APLV
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__________
I
S. Pediatria e Neonatologia, CH Entre Douro e Vouga, 4520-211 Santa
Maria da Feira, Portugal.
sofiafe@gmail.com; marianabrpinto@gmail.com
II
S. Pediatria, ULS Alto Minho, 4901-858 Viana do Castelo, Portugal.
patricia.pediatria@gmail.com
III
S. Pediatria, H Braga, 4710-243 Braga, Portugal.
pierre_3.14r@hotmail.com
IV
S. Gastrenterologia Pediátrica, Dep. Criança e do Adolescente, CH
Porto, 4099-001 Porto, Portugal.
rosalima@netcabo.pt; facpereira@sapo.pt
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Não há registo de casos em lactentes sob LM exclusivo.(4,10) Uma é frequente. Dependendo do envolvimento inflamatório os doen-
evolução mais insidiosa, ocorre na enteropatia induzida pelas tes podem apresentar dor abdominal, vómitos, diarreia, hemor-
PLV. O quadro clínico inclui diarreia sanguinolenta, má evolução ragia digestiva baixa, anemia ferropénica e enteropatia perde-
ponderal, vómitos, por vezes hipoproteinemia, anemia, e mais dora de proteínas.(2)
tarde acidose metabólica. Podem estar presentes sinais clínicos Além destes, a esofagite eosinofílica pode ser uma mani-
de intolerância secundária à lactose, como eritema perianal. Em festação de APLV, IgE-mediada ou não IgE-mediada.(4,5) Clini-
lactentes sob LM a apresentação clínica é mais benigna, com camente carateriza-se por impacto alimentar, disfagia, recusa/
diarreia com raios de sangue, raramente anemia ligeira e hipo- dificuldade alimentar, dor abdominal intermitente, vómitos, qua-
proteinemia, habitualmente sem afetar o crescimento e o estado dro clínico semelhante ao refluxo gastro-esofágico (RGE) sem
geral.(4,10,11) A proctocolite induzida pela PLV é manifestação resposta ao tratamento “anti-refluxo”. Embora o papel causal
mais frequente e mais benigna deste grupo de síndromes. Ti- dos alergénios alimentares não esteja bem definido, em alguns
picamente ocorre nas primeiras semanas a meses de vida, em casos, a evicção de alimentos específicos, nomeadamente o LV,
lactentes “saudáveis”, com boa evolução ponderal e sem outros pode resultar em normalização da mucosa e melhoria clínica.(12)
sintomas além de presença de sangue e muco em pequena/ As crianças com APLV podem ainda apresentar-se com sin-
moderada quantidade nas fezes, sem alteração do padrão das tomas/quadros clínicos que podem ser enquadrados no largo
dejeções ou com diarreia ligeira. Ocasionalmente pode cursar espectro da APLV, tais como: vómitos, diarreia crónica, síndro-
com anemia ligeira. Embora mais raro e com quadro mais ligei- me de mal-absorção, má evolução estaturo-ponderal, RGE, có-
ro também atinge lactentes sob LM.(2,4,10,11) A gastroenteropatia licas e obstipação.(10)
eosinofílica pode apresentar-se em qualquer idade, incluindo Os casos de RGE grave referenciados para consultas de es-
nos primeiros meses de vida, altura em que pode mimetizar o pecialidade cursam com APLV numa percentagem que pode atin-
quadro de estenose hipertrófica do piloro com obstrução e vó- gir os 56% em lactentes. Nestes casos, o LV induz disritmia gás-
mitos pós-prandiais em jacto. A perda ou má evolução ponderal trica e atraso de esvaziamento gástrico, agravando o RGE.(4,13,14)
Quadro 2 – Síndromes gastrointestinais não IgE-mediados e mistos associados a proteínas alimentares, nomeadamente proteínas do
leite de vaca. Adaptado de (10).
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A relação entre obstipação e APLV é controversa, no en- os pais e a criança não sabem. Já na PPO com dupla ocultação
tanto, segundo alguns autores, algumas crianças com obsti- contra placebo os profissionais de saúde, os pais e a criança
pação crónica refratária à terapêutica anti-obstipante podem não sabem se é o placebo ou o LV que está a ser testado. Em-
apresentar APLV, verificando-se resposta clínica à dieta de eli- bora seja a mais fiável, a sua aplicação é difícil e onerosa, sendo
minação. Habitualmente ocorre tolerância após um período de maioritariamente utilizada em protocolos científicos.
12 meses.(4,11,15) Em lactentes até aos 12 meses é administrado leite para
Relativamente às cólicas do lactente a relação é também lactentes ou de transição (com PLV), em crianças com idade
controversa e apenas uma minoria dos casos de cólicas graves superior a 12 meses LV ultrapasteurizado.(5)
poderá estar associado a APLV, melhorando com dieta de eli- Considera-se uma PPO positiva quando a introdução do LV
minação.(4,16) reproduz os sintomas, confirmando-se o diagnóstico de APLV,
e a dieta de eliminação deverá ser mantida até aos nove a 12
DIAGNÓSTICO meses de vida ou durante seis meses, conforme o que ocorrer
O diagnóstico baseia-se na história clínica, exame físico, primeiro.(4,5,17,18) A prova é repetida posteriormente.
dieta de eliminação e prova de provocação oral (PPO).(4,5,17,18) Se a PPO for negativa, ou seja, na ausência de sintomas du-
Deve colocar-se a suspeita de APLV na presença de um ou rante toda a prova, mantém-se um volume diário de LV de cerca
mais sintomas sugestivos (particularmente se persistentes e a de 200 ml.(5) Na alta, devem ser dadas indicações aos pais sobre
envolver vários sistemas) e/ou ausência de resposta adequada a possibilidade da ocorrência de reações tardias, devendo ser
ao tratamento prévio para eczema atópico, DRGE ou sintomas efetuada reavaliação clínica de acordo com a situação clínica.(19)
GI crónicos.(17,18) Caso a criança se mantenha assintomática nas 48h a duas se-
manas seguintes, a dieta habitual com PLV pode ser retomada.
A. Avaliação clínica
Na avaliação clínica deve dar-se especial atenção a algumas C. Exames auxiliares de diagnóstico
questões “chave”, entre as quais: a história pessoal e familiar Além da PPO, nenhum dos testes diagnósticos, atualmente
de atopia; forma de apresentação - idade de início, rapidez de disponíveis, comprova ou excluí a APLV.(4,5,17,18,21)
instalação após introdução de PLV, duração, gravidade e fre- As IgE específicas e os testes cutâneos / skin prick tests
quência das manifestações, reprodutibilidade das manifesta- (SPT) indicam sensibilização, mas não diagnosticam APLV iso-
ções; história alimentar - LM vs LA, se LM rever dieta materna, ladamente, principalmente no que diz respeito às manifestações
idade da diversificação alimentar, etc.. É fundamental avaliar o GI, em que a maioria das crianças tem IgE específicas negativas
crescimento, sinais de má nutrição e sinais/sintomas sugestivos (<0,35 IU/L) e SPT negativos (diâmetro <3 mm).(1,4,5,10) Têm sim,
de comorbilidades alérgicas.(4,5,17,18) valor prognóstico, verificando-se que níveis superiores de IgE
No caso de suspeita de APLV deve ser realizada dieta de específicas e maior diâmetro nos SPT indicam maior probabili-
eliminação, em que as PLV são totalmente eliminadas da dieta dade de reações graves e persistência da alergia. O doseamento
e é avaliada a resposta clínica. A duração da dieta para fins diag- seriado de IgE específicas pode ter valor preditivo na aquisição
nósticos deve ser tão curta quanto possível, mas suficiente para de tolerância.(1,4,5,19) A utilização de monocomponentes molecu-
avaliar a resposta clínica. lares de alergénios poderá ter valor prognóstico, com determi-
nados epítopos candidatos a biomarcadores de tolerância.(22)
B. Prova de provocação oral
Após um período de dieta de eliminação, a PPO continua D. Exames endoscópicos, histológicos e outros
a ser o método gold-standard, e é atualmente o único método Exames endoscópicos, histológicos e outros podem estar
definitivo para confirmar ou excluir a alergia alimentar (valor pre- indicados em crianças com manifestações GI persistentes, mo-
ditivo positivo e negativo superior a 95%).(4,5,17-21) Consiste na ad- deradas a graves, má evolução estaturo-ponderal ou anemia
ministração de doses graduais de LV, começando com um vo- ferropénica, sem resposta à dieta de eliminação ou que colo-
lume inferior ao que poderá produzir sintomas, aumentado até quem dúvidas de diagnóstico.(5,21) Algumas indicações estão es-
atingir o equivalente a um volume adequado à idade. Idealmente pecificadas na Quadro 3.
deve ser realizada em meio hospitalar, sendo mandatório em si- As alterações macroscópicas e microscópicas, como atrofia
tuações de reações imediatas, reações graves ou imprevisíveis. da mucosa ou infiltrados eosinofílicos, não são específicas nem
Deve estar disponível material de reanimação.(19,20) sensíveis para o diagnóstico de APLV.(5,10,21)
Existem três tipos de prova: PPO aberta, PPO com ocul-
tação simples e PPO com dupla ocultação contra placebo. Na ABORDAGEM
PPO aberta, todos os intervenientes sabem que vai ser testado De um modo geral, a abordagem da criança com suspeita
leite de vaca (LV). Não deve ser usada na presença de sinto- de APLV está resumida no algoritmo da Figura 1. Em reações
mas subjetivos e/ou questionáveis, no entanto é a mais uti- graves e/ou imediatas deve optar-se por dieta de eliminação
lizada na prática clínica pela maior facilidade de execução. e doseamento de IgE específicas ou SPT, realizando-se PPO
Na PPO com ocultação simples, utiliza-se LV e um placebo, co- diagnóstica se estes forem negativos e/ou persistirem dúvidas
nhecendo os profissionais de saúde qual está a ser testado, mas no diagnóstico.(1,4,5,21)
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Quadro 3 – Possíveis indicações para procedimentos invasivos na avaliação diagnóstica de crianças com suspeita de síndromes
gastrointestinais associados a APLV. Adaptado de (21).
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Dieta de eliminação diagnóstica mais graves (ex.: FPIES, anafilaxia) não se realiza PPO diagnós-
A duração da dieta de eliminação diagnóstica depende da tica, mantendo-se a dieta de eliminação por 12 a 18 meses an-
gravidade e das características dos sintomas, de um modo geral tes de testar a aquisição de tolerância com PPO.(5,10)
opta-se por uma a duas semanas. Nas manifestações GI deve Caso a PPO seja positiva, mantém-se a dieta de eliminação.
ser mantida por duas a quatro semanas. Nos casos de ente- Os intervalos para as PPO subsequentes não são consensuais
rocolite, proctocolite ou enteropatia pode ser necessário um e dependem igualmente do quadro clínico. No entanto, de um
período de quatro a seis semanas.(5,21 Na presença de reações modo geral repetem-se a cada seis a 12 meses.(4,5)
graves como anafilaxia ou FPIES a dieta deve manter-se por um Em situações de ingestão acidental de produtos lácteos,
mínimo de 12 a 18 meses antes da realização de PPO.(5,10) com ou sem a ocorrência de sintomas credíveis, deve conside-
Em lactentes sob aleitamento artificial devem ser utiliza- rar-se antecipar ou adiar a PPO, respetivamente.
dos fórmulas extensamente hidrolisadas (FeH) como 1ª linha. Não está recomendado o uso de leites de outros mamí-
Se já foi iniciada a diversificação alimentar, eliminam-se todos feros (cabra, ovelha, burra), uma vez que existe reatividade cru-
os produtos com PLV.(5,23) Em casos de intolerância/recusa ou zada com o LV e estes leites são nutricionalmente inadequados.
ausência de resposta à FeH deve considerar-se uma fórmula (4,23)
de aminoácidos (FAA).(5,17,18) As fórmulas de soja podem ser uma Quanto à nova fórmula de arroz disponível, embora pareça
opção em lactentes com idade superior a seis meses, uma vez eficaz e segura em crianças com APLV(24), os autores conside-
assegurada a sua tolerância e na impossibilidade de utilizar uma ram que são necessários mais estudos que avaliem a sua segu-
FeH (motivos económicos, dietas vegan ou recusa do lacten- rança nutricional.25)
te).(5,23) Em situações de enteropatia com diarreia pode coexistir
intolerância secundária à lactose, devendo considerar-se uma PREVENÇÃO
FeH sem lactose.(5) Na prevenção da APLV está recomendado o aleitamento
Nos lactentes sob aleitamento materno, este deve man- materno exclusivo até aos seis meses. A diversificação alimen-
ter-se. Se já iniciou diversificação alimentar, eliminar os produ- tar deve ocorrer preferencialmente cerca dos seis meses de ida-
tos com PLV. A mãe deve fazer dieta de eliminação de produtos de, nunca antes dos quatro meses. Não está recomendado por
lácteos e ovo, com aconselhamento nutricional.(5,17,18,23) Pode rotina dieta materna restritiva durante a gestação ou lactação
considerar-se FAA nos primeiros dias, por um máximo de duas ou adiar a introdução de outros alimentos potencialmente aler-
semanas, em casos mais graves. Na ausência de resposta de- génicos.(2,26,27)
vem eliminar-se outros alergénios da dieta materna e considerar Atualmente não existe evidência científica suficiente para a
a utilização de uma FAA.(5,23) suplementação com prebióticos ou probióticos, na prevenção
Em crianças com mais de 12 meses, está recomendada da alergia alimentar.(28,29)
uma dieta nutricionalmente equilibrada, sem LV ou alimentos Alguns estudos mostram benefício na utilização de leites hi-
que contenham PLV, devendo incluir uma FeH.(5) Em casos sele- drolisados (parcial ou extensamente), para a prevenção de pato-
cionados, as fórmulas de soja podem ser uma opção (recusa da logia alérgica em crianças de alto risco, mas não existe evidên-
FeH ou motivos económicos). Ponderar eliminar o ovo da dieta. cia suficiente para a sua recomendação por rotina.(30,31)
O aconselhamento nutricional está recomendado, e se a criança
não ingerir fórmula suficiente deve suplementar-se com cálcio. PROGNÓSTICO
A eliminação bem sucedida de alimentos requer a leitura O prognóstico é bom: aos três anos de idade verifica-se
cuidadosa dos rótulos. Deve ser explicado que em rótulos de aquisição de tolerância em mais de 80% das crianças.(7,18,26,32)
alimentos processados termos como “caseína”, “soro lácteo” Os fatores de risco para persistência incluem a história familiar
entre outros, significam a presença de PLV. Os alimentos que de atopia, a presença de manifestações graves, SPT com maior
contêm lactose geralmente são seguros para o consumo, desde diâmetro, níveis mais elevados de IgE específicas e dose mais
que não contenham outros componentes do LV.(5,23) baixa para positividade na PPO.(4,18)
Em casos de esofagite eosinofílica ou suspeita de múltiplas
alergias alimentares, considerar alimentação exclusiva com FAA CONCLUSÃO
até melhoria dos sintomas antes da PPO.(4,5,12) A alergia às proteínas do leite de vaca, nomeadamente com
manifestações GI, pode ocorrer em qualquer idade, mas atinge
Dieta de eliminação terapêutica e reavaliação com prova principalmente crianças nos primeiros anos de vida. Apresenta
de provocação oral um amplo espectro de gravidade, mas sempre com um gran-
Se a PPO diagnóstica foi positiva, a dieta de eliminação deve de impacto na vida das crianças e da família, tendo em con-
manter-se. No caso de dieta de eliminação materna, suplemen- ta a base láctea da alimentação pediátrica da sociedade atual.
tar com cálcio (1000mg/dia) e providenciar aconselhamento nu- A abordagem das manifestações GI, na sua maioria não IgE-
tricional.(5,23) De acordo com a gravidade e o mecanismo subja- -mediadas ou mistas, reveste-se de algumas particularidades. O
cente deve repetir-se a PPO após pelo menos três meses (ex.: diagnóstico correto, baseado em provas de provocação oral, é
IgE específica negativa e sintomas ligeiros) e até 12 meses (ex.: extremamente importante, evitando situações de sobre ou sub-
IgE específica positiva e sintomas graves).(4,5) Em manifestações diagnóstico e tratamento desadequado.
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