Joseph Conrad - Mocidade

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Mocidade - Uma Narrativa.

Joseph Conrado.
Assírio & Alvim, Lisboa, 1984.
Colecção: Gato maltês/7
Título original: Youth - a narrative
Novela.
Esta obra foi digitalizada sem fins comerciais e destina-se unicamente à
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1. digitalização e arranjo de Fernando Jorge Alves correia.
2. O número da página surge no rodapé.
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Mocidade
Uma narrativa
Em conformidade com as disposições legais,
É interdita a reprodução, por qualquer meio técnico dos textos inclusos
neste volume, sem acordo prévio com o autor da tradução e editor.
Título original: Youth - a narrative
O Assirio e Alvim
Cooperativa editora e livreira, crl
rua passos manuel, 67- b, 1190 lisboa
Gravuras e capa de ilda david
Edição 179, maio de 1984
Tiragem: 4000 exemplares
Joseph conrad
Mocidade
Uma narrativa
Tradução de aníbal fernandes
!
Mocidade - uma narrativa precede, de um só ano o Coração das Trevas,
novela que ficaria como variação maior do mesmo tema: quero dizer a
viagem iniciática - aqui voando na expectativa de um Oriente mítico,
além o rio de África que subia ao coração do Mal - quero dizer também
uma batalha com a Potência indefinível que a personalidade de Kurtz
reflectia por contornos mal adivinhados, antes é esta metáfora de
incêndio que ninguém extingue, incêndio surdo de entranhas e navio
colmatadas a carvão, quase clandestino, a lavrar uma conquista até
explodir incontrolável e triunfante sobre o mar. E Marlow, o narrador
preferencial de Conrad, está mo centro destes dois cometimentos
literariamente bem vencidos, que excitaram a ironia despeitada de
Henry James: -O Sr. Conrad é o único a adoptar o método de pegar o
tema pelo lado mais difícil.
Pegar o tema e pegar a vida. Nascendo na Polónia russa em 1857, aos
cinco anos de idade já está nas frialdades de Vologda, ao lado do pai
insurreccionista que paga um preço caro pelo levantamento polaco
contra o poder do czar. "- Ponho o meu filho ao abrigo da atmosfera
destes lugares", escreveu numa carta o pai Konrad, e vejo-o crescer
como se vivesse numa cela de monge. Tremer de frio, morrer de frio, é
a nossa vida. Violência de clima, roda de russos que se habitua a tomar
por inimiga, sem mais companheiro do que um pai amargurado e
doente; o terreno vai fornecer bons dados à psicanálise do futuro génio
pessimista, criador de heróis em luta contra forças e destruição
invariavelmente vencedoras.
Difícil também a sua escolha do mar: sem antecedentes na família que a
suportem, surgida de uma infânia e de uma adolescência rigorosamente
terráqueas; obstinação que o atira à Marselha hostil, à deambulação
inglória em navios franceses até 1878, o ano da Inglaterra.
O ano em que pisa, pela primeira vez, o solo da Inglaterra, com 21 anos
de idade e sem saber nada da língua onde será mais tarde grande
escritor. No fim da vida tenta explicar tão forte proeza a quem se intriga
com os brilhantismos formais dessa adopção tardia: "A verdade é que
escrever inglês surge em mim naturalmente, como outro dom que eu
porventura traga de nascença. Tenho a estranha e penetrante sensação
do inglês ter feito sempre parte de mim. Nunca se me pôs como escolha
ou adopção. A simples ideia de escolha sempre esteve arredada do mu
espírito; e adoptá-lo adoptei, decerto, mas pelo génio da língua. Tomou
conta de mim mal ultrapassei o período em que o balbuciava, e estou
em crer que me exerceu acção direta sobre o temperamento,
modelando-me o carácter na altura em que ele era plástico."
Brilhantismos escritos, note-se, pois o inglês que fala surpreende muito
os interlocutores. Paul Valéry, por exemplo, registou esse espanto num
texto evocativo:
"- Conrad falava o francês com boa pronúncia provençal, mas o inglês
com um sotaque horrível que muito me divertia. Ser grande
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escritor numa língua que tão mal se fala é coisa rara eminentemente
original."
O Joseph Conrad inglês - inglês naturalizado - passa na marinha
mercante todas as barreiras da avaliação e chega a comandar navios.
São vinte anos de Marès do Sul, de Mares da China, que inspiram
incansavelmente os seus temas de água e adversidade. John Galsworthy
lembra-lhe a imagem física, da viagem que fez num navio em que o
encontrou como segundo piloto: "- Parecia aureolado pelo sol ardente,
curtido, com a barba em bico e o cabelo quase negro, olhos de um
castanho escuro salientes sobre as pálpebras marcadas por vincos
profundos."
1890, porém, é um ano fatal, é a saúde sem mácula cai de vez à
conjunção maligna; subir o rio Congo por terras e humidade e
pântanos - até ao coração das trevas - toca-lhe perversamente o sopro
vitál e restitui à Inglaterra um homem quebrado, a gemer de
reumático, impróprio de todo para as durezas do mar.
Começam anos de labor literário que se intensifica, mas arrastado entre
dores físicas, um pouco mais tarde já só sustido pela reforma magra de
uma carreira marítima precocemente abandonada (sim, que os direitos
autorais, das suas 13 primeiras obras só lhe virão a render - contas por
alto feitas num desabafo epistolar a Galsworthy - cinco libras! ).
Mocidade - uma narrativa já é toda dessa angústia tolhida à secretária,
de uma disciplina de escrita levada a cabo com muitos sofrimentos; de
1898 e transfigura a peripécia trágica e uma viagem do próprio Conrad
os tempos de Marselha, quando andou pelo mar na Palestina (registe-se
que é Judea na novela), navio abandonado por causa de um incêndio, a
14 de Março de 1883. As ondas gigantescas, a fúria maligna das chamas
ficaram entre as destruições mais poderosas da sua ficção. "Retêm-se
por uma enorme força de imagem" e de palavra, mesmo que Virginia
Woolf pretenda o contrário. E no seu common sense: "- Cumpramos
um livro de Conrad e o que retemos não é aquela onda gigantesca que
partiu tabiques e arrastou marinheiros; não é aquele pôr-do-sol ou
aquele incêndio em pleno mar; é antes a grandeza que o homem revela
a enfrentar a onda, em ser corajoso, bom, fiel, num universo indiferente
e perigoso. Ter coragem, ser bom, ser fiel, expressões simplificadoras é
moralizantes de uma virtude mais oculta e fugidia; pois se há
"coragem" mas acções criadas por Conrad, se há ser bom, e ser fiel,
nunca se lhes pega o triunfo exemplar na batalha contra as forças
adversas, antes a redutora evidência de um esforço inútil, quando não
da morte que será, sempre, destituída de heroísmos, quando muito
lamento de outros tempos, os da mocidade - únicos poupados pelo Mal
do mundo.
A. F.
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!
Isto só podia acontecer na Inglaterra, onde mar e homens se misturam,
digamos - onde o mar entra pela vida na maior parte dos homens e os
homens sabem qualquer coisa ou tudo sobre o mar através do seu lazer,
das viagens ou do pão de cada dia.
Estávamos sentados a uma mesa de mogno que reflectia a garrafa, os
copos e os nossos rostos ao apoiarmo-nos assim, nos cotovelos. Um
director de companhia, um guarda-livros, um advogado, o Marlow e eu.
O director tinha sido aluno da Conway, o guarda-livros corrido quatro
anos pelo mar e o advogado - conservador endurecido da alta hierarquia
da igreja, um tipo às direitas, a honra em pessoa - imediato da P. & O.
nos velhos tempos em que os navios de correio eram aparelhados pelo
menos com dois mastros e costumavam vir por aí fora com monção
favorável, dos Mares da China, desfraldados de cutelos e varredouras. A
vida de nós todos começara na marinha mercante. E entre nós cinco era
forte o laço marítimo e a camaradagem profissional que o entusiasmo
do desporto náutico, dos cruzeiros e de outras coisas no género não
sabe fomentar porque é só prazer da vida, enquanto o outro a própria
vida.
Marlow (pelo menos julgo que assim se escreve o seu nome) fazia a
história, ou antes a crónica, de uma viagem:
- Sim, conheço alguma coisa dos mares do Oriente mas o que mais
lembro é a minha primeira viagem naqueles sítios. e viagens, sabem
vocês, que parecem determinadas para ilustrar a vida e ficam como
símbolo da existência. A gente luta, trabalha, sua, quase rebenta, às
vezes rebenta mesmo para realizar qualquer coisa. e não consegue. Não
é que nos caiba a culpa. Simplesmente não é possível fazer nada de
nada, grande ou pequena coisa, nadinha deste mundo, nem mesmo
casar com uma solteirona ou levar ao porto de destino a miséria de
umas 600 toneladas de carvão.
"É um caso memorável, não haja dúvidas. Trata-se da minha primeira
viagem ao Oriente e primeira como segundo piloto; o capitão também
comandava pela primeira vez; aos sessenta já feitos, por certo
concordam que não era sem tempo! Um homenzinho de costas largas
mas não muito direitas, ombros caídos e uma perna mais torta do que a
outra, com o ar torcido que encontramos muitas vezes na gente da
lavoura. Tinha cara de quebra-nozes - queixo e nariz que tentavam
juntar-se por cima de uma boca sumida - emoldurada a cabelo solto de
um grisalho ferroso, parecida com uma atadura de barba salpicada a pó
de carvão. Rosto velho com olhos azuis, autênticos olhos de rapazinho
com a candura que muitos homens conservam até ao fim dos dias
graças ao dom raro da simplicidade de alma e rectidão de carácter. Por
que me aceitou, não sei. Eu acabava de ser terceiro piloto de um
famoso clipper australiano e ao que parece ele alimentava um certo
preconceito contra esta espécie de veleiros, aristocratas e finíssimos que
são. Diz-me ele assim: - Não sei se sabe, neste navio vai ter trabalho. -
Respondi-lhe que tinha trabalhado em todos os navios. Ah, mas agora é
diferente, e os senhores que vêm de grandes navios. Olhe! Estou em
crer que vai dar conta do recado. Apresenta- se amanhã.
Apresentei-me. Há vinte e dois anos eu andava pelos vinte. Como o
tempo passa! Foi um dia dos mais felizes da minha vida. Imaginem só
Pela primeira vez segundo piloto, piloto realmente responsável! O meu
novo posto de trabalho nem por um tesouro eu daria! O imediato, esse
olhou-me de alto a baixo. Também era velhote, mas de outro género.
Tinha um nariz romano, barba comprida
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de um branco de neve, e o seu nome era Mahon embora insistisse para,
dizermos Mann. Bem nascido, ainda que uma sorte algo adversa o não
livrasse da cepa-torta.
Quanto ao capitão andara anos por navios de cabotagem e depois no
Mediterrâneo, por fim nas carreiras das Índias Ocidentais. Nunca
dobrara o Boa-Esperança nem o Horne. Escrevia letras gordas e não se
importava com isso. Claro que eram bons marinheiros, um e outro, e
no meio dos dois velhos eu sentia-me uma criança entre avós.
O navio também era velho. Chamava-se Judea. Esquisito nome, não
acham? Pertencia a um tal Vilmer, Wilcox, ou coisa que o valha, mas
faliu e morreu há vinte anos ou mais, e por isso o nome não interessa.
Tinha estado muito tempo no ancoradouro de Shaell. Imaginem só o
estado em que se encontrava! Todo ferrugem, pó e esterco... fuligem
nos mastros, porcaria na ponte. Para mim era sair de um palácio e
entrar numa cabana arruinada. Carregava cerca de 400 toneladas, com
um cabrestante primitivo, trincos de madeira nas portas, sem ponta de
cobre e uma grande popa quadrada. Por baixo das letras enormes do
nome havia um bom pedaço de talha já sem dourado e uma espécie de
escudo com a divisa "Andar ou Morrer", na parte inferior. Tinha o seu
quê de romântico, qualquer coisa
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que fazia gostar daquela velharia, qualquer coisa que sugestionava a
minha mocidade!
Largámos de Londres com lastro - lastro de areia - para carregar carvão
num porto do norte e rumar a Banguecoque. Banguecoque! Até me
arrepiei. Eu tinha seis anos de mar e só vira Melbourne e Sidney, terras
bonitas, a seu modo encantadoras, mas Banguecoque!
Para sair do Tamisa largámos à vela, com um piloto do Mar do Norte a
bordo. Chamava-se Jermyn e passava o santo dia ao pé da cozinha, a
secar o lenço no fogão. Aparentemente não dormia. Era tristonho, com
uma lágrima perpétua a luzir na ponta do nariz, um homem que tivera,
tinha ou esperava ter desgostos, que só podia ser feliz com qualquer
coisa a correr-lhe mal. Duvidava da minha mocidade, do meu bom-
senso, da minha experiência, e fazia questão em mostrá-lo por todas as
maneiras possíveis. Julgo que tinha razão. Ao que parece eu sabia
pouco, não saiba hoje muito mais, e tamanho ódio alimentei pelo tal
Jermyn, que ainda agora o sinto.
Foi precisa uma semana de trabalho para chegarmos à barra de
Yarmouth, e então apanhámos com um temporal pela frente. o famoso
temporal de Outubro de há vinte e dois anos. Ele era vento, raios,
granizo, neve, e um mar de meter medo. Tão pouco carregados, podem
imaginar como o caso ficou feio se vos
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disser que a amurada rebentou e o convés ficou inundado. Na segunda
noite o lastro escorregou para a zona da proa e por um pouco a
ventania nos não atirava para qualquer lado, nos bancos de Dogger. Só
havia que descer lá abaixo com pás e endireitar o barco, e então fomos
para o porão enorme, sinistro como uma caverna, com velas de sebo
coladas nos vaus e o temporal a bramir lá em cima, e o navio aos
solavancos, posto de lado como doido; estávamos todos, o Jermyn, o
capitão, toda aquela gente que mal se aguentava nas pernas,
empenhados num trabalho do coveiro. Tentávamos atirar para
barlavento pazadas de areia molhada. A cada tombo do navio, à
claridade frouxa podiam vislumbrar-se homens que caíam numa grande
confusão de pás. Impressionado com o fantástico da cena, um dos
moços (havia dois) chorava como se o coração lhe estivesse quase a
rebentar. Ouvíamo-lo sei lá onde, a fungar na sombra.
Ao terceiro dia o temporal acabou e um rebocador do norte tomou
conta de nós. Ao todo foram dezasseis dias para irmos de Londres a
Tyne! Quando entrámos na doca já tínhamos perdido a ocasião, de
descarregar e rebocaram-nos para um cais onde estivemos um mês. A
senhora Beard (o nome do capitão era Beard) veio de Colchester visitar
o velho. Instalou-se a bordo. A tripulação eventual de-
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sembarcou no barco, só ficaram os oficiais, um moço e um despenseiro
mulato que dava pelo nome de Abraham. A senhora Beard era uma
velha de face enrugada ao máximo, vermelha como uma maçã de
Inverno e com uma esbeltez de rapariga. Um dia deu comigo a pregar
um botão e insistiu em tratar-me das camisas. Era bem diferente das
mulheres de capitão que eu conhecera nos luxuosos clippers. Quando
Lhe entreguei as camisas, perguntou: - E as peúgas? Com certeza
precisam de ser passajadas. Já tenho em ordem as coisas do John... do
capitão Beard. e gosto de estar entretida.
-Abençoada velhota! Tratou-me da roupa enquanto eu ia lendo pela
primeira vez o Sartor Resartus e o Ride to Khivu de Burnaby. Nessa
altura não compreendi lá muito bem o primeiro, mas lembro me de ter
preferido o soldado ao filósofo, preferência que a vida só tem vindo a
confirmar (I). Um era homem e o outro mais do que homem, ou então
menos. Agora já os dois morreram e a senhora Beard também.
Mocidade, força, génio, ideias, feitos, almas simples, tudo morto. Não
faz mal.
Acabámos por carregar e embarcámos a tripulação. Oito marinheiros
dois moços. Uma tarde largámos até às bóias da boca da doca,
!
(i) É que Sartor Resartus é do filósofo Thomas Carlyle e Ride to Khivu
de Frederick Gustavus Burnaby, soldado-escritor da Ingla terra do séc.
XIX. (Nota do T. ).
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prontos para nos fazer ao mar, esperançados em começar a viagem no
dia seguinte. A senhora Beard devia voltar para casa no último comboio
da noite. Depois do navio amarrado, tomámos chá. Foi uma refeição
silenciosa. com o Mahon, o velho casal e eu. Acabei antes dos outros e
escapei-me para fumar um cigarro. O meu camarote dava para o
convés, mesmo encostado ao tombadilho. Havia maré-alta, vento fresco
e uma chuva miudinha; as duplas comportas da doca estavam abertas e
os navios de carvão entravam e saíam das trevas com os seus faróis
muito brilhantes, um forte espadanar de hélices, grande chiadeira de
ferragens e muitos gritos que nos chegavam da cabeça dos molhes.
Estava a ver aquela procissão de faróis de proa, que corria a grande
altura, as luzes verdes da amurada a deslizarem mais abaixo, em plena
noite, quando uma faísca vermelha passou de repente por mim,
desapareceu e voltou a aparecer. Como que ampliada, muito perto,
surgiu a proa de um vapor. Pela vigia do camarote gritei: - Subam
depressa! -e logo depois ouvi uma voz apavorada a dizer na escuridão
ao longe:
- Mande parar, comandante! - Uma sineta tocou e outra voz gritou, para
advertir: -Vamos direitos àquele barco, comandante! - Um Está bem
muito áspero foi a resposta, e o que a seguir ouvi foi um estalo violento,
quando
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o vapor raspou a saliência da proa pela nossa enxárcia. Um momento
de confusão, algazarra e correrias. O vapor roncou e alguém disse:
- Escapámos desta, comandante. - Não lhe aconteceu nada? -
perguntava a voz rouca. Eu, que tinha dado um salto à proa para ver o
estrago, gritei: - Creio que não! - Devagar, para a ré - disse a mesma voz
rouca. Houve um toque de sineta. - Que vapor é o vosso? gritou o
Mahon, mas nessa altura já ele não passava de uma sombra enorme a
fazer manobras relativamente longe. Berraram-nos um nome. nome de
mulher, Miranda, Melissa, ou qualquer coisa do género. - Isto vai querer
dizer mais um mês no diabo deste buraco! - queixou-se o Mahon
quando espreitávamos à luz de lanternas a amurada estilhaçada e as
vergas partidas. - E o capitão? Onde estará?
Durante aquele tempo ninguém o ouvira nem lhe tinha posto a vista
em cima. Fomos à popa. Algures, no meio da doca, levantou-se um
queixume dolorido: -ó da Judea!... Como diabo tinha ele ido ali parar? -
Hei! - gritámos. - Estou à deriva na nossa canoa. Sem remos! - Um
aguadeiro retardatário ofereceu os seus préstimos e por meia coroa o
Mahon negociou com ele o reboque do capitão até ao nosso costado.
Quem primeiro subiu a escada foi a senhora Beard. Tinham flutuado
nas águas da doca cerca de uma hora, molha-
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dos de chuva miudinha e fria. Nunca, na vida, fiquei tão espantado.
Parece que ao ouvir o meu Subam depressa! o capitão Beard tinha-se
apercebido imediatamente do perigo, agarrara na mulher, correra com
ela pelo convés, e descera a toda a pressa à canoa amarrada junto da
escada. Com sessenta anos, nada mau! Imagine-se o tipo com a velhota
nos braços e a salvá-la, cheio de heroísmo, a mulher da sua vida.
Pousara-a na bancada, e quando se preparava para voltar a subir, a
amarra soltara-se por qualquer razão, ficando os dois à deriva. No meio
da confusão claro que o não ouvimos gritar. Ele estava
consternadíssimo, mas dizia ela assim, toda contente: - Parece que já
não faz mal se eu perder o comboio! -Pois não, Jenny. - resmungou ele -
desce e vai aquecer-te. - E para nós: - É o que vos digo: um marinheiro
não pode andar com mulheres às costas. Acontecer isto comigo fora do
navio! Bem, desta vez não teve importância. Vamos lá a ver o que nos
escangalhou o doido daquele vapor!
Não tinha escangalhado grande coisa, mas o atraso foi de três semanas.
Depois de passadas, estava o capitão ocupado com os seus agentes
quando levei a mala da senhora Beard à estação e a deixei
confortavelmente instalada numa carruagem de terceira. Baixou a
janela
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para dizer: - Sabes? És muito bom rapaz. Se vires o John, o capitão
Beard, sem cachecol à noite, lembra-lhe por mim que abafe aquela
garganta. - Esteja descansada, senhora Beard
- respondi eu. - És muito bom rapaz; vi logo as delicadezas que tinhas
para o John, para o capitão. - Quando o comboio arrancou, de repente,
tirei uma chapelada à velhota. Nunca mais voltei a vê-la. Passem-me daí
a garrafa!
No dia seguinte fizemo-nos ao mar. No momento de largar para
Banguecoque estávamos há três meses fora de Londres. Julgarmos que
seriam quinze dias, mais ou menos!
Era Janeiro e fazia um tempo encantador. o encanto do Inverno
soalheiro, mais fascinante do que o Verão por ser inesperado,
revitalizante, e a gente saber que não vai, não pode, durar muito. Tal
qual um ganho imprevisto, uma dádiva, uma sorte inesperada.
Durou todo o Mar do Norte, todo o Canal; manteve-se até trezentas
milhas a oeste do Lézards, ou coisa que o valha, até ao instante em que
o vento rodou para sudoeste e começou a cantar. Dois dias depois
soprava a tempestade. Todo de lado, o Judea saltou no Atlântico como
uma caixa de velas muito velha. Dia após dia ela soprou, e soprou
raivosa, sem descanso, sem piedade, sem tréguas. O mundo já só era
uma imensidão de altíssimas ondas de espuma que corriam para cima
de nós sob um
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céu tão baixo que podíamos tocar-lhe com a mão, tão sujo como um
tecto enegrecido pelo fumo. O espaço de tempestade que nos cercava
tinha tanto vapor como ar. Dia após dia, noite após noite, à volta do
navio só houve um uivo de vento, tumulto de mar e barulho da água a
despenhar-se no convés. Nem nós tínhamos descanso. Levantava-se,
afundava-se, mergulhava de nariz, sentava-se de rabo, rebolava, gemia e
fazia-nos andar bem agarrados no convés, segurar aos beliches, lá em
baixo, num permanente esforço de corpo e de espírito.
Uma noite o Mahon falou comigo pela janela pequena do camarote.
Era mesmo por cima da cama onde eu me estendia vestido e calçado,
cheio de insónias, com a sensação de não dormir há anos e não
conseguir fazê-lo, mesmo que tentasse. Diz-me ele assim, muito
agitado:
- Marlow, terá por aí a sonda do porão? Não consigo que as bombas o
esgotem. Valha-me Deus, que o caso não é para graças! Dei-lhe a sonda
e voltei a deitar-me, fazendo o esforço de concentrar o pensamento em
várias coisas. Mas só as bombas podiam ocupar-me o espírito. Quando
apareci no convés ainda eles estavam naquilo. O meu quarto rendeu-os
no trabalho. À luz da lanterna que tinha sido posta no convés para
examinarmos a sonda
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pude entrever os seus rostos fechados e graves. Bombeámos quatro
horas. Bombeámos toda a noite, todo o dia, toda a semana, quarto atrás
de quarto. Aquilo desagregava-se aos poucos, sozinho, e metia água por
todos os lados, não tanto que fôssemos logo ao fundo, mas o bastante
para nos matar naquele trabalho das bombas. E enquanto a nossa vida
se resumia a bombear, o navio abandonava-nos aos bocados: tinham-se
ido as amuradas, os pontaletes, os ventiladores tinham caído, a porta da
cabina saltado. Não havia um sítio seco naquele navio que se desfazia
aos poucos. Por artes mágicas a baleeira assente nas peias transformou-
se num monte de lenha, no próprio lugar em que estava. Eu é que a
tinha amarrado, bem orgulhoso com o meu trabalho de mãos capaz de
aguentar tanto tempo aquelas maldades do mar. Bombeámos. E o
tempo sem nenhuma aberta. O mar era branco como um lençol de
espuma, um caldeirão de leite fervente; e as nuvens mantinham-se
escuras, sem nada... fosse um ponto claro do tamanho da mão de um
homem, e dez segundos, apenas que as desanuviasse. Para nós não
havia céu, não havia estrelas, sol, o universo, não havia nada além de
nuvens cheias de cólera e mar enfurecido. Por amor à vida
bombeávamos quarto atrás de quarto, e dir-se-ia que passavam meses,
anos, toda a
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eternidade, como se tivéssemos morrido e desembocado num inferno
para marinheiros. Já não sabíamos a quantas andávamos, o dia a
semana, o nome do mês, o ano, e até mesmo se tínhamos posto o pé
alguma vez em terra. O vento levara as velas, o navio adornava para um
bordo, só com uma ponta de pano, e o oceano caía-lhe em cima sem
nos importarmos com nada. Com olhar de idiotas rodávamos os
manípulos, e quando chegávamos ao convés, de rastos, eu passava um
cabo à volta dos homens, das bombas e do mastro grande, e então
rodávamos e tornávamos a rodar sem descanso, com a água a chegar-
nos ao peito, ao pescoço, a cobrir-nos a cabeça. Tanto fazia. Já não
sabíamos o que era estar seco.
Mas num sítio qualquer de mim próprio havia um pensamento fixo: -
Diabos me levem se isto não é uma senhora aventura!... Igual àquelas
que a gente costuma ler. E logo à primeira viagem como segundo
piloto, e só com vinte anos, a aguentar no duro e tão bem como estes
homens, e a fazer os meus rapazes a andar na linha! Sentia-me
contente. Por nada deste mundo eu trocava a oportunidade daquela
experiência. Tive momentos de exultação. Cada vez que o velho e
desmantelado casco afocinhava com a traseira toda no ar, parecia-me
que atirava aos céus as palavras escritas na popa como um apelo, um
desafio, um grito
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às nuvens sem piedade: Judea, Londres. Andar ou Morrer.
ó mocidade! Que força, que esperança, que imaginação tens! Para mim
o barco não era uma ratoeira velha a arrastar mundo fora um
carregamento de carvão encomendado, para mim era o esforço, a
prova, o julgamento da vida. Só posso pensar nele com prazer, com
afecto, com saudade; como vocês nalgum ser amado que vos tenha
morrido. Nunca poderei esquecê-lo. Passem-me daí a garrafa!
Uma noite, estávamos a bombear amarrados ao mastro, como já
expliquei, ensurdecidos de vento e sem coragem que chegasse para
desejarmos a morte, quando um mar pesado desabou estrondosamente
no convés, por cima de nós. Mal pude respirar, dei um grito como se
fosse uma ordem: -Aguentem-se, rapazes! no próprio instante em que
tive a sensação de qualquer coisa dura a flutuar no convés e a bater-me
na perna. Deitei-lhe a mão, mas não consegui agarrá-la. A escuridão,
não sei se entendem, era tanta que à distância um pé não víamos a cara
uns dos outros.
Depois da pancada o navio ficou imóvel por momentos e aquela coisa,
fosse lá o que fosse, bateu-me outra vez na perna. Nessa ocasião
apanhei-a, era uma panela. Embrutecido de cansaço como eu estava, e
sem outro pensamento que não fosse as bombas, não com-
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preendi logo o que é que tinha na mão, mas de repente percebi e gritei:
- Lá se foi a asa do convés, rapazes! Larguem tudo e vamos procurar o
cozinheiro.
A proa, no convés, havia uma gaiúta que
incluía a cozinha, o beliche do cozinheiro e a camarata da tripulação.
Há dias que esperávamos vê-la saltar borda fora e os homens tinham
ordens para dormir na câmara, o único lugar seguro de todo o navio.
Mas o Abraham, o despenseiro, insistira em agarrar-se estupidamente
ao beliche como uma mula, de puro medo, julgo eu, como o animal
que em pleno tremor de terra não quer sair do estábulo já na derrocada.
Por isso fomos à procura dele. Era um verdadeiro desafio à morte, pois
desfazer aquilo que nos amarrava deixava-nos tão expostos como numa
jangada. Mas fomos. A gaiúta fora demolida como se uma granada lhe
tivesse explodido dentro. A maior parte saltara borda fora - o fogão, a
tamara; a dos homens, os seus pertences; como por milagre tudo tinha
desaparecido ficando embora dois postes agarrados à parte do tabique
onde estava preso o beliche do Abraham. Andámos às apalpadelas entre
ruínas e fomos dar com ele sentado no catre, metido em espuma e
destroços, a falar sozinho todo contente. Com o choque súbito,
apanhado no limite da sua resistência, ficara mal daquela cabeça,
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doido varrido para sempre. Agarrámo-lo, carregámo-lo até à popa e
atirámo-lo de cabeça pela escada da câmara. Compreendam que a
altura não era para cuidados nem para ficarmos a ver em que estado ele
se encontrava. Tínhamos pressa de voltar às bombas, serviço que não
podia esperar. Navio inundado não é coisa que perdoe.
Mas uma pessoa até teve razões para pensar que o danado temporal só
estava interessado em endoidecer o pobre-diabo do mulato. Antes da
alvorada amainou, no dia seguinte o céu manteve-se limpo e mal o mar
ficou calmo o navio deixou de meter água. No entanto, ao
pretendermos montar um novo jogo de velas a tripulação pediu para
voltarmos ao ponto de partida. Realmente não podíamos fazer outra
coisa. Até as baleeiras estavam perdidas! O convés ficara
completamente limpo, a câmara esventrada, a tripulação só com a
roupa que trazia no corpo. As provisões tinham-se estragado e o navio
estava combalido. Virámos a proa para a Inglaterra e - acreditam vocês?
- o vento começou a soprar do leste e a dar-nos em cheio na cara.
Soprou fresco e sem descanso. Tivemos de conquistar o caminho
polegada a polegada, mas naquela altura o navio não metia muita água
e o mar mantinha-se relativamente calmo. Bombear duas horas e
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quatro é que não é graça nenhuma. Mas lá flutuar flutuou, pelo menos
até Falmouth.
A boa gente que lá mora vive dos desastres
marítimos e não haja dúvidas que ficou satisfeita em ver-nos. Mal a
carcaça do navio surgiu ao longe, uma multidão faminta operários
navais desatou a afiar as ferramentas. E, valha-me Deus, bem souberam
esfolar-nos antes daquilo acabar! Calculo que o armador tenha ficado
sem cheta! Houve demoras. Por fim acabou em decidir-se que parte da
carga seria despejada e calafetado o casco. Assim se procedeu.
Terminadas as reparações, o navio foi recarregado e fizemo-nos ao mar
com nova tripulação... para Banguecoque. Sucedeu, no entanto, que
uma semana mais tarde voltávamos. A tripulação negava-se a ir para
Banguecoque - cento e cinquenta dias de viagem naquela espécie de
cesto que em cada vinte e quatro horas era bombeado oito. Os jornais
marítimos tornaram a dedicar- nos um parágrafo nas suas colunas:
Judea. Barca. De Tyne para Banguecoque; carvão; regressou a
Falmouth com água aberta e uma tripulação que se recusa a obedecer.
Houve outras demoras. e outras reparações, até que um dia o armador
apareceu a bordo e disse que o navio estava um verdadeiro brinco.
Depois de tantos tormentos e humilhações, o pobre do velho Beard
parecia
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mesmo o fantasma de um capitão. Era sexagenário, lembrem-se, e a
primeira vez que comandava. Dizia o Mahon que as aventuras loucas
acabam sempre mal, mas eu é que gostava cada vez mais do navio e
sentia um enorme desejo de ir a Banguecoque. A Banguecoque! Nome
mágico e abençoado! Ao pé dele Mesopotâmia não valia nada!
Lembrem-se dos meus vinte anos, de que era a primeira viagem que eu
fazia -como segundo piloto. Lembrem-se de que eu tinha o Oriente à
minha -espera!
Com uma nova - e terceira - tripulação, saímos e fomos ancorar na
barra exterior. O navio metia mais água do que nunca. Como se os
malditos carpinteiros tivessem esburacado o casco. Desta vez nem nos
fizemos ao mar. Pura e simplesmente a tripulação recusou-se a virar o
cabrestante.
Voltaram portanto a rebocar-nos e ficámos no porto transformados
numa peça de museu, numa curiosidade, numa instituição lá do sítio.
As pessoas apontavam-nos a dedo aos forasteiros, dizendo aquela barca,
além, que vai para Banguecoque, que está por aqui há seis meses, e já
entrou no porto três vezes. Quando era feriado, os garotos remavam à
nossa volta em canoas e gritavam: - Ó da Judea! se aparecia uma cabeça
acima da borda, berravam: - Para que porto é que vais?... Bangue
coque? - E faziam troça. A bordo só tínhamos
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ficado três. O pobre do capitão curtia a neura no camarote. O Mahon
encarregou-se da cozinha e a fazer petiscos revelou, sem nenhum de
nós contar, um verdadeiro talento francês. Eu olhava pela vigia, cheio
de moleza. Fizemo-nos cidadãos de Falmouth. Não havia loja que não
nos conhecesse. No barbeiro e na tabacaria perguntavam-nos o mais à
vontade possível se sempre pensávamos, um dia, chegar a
Banguecoque. Entretanto o armador, os seguradores e os fretadores
discutiam em Londres os nossos honorários. Passem-me daí a garrafa!
Era horrível. Moralmente era pior do que bombear toda a vida. Parecia
que o mundo inteiro se esquecera de nós, que não dependíamos de
ninguém, não íamos chegar a nenhum lado; parecia que um feitiço nos
ia obrigar a viver para sempre naquele ancoradouro, ser troça e tema de
graçolas para sucessivas gera ções de vadios do cais e barqueiros sem
lei. Consegui que me dessem três meses de ordenado, cinco dias de
licença, e fui num salto a Londres. Um dia de ida e quase outro de volta,
mas assim mesmo se foram os três meses de ordenado. Não sei o que
lhes fiz. Ao que parece, depois de três meses de trabalho estive num
café-concerto, almocei, jantei e ceei num local elegante da Regent
Street e voltei a tempo e horas, trazendo apenas comigo as obras
completas de Byron e uma nova manta
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de viagem. Disse-me assim o barqueiro, quando me levou a remos para
o navio: -Ora viva! Pensei que tinha largado esta velharia! Nunca mais
há- de chegar a Banguecoque! - Acha que sim? - respondi, superior. mas
a verdade é que me não agradou nada a profecia.
De repente apareceu-nos um homem com plenos poderes, um agente
qualquer, sei lá de quem. Vermelhusco de rosto e com indomável
energia, uma alma divertida. De mergulho voltámos à vida e fomos
atracar a um pontão que nos recebeu a carga, entrámos na doca-seca
para levantar todo o cobre que nos chapeava o fundo. Não admira que
o navio metesse água! Esforçado além da sua resistência pelo temporal,
de cansaço o pobrezinho cuspira a estopa que lhe calafetava as juntas.
Foi recalcado, levou forro novo e ficou tão estanque como uma garrafa.
Depois voltámos ao pontão e reembarcámos a carga.
Foi nessa altura, por uma linda noite de
luar, que os ratos desataram a abandonar o navio.
Até ali tinham sido uma praga. Destruíam
velas, consumiam mais provisões do que a tripulação inteira,
compartilhavam amigavelmente as nossas camas e os nossos perigos.
Naquela altura, que o navio estava em condições de se fazer ao mar, é
que resolviam pôr-se ao fresco! Chamei o Mahon para admirar o espec-
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táculo. Rato atrás de rato iam surgindo todos na amurada, davam uma
prolongada olhadela de soslaio e com um som cavo atiravam-se de
mergulho para o pontão vazio. Tentávamos contá-los mas perdemos
logo a conta. Disse o Mahon: -Bem, bem! Não me venha falar da
inteligência dos ratos. Deviam ter-se posto a andar muito mais cedo,
quando estivemos prestes a afundar-nos. Aqui tem a prova de como é
tola a superstição que existe a seu respeito. Trocarem um navio em
bom estado por um pontão todo carcomido, onde não há nada em que
ferrar o dente! Que loucos!. Não acredito que nos ultrapassem no
conhecimento do que é perigoso ou seguro.
Depois de prolongarmos um pouco a conversa a tal respeito,
concordámos que a sabedoria dos ratos tinha sido grosseiramente
exagerada e não era, na verdade, maior que a dos homens.
Nessa altura já a história do navio era bem conhecida em todo o Canal,
do Land's End ao Foreland, e na costa sul não houve tripulação que nos
quisesse. Por isso nos mandaram uma inteira de Liverpool, e uma vez
mais partimos para Banguecoque.
Houve brisas favoráveis, mar calmo até aos trópicos, e o velho Judea lá
se arrastou à luz do sol, gemebundo. Se dava oito nós, lá em cima
estalava tudo e até tínhamos de passar
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pelo queixo a jugular do boné; mas em geral ia de passeio, à razão de
três milhas por hora. Que outra coisa esperar? Estava cansado o velhote
daquele navio! Tinha a mocidade que eu agora tenho. e que vocês têm.
vocês, que me ouvem estas peripécias. Que amigo seria capaz de vos
atirar à cara a idade e o cansaço? Pois também nós lhe não dizíamos
nada. Para nós, na popa, era como se tivéssemos nascido nele, sido
criados nele, vivido nele um ror de anos sem conhecer outro navio.
Havia de ser mais fácil eu insultar a velha igreja lá da minha terra por
nunca ter chegado a catedral!
E no meu caso também havia a mocidade a dar-me paciência. Diante de
mim eu tinha todo o Oriente, toda a vida, além da certeza de ter sido
posto ali à prova e me ter saído bem. Por outro lado pensava nos
homens de antigamente, outros séculos, que faziam aquela mesma rota
em navios não melhores do que o nosso e assim mesmo iam a terras de
palmeiras e especiarias, de areias amarelas, a nações morenas
governadas por reis mais cruéis do que o romano Nero, mais
esplendorosos do que o judeu Salomão. A gemer de velha, de peso, a
barca lá se arrastava enquanto eu ia vivendo uma vida jovem de
ignorância e fé. Arrastava-se por uma interminável procissão de dias; a
popa dourada de fresco reluzia ao sol poente e parecia gritar acima das
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ondas que tornavam mais escuras as palavras pintadas no costado:
Judea, Londres. Andar ou Morrer.
Depois entrámos no Oceano Indico. Com vento calmo rumámos ao
norte, para a ponta de Java. O navio arrastou-se durante semanas, andar
ou morrer, e na Inglaterra as pessoas começavam a ter vontade de
dizer-nos que o tempo da viagem fora ultrapassado.
Estava eu de quarto num sábado à tarde quando os homens me
pediram um balde de água a mais, para lavarem a roupa. Como eu não
queria instalar a bomba de água doce a hora tão avançada, dirigi-me à
proa para abrir a escotilha do pique e distribuir água do tanque de
reserva que lá tínhamos guardado. Ia a assobiar, de chaves na mão.
Subiu lá de baixo um cheiro tão inesperado como assustador. Parecia
que centenas de candeeiros a petróleo tinham fumegado vários dias
naquele antro. Quando saí foi um alívio e o homem que me
acompanhava começou a tossir. - Esquisito cheiro, senhor piloto - disse
ele. - Ao que dizem faz bem à saúde - respondi, despreocupado,
continuando a andar para a ré.
Mas a primeira coisa que fiz foi meter a cabeça na boca do ventilador
central do navio. Ao levantar a tampa saiu um hálito visível, qualquer
coisa como um nevoeiro leve ou uma
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lufada de névoa que se desfazia. Era quente, aquele ar, de forte cheiro a
sebo e a petróleo. Dei um espirro e baixei a tampa com todo o cuidado.
Não valia a pena asfixiar-me! Estava a arder o nosso carregamento.
No dia seguinte fumegava a sério. Era de esperar, como sabem, pois o
carvão fora remexido e quebrado com tantos maus tratos. Apesar da
boa qualidade transformara-se em carvão de forja ou qualquer coisa
assim. Ainda por cima molhado. molhado mais do que uma vez!
Durante o carregamento houvera todo o tempo e naquela altura,
depois de uma travessia tão longa, aquecera e ali tínhamos um caso de
combustão espontânea!
O capitão chamou-nos à câmara. Estendera um mapa na mesa e olhava-
o com ar infeliz. A costa ocidental da Austrália fica perto - disse ele -
mas a minha ideia é seguir até ao nosso destino. Por outro lado,
estamos no mês dos tufões. Vamos continuar direitos a Banguecoque e
combater o incêndio. Mesmo que fiquemos assados, nada de arrepiar
caminho! Primeiro do que tudo vamos tentar abafar a maldita desta
combustão cortando-lhe o ar.
E tentámos. Calafetámos tudo, mas o fumo
continuava a sair. Saía por imperceptíveis frinchas; abria caminho por
tabiques e encerados filtrava-se por aqui e acolá em finíssimos fios por
todos os lados como uma pele invisível,
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de uma forma que se não entendia. Rompeu caminho até à câmara, até
ao castelo da proa, envenenou os lugares mais abrigados do convés.
Podíamos aspirá-lo no alto da gávea. Se o fumo saía, era evidente que
entrava ar. Que desanimador! A combustão recusava-se a ser abafada.
Resolvemos, então, experimentar água. Quando levantámos as
escotilhas, enormes massas de um fumo esbranquiçado, amarelado,
subiram ao alto dos mastros. Eram espessas, gordurosas, sufocantes.
Toda a gente foi para a ré e só voltou ao trabalho na altura em que a
nuvem envenenada se dissipou ao longe. Já só havia uma nuvem não
mais espessa do que um fumo de chaminé de fábrica.
Instalámos uma bomba de incêndio e estendemos uma mangueira que
rebentou logo a seguir. Bem! Era tão velha como o navio. uma
mangueira pré-histórica que nem valia a pena consertar. Depois, com a
fraquíssima bomba de proa bombeámos, tirámos água a balde e
conseguimos despejar uma grande quantidade de oceano índico dentro
da escotilha. A corrente clara faiscava à luz do sol e caía sobre uma
camada de fumo branco, rasteiro, sumindo-se na superfície negra do
carvão. Com o fumo subia vapor de água. Despejámos água salgada
como se o barco fosse um barril sem fundo. O nosso destino era
bombear -
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bombear para fora, bombear para dentro; e depois de termos tido que
tirar água para fora, para não morrermos afogados, metíamos num
frenesi água dentro, para não morrermos queimados.
E o navio lá se arrastava, andar ou morrer, através daquela calmaria. O
céu era um milagre de pureza, um milagre de azul. O mar polido, azul,
transparente, a cintilar como uma pedra preciosa que abrangesse tudo,
o círculo do horizonte, como se o globo terrestre fosse uma jóia, todo
ele uma safira colossal, uma pedra solitária lapidada em forma de
planeta. E no luzir de extensas águas calmas o Judea deslizava
imperceptivelmente, rodeado de vapores impuros e preguiçosos, numa
nuvem indolente que virou muito leve vagarosa, a sotavento: uma
nuvem de peste que sujava um autêntico esplendor de mar e céu.
Nessa altura, claro que não vimos fogo. O carvão ardia muito
lentamente, sei lá onde. Uma vez, estávamos a trabalhar lado a lado
quando o Mahon teve um sorriso esquisito e disse: - Se o barco abrisse
agora um rombo. como na primeira travessia que fizemos do Canal .
Ao menos era um tampão para este incêndio, não era? - A minha
resposta foi irónica: - Lembra-se dos ratos?
Continuámos a lutar com o fogo e a navegar. Com todos os cuidados,
como se nada
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fosse. O despenseiro cozinhava e servia-nos; dos doze homens restantes,
oito trabalhavam e quatro folgavam. Todos tinham o seu turno, capitão
incluído. Havia entre nós igualdade, e se não uma fraternidade perfeita
pelo menos grande entendimento. Às vezes, ao despejar o balde na
escotilha um homem gritava: -Viva Banguecoque! - e os outros riam.
Mas o mais vulgar era andarmos taciturnos e preocupados, cheios de
sede. Mas que sede! E os cuidados que era preciso ter com a água!
Racionamento severo. O navio deitava fumo, o sal ardia. Passem-me daí
a garrafa!
Experimentámos tudo. Chegámos a tentar atingir o foco do incêndio.
Claro que sem resultados. Não havia ninguém que aguentasse o porão
mais do que um minuto. O Mahon, que foi o primeiro a lá ir desmaiou,
e sucedeu o mesmo ao homem que foi buscá-lo. Arrastámos os dois
para o convés. Depois saltei eu, para mostrar como era fácil, mas nessa
altura já todos sabiam como aquilo acontecia e limitaram-se a pescar-
me com uma corrente de gancho, julgo que amarrada ao cabo de uma
vassoura. Não me ofereci para recuperar a pá que tinha deixado lá em
baixo!
As coisas começaram a ficar feias e pusemos a baleeira na água. O
segundo escaler também estava pronto a sair. Nas peias da popa
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ainda tínhamos outro, coisa para 14 pés, bem amarrado.
Mas o fumo, imagine-se, diminuiu de repente e redobrámos de esforços
para inundar os fundos do navio. Em dois dias acabou. Todos andavam
radiantes. Era sexta-feira. No sábado não trabalhámos, a não ser nas
manobras do navio, como é óbvio. Pela primeira vez em quinze dias os
homens lavavam a roupa e a cara, e tiveram direito a um jantar
melhorado. Falavam com desdém da combustão espontânea e davam a
entender que essa coisa de combustões era com eles. Na verdade
sentiam-se todos como herdeiros de uma grande fortuna. Um estúpido
cheiro a queimado é que infestava ainda o navio. O capitão Beárd tinha
olheiras e as faces chupadas. Nunca eu lhe notara tanto a corcunda e as
pernas tortas. Sisudos, a fungar, ele e o Mahon rondavam escotilhas e
ventiladores. De repente senti-me chocado pela sensação do pobre
Mahon ser afinal um velho, ser velhíssimo. Pelo que me dizia respeito
andava contente e orgulhoso como se tivesse ajudado a ganhar uma
grande batalha naval. Oh! Mocidade!
A noite estava belíssima. De manhã passara por nós um navio, rumo à
pátria. O único que há meses víamos. Finalmente tínhamos terra
próxima, a ponta de Java ao norte, a cerca de 190 milhas.
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No dia seguinte, das oito ao meio-dia foi o meu quarto no convés. Ao
pequeno-almoço o capitão tinha dito: - É espantoso! O cheiro chega até
aqui, à câmara. - Cerca das dez desci por um momento à ponte. O
imediato andava pelo tombadilho, e atrás do mastro grande estava
armada uma banca de carpinteiro. Encostei-me a ela, a puxar pelo meu
cachimbo, e o carpinteiro, um rapazola, veio falar comigo. - Parece que
nos saímos bem daquele sarilho, não é verdade? - disse ele, e muito
desagradado notei que o pateta abanava a banca para me tirar o apoio.
Respondi-lhe secamente: -Acaba mas é com isso, ó marteladas! - Pois
nesse mesmo instante senti uma sensação esquisita, a decepção absurda
de estar, sei lá como, no ar. Ouve a toda a volta como que uma
respiração suspensa exalada de repente, como se um milhar de gigantes
dissesse Pfu! ao mesmo tempo, e senti um choque surdo que me fez
doer todas as costelas. Não havia dúvidas. eu ia pelo ar, com o corpo a
descrever uma parábola curta; que embora curta me dava tempo para
pensar em coisas várias e por esta ordem, segundo sei lembrar-me: -Não
pode ter sido o carpinteiro. Mas então o que foi?. Um acidente
qualquer. um vulcão submarino?. Carvão, gases?. Santo Deus, vamos
todos pelos ares...
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Todos mortos. Vou cair na escotilha da ré. Estou a ver fogo lá dentro.
Num abrir e fechar de olhos, numa infinitésima fracção de segundo
depois da banca abanar já eu me estatelava ao comprido na carga.
Levantei-me sozinho e fugi. Tão rápido como se desse um pulo. O
convés transformara-se numa selva de paus de lenha, emaranhado
como uma floresta após o tufão; à minha frente, com suavidade,
adejava uma imensa cortina de farrapos, a grande vela que a explosão
fizera em tiras. Pensei: - não tarda que os mastros caiam - e para me
safar fui de gatas pelo tombadilho. A primeira pessoa que vi foi o
Mahon com olhos esbugalhados, a boca aberta, o comprido cabelo
branco hirsuto à volta da cabeça como uma auréola de prata. Ia a descer
quando a visão, daquele toldo móvel, e a subir, e a transformar-se à
frente dele em paus de lenha, o petrificou no degrau de cima. Fiquei a
vê-lo, sem poder acreditar, e ele embasbacou-se para mim com uma
espécie de curiosidade estupefacta. Eu não sabia que ficara sem cabelo,
sem sobrancelhas nem pestanas, que o meu jovem bigode tinha ardido,
o meu rosto estava negro, com uma das faces rasgada, o nariz ferido e o
queixo a sangrar; que perdera o boné, um dos sapatos, ficara
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com a camisa em farrapos. De nada disto eu tinha consciência e a
minha surpresa era que o navio ainda flutuasse, o tombadilho
continuasse inteiro e todos estivessem com vida. Mas o céu calmo e a
serenidade das águas também eram realmente de espantar. Suponho
que esperava vê-los convulsionados de horror. Passem-me daí a garrafa!
Chegando ao navio de qualquer lado - do ar, sei lá, do céu - uma voz
gritava. Vi o capitão, como doido, a perguntar com impaciência: - Onde
está a mesa da câmara? - e a pergunta foi para mim um grande abalo.
Compreendam vocês que eu acabava de ir pelos ares, ainda vibrava
todo com a experiência, sem saber bem se ficara morto ou vivo! O
Mahon começou a bater com os dois pés no chão e a berrar: -Deus me
valha! Deus me valha! Pois não vê que o convés rebentou? Recuperada a
voz gaguejei, como ao peso de uma negligência no serviço: -Não sei
onde é que a mesa está. - Exactamente como num sonho absurdo.
Imaginam vocês o que é que ele pediu logo? Pois olhem: que
apanhássemos as vergas. Com a maior das calmas, e como perdido em
pensamentos, insistiu para que braceássemos a verga a mezena. - Não
sei se ficou alguém com vida - disse o Mahon quase a chorar. - Os
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que ficaram com certeza chegam para bracear a verga do traquete -
respondeu ele.
Parece que o velho estava no camarote a dar corda aos cronómetros
quando o choque o fez andar à roda. Pensara logo que o navio tivesse
batido em qualquer coisa, disse ele mais tarde, e correra para a câmara
onde notou o desaparecimento da mesa. Como o convés rebentara, era
natural que tivesse caído no paiol da popa. O sítio onde tínhamos
tomado de manhã o pequeno-almoço não passava de um grande
buraco. Facto tão misterioso que o espantou; e as coisas vistas e ouvidas
posteriormente no convés acabaram em parecer-lhe verdadeiras
ninharias. Mas saibam vocês que reparou logo na roda do leme
abandonada, no desvio da rota, e não quis saber de mais nada antes de
pôr aquele navio miserável, escavacado, desconvesado e fumegante, de
proa virada ao destino: Banguecoque! Só isso ele quis. Sempre vos digo
que aquele tipo tranquilo curvado, com as pernas tortas e quase
disforme, acabava por ser magnífico no simplismo da sua ideia fixa e na
pachorrenta ignorância que mostrava a respeito da nossa excitação:
Com um gesto de comando fez-nos marchar até à proa e ele próprio
tomou conta do leme.
Assim mesmo, a primeira coisa que fizemos
foi marcar as vergas, mas magoados estavam todos, mais ou menos.
Gostava que os vissem!
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Alguns em farrapos e com a cara negra como carvoeiros, como limpa
chaminés, de cabeça tão lisa como se a tivessem rapado à navalha, mas
realmente só chamuscada até à pele; outros - os do quarto de folga - que
tinham acordado na altura em que caíam, a ser cuspidos dos beliches,
não paravam de tiritar e gemer, mesmo quando se entregaram ao
trabalho. E todos trabalhavam. Aquela tripulação de Liverpool, feita de
ovelhas ranhosas, afinal era às direitas. E de acordo com a experiência
que tenho é sempre assim. O mar, a sua vastidão, o isolamento que lhes
envolve as almas sombrias consegue isso... Pois bem! Tropeçámos,
arrastamo-nos, caímos, esfolámos as canelas nos destroços para içar as
velas. Os mastros tinham-se aguentado de pé, mas não sabíamos até
que ponto carbonizados por baixo. O mar estava quase calmo, ainda
que uma larga ondulação de oeste fizesse andar o navio, mas os mastros
podiam ruir de um momento para o outro. Muito apreensivos
olhávamos para eles. Não sabíamos prever para que lado cairiam.
Depois refugiámo-nos na proa e demos uma olhadela em volta. O
convés era uma grande confusão de tábuas deitadas e de pé, estilhaços e
madeiramentos arruinados. Deste caos levantavam-se os mastros como
enormes árvores num matagal emaranhado, e os interstícios daquela
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massa de destroços enchiam-se de uma coisa esbranquiçada, mole,
móvel, parecida com um nevoeiro oleoso. O fumo do incêndio invisível
voltava a aparecer, a arrastar-se como uma névoa venenosa e espessa
num vale atravancado de arvoredo seco. Volutas de fumo lento
começavam a surgir em cima, retorcidas entre as ruínas. Aqui e além,
tábuas de pé faziam lembrar postes. Metade de uma roda de leme fora
cuspida através da vela do traquete e o céu de glorioso azul furava a
lona enxovalhada. Uma porção de tábuas ainda juntas caíra de través na
amurada projetando- se para fora do navio como uma prancha de
passagem que não levasse a sítio algum, prancha que nos levasse ao
mar-alto, à morte. um convite a atravessá-la e acabar de vez com os
nossos problemas ridículos. E no ar, no céu, pressentia-se o fantasma,
qualquer coisa de invisível que chamava pelo nosso navio.
Alguém teve o bom-senso de olhar para as águas: lá estava o homem do
leme que saltara borda fora sem saber como e fazia todos os esforços
para voltar a subir. Gritava e nadava vigorosamente como um tritão, a
acompanhar o navio. Atirámos-lhe um cabo e pouco depois já estava
connosco, encharcado e muito abatido. O capitão, esse entregara o
leme a outro, e de cotovelos na amurada, queixo na mão, solitário,
pusera-se de olhar fixo no mar. Da próxima
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vez o que será? perguntávamos aos nossos botões. - Começa a valer a
pena - pensei eu. - É espantoso! Gostava de saber adivinhar o que nos
espera. - Oh! Mocidade!
De repente, o Mahon avistou um vapor à ré. Diz o capitão Beard assim:
- Ainda há jeito de nos safarmos. - Içámos duas bandeiras anunciadoras
de fogo a bordo na linguagem internacional do mar. - Precisamos de
socorro urgente. - O vapor, que aumentou rapidamente de volume,
falou-nos com duas bandeiras no mastro de proa: Vou já prestar-vos
auxílio.
Meia hora depois estava quase imóvel ao nosso lado, a barlavento e ao
alcance da voz, de máquinas paradas. Perdemos a calma e desatámos a
gritar muito excitados: -Tivemos uma explosão! -Na ponte, um homem
de capacete branco berrou: -Pois sim! Não há-de ser nada! Não há-de
ser nada! -e abanava a cabeça e sorria, com a mão a fazer gestos
tranquilizantes como se fôssemos um bando de crianças assustadas.
Lançaram ao mar uma das canoas que veio pelas águas até nós, sob o
impulso de compridos remos. Era movida por quatro calaches, a ritmo
bem balançado. Foi a primeira vez que vi marinheiros malaios. Mais
tarde vim a conhecê-los bem, mas o que logo me impressionou foi o ar
indiferente que mostravam: fizeram a atracagem; e o proeiro, de pé,
seguro pelo garruncho à nossa corrente
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dos jóvens, nem se dignou a erguer a cabeça para nos deitar um olhar.
Pensava que pessoas atingidas por uma explosão mereciam mais
deferência!
Subiu a bordo um homenzinho seco como uma palha, ágil como um
macaco. Era o imediato daquele vapor. Depois de olhar à volta,
exclamou: - Ei, rapazes. É melhor largarem já isto!
Ficámos silenciosos. Durante algum tempo esteve a falar com o capitão
a sós, como se tentasse convencê-lo, e acabaram por ir juntos ao vapor.
Quando o capitão voltou, soubemos que se chamava Sommerville e era
comandado pelo capitão Nash; ia de Singapura a Batávia levar correio e
ficara assente que podia rebocar-nos até Batávia se possível, onde
trataríamos de apagar o incêndio abrindo um rombo no casco. Depois
seguiríamos viagem, para Banguecoque! O velhote parecia radiante.
Ainda havemos de conseguir!. - dizia ao Mahon, com ar bravio. E
ameaçava o céu de punho fechado. Ninguém tugiu nem mugiu.
Ao meio-dia começaram a rebocar-nos. O vapor à frente, todo elegante
e muito alto, o que restava do Judea atrás, no fim de setenta braças de
cabo. atrás e tão rápido como uma nuvem de fumo furada pela cabeça
daqueles mastros onde subimos para ferrar as velas.
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Nas vergas tossíamos, mas era grande o nosso empenho em armar o
pano à perfeição. Vêem vocês a cena? Um pedaço de gente a estender as
velas daquele navio condenado a não chegar a nenhum porto? Nem um
de nós pensava que os mastros não desabassem de úm instante para o
outro. Lá de cima o navio não se via, por causa do fumo, mas os
homens trabalhavam com cuidado, dando o mesmo número de voltas
em todos os tomadouros. - Ei! Vocês aí, é ferrar isso para ficar! - gritou
o Mahon do convés.
Compreendem a situação? Não penso que alguém esperasse descer da
forma habitual. E quando o fizemos, ouvi-os dizer uns aos outros: -
Bem! Eu cá pensava que ia pela borda fora, num grande trambolhão,
com mastros e tudo. raios me partam se não pensava! Eu também -
respondeu um deles, um cansadíssimo espantalho, todo nódoas negras
e ligaduras. E reparem que não eram homens calhados nos hábitos da
disciplina. Alguém que olhasse para eles só via um bando de vadiolas,
de atrevidos, sem nenhuma hipótese de entrar na ordem. Por que
faziam aquilo?. Por que obedeceram quando achei, muito convencido,
que havia uma beleza evidente naquele trabalho e os mandei arrear
duas vezes a vela do traquete? O quê! Reputação profissional não
tinham nenhuma. nenhum acto exemplar,
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nem louvor. E não era consciência do dever; o que lhes não faltava era
saber como fugir às tarefas, preguiçar, intrujar. quando para aí lhes
dava. e em geral dava. Seria pelas duas libras e dez ao mês que ali
andavam! Nenhum deles achava que o vencimento pagasse metade da
canseira. Não; tratava-se de qualquer coisa íntima, inata, subtil, terna.
Não quero realmente dizer que os homens de um navio mercante
inglês ou alemão não fizessem o mesmo, duvido é que o fizessem como
eles. Naquilo havia uma espécie de plenitude, qualquer coisa tão sólida
como um princípio e dominadora como um instinto. a revelação de
algo secreto, de oculto, o dom do bem ou do mal que diferencia as raças
e modela o destino das nações.
Às dez da noite é que vimos o fogo pela primeira vez, desde que o
combatíamos. A velocidade do reboque avivava aquela destruição
latente. Surgiu à proa um resplendor azul que brilhava debaixo do
convés destroçado. Lampejava aos farrapos, parecia que se deslocava,
que andava com um fulgor de pirilampo. Fui eu o primeiro a vê-lo e
disse-o ao Mahon.
- Então já perdemos a partida - respondeu ele. - É melhor pararmos
com o reboque, senão estoiramos de repente, da popa à proa, antes de
podermos fugir. - Começámos todos a gritar. Tocámos a sineta para
chamar a atenção,
55
mas o vapor continuou a rebocar-nos. Por fim, eu e o Mahon fomos de
gatas à ré e cortámos o cabo à machadada. Não havia tempo para
desfazer nós. Debaixo dos nossos pés, à medida que abríamos caminho
de regresso ao tombadilho, podíamos ver línguas vermelhas que
lambiam aquela selva de tábuas.
É claro que o vapor não tardou a notar que o cabo estava solto. Deu
uma apitadela forte; rápidas, as suas luzes descreveram um grande
círculo, e voltou a alinhar-se connosco e a parar. Estávamos todos
reunidos no tombadilho, a olhar para ele, cada qual com a sua trouxa
ou mala bem a salvo. De repente, à proa, uma chama cónica de ponta
retorcida saltou e atirou ao mar negro um círculo de luz por cima dos
dois navios lado a lado, a balançar docemente. Há horas que víamos o
capitão Beard silencioso, sentado na grade do tombadilho, mas nessa
altura levantou-se e com um andar muito lento passou por nós em
direcção à enxárcia da mezena. O capitão Nash gritou:
-Venham daí! Aviem-se, que tenho correio a bordo! Posso levar todos,
mais as canoas, até Singapura.
- Não, muito obrigado! - respondeu o capitão Beard. - Temos de
acompanhar o navio até ao fim.
- Não posso perder mais tempo. - berrou o outro. - Correio. não sei se
entendem.
56
- Com certeza! Com certeza! Não tem importância.
-Pois muito bem! Chegando a Singapura comunico. Adeus!
Acenou com a mão. Muito calmos, os nossos homens pousaram as
trouxas. O vapor começou a andar, e mal passou o círculo luminoso do
fogo fortemente ateado, que nos deslumbrava, perdemo-lo de vista.
Nessa altura fiquei certo de que iria ter a primeira visão do Oriente a
comandar um bote; achei bonito. Que bonita, a fidelidade ao velho
navio! Íamos ficar com ele até ao fim. E que encanto, a mocidade! Oh!
O fogo que tem, mais cintilante do que um navio a arder, a brilhar de
uma luz mágica pela extensão do mundo, que salta corajosa até ao céu
para depois, sem durar muito, ser apagada pelo tempo mais cruel, mais
impiedoso e mais amargo do que o mar e como as chamas do navio a
arder cercado de noite impenetrável.
Com os modos amáveis mas duros que o caracterizavam, preveniu-nos
o velhote que salvar para os seguradores todo o equipamento possível
fazia parte do nosso dever. Por isso nos atirámos ao trabalho na popa,
bem iluminados pela labareda da proa. Pusemos à mostra uma porção
de lixo. O que não salvámos nós?
57
Um velho barómetro, que uma absurda quantidade de parafusos
prendia, quase me custou a vida quando apanhei em cheio com uma
baforada de fumo e escapei à justa. Havia várias peças de reserva, rolos
de lona, rolos de cabo; o tombadilho ficou que parecia um bazar
marítimo, e as canoas atafulharam-se até às bordas. Dir-se-ia que o
velhote estava interessado em levar o mais possível do primeiro navio
que tivera sob o seu comando. É verdade que mostrava uma grande,
grande calma, mas não haja dúvidas, ficara avariado da bola. Acreditam
se vos disser que pretendeu levar na baleeira um ralo de cabo velho e
uma ancoreta? Com todo o respeito dizíamos que sim, que sim, mas à
socapa deitávamos as coisas pela borda fora. O trambolho, da farmácia
seguiu esse caminho, como aliás dois sacos de café por torrar, latas de
tinta. imaginem, tinta!. uma porção de coisas. Depois, mandaram-me
com um par de homens para dentro das embarcações fazer uma barrela
e deixá-las prontas a largar do navio quando chegasse o momento.
Pusemos tudo em ordem e montámos o mastro da baleeira destinada
ao comando do nosso capitão. Quando acabámos não tive pena
nenhuma de me sentar uns momentos! Sentia a cara esfolada, os
membros como se estivessem partidos, todas as costelas doridas e até
apostava que tinha torcido a coluna!
58
Amarradas à popa, as embarcações descansavam numa sombra densa,
cercada a toda a volta de mar clareado pelo incêndio. Da proa subia
uma chama gigantesca, muito direita e clara. Resplandecia furiosa,
entre ruídos que lembravam asas a bater, ribombos de trovão. Ouviam-
se estalidos, detonações, e do cone de chamas voavam faúlhas como
homens que ali nascessem para sofrer desgraças e navios que metiam
água, navios que ardiam.
Aborrecido era o Judea atravessar-se nas ondas e ao vento, só uma brisa,
e as canoas não se conservarem na proa teimando, com a teimosia
própria dos barcos, em meter-se por baixo da popa e rodar até ficarem
paralelas ao costado. Batiam nele de forma perigosa e aproximavam-se
das chamas enquanto o navio galgava para cima delas, por certo
correndo nós o risco dos mastros caírem a qualquer instante. Com
remos e croques, eu e os dois homens mantivemo-las o mais afastadas
possível, mas era exasperante não sairmos daquilo, tanto mais que se
não notava nenhum indício de largarmos já. Não podíamos ver os que
estavam a bordo, nem imaginar a causa da demora. Os homens de
guarda praguejavam em voz baixa e eu fazia não só a minha parte do
trabalho como a tarefa de aguentá-los aos dois, contrariando-lhes a
tendência para se deitarem e deixar correr o marfim.
59
A certa altura gritei: - ó do tombadilho! e alguém veio olhar para baixo.
- Estamos prontos - informei. A cabeça desapareceu para voltar logo a
espreitar. - O capitão manda dizer que está bem, e para manter as
embarcações afastadas do navio.
Passou meia hora. De repente ouvi um estrondo pavoroso, um ruído de
ferragens, correntes a chiar, esguichos de água, e milhões de faúlhas que
voavam de uma coluna de fumo toda trémula, um pouco deitada por
cima do navio. Tinham-se queimado os turcos e as duas âncoras ao
rubro metido pelo mar abaixo, arrastando duzentas braças de amarra
incandescente. O navio estremeceu, a massa das chamas vacilou como
se desmaiasse, o mastaréu da proa caiu por ali fora como uma flecha de
fogo, fazendo ricochete. Logo depois, com um salto de extensão igual a
um dos nossos remos, ficou a flutuar tranquilo e muito negro no mar
luminoso. Voltei a chamar. Passados instantes surgiu um homem
inesperadamente alegre mas com a voz abafada, como se tentasse falar
sem abrir a boca. - Vamos já, senhor piloto - e desapareceu. Durante
muito tempo só ouvi os zumbidos e os rugidos do fogo. E assobios
também. As embarcações pulavam e puxavam pelas amarras,
encavalitando-se umas nas outras; fizéssemos o que fizéssemos,
entrechocavam as bordas e batiam no costado do navio. Eu já
60
não aguentava mais. Trepei por um cabo e entrei a bordo pela popa.
A claridade era como se fosse dia. Subindo por onde subi, enfrentei uma
cortina de fogo terrífica e ao princípio o calor pareceu-me in suportável.
Com as pernas encolhidas e um braço por baixo da cabeça, banhado em
luz do incêndio, o capitão Beard estava deitado numa almofada de
banqueta que pertencera à câmara. E os outros, sabem vocês o que
faziam? Sentados no convés perto da popa, à volta de um caixote
aberto, comiam pão com queijo e bebiam garrafas de cerveja.
Pareciam tão à vontade como salamandras sobre aquele fundo de
chamas que acima das cabeças se torciam como línguas; pareciam um
bando de piratas. O fogo punha reflexos no branco dos olhos, cintilava
nos pedaços de pele branca que as camisas rotas mostravam. Em todos
havia sinais de batalha, cabeças ligadas, braços ao peito, tiras de pano
sujo à volta de um joelho; todos apertavam uma garrafa entre as pernas
e um naco de queijo na mão. O Mahon levantou-se. Com o seu rosto
belo e de aspecto duvidoso, o perfil aquilino, a barba branca comprida e
a garrafa desrolhada, parecia um corsário de antigamente, dos que não
tinham medo e se divertiam entre violências e calamidades. - A última
refeição a bordo - explicou-me ele em tom solene. - Durante o
dia não comemos nada e era disparate deixar por aqui tudo isto. - Com
a garrafa fez um floreado e apontou o capitão adormecido. Disse-me
que não conseguia engolir nenhuma comida e então convenci-o a
deitar-se - prosseguiu. - Não sei se sabe, meu rapaz, que há dias o
homem não pregava olho - explicou perante o meu ar espantado - e nas
embarcações vai ser um sarilho para fazermos uma soneca! -Se esta
maluqueira continuar por mais tempo, não tarda que não haja
embarcação nenhuma - respondi indignado. Dirigi-me ao capitão,
abanei-o por um ombro, mas se acabou em abrir os olhos, mexer não se
mexeu.
- São boas horas da gente largar - informei-o com ar muito calmo.
Levantou-se com dificuldade, de olhar fixo nas chamas, no mar que à
volta do navio cintilava e mais adiante era negro, negro como tinta;
olhou as estrelas a brilharem desvanecidas atrás de um fino véu de
fumo num céu negro.
- Primeiro os mais novos - disse ele. Um marinheiro que ainda limpava a
boca nas costas da mão saltou por cima da amurada da ré e
desapareceu. Outros fizeram o mesmo, mas um deles parou quando ia
a saltar, esvaziou a garrafa e atirou-a ao fogo com um gesto largo do
braço. - Toma lá!
62
O capitão, esse demorava-se, desconsolado e deixámo-lo fazer em paz a
comunhão solitária com o seu primeiro comando. As tantas voltei a
bordo e trouxe-o para fora do navio. Não era sem tempo! Só de lhes
tocarmos, os ferros da popa queimavam!
Cortado o cabo da baleeira, as três embarcações amarradas umas às
outras afastaram-se do navio. Quando chegámos a abandoná-lo tinham
decorrido dezasseis horas exactas sobre o instante da explosão. O
Mahon tomou conta da segunda canoa e eu da mais pequena. coisa
para ter uns 14 pés. Coubéssemos embora todos na baleeira, disse-nos o
capitão que era preciso salvar o mais possível para os seguradores. e
assim foi que cheguei ao meu primeiro comando. Iam dois homens
comigo, fora o saco de bolachas, algumas latas de conservas e uma
barrica com água, e recebi ordens para seguir de perto a baleeira, pois
em caso de mau tempo podíamos passar para ela.
Sabem vocês o que pensei? Pensei que era necessário dizer-lhes adeus o
mais depressa possível. Queria o primeiro comando só para mim.
Desde que houvesse a hipótese de uma rota independente, não estava
disposto a navegar em esquadra. Havia de descobrir terra sozinho!
Havia de bater as outras embarcações. Mocidade! Nada mais do que
mocidade! A pateta, encantadora e bela mocidade.
63
Mas acontece que não nos metemos logo ao caminho. Tínhamos
obrigação de acompanhar o navio até ao fim, e por isso andámos toda a
noite, por ali, a subir e a descer com o movimento das ondas. Os
homens dormitavam, acordavam, suspiravam e gemiam.
Quando olhei, o Judea incendiado ardia, violento, em plenas trevas de
mar e céu, num disco de água púrpura que reflectia aquele espectáculo
vermelho-sangue, disco de água luzidia e
sinistra. Uma labareda alta e clara, labareda imensa e solitária subia do
oceano e no cimo derramava um fumo negro que escorria
imparavelmente pelo céu. Ardia numa verdadeira fúria, era imponente
e lúgubre como uma pira funerária acesa no meio da noite, rodeada
pelo mar, velada pelas estrelas. Que morte esplêndida, concedida ao
velho navio como um favor, uma dádiva, uma recompensa no final da
sua vida de trabalho! Ver o seu espectro cansado render-se à guarda das
estrelas e do mar era tão emocionante como assistir à glória de um
triunfo. Antes da alvorada os mastros caíram. Por momentos houve
uma explosão e um turbilhão de faúlhas que parecia encher de fogo- de-
artificio a paciente e vigilante noite, a noite silenciosa que dormia sobre
o mar. Depois, à luz do dia, não passou de um casco carbonizado a
flutuar por baixo de uma nuvem de
64
fumo e com muito carvão em brasa guardado no seu bojo.
Armámos então os remos. As embarcações
- levando a baleeira à frente - deram uma volta em torno do que restava
como se fizessem uma procissão, e quando remámos do lado da popa
uma flecha de fogo muito fina veio acertar maldosamente em nós, na
altura em que o navio começou a afundar-se, a proa primeiro, no meio
de silvos de vapor. A última parte a mergulhar foi a popa por arder mas
já sem pintura, pelada e sem nenhuma, letra nenhuma palavra,
nenhuma obstinada divisa que lhe fizesse o papel de alma, que ao sol
nascente pusesse a brilhar o seu credo e o seu nome.
Rumámos ao norte e a brisa refrescou. Por volta do meio-dia as
embarcações estiveram juntas pela última vez. Na minha não havia
mastro nem vela, mas de um remo sobressalente eu tinha construído o
mastro que faltava e consegui içar o toldo com um croque a fazer de
verga. Não passava realmente de uma canoa com um mastro a mais,
mas sempre tive a satisfação de ver que poderia, apanhando boa brisa
pela popa, ganhar às outras duas a corrida. Tinha de esperar por elas.
Depois de um almoço de pão duro e água, muito amigável, estudámos
em conjunto a carta do capitão e recebemos as últimas instruções.
Eram
65
simples: apontar ao norte e andarmos juntos, o mais possível. - Marlow,
cuidado com esses improvisos! -tinha-me dito o capitão; e o Mahon,
com o nariz aquilino bem torcido quando passei, orgulhoso, pela sua
embarcação: - Se não estiver de atalaia ainda me põe esse barco debaixo
de água, meu rapaz! - Era um velhote cheio de ironia. e Deus queira
que o mar-alto onde agora dorme seja carinhoso para ele, saiba embalá-
lo com ternura por toda a eternidade!
Antes do sol-posto um aguaceiro correu por cima das outras duas
embarcações, à minha popa, e durante algum tempo não voltei a vê-las.
No dia seguinte, ao leme da casca-de-noz, o meu primeiro comando, só
tive mar e céu à volta. À tarde vi muito ao longe as velas altas de um
navio, mas não disse nada aos meus homens e eles nem deram por isso.
Eu tinha medo que fosse um barco com destino à Inglaterra.
Compreendam vocês que nem me passava pela cabeça voltar costas aos
portais do Oriente! Íamos direitos a Java. como sabem outro nome
bendito, ao lado de Banguecoque. Estive ao leme muitos dias.
Não preciso de vos contar o que é bater caminho numa embarcação
descoberta. Recordo noites e dias de calma em que remámos, remámos,
e a canoa parecia parada como se um feitiço a mantivesse presa àquele
círculo
de mar. Recordo o calor, o dilúvio de aguaceiros que obrigava a
baldeações para salvarmos a pele (mas ao menos enchiam o nosso
barril) e dezasseis horas sem fim, de boca seca como cinza e com um
remo à popa para moderar a rebentação contra o meu primeiro
comando. E ainda não tinha descoberto que afinal eu era aquilo a que
pode chamar-se um homem! Recordo as caras desanimadas, as figuras
abatidas dos meus dois tripulantes, recordo ainda a mocidade que eu
tinha e uma sensação que nunca mais voltei a sentir, de poder viver
sempre, sobreviver ao mar, ao céu e aos homens; a sensação enganosa
que nos arrasta às alegrias, aos perigos, ao amor, ao esforço inútil, à
morte; a convicção triunfante de ter- mos força, o calor da vida numa
mão cheia de pó, aquela chama do coração que ano após ano esmorece,
esfria, encolhe até apagar de todo. e apagar cedo, muito cedo. antes da
própria vida.
E assim vi o Oriente. Vi depois os seus lugares secretos, olhei-o dentro
da própria alma mas sempre de uma pequena canoa, com uma silhueta
alta de montanhas azul e distante, pela manhã; como névoa que se
desfaz ao meio-dia; parede de púrpura denteada ao pôr-do-sol. Na mão
ainda sinto o remo, nos olhos a visão de um mar intensamente azul. E
vejo a baía a cintilar no escuro, uma baía larga e lisa como
vidro, polida como espelho. Ao longe, nas trevas da costa arde um farol
vermelho e a noite é suave e morna. Com braços doridos puxamos
pelos remos e de repente essa noite calma expele uma lufada de vento,
branda e tépida lufada com um estranho aroma de flores, de madeira
perfumada. primeiro suspiro que o Oriente me atirou à cara. Nunca
poderei esquecê-lo assim, impalpável e déspota como um feitiço, como
promessa sussurrada de um misterioso prazer.
O derradeiro estirão fizera-nos remar onze horas. Remavam dois ao
mesmo tempo, e o que descansava ia sentar-se ao leme. Quando
avistámos a luz vermelha apontámos na sua direcção, pensando que se
tratasse de um pequeno porto. Ultrapassámos realmente dois navios de
popa alta muito exóticos, que dormiam ancorados, e já próximo do
farol esmaecido batemos com a proa do bote na ponta de um
desembarcadouro. Era tanto o nosso cansaço que nem víamos. Os
meus homens largaram os remos e caíram das bancadas como mortos.
Eu lancei a amarra a um pilar. A corrente encrespava muito ao de leve a
água. E a treva perfumada a costa deixava-nos pressentir grandes
massas, provavelmente uma profusão de árvores colossais. sombras
fantásticas e silenciosas. Na base luzia um indistinto semi círculo de
praia, como uma ilusão. Nem uma
luz havia, um movimento ou um som. O Oriente misterioso recebia-me
com aromas de flor mas um silêncio de morte, escuro como um
sepulcro.
Mais cansado do que saberei exprimir sentei-me, exultante como um
conquistador, incapaz de adormecer, fascinado, como se tivesse à frente
um enigma profundo e fatal.
Mas de repente saltei. Era um pesado bater de remos que a superfície da
água repercutia em profundidade, compassadamente, amplificado pelo
silêncio da costa. Aproximava-se de nós um bote, um bote europeu.
Num grito
- Ó a Judea! - invoquei o nome do morto. E a resposta foi outro grito
muito fraco.
Era o capitão. Eu tinha batido a baleeira em três horas. Que contente
me senti por voltar a ouvir a voz trémula e fatigada do velhote!
- É você, Marlow? - Gritei: - Cuidado com a testa da ponte, capitão!
Muito cauteloso aproximou-se e acostou com a linha de sonda que
tínhamos salvo para os seguradores. Folguei a boça, deixei-me boiar, e
então vi-o sentado, um vulto sucumbido à popa, encharcado de relento,
com as mãos juntas nos joelhos. Todos os homens dormiam. - Passei
um mau bocado - disse ele num murmúrio: O Máhon ficou para trás.
não muito. - Com medo de acordar a terra conversámos em voz baixa,
muito baixa. Sim,
69
que aos homens nem canhões, nem coriscos poderiam despertar.
Enquanto falávamos vi nas águas, ao longe, uma luz brilhante que
atravessava a noite. Na baía vai a passar um vapor-disse eu. Mas não
passava: entrava, aproximava-se e largava ferro. - Gostaria que me fosse
ver se é britânico - pediu o velhote. - Talvez nos pudesse levar a
qualquer lado. - Parecia-me nervoso e impaciente. A poder de socos e
pontapés acordei um dos meus homens, acordei-o até ao estado de
sonâmbulo, pus-lhe nas mãos um remo, fiz o mesmo a outro homem e
lá remámos em direcção às luzes.
Um sussurro de vozes, de choques surdos e metálicos da casa das
máquinas, de passos no convés, chegou até nós. As vigias brilhavam
redondas, como olhos espantados. Viam-se vultos que andavam de um
lado para o outro, e em cima, na ponte, a silhueta de um homem que
acabou em ouvir os nossos remos.
Antes que eu pudesse abrir a boca fui interpelado pelo Oriente mas
com voz ocidental. Naquele silêncio enigmático e funesto escorreu uma
torrente zangada de palavras estrangeiras de mistura com outras em
bom inglês, frases inteiras, que embora menos estranhas eram bastante
mais surpreendentes. Muito violenta, a voz praguejou e explodiu,
crivou com uma rajada de palavrões a paz solene da baía.
Primeiro chamou-me porco e depois subiu em crescendo até adjectivos
que não vou repetir em inglês. O homem berrava em duas línguas, lá
no alto, cheio de uma fúria sincera. Quase chegava a convencer-me da
existência de um pecado contra a harmonia universal que eu tivesse
feito. Era-me difícil vê-lo, mas começava a pensar que o sujeito ia ter
uma apoplexia.
Quando parou, roncava e soprava como uma foca. Perguntei:
-Pode dizer-me, por favor, que barco é este?
- Ahn? Mas o quê. Quem são vocês?
-A tripulação naufragada de um navio britânico que se incendiou no
mar. Chegámos aqui esta noite. Sou o segundo piloto. O capitão está na
baleeira e deseja saber se nos pode levar para algum lado.
-Oh! Senhor nosso! Pois fique a saber... que é o Celestial saído de
Singapura em viagem de regresso. Amanhã de manhã trato do assunto
com o seu capitão. e agora. diga-me cá. Ouviu o que eu dizia há pouco?
- Julgo que toda a baía ouviu .
- Supus que fosse um bote aqui da costa! Veja-me só. aquele calaceiro
do inferno, o diabo do guarda, tornou a dormir. raios o partam! O farol
apagou-se e por um pouco eu não batia na testa do maldito
embarcadouro!
É a terceira vez que me prega a partida! Diga- me se alguém pode
tolerar uma coisa destas. Se não chega para nos fazer perder o juízo!
Vou queixar-me dele. vou fazer com que o Encarregado o ponha na
rua, Imagine só. sem farol! Está apagado, não está? O senhor é
testemunha de que está apagado. Como sabe, tem de haver ali uma luz.
Uma luz vermelha no.
- Mas havia um farol - disse eu, cheio de paciência.
- Havia mas apagou-se, homem! Para que serve dizer isso? Pode ver
com os seus próprios olhos que se apagou. não pode? Se o senhor
tivesse de trazer um vapor caro, como este, ao longo de uma costa de
todos os diabos, também queria um farol! Mas hei-de corrê-lo a
pontapés! De uma ponta à outra deste miserável cais! Verá se não corro!
Hei-de.
- Posso dizer ao meu capitão que nos recebe - interrompi.
- Pode. Vou receber-vos. Boa-noite - respondeu num tom brusco.
Voltei para trás, amarrei de novo o bote à ponte e finalmente dormi. Já
tinha enfrentado o silêncio oriental e ouvido um pouco da sua
linguagem. Mas o silêncio era outra vez profundo quando acordei,
como se nunca o tivessem interrompido. Vi-me deitado numa torrente
de luz, debaixo de um céu que nunca me
72
pareceu tão distante e tão alto. Abri os olhos e fiquei assim, sem me
mexer.
E foi então que reparei nos homens do Oriente, a olharem para mim. O
embarcadouro enchera-se de uma ponta à outra. Vi caras escuras,
bronzeadas, amarelas, olhos negros, o brilho, a cor de uma multidão
oriental. Criaturas pasmadas, sem um murmúrio, um suspiro, um
movimento. Pasmadas para as embarcações mais abaixo, para os
homens adormecidos, vindos do mar, que ali tinham chegado de noite.
Nada se mexia. As frondes das palmeiras mantinham-se imóveis contra
o céu. Ao longo da costa nem um só ramo se movia, e os telhados
castanhos das casas espreitavam pela folhagem muito verde, pelas folhas
enormes que pendiam, brilhantes e imóveis como recortadas em metal
pesado. Era o Oriente muito velho e misterioso dos navegadores de
outrora, resplandecente e escuro, vivo e inalterável, cheio de perigo e
promessas. E os homens eram aqueles. Levantei-me de repente e um
movimento de onda, percorreu de extremo a extremo a multidão,
passou pelas cabeças, estremeceu os corpos, atravessou a ponte como a
ondulação uma água, a aragem um campo, e voltou a parar. Parece que
ainda vejo... o vasto círculo da baía, as areias faiscantes, a infinita e
variada riqueza do verde, o mar tão azul como os mares de sonho,
aquela
73
múltidão de caras atentas e o fulgor das cores berrantes. vejo a água
que reflectia tudo, a curva da costa, o embarcadouro, as popas altas dos
navios exóticos que flutuavam, muito calmos, e as três embarcações
com homens fatigados do Ocidente que dormiam sem consciência de
terra, de pessoas e do violento sol, que para ali dormiam atravessados
nos bancos, enroscados no fundo, nas atitudes desleixadas da morte.
Apoiada pela nuca na borda da baleeira, a cabeça do velho capitão caía
sobre o peito com todos os sintomas de não acordar mais. Adiante, o
rosto do velho Mahon virara-se para o céu, espalhando no peito a
comprida barba branca, como se o tivessem morto a tiro quando ia ao
leme; e um homem, caído no fundo da canoa como um saco, dormia
com a face pousada no talabardão, abraçado ao bido da proa. O Oriente
continuava a olhá-los, sem uma palavra.
Mais tarde senti-lhe o encanto; vi-lhe as costas misteriosas, a água
calma, terras de gente escura onde uma oculta Némesis aguarda,
persegue, e entre a raça conquistadora atinge muitos dos que sentem
orgulho na sua própria experiência, no seu saber, na sua força. Mas para
mim o Oriente continua a resumir-se nesta visão da mocidade. No
instante em que os meus olhos jovens se abriram para ele. Fui encontrá-
lo depois de um conflito com o mar,
74
era eu muito novo, e surpreendi-o a olhar para mim. Só isto me ficou
dele! Um só momento; de força, romance, sedução. de mocidade!. A
chicotada de sol numa praia estranha, o tempo de a lembrar, o tempo
de um suspiro e. adeus. é noite. Adeus . "
Bebeu.
-Ah! Bons tempos... bons tempos! Mocidade e mar. Sedução e mar! O
mar bom e vigoroso, salgado e amargo, capaz de nos dizer segredos, de
rugir ao ponto de nos deixar implacavelmente cortada a respiração.
Voltou a beber.
-Entre as maravilhas do mundo, penso que o mar é que é, o verdadeiro
mar, ou apenas a mocidade? Quem poderá dizê-lo? Vocês que aqui
estão, a todos deu a vida qualquer coisa: dinheiro, amor, aquilo que em
terra se consegue, e digam-me se o mais belo tempo não foi aquele em
que éramos jovens e andávamos no mar! Jovens e sem nada, que no mar
nunca se apanha nada, só pancada, e às vezes uma ocasião da nossa
força se fazer sentir, só isso. E se assim mesmo não foi o que deixou
mais saudades?
Todos concordámos: o homem da contabilidade, o homem das verbas,
o homem das leis; concordámos todos por cima da mesa tão polida que
nos reflectia o rosto como um espelho de água escura, as rugas, a
velhice; rostos
75
mirrados por canseiras, decepções, sucessos e amor; os nossos olhos
fatigados que procuravam e ansiosos procuram ainda essa qualquer
coisa que desaparece enquanto esperamos, passa sem ser vista, num
suspiro, num relâmpago, com a mocidade, a força, o romance das
ilusões.
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