescitos de minha em tua memória a Cristo crucificado, meu
herança, concedendo-lhes os bens tran- Filho santíssimo e teu Esposo, e nunca
sitórios e terrenos que eles mesmos preferi- esqueças as dores da cruz e a doutrina que
ram. nela praticou e ensinou.
Separo-os de nossa companhia, da Neste espelho hás de compor tua
de minha Mãe, da dos anjos e santos, con- formosura. Ela será tua glória interior
denando-os aos eternos cárceres e fogo do como a da filha do príncipe (SI 44, 14)
inferno. Ali eternamente, sem esperança para que atendas, procedas e reines
de libertação, terão a companhia de como esposa do supremo Rei. Este hon-
Lúcifer e seus demônios a quem volun- roso título obriga-te a procurar, com
tariamente serviram. Esta é, meu Pai, a todo esforço, sua imitação e semelhança
sentença que pronuncio como juiz e ca- quanto te for possível, com sua graça.
beça dos homens e anjos (Ef 4,15; Col 2, Este também deve ser o fruto de minha
10), o testamento que disponho para doutrina.
minha morte e efeito da redenção humana. Por isto, quero que, desde hoje, vi-
A cada um remunero com o que por vas crucificada com Cristo e te identi-
justiça lhe pertence, conforme as próprias fiques a teu modelo, permanecendo morta
obras e o decreto de tua incompreensível à vida terrena (2 Cor 5,15). Quero que se
sabedoria, na equidade de tua retíssima extingam em ti os efeitos do pecado, e vi-
justiça (2 Tim 4,8). Até aqui as palavras de vas somente pelas moções e efeitos da vir-
nosso Salvador crucificado a seu eterno Pai. tude divina. Renunciai a tudo que herdaste
Este mistério ficou selado e guar- como filha do primeiro Adão, para te tor-
dado no coração de Maria santíssima, nares herdeira do segundo, Cristo Jesus,
como testamento oculto e fechado. Por teu Redentor e Mestre.
sua intercessão e disposição, desde aquela
hora iria sendo executado na Igreja, como
até então viera sendo executado pela ciên- A falsa consciência
cia e previsão di vina, onde todo o passado
e o futuro estão juntos e presentes. 1410. Teu estado deve ser para ti es-
treita cruz, onde estejas cravada, e nào am-
DOUTRINA QUE ME DEU A pla estrada com dispensas e interpretações
RAINHA DO CÉU MARIA que a farão espaçosa, larga e cômoda, mas
SANTÍSSIMA. não perfeita e segura. Este é o engano dos
filhos da Babilônia e de Adão: procuram fa-
cilidades na lei de Deus, cada qual em seu
estado. Regateiam a salvação de suas almas
O espelho da Esposa de Cristo e querem comprar o céu bem barato, ou ar-
1409. Minha filha, procura aten- riscar-se a perdê-lo, se lhes há de custar o
tamente durante a vida, não esquecer os sacrifício de se ajustarem ao rigor da divina
mistérios que nesse capítulo te foram lei e seus preceitos.
3X9
Sexto Livro - Capítulo 22
Daqui se origina a procura de dou- contigo mesma em alguma coisa (P ro
trinas e opiniões que alarguem as sendas 7), mas ignorante e cega para seres guiad
e caminhos da vida eterna. Não advertem pelos superiores. Aquele que promete d
que meu Filho santíssimo lhes ensinou o Sábio (Prov 6,1), cravou sua mão e n !
que são muito estreitos (Mt 7,14), e que suas palavras fica atado e preso. Cravas/
Ele os percorreu para ninguém pensar tua mão pelo voto de obediência, e lo
que pode ir por outros mais espaçosos e este ato ficaste sem liberdade e poder de
cômodos para a natureza e as incli- querer ou não querer.
nações viciadas pelo pecado. Este A mão esquerda estará cravada
perigo é maior para os eclesiásticos e com o voto da pobreza, sem reservar in-
religiosos que, por estado, devem seguir clinação ou afeição a coisa alguma que os
a seu divino Mestre, ajustando-se à sua olhos costumam cobiçar. No uso e no de-
vida e pobreza, tendo eles para isto sejo delas, deverás seguir perfeitamente a
escolhido o caminho da cruz. Cristo despojado e pobre na cruz.
Pretendem que a dignidade ou a re- O terceiro voto, de castidade,
ligião lhes traga mais comodidades tem- cravará teus pés, para que teus passos e
porais, honras, estima e aplauso do que movimentos sejam puros, castos e for-
poderiam ter em outro estado de vida. Para mosos. Não deverás consentir em tua pre-
consegui-lo alargam a cruz que prome- sença palavra que distôe da pureza; nào
teram levar, com argumentos e falsas in- permitirás a teus sentidos, olhar, tocar ou
terpretações, de modo a viverem nela guardar lembrança de criatura humana.
muito folgados e ao gosto da vida carnal. Teus olhos e todos teus sentidos deverão
A seu tempo conhecerão a verdade estar consagrados à castidade e só deverão
daquela sentença do Espírito Santo: se ocupar com Jesus crucificado.
"Cada qual pensa que seu caminho é O quarto voto, de clausura, guarda-
seguro, mas é o Senhor que pesa os co- lo-ás com segurança no peito de meu Filho
rações humanos" (Prov21,2). santíssimo, onde Eu quero que o protejas.
Para que esta doutrina te seja suave e este
caminho menos rude, considera em teu
A cruz e os votos religiosos coração a imagem que contemplaste de
meu Filho e Senhor. Coberto de chagas,
1411. Tão longe te quero, minha tormento e dores e finalmente cravado na
filha, deste engano, que deves viver ajus- cruz, sem deixar em seu corpo parte al-
tada ao rigor de tua profissão e de quanto guma sem feridas e tonnentos.
ela tiver de mais severo, de modo que não Ele e Eu éramos mais delicados e
te possas acomodar nesta cruz, nem alar- sensíveis que todos os filhos dos homens.
gar qualquer parte dela, como quem está Por eles padecemos tão acerbas dores,
crucificada com Cristo. Deverás preferir para que se animassem a não recusar
a menor obrigação de tua profissão e per- outras menores, paia seu próprio bem
feição, a qualquer comodidade temporal. eterno e pelo amor de Quem tanto fez por
A mão direita deverá estar cravada eles. A Ele deveriam os mortais ser
pela obediência, sem reservar movimento agradecidos, trilhando a senda dos espi-
ou ação, palavra ou pensamento que não nhos, carregando a cruz na imitação e
seja governado por essa virtude. Não de- seguimento de Cristo (Mt 16,24). Assim
verás ter gesto que proceda de tua própria alcançarão a eterna felicidade, poisest
vontade e sim da alheia. Nào sejas sábia é o caminho direto para ela.
390
CAPÍTULO 23
O TRIUNFp QUE O SALVADOR OBTEVE NA CRUZ SOBRE
O DEMÔNIO E A MORTE. PROFECIA DE HABACUC.
CONCILIÁBULO NO INFERNO.
Equívocos dos demônios dentor. Pela mesma razão, também não
conheceram a dignidade de Maria santís-
1412. Os ocultos e veneráveis mis- sima.
térios deste capítulo estão relacionados a Assim dispôs a providência da
outros muitos que, em todo o decurso divina Sabedoria, para que mais conveni-
desta História, descrevi ou apenas abor- entemente se executasse todo o mistério
dei. Um deles é, que Lúcifer e seus da Encarnação e Redenção do gênero hu-
demônios, durante a vida de nosso Salva- mano. Ainda que Lúcifer sabia que Deus
dor, nunca puderam saber com certeza se iria assumir a natureza humana, ignorava
o divino Mestre era verdadeiro Deus e re- o modo e circunstâncias da Encarnação.
Como julgou estas circunstâncias segun-
do sua soberba, flutuava em seus enganos.
Ás vezes, vendo os milagres operados por
Cristo, afirmava que era Deus. Logo de-
pois negava-o, por vê-lo pobre, humi-
lhado, aflito e fatigado.
Cegando-se neste contraste de
luzes, continuou duvidando e investi-
gando até a hora da crucificação. Nesta
hora, compreenderia os mistérios de
Cristo, ficando ao mesmo tempo certifi-
cado e vencido, em virtude da paixão e
morte que ele mesmo havia procurado á
humanidade santíssima do Senhor.
penas onde o haviam posto, como acima com sua humildade e pobreza, me en-
falei , era destinado para castigo dos que fraqueceu com sua paciência e finalmente
se condenassem com fé e sem obras, me arrebatou, com sua paixão e ignomi-
desprezadores da prática desta virtude e niosa morte, a soberania que eu possuía
do fruto da redenção humana. Contra sobre o mundo. Isto me atonnenta de tal
estes, os demônios nutrem maior ódio, as- maneira que, se o derrubasse da destra de
sim como o conceberam contra Jesus e seu Pai onde já estará triunfante, e arras-
Maria. tasse todos os seus redimidos a este in-
ferno, ainda não saciaria minha cólera,
nem aplacaria minha raiva.
Lúcifer convoca o conciliábulo
1425. Logo que Lúcifer teve per- Lamúrias de Lúcifer
missão para se erguer da prostração em
que ficou algum tempo, tratou de reanimar 1426. É possível que a natureza hu-
nos demônios nova soberba contra o Se- mana tão inferior à minha, seja elevada
nhor. acima de todas as criaturas? Que seja tão
Convocou a todos e, de lugar amada e agraciada por seu Criador, a
proeminente, lhes falou: A vós que, por ponto de a unir Consigo na pessoa do
tantos séculos, seguistes e seguireis meu Verbo eterno? Que antes disto se realizar
justo partido para vingar os agravos que ela me fizesse guerra, e depois me
me foram feitos - a todos é notório o que vencesse com tanta confusão para mim?
acabo de receber deste novo Homem- Sempre a considerei inimiga cruel, sem-
Deus. Durante trinta e três anos me traiu pre me foi odiosa e intolerável!
e enganou, ocultando-me seu ser divino, Oh! homens tão favorecidos pelo
encobrindo-me as operações de sua alma Deus que eu odeio, e tão amados por sua
e obtendo sobre nós a vitória, através da ardente caridade! Como impedirei vossa
morte com que tencionávamos destruí-lo. felicidade? Como vos farei desgraçados
Antes que assumisse a natureza com© eu, pois não posso aniquilar o ser
humana eu o odiei e não me sujeitei em que recebestes? Que faremos agora, meus
reconhece-lo por mais digno do que eu, e vassalos? Como restaurar nosso império?
que todos o adorassem por superior. Por Como cobraremos forças contra os
esta oposição fui convosco derribado do homens? Como vamos, agora, poder
céu e revestido desta fealdade que tenho, vencê-los?
indigna de minha grandeza e formosura. Se os mortais não forem ingratís-
Mais do que tudo isto, porém, me simos e insensíveis, piores do que nós
atormenta vêr-me tão vencido e oprimido contra este Homem-Deus que com tanto
por este Homem e sua Mãe. Desde o dia amor os redimiu, é claro que, de hoje em
em que foi criado o primeiro homem, pro- diante, todos o seguirão à porfia. Todos
curei-os com diligência para os aniquilar, lhe darão o coração e abraçarão sua lei
ou então a todas suas criaturas, para que suave; ninguém aceitará nossas mentiras;
ninguém o aceitasse e seguisse por seu detestarão as honras que falsamente lhes
Deus, e que suas obras não resultassem oferecemos e amarão os desprezos; pro-
em beneficio dos homens. Estes têm sido curarão a mortificação da carne e conhe-
meus cuidados e esforços. cerão o perigo dos deleites; deixarão os
Tudo foi em vão, pois me venceu tesouros e riquezas e amarão a pobreza
1 -n° 1249
Sexto Livro - Capítulo 23
que seu Mestre tanto honra; e tudo quanto perpétua guerra a este Redentor, à sua Mãe
nós lhes oferecermos para prender seus e aos homens. Vamos, demônios de meu
apetites, eles desprezarão para imitar seu séquito, chegou a hora de combater a
verdadeiro Redentor. Deus. Vinde estudar comigo os meios que
Com isto se aniquila nosso reino, usaremos, pois para isto desejo vosso
pois ninguém virá conosco para este lugar parecer.
de confusão e tormentos; todos al-
cançarão a felicidade que perdemos; to-
dos se humilharão até o pó, sofrerão com Reação diabólica contra a redenção
paciência e ficarão frustradas minha in-
dignação e soberba. 1428. A esta temerária proposta de
Lúcifer, responderam alguns principais
demônios animando-o com diversas su-
Lúcifer logrado gestões para impedir o fruto da Redenção
entre os homens.
1427. Oh! infeliz de mim, quanto Concordaram que não era possível
me atormenta meu engano! Se o tentei no atingir a pessoa de Cristo, nem diminuir
deserto (Mt 4,1), dei-lhe ocasião para, com o imenso valor de seus merecimentos,
aquela vitória, deixar aos homens e ao destruir a eficácia dos Sacramentos, ou
mundo lições para me vencer. Se o persegui, falsificar e abolir a doutrina pregada por
dei oportunidade para o ensinamento de sua Cristo nosso Senhor. Não obstante, con-
humildade e paciência. Se convenci Judas vinha que, em contraposição às novas
para o vender, e aos judeus que com mortal causas, meios e favores que Deus orde-
ódio, o atormentassem e suspendessem na nara para a salvação dos homens, se in-
cruz, com estas diligências atraí minha ventassem ali novos modos de a impedir,
ruína, o remédio dos homens e cooperei para pervertendo os mortais com maiores ten-
que no mundo perrhanecesse aquela dou- tações e falácias.
trina que procurei aniquilar. Alguns demônios de maior astú-
Como pôde se humilhar tanto, cia e malícia, disseram: Verdade é que os
sendo Deus? Como suportou tanta homens têm agora nova doutrina e lei
maldade dos homens? Como eu mesmo muito eficiente; novos e eficazes sacra-
fui contribuir tanto para que a redenção mentos; novo modelo e mestre de vir-
humana fosse tão copiosa e admirável? tudes; poderosa intercessora e advogada
Oh! que força tão divina, a deste Homem nesta singular Mulher. Apesar de tudo, as
que assim me atormenta e enfraquece! inclinações e paixões da carne e natureza
E aquela minha inimiga, Mãe humana são sempre as mesmas, e as coisas
d'Ele, porque será tão poderosa contra deleitáveis e sensíveis não mudaram. Por
mim? Tal poder nunca houve em pura este meio, aumentando astúcias, des-
criatura, e sem dúvida é participação do truiremos, quanto pudermos, o que este
poder do Verbo eterno a quem Ela vestiu Deus-Homem fez por eles; far-lhes-emos
de carne. O Todo-poderoso sempre me fez violenta guerra, procurando atrai-los com
grande guerra por meio desta mulher tão sugestões, excitando suas paixões para
odiosa à minha altivez, desde que a co- que impetuosamente as sigam, sem aten-
nheci em seu sinal. der a outra coisa. A condição humana, tão
Já que é impossível aplacar minha limitada, quando embaraçada com um ob-
soberba indignação, não desisto de fazer jeto, não pode atender ao contrário.
398
Sexto Livro - Capítulo 23
Reflexões da Escritora
DOUTRINA QUE ME DEU A
1432. Não é possível referir os RAINHA DO CÉU.
ardis que, nesta ocasião, o dragão e seus
demônios forjaram contra a santa Igreja e
seus filhos, pretendendo tragar as águas Derrota dos demônios
deste Jordão (Job 40,18). Basta dizer que
o conciliábulo durou quase um ano após 1433. Minha filha, pela divina luz,
a morte de Cristo. Considere-se o estado recebeste grande compreensão do glo-
do mundo antes e depois de ter cruci ficado rioso triunfo que meu Filho e Senhor ob-
nosso Mestre que provou a verdade de sua teve na cruz contra os demônios, e como
fé com tantos milagres, graças e exemplo os deixou derrotados. Deves, porém, en-
de santos. tender que ignoras muito mais do que co-
Se tudo isto não basta para levar os nheceste sobre mistérios tào inefáveis.
mortais ao caminho da salvação, bem se Vivendo em carne mortal, não tem a
entende quanto Lúcifer conseguiu deles, criatura disposição para penetrá-los como
e quão grande é a sua raiva, que podemos são em si mesmos.
dizer com São João (Apoc 22,12): Ai da A divina Providência reserva seu
terra, para onde desce satanás cheio de in- total conhecimento para recompensa do
dignação e furor! santos do céu, em sua visão beatífica onde
400
Sexto Livro - Capitulo 23
justos que gozaram da pregação de meu a negarem. Aos que nela permanecem os
Filho santíssimo. Praticando-a perfei- induz a não estimá-la, ou que não se
tamente, ofereciam ao Altíssimo as aproveitem do valor do sangue e morte de
primícias da graça da Redenção. seu Redentor.
O mesmo sucederia agora, como A maior calamidade é que muitos
se vê com os perfeitos e santos, se todos católicos nào chegam a perceber este
os católicos aceitassem a graça e colabo- dano, nem cuidam de o remediar. Bem
rassem com ela, e não a deixassem vazia; poderiam presumir que chegou o tempo
se seguissem o caminho da cruz que da ameaça de meu Filho, quando falou às
Lúcifer tanto temeu, conforme deixas filhas de Jerusalém (Lc 23,28): as estéreis
escrito, seriam também temidos por ele. seriam felizes e muitos pediriam aos mon-
Com a passagem do tempo, porém, logo tes e colinas que caíssem sobre eles e os
começou a se esfriar a caridade, o fervor enterrassem, para não verem o incêndio
e a devoção em muitos fiéis. Esquecendo de tão feias culpas, na lenha seca dos fil-
o benefício da Redenção, foram aco- hos da perdição, sem fruto e sem nenhuma
lhendo as inclinações e desejos carnais. virtude.
Amaram a vaidade e cobiça e deixaram-se Neste mau século vives, minha
enganar e fascinar pelas mentirosas fabu- filha. Para não seres envolvida na per-
lações de Lúcifer. Com isto ofuscaram a dição de tantas almas, chora-a na amar-
glória do Senhor e se entregaram a seus gura do coração, e nunca esqueças os
mortais inimigos. Com esta feia ingra- mistérios da Encarnação, Paixão e Morte
tidão, o mundo chegou ao infelicíssimo de meu Filho santíssimo. Quero que os
estado atual. agradeças, pelos muitos que os
Os demônios ergueram sua so- desprezam. Asseguro-te que só esta lem-
berba contra Deus, presumindo apoderar- brança e meditação é de grande terror para
se de todos os filhos de Adão, pelo o inferno. Atonnenta e afasta os demônios,
esquecimento e descuido dos católicos. porque eles fogem e se separam dos que,
Sua ousadia chega a intentar a destruição com gratidão, lembram-se da vida e
de toda a Igreja, pervertendo a tantos para mistérios de meu Filho santíssimo.
402
CAPÍTULO 24
O GOLPE DE LANÇA NO LADO DE CRISTO. É DESCIDO
DA CRUZ E SEPULTADO. O QUE FEZ MARIA SANTÍSSIMA
ATE VOLTAR AO CENÁCULO.
Maria ao pé da cruz, recorre aos nos olhos. Nesta dolorosa solicitude, vol-
Anjos tou-se para os anjos que a assistiam e lhes
disse: Ministros do Altíssimo e meus ami-
1436. Diz São João Evangelista gos na tribulação; vós sabeis que não há
(Jo 19,25) que junto à cruz estava Maria dor semelhante à minha. Dizei-me, pois,
santíssima, Mãe de Jesus, acompanhada como descerei meu Amado da Cruz, e
por Maria Cléofas e Maria Madalena. como lhe darei honrosa sepultura, pois
Embora haja referido esta particulari- este cuidado compete a mim, sua Mãe.
dade antes que expirasse o Salvador, Dizei-me o que fazer, e ajudai-me com
deve-se entender que a invicta Rainha vossa diligência.
ali permaneceu também depois. Em pé,
apoiada à cruz, adorando seu Jesus
morto e à divindade sempre unida ao Resposta dos Anjos
sagrado corpo.
Mantinha-se a Senhora, constante 1437. Responderam-lhe os santos
e inalterável, em suas inefáveis virtudes, anjos: Rainha e Senhora nossa, dilate-se
por entre as impetuosas vagas de dor que vosso aflito coração para o que ainda lhe
penetravam até o âmago de seu castíssimo resta sofrer. O Senhor todo-poderoso
coração materno. Com sua eminente ciên- escondeu aos mortais sua glória e poder,
cia, conferia em seu íntimo os mistérios para se sujeitar à ímpia vontade dos cruéis
da redenção humana e a harmonia com malvados. Deseja consentir no cumpri-
que a sabedoria divina dispunha todos mento das leis estabelecidas pelos
aqueles sagrados acontecimentos. homens, uma das quais é não retirar os
O maior sentimento da Mãe de sentenciados da cruz, sem licença do juiz.
misericórdia era produzido pela desleal Prontos e capazes seríamos nós,
ingratidão que os homens, com tanto pre- para vos obedecer e defender nosso ver-
juízo para si próprios, mostrariam a bene- dadeiro Deus e Criador. Sua destra,
fício tão raro e digno de eterno porém, nos detém, porque sua vontade
agradecimento. é justificar plenamente sua causa. Der-
Preocupava-se também pensando ramará o sangue que lhe resta em bene-
em como daria sepultura ao sagrado corpo fício dos homens, para mais os obrigar
de seu Filho santíssimo, e quem o desceria a corresponder seu amor com que tão
da cruz, de onde não desprendia seus divi- copiosamente os redimiu (SI 129, 7). Se
403
Sexto Livro - Capitulo 24
dade de Deus imenso me concedestes que esta verdade estava provada com
criá-lo com meu leite, alimentá-lo e acom- milagres de sua vida e morte.
panhá-lo até a morte; agora, compete-me
como a Mãe, dar honorífica sepultura a
seu corpo, mas só posso desejá-lo, Pilatos permite sepultar o corpo de
partindo-se-me o coração por não con- Jesus
segui-lo. Suplico-vos, Deus meu, dispo-
nhais com vosso poder os meios para Eu 1443. Pilatos não se atreveu a re-
o executar. cusar o que José pedia e lhe deu licença
para dispor do corpo de Jesus, como qui-
sesse. Com esta permissão, José se retirou
Nicodemos e José de Arimatéia da casa de Pilatos e chamou Nicodemos
que também era justo, sábio nas letras
1442. A piedosa Mãe fez esta divinas e humanas, como se colige do seu
oração depois que Jesus foi alanceado. encontro noturno com Cristo, nosso Se-
Dai a pouco viu, encaminhando-se para o nhor, segundo narra São João (Jo 3,2).
Calvário, outro grupo trazendo escadas e Estes dois santos homens, cora-
outros instrumentos. Pôde supor que josamente, resolveram dar sepultura a Je-
viriam tirar da cruz seu inestimável sus crucificado. José preveniu o lençol
tesouro, mas como não tinha certeza, te- (Mt 27, 59) e sudário para o envolver, e
meu novamente a crueldade judaica e Nicodemos comprou cem libras de aro-
disse a São João: Meu filho, qual será a mas, com que os judeus costumavam
intenção desses que vêm com tantos ungir os defuntos de maior nobreza (Jo
preparativos? Respondeu o Apóstolo: 19,39).
Não temais, minha Senhora, é José e Ni- Com estes preparativos e outros
codemos com seus criados, amigos e ser- instrumentos, dirigiam-se ao Calvário,
vos de vosso Filho santíssimo, meu Se- acompanhados de servos e de algumas
nhor. pessoas pias e devotas, nas quais também
José era justo aos olhos do Altís- agia a graça do sangue que o divino Cru-
simo (Lc 23,50-51), estimado pela classe cificado por todos derramara.
nobre, membro do governo e do Con-
selho. Assim dá a entender o Evangelho,
dizendo que José não consentira nos José e Nicodemos chegam ao Calvário
planos e atos dos homicidas de Cristo, a
quem ele reconhecia por verdadeiro Mes- 1444. Aproximaram-se de Maria
sias. Ainda que até sua morte, José fôra santíssima que, traspassada de dor, con-
seu discípulo oculto, na ocasião dela tinuava ao pé da cruz, na companhia de
manifestou-se, sendo esta atitude efeito da São João e das Marias.
eficácia da Redenção. A vista daquela divina, mas pun-
Vencendo o temor, que antes sentia gente cena, renovou a dor de todos, com
da inveja dos judeus e sem se importar tanta força e amargura que, em vez de
com o poder romano, resolutamente se saudar a dolorosa Mãe, José, Nicodemos
dirigiu a Pilatos pedindo-lhe o corpo de e os demais se prostraram a seus pés ante
Jesus (Mc 15,43). Queria tirá-lo da cruz, a cruz, sem poder conter as lágrimas e sus-
dar-lhe honrosa sepultura, afirmando que piros. Nada diziam e só choravam convul-
era inocente, verdadeiro Filho de Deus: e sivamente, até que a invicta Rainha os er-
406
Sexto Livro - Capítulo 24
Cristo. Entre outros mistérios, ficaram rizou com esta maliciosa cautela e lhe con-
como que, aguardando se, por acaso, lhes cedeu os guardas que pediram (Mt 27,65)
tocaria a sorte de receber seu Criador hu- para vigiar o sepulcro. Os pérfidos judeus
manado defunto. Era o que lhe podiam pretendiam esconder o sucesso que
oferecer, quando os judeus não o quiseram temiam - como depois provaram - subor-
receber vivo e benfeitor seu. nando os guardas (Idem, 28,12) para di-
Muitos anjos ficaram guardando o zerem que Cristo nosso Senhor não res-
sepulcro, por ordem de sua Rainha e Sen- suscitara, mas os discípulos é que tinham
hora que ali deixava seu coração. Com o roubado seu corpo.
mesmo silêncio e ordem, as pessoas que Como, porém, não há conselho
tinham vindo do Calvário voltaram para que prevaleça contra Deus (Prov 21,30),
lá. A divina Mestra das virtudes aproxi- por este meio se divulgou e mais se con-
mou-se da santa cruz e a adorou com ex- firmou a Ressurreição.
celente veneração e culto. Seguiram-na
neste ato São João, José e todos os que DOUTRINA QUE ME DEU A
tinham assistido ao sepultamento. RAINHA DO CÉU MARIA
Já era tarde e o sol se deitara. Do SANTÍSSIMA.
Calvário, a grande Senhora recolheu-se à
casa do Cenáculo onde a acompanharam
os que estiveram no enterro. Deixando-a A chaga do coração de Cristo
com São João, as Marias e outras compa-
nheiras, os demais despediram-se com 1451. Minha filha, a ferida que
muitas lágrimas, pedindo-lhe que os meu Filho santíssimo recebeu com a
abençoasse. lançada no peito, só para Mim foi cruel
A humilíssima Senhora agrade- e dolorosa. Seus efeitos e mistérios,
ceu o obséquio que prestaram a seu porém, são suavíssimos para as almas
Filho santíssimo, e a Ela o favor que ti- santas capazes de saborear sua doçura.
nham feito. Despediu-os cheios de ou- A Mim muito afligiu, mas para aqueles
tros íntimos e ocultos benefícios e de a quem se ordenou este misterioso favor,
bênçãos de sua amável benignidade e constitui grande consolação e alívio nas
piedosa humildade. dores.
Para o entenderes e dele partici-
pares, deves considerar que, pelo arden-
Os judeus temem a ressurreição de tíssimo amor que meu Filho e Senhor teve
Cristo aos homens, quis aceitar além das chagas
dos pés e das mãos, também a do coração.
1450.' Confusos e perturbados pe- Sendo este o centro do amor, aquela porta
los fatos que iam sucedendo, os judeus seria a entrada para as almas santas nele
foram à Pilatos no sábado pela manhã (Mt penetrarem. Participariam desse amor em
27, 62), e lhe pediram mandasse guardar sua mesma fonte e ali encontrariam seu
o sepulcro. Porque Cristo, aquele sedutor conforto e refúgio.
- diziam - afirmara que depois de três dias Quero que, em teu desterro, pro-
ressuscitaria. cures só este abrigo e seja tua segura habi-
Poderia acontecer que os discípu- tação sobre a terra. Ali aprenderás os pre-
los roubassem o corpo e depois dissessem dicados e leis do amor para me imitar. En-
que havia ressuscitado. Pilatos contempo- tenderás como, em retribuição das ofensas
409
que recebes, deves devolver bênçãos a da cruz e seu enterro, e desde aquela hora
quem as fizer contra ti ou contra alguma ficaram renovados e esclarecidos nos
coisa tua, assim como Eufizquando fui mistérios da Redenção.
contristada com a ferida que meu Filho, E esta a ordem admirável da suave
já morto, recebeu no peito. Asseguro-te, e forte providência do Altíssimo: para re-
caríssima, que não podes fazer ato mais compensar umas criaturas, envia traba-
valioso para alcançar a graça do Altís- lhos a outras. Move à piedade quem pode
simo. Não apenas para ti, mas também beneficiar o necessitado, para que o ben-
para o ofensor, é poderosa a oração que se feitor, pela boa obra que pratica e pela
faz perdoando as injúrias. oração do pobre que a recebe, seja remu-
Comove-se o piedoso coração de nerado pela graça que não mereceria por
meu Filho santíssimo, quando vê que as outros caminhos.
criaturas o imitam no perdoar e orar por O Pai das misericórdias que in-
quem as ofende, e deste modo, participam spira e move com seus auxílios o ato que
da excelentíssima caridade que Ele prati- se faz, paga depois como se o devesse pre-
cou na cruz. Grava em teu coração esta miar por justiça. Correspondemos a suas
doutrina, para me imitar e seguir na vir- inspirações com nossa pequena coop-
tude que mais estimei. Através daquela eração no bem que, afinal, procede intei-
ferida do coração de Cristo, contempla teu ramente de sua mão (Tg 1,17).
Esposo e a Mim, e n'Ele ama tema e ver-
dadeiramente a teus ofensores e a todas as
criaturas. Deus exalta a inocência oprimida
1453. Considera também a retís-
Amáveis indústrias da providência sima ordem desta providência, na justiça
divina com que recompensa os agravos recebi-
dos com paciência. Meu santíssimo Filho
1452. Adverte também a morrera desprezado, desonrado e blasfe-
providência, tão atenta e pontual, com que mado pelos homens, e logo em seguida
o Altíssimo açode oportunamente às ne- ordenou o Altíssimo que fosse hon-
cessidades das criaturas que o chamam rosamente sepultado. Inspirou muitos a O
com verdadeira confiança. confessarem por verdadeiro Deus e Re-
Assim fez comigo, quando me en- dentor. Aclamaram-no santo, inocente e
contrei aflita e sem recursos para dar justo e na mesma hora em que acabaram
sepultura à meu Filho santíssimo, como o de o crucificar afrontosamente, foi
devia fazer. Para socorrer-me nessa neces- adorado e venerado com supremo culto
sidade, dispôs o Senhor, o coração de José, como Filho de Deus.
de Nicodemos e de outrosfiéis,com Os seus próprios inimigos senti-
piedosa caridade e afeto para acudirem a ram interionnente o horror e a vergonha
enterrá-lo. do pecado que cometeram em persegui-lo.
Foi tão grande a consolação que Ainda que nem todos aproveitaram essas
estes homens justos me proporcionaram graças, todas foram efeito da inocente
naquela ocasião que, por essa caridade e morte do Senhor. De minha parte, também
minha oração, o Altíssimo os encheu de concorria para elas com súplicas, para que
admiráveis influências de sua divindade. Ele fosse reconhecido e venerado pelos
Sentiram-nas durante a descida do corpo que o conheciam.
410
CAPÍTULO 25
MARIA DEPOIS D O SEPULTAMENTO D E ÇRISTO.
C O N S O L O U S Ã O PEDRO E OS OUTROS APÓSTOLOS.
VIU A A L M A D E SEU FILHO DESCER A O LIMBO D O S
SANTOS PAIS,
No cenáculo Respondeu a Rainha: Meu des-
canso e meu conforto será ver meu Filho
1454. A plenitude da sabedoria e Senhor ressuscitado. Vós, caríssimas,
que iluminava o entendimento de nossa tomai o que necessitardes, enquanto eu me
grande Rainha e senhora Maria santís- retirarei a sós com meu Filho.
sima, não admitia defeito e falta alguma.
Suas dores não foram motivo para deixar
de notar e atender a quanto era exigido Humildade de Maria e João
pelo tempo e ocasião. Com esta divina
providência, de tudo cuidava, praticando 1455. Logo se retirou, acompan-
sempre o mais santo e perfeito em todas hando-a São João. Estando ambos a sós,
as virtudes. a Senhora pôs-se de joelhos e disse ao
Como fica dito acima*1*, depois do apóstolo: Não deveis esquecer as palavras
enterro de Cristo, nosso bem, retirou-se à que, na cruz, nos falou meu Filho santís-
casa do Cenáculo. No aposento em que simo. Sua benignidade vos nomeou meu
foi celebrada a ceia, falou com São João, Filho e a Mim vossa Mãe. Vós, senhor,
as Marias e outras santas mulheres que sois sacerdote do Altíssimo; por esta
haviam seguido o Senhor desde a Galiléia. grande dignidade, é razão que vos obe-
Com profiinda humildade e lágrimas, deça em tudo o que tiver de fazer. Desde
agradeceu-lhes a perseverança com que, agora quero que me ordeneis, lembrando
até aquele momento, a tinham acompa- que sempre fui serva e toda minha alegria
nhado durante a Paixão de seu amantís- está em obedecer até a morte.
simo Filho. Enquanto dizia isto, a Rainha der-
Em nome d'Ele, prometia-lhes a ramava muitas lágrimas. Chorando tam-
recompensa da constante piedade e bém, lhe respondeu o Apóstolo: Senhora
afeição com que a tinham seguido, e se minha e Mãe de meu Redentor e Senhor,
oferecia por serva e amiga de todas. Elas sou eu que devo estar sujeito à vossa obe-
e São João reconheceram o grande favor diência, porque o nome de filho não diz
que estavam a receber e lhe beijaram a autoridade e sim obediência e submissão
mão pedindo-lhe a bênção. Suplicaram- à sua Mãe. Quem fez a mim sacerdote, vos
lhe também que descansasse um pouco e fez a vós sua Mãe, e esteve sujeito à vossa
comesse alguma coisa. vontade e obediência (Lc 2, 54), sendo
1 -n° 1449.
Sexto Livro - Capítulo 25
Criador de todo o universo. Razão será abstinência das Marias, mais fervorosas e
que eu o esteja e trabalhe, o quanto me for fortes no amor; atendeu à precisão das
possível, em corresponder dignamente ao mais fracas, orientou o Apóstolo a res-
ofício que me deu de servir-vos como peito de sua pessoa e em tudo agiu como
filho. Para tanto eu desejara ser mais anjo grande Mestra da perfeição e Senhora da
que homem terreno. graça. E, fez tudo isto, quando as águas da
Esta resposta do Apóstolo foi tribulação haviam inundado sua alma (Sl
muito acertada, mas não bastou para 68, 2).
vencer a humildade da Mãe das virtudes, Ficando a sós em seu retiro, soltou
que lhe replicou: Meu filho João, meu a impetuosa correnteza de seu sentimento
consolo será obedecer-vos como chefe, doloroso e mergulhou, interior e exterior-
pois o sois. Nesta vida sempre deverei ter mente, na amargura do coração, reno-
superior a quem submeter minha vontade vando a memória de todos os tormentos e
e parecer; para isto sois ministro do Altís- ignominiosa morte de seu Filho santís-
simo e, como filho, me deveis este consolo simo; dos mistérios de sua vida, pregação
em minha dorida soledade. e milagres; do valor infinito da redenção
Respondeu São João: Faça-se, mi- humana; da nova Igreja que deixava fun-
nha Mãe, vossa vontade, que nela está dada com tanta fonnosura e riqueza de
meu acerto. Sem mais replicar, a divina Sacramentos e tesouros de graça; da in-
Mãe lhe pediu licença para ficar sozinha, comparável felicidade de todo o gênero
meditando os mistérios de seu Filho san- humano, tão copiosa e gloriosamente
tíssimo. Pediu-lhe também que pre- redimido; da inestimável sorte dos pre-
venisse algum alimento para as mulheres destinados a quem seria aplicada; da tre-
que a acompanhavam e as consolasse. As menda infelicidade dos réprobos que, vo-
Marias, que desejavam continuar no je- luntariamente, se fariam indignos da
jum até ver o Senhor ressuscitado, permi- eterna glória que seu Filho santíssimo lhes
tisse cumprirem seu devoto propósito. deixara merecida.
414
Sexto Livro - Capítulo 25
416
Sexto Livro - Capitulo 25
417
CAPÍTULO 26
RESSURREIÇÃO DE CRISTO E APARIÇÃO À SUA MÃE
SANTÍSSIMA, ACOMPANHADO PELOS
SANTOS PAIS DO LIMBO.
O corpo de Cristo no sepulcro
1466. A alma santíssima de Cristo,
nosso Salvador, permaneceu no limbo
desde as três e meia da tarde de sexta-feira,
até depois das três da manhã do domingo
seguinte.
Nesta hora, voltou ao sepulcro,
como príncipe vencedor, acompanhado
pelos anjos e mais os santos que resgatou
daqueles cárceres inferiores. Eram os des-
pojos de sua vitória e prendas do seu
glorioso triunfo, enquanto deixava puni-
dos e derrotados seus rebeldes inimigos.
No sepulcro encontravam-se ou-
tros muitos anjos que o guardavam, ven-
erando o sagrado corpo unido à divindade.
Alguns deles, por ordem de sua Rainha e
Senhora, tinham recolhido as relíquias do
sangue derramado por seu Filho santís-
simo, os pedaços de carne que as feridas
desprenderam, os cabelos arrancados da
cabeça e da barba e tudo mais pertencente
ao adorno e perfeita integridade de sua hu- fetas, com ps outros santos. Confessaram
manidade santíssima. De tudo cuidou a de novo que, realmente, o Verbo hu-
Mãe da prudência e os anjos guardavam manado tomou sobre Si nossas enfermi-
estas relíquias, cada qual feliz com a parte dades e dores (Is 53, 4) e, sendo inocen-
que recolhera. tíssimo, pagou com excesso nossa dívida,
Antes de qualquer coisa, foi satisfazendo a justiça do eterno Pai pelo
mostrado aos santos Pais o corpo de seu que nós deveríamos pagar.
Redentor, chagado, ferido e desfigurado, Os primeiros pais Adão e Eva, vi-
como o deixara a crueldade dos judeus. ram o estrago produzido por sua desobe-
Adoraram-no todos os Patriarcas e Pro- diência, quanto custou sua reparação, a
419
Sexto Livro - Capítulo 26
imensa bondade e grande misericórdia do perto de sua pureza. A luz que continha e
Redentor. Os Patriarcas e Profetas viram irradiava excede à dos demais corpos
cumpridos seus vaticínios e suas esperan- gloriosos, como o dia à noite e mais do
ças nas promessas divinas. Experimen- que mil sois à uma estrela. Se numa só
tando na glória de suas almas o efeito da criatura fosse reunida toda a beleza que
copiosa redenção, louvaram o Onipotente existe, pareceria fealdade em sua com-
e Santo dos Santos que a realizara por paração. Em toda a criação não existe se-
modo tão maravilhoso de sua sabedoria. melhança para ela.
primeira parte . Aqui acrescento apenas Ouviu uma voz que lhe dizia íl
que, nesta vez a Rainha recebeu estes fa- 14, 10): Amiga, sobe mais alto
vores com maior abundância e excelência Em virtude desta voz, ficou toda
que em outras ocasiões. Agora havia pre- transformada e viu a Divindade intuitiví
cedido a Paixão de seu Filho santíssimo e e claramente, onde encontrou o repouso e
os méritos que a divina Mãe adquirira. a recompensa, ainda que de passagem de
Segundo a multidão de suas dores, corres- todos seus sofrimentos e dores. L
pondia a consolação que lhe comunicava Aqui é forçoso silenciar. Absolu-
seu Filho onipotente. tamente faltam palavras e talento para
dizer o que se passou com Maria santís-
sima nesta visão beatífica, a mais sublime
Maria recebe a visão de Cristo e da das que, até então, tinha recebido. Cele-
divindade bremos este dia com admiração e louvor
com amor e ações de graças, pelo que Ela
1471. Estando Maria santíssima nos mereceu. Felicitemo-la pela sua exal-
assim preparada, entrou Cristo, nosso Sal- tação e alegria.
vador, ressuscitado e glorioso, acompa-
nhado de todos os Santos e Patriarcas.
Prostrou-se em terra a sempre hu- O sofrimento, medida do gozo
milde Rainha e adorou seu Filho santís-
simo. Jesus levantou-a e a aproximou a Si. 1472. A divina Princesa esteve al-
A este contato, maior do que aquele que gumas horas gozando do ser divino com seu
Madalena desejava ter com as chagas da Filho santíssimo, participando de sua glória
humanidade de Cristo (Jo 20,17), recebeu como participara de seus tonnentos. Em
a Virgem Mãe extraordinário favor que só seguida, foi descendo da visào, pelas mesmas
Ela mereceu, por ser isenta de pecado. etapas pelas quais subira. Porfim,quedou re-
Embora não tenha sido o maior com que clinada sobre o braço esquerdo da humani-
foi agraciada nesta ocasião, não teria po- dade santíssima, e por outro modo, agraciada
dido recebê-lo, se não fosse confortada pela destra de sua divindade (Cânt 2,6).
pelos anjos e pelo Senhor, a fim de que Teve afetuosíssimos colóquios com
suas potências não desfalecessem. o Filho, sobre os altíssimos mistérios de sua
Foi o seguinte: o corpo glorioso do Paixão e de sua glória. Nestas conferências,
Filho encerrou em Si o de sua Mãe purís- inebriou-se do vinho do amor que bebia,
sima, penetrando-se com Ela ou pene- sem medida, em sua própria fonte.
trando-o consigo; era como se um globo Tudo quanto uma pura criatura
de cristal contivesse o sol, enchendo-se de pode receber, foi dado a Maria puríssima
seus esplendores e da beleza de sua luz. nesta ocasião. A nosso modo de entender,
Assim ficou o corpo de Maria san- quis a equidade divina reparar o agravo -
tíssima unido ao de seu Filho por meio digo assim por não poder me explicar me-
daquele diviníssimo contato. Este foi lhor - feito à uma criatura tão pura e sem
como a porta para entrar ao conhecimento a mancha do pecado, por haver padecido
da glória da alma e do corpo santíssimo as dores e tonnentos da Paixão que, como
acima disse muitas vezes( }, eram os mes-
do Senhor. Pelos degraus destes inefáveis mos
dons, o espírito da grande Senhora foi se Nestesofridos por Cristo, nosso Salvador.
mistério, o gozo correspondeu as
elevando ao conhecimento de ocultíssi- penas que a divina Mãe sofrerá.
mos mistérios.
5 - I o Parte, n° 623. 6-n° 1236. 1264. 1274, 1278, 134 L
Sexto Livro - Capítulo 26
que poderiam conseguir as forças e a recompensa dos Santos que, por amor
diligências das criaturas, para afastar de si d'Ele fizeram tão heróicas e rnagní-ficas
tudo quanto as pode prejudicar ou alterar obras, e padeceram tormentos e mar-tírios
Na subtileza, cresce o domínio so- tão cruéis, como se conhece na santa
bre tudo quanto lhe possa resistir e adquire Igreja. Se isto sucede aos santos, puros ho-
nova virtude sobre o que quiser penetrar. mens, sujeitos a culpas e imperfeições que
No dote da agilidade, qualquer ato retardam o mérito, considera, com a máxi-
meritório confere maior capacidade de se ma compreensão que puderes, qual será a
movimentar do que possuem as aves, o glória de meu Filho Santíssimo. Sentirás
vento e todas as criaturas ativas, como o fogo quão limitada é a capacidade humana, ain-
e demais elementos, quando atraídos ao seu da mais na vida mortal, para dignamente
centro natural. Pelo aumento que se merece compreender este mistério e fazer adequa-
nestes dotes corporais, entenderás o que re- do conceito de tão imensa grandeza.
cebem os dotes da alma, aos quais corres- A alma santíssima de meu Senhor
pondem e dos quais derivam. estava unida substancialmente à divindade
Qualquer mérito confere à visão em sua divina pessoa. Pela união hi-
beatífica maior claridade e conhecimento postática, era conseqüente que lhe fosse
dos atributos e perfeições divinas, do que comunicado o infinito oceano da própria
quanto alcançaram, nesta vida mortal, to- divindade, beatificando-a com o mesmo ser
dos os doutores e sábios que a Igreja tem de Deus, por inefável modo. Esta glória que
tido. Aumenta-se também o dote da com- gozou, desde o momento de sua concepção
preensão ou posse do objeto divino. A em meu seio, não lhe foi dada por mérito,
posse e segurança com que abraça aquele mas era conseqüência da união hipostática.
sumo e infinito Bem, comunica ao justo A glória de seu corpo puríssimo,
nova segurança e descanso mais estimável porém, meu Filho a mereceu por tudo o que
do que se possuísse tudo quanto é pre- fez durante os trinta e três anos de sua vida
cioso, rico, desejável e apetecível entre as mortal: nascendo em pobreza, vivendo em
criaturas, mesmo que tivesse tudo sem trabalhos, amando como viador, praticando
temor de o perder Ao dote da fruição, o todas as virtudes, pregando, ensinando, so-
terceiro da alma, pelo amor com que o frendo, merecendo, redimindo a linhagem
justo pratica aquele pequenino ato, se con- humana, fundando a Igreja e tudo o mais
cede no céu, por recompensa, graus de que a fé católica ensina. Esta glória de seu
amor fruitivo tão excelentes, que jamais corpo corresponde à de sua alma, e tudo é
poderiam ser medidos pelo maior afeto inefável, de imensa grandeza e está reser-
que os homens possam ter na vida ao que vado para se manifestar na vida eterna. Na
é visível. E, o gozo que dessa fruição re- devida proporção, e na correspondência
sulta, não tem comparação com coisa al- com meu Filho e Senhor, o poder do Altís-
guma da vida mortal. simo operou em meu ser de pura criatura,
magníficas obras e com isso esqueci logo os
sofrimentos e dores da Paixão. O mesmo
A glória dos Santos, de Cristo e de Maria aconteceu aos Pais do limbo e acontece com
os demais santos, quando recebem a recom-
1476. Sobe, agora minha filha, em pensa na glória. Esqueci a amargura e tribu-
tua ponderação. Destes prêmios tão ad- lação que sofri, porque o sumo gozo desfez
miráveis, correspondentes a um ato reali- a pena. Nunca, porém, perdi de vista o que
zado por amor de Deus, considera qual será meu Filho padeceu pelo gênero humano.
CAPÍTULO 27
ALGUMAS APARIÇÕES DE CRISTO RESSUSCITADO ÀS
MARIAS E AOS APÓSTOLOS. ATITUDE DE MARIA
SANTÍSSIMA.
Aparição às mulheres ria Madalena e Maria José observaram
onde o corpo de Jesus ficara sepultado.
1477. Depois que nosso Salvador,
Com esta advertência, no sábado à tarde
glorioso e ressuscitado, visitou e encheu
saíram do cenáculo com outras santas
de glória sua Mãe santíssima, como mulheres, para irem à cidade comprar
amoroso pai e pastor foi reunir as ovelhas
mais ungüentos aromáticos. No dia
de seu rebanho que o escândalo da Paixão
seguinte, de madrugada, voltariam ao se-
havia dispersado. Sempre o acompanha- pulcro para visitar, adorar e completar as
vam os santos Pais e demais justos que unções do sagrado corpo de seu Mestre.
libertara do limbo e do purgatório, embora No domingo, madrugaram para
não fossem visíveis. Somente nossa cumprir seu piedoso propósito, ignorando
grande Rainha os viu, conheceu e com que o sepulcro estava selado e vigiado por
eles falou, até a Ascensão de seu Filhoordem de Pilatos (Mt 32, 65). No
santíssimo. caminho, objetavam apenas a dificuldade
Quando Jesus não aparecia a ou-de encontrar alguém para lhes arredar a
tros, estava sempre com sua querida Mãegrande pedra do sepulcro que o fechava,
no Cenáculo, de onde a divina Senhora conforme tinham visto. O amor, porém,
não saiu durante aqueles quarenta dias animava-as a vencer este obstáculo, em-
bora sem saber de que modo.
contínuos. Ali gozava da visão do Reden-
tor do mundo e do seu séquito de Profetas Saíram do cenáculo ainda noite,
e Santos. mas ao chegar ao sepulcro já amanhecera
e despontara o sol, porque aquele dia adi-
Para se manifestar aos apóstolos,
Jesus começou pelas mulheres, não por antou as três horas que se escureceram na
morte do Salvador. Graças a este milagre,
serem mais fracas, e sim mais fortes na fé
concordam as versões dos evangelistas
e esperança de sua Ressurreição, pelo que
São Marcos (16,2) e São João (20,1): um
mereceram ser as primeiras na graça de o
ver ressuscitado. diz que as Marias vieram ao sepulcro
ainda nas trevas, e o outro que já nascera
o sol. Tudo é verdade: saíram muito cedo,
As mulheres vão ao sepulcro antes do amanhecer, e nascendo o sol
muito antes da hora nonnal, alcançou-as
1478. O evangelista Sào Marcos quando chegavam ao sepulcro, embora
(Mc 16,1) anotou a atenção com que Ma- não tivessem parado no caminho.
Sexto Livro - Capítulo 27
tificar-secom os próprios olhos e partiram rando-se a seus divinos pés quis abraçá-
a toda pressa para o monumento (Jo 20, los e beijá-los como acostumada a este ob-
3). Atrás deles, para lá voltaram também séquio. O Senhor, porém, deteve-a
as Marias. São João chegou primeiro, mas dizendo-lhe: Não me toques, porque ainda
não entrou. Da porta viu os sudários pos- não subi a meu Pai para onde irei. Volta e
tos à parte (Idem, 5) e esperou que São diz a meus innãos que vou para meu Pai
Pedro chegasse. Este entrou primeiro, São e vosso Pai.
João atrás e verificaram que o corpo não
estava no sepulcro (Idem, 8). Imediatamente partiu Madalena,
São João diz que então acreditou e
teve certeza do que começara a crer
quando vira a transformação da Rainha do
céu, comoficadito no capítulo passado*1 .
Voltaram os dois apóstolos, para contar
aos outros o que, admirados, tinham visto
no sepulcro.
As Marias lá permaneceram, fora
do monumento, comentando com admi-
ração tudo o que estava acontecendo. A
Madalena, mais ardente e chorosa, tornou
a entrar para examinar o sepulcro. Ainda
que os apóstolos não viram os anjos, viu-
os Madalena, a quem perguntaram (Jo 20,
13): Mulher, por que choras? Respondeu
ela: Porque levaram meu Senhor e não sei
onde o puseram.
. Com esta resposta, saiu para o
horto onde se encontrava o sepulcro. O
Senhor lhe apareceu, mas não o tendo re-
conhecido, ela julgou que fosse o
hortelão. O Salvador também lhe pergun-
tou (Idem, 15): Mulher, porque choras?
A quem procuras? Não o reconhecendo,
Madalena sem atender a mais nada além cheia de consolação e júbilo, e a pouca
do seu amor, respondeu como se falasse distância alcançou as outras Marias.
ao hortelão: Senhor, se o tirastes, dizei-me Acabando de lhes referir como tinha visto
onde o pusestes que eu irei buscá-lo. En- Jesus ressuscitado e estando maravi-
tão, replicou o amoroso Mestre: Maria! lhadas e emocionadas pela alegria, Ele
deixando-se conhecer pela voz. apareceu a todas juntas, saudando-as:
Deus vos salve! - Reconhecendo-o, diz o
evangelista São Mateus (28, 9) -
Aparição de Jesus à Madalena abraçaram seus sagrados pés e o ado-
raram.
1482. Quando Madalena conhe- O Senhor mandou-lhes novamente
ceu que era Jesus, inflamou-se toda em participar aos apóstolos o que elas tinham
amor e gozo, dizendo: Meu Mestre - e ati- visto e lhes dissessem fossem à Galiléia
I - n° 1469.
Sexto Livro - Capítulo 27
morte e não sabemos o que aconteceu. Al- rando o calor da caridade e a luz da fé que
gumas mulheres dos nossos nos amedron- se lhes havia eclipsado.
taram. Foram bem cedo, ao sepulcro, não Quando já se aproximava de
encontraram o corpo e afirmaram ter visto Emaús, o divino Mestre deu a entender
anjos que lhes disseram que já havia res- que prosseguia viagem. Eles, porém, in-
suscitado. Alguns de nossos companhei- sistiram que ficasse, pois já era tarde.
ros foram imediatamente ao sepulcro e vi- Aceitou o Senhor, e convidado pelos
ram que era verdade o que as mulheres discípulos, reclinaram-se para cear juntos,
contaram. Quanto a nós vamos para conforme o costume dos judeus. O Senhor
Emaús e esperar aí o resultado destas tomou o pão, e como também costumava,
novidades. abençoou-o, partiu-o e com o pão bento
Respondeu-lhes o Senhor: Na ver- lhes deu o conhecimento infalível de que
dade, sois estultos e tardos de coração. era seu Redentor e Mestre.
Não entendeis que convinha o Cristo
padecer todas essas penas e morte afron-
tosa para entrar em sua glória? Incredulidade de Tome
1486. Reconheceram-no porque
Jesus explica as Escrituras lhes abriu os olhos da alma, mas nesse mo-
mento desapareceu aos do corpo e não o
1485. Prosseguindo, o divino Mes- viram mais. Encantados e cheios de gozo,
tre lhes explicou os mistérios de sua vida começaram a comentar o fogo da caridade
e morte para a redenção humana. que sentiam no caminho, quando o Mestre
Começou pela figura do cordeiro que lhes explicava as escrituras.
Moisés mandou sacrificar comer e com Sem mais demora voltaram a
seu sangue marcar os umbrais das portas Jerusalém (Lc 24, 33), já de noite. En-
(Ex 12, 7); ensinou o que simbolizava a traram na casa onde os outros apóstolos
morte do sumo sacerdote Aarão (Nm 20, se haviam reunido por medo dos judeus,
29), a morte de Sansão (Juiz 16,30) pelos e os encontraram falando sobre as
amores de sua esposa Dalila, e muitos sal- notícias da ressurreição do Salvador, e
mos de David (SI 21,17-19; 15,10) nos como já aparecera a São Pedro. Os dois
quais profetizou a conjuração, a morte, o discípulos acrescentaram a narração de
sorteio de suas vestes, e que seu corpo não quanto lhes sucedera no caminho, e de
sofreria corrupção. como O tinham reconhecido ao partir o
Continuou com o que disse a Sa- pão, em Emaús.
bedoria (Sb 2, 20), e mais claramente Tomé estava presente. Apesar de
Isaias (53,2) e Jeremias (11,19) sobre sua ouvir os dois discípulos e mais São Pedro
paixão: que pareceria um leproso desfigu- que confirmava o que diziam, assegu-
rado, homem de dores; que seria levado rando que também ele vira o Mestre res-
ao matadouro como ovelha, sem abrir a suscitado, Tomé permaneceu em sua tei-
boca. Zacarias (13,6), que o viu transpas- mosa dúvida, sem dar crédito ao teste-
sado de muitas feridas, e outras passagens munho de três discípulos, fora as mu-
dos Profetas nas quais, claramente, são lheres.
anunciados os mistérios de sua vida e Com certo despeito, fruto de sua
morte. Com a eficácia deste raciocínio, os incredulidade, saiu deixando a companhia
discípulos foram, aos poucos, recupe- dos outros. Daí a pouco, estando fechadas
Sexto Livro - Capitulo 27
santíssima tudo o que lhes havia acon- disse-lhes muitas outras palavras de ins-
tecido, conforme faziam desde a primeira trução, advertência, correção e doutrina,
apa-rição. preparando-os para o que lhes restava tra-
balhar em a nova Igreja.
Maria, os apóstolos e São Tomé
Aparição no mar de Tiberíades
1489. Os apóstolos ainda não co-
nheciam a grande sabedoria da Rainha do 1490. Outras aparições e sinais
céu, muito menos, a notícia que tinha de foram realizados por nosso Salvador,
tudo o que a eles acontecia, e dos atos de como supõe o evangelista São João (20,
seu Filho santíssimo. Por isto, contavam- 30). Foram escritas apenas as suficientes
lhe tudo o que ia sucedendo e Ela os ouvia para a fé em sua Ressurreição.
com suma prudência e mansidão de Mãe Não obstante esta declaração, o
e Rainha. mesmo Evangelista (21, 1) logo passa a
Depois da primeira aparição, con- narrar a aparição de Jesus, às margens do
taram-lhe alguns dos apóstolos a obsti- mar de Tiberíades, a São Pedro, Tomé,
nação de Tomé; que não queria dar crédito Natanael, aos filhos de Zebedeu e mais
ao testemunho de todos que tinham visto dois discípulos. Por sertão misteriosa, eu
o Mestre ressuscitado; que durante não a quis omitir neste capítulo.
aqueles oito dias em que permanecia em Depois do que aconteceu em
sua incredulidade alguns dos apóstolos se Jerusalém, os apóstolos foram para a
irritaram contra ele. Iam à grande Senhora Galiléia, confonne o Senhor lhes orde-
e o acusavam de teimoso, agarrado as nara, prometendo que ali o viriam. Encon-
próprias idéias, homem grosseiro e trando-se sete, apóstolos e discípulos,
bronco. perto daquele mar, disse-lhes São Pedro
A piedosa Princesa ouvia-os com que, para ter com o que passar, iria pescar,
serenidade, e vendo que crescia o des- o que sabia fazer por ofício. Os outros o
gosto dos apóstolos, ainda imperfeitos, acompanharam e passaram a noite
falou aos mais contrariados e os acalmou. lançando as redes, mas sem apanhar um
Disse-lhes que os juízos do Senhor eram só peixe.
impenetráveis e que da incredulidade de Pela manhã, apareceu Jesus na
Tomé, tiraria grandes bens para outros e praia, sem se dar a conhecer. A barca em
glória para Si; que esperassem e não se que pescavam se aproximava, e o Senhor
perturbassem tão depressa. perguntou-lhes: Tendes alguma coisa para
Fez a divina Senhora fervorosís- comer? Responderam eles: Nada. Repli-
sima oração por Tomé, e por causa dela o cou o Senhor: Lançai a rede para a direita
Senhor apressou o remédio do incrédulo da barca e encontrareis. Assim o fizeram,
apóstolo. Logo que ele se convenceu, os e a rede encheu-se de peixes, de tal modo,
outros foram participar à sua Mestra e que não a conseguiam recolher.
Senhora que os confirmou na fé, ad- Este milagre fez São João reco-
moestando-os e corrigindo-os. Ordenou- nhecer Cristo nosso Senhor. Chegando-se
lhes que, com Ela, agradecessem ao Altís- a Pedro, disse: E o Senhor quem nos fala
simo por aquele favor, e que nas tentações da margem. São Pedro, a esta palavra,
mostrassem firmeza, pois todos estavam também o reconheceu, e inflamado em
sujeitos ao perigo de cair. Com suavidade, seus costumeiros fervores, vestiu de-
Scxlo Livro - Capítulo 27
pressa a túnica, pois estava sem ela, e se para tomá-lo capaz da suprema digni uau
lançou ao mar andando sobre as águas, até e só ele lhe bastara para dignamente d*
onde se encontrava o Mestre da vida, en- sempenhá-la. e~
quanto os outros foram se aproximando
na barca.
Maria em retiro
O primado de Pedro 1492. Prosseguindo, o Senhor im-
pôs a Pedro o peso do ofício que lhe dava
1491. Saltaram em terra e viram dizendo-lhe (Jo 21, 18): Em verdade te
que o Salvador já lhes preparara a re- asseguro que, quando fores velho, nào te
feição. Havia fogo e sobre as brasas um cingirás como quando moço, nem irás
pão e um peixe. Jesus, porém, mandou- onde quiseres, porque outro te cingirá e te
lhes que trouxessem dos que haviam pes- levará onde não quiseres. - Entendeu São
cado. Foi São Pedro e contou cento e cin- Pedro que o Senhor o prevenia da morte
qüenta e três peixes. E, apesar de serem de cruz, com que o seguiria e imitaria.
tantos não se rasgou a rede. Mandou-lhes Como amava tanto São João, de-
o Senhor que comessem. Ainda que o Sen- sejava saber o que seria dele, e perguntou
hor se mostrava tão íntimo e afável, nen- ao Senhor: Que determinas fazer deste
hum deles se atrevia a lhe perguntar quem que amas tanto? Respondeu-lhe Jesus:
era, pois o milagre e a majestade de sua Que te importa sabê-lo? Se quero que ele
presença lhes infundia grande temor fique assim até eu voltar ao mundo, isto é
reverenciai. comigo. Tu, segue-me e nào te preocupes
Jesus repartiu entre eles o pão e os com o que Eu quero fazer dele. Por causa
peixes, e quando acabaram de comer, destas palavras, nasceu entre os apóstolos
dirigiu-se a São Pedro perguntando-lhe: o boato de que São João não morreria, mas
Simão, filho de João, amas-me mais que o mesmo Evangelista adverte que Cristo
estes? Respondeu São Pedro: Sim, Se- tal não afirmou, como consta de suas
nhor, Tu sabes que te amo. Replicou o palavras. Parece que ocultou, intencional-
Senhor: Apascenta meus cordeiros. Per- mente, o gênero de morte do Evangelista,
guntou-lhe outra vez: Simão, filho de reservando para Si o segredo.
João, amas-me? São Pedro tomou a res- De todos estes mistérios e
ponder: Senhor, tu sabes que te amo. Pela aparições, recebeu Maria clara inteligên-
terceira vez, Jesus perguntou: Simão, cia, mediante a visão de que muitas vezes
filho de João, amas-me? Nesta terceira tenho falado. Arquivo das obras do Se-
vez São Pedro se entristeceu e respondeu: nhor e depositária de seus mistérios na
Senhor, tu sabes todas as coisas, e sabes Igreja, guardava-os para meditá-los em
que te amo. seu prudente e castíssimo coração. Os
Respondeu-lhe Cristo nosso Se- apóstolos, em particular seu novo filho
nhor: apascenta minhas ovelhas. Por este São João, sempre a informavam de quanto
diálogo, constituiu São Pedro cabeça e ia sucedendo. A grande Senhora con-
chefe de sua Igreja única e universal, tinuava em seu retiro contínuo durante os
dando-lhe a suprema autoridade de quarenta dias depois da Ressurreição. Ah
vigário seu sobre todos os homens. Para gozava da visão de seu Filho santíssimo,
isto o examinou tantas vezes no amor, dos santos e dos anjos. Estes cantavam ao
como se este amor fosse a condição única Senhor os hinos e louvores que a amorosa
432
Sexto Livro - Capítulo 27
bém por me ter acompanhado em toda a cai tão rapidamente ao seu centro; nem
Paixão, com ardentíssimo coração. O o mar, corre com tanto ímpeto, como a
mesmo fizeram as outras Marias e por isto bondade do Altíssimo e sua graça se
mereceram ser as primeiras no gozo da comunicam às almas, quando elas se
Ressurreição. Depois delas, foi a hu- dispõem e removem o óbice da culpa
mildade e dor com que São Pedro chorou que detém, como à força, o amor divino.
sua negação (Mt 26, 75). Inclinou-se o Esta verdade é uma das que mais admi-
Senhor a consolá-lo; mandou-lhe espe- ração causam aos bem-aventurados que
cialmente as Marias para lhe anunciarem no céu a conhecem.
a Ressurreição (Mc 16, 7), e logo o visi- Louva-o por esta infinita bondade,
tou, confirmou na fé e o encheu de gozo e também porque dos males tira
e dons de sua graça. grandiosos bens. Assim fez com a in-
Aos dois discípulos de Emaús, credulidade dos Apóstolos, da qual se
ainda que duvidavam, apareceu antes que serviu para manifestar o atributo de sua
aos outros, porque falavam sobre sua misericórdia com eles. Para todos tornou
morte e se compadeciam dela. Asseguro- mais crível sua santa Ressurreição e mais
te, minha filha, que nenhum ato praticado evidente o perdão dos pecados. Perdoou
pelos homens, com amor e reta intenção, aos apóstolos e, como esquecendo suas
fica sem grande recompensa paga à vista. culpas, apareceu-lhes para buscá-los.
Nem o fogo, em sua grande atividade, Condescendente como verdadeiro pai, es-
acende tão depressa e estopa bem dis- clareceu-os e os instruiu conforme sua ne-
posta; nem a pedra, tirando-lhe o entrave, cessidade e pouca fé.
• mniinu,
434
CAPÍTULO 28
MARIA, DEPOIS DA RESSURREIÇÃO DO SENHOR. MÃE E
RAINHA DA IGREJA, APARIÇÕES DE CRISTO POR
OCASIÃO DA ASCENSÃO.
Insatisfação da Escritora História em inúmeros livros. Pelo que eu
disser, se poderá perceber um pouco de
1495. Em todo o decurso desta tão divinos sacramentos, para a glória
divina História, a grandeza e abundância desta grande Rainha e Senhora.
dos mistérios me tornou pobre em palavras.
Na divina luz, muito é apresentado
ao entendimento e pouco o que as razões Maria e os Santos
conseguem traduzir. Esta desproporção
e carência, sempre me produziu grande 1496. Já ficou dito acima, no
constrangimento, porque a inteligência é começo do capítulo passado , que du-
fecunda e a palavra estéril; o parto das rante os quarenta dias depois da Res-
razões não correspondem à gestação do surreição, Jesus permanecia no Cená-
conceito. Fico sempre com receio dos ter- culo em companhia de sua Mãe santís-
mos que emprego e muito insatisfeita com sima. Quando se ausentava para fazer
o que digo, porque é insuficiente, e não algumas aparições, voltava logo para
posso evitar essa falta preenchendo a junto d'Ela.
distância entre o falar e o entender. Qualquer juízo sensato com-
Encontro-me agora nestas con- preenderá que, estando juntos os dois
dições, para explicar o que me foi dado a Senhores do mundo, gastariam aquele
conhecer dos ocultos mistérios e altíssi- tempo em obras divinas e admiráveis
mos sacramentos realizados com Maria que ultrapassam qualquer humano pen-
santíssima, durante os quarenta dias, entre samento. O que destes mistérios me foi
a Ressurreição e ascensão ao céu de seu dado a entender, é inefável. Às vezes
Filho e nosso Redentor. mantinham diálogos de incomparável
Depois da Paixão e Ressurreição, suavidade e sabedoria.
o estado em que o poder divino a colocou Para a Mãe amantíssima, produ-
foi novo e mais elevado. As obras foram ziam uma espécie de gozo que superava
mais ocultas, os favores proporcionados qualquer júbilo e consolo imaginável, em-
à sua eminentíssima santidade e à vontade bora fosse inferior à visão beatífica.
de quem fazia, pois esta vontade era á re- Noutras vezes, a grande Rainha, com os
gra por onde os media. Patriarcas e Santos glorificados que ali
Se fosse escrever tudo o que me foi estavam, ocupavam-se em louvar e enal-
manifestado, seria preciso estender esta tecer ao Altíssimo.
1 - n° 1477.
Sexto Livro - Capítulo 28
436
Sexto Livro Capítulo 28
que orava por elas, aplicando-lhes como sima no Cenáculo, num dos exercícios que
satisfação os infinitos méritos de seu descrevi, apareceu o Pai eterno e o
Filho. Espírito Santo em trono de inefável
Com este socorro se lhes abreviava resplendor, sobre os coros de anjos e san-
e aliviava a pena de não ver ao Senhor, tos que ali assistiam e outros espíritos ce-
pois a pena dos sentidos não a sofriam! lestes que vinham acompanhando as divi-
Logo que eram beatificadas, reuniam-se nas Pessoas. A do Verbo humanado subiu
ao coro dos santos, e em nome de cada ao trono, com as outras duas, e a sempre
uma, fazia a Rainha altíssimos cânticos ao humilde Mãe do Altíssimo prostrou-se em
Senhor. terra, retirada a um canto, de onde adorou,
com suma reverência, à santíssima Trin-
dade e n'Ela, a seu Filho humanado.
Súplicas de Maria pelos fiéis O eterno Pai ordenou a dois dos
supremos anjos que chamassem Maria
1499. No gozo inefável destes exer- santíssima. Obedeceram imediatamente
cícios e alegrias, a Mãe piedosíssima não e, com suavíssima voz, lhe comunicaram
esquecia a miséria e necessidade dos filhos o desejo do Senhor. Ergueu-se do pó, com
de Eva, exilados da glória. Mãe de mise- profunda humildade e veneração, e acom-
ricórdia, voltando o olhar ao estado dos mor-panhada pelos anjos chegou aos pés do
tais, fez por todos ferventíssima oração. trono, onde novamente se humilhou.
Pediu ao eterno Pai, estendesse a Disse-lhe o eterno Pai: Amiga,
nova lei da graça por todo o mundo, e mul- sobe mais alto (Lc 14,10). Operando estas
tiplicasse os filhos da Igreja; que a defen- palavras o que significavam, foi pelo
desse e amparasse, e que o valor da Re- poder divino elevada e colocada no trono
denção fosse por todos aproveitado. da real Majestade, com as três divinas Pes-
Ainda que submetia o efeito desta súplica soas.
aos eternos decretos da vontade e sabe- Aos santos produziu nova admi-
doria divina, quanto ao afeto, a amorosa ração, ver uma pura criatura elevada à tão
Mãe desejava para todos a vida eterna, excelsa dignidade. Compreendendo a equi-
fruto da Redenção. dade e santidade das obras do Altíssimo,
Além desta súplica em geral, rezou deram-lhe nova glória e louvor, confes-
em particular pelos apóstolos, especial- sando-o Grande, Justo, Poderoso, Santo e
mente por São João e São Pedro; o admirável em todos os seus conselhos.
primeiro, por lhe ser filho adotivo e o
segundo, por ser chefe da Igreja. Pediu
também por Madalena, pelas Marias e por Maria, Mãe e Mestra da Igreja
todos osfiéisque então pertenciam à
Igreja e pela exaltação da fé e do nome de 1501, Disse o Pai a Maria santís-
seu santíssimo Filho Jesus. sima: Minha filha, a Igreja que meu
Unigênito fundou, a nova lei da graça que
ensinou ao mundo e o povo que remiu,
Maria no trono da Santíssima tudo entrego e recomendo a Ti.
Trindade Acrescentou o Espírito Santo:
Esposa minha, escolhida entre todas as
1500. Poucos dias antes da Ascen- criaturas, comunico-te minha sabedoria e
são do Senhor, estando sua Mãe santís- graça, para serem depositados em teu co-
Sexto Livro - Capítulo 28
mim recebestes, aos que crerem, batizai dos, e com aprazível semblante de
em nome do Pai, do Filho (que sou Eu) e amoroso pai, disse-lhes:
do Espírito Santo (Mt 28,16-19). Os que
crerem e forem batizados serào salvos,
mas os que não crerem serão condenados Últimas recomendações de Jesus
(Mc 16,16).
Ensinai aos crentes a observarem 1505. Meus amadosfilhos,Eu
tudo o que contém minha santa lei. Para subo para o Pai de cujo seio desci para
confirmá-la, farão grandes sinais e salvar e redimir os homens. Por amparo,
prodígios (Mc 16,17-18): expulsarão os mãe, consoladora e advogada, vos deixo
demônios de onde estiverem; falarão lín- em meu lugar a minha Mãe, a quem deveis
guas desconhecidas; curarão as picadas de ouvir e obedecer em tudo. Assim como
serpentes e se tomarem mortal veneno, tenho dito que, quem vê a Mim vê a meu
não lhes fará mal; darão saúde aos enfer- Pai (Jo 14, 9), e quem me conhece, co-
mos impondo as mãos sobre eles. nhecerá a Ele também; agora vos asseguro
Estas foram as maravilhas que que, quem conhecer minha Màe, conhe-
cerá a Mim; quem ouve a Ela, ouve a Mim;
Cristo, nosso Salvador, prometeu para fun-
dar sua Igreja com a pregação do Evan- quem lhe obedece, obedecerá a Mim;
ofender-me-á quem a Ela ofender, e me
gelho. Todas se realizaram com os apóstolos
honrará, quem a Ela honrar. Todos vós, e
efiéisda primitiva Igreja. Para sua propa-
gação nas partes do mundo, onde ainda nãovossos sucessores, a terei s por mãe, supe-
rior e chefe. Ela esclarecerá vossas dúvi-
se encontra, e para sua conservação onde já
se estabeleceu, continuam os mesmos si- das e resolverá vossas dificuldades; n'EIa
nais, quando e como sua providência julgame encontrareis sempre que me pro-
necessário, pois nunca desampara a santa curardes, porque n* Ela estarei até o fundo
Igreja, sua esposa diletíssima. mundo, e agora o estou, ainda que de
modo oculto para vós.
Isto disse Jesus, porque estava sa-
Aparição de Jesus aos cento e vinte cramentado no peito de sua Màe, pela con-
discípulos servação das espécies que recebeu na ceia,
até a consagração da primeira missa,
1504. Neste mesmo dia, por dis- como adiante direi*3*. Assim se cumpriu
posição divina, enquanto o Senhor se en- a palavra do Senhor dita naquela ocasião,
contrava com os onze discípulos, foram- como refere São Mateus (28, 20): Estou
se reunindo na casa do cenáculo outros convosco até ofimdo mundo.
fiéis e piedosas mulheres, alcançando o Acrescentou ainda Jesus: Tereis a
número de cento e vinte. Desejou o divino Pedro por suprema cabeça de minha
Mestre que estivessem presentes à sua as- Igreja, onde o deixo por meu Vigário; obe-
censão, instruindo-os como aos onze decer-lhe-eis como a sumo pontífice. A
apóstolos, do que lhes convinha saber an- João tereis por filho de minha Mae, como
tes de sua subida ao céu, para depois se Eu o nomeei do alto da cruz.
despedir de todos juntos. O Senhor olhava sua Mãe santís-
Estando assim congregados na paz sima que estava presente, e lhe fazia com-
e caridade, na sala ondefôracelebrada a preender que se inclinava a ordenar a toda
ceia, o Autor da vida manifestou-se a to- aquela assembléia, venerá-la com o culto
3 - 3 ' Parte. n° 125
440
Sexto Livro - Capítulo 28
que sua dignidade de Mãe pedia, e deixar fazer insignes favores, como diremos no
este culto instituído na Igreja. resto desta História.
A humilíssima Senhora, porém,
suplicou a seu Unigênito, não lhe dar mais
honra do que a necessária para ser prati- Sentimentos dos fiéis
cado tudo o que deixara recomendado, e
que os novos filhos da Igreja não lhe pres- 1506. A amorosa exortação do
tassem maior veneração do que até aquele divino Mestre, os mistérios que manifestou
momento. Desejava que todo o culto se e as despedidas que começou afazer, encheu
dirigisse diretamente ao Senhor, servindo a todos os corações de indizível comoção.
à propagação do Evangelho e à exaltação Neles acendeu-se a chama do divino amor,
de seu nome. com a viva fé dos mistérios de sua divindade
Concordou Cristo, nosso Salva- e humanidade. A memória de sua doutrina
dor, com este prudentíssimo desejo de sua e palavras de vida, a saudade de sua
Mãe, reservando para tempo conveniente agradável presença e conversação, e o sen-
e oportuno, tomá-la mais conhecida. timento de se verem privados de tantos bens
Ocultamente, porém, não deixou de lhe a um só tempo, provocou-lhes temo e sen-
tido pranto do íntimo da alma.
Quereriam retê-lo e não podiam,
porque não convinha; queriam se despedir
e não acertavam.
Entre süma alegria e piedosa dor,
intimamente pensavam: Como vivere-
mos sem tal Mestre? Quem nos dirá
palavras de vida de consolo como as
suas? Quem nos acolherá com tão
amoroso e aprazível semblante? Quem
será nosso Pai e nosso amparo? Ficamos
órfãos no mundo.
Alguns quebraram o silêncio ex-
clamando: Oh! amantíssimo Senhor e
Pai nosso! Oh! alegria e vida de nossas
almas! Agora que te conhecemos por
nosso Redentor, te ausentas e nos de-
samparas? Leva-nos, Senhor, contigo,
não nos expulseis de vossa vista! Oh!
esperança nossa, que faremos sem tua
presença? Para onde iremos, se nos
deixais? Para onde dirigiremos nossos
passos, se não te seguimos como a nosso
Pai, guia e Mestre?
A estas e a outras dolorosas excla-
mações, respondeu-lhes Jesus que não
saíssem de Jerusalém e ficassem em
oração até lhes enviai* o Espírito Santo
Consolador prometido pelo Pai, como no
Scxlo Livro Capítulo 2R
442
CAPÍTULO 29
^ASCENSÃO DE CRISTO AO CEU. É ACOMPANHADO
m PELOS SANTOS QUE O ASSISTIAM. LEVA CONSIGO A
MAE SANTÍSSIMA PARA LHE DAR A POSSE DA GLÓRIA.
Testemunhas da Ascensão Jesus e os fiéis dirigem-se para o
monte das Oliveiras
1509. Chegou a felicíssima hora
em que o Unigênito do eterno Pai, que pela 1510. Com este pequeno rebanho,
encarnação descera do céu, deveria a ele saiu do Cenáculo nosso divino Pastor Je-
subir com admirável e própria ascensão. sus. Tendo a seu lado a bendita Mãe e à
Iria assentar-se à destra que lhe pertencia, sua frente os demais, caminharam pelas
como herdeiro de sua eternidade, engen- ruas de Jerusalém até Betânia que dista
drado de sua substância, em igualdade de menos de meia légua, chegando ao pé do
natureza e glória infinita. monte das Oliveiras.
Subiu tanto, porque antes desceu O cortejo dos anjos, e o dos santos
até o ínfimo da terra, como diz o Apóstolo tirados do limbo e do purgatório, seguiram
(Ef 4, 9), tendo cumprido todas as coisas o glorioso triunfador com novos cânticos
que, de sua vinda ao mundo, de sua vida, de louvor, mas só Maria santíssima
morte e redenção humana, estão escritas. gozava desta visão.
Como Senhor de tudo, penetrou até o cen- Já fora divulgada, por toda
tro da terra e colocou o selo em todos os Jerusalém e Palestina, a Ressurreição de
seus mistérios, com este de sua Ascensão. Jesus Nazareno, ainda que a pérfida
Deixou prometido o Espírito Santo que malícia dos príncipes dos sacerdotes pro-
não viria, se primeiro não subisse aos céus curassem divulgar o falso testemunho de
(Jo 16, 7). Com o Pai, de lá o enviaria à que os discípulos o haviam roubado (Mt
sua nova Igreja. 28,13), testemunho que muitos não acei-
Para celebrar este dia tão festivo e taram e não deram crédito.
misterioso, escolheu Cristo, nosso bem, Apesar de tudo, dispôs a divina Pro-
por especiais testemunhas, as cento e vidência, que nenhum dos moradores da ci-
vinte pessoas que se reuniram no dade, quer incrédulos, quer duvidosos, re-
Cenáculo, conforme disse no capítulo passem naquela procissão que saía do Ce-
passado. Eram: Maria santíssima, os onze náculo, nem lhes impedissem a passagem.
Após-tolos, os setenta e dois discípulos, Nada perceberam, como incapazes de co-
Maria Madalena, Marta e Lázaro irmão nhecer aquele mistério tão maravilhoso.
de ambas, as outras Marias e alguns fiéis, Além disso, o divino Mestre ia invisível para
homens e mulheres, até preencher o todos, com exceção dos cento e vinte justos
número de cento e vinte. que escolheu para O verem subir ao céu.
Sexto Livro - Capítulo 29
onipotência. Por esta ignorância, limitam desde a sua criação, conheceram em geral
o poder divino em fazer por sua Mãe tudo e em substância, o mistério da Encar-
o que pôde e foi tudo quanto quis. nação, como ofimpara o qual se ordenava
Se a Ela só, se deu a Si mesmo por o ministério deles junto aos homens. Não
modo tão singular, como fazer-se filho de foram, porém, manifestados aos espíritos
sua substância, era conseqüente na ordem angélicos todas as condições, efeitos e cir-
da graça, fazer com Ela o que com ne- cunstâncias deste mistério; muitas delas
nhuma outra criatura, nem com toda a li- só as conheceram depois de cinco mil
nhagem humana devia nem convinha duzentos e mais anos, da criação do
fazer. mundo. Estes novos conhecimentos par-
Os favores, benefícios e dons que ticulares, causavam-lhes admiração e os
o Altíssimo fez à sua Mãe santíssima, não levavam ao louvor e glorificação do
deviam ser apenas singulares. Sua regra Criador, como em todo o decurso desta
geral é que nenhum recusou de quantos História repeti muitas vezes.
lhe pôde conceder, para reverterem na Por este exemplo, respondo à es-
glória e santidade da Senhora, depois da tupefação que pode causar o mistério que
santidade e glória da humanidade santís- aqui escrevo sobre Maria santíssima.
sima de Cristo. Estava oculto, até que o Altíssimo o quis
manifestar, como os demais que já escrevi
e para afrenteescreverei.
Oportunidade da revelação dos
mistérios
Argumentos para justificar o assunto
1516. Quanto a manifestar Deus à
sua Igreja estas maravilhas, concorreram 1517. Antes de eu possuir esta
outras razões da altíssima providência compreensão, ao conhecer o mistério do
com que à governa e lhe vai dando novas Salvador ter levado consigo sua Mãe san-
luzes, segundo a oportunidade dos tempos tíssima na Ascensão, não foi pequeno me
e necessidades que nela surgem. O feliz pasmo, não tanto por mim, quanto pelos
dia da graça que despontou no mundo com outros que o iriam saber.
a Encarnação do Verbo e a Redenção dos O Senhor, então, entre outras
homens, tem sua manhã e meio-dia, como coisas, fez-me lembrar o que São Paulo
terá seu ocaso. Tudo é disposto pela eterna deixou escrito na Igreja, quando referiu
Sabedoria, como e quando convém. seu arrebatamento ao terceiro céu (2 Cor
Ainda que todos os mistérios de 12, 2) que foi o dos bem-aventurados.
Cristo e sua Mãe estejam revelados nas Deixou em dúvida, se foi em corpo ou fora
divinas Escrituras, nem todos se manifes- dele, sem afirmar ou negar nenhum destes
tam ao mesmo tempo. Pouco a pouco, foi modos, mas supondo que poderia ser
o Senhor afastando a cortina das figuras, qualquer um deles.
metáforas e enigmas nas quais foram Entendi logo que, se ao Apóstolo,
encerrados muitos mistérios e reservados no princípio de sua conversão, aconteceu
para tempo oportuno, como os raios do sol isso, de modo que pôde ser levado ao céu
ao saírem de sob a nuvem que os esconde. empíreo corporalmente, e sem anteceden-
Não é para admirar, que muitos tes de méritos e sim de culpas; se con-
raios desta luz sejam gradualmente comu- ceder-lhe este milagre o poder divino, não
nicados aos homens. Os próprios anjos, traz perigo nem inconveniência para a
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Sexto Livro - Capítulo 2 9
Igreja, como se há de duvidar que o Se- Foi muito conveniente que, na
nhor faria este favor à sua Mãe, tão repleta ocasião, os Apóstolos e demaisfiéisigno-
de méritos e de inefável santidade? rassem o que se passou. Se vissem sua
Acrescentou-me ainda o Senhor Mãe e Mestra subir com Cristo, sua
que, se a outros santos, cujos corpos ressus- aflição e desconsolo seriam extremos,
citaram na ocasião da Ressurreição de sem recurso e alívio, pois o maior que
Cristo, foi-lhes concedido subir em corpo e gozavam era saber que ficavam com a
alma com Ele; maior razão havia para con- beatíssima Senhora e Mãe piedosíssima.
ceder este favor à sua Mãe puríssima Ainda Apesar disto, foram muitos os seus
que nenhum dos mortais o tivesse recebido, suspiros, lágrimas e íntima dor, quando vi-
a Maria santíssima, de certo modo, era ram seu Redentor e Mestre amantíssimo
devido, por ter sofrido com o Senhor. ir se afastando na região do ar. Quando
Era razoável que participasse no iam perdê-lo de vista, interpos-se uma re-
triunfo e gozo do Filho. Ao tomar posse fulgente nuvem entre o Senhor e os que
da destra de seu eterno Pai, Jesus dava a ficavam na terra (At 1, 9), e assim desa-
posse da sua à Mãe que lhe administrara, pareceu completamente. Nessa nuvem
da própria substância, a natureza humana vinha a pessoa do eterno Pai, que desceu
na qual subia triunfante ao céu. do supremo céu à região do ar, para rece-
Como era conveniente que, nesta ber seu Unigênito e a Mãe que lhe deu o
glória, Filho e Mãe não fossem separados, sér humano no qual voltava
também o era que ninguém do gênero hu- Recebeu-os o Pai com um am-
mano chegasse, em corpo e alma, à posse plexo inseparável de infinito amor e gozo
daquela eterna felicidade primeiro do que para os anjos que, em inumeráveis exér-
Maria santíssima, ainda que fossem seus citos vinham do céu acompanhando a pes-
pais, seu esposo São José e todos os ou- soa do eterno Pai. Em poucos momentos,
tros. A estes e ao próprio Jesus teria fal- atravessando os elementos e os orbes ce-
tado parte do gozo acidental daquele dia, lestes, chegou esta divina procissão ao
se Maria santíssima não tivesse entrado lugar supremo do empíreo.
com eles na pátria celestial. Mãe de seu Os anjos que subiram da terra, com
Redentor, rlainha de toda a criação, não seus reis Jesus e Maria, disseram aos que
deveria ser posposta a nenhum de seus ficaram nas alturas, aquelas palavras de
vassalos, neste favor e privilégio. David (SI 23,7):
Chegada ao céu
1520. Com este júbilo, que excede
o nosso pensamento, chegou ao céu em-
píreo aquela singular e ordenada pro-
cissão. Colocados em dois coros, anjos e
santos, passaram entre eles Cristo nosso
Redentor e sua Mãe beatíssima.
Todos, por ordem, lhes prestaram
a respectiva e suprema veneração, can-
tando novos louvores aos Autores da
graça e da vida. O eterno Pai assentou à
sua destra, no trono da Divindade, o Verbo
humanado, com tanta glória e majestade,
que produziu especial admiração e temor
reverenciai a todos os habitantes do céu.
Com visão clara e intuitiva, co-
nheciam a divindade de infinita glória e
perfeições, encerrada e unida substancial-
mente em uma pessoa, à humanidade san-
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Sexto Livre - Capítulo 29
nações que outras vezes referi , para ver de momentânea satisfação para conquk
a Divindade intuitivamente, pois até tar o descanso, quando nossa Màè
aquele momento só a vira por visào abs- amorosíssima se privou do verdadeiro
trativa. Estando assim elevada, mani- gozo para voltar a socorrer seus ftlhinhos?
festou-se-lhe o Senhor em visào beatífica Que desculpa terá nossa confusão quando
e foi cheia de glória e bens celestiais, que
nem para agradecer este benefício, nem
nào se podem referir nem conhecer nesta para imitar este exemplo, nem para em-
vida. penhar esta Senhora, nem para conquistar
sua eterna companhia com a de seu Filho
- não queremos nos privar de um leve e
Os dons de Maria são confirmados falso deleite, que nos acarreta sua inimi-
zade e a própria morte?
1524. O Altíssimo renovou todos Bendita seja tal mulher, louvem-na
os dons que, até entào, lhe havia comu- os céus e chamem-na ditosa e bem-aven-
nicado. Selou-os e confirmou-os no turada todas as gerações (Lc 1, 48),
grau que convinha, para reenviá-la
como Màe e Mestra da santa Igreja, e
com o título que lhe dera de Rainha de Maria, mulher forte, Mãe da Igreja
toda criação, Advogada e Senhora dos
fiéis. Como em cera branda se imprime 1525. Terminei a primeira parte
o selo, em Maria santíssima, por virtude desta História com a interpretação do
da onipotência divina, tomou-se a capítulo 31 das Parábolas de Salomão.
gravar o ser humano e a imagem de Descrevi, com suas palavras, as excelen-
Cristo. Com este sinal voltaria à Igreja tes virtudes desta grande Senhora, a única
militante, onde seria jardim verdadeira- mulher forte da Igreja.
mente fechado e selado (Cânt 4,12) para Com o mesmo capítulo posso
guardar as águas da vida. encerrar esta segunda parte, porque na
Oh! mistérios tão veneráveis fecundidade dos mistérios contidos
quanto sublimes! Oh! segredos da Ma- naquela passagem, o Espírito Santo tudo
jestade altíssima, dignos de toda reverên- quis ali significar.
cia! Oh! caridade e clemência de Maria No grande mistério de que venho
santíssima, jamais cogitada pelos igno- tratando, aqueles conceitos verificaram-
rantes filhos de Eva! se com maior excelência, por causa do
Não foi sem mistério, que Deus estado tão sublime de Maria santíssima,
colocou nesta única e piedosa Mãe o so- depois da graça que venho referindo. Não
corro dosfiéis,seus filhos. Foi artífice me detenho em repetir o que falei no fim
para nos manifestar, nesta maravilha, da primeira parte, e que serve de base para
aquele materna! amor que, talvez em ou- se entender muito do que poderia dizer
tros muitos fatos, não acabaríamos de con- aqui. Lá se diz como esta Rainha foi a mu-
hecer. Foi disposição divina que nem a Ela lher forte (Prov 31,10) cujo valor e preço
faltasse esta excelência, nem a nós esta veio de longe, dos últimos confins do céu
dívida e exemplo tão admirável para empíreo; da confiança que nela depositou
nosso estímulo. a beatíssima Trindade: que nãoficoude-
À vista de tal generosidade, a cepcionado o coração de seu esposo, por-
quem pareceria muito o que fizeram os que nada lhe faltou de quanto d'Ela es-
santos e sofreram os mártires, privando-se perava.
3 - !• Parte, n° 626 e segs
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Sexto Livro - Capítulo 29
poderiam vê-lo e procurar onde estava e trapassar aquele estado, não percebendo
com ela o encontrariam seguramente. que naquele gosto espiritual buscavam
O mais era inútil e imperfeito muito a si mesmos, atraídos pela incli-
modo de procurá-lo; pois, para obter que nação ao deleite espiritual que vem pelos
os assistisse com sua graça, não era mister sentidos.
vê-lo corporalmente e lhe falar. Não en- Se o Mestre, por Si mesmo, nào os
tender isto, era defeito repreensível para deixasse, subindo ao céu, teria sido difícil
homens tão instruídos e perfeitos. apartá-los de seu convívio corporal, sem
Durante muito tempo, os apóstolos grande amargura e tristeza. Nestas con-
e discípulos freqüentaram a escola de dições, não estariam idôneos para a pre-
Cristo nosso bem, beberam a doutrina da gação do Evangelho que deveriam propa-
perfeição em sua própria fonte, tão pura e gar em todo o mundo, a custa de muitos
cristalina, que já deveriam ser muito trabalhos, de suor e da própria vida.
espirituais e capazes da mais alta per- Tal ofício não era para homens
feição. Tão infeliz, porém, é nossa imaturos e sim corajosos e fortes no amor;
natureza em servir aos sentidos e satis- não para os apegados e saudosos do gozo
fazer-se com o sensível que, ainda ao mais sensível do espírito, mas dispostos a pas-
divino e espiritual, quer amar e saborear sar penúria e abundância, infâmia e boa
sensivelmente. Acostumada a esta rudeza, fama (2 Cor 6, 8), honras e desonras,
custa-lhe muito dela se libertar e purificar, tristeza e alegria. Nestas vicissitudes, de
e pode se enganar quando lhe parece estar coração magnânimo e superior a todo o
amando o melhor objeto com plena segu- próspero e adverso, deveriam conservar o
rança e satisfação. amor e o zelo da honra de Deus.
Para nosso ensinamento, fizeram Depois desta repreensão dos anjos,
experiência desta verdade os apóstolos, a voltaram com Maria santíssima do monte
quem o Senhor havia dito que Ele era a das Oliveiras (At 1,12) ao Cenáculo, onde
verdade, a luz e o caminho (Jo 14,6). Por ficaram com Ela em oração, esperando a
Ele chegariam ao caminho de seu eterno vinda do Espírito Santo, como veremos na
Pai, pois a luz não é somente para se terceira parte.
mostrar, nem o caminho para se ficar nele
parado. DOUTRINA QUE ME DEU A
RAINHA DO CÉU MARIA
SANTÍSSIMA.
Os discípulos voltam ao Cenáculo
1528. Esta doutrina, tão repetida A imperfeição humana constrange a
no Evangelho, ouvida da boca de seu bondade divina
próprio Autor e confirmada com o exem-
plo de sua vida, poderia ter elevado o co- 1529. Minha filha, darás feliz con-
ração e o entendimento dos apóstolos à clusão a esta segunda parte de minha vida,
sua compreensão e vivência. Todavia, o ficando muito advertida e instruída da efí-
gosto espiritual e sensível que gozavam cacíssima suavidade do divino amor, e de
na convivência do Mestre, a segurança sua liberalidade imensa com as almas que
com que justamente o amavam, lhes mo- não lhe opõem obstáculos. É mais de
nopolizava as energias da vontade presa acordo com a inclinação do sumo Bem e
aos sentidos.Deste modo, não sabiam ul- sua vontade santa e perfeita, antes conso-
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Scxlo Livro - Capítulo 29
lar as criaturas do que afligi-las; mais re-
preparou. Assim dispôs sua admirável
compensá-las do que castigá-las; mais providência, para que Eu voltasse à Igreja
confortá-las do que entristece-las. militante, por minha livre vontade e
Os mortais, porém, ignoram estaescolha. Esta ordem vinha a ser de maior
ciência divina. Desejam que da mão do glória para Mim, de exaltação ao santo
sumo Bem lhes venham as consolações, nome do Altíssimo, e amparo para a Igreja
deleites e prêmios terrestres e perigosos,
e seus filhos, pelo modo mais admirável
antepondo-os aos verdadeiros e seguros. e santo.
Este pernicioso erro, o amor divino cor- Pareceu-me obrigação privar-me,
rige quando os emenda com tribulações, durante aqueles anos que vivi no mundo,
aflige com adversidades, instrui-os com da felicidade que teria no céu, e voltar a
castigos. conquistar na terra novos frutos de obras
A natureza humana é tarda, gros-
agradáveis ao Altíssimo, pois tudo Eu de-
seira e rústica. Se não for trabalhada, e
via à bondade divina que me ergueu do
se não se quebrar sua dureza, não dá pó. Aprende, pois, caríssima, deste exem-
fruto maduro, e com suas inclinações plo, a imitar-me com coragem e esforço,
não fica bem disposta para o doce e no tempo em que a santa Igreja se encontra
amabilíssimo trato com o sumo Bem. tão desconsolada, cercada de tribulações,
sem haver entre seus filhos quem a pro-
Assim, é necessário exercitá-la e lapidá-
la com o martelo dos trabalhos, e re- cure consolar.
formá-la no crisol da tribulação, para se Quero que generosamente traba-
tornar idônea e capaz dos dons e favoreslhes nesta causa, sofrendo, orando, pe-
divinos, aprendendo a não amar os ob- dindo e clamando do íntimo do coração
jetos terrenos e falazes onde a morte seao Todo-poderoso por seus fiéis, ofere-
esconde. cendo tua própria vida se for necessário.
Asseguro-te, minha filha, que teu zelo
será muito agradável aos olhos de meu
Filho santíssimo e aos meus.
Amor à Igreja Seja tudo pela glória e honra do
1530. A Mim pareceu-me pouco o Altíssimo Rei dos séculos, imortal e in-
que trabalhara, quando conheci a recom- visível (1 Tim 1,17) e de Maria, sua Mãe
pensa que a bondade eterna me santíssima, por toda a eternidade.
índice
5 o Livro
Contém: a perfeição com que Maria Ssma. copiava e imitava as operações da alma de
seu Filho amantíssimo. Como Ele a informava sobre a lei da graça, artigos da fé,
sacramentos e dez mandamentos; a prontidão e perfeição com que a Virgem tudo
praticava. A morte de São José. A pregação de São João Batista. O jejum e batismo de
nosso Redentor. A vocação dos primeiros discípulos, e o batismo da Virgem Maria,
Senhora nossa. ^ pág