Anais Eletrônicos - Intercâmbios Historiográficos (2016)
Anais Eletrônicos - Intercâmbios Historiográficos (2016)
Anais Eletrônicos - Intercâmbios Historiográficos (2016)
HISTORIOGRÁFICOS
(ARGENTINA – BRASIL – MÉXICO)
Organização
Antônio Fernando de Araújo Sá
Bruno Gonçalves Alvaro
Hericly Andrade Monteiro
ISSN: Em cadastramento.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE
REITOR: ANGELO ROBERTO ANTONIOLLI
VICE-REITOR: ANDRÉ MAURÍCIO SOUZA
COMISSÃO ORGANIZADORA
Prof.Dr.Alfredo Julien
Prof.Dr. Antonio Fernando de Araújo Sá
Prof.Dr. Antonio Lindvaldo Sousa
Prof.Dr. Augusto da Silva
Prof. Dr. Bruno Gonçalves Alvaro
Prof.Dr. Carlos de Oliveira Malaquias
Prof.Dra. Célia Costa Cardoso
Prof.Dr.Claudefranklin Monteiro Santos
Prof. Dr. Éder Donizete Silva
Prof.Dra. Edna Maria Matos Antonio
Prof.Dr. Fábio Maza
Prof.Dr. Lourival Santana Santos
Prof.Dr. Marcos Silva
Prof.Dr.Pericles Morais de Andrade Junior
Prof.Dr. Petrônio José Domingues
Prof.Dr. Samuel Barros de Medeiros Albuquerque
APOIO
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)
Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE)
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES)
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO........................................................................................................07
APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS..............................................................................10
TEXTOS COMPLETOS................................................................................................52
DE JOHN KEEGAN A GARCIA FITZ: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A GUERRA E SEUS
SIGNIFICADOS........................................................................................................182
8
PROGRAMAÇÃO GERAL
16/11/2015 (SEG)
9-12h - Credenciamento
14-18h - Grupos de Trabalho
19-22h - Conferência de Abertura
Profa. Dra. Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva (UFRJ)
Reflexões sobre a Pesquisa Historiográfica na Pós-graduação
Local: Auditório da ADUFS-SSIND (Campus São Cristóvão/UFS)
17/11/2015 (TER)
9
18/11/2015 (QUA)
19/11/2015 (QUI)
10
APRESENTAÇÃO DOS TRABALHOS
11
2. Carta dos Oficiais da Câmara de Vila Nova Real de El Rei do Rio
São Francisco: manuscrito oitocentista para o estudo da história
de um povo em transição
Sandra Aparecida Silva de Souza (Graduanda em História/UFS) e
Renata Ferreira Costa (Doutora em Letras pela Universidade de São
Paulo/2002)
12
4. O uso de fontes do Judiciário para o estudo da escravidão em
Sergipe no final dos Oitocentos
Moisés Augustinho dos Santos (Mestrando em História/UFS) e
Gleidson Menezes da Silva (Graduando em História/UFS)
13
6. Aspectos sobre Morte e Fé Cristã no Jornal O Maroinense (1887-
1892)
Suelayne Oliveira Andrade (Mestranda em História/UFS)
14
2. “Excellentissimo Conselho”: Economia e Sociedade em Sergipe del
Rey nas Atas do Conselho de Governo da Província (1824-1827)
Damilis Silveira Viana (Graduanda em História/UFS)
15
4. Riqueza e Sociedade na Comarca de Aracaju: um estudo sobre a
dinâmica social da elite sergipana (1855-1889)
Bruna Morrana dos Santos (Especialista em História do Brasil)
16
6. Fragmentos de Vidas: uma construção de contexto arqueológico
para as louças oitocentistas resgatadas nos sítios históricos
sergipanos
Monica Nunes Sampaio (Mestranda/ PROARQ/UFS)
17
GT2: MEMÓRIAS DAS DITADURAS LATINO-AMERICANAS NOS
PROCESSOS MUSEOLÓGICOS
Janaina Cardoso de Mello (Doutora em História Social/UFRJ)
LOCAL: SALA 16 DA DIDÁTICA VI
18
3. Marcha por Deus e pela Liberdade em Sergipe (1964): Pesquisa
Documental e Banco de Dados
20
GT3: SOCIEDADE E PODER NA ANTIGUIDADE E NO MEDIEVO:
PERSPECTIVAS HISTORIOGRÁFICAS
Bruno Gonçalves Alvaro (Doutor em História Comparada/UFRJ)
Hericly Andrade Monteiro (Mestrando em História/UFS)
LOCAL: AUDITÓRIO DO CECH
Esta comunicação tem por objetivo fazer uma análise de algumas das
produções iconográficas do fim da Idade Média e compreender a maneira
como os temas macabros são figurados. Consideramos que eles apontam
para uma mudança de mentalidade, cujo reflexo encontra-se na relação
entre as atitudes e as representações da morte, que deixa de ser
exclusivamente cristã e torna-se um assunto usual tanto na literatura
quanto na iconografia e escultura funerária, influenciando desse modo a
representação da Dança Macabra – principalmente a partir de 1350.
Num primeiro momento analisaremos o que os historiados produziram
em relação à temática e os debates travados na historiografia tradicional
22
e nos trabalhos mais recentes. Em seguida passaremos à análise e
compreensão das imagens.
23
eventos políticos-militares imediatamente ocorridos após a coroação de
Wamba.
24
4. As Cantigas de Santa Maria no reinado de Afonso X
Gustavo de Oliveira Andrade - Graduando em História/UFS
25
GT 4: PODER, SOCIEDADE E JUSTIÇA NO MUNDO IBERO-AMERICANO
(SÉCULOS XVI AO XVIII)
Augusto da Silva
Wanderlei de Oliveira Menezes
LOCAL: AUDITÓRIO DE PSICOLOGIA E FILOSOFIA
26
3. O erotismo dos hereges: um estudo sobre a moral sexual dos
cristãos-novos
Nilton Bruno Feitosa Santana (Mestrando/UFS)
27
5. Oposição ao poder da religião oficial em Sergipe colonial
Priscilla da Silva Góes (Graduada em História licenciatura; Pós graduada
em Educação e Patrimônio Cultural em Sergipe; Mestranda em Ciências da
Religião / PPGCIR-UFS)
28
TERÇA- FEIRA (17/11/2015 - 14:00 ÀS 18:00)
29
Público de Alagoas, do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, e do
Arquivo Histórico Ultramarino.
30
5. Práticas de Justiça e Ações dos Magistrados na Capitania de
Pernambuco (1789-1821)
Antonio Filipe Pereira Caetano (Doutor em História Universidade Federal
de Alagoas)
31
GT5: JUVENTUDE E EXPRESSÕES IDENTITÁRIAS NO CONTEXTO
URBANO
Mateus Antonio de Almeida Neto (Mestre em Antropologia/UFS)
Diogo Francisco Cruz Monteiro (Mestre em Antropologia/UFS)
LOCAL: SALA 18 DA DIDÁTICA VI
34
de expectativa dessa parcela da sociedade, e, simultaneamente, o tipo
de sistema de mobilidade urbana oferecido em grandes centros
urbanos. Desse modo, este trabalho objetiva discutir sobre a
participação e o perfil social, político e econômico dos jovens que
atuaram nas Manifestações de Junho de 2013, na cidade Maceió, a
partir do uso de fontes como jornais e fontes orais.
35
GT6: A INTERFACE HISTÓRIA DA LITERATURA/LITERATURA (FICÇÃO,
POESIA)
Rauer Ribeiro Rodrigues (Doutor em Estudos Literários/Unesp)
Ellen dos Santos Oliveira (Mestranda em Letras/UFS)
LOCAL: AUDITÓRIO DO POLO DE GESTÃO
Este artigo tem por objetivo refletir sobre a vida e a obra de Apolônio
Alves dos Santos, cordelista paraibano que migrou para o Rio de
Janeiro na década de 1950, onde desenvolveu sua vida artística como
cordelista simultaneamente as vivências enquanto operário
nordestino. O estudo da vida desse poeta foi realizado através dos
vestígios deixado em seus cordéis, pois apesar de ter sido um poeta
tradicional, vice-presidente da Academia Brasileira de Cordel e ter
escrito poesia por mais de três décadas, até o presente trabalho não
existiam registro sobre sua vida. Para além de uma narrativa de vida,
neste artigo discutiremos como a obra do artista pode promover o
conhecimento da realidade vivida e os modos de compreensão do
migrante nordestino parte da classe subalterna diante das mudanças
sociais e do cenário político e econômico do país.
37
5. O Modo de Representação do Negro em Menino de Engenho
Michelle Lima (Mestranda/UFS)
39
QUARTA- FEIRA (18/11/2015 - 14:00 ÀS 18:00)
41
GT7: HISTÓRIA INDÍGENA
Pedro Abelardo de Santana (Doutor em História/UFBA)
LOCAL: SALA 18 DA DIDÁTICA VI
42
3. De Taperaguá aos remanescentes do povoado aldeia: o processo de
extinção do aldeamento de Água azeda - Sergipe.
Carine Santos Pinto (Mestranda/ UFAL)
43
GT8: DIÁLOGOS LATINO-AMERICANOS: ENTRE HISTÓRIAS, SUJEITOS E
PRÁTICAS SOCIOCULTURAIS
Sheyla Farias Silva (Mestre em História/UFBA)
Vladimir José Dantas (Mestre em Geografia/UFS)
LOCAL: AUDITÓRIO DA DIDÁTICA 2
44
textuais que descrevem a figura da mulher negra escrava e suas
experiências. Para embasar teoricamente este estudo, também será
retratado autores que analisaram a figura da mulher negra na referida
obra, como Leila Mezan Algranti (1993), Eduardo Bueno (2003), Mary Del
Piore (2000), Florestan Fernandes (1971), Kabengele Munanga (1988),
Aristides Leo Pardo (2012), Caio prado Júnior (1994), Maria da Penha
Silva (2010), Marcos Henrique Zambello (2010). A metodologia usada na
pesquisa foi a pesquisa qualitativa e descritiva.
47
2. Sergipe e a construção da imagem pública de Augusto Maynard
Gomes no Estado Novo (1942-1945)
Adson do Espírito Santo (Mestrando em História/UFAL)
48
4. O Jornal Correio de Aracaju e o Retorno dos ex-expedicionários
Sergipanos
Marlíbia Raquel de Oliveira (Mestranda em História/UFPE)
49
O conhecimento e a valorização do Patrimônio Cultural de uma localidade
são de suma importância para que o mesmo seja utilizado no
desenvolvimento da atividade turística. Para chegar-se a esse conhecimento
e valorização, a Educação Patrimonial, referenciada como sendo uma
metodologia educacional que tem como finalidade a utilização de técnicas
voltadas à construção de uma investigação a cerca do patrimônio (material
ou imaterial), utiliza-se de sua metodologia através da observação, registro,
exploração, apropriação e valorização do patrimônio cultural de uma
localidade, para construção de um olhar diferenciado da população com o
patrimônio ao seu entorno. Já o turismo, por se tratar de uma atividade
que necessita de um atrativo, utiliza-se do patrimônio preservado e
conservado como um atrativo para o desenvolvimento e fomento da
atividade, gerando assim renda e desenvolvimento da localidade. Sendo
assim, os métodos e técnicas da Educação Patrimonial no desenvolvimento
do turismo tornam-se importante por se tratar de uma metodologia que
visa à construção do sentimento de salvaguarda e valorização do
patrimônio de uma localidade, sendo este preservado podendo ser utilizado
para o fomento do turismo local.
50
A comunicação apresenta resultados prévios e derivações de pesquisa
mais ampla, cuja temática versa sobre os refugiados argentinos no Brasil
no contexto de duas ditaduras militares no cone sul do continente.
Abordo a trajetória política/pessoal do ex-militante da organização
Montoneros, Miguel Fernández Long, refugiado no Brasil durante curto
período e exilado na Suécia até o início da década de 1980. Meu objetivo
é, a partir da metodologia da História oral e ancorado em bibliografia
delimitada, circunscrever experiências que deram significado e apoiaram
o sistema de crenças da militância montonera, porém, tomando como
ponto de referência a problemática de como uma voz que narra em
modalidade pessoal no presente interatua com as vozes situadas na
dimensão comunitária (PORTELLI, 2010). A alusão à obra de Neruda no
titulo deste trabalho pretende valorizar a densidade e as demandas
utópicas que presidem a ação política do indivíduo.
51
4. Um religioso pernambucano no sertão sergipano: Trajetória de
Frei Enoque e a questão fundiária 1942-1986.
Josefa Eliene dos Santos (Graduada em História/UFS)
52
Textos Completos
53
A BAIXA IDADE MÉDIA E AS FIGURAÇÕES DOS TEMAS MACABROS
Introdução
Em todas as culturas humanas a morte nunca foi um fato corriqueiro, insignificante. Pelo
contrário. Sempre teve papel de destaque; era pensada; sentida; vivida e carregada de
simbolismo. Na contemporaneidade esse fenômeno se tornou tabu. Ninguém o menciona,
ninguém quer pensar nele, e todos querem disfarçar quando chega. A sociedade recusa-se a
encará-lo apesar de saber tratar-se de uma coisa certa. Porém, apesar do interdito de hoje, em
toda a História ela foi motivo de indagações.
1 a
LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft, 21 ed. São Paulo. Ática, 2005.
2
ARAÚJO, Paula Vanêssa Rodrigues de; VIEIRA; Maria Jésia. A Questão da Morte e do Morrer. Revista
Brasileira de Enfermagem, Brasília, maio/junho de 2004, p. 361-3. Disponível em
http://www.scielo.br/pdf/reben/v57n3/a22v57n3.pdf. Último acesso em 15/10/2015.
54
pelo que está morrendo – o protagonista, sendo possível a outros apenas acompanharem o
desenrolar desse processo em segundo plano; o morrer, no entanto corresponde a um
procedimento experimentado ao longo da vida, antecedente à morte final e pontuado por
sucessivas mortes antes da morte propriamente dita.
Neste artigo voltamos nossa atenção para os anos finais do período medieval para
entendermos a complexidade dessa sociedade, seu funcionamento e suas tensões, assim como
refletir sobre a forte associação entre morte/mortos e cristandade no Ocidente por meio da
identificação dos lugares dos finados nos diferentes sistemas. Com esse intuito analisaremos
neste trabalho algumas das produções iconográficas do fim da Idade Média a fim de
compreendermos a maneira como os temas macabros foram figurados, apontando a mudança
de mentalidade, cujo reflexo encontra-se na relação entre as atitudes e as representações da
morte, que deixa de ser exclusivamente cristã e torna-se um assunto usual tanto na literatura
quanto na iconografia e na escultura funerária, influenciando desse modo a representação da
Dança Macabra – principalmente a partir de 1350. Num primeiro momento analisaremos o
que os historiados produziram em relação à temática e os debates travados na historiografia
tradicional e nos trabalhos mais recentes e em seguida passaremos a compreensão das
imagens, sejam elas visuais ou textuais.
Tradicionalmente, convém situar a Baixa Idade Média entre os séculos XIV e XV.
Esse período costuma atrair a atenção dos historiadores e pesquisadores da temática da morte
por tratar-se de um período marcado por transformações das atitudes dos homens diante do
fenômeno, transformações estas percebidas através das produções iconográficas produzidas
na época.
Entre os séculos finais do medievo a morte tornou-se o centro dos aspectos retratados
pelos artistas, com o enfoque na seguinte mensagem: ninguém está a salvo. Nesse sentido há
mudança da natureza da morte na historiografia tradicional, que deixa de ser exclusivamente
cristã, e torna-se um assunto bastante usual tanto na literatura quanto na iconografia e
escultura funerária, influenciando desse modo a representação da Dança Macabra –
55
principalmente a partir de 1350 – que passa a ser o reflexo da mudança de mentalidade no fim
do medievo. Ilustra-se de forma assustadora, angustiante, demonstra o medo, a dor, o
sofrimento das populações que diante de situações sociais adversas enxergam na arte uma
forma de se expressar, de mostrar sua impotência diante dos problemas que assolaram os
séculos XIV e XV.
As imagens macabras passam a representar a morte como uma força impessoal, com
iniciativa própria e inevitável, cujos esqueletos aparecem envoltos por lençóis brancos,
completa ou parcialmente desprovidos de matéria carnal e utilizando-se da gestualidade
corporal, “reflexo do desespero diante das dores físicas e doenças epidêmicas, como a peste
negra, que ceifou milhares de vidas”.3 A epidemia de Peste Negra ou Grande Peste do período
de 1348-1349 foi a pior de toda a Europa e provocou redução acentuada da população, que
segundo Boccaccio “para se tratar apenas da cidade (...) no período que vai de março a julho,
mais de 100.000 pessoas foram arrebatadas à vida, no interior dos muros da cidade de
Florença”.4
3
PEREIRA, Jacqueline da Silva Nunes. Um estudo da dança macabra por meio de imagens. II Encontro Nacional
de Estudos da Imagem. Londrina-PR, maio de 2009, p. 806, p. 806). Disponível em
http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais/trabalhos/pdf/Pereira,%20Jacqueline%20da%20silva.pdf.
Último acesso em 17/10/2015.
4
BOCCACCIO, Decamerom. São Paulo: Abril, 1981, p.17.
5
ALMEIDA. Letícia Gonçalves Alfeu de. O Papel da Memória na Pedagogia da Morte (século XV). Franca:
2013. Disponível em
http://base.repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/93244/almeida_lga_me_fran.pdf?sequence=1. Último
acesso em 15/10/2015.
56
carnes descompostas e os vermes impregnados a elas, “o aparecimento desse tipo de
representação não coincide exatamente com as pestes e, portanto, não pode ser pensado
apenas como resultado direto das mortandades, pois lhe é anterior”.6
Jacques Chiffoleau em O que faz a morte mudar na região de Avinhão no fim da Idade
Média8 levanta uma hipótese diferente do que foi descrito acima. Com base em gráficos e
tabelas estatísticas, pretende detectar as mudanças ocorridas na noção de morte dos
avinhoneses no fim da Idade Média. Através de argumentos extremamente pertinentes, o
autor tece sua resposta a partir das curvas populacionais: o aumento demográfico, subproduto
do desenvolvimento urbano e mercantil, introduziria novos padrões de vida e de
comportamento, que estariam na base das mudanças. Analisando uma série de testamentos da
região, buscou encerrar a visão de que a morte foi reveladora do papel da religião na vida
social. Em combate a toda uma corrente que pregava a obsessão pelo macabro por causa do
horror à epidemia de peste e diretamente ligado à multiplicação dos corpos e a crise
demográfica, Chiffoleau aponta a mutação de mentalidade refletida nas novas atitudes diante
dos mortos muito antes das pestes e das mortalidades. O “renascimento” do testamento
“romano” já é um sinal dessa transformação, onde a vontade individual do testador aparece
independente das pressões do costume. O fato de não se evocar mais a autoridade do pater
famílias para justificar a continuidade social possibilita o surgimento da “morte de si” devido
aos questionamentos às velhas solidariedades sociais. A novidade de seus argumentos
6
Ibdem, p. 16.
7
HUIZINGA, J. O Declínio da Idade Média. São Paulo: Editora Verbo. 1978.
8
CHIFFOLEAU, Jacques. O que faz a norte mudar na região de Avinhão no fim da Idade Média, p. 117-130.
In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade Média. São Paulo: Edusp, 1996.
57
consiste em atribuir a essas nuanças um novo significado: as crises do final da Idade Média
perturbam a passagem e a relação entre mortos e vivos; afeta a solidariedade da linhagem,
rompe com as raízes culturais e geográficas dos homens. O que perturba os avinhoneses é a
impossibilidade de reencontro com seus familiares no pós mortem, de se juntar aos restos
mortais dos seus e não a angustia visceral causada pelas doenças. O sentimento de fracasso
pessoal, de fragilidade humana não se trata do amor à vida, mas sim ao surgimento de uma
nova solidariedade, em que os mortos se vêem privados do acesso à sua família. Sendo assim,
não são os acontecimentos do período que modificam as imagens da morte, mas a relação
entre pais e tradição. É esse abandono, esse desenraizamento e a perda da linhagem
imaginária e imaginada, “não o simples desaparecimento de parentes reais, que dá conta das
novas atitudes em face da morte”.9 Contraditoriamente, a noção de indivíduo se reforça com
esse estado de instabilidade. “É na crise, no luto e na melancolia que nascem o homem, a
religião e a racionalidade moderna”.10
Ariès nos diz em História da Morte no Ocidente: Da Idade Média Aos Nossos Dias 11
que o macabro não significa o medo da morte nem do além, mas resultado de um amor
apaixonado pela vida, pelo mundo terrestre e resultado da consciência do fracasso de cada um
na hora do trespasse. As artes e as danças macabras acabam expressando não a revolta, mas o
desgosto diante dessa amargura. Os traços cadavéricos não amedrontavam, apenas serviam
para fortalecer a ilusão da vida suscitada pelo apego aos bens materiais.
Assim como salientou Ariès, Jean-Claude Schmitt atribui na obra Os vivos e os mortos
na sociedade medieval12 aos mendicantes e suas pregações essa modificação na morte
tradicional, diferente do que a maioria dos historiadores faz (muitos relacionam muito mais do
que deveriam o macabro às epidemias de peste no fim da Idade Média).
9
Idem, p.129. O autor nos diz que a peste apenas acelera um processo que já vinha sendo acentuado. Dois
aspectos são apontados como características desses novos ritos: 1- o cortejo como procissão que representa a
última viagem; 2- a teatralidade, o narcisismo e detalhamento dos testamentos.
10
Idem, p. 130.
11
ARIÉS, Philippe. História da Morte no Ocidente: Da Idade Média Aos Nossos Dias. Rio de Janeiro:
Ediouro, 2003.
12
SCHMITT, Jean-Claude. Os vivos e os mortos na sociedade medieval. Tradução Maria Lucia Machado. São
Paulo: Companhia das Letras. 1999
58
A iconografia, as danças e o macabro
Ao partir para a análise das imagens percebemos o que Ariès13 chamou de “triunfo da
morte”, ou seja, a igualdade dos homens diante do fenômeno. O final da Idade Média ilustra o
poder coletivo da morte, contraditoriamente ao mesmo tempo em que faz emergir o
individualismo de cada um quando sua hora chega. Essa última alegoria afasta-se do
individualismo, mas está muito mais afastada da morte domada.14 Apesar de ter consciência
de que ia morrer e se preparar para isso, a morte não previne; esse é o seu grande triunfo.
Vemos nessas imagens como a morte passou a ser retratada pelos artistas do fim da
Idade Média. Tornou-se o tema central das produções iconográficas e reflete algumas das
manifestações de histerias religiosas que marcaram esse longo período compreendido entre o
século V e o século XV. Descarta-se o imaginário de visão hierárquica; as três ordens ou o
imaginário do feudalismo rompe-se. Assim, a morte aparece como democrática, igualitária e
atingiu indiferentemente a todos, imperadores, reis, nobres, camponeses e até os clérigos
como apontou Hilário Franco Júnior.15 Sobre estes surge uma problemática: se o clero era
responsável pelo intermédio Deus-homem, pela luta incessante contra o pecado e estava
distanciado dos demais cristão, porque eles também estavam entre as vítimas desse
infortúnio?
13
ARIÉS, Philippe. O Homem Diante da Morte. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
14
Concepção de morte ao mesmo tempo familiar e próxima, cuja cerimônia era pública e organizada –
característica mesma de culturas pré-cristãs – que a cristandade medieval, com seu aparato ideológico, esforçou-
se por fazer prevalecer.
15 a
FRANCO JÚNIOR, Hilário. O A Idade Média e o Nascimento do Ocidente, 2 edição. Brasiliense, São Paulo:
2006.
59
A peste negra passou a ser vista como um castigo, um flagelo divino, regra que recaía
também aos membros da Igreja. Logo, todo e qualquer clérigo que tivesse um comportamento
desviado do proposto ou não se enquadrasse nos moldes eclesiásticos também seria
severamente punido por ela. Explica-se nesse contexto o surgimento dos Flagelantes, que
saíam em procissões penitenciais com danças e cânticos envoltos de mistérios.16 Nesse
sentido podemos extrair a função moralizante dessas figurações que originou-se nos autos de
moralidade e devoção, como também em poemas que tratavam da inevitabilidade da morte e
do convite à penitência.
Na imagem abaixo, a morte entra na casa de uma camponesa e leva um de seus filhos.
No campo inferior direito e em lugar de destaque, aparece uma ampulheta. Notamos uma
ligação direta entre a criança e o símbolo do tempo: essa conexão informa que a morte chega
para todos independente da idade e informa: como eu sou, tu serás.
16
HEERS, Jacques. O Fim da Idade Média no Ocidente. Rio de Janeiro: Difel, 1977.
60
ela assume uma forma – descarnada, corporificada. A morte surge para lhes informar a
proximidade de seu trespasse, na maioria das vezes, utilizando-se da gestualidade corporal.
Segundo Pereira,17 as danças macabras, além de serem realizadas nos cemitérios –
tornou-se uma prática muito comum no fim do medievo – acabam despertando interesses dos
artistas e ganhou grande espaço nas pinturas da época. Nesse sentido há mudança nas
maneiras de expor a morte e isso faz com que ela se torne um assunto muito usual tanto na
literatura quanto nas artes plásticas. As novas práticas de lidar com os mortos acabam
influenciando desse modo a representação dessa dança, principalmente a partir da metade do
século XIV. Ela era uma forma de manifestação corporal e reflexo também do desespero
diante das dores físicas e doenças epidêmicas.
Fazendo uma comparação das imagens que ilustram a morte com traços cadavéricos,
percebemos certa diferença entre as que retratam o fenômeno com ou sem a dança. Em
algumas telas, a morte ilustra-se de forma assustadora, angustiante e demonstra, a dor e o
sofrimento das populações que diante de situações sociais adversas, enxergam na arte uma
forma de se expressar, de mostrar sua impotência diante dos problemas que assolaram os
séculos XIV e XV. No entanto, algumas das imagens da dança macabra expressam certa
17
PEREIRA, Jacqueline da Silva Nunes. Um estudo da dança macabra por meio de imagens. II Encontro Nacional
de Estudos da Imagem. Londrina-PR, maio de 2009, p. 806, p. 806). Disponível em
http://www.uel.br/eventos/eneimagem/anais/trabalhos/pdf/Pereira,%20Jacqueline%20da%20silva.pdf.
Último acesso em 17/10/2015.
61
ironia e comicidades dos atores retratados nessas pinturas. Os esqueletos se contorcem,
utilizam a gestualidade e representam as dificuldades e possibilidades dos homens diante das
condições de vida. Apesar dessa diferença, em ambos os tipos de imagens o fenômeno é
retratado como uma força impessoal e inevitável.
Sobre a relação feita entre a crise social-demográfica resultante das mortandades e a
explosão do macabro, acreditamos que a emergência desse tipo de figuração seja pensada a
partir da confluência de fatores internos e externos, em que o impacto de choques exteriores
numa cultura depende das respostas de dentro, da maneira como uma cultura está predisposta
a responder a determinados eventos. Nesse sentido, podemos afirmar que as artes macabras
aparecem antes mesmo do aumento da mortalidade causadas pela fome e pelas doenças do
fim da Idade Média, mas esses fatores devem ser levados em consideração para compreender
o predomínio dessa maneira de figuração nos séculos finas do medievo.
A dança da morte passa dos cemitérios às artes, das artes para os aspectos mais triviais
e cotidianos. Saindo das telas pintadas para a análise de imagens textuais, percebemos a partir
das Crônicas do Rei Juan II de Castela produzida no século XV como a dança da morte é
transposta das telas para os acontecimentos do dia a dia. Na cerimônia de coroação de
Fernando de Antequera em 1414 ela é realizada com a intenção de entreter os presentes e eles
eram capazes de integrar o macabro, convertido em gênero, em sua cotidianidade e em suas
festas. O texto narra com detalhe esse acontecimento
Nos dois séculos finais do período medieval a dança se configura num traço cultural e
mental singulares, símbolo característico tanto da cultura aristocrática e das comunidades
18
Crónica de Juan II. In: ESPAÑOL, Francesca bertrán: Lo macabro en el gótico hispano, Madrid, Cuadernos
de Arte Español, n. 70, 1992, p. 8.
62
campesinas, ou seja, produto de movimentos e gestos refinados unidos a formas tradicionais e
resistentes das manifestações culturais.19
Na Baixa Idade Média a situação de vida dos homens tornou-se difícil, pois além dos
fatores que contribuíram para o desmantelamento do feudalismo, a peste contribuiu para as
modificações nas atitudes diante da morte e sua figuração. A partir da associação desse
fenômeno e da evolução das estruturas mentais da sociedade medieval, o macabro tornou-se o
centro das atenções dos medievais e dos aspectos retratados pelos artistas.
Observamos assim que para o homem tardo medieval, a morte não é um conceito
abstrato; ela apresenta-se concretamente em seu dia-a-dia, e em suas representações está
sempre dotada de significações. Essa complexidade da ideia e do conceito de morte nos faz
apreendê-la “como uma realidade física e espiritual. (...) Ela dissolve vínculos sociais antigos
e cristalizados e conduz a outros novos”.20
Considerações Finais
63
mesmo do aumento da mortalidade causadas pela fome e pelas doenças do fim da Idade
Média, mas esses fatores devem ser levados em consideração para compreendermos o
predomínio dessa maneira de figuração nos séculos finas da Idade Média.
Fontes
Imagens
Texto
Crónica de Juan II. In: ESPAÑOL, Francesca bertrán: Lo macabro en el gótico hispano,
Madrid, Cuadernos de Arte Español, n. 70, 1992.
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15/1/2014.
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Janeiro: Ediouro, 2003.
_____. O Homem Diante da Morte. São Paulo: Editora Unesp, 2014.
BOCCACCIO, Decamerom. São Paulo: Abril, 1981.
CHIFFOLEAU, Jacques. O que faz a norte mudar na região de Avinhão no fim da Idade
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Média, p. 117-130. In: BRAET, Herman; VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade
Média. São Paulo: Edusp, 1996.
HEERS, Jacques. O Fim da Idade Média no Ocidente. Rio de Janeiro: Difel, 1977.
LUFT, Celso Pedro. Minidicionário Luft. 21a ed. São Paulo: Ática, 2005
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Machado. São Paulo: Companhia das Letras. 1999.
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BRAET, Herman; VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade Média. São Paulo: Edusp,
1996.
65
GUERRA NAS ONDAS DO RÁDIO: UM ESTUDO ACERCA DAS
REPRESENTAÇÕES DO EIXO E DOS ALIADOS NA PROGRAMAÇÃO DA RÁDIO
CLUBE DE PERNAMBUCO (1942-1945)
21
Mestrando em História, Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: armandinho_recife@hotmail.com
22
CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Portugal: DIFEL, 2002, p. 17.
23
MOURA, Gerson. Tio Sam Chega ao Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 21.
66
difundir uma imagem positiva dos outros países latino-americanos nos Estados Unidos24. De
acordo com o então diretor da divisão de rádio do Office, Dom Francisco, o rádio ajudaria no
sentido de criar uma opinião publica dinâmica no hemisfério ocidental, apoiando efetivamente
o esforço de guerra das Republicas americanas, pois para ele, a opinião publica informada
rejeitaria a propaganda dos países do Eixo que atingia o continente25. A Divisão de Rádio do
Office enviou as rádios brasileiras programas como Espírito de Vitória e A Marcha do
Tempo. No primeiro, os ouvintes eram informados acerca do papel da resistência em países
dominados pelos nazistas. Já no programa A Marcha do Tempo, os ouvintes eram informados
sobre “as escolas para tripulantes de submarinos, a produção de alimentos em tempos de
guerra, a situação dos católicos na Alemanha, a guerra no deserto, o trabalho das enfermeiras
americanas e as vitórias americanas no pacífico”.26 Estes programas eram produzidos em
português nos estúdios das cadeias de rádio norte-americanas para serem enviados às rádios
brasileiras, inclusive a Rádio Clube de Pernambuco objeto de nosso estudo.
67
e juntando-se definitivamente ao grupo de radiófilos que pode ser considerado o embrião da
emissora.
Vale salientar que no principio o grupo de radioamadores fundadores do Rádio Clube
de Pernambuco tinha como objetivo difundir entre os seus associados à Telegrafia sem fio e
outras aplicações das ondas hertzianas, como a telefonia sem fio e a radio-dinâmica28, e não a
radiodifusão propriamente dita. Ao contrario da proposta de Roquette Pinto, que concebia o
rádio como um meio para estimular a educação e informação da população, a proposta dos
radiófilos pernambucanos foi diferente, pois se detinha no estudo dos conhecimentos técnico-
científicos em matéria de radiotelegrafia e radiofonia da época, por vezes sintonizando e
ouvindo algumas emissoras estrangeiras como a rádio americana KDKA.
No início da década de 30 a Rádio Clube começa a operar em sua sede na Avenida
Cruz Cabugá, saindo do pavilhão que situava-se onde fica atualmente o parque 13 de maio, no
bairro da Boa Vista, passando agora a ter o prefixo PRAP. O antigo transmissor francês de
marca Levy foi substituído por outro ainda mais potente, o Telefunken, de origem alemã e de 1
KW de potencia, montado e equipado pelo técnico alemão Otto Schiller. Isto permitiu que a
emissora transmitisse em ondas curtas para os estados do Rio Grande do Norte, Ceará e
Paraíba e também para países europeus como a Alemanha,29 recebendo varias
correspondências confirmando a recepção do sinal da emissora, fato que foi muito
comemorado entre os seus membros. Foi também realizado o primeiro concurso para locutor
da emissora, tendo como vencedor o professor de latim Abílio de Castro. O número de
anunciantes cresce, destacando-se as marcas de produtos conhecidos na capital pernambucana
como as gasosas Fratelli Vita e as Casa Parlophon, e até pomadas para calos e purgantes. Em
1937, a PRA830 tornou-se uma sociedade anônima, dispondo de uma considerável
infraestrutura para a época, possuindo em suas instalações um transmissor de marca Cinephon
com cem quilowatts de potência, o que permitia a emissora transmitir em ondas curtas de
forma mais nítida e aprimorada não só para os estados do Nordeste como também para outros
países.
28
Estatutos do Radio Club de Pernambuco. APUD CÂMARA, Renato Phaelante. Fragmentos da História do
Rádio Clube de Pernambuco. Recife: CEPE, 1998, p. 25.
29
A chegada das irradiações para outros países era confirmada através de correspondências enviadas a Radio
Clube, conforme relata Abílio de Castro em seu depoimento, tendo sido recebido correspondências da Alemanha
quando a emissora passa a transmitir por ondas curtas.
30
As emissoras de rádio possuíam prefixos que as identificavam entre as demais a nível estadual, nacional e
também internacional. Estes prefixos foram criados pelo então Ministério da Viação no governo Vargas. Em
meados da década de 30, o prefixo da Rádio Clube passa a ser o PRA 8. CÂMARA, op. cit., p. 49.
68
Nesse período a PRA8 Já possuía em seu acervo musical oito mil seiscentas e
cinquenta partituras e uma discoteca com doze mil e duzentos discos e um auditório com
quarenta poltronas que permitia ao publico acompanhar os concertos e apresentações musicais
feitas no estúdio principal da emissora, além de um estúdio auxiliar para as locuções.31 Além
disso, a P.R.A.8 também possuía um serviço de gravação de discos e acetatos que fora
inaugurado em seis de julho de 1936, tido como o primeiro sistema de gravações desse tipo
no Nordeste32, possibilitando a emissora fazer várias gravações e registros fonográficos da
época. Além dos alto-falantes instalados em Recife, a Rádio Clube também possuía outros
alto-falantes instalados em cidades do interior de Pernambuco como Vitória, Caruaru,
Catende, Garanhuns e Timbaúba33, o que possibilitou a irradiação para os principais
municípios do interior pernambucano.
Após vencer vários obstáculos durante sua trajetória, a Radio Clube consolida-se nos
anos trinta como uma das principais emissoras não só na região nordeste, mas também a nível
nacional, adquirindo e possuindo uma boa infraestrutura e um cast considerável de artistas
para a época. Contudo, após as dificuldades técnicas, institucionais e de infraestrutura que
foram vencidas, a PRA8 e os seus integrantes teriam outro desafio ainda maior pela frente:
lidar com o controle exercido pelo novo regime de governo instaurado em 10 de novembro de
1937, o Estado Novo, que iria interferir de forma significativa nos meios de comunicação da
época, principalmente no rádio.
No caso especifico de Pernambuco, o então interventor Agamenon Magalhães
articulou um esquema de propaganda e divulgação das obras e realizações do Estado Novo
em sua Interventoria, utilizando-se da imprensa e do rádio como canais de propaganda,
doutrinação e persuasão que contribuíram significativamente para a legitimação da ordem
vigente. Assim, Agamenon tinha a sua disposição duas edições do jornal de sua propriedade,
o periódico Folha da Manhã, que circulava em duas edições diárias. Em seu conteúdo, a
Folha da Manhã pode ser tida como “um exemplo de apologia ao modelo político nazi-
fascista, que exacerba em seus cânones de paradigma politico, os conceitos de ordem,
autoridade, pátria e igreja”34, elementos que foram muito difundidos e propagados nos
editoriais escritos por Agamenon neste periódico. Além disso, a Folha da Manhã também
31
MARANHÃO FILHO, Luiz. Raízes do Rádio. Olinda: Ed. do Organizador, 2012, p. 49.
32
CÂMARA, op. cit., p. 61.
33
Ofício enviado ao Delegado da Delegacia de Ordem Política e Social de Pernambuco (DOPS-PE), Fábio
Correia, em 6 de setembro de 1941. Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano (APEJE), DOPS-PE, Rádio
Clube de Pernambuco, Prontuário Funcional nº 1106.
34
ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde de. A construção da verdade autoritária. São Paulo:
Humanitas/FFLCH/USP, 2001, p. 32.
69
tinha a função de divulgar e propagar os feitos do regime estado-novista, tanto a nível
nacional quanto local.
Mas além deste periódico, Agamenon também dispunha de dois programas diários na
programação PRA8: Conversa com o ouvinte, no qual respondia as cartas enviadas pelos
ouvintes da emissora e também dissertava sobre assuntos de seu interesse; o outro era A nota
do dia, onde seus editorias e artigos que eram escritos e publicados na Folha da Manhã eram
lidos na emissora pelo locutor Ziul Matos. Desse modo, a PRA8 recebeu a incumbência – ou
a imposição – de irradiar os editoriais de Agamenon diariamente em sua programação.
Destarte, a Rádio Clube de Pernambuco não escaparia ao uso político dos meios de
comunicação feito pelo regime estado-novista, pois apesar de o Estado Novo não ser definido
como um regime fascista por alguns autores, há um aspecto a ser considerado no que diz
respeito à semelhança entre esses regimes: a propaganda politica. Como observa Maria
Helena Capelato35, o controle sobre a imprensa, a supressão das publicações opositoras e o
uso dos meios de comunicação no sentido moderno são elementos que apontam para uma
semelhança entre os regimes. Mas com o advento da Segunda Guerra Mundial, ocorreram
mudanças relevantes na programação e na orientação da emissora, principalmente após a
entrada do Brasil no conflito.
35
CAPELATO, Maria Helena. Multidões em cena: propaganda política no varguismo e no peronismo. São
Paulo: UNESP, 2009, p. 73.
36
Na Enciclopédia alemã Brockhaus, de 1934, encontra-se um verbete acerca da Transocean, afirmando se tratar
de uma Agência de noticias alemã fundada em 1914, dirigindo-se exclusivamente ao exterior, principalmente ao
além mar. Os serviços desta companhia eram transmitidos por telegrafia sem fio, por ondas curtas de diferentes
comprimentos a partir da estação de rádio de Nauen. A Transocean fornecia diariamente uma série de serviços
em inglês, francês, espanhol e alemão, contando também com um serviço de artigos e fotos. Havia também um
serviço especial para os navios alemães em alto mar. Der Grosse Brockhaus. 1934, v. 19, p. 29. APUD
FRANZOLIN, João Artur Ciciliato. Uma aposta arriscada: o Jornal Meio dia e o nazismo (1939-1942). São
Paulo: Cultura Acadêmica, 2013, p. 39.
70
sexta às 19 horas e 10 minutos37 e que em maio de 1941 já não aparece mais na programação.
Por se tratar de uma empresa que era tida como foco de espionagem alemã no Brasil e que
distribuía gratuitamente propaganda nazista para todos os jornais que se interessassem38, a
Transocean foi fechada em 1942 pelo governo brasileiro. Neste mesmo ano, O Repórter Esso
estreou na programação da PRA8 no dia 19 de julho de 1942, sendo irradiado de segunda a
sábado às 9h30min, 12h 55 min, 19h55min e 22h55min, com irradiações também aos
domingos às 12h55min e 22h.30min39. O Repórter Esso era patrocinado pela Standard Oil of
New Jersey, produzido pela agência de noticias United Press e supervisionado pela McCann-
Erickson Corporation (todas as empresas norte-americanas) que passou a ser tipificado depois
como síntese noticiosa. Este noticioso também alterou substancialmente o modo como os
ouvintes se informavam acerca da guerra mundial, passando a contar com um noticioso
pontual, conciso, claro e objetivo em seu conteúdo, aparentando parcialidade. As noticias do
Repórter Esso eram repletas de adjetivos, valorizando o feito das tropas aliadas (inclusive da
Força Expedicionária Brasileira), a política de Boa Vizinhança e também preconizavam a
união definitiva das Américas contra os agressores mundiais. Também foi conferido um certo
tom de mistério ao poder de destruição provocado pelas bombas lançadas sobre Hiroshima e
Nagasaki.40
A programação musical também foi sofreu alterações. Após o alinhamento do Brasil
com os aliados, o controle e a censura do DIP sobre a Rádio Clube intensificam-se,
principalmente em relação às músicas de compositores italianos e alemães que eram
irradiadas. Em oficio enviado pelo Departamento de Imprensa e Propaganda ao diretor do
DEIP-PE em 18 de setembro de 1944, o então diretor da Divisão de Rádio do DIP, Enéas
Machado de Assis, proíbe categoricamente “a irradiação de canções populares e militares em
língua alemã ou italiana”, assim como as “óperas de Wagner cantadas em alemão ou
italiano”41. Por outro lado, se analisarmos a programação deste mesmo período, veremos que
abriu-se mais espaço para as músicas de compositores americanos, como no programa
Melodias da Broadway42, que ia ao ar às nove e meia da manhã, irradiando as músicas
executadas nos diversos musicais da Broadway.
37
APEJE, Folha da Manhã (Edição Matutina) 17 de maio de 1941, p. 6.
38
FRANZOLIN, op. cit. p. 39.
39
APEJE, Folha da Manhã (Edição Matutina) 19 de julho de 1942, p. 6.
40
KLÖCKNER, Luciano. O Repórter Esso: a síntese radiofônica mundial que fez história. Porto Alegre:
EDIPUC, 2008. p. 142.
41
Ofício enviado pelo DIP ao DEIP-PE em 18 de setembro de 1944. APEJE, Fundos Diversos, Interventoria,
Fundo nº 5.
42
APEJE, Folha da Manhã (Edição Matutina) 9 de maio de 1944, p. 6.
71
Contudo, para melhor compreendermos como a Segunda Guerra foi irradiada nas
ondas da PRA8, faz-se necessário analisarmos pormenorizadamente as representações acerca
do Eixo e os Aliados nos programas da emissora, assim como o processo de construção das
mesmas.
A guerra também foi assunto das crônicas irradiadas pela Rádio Clube no programa
Crônica da Noite, que ia ao ar por volta das 19 horas da noite. Em meio a essas crônicas,
destaca-se as do médico e escritor pernambucano Otávio de Freitas Júnior. A figura do
“quinta coluna” é tema de uma destas crônicas:
43
Crônica da Noite. Quinta Coluna. APEJE, DOPS-PE, Rádio Clube de Pernambuco, Prontuário Funcional nº
1106.
44
HOBSBAWN, Eric. Era dos Estremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p.
153-155.
72
atividade do quinta coluna. Na Espanha, a denominação do quinta coluna foi dada para uma
parcela da população que apoiava o General Franco na guerra civil contra os republicanos.
Contudo, se analisarmos a representação do quinta coluna num sentido mais particular e
historicamente determinado45, veremos que no Brasil, a expressão “quinta coluna” foi
utilizada tanto como arma de acusação contra aqueles que manifestavam indiferença ou
divergência em relação à posição politica adotada pelo governo a partir do alinhamento com
os EUA na Segunda Guerra como também para designar os brasileiros simpatizantes do nazi-
fascismo, pois como afirma Cordeiro46, a partir do avanço do nazi-fascismo em vários países,
a expressão foi adotada para denominar os nacionais acusados de simpatizarem com essas
idéias.
Democracia e liberdade também foram temas recorrentes na crônica irradiada no dia
21 de setembro de 1943 intitulada sobre a liberdade, onde Otávio de Freitas Júnior defende
abertamente os valores incorporados pelos Aliados e critica de forma mordaz o
intervencionismo, o militarismo e o autoritarismo defendidos pelos países do Eixo,
associando os nazi-fascistas aos antigos déspotas:
Lesar os direitos do homem é função dos tiranos, assim como lesar os direitos de
cada um em particular é função dos criminosos. Pois os tiranos são anomalias na
marcha do progresso humano, e repelem o desenvolvimento normal da marcha
45
CHARTIER, op. cit. p. 20.
46
CORDEIRO, Philonila Maria Nogueira. Ascensão das Idéias Nazistas: a Quinta Coluna em Ação (1937-
1945) Recife: UFPE, 2005, p. 13. Dissertação de Mestrado.
47
Crônica da Noite. Sobre a Liberdade. APEJE, DOPS-PE, Rádio Clube de Pernambuco, Prontuário Funcional
nº 1106.
73
civilizatória da espécie. [...] Cento e cinquenta anos depois da queda da Bastilha um
retorno à tirania e ao despotismo ameaçou a humanidade. Nesta hora homens como
Churchill e Franklin Delano Roosevelt, à frente de milhões de indivíduos decididos
à luta, levantaram o estandarte dos direitos do homem e enfrentaram as forças
aperfeiçoadas dos neo-bárbaros. Como um só homem os povos conscientes e
amantes do Direito se levantaram, seguindo os paladinos da liberdade48.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
48
Crônica da Noite. Os Direitos do Homem. APEJE, DOPS-PE, Rádio Clube de Pernambuco, Prontuário
Funcional nº 1106.
74
passa a estar em consonância com a orientação do regime do Estado Novo, servindo como
instrumento de doutrinação e propagação das ideias do regime de Vargas e também dos
aliados.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Maria das Graças Andrade Ataíde de. A construção da verdade autoritária.
São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.
CORDEIRO, Philonila Maria Nogueira. Ascensão das Idéias Nazistas: a Quinta Coluna em
Ação (1937-1945) Recife: UFPE, 2005. Dissertação de Mestrado
FRANZOLIN, João Artur Ciciliato. Uma aposta arriscada: o Jornal Meio dia e o nazismo
(1939-1942). São Paulo: Cultura Acadêmica, 2013
HOBSBAWN, Eric. Era dos Estremos: o breve século XX 1914-1991. São Paulo: Cia das
Letras, 1995
KLÖCKNER, Luciano. O Repórter Esso: a síntese radiofônica mundial que fez história.
Porto Alegre: EDIPUC, 2008.
MARANHÃO FILHO, Luiz. Memória do Rádio. Recife: Editora Universitária UFPE, 2000.
MOURA, Gerson. Tio Sam chega ao Brasil: a penetração cultural americana. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1984.
75
TOTA, Antônio Pedro. O imperialismo Sedutor: a americanização do Brasil na época da
Segunda Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
76
RIQUEZA E SOCIEDADE NA COMARCA DE ARACAJU: UM ESTUDO SOBRE A
DINÂMICA SOCIAL DA ELITE SERGIPANA (1855-1889)
INTRODUÇÃO
A primeira metade do século XIX foi marcada por profundas transformações nas
estruturas econômicas, sociais e políticas do Brasil monárquico. Acontecimentos como a
declaração da independência em 1822, a abdicação do trono de D. Pedro I em abril de 1831,
as revoltas regenciais como a Farroupilha, a Cabanagem, a Sabinada e a Balaiada,
antecederam o início do Segundo Reinado. Nesse cenário, em 25 de julho de 1840, o jovem
Pedro de Alcântara tornou-se o novo imperador com apenas 14 anos de idade, através do
49
FARIA, 1997, pág. 199.
77
conhecido golpe da maioridade. Além disso, merecem destaque, o declínio da mineração, a
abolição do tráfico negreiro internacional pela Lei Eusébio de Queiróz, promulgada em 1850,
e também do mesmo ano, a Lei de Terras nº 601, que visava acabar com a especulação
agrária, porém, estava ligada à satisfação dos interesses da elite.
A província de Sergipe também passou por algumas mudanças que não mexeram
somente com a vida política e administrativa, como a emancipação política de 182050 e as
disputas político-partidárias pelo poder entre conservadores e liberais (rapinas e
camondongos), mas também com a vida social e econômica que se modificava à medida que a
vida urbana se desenvolvia, principalmente em centros como Laranjeiras, a vila mais rica da
província, Estância, a mais populosa e Maruim, a vila melhor localizada geograficamente.
Outras localidades também se destacaram no período como a Vila de Santo Amaro das
Brotas, que entre 1836 e 1837 passou por um processo revolucionário e a Vila de Lagarto, que
prosperava com a criação de gado e o plantio de fumo. No ano de 1854, a menor província do
Império do Brasil possuía 132.640 habitantes, sendo que 100.192 eram pessoas livres e
32.448 escravos.
METODOLOGIA
50
A autonomia da Capitania de Sergipe Del Rey foi concedida através de decreto régio assinado pelo Rei D.
João VI em 08 de julho de 1820.
78
fontes históricas. O ponto essencial do paradigma indiciário, venatório, ou semiótico surgido
em meados no século XIX, é compreender que, por mais difícil e opaca que a realidade seja,
algumas zonas privilegiadas como sinais e indícios nos permitem desvendá-la.
A MUDANÇA DA CAPITAL
“Entendo que a Séde da Capital da Província não deve continuar a ser na Cidade de
Sam Christovão, e para este fim proponho-vos o Povoado do Aracajú, onde nos achamos,
pelas rasões que passo a expôr-vos.”51. Estas palavras foram proferidas na Assembleia
Legislativa Provincial pelo presidente, o Bacharel Inácio Joaquim Barboza que, juntamente
com o deputado João Gomes de Melo52, protelou em 1855 a mudança da capital de São
Cristóvão para o Arraial do Aracaju, uma região cercada por pântanos, dunas, riachos e rios.
Tal medida de criar uma cidade foi tomada por homens influentes da política sergipana e
segundo a definição do sociólogo americano Wright Mills (1981), “a elite do poder é
composta de homens cuja posição lhes permite transcender o ambiente dos homens comuns, e
tomar decisões de grandes consequências. ”53
Devemos considerar que, essa mudança “não deve ser vista como um ato precipitado,
mas planejado objetivamente, visando às necessidades do comércio, lavoura e navegação.”54,
pois a velha capital da província não possuía um porto que fosse capaz de escoar a produção
de açúcar. Desde a década de 1830, período que marca a expansão dos canaviais, já se
cogitava uma possível transferência da capital que só foi oficialmente efetivada pela
Resolução nº 413, sancionada no dia 17 de março de 1855. No mesmo documento, o Povoado
Santo Antônio do Aracaju foi elevado à categoria de cidade, passando a se chamar cidade do
Aracaju.
51
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial de Sergipe na abertura de sua sessão ordinária no
dia 1º de março de 1855 pelo exm. Snr. Presidente da Província Dr. Ignacio Joaquim Barboza. Sergipe,
Tipografia Provincial, 1855.
52
João Gomes de Melo, o Barão de Maruim, dedicou-se à agricultura onde adquiriu notável fortuna e próspera
carreira política. Chegou a ser chefe do partido conservador, e em 1848 foi nobilitado pelo governo imperial com
o título de Barão. Além disso, foi comandante superior da Guarda Nacional, deputado geral e vice-presidente da
Província desde 27 de setembro de 1855 até 27 de fevereiro do ano seguinte.
53
MILLS, 1981, pág. 12.
54
NUNES, 2006, pág. 141.
79
Francisco Porto afirma que a evolução de Aracaju pode ser definida em quatro fases.
O primeiro momento teve como marco inicial a fundação da cidade e durou dez anos. “É o
que poderíamos considerar o período da conquista, caracterizado pelos movimentos iniciais
de expansão favorecidos e estimulados, como não podia deixar de ser, pela ação do governo
provincial”.55
Entretanto, há um trabalho recente que traz maiores subsídios sobre a história das
camadas mais abastadas em Sergipe, mas o seu enfoque recai sobre o período colonial. Elite
setecentista instruída em Sergipe Del Rey (1725/1800) consiste em uma tese de doutorado em
Educação defendida na Universidade Federal de Sergipe em 2013 por Eugênia Andrade
Vieira da Silva. Nele a autora buscou mediante o estudo das assinaturas e das capacidades
alfabéticas (ler e escrever) presentes nos inventários e testamentos, perceber o nível de
letramento da elite do século XVIII. Ademais, a pesquisa também serve de referência para
perceber as relações de parentesco, amizade e/ou compadrio dentro do referido grupo social.
55
PORTO, 1945, pág.14.
80
De maneira geral, a denominação elite “refere-se àqueles indivíduos pertencentes aos
grupos melhores situados na estrutura social como um todo.”56. Desde a chegada da corte
portuguesa em 1808 até a época da independência, em 1822, a estrutura econômica da
sociedade brasileira era composta pelos senhores brancos, que compunham a classe dirigente,
e pelos escravos. Entre esses dois extremos, é importante assinalar a existência dos pequenos
burgueses, lavradores e em maior número, dos homens livres pobres. Contudo, “a grande
massa do povo se encontrava, pois na dependência de um pequeno grupo de senhores, que,
durante a época imperial viriam tornar-se a elite e aristocracia.”57. A respeito da formação da
elite sergipana, Maria Thetis Nunes (2006), explica que:
56
MONTEIRO, 2009, pág. 25.
57
FAUSTO, 1997, pág. 221.
58
NUNES, 2006, pág.48.
81
de seus habitantes; não é menos importante o fabrico de sal, de cujo trabalho resulta um
capital de 60 a 80:000$000 réis, termo medio.”59
A maioria dos testamentos foram encontrados como parte integrante dos inventários, o
que contribui para completar as informações referentes ao mesmo indivíduo. De acordo com
Maria Helena Ochi Flexor (2005), nem sempre o indivíduo inventariado deixava testamento,
pois este era facultativo. Contudo, é interessante salientar que nos inventários, foram
encontrados os Traslados dos testamentos62, que além de serem uma parte integrante da
tramitação do processo, traziam o seu cumprimento e contas.
59
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial de Sergipe, 1856, pág. 31.
60
Relatório apresentado à Assembleia Legislativa Provincial de Sergipe, 1856, pág. 05.
61
DAUMARD, 1984, pág. 112.
62
A Lei nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973, que regulamenta a instituição do atual Código de Processo Civil
Brasileiro, determina no seu Art. 1.128 que “Quando o testamento for público, qualquer interessado, exibindo-
lhe o traslado ou certidão, poderá requerer ao juiz que ordene o seu cumprimento.”
82
alianças políticas, as famílias da elite branca e proprietária estreitavam os laços de
solidariedade através dos batismos e dos casamentos, ambos sancionados pela Igreja Católica.
Durante o período estudado, a Igreja sergipana ainda estava subordinada à Arquidiocese da
Bahia e só em 1912 foi criada a Diocese de Aracaju. Além da função religiosa, o batismo,
prática comum desde o período colonial, também promovia o reconhecimento das redes de
relações existentes na sociedade. No testamento de 1855 do Capitão José Teixeira da Cunha,
verificamos como era descrito o compromisso estabelecido na pia batismal:
Os testamenteiros eram as pessoas nomeadas pelo testador ou pelo juiz para fazer
cumprir o desejo descrito no testamento. Dessa maneira, os laços de compadrio também
influenciavam nas escolhas, como foi encontrado no Traslado do Registro do Testamento do
Cônego Agostinho Rodrigues Braga, procedente de Aracaju e datado do ano de 1873:
63
Referência Arquivística: AGJ-AJU/C 2º OF. Inventário – Cx.13/2320, nº 222, pág. 232.
64
Referência Arquivística: AGJ-AJU/C 1º OF. Inventário – Cx.01/2083, nº 310, pág. 05.
65
Referência Arquivística: AGJ-AJU/C 2º OF. Inventário – Cx.14/2321, nº 191, pág. 32.
83
que seos Padrinhos lhe darão claro que depois de cumpridas as minhas disposições...” 66. No
mesmo documento, o referido tenente ainda designa os padrinhos de sua filha Adelaide para a
entrega de uma moleca de nome Maria. Presume-se que esta última seria uma escrava
adolescente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTES PRIMÁRIAS:
BIBLIOGRAFIA:
DANTAS, Orlando Vieira. A vida patriarcal de Sergipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980.
66
Op. cit., pág. 72.
67
DANTAS, 1980, pág. 25.
84
DAUMARD, Adeline. História Social do Brasil: teoria e metodologia. Curitiba: UFP,
1984.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Inventários e testamentos como fonte de pesquisa. 2005.
Disponível em:
<http://www.histedbr.fe.unicamp.br/navegando/artigos_pdf/Maria_Helena_Flexor2_artigo.pd
f>. Acesso em 23/09/2015.
MILLS, Wright C. A Elite do poder. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1981.
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II: (1840/1889). Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2006.
85
“NOVELA DAS OITO”: PROSA EM DIALOGO COM A POESIA NO POEMA-NOVELA DE
GILBERTO MENDONÇA TELES
Carmélia Daniel dos Santos – Mestranda- Capes- Universidade Estadual de Montes Claros.
Cap. I
em paquetá
a moreninha encontrou o moço loiro
numa boa vidinha
puxando fumo
e olhando
abertamente
a majestosa perna do saci
Cap. II
Cap. III
Cap. IV
68
TELES. 1995, 114-116.
86
e inaugurou um novo motel na barra
brás cubas de braços dados com virgília
rasgou nos dentes a fita simbólica
enquanto o moço loiro entregava à proprietária
o título de benemérita da zona sul
Cap. V
Cap. VI
Cap. VII
a escrava loira
não conseguiu fugir do moço isaura
que a obrigou a casar com o saci
que andava pelos canaviais de campos
em busca do tempo perdido
mas as coisas se complicaram
porque álvaro resolveu tudo
Cap. VIII
grávida e realista
lenita resolve se casar com o moço loiro
e deixa o pobre Manuel barbosa
inteiramente entregue às drogas e baratas
87
Cap. IX
Cap. X
88
É poeta e crítico, com mais de quarenta livros publicados nessas duas áreas, tendo
recebido os maiores elogios da critica especializada. Seus poemas se encontram reunidos em
Hora Aberta (Editora Vozes, 2003). Entre seus livros de ensaios e críticas se destacam
Drummond: A estilística da Repetição, Vanguarda Europeia e Modernismo Brasileiro, A
retórica do silêncio, Camões e a poesia brasileira, A escrituração da escrita e
Contramargem, I e II: o primeiro lhe deu, por votação nacional, o prêmio “Juca Pato” e o
título de “intelectual do ano 2002”. Tem, entre outros, o Premio “Machado de Assis”
(Conjunto de obras) da Academia Brasileira de Letras.
Além disso, existem antologias de seus poemas em Portugal, Espanha, França (duas),
Itália, Bulgária, Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, Romênia e Japão. Os livros de Poesia &
Crítica, 1988 (Org. de Dulce Mindlin) e A Plumagem dos nomes: Gilberto 50 anos de
Literatura, 2007 (Org. de Eliane Vasconcelos) reúnem a fortuna crítica sobre sua produção
intelectual, além das dissertações de mestrado e teses de doutorado e pós-doutorado que vem
sendo defendidas sobre sua poesia.
como objeto de estudo & Cone de Sombras, publicada em 1986. A referida obra caracteriza-
se pela busca do sentido, sem menosprezar, contudo, a obstinação com o nome e a sintaxe. É a
fase de uma poesia mais denotativa, coisificada, preocupada com a linguagem menos
& Cone de sombras, é divida em três partes: “Exercício para a mão esquerda”, “A
Casa” e “Intertexto”. E, é dentro deste último, “Intertexto”, que se encontra o nosso objeto de
estudo, o poema “Novela das oito (ou as aventuras de um moço loiro)”. No conjunto de
poemas de “Intertexto”, percebe-se uma forte marca da poesia gilbertina: o jogo com as
69
OLIVEIRA. 2007, 473.
89
que antecederam essa escritura, disfarçados no quebra-cabeca intertextual.
Seguir-se-á, pois o jogo de esconde-esconde, perseguindo-se a imagem
poética dissimulada nas artimanhas do texto, buscando-se desvelar o não dito
na tessitura urdida pelo Poeta no exercício de seu fazer. (OLIVEIRA, 2007,
p.473).
Sedução, jogo, discrição, artimanhas, imagens são alguns dos indícios que o poeta usa
para que o leitor descubra o não dito por trás de seu texto.
Sobre esse jogo de brincar com palavras, na entrevista concedida a Cláudia Nina, 70,
ainda respondendo à pergunta sobre os autores que lhe ajudaram na sua formação, Gilberto
completa:
O poeta utiliza-se do brincar e jogar com as palavras para tecer sua própria linguagem,
criando, assim, o dom de encantar os leitores com a sua poesia. Em “Novela das oito”, o poeta
nos apresenta os “personagens dos mais importantes romances brasileiros do século XIX e do
início do XX. E no último capítulo, a referência é ao poema “Quadrilha”, de Drummond.”
(TELES. 2003. p. 257). No poema, “Novela das oito”, o autor modifica as personagens de
forma criativa e divertida, e nos leva a relembrar de clássicos como A Moreninha e O Moço
Loiro, de Joaquim Manuel de Macedo; Iracema, Casa de Pensão, Lucíola, O Guarani e
Aurélia, de José de Alencar; A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho; Memórias
Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, de Machado de Assis; A escrava Isaura, de
Bernardo Guimarães; A carne, de Julio Ribeiro; O Cortiço, de Aluísio Azevedo; a lenda
brasileira do “Saci-Pererê”, sem nos esquecer de “J.Pinto Fernandes” do poema “Quadrilha”,
de Carlos Drummond de Andrade. Com isso, o texto cria o efeito de sentido do mistério, do
suspense, do desejo de esclarecimento desperta-se no leito e curiosidade de descobrir através
dos nomes dos personagens, as obras as quais eles pertencem e se/ou em quê, eles diferem da
obra original.
70
NINA. 2007, 678.
90
Ao escrever o poema que retoma a prosa, o poeta deixa transparecer sua admiração
pelas obras literárias românticas, e com elas enriquece sua poética. Essa duplicidade, de um
texto se sobrepor a outro, Genette71, em Palimpsestos, a literatura de segunda mão, pontua
que :
No primeiro capítulo do poema, o poeta nos mostra que a primeira cena da novela se
passa na ilha de Paquetá, a “Ilha dos Amores”, no Rio de Janeiro, mesmo cenário no qual
passa o romance A moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo.
Com a retomada dos nomes das personagens principais para compor cada capítulo, o
poeta incita no leitor a curiosidade de descobrir pelas pistas que ele deixa, ao longo de cada
capítulo, as obras das quais cada uma faz parte. Seguindo essas pistas, o leitor vai ao
encontro com sua poesia e conhece algumas personagens de romances brasileiros pela visão
do poeta.
71
GENETTE, 2006, p.45.
91
Através da análise do poema, os cenários e as personagens apresentadas rasuram os
textos prosaicos originais. Eles saem da prosa e passam a para a poesia, todos unidos por um
só poema.
Percebe-se, também, que nos capítulos de “Novela dos oito”, o poeta usou de recursos
como a intertextualidade e a paródia, ou seja, em sua construção, o poeta fez “um trabalho de
ajuntar pedaços de diferentes partes de obra de um ou de vários artistas”, (SANT`ANNA.
2007. p. 13), para assim compor seu poema. O poeta se apropriou de vários outros textos na
composição poética, mas, no entanto, não se trata de uma cópia, pois o poema possui voz e
forma própria. O que há é uma relação hipertextualidade. Uma relação na qual, segundo
Gerard Genette, “que une um texto B (hipotexto), a um texto anterior A (hipertexto) do qual
ele brota, de uma forma que não é a do comentário” (GENETTE. 2006. p. 12). Assim, o
poema “Novela das Oito”, é um hipertexto, pois não só se apropria do hipotexto, como
também o modifica, o altera de alguma forma, sempre conferindo ao antigo um novo aspecto.
72
GENETTE. 2006. p. 6.
92
compor sua obra. Ele retoma a tradição da prosa brasileira, trabalha sobre ela e a ela dá um
novo molde, seu, personalíssimo.
Nesse diálogo que o poeta estabelece com as personagens da prosa, ele deixa
transparecer em sua poesia a sua admiração pelas obras e seus autores, e é nelas que o poeta
busca alimento para enriquecer sua poética, além disso, ao dialogar com essas obras, ele
mantém e valoriza a identidade nacional.
Ao fazer uma recriação dos personagens românticos retirados das obras da prosa
brasileira, ele trabalha o moderno sobre o antigo, organiza-o a seu modo e dá um novo sentido
às personagens da prosa. Com isso, o poeta-autor cria seu próprio poema-novela; resgata os
personagens, une-os em um só poema, dividindo-os em dez capítulos e em forma de novela.
Ao intitular o poema de “Novela das Oito”, entendemos que o poeta-autor usa essa estratégia
parodiando as novelas globais, satirizando e ridicularizando-as, a exemplo na referência do
poema a “majestosa perna do saci”, no lugar qualificar, o poeta satiriza.
Percebemos que, para tratar dos personagens da prosa brasileira, o poeta “viaja” ao
passado com o objetivo de oferecer uma releitura acerca desses personagens. Com isso, ele
desloca, no tempo presente, o olhar sobre a tradição brasileira, no intuito de, através da escrita
de seu poema, resgatar e resguardar o passado da história da literatura brasileira.
93
Verificamos, por esta pequena análise, que a poesia de Gilberto Mendonça Teles
estabelece um diálogo/ligação entre o presente e o passado e com a poética de Carlos
Drummond de Andrade. Desse modo, o poeta cria/recria uma poesia para falar da prosa,
afirmando, assim, seu interesse por ela. O poema-novela é uma tentativa de resgatar o
passado e arquivar ao longo dos anos em sua poesia, no final do século XX, a história dos
personagens românticos da prosa brasileira do século XIX e início do XX.
Referências
ADORNO, Theodor W. Teoria e Estética. Trad. Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008.
BOSI, Alfredo. O ser e o tempo da poesia. 6. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura Comparada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1943.
DUARTE, Rodrigo. Teoria crítica da indústria cultural. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2003.
ELIOT, T. S. Tradição e talento individual. In: Ensaios. Trad. IvanJunqueira. Rio de Janeiro:
Art. 1989. p. 37-48.
MACIEL, Maria Esther. As vertigens da lucidez: poesia e crítica em Otavio Paz. São Paulo:
Experimento, 1995.
94
PETROV, Petar. Introdução [a lugares imaginários] [2007]. In: A Plumagem dos Nomes:
Org.: Eliane Vasconcellos et AL. Goiânia: Kelps, 2007.
SANT`ANNA, Affonso Romano de. Paródia, paráfrase & Cia. 8. ed. São Paulo: Ática, 2007.
TELES, Gilberto Mendonça. & Cone de sombras. São Paulo: Massao Ohno, 1995.
95
PROBLEMATIZANDO A IDADE MÉDIA: REFLEXÕES SOBRE A PERSPECTIVA
DO GÊNERO NOS ESTUDOS MEDIEVAIS
73
PINSKY, Carla Bassanezi. Estudos de Gênero e História Social. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina,
vol.17, no.1, p.159-189, abr. 2009.
74
ALVARO, Bruno Gonçalves; SILVA, Daniele Gallindo. G.; CAVALHEIRO, Gabriela da Costa. Novas
paisagens teóricas e metodológicas nos estudos medievais contemporâneos. Revista Signum, Rio de Janeiro, v.
16, n. 1, p. 1-3, 2015.
75
FORTES, Carolina Coelho. É Possível Uma História Medieval de Gênero? Considerações a Respeito da
Aplicação do Conceito Gênero em História Medieval. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero, 07., 2006,
96
tais estudos podem ser adequados à análise de qualquer época da História, inclusive ao
período Medieval. Entretanto, segundo ela, para que seja possível uma História Medieval de
Gênero é necessário que se temporalize este conceito e que este seja inserido no contexto
histórico do Ocidente cristão.
Assim, gênero pode servir como uma referência instável, mas crítica, pois é uma
postura teórica que se constrói. É imprescindível que se rompa com os conceitos preexistentes
e que se adapte conceitos já existentes, temporalizando-os. Devemos ter referências nos
conceitos já formulados para criar nossos próprios conceitos, que se baseiem e se adequem a
nossa produção. Os conceitos preexistentes são ponto de partida para a formulação de outros,
relativizados.76
Neste trabalho, esboçamos as propostas de uma pesquisa, em fase inicial de
desenvolvimento, sobre a utilização das teorias calcadas nos estudos de Gênero no campo da
História Medieval. Objetivamos realizar uma breve discussão sobre os caminhos seguidos por
alguns medievalistas brasileiros no que se refere às questões de Gênero e perceber sob quais
teóricos estão ancoradas as suas pesquisas nos últimos anos.
Análises e Discussões
Ao fazer um levantamento sobre os estudos de gênero no campo da História Medieval,
a historiadora Andréia Cristina Lopes Frazão da Silva salientou que, de 1990 até o primeiro
semestre de 2003, apenas 4 dissertações e teses das 125 pesquisadas empregam a categoria
Gênero em suas investigações sobre o Medievo.77 Obviamente que hoje, em 2015, este
número não é o mesmo. Mas, tal constatação evidencia que dos temas de pesquisas
desenvolvidas pelos medievalistas brasileiros existem temáticas predominantes e outras
esquecidas e que ainda há muito o que ser explorado, tanto em termos temáticos, quanto em
formas de abordagem.
Ainda, segundo Andréia Frazão, as pesquisas que incorporam a categoria Gênero
começaram a surgir em meados da década passada, mas ainda são quase pontuais. Em muitos
casos, são trabalhos de conclusão de curso, como dissertações e teses, realizados como etapas
da formação intelectual e nos quais há, efetivamente, a motivação para estudar temáticas
ainda pouco desenvolvidas.78
98
mediante qualificações positivas como coragem, bondade, fidelidade, compromisso com a fé
cristã, etc., e em seu relacionamento com outros homens e mulheres. A pesquisa se
desenvolveu através do arcabouço teórico de gênero postulados por Joan Scott.
Somando-se a estes historiadores tivemos, em 2010, a tese de doutorado O Gênero do
adultério no discurso jurídico do governo de Afonso X (1252-1284), de Marcelo pereira
Lima, defendida e aprovada pelo Programa de Pós-graduação em História da
Universidade Federal Fluminense, sob a orientação do prof. Dr. Mário Jorge da Motta
Bastos.
Em sua tese, Marcelo Lima procurou investigar os discursos jurídicos sobre o
adultério nos Reinos de castelã e Leão no século XIII, principalmente, durante o reinado de
Afonso X (1252-1284), a partir de uma perspectiva de Gênero e da análise de discurso. O
autor, objetivou compreender as relações entre o processo de centralização monárquica, o
programa de unificação jurídica e a questão do adultério nas obras legislativas de Afonso X.
A pesquisa segue as propostas teóricas desenvolvidas por Joan Scott e Jane Flax.
Já em 2011, tivemos a dissertação “Sore ich me ofdredeheowolde Horn misrede”: Um
estudo comparativo da sexualidade feminina no Romance of Horn (cerca de 1170) e em King
Horn (1225), de Gabriela da Costa Cavalheiro, apresentada e aprovada pelo Programa de Pós-
graduação em História Comparada da UFRJ, sob a orientação do Prof. Dr. Álvaro Alfredo
Bragança Júnior.
Em sua dissertação, Gabriela Cavalheiro faz uma (re)leitura de dois romances
insulares compostos no baixo medievo inglês, a saber, o Romance of Horn (cerca de 1170) e
em King Horn (1225). Seu estudo se pautou no diálogo com diferentes autores e no uso
interdisciplinar do aporte teórico e metodológico dos estudos em História Comparada, Gênero
e Sexualidade. Cavalheiro identifica, em ambos os romances, a presença acentuada de
expressões relativas à sexualidade feminina. E, a partir da análise dos textos e de seus
contextos discursivos, identificou que os saberes de Gênero permeavam todas as expressões
da sexualidade em ambas as narrativas. A pesquisa é realizada dentro da perspectiva da
teórica pós-estruturalista Joan Scott.
Por fim, concluiremos nossas breves análises com dois artigos da Prof.ª Dr.ª Andréia
Cristina Lopes Frazão da Silva: Reflexões sobre o gênero e o Monacato hispânico Medieval81
e Reflexões metodológicas sobre a análise do discurso em perspectiva histórica: paternidade,
81
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões sobre o gênero e o monacato hispânico medieval. Opsis,
Goiânia, v. 10, n. 2, p. 141-164 - jul-dez 2010.
99
maternidade, santidade e gênero.82 No primeiro, a autora tem o objetivo de apresentar a
construção da identidade de Gênero pelos monges, através de textos produzidos por eles,
verificando como as relações sociais e de poder foram significadas em conexão com o gênero.
No segundo, ela traz reflexões sobre a importância da contribuição da linguística e da
literatura para os estudos históricos, tecendo considerações sobre o conceito de discurso e em
especial dos discursos de Gênero. Ambos os artigos são desenvolvidos sob a perspectiva de
Gênero da Joan Scott.
Joan Scott: breves considerações sobre o seu (tão utilizado) conceito de gênero
Todos os trabalhos acima citados são ancorados nos postulados teóricos da
historiadora Joan Scott. Questionamo-nos então: O que significa Gênero para esta autora pós-
estruturalista? Quais foram as suas inovações para os estudos de Gênero a ponto de ser tão
citada por estes pesquisadores?
A contribuição de Joan Scott pode ser verificada no texto “Gender a Useful Category
of Historical Analysis”, de 1986, posteriormente traduzido, em 1990, no Brasil com o título
“Gênero: uma categoria útil de Análise Histórica”. Este artigo tornou-se um clássico, pois
representou um dos principais avanços teóricos para os pesquisadores interessados pelo
recente campo, que começou a se consolidar no nosso país no início dos anos 90.
Para Joan Scott, Gênero é constituído por relações sociais baseadas nas diferenças
percebidas entre os sexos e constituem-se no interior de relações sociais de poder. As relações
de Gênero não só instituem o “verdadeiro sexo”, como também atuam no regime de uma
heterossexualidade obrigatória.83
A autora articula Gênero com a noção de poder. Para ela, Gênero:
[...] tem duas partes e diversas subpartes. Elas são ligadas entre si, mas
deveriam ser distinguidas na análise. O núcleo essencial da definição
repousa sobre a relação fundamental entre duas proposições: o gênero é um
elemento constitutivo de relações sociais fundadas sobre as diferenças
percebidas entre os sexos e o gênero é um primeiro modo de dar significado
às relações de poder.84
85
PINSKY, Carla Bassanezi. Estudos de Gênero e História Social. Revista Estudos Feministas, Santa Catarina,
vol.17, no.1, p.159-189, abr. 2009.
86
É com tais questionamentos que o historiador José D’Assunção Barros reflete sobre a liberdade teórica nas
pesquisas históricas em seu livro Teoria da História: princípios e conceitos fundamentais. Conferir em:
BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis, RJ: Vozes,
2014.
101
sexuados. Ambos são conceitos históricos (no sentido de possuírem uma história, serem
passíveis de uma genealogia) e, desta forma, mutáveis no tempo e no espaço.87
Fazendo uma manobra semelhante à Joan Scott, Butler pretende historicizar o Corpo e
o Sexo, dissolvendo a dicotomia Sexo versus Gênero, que fornece às feministas possibilidades
limitadas de problematização da “natureza biológica” de homens e de mulheres. Para Butler,
em nossa sociedade estamos diante de uma “ordem compulsória” que exige a coerência total
entre um Sexo, um Gênero e um Desejo/Prática que são obrigatoriamente heterossexuais.
Para Butler, “O gênero não deve ser meramente concebido como a inscrição cultural
de significado num sexo previamente dado, […] tem de designar também o aparato mesmo de
produção mediante o qual os próprios sexos são estabelecidos.”88
Para a autora o gênero é a contínua estilização do corpo, um conjunto de atos
repetidos, no interior de um quadro regulatório altamente rígido, que se cristaliza ao longo do
tempo para produzir a aparência de uma substância, a aparência de uma maneira natural de
ser. Tornar-se um sujeito feminino ou masculino não é uma coisa que aconteça num só golpe,
de uma vez por todas, mas que implica uma construção que, efetivamente, nunca se completa.
Butler complica a noção de “identidade de gênero”. Afirma que gênero não é algo que somos,
mas algo que fazemos. Não é algo que se “deduz” de um corpo. Não é natural. Em vez disso,
é a própria nomeação de um corpo, sua designação como macho ou como fêmea, como
masculino ou feminino, que “faz” esse corpo. O gênero é efeito de discursos. O gênero é
performativo.89
Quanto ao não uso da Butler na medievalística, penso que se explica em muito por
conta da ênfase no caráter performativo da noção de Gênero. Como um resultado mais da
“repetição” da performance do que da identificação de “diferenças sexuais”, como coloca a
Scott. Entretanto, como pensar isso para o medievo? Como pensar as “diferenças” fisiológicas
no campo puramente discursivo?
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Repetindo o que sempre se tem dito: ainda há muito o que ser feito e problematizado
no que se refere aos estudos de Gênero no campo da História Medieval. “Abrir-se a novidade,
de todo modo, é sempre uma excelente postura”.90 Combinar teóricos (ou não) pode
87
Conferir em: BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2003.
88
Idem. p. 24.
89
LOURO, Guacira Lopes. Uma sequência de atos. Cult. São Paulo, ed. 185, 2014.
90
Op. Cit.BARROS, 2014, p. 229.
102
perfeitamente abrir espaço para novas “visões de mundo”. É adequado considerar uma nova
utilização de conceitos já existentes para produzir algo novo.
O mais importante é termos sempre em mente que História é um processo de rupturas,
permanências, construções e desconstruções, logo, são múltiplos os seus olhares, o que
significa que, jamais, teremos uma perspectiva única, melhor ou pior que outras. E como
afirma o historiador francês Marc Bloch, a História é busca, portanto, escolha. Ela deve ser
ampla, profunda, longa, aberta e comparativa.91
REFERÊNCIAS
91
BLOCH, Marc. Apologia da história ou O ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
103
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2011.
LOURO, Guacira Lopes. Uma sequência de atos. Cult. São Paulo, ed. 185, 2014.
SCOTT, Joan Wallach. Gender: A Useful Category of Historical Analysis. In: _____. Gender
and Politics of History. New York: Columbia University Press, 1999. p. 28-50.
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões metodológicas sobre a análise do
discurso em perspectiva histórica: paternidade, maternidade, santidade e gênero. Cronos:
Revista de História, Pedro Leopoldo, n. 6, p. 194-223, 2002.
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões sobre o uso da categoria gênero nos
estudos de História Medieval no Brasil (1990-2003). Caderno Espaço Feminino,
Uberlândia, v. 11, n. 14, p. 88-107, 2004.
SILVA, Andréia Cristina Lopes Frazão da. Reflexões sobre o gênero e o monacato hispânico
medieval. Opsis, Goiânia, v. 10, n. 2, p. 141-164 - jul-dez 2010.
104
A PRISÃO DO ALFERES JOAQUIM JOSÉ DA SILVA XAVIER NO MOVIMENTO
INCONFIDENTE DE MINAS GERAIS
INTRODUÇÃO
O artigo científico que se construiu nas laudas que seguem, busca destacar a “Prisão
do Alferes Joaquim José da Silva Xavier no Movimento Inconfidente de Minas Gerais”, nesse
sentido a obra procura identificar quem foi esse sujeito, o qual como participante do
movimento de revolta, surgido na década de 80 do século XVIII possibilitou colocar essa
conjuração como umas das mais preocupantes, no sentido político e econômico para a corte
portuguesa.
Sua presença na inconfidência não foi a de maior destaque, mas a sua atuação no
movimento fará desse mero alferes um mito criado e instituído pela historiografia da época,
nesse sentido ao se aproximar da imagem criada de Tiradentes é possível identificar todo um
corpo intelectual que permeava o acontecimento da inconfidência, seu nome foi acompanhado
pela história como o idealizador, embora esse texto irá demonstrar que não passa de mais uma
farsa de uma história das elites, onde o sujeito simples recebe a culpa pela idealização de uma
burguesia letrada, e que era predominante nas feitorias, freguesias e comarcas de Minas
Gerais em pleno século XVIII.
Este trabalho surge pela necessidade de se estudar um período que remonta para a
história brasileira como um prenúncio de acontecimentos posteriores, os participantes da
conjuração mineira levantarão as hipóteses para a possível tomada de independência do
Brasil, uns pontos levantados pelo movimento em conseqüência de outras colônias na
América haverem conseguido sua independência, a exemplo da colônia inglesa, Estados
Unidos da América, que conseguia na mesma época da inconfidência mineira a separação da
Inglaterra (Mota, 1996).
105
O estudo sobre personagens da história possibilita o entendimento a cerca de períodos
da história como é o caso do Movimento Inconfidente, pois o contorno histórico que se
amplia é margeado de figuras que abrem asas para a ocorrência do fato histórico. É a partir de
tais personagens que o historiador pode reconstruir o enredo pelo qual vivenciou o ator
histórico.
A descrição feita pelo jesuíta Antonil, no início do século XVIII, retrata bem
o que as notícias das descobertas de ouro e pedras no interior da colônia
provocaram na América portuguesa. A corrida para a região das minas
envolveu milhares de pessoas de todas as capitanias. Vilas e pequenos
povoados ficaram praticamente desabitados. Cerca de 600 mil portugueses
deixaram a Metrópole para se aventurarem no interior do Brasil. Inúmeras
106
bandeiras cruzavam o sertão e informações sobre novas minas circulavam
por toda a colônia, alimentando ainda mais a febre do ouro que contaminou a
população colonial. (Campos, 2005, p. 251)
Das catorze vilas que foram criadas na capitania de Minas Gerais ao longo
de todo o século XVIII, as nove mais importantes e mais densamente
povoadas remontam aos três primeiros decênios desse século. Ao longo
desse período forma criadas, em 1711, as vilas do Ribeirão do Carmo (atual
Mariana), Vila Rica (atual Ouro Preto), Vila Real do Sabará (atual cidade de
mesmo nome); em 1713, a Vila de São João Del Rey (atual cidade de São
João Del Rei); em 1714, a Vila do Príncipe (atual Serro) e a Vila Nova da
Rainha (atual Caeté). (Furtado,2002, p. 14)
Nos anos que seguem ao início da exploração do ouro o que se ver é um cenário de
crescimento econômico que não duraria muito tempo, em virtude das altas cobranças de
107
impostos, surgidos para regular o comércio do ouro entre as minas e Portugal, evitando assim
o tráfico e o não arrecadamento.
O ouro era extraído a partir de técnicas bem rudimentares na época, assim o ambiente
das minas era diverso, os métodos empregados necessitam essencialmente da mão de obra
escrava, mas também havia homens livres que trabalhavam diretamente na exploração, entre
os tipos de extração pode-se destacar a de: aluvião, catas e extração das grupiaras, nesses três
tipos de extração eram comuns o uso excessivo de água, a autora Cândida Vilares Gancho,
apresenta em que consistiam essas técnicas apontadas acima.
2. Catas: perfuram-se poços para atingir as camadas mais ricas do minério, que
também passará por processo de purificação.
108
declará como quer fazer o tal descobrimento e lavrará e tirará os metais que
nela forem achados à sua própria custa, de que pagará o quinto fora de todas
as despesas à minha Fazenda, sem ter obrigação de lhe dar para isto coisa
alguma...” (Lopes, 1985, p. 68)
A derrama: era uma cobrança suplementar sobre o ouro extraído, sempre que
não se atingissem as 100 arrobas anuais fixadas por Portugal. A derrama
recaía sobre toda a população, por meio do confisco de propriedades e bens.
Considerando que em meados do século XVIII a produção aurífera começou
a declinar, fica evidente o pavor que a população tinha pela derrama, que já
havia sido aplicada em anos anteriores à Inconfidência Mineira. (Gancho,
1991, 31).
Pode-se perceber a partir desse texto que a insatisfação da população mineira era
grande em virtude da cobrança da derrama, como o declínio do ouro já se iniciava a partir da
segunda metade do século XVIII, a população era obrigada a pagar a coroa portuguesa uma
cobrança que era impossível em muitos casos, pois os níveis de pobreza já começavam a
assolar as vilas de Minas Gerais, sendo assim aqueles que não pagavam o imposto tinham
seus bens materiais confiscados, indignados surgem contestadores dessa condição social,
inclusive da própria coroa portuguesa, já visto que a derrama atingia todas as classes sociais.
Os Atores da Inconfidência
1789 foi o ano em que o movimento da inconfidência foi destituído antes mesmo dele
efetivamente acontecer, o ambiente de formulação dos ideais foi em Vila Rica, nesse espaço
vários intelectuais, se reuniam em cafés, reuniões literárias, para divulgar ações da coroa
como também ideologias liberais formuladas na Europa por Voltaire, Montesquieu, Rousseau,
todos participantes ativos da Revolução francesa. As reuniões aconteciam na casa de um
Tenente-coronel Freire de Andrade, em que esse componente da realeza portuguesa se uniu na
conspiração contra a dependência de Brasil por Portugal. O ideal de revolução é projetado em
uma sociedade onde os problemas sociais locais se mesclaram com idéias importadas fazendo
eclodir uma posição revolucionária. Conforme expressa Carlos Guilherme Mota.
Mas aqueles em que a história fez questão de eternizar como líderes do movimento
foram o desembargador Luís Antônio Gonzaga e o Joaquim José da Silva Xavier, de vulgo
Tiradentes. O primeiro era um exímio escritor, viveu sua vida dedicando seus poemas a sua
110
esposa Marília, utilizando, na metade de 1780, de seus trabalhos literários para compor
conspirações literárias, usando o pseudônimo de Dirceu, em uma de suas obras mais
conhecidas, Cartas Chilenas. Já o segundo inconfidente apontado e o que esse trabalho traz
de mais relevante, não tirando o mérito dos outros, mas em virtude de sua prisão em julho de
1789, ser o ápice do desfecho do movimento de conjuração. Fato que será abordado no
próximo discurso, onde a figura de Tiradentes, é colocada não apenas como projetista da
inconfidência, mas como marco nas mudanças sociais que viriam posteriormente no Brasil.
Xavier, como já foi dito acima viveu de perto a condição social das pessoas nas
regiões das minas, era insatisfeito também com o tratamento dado aos escravos negros,
mostrando seu caráter abolicionista e revolucionista. Como apresenta a passagem a seguir.
111
Joaquim José da Silva Xavier se dá conta das contradições e da crueldade do
sistema de exploração colonial no Brasil. Em uma de suas viagens, em
meados da década de 1760, quando chega à região de Minas Novas e se
prepara para um pernoite antes de seguir viagem, depara com a “triste” cena
de um negro sendo açoitado por seu dono. Revoltado, procura intervir a fim
de não permitir o prosseguimento do castigo e, irascível que era na defesa de
suas posições, acaba por entrar em luta corporal com o proprietário do
escravo. São ambos os contendores presos até que, cerca de dois meses
depois, o juiz itinerante em visita à vila estabelece o veredicto: culpado o
tropeiro, com multa de dói contos por perturbar a paz do reino e “tentar
defender um escravo, propriedade total e inalienável do dono que dispõe
totalmente de sua vida e morte”. (Furtado, 2002, p. 47)
Mas antes de ser enviado a forca pela devassa, o Visconde de Barbacena, Governador
de Minas Gerais em 1789, exigiu a prisão de Tiradentes neste mesmo ano, para fins de
averiguar as denúncias sobre as insatisfações sobre a derrama. Sobre esses acontecimentos
relata o Vice-Rei à corte portuguesa em 1789.
112
A imagem de Joaquim no levante, não consumado da inconfidência, não ocorrido
porque antes que fosse efetivado, foi traído por um membro do próprio movimento, o
Joaquim Silvério Reis, o qual apresentou os planos da sedição. Tiradentes assumiu na Conjura
mineira o papel de bode expiatório, além de forte agitador político do movimento nesse
sentido ele se mantinha na frente da sedição, ele foi o único do movimento que foi levado pela
devassa, processo criminal instaurado para definir os culpados da sedição, nesse processo
Joaquim da Silva Xavier foi levado a pena de morte, pela forca, assim seu nome foi
imortalizado.
CONCLUSÃO
Certo que enquanto dependente da Corte, o Brasil, devia obediência, mas não percebia
as estratégias montadas pela sociedade que amava as suas ideologias e a pátria Brasil,
mantinham reuniões em que se construía estratégias de ação para evitar os exageros de
Portugal na cobrança de impostos do ouro e de tantos outros bens cedidos a Metrópole de
maneira tão facilitadas.
Nesse cenário surgem homens como Tiradentes, o qual surgido das dependências da
corte, enquanto membro militar, também não mediu esforços para agitar a sociedade afim de
que esta pudesse sair do estado de inércia que se mantinha, sua figura não foi de importância
estratégica de fato, porém foi utilizada como marco na edificação de ideais, os quais ele
mesmo não sabia de fato, levado ao movimento inconfidente ou por seu instinto militar ou por
seu instinto humano de revolta.
113
REFERÊNCIAS
114
“EXCELLENTISSIMO CONSELHO”: ECONOMIA E SOCIEDADE EM SERGIPE
DEL REY NAS ATAS DO CONSELHO DE GOVERNO DA PROVÍNCIA (1824-1831)
Introdução
O presente estudo é fruto de uma pesquisa em estágio final, na qual se utiliza as atas das
Sessões do Conselho de Governo da Província – também chamado de Conselho da
Presidência da Província- entre os anos de 1824 e 1831, com o intuito de analisar o processo
de formação do Brasil enquanto Estado-Nação, sob o viés do tratamento dado às questões
econômicas locais na província de Sergipe Del Rey. O universo documental deste trabalho é
constituído de 66 atas, que vão do ano de 1824 a 1831, compreendendo o período de
instalação do Conselho de Presidência da Província até meses antes da Abdicação do trono,
por parte de D. Pedro I. Tal seleção é justificada na medida em que, a partir do momento que
D. Pedro I deixa de ser Imperador e a Regência Trina Provisória assume- em nome de D.
Pedro II, toda a organização do Poder no Brasil é modificado.
115
eram iguais aos antigos colonos. Para um povo ainda dominado pela mentalidade do Antigo
Regime, tal equiparação era, antes de tudo, indesejada. Essa sucessão de fatos deixou vários
setores da sociedade portuguesa indignados a tal ponto, que alguns traços do Antigo Regime
se tornaram indesejados, ao mesmo tempo em que alguns ideais liberais foram cobiçados.
Esses ideais faziam parte da corrente do Liberalismo, muito conhecida pelos
intelectuais daquela época, cuja definição é complexa, variada e abrangente. Contudo, para
melhor compreensão do presente estudo, faz-se necessário uma conceituação geral, para isso
adota-se o enunciado elaborado por René Rémond, que segundo este “O liberalismo é
também uma filosofia política inteiramente orientada para a idéia de liberdade, de acordo com
a qual a sociedade política deve basear-se na liberdade e encontrar sua justificativa na
consagração da mesma. ”. (2002, p.16.).
No século XIX, o Império Português passou por diversas mudanças e estas abriram
caminho para que o liberalismo se infiltrasse nos discursos políticos da época. Apesar da
adoção de ideias liberais, deve-se relativizar o grau de radicalização destas, pois dentre os
portugueses, da Metrópole ou da Colônia, muito do ideário do Antigo Regime resistia. O
liberalismo vai ser utilizado de forma relativa e para atingir determinados objetivos, contudo,
não se buscava a liberdade plena e total. É dentro dessa conjuntura que, em agosto de 1820,
foi então declarada a Revolução Vintista. Na Colônia portuguesa a adesão ao Movimento de
1820 dentre as províncias foi variada, gerando diversas consequências. Dentre elas, a
Independência do Brasil em relação à Portugal, que, como foi afirmado anteriormente, foi o
fato histórico que desencadeou todo a montagem administrativa do Império do Brasil, seguida
pela aclamação de D. Pedro a Imperador.
Após a aclamação de D. Pedro I à Imperador do Brasil, em 12 de outubro de 1822,
algumas questões precisavam ser definidas: qual seria o modelo de governo adotado, quais
órgãos e instituições- com respectivos cargos e funções- seriam criados, como se dividiria o
poder político, quais mecanismos de representação do poder local seriam implantados, dentre
outras. Para solucionar tais questões, em 03 de maio de 1823 entrou em funcionamento a
Assembleia Nacional Constituinte, que deveria propor e escolher o melhor projeto de
governo, de acordo com as conjunturas políticas, sociais e econômicas da época, gerando uma
Constituição.
D. Pedro I, apesar de sua posição enquanto monarca, negociou com os dois grupos
para definir seu projeto de governo. Entretanto, o rumo que a Assembleia Constituinte de
1823 tomou, foi o de um posicionamento mais liberal que conservador, como o Imperador
precisava, portanto, este a dissolveu e organizou uma Comissão para reestruturar o projeto de
Constituição a partir de seus desejos. O resultado desse processo foi a outorga da Constituição
de 1824, que apesar de não diferir completamente do Projeto de 1823, define fortes
mecanismos de centralização do poder, nas mãos do Imperador.
O resultado de todo esse processo foi a outorga de uma Constituição que respondia às
necessidades de um grupo pequeno, mas que era majoritário na política e na economia, pois
era constituído “dos mais opulentos proprietários de terra e de escravos, ligados à produção
dos principais produtos de exportação, ao grande comércio e à burocracia do Estado” (Lyra,
2000, p. 40).
117
Quanto ao governo das províncias, na Constituinte de 1823 o assunto fora muito discutido
e apesar dos longos debates,
92
SLEMIAN, 2006, p. 124 a 125.
93
Órgão criado a partir da Lei de 20 de outubro de 1823, como locus de representação local.
94
Criado pela Constituição de 1824, como órgão consultivo.
118
Salienta-se que apesar da instalação da Presidência, do Conselho Geral e também do
Conselho de Governo de Presidência, a complexa trama de relacionamentos entre as elites
locais nunca deixou de ocorrer, cabendo espaço para a busca constante de beneficiamento
particular. Há também a ressalva de que, apesar de estes órgãos serem intermediários entre o
'povo' e o governo imperial, havia outras formas de representação, pois "O que a ação dos
Conselhos procurava era o fortalecimento da esfera provincial como espaço “constitucional”
de “apontamento” das necessidades locais e de “observância” da execução das leis."
(SLEMIAN, 2006, p. 222).
A partir da análise documental das atas, pode-se perceber que as principais necessidades
econômicas da Província de Sergipe Del Rey eram as ligadas à infraestrutura e às parcas
rendas no cofre da Fazenda Pública. As Câmaras Municipais, órgãos responsáveis pela
manutenção das vias públicas, raramente cumpriam com sua obrigação, deixando a desejar
sobre o estado de conservação das estradas, das pontes, fontes públicas e limpeza das ruas.
Como pode ser exemplificado através da Ata XXXI, de 11 de dezembro de 1826, em que o
Conselho coloca a responsabilidade de tais tarefas nas mãos dos Capitães-mores da Província,
contudo “ser-lhe-hião fornecidos ela Fazenda Publica Provincial os artigos indispensáveis”96.
95
LIMA JÚNIOR, Francisco Antônio de Carvalho. Memória sobre o Poder Legislativo em Sergipe (1824-1889)
IN: Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, nº08, Vol. IV, de 1919, p. 01 a 176.
96
Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, nº05, Vol. II, fascículos 3 e 4, 1916, p. 347.
119
Contrastando com tais afirmações, os Conselheiros queixavam-se constantemente da falta
de fundos nos cofres públicos, impedindo-os de realizar obras necessárias ou manter o
pagamento correto dos funcionários. Esse esvaziamento das rendas provinciais derivava de
diversos motivos, sendo assunto discutido constantemente nas reuniões do Conselho. Uma
das razões, pode-se dizer que derivava da falta de estrutura portuária, causando diversos
problemas, dentre eles, a continuidade da dependência da Província de Sergipe em relação à
da Bahia, visto que era por esta última que todos os produtos produzidos pela primeira
escoavam. A dinâmica desta dependência causava outros transtornos, como a cobrança de
taxas alfandegárias que diminuíam ainda mais as rendas pertencentes aos comerciantes
sergipanos.
Além de tais assuntos recorrentes, existiram alguns que chamam atenção por seu conteúdo
peculiar. Como é o caso das atas XLVII e XLIX, do dia 01 e do dia 15 de junho de,
respectivamente, em que foi discutido o projeto para a redefinição dos limites entre a
Província de Sergipe e Bahia. A divisão territorial deveria se estabelecer pelo Rio Itapicuru e
não pelo Rio Real como acontecia, anexando ao território sergipano, as Vilas de Abadia,
Itapicuru e o Julgado de Jeremoabo, esta mudança era justificada pelos seguintes fatos: O rio
Itapicuru é caudal e perene, já o rio Real costumava secar em épocas de calor intenso, abrindo
um espaço entre os dois rios, servindo de refúgio para criminosos, que não podiam ser
apreendidos pela justiça de Sergipe, pois o território não lhes pertenciam e nem pela justiça da
Bahia, pois o alcance desta se estendia para as zonas próximas a Salvador.
Fontes
120
Histórico e Geográfico de Sergipe, Aracaju.
Referências Bibliográficas
122
A CAMINHO DA ABOLIÇÃO: SENHORES E ESCRAVOS NO TERMO DE MONTE
ALTO - SERTÃO DA BAHIA
97
Conforme destaca Chalhoub (1990, p.27), a lei de 28 de setembro “representou o reconhecimento legal de uma
série de direitos que os escravos vinham adquirindo pelo costume, e a aceitação de alguns dos objetivos das lutas
dos negros. Na realidade, é possível interpretar, entre outras coisas, como exemplo de uma lei cujas disposições
mais essenciais foram “arrancadas” pelos escravos às classes proprietárias”.
123
de trabalho feita com a participação bem sucedida do Estado e um pretenso controle sobre os
libertos”. Vale lembrar que esse pensamento ia de encontro à construção do Estado brasileiro,
“a escravidão era um sinal de atraso para a Nação, porquanto contrariava a liberdade natural
do homem, impedindo-o de seguir a marcha do progresso social” (SILVA, 2007, p.147).
Se as ações dos senhores foram as mais diversas a fim de assegurar seus interesses,
não foi diferente daquelas empreendidas por escravos. Além de ações tidas como subversivas,
também fizeram uso do meio legal. Só que ao contrário da expectativa de muitos senhores,
não era pretendido uma liberdade dentro dos moldes escravistas, mas a procura por um
afastamento desse mundo. Segundo a historiadora Iacy Maia Mata (2002, p.15), os
fazendeiros baianos estavam “agarrados até às vésperas da abolição ao escravo como
principal responsável pelos trabalhos de lavoura”, que mesmo com o tráfico interprovincial,
que conduziu levas de escravos, sobretudo do interior, para a cafeicultura no sudeste do país,
a Bahia, na ocasião, apresentava-se como quarta província em termos de concentração de
cativos.
Na região do alto sertão, Erivaldo Fagundes Neves, identificou que o maior número de
escravos comercializados deu-se entre os anos de 1840 e 1879, concluindo que o baixo
número encontrado para a década de 1880 é “revelador da exaustão do trabalho escravo”
(2012, p.198). No entanto, Maria de Fátima Novaes Pires (2009) demonstra, através de
pesquisas a inventários, que senhores da região de Caetité e Rio de Contas mantiveram o
elevado número de cinco a dez escravos nos anos finais da escravidão.
Diante dessa realidade e no embalo das medidas emancipacionistas é que se pretende
trazer algumas reflexões sobre os últimos anos da escravidão no termo de Monte Alto, sertão
da Bahia. A partir do posicionamento dos senhores em relação a manutenção e/ou concessão
da carta de liberdade aos escravos, bem como algumas ações por eles empreendidas na
conquista da liberdade, pretende-se perceber as expectativas almejados por esses sujeitos em
relação ao fim da escravidão. Estariam os fazendeiros dispostos a facilitar a alforria diante da
onda abolicionista, ou propensos a manter a posse escrava? Quais práticas foram acionadas
pelos escravos na luta por seus direitos?
124
Localizado no sudoeste da Bahia, o que hoje constituiu o município de Palmas de
Monte Alto, tem sua origem no século XVIII, período em que o português Francisco Pereira
de Barros, adquiriu parte das terras anteriormente pertencente aos Guedes de Brito,
denominando-as Riacho da Boa Vista. No ano de 1742, com o término da construção da
Capela em Louvor a Nossa Senhora Mãe de Deus e dos Homens, deu-se origem ao povoado
que recebeu o nome de Sítio das Palmas, e um século mais tarde, em 1840, foi elevado à
categoria de Vila, e em 1880 foi criada a comarca, carregando o mesmo nome, quando nesse
ano foi desincorporada da de Caetité. No recenseamento realizado no ano de 1872, a freguesia
contava com 10.761 habitantes, desse número 5.709 compunha-se de homens e 6.052 de
mulheres. Em cada grupo, a classificação racial atribuída a maioria foi de “pardos”,
respectivamente, 2.623 e 3.157, sendo seguida pela “branca”: com 1.202 brancos e 1.040
mulheres. No que diz respeito ao número de escravos, foi contabilizado 1.105, dos quais 645
homens, e a minoria, que não deixa de ser expressiva, compreendida por mulheres, 460
especificamente. Em ambos os grupos o número de solteiros sobressai em relação aos
casados, assim como os classificados como “pretos”98.
Como ainda não contamos com estudos sobre a escravidão em Monte Alto, não
podemos trazer informações mais detalhadas das experiências escravas naquele local. Porém,
os estudos iniciais desenvolvidos pela historiadora Rosangela Figueredo Miranda 99 têm
revelado que houve uma presença expressiva da mão de obra cativa, sugerindo que o número
de escravos distribuídos nas fazendas de Monte Alto pode alcançar números maiores do que
encontrados em outras localidades do alto sertão baiano, como Caetité. A pesquisa realizada
por Miranda com livros de notas de tabelionato inventários, livro de registro de nascimento e
óbito tem sinalizado a intensidade da mão-de-obra escrava naquela localidade. Nos
inventários da família Barbosa, do ano de 1842, a referida historiadora identificou o
arrolamento de “cinquenta e cinco escravos de diferentes nações e profissões, como escravo
vaqueiro e tropeiro”. Três anos depois a mesma propriedade contava com “cento e dezessete
escravos” (MIRANDA, 2013, p.04/06).
98
Recenseamento de 1872. Disponível em https://archive.org/details/recenseamento1872bras. Acesso em 13 de
janeiro de 2015.
99
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, desenvolve o
projeto intitulado: “Dinâmicas de escravidão e da liberdade no alto sertão da Bahia: Vila de Monte Alto (1800 -
1888).
125
Monte Alto. Erivaldo Fagundes e Maria de Fátima Novaes Pires, já apontaram em seus
estudos especificidades da escravidão no alto sertão da Bahia100. Para a segunda metade do
século XIX, alguns elementos são destacados, entre eles o impacto do tráfico interprovincial,
as secas e as medidas emancipionistas. Em se tratando de Monte Alto, ainda não temos
referências, mas as análises realizadas por esses estudiosos, são essenciais para melhor
compreendermos a conjuntura escravista nesse termo. Se para Caetité e Rio de Contas entre
1801-1887, Neves (2012) identificou, a partir da análise dos inventários do termo da Vila
Nova do Príncipe e Santana de Caetité e seus distritos no período em estudo, uma média de 1
a 5 escravos por plantel, no estudo de Pires (2009), sobre a posse escrava em Rio de Contas e
Caetité, foi identificado, também por meio da análise de inventários, uma média de 5 a 10 por
plantel. Esses números, como ressalta a historiadora, não deixa de ser significativo, tendo em
vista o funcionamento da economia regional.101 Em Monte Alto, o número não difere dessa
realidade, ficando também em média de 02 a 05 escravos por plantel, sendo que a maioria dos
inventariados detentores da posse escrava, não representava grandes proprietários, e sim
modestos produtores que tiveram a soma da riqueza inventariada até Rs.5:000$000. Além de
poder acessar esses dados, os inventários da década de 1880 nos ajudam a compreender como
o elemento servil esteve presente na organização da vida socioeconômica.
Tabela I. Presença de escravos arrolados nos inventários entre os anos de 1880 e 1888
1880 03 02
1881 03 02
1882 09 06
1883 05 03
1884 09 05
1885 12 09
1886 10 07
1887 04 03
100
Ver: Erivaldo Fagundes Neves (2012) e Maria de Fátima Novaes Pires (2003 e 2009).
101
Ver: Fios da vida: Tráfico Interprovincial e Alforrias nos Sertoins de Sima – Ba (1860-1920). São Paulo.
Annablume, 2009.
126
1888 03 02
TOTAL 58 39
Fonte: Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto/ Ba. Maço: 31 a 37
Como pode ser observado nesta tabela, a presença da mão-de-escrava ainda possuía
uma presença considerável nos investimentos realizados pelos senhores, mais da metade dos
inventários analisados tiveram escravos arrolados. Em alguns casos, não foram descritos
como bens dos inventariados, mas como bem doado por conta de dote, e também sendo
arrolados como devedores de dívidas. Assim, “apesar da intensidade do tráfico
interprovincial, das estiagens e dos abalos econômicos locais e gerais, uma parcela de
senhores da região conseguiu manter os seus escravos” (PIRES, 2009, p.124). Sendo que
representava o segundo bem de destaque dos investimentos realizados nesse período, ficando
atrás do gado vacum e seguido pelos bens de raiz. Nota-se ainda, que o valor do monte mor
nos inventários com ausência de escravos, não alcançou a soma de Rs. 3:000$000, exceto no
inventário de Antonio Pereira e Costa102, que chegou a um monte mor de Rs. 35:927$000. No
entanto, o arrolamento dos bens deu-se em junho de 1888, pós abolição, mas mesmo assim
trouxe menção a sua presença, só que listado como bens doados a dotes, perfazendo um total
de 19 escravos, dos quais 10 mulheres e 09 homens. Destes, apenas um é mencionado a idade
de 18 anos, nenhuma outra informação foi fornecida.
Ainda sobre a presença dos escravos em Monte Alto, percebemos que poucos foram os
que apresentaram idade acima de 50 anos, em sua maioria eram adultos ou crianças, estas por
vezes acompanhando as mães e declarado como ingênuos, filhos de escravas que a partir da
lei de setembro de 1871 seriam considerados livres, ficando sob a tutela dos senhores até os
08 anos “quando poderiam ser transferidos à tutela do Estado mediante uma indenização de
600 mil réis, ou permanecer em companhia de seus proprietários prestando serviços até
completarem 21 anos de idade, depois do que se tornariam plenamente livres” (SILVA, 2007,
p.146), como o caso de “Joana, preta, 31 com tres filhos ingênuos: Angélica, Julia e Joana”
103
, “Victorina, parda, com ingênuo de nome Izidorio, matriculado, que houve por herança”104
e também o caso de “Lusia, preta, 16 anos, solteira, filha de Venancia do serviço
102
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – BA. Inventário de Antonio Pereira e Costa.
Maço: 37. Ano: 1888.
103
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Inventário de Lourenço Alves Botelho.
Maço: 34. Ano: 1884.
104
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Inventário de Lourenço Alves Botelho.
Maço: 34. Ano: 1884.
127
domestico”105. Além destes, outros jovens ficaram sob a tutela dos senhores, nem só
ocupando-se dos serviços domésticos, mas levando em conta a produção do algodão, algumas
foram descritas como “fiandeiras”, “rendeiras” e “costureiras”. Aos homens o
desenvolvimento de atividades vinculadas a lavoura ganharam destaque, sem esquecer da
figura do vaqueiro, como “Tertuliano, pardo, 30, solteiro, natural de Monte Alto”106.
Como se percebe, nos últimos anos da escravidão, os escravos auferiam lucros aos
proprietários, não só na lida nas fazendas, mas também com comercialização própria. Nos
livros de escrituras públicas, para além das vendas para outras províncias, percebe-se que essa
prática não foi incomum entre proprietários locais. Em 25 de outubro de 1880, Bento Moreira
de Magalhães, comprou de Augusto Barboza Madureira, um escravo de nome Joaquim, preto,
de vinte anos de idade mais ou menos, matriculado sob o número 2:431 deste município, pelo
preço de Rs. 1:550$000. Alguns dias depois, em 02 de novembro do citado ano, vendeu o
mesmo escravo a Candido Spinola Castro pelo preço de Rs. 1:600$000. Tendo um lucro de
Rs. 50$000 em relação a primeira compra107. A razão dessa revenda não sabemos ao certo,
mas pelo curto intervalo de tempo, talvez já estivesse nos planos de Augusto Barboza
Madureira comercializá-lo novamente.
Se a presença dos escravos ainda era significativa, não podemos esquecer que suas
ações e medidas emancipacionistas tornaram-se cada vez mais intensas. A mencionada lei de
setembro de 1871, insere-se nessa conjuntura, mas como ressalta José Pereira (2012, p.21)
corroborando com o pensamento de Regina Xavier em seu estudo sobre os libertos em
Campinas na segunda metade do XIX:108
Boa parte dos contemporâneos que viviam aquelas mudanças, sobretudo os
senhores, ainda compreendiam que a superação da escravidão via carta de
alforria deveria ser marcada por continuidades. Dito de outro modo, os
senhores desejavam que os libertos continuassem em sua órbita de poder e
de influência; antes como escravos, agora na condição jurídica de alforriado
dependente.
105
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Inventário de Porfirio de Souza Prates.
Maço: 36. Ano: 1886.
106
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Inventário de Lourenço Alves Botelho.
Maço: 34. Ano: 1884
107
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Livros de Escrituras Públicas –Século XIX.
Ano: 1880. Documentação não catalogada.
108
XAVIER, Regina Célia Lima. A conquista da liberdade. Libertos em Campinas na segunda metade do século XIX.
Campinas: Centro de Memória – Unicamp, 1996.
128
oitocentos e noventa em diante gozarão de sua plena liberdade, como de ventre livre
nassecem: sendo este serviço prestado a mim onde eu estiver”109. Em outros casos, a
concessão da alforria também se associava a manter uma boa imagem perante o cativo, o que
sugere a manutenção e reforço da ideologia paternalista110, além de se antecipar a prováveis
iniciativas dos escravos e a extinção legal da escravidão que se tornava cada vez mais
próxima. Percepção que tivera também José Fernandes dos Santos ao libertar a crioula
Torquata, de 48 anos de idade “por bons serviços pela dita escrava prestado”, sendo alegado
ainda que se achava “doente mentalmente”111, o que pode ter contribuído para conceder a sua
alforria, já que nesse estado de saúde, provavelmente não compensava desprender de gastos
para a manutenção da escrava. Francisca de Santa Clara, por sua vez, utilizou como estratégia
de manutenção do domínio por tempo indeterminado do escravo Rafael, pardo, de apenas
quatro anos de idade, o pagamento de uma soma de dinheiro:
de quatrocentos mil reis, por quanto contratei [sic] para elle todos os
sabados, para elle trabalhar para si, e será obrigado a me acompanhar e servir
onde eu estiver em quanto for viva, e por minha morte será obrigado a servir
meos herdeiros até acabar de pagar, dali em diante podera gozar de sua
liberdade como se de ventre livre nascesce [...]112
Os escravos, por sua vez, negociaram com seus senhores, reivindicaram e conheciam
direitos previstos por lei. A prioridade para concessão de liberdade, via fundo de
emancipação, concedida aos casados e que apresentassem pecúlio foi por eles utilizadas, o
que levou o vice-presidente da junta em Monte Alto solicitar esclarecimentos do governo
provincial, visto que os casamentos de escravos e escravas com pessoas livres e libertas,
tomaram grandes proporções, “[...] ficando assim sempre prejudicados os do § 1º no 1º do
art. E decreto citado, visto nunca se esgotar os da classe dos casados, como já tive a honra de
expor a VExa essa duvida a fim de que V.Exa se digne resolve-la em sua alta sabedoria”113. O
que pode ter sido o caso da “escrava Antonia, com a idade de cincoenta e quatro anos, cazada
109
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Livros de Escrituras Públicas –Século XIX.
Ano: 1881. Documentação não catalogada.
110
Ver: NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro. O horizonte da liberdade e a força da escravidão: últimas décadas do
século XIX. In. CASTILHO, Lisa Earl; ALBUQUERQUE, Wlamyra; SAMPAIO, Gabriela dos reis (orgs.).
Barganhas de querelas da escravidão: tráfico, alforria e liberdade (séculos XIII e XIX). Salvador: Edufba, 2014.
111
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Livros de Escrituras Públicas –Século XIX.
Ano: 1880. Documentação não catalogada.
112
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Livros de Escrituras Públicas –Século XIX.
Ano: 1883. Documentação não catalogada.
113
APEB - Seção de Arquivo Colonial e Provincial, Presidência da Província, Judiciário (Escravos: Assuntos)
1880-1888, maço 2900. REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia,
1850-1888.Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
Campinas, São Paulo, 2007, p. 203-204
129
com pessoa livre, [...] alforriada pelo juiz de órfãos desta villa por conta do fundo de
emancipação pela quantia de quinhentos mil reis [...] a dita escrava com cincoenta mil reis de
pecúlio”114.
A partir dessas análises, algumas experiências e expectativas vêm à tona. Tanto por
parte dos senhores como pelos cativos, torna-se nítido que havia posicionamentos tomados
em virtude da intensificação das medidas e das ideias abolicionistas. Os senhores, em sua
maioria, não pretendia se desfazer do domínio da posse escrava, por isso criaram meios de
garantir a presença da mão de obra do (ex) escravo no alcance das suas vistas. É evidente, no
entanto, que estes não agiram como meras peças do interesse senhorial, mas exigiam,
concediam e atendiam demandas próprias. Experiências diversas foram experimentadas por
esses sujeitos, seja se desvencilhando da propriedade, seja construído outras relações no
mesmo espaço de trabalho quando conseguido a liberdade, tanto no período da escravidão
como no pós-abolição.
Ao contrário do que observado por Iacy Maia Mata em seu estudo sobre o processo
abolicionista em Cuba e no Brasil, em que grandes senhores de engenho não se prepararam
para a transição, havendo “em muitos casos, a interrupção e paralisação das atividades de
plantação e uma crise econômica [que] acompanhou a abolição”115, percebe-se que para a
realidade do alto sertão, não houve grandes abalos, visto que muitos que detinham a posse
escrava já estavam realizando acordos para sua manutenção e também da mão de obra livre,
além disso, antes mesmo da intensificação das medidas emancipacionistas distintas formas de
trabalho já se davam na lavoura e pecuária sertaneja, o que não gerou uma total dependência
da mão de obra escrava.
Nesse sentido, a presença de agregados e camaradas foi constante, como demonstrado
na relação de dívidas do inventário de Venância Pereira de Lacerda, que “Deve, Manoel,
camarada”, a quantia de Rs. 83$400116, além de outros libertos que continuaram a viver e
desempenhar suas atividades na região.
Vale notar que o empréstimo concedido a esses sujeitos, ao tempo em que pode
revelar o universo das relações criadas entre ex- senhores e libertos, também revela
114
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Livros de Escrituras Públicas –Século XIX.
Ano: 1881. Documentação não catalogada.
115
MATA, Iacy Maia. Sentidos da liberdade e encaminhamento legal da abolição: Bahia e Cuba – notas iniciais.
Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, 5-1: 66 – 90, 2011, p.73. Ver de maneira mais detida a análise
sobre o processo emancipacionista em Cuba em sua tese intitulada: Conspirações da “raça de cor”: escravidão,
liberdade e tensões raciais em Santiago de Cuba (1864/1881). Campinas: Unicamp, 2012.
116
Fórum Dr. Alcebíades Laranjeira – Palmas de Monte Alto – Ba. Inventário de Venancia Pereira de Lacerda.
Maço: 34. Ano: 1884.
130
dificuldades enfrentadas pelos recém saídos do cativeiro, provavelmente acentuadas com a
estiagem do início da década de 1890. Walter Fraga Filho (2006, p.151), analisou semelhante
situação no Recôncavo baiano, indicando “que as dificuldades de subsistência diminuíram o
poder de barganha dos libertos, no processo de negociação com os donos de engenho”. Na
correspondência abaixo, publicada no jornal “Pequeno Jornal”, em 03 de março de 1890,
percebemos aspectos desse contexto enfrentado em Monte Alto:
Como sabeis, nestas quadras calamitosas, há uma certa classe pobre que
geme soffrendo occulta as agonias da fome, com pejo de estender a mão a
caridade publica, e esta hoje aqui é grande. Conheço famílias que tem 8 e 10
filhos e passam dias sem accender fogo em casa e seus chefes não tem
recurso algum!
Roceiros, segundo tenho ouvido, tem passado e passam mezes sem farinha.
As poucas roças de mandioca estão sendo roubadas de maneira espantosa, e
até já houve um assassinato em uma; e o mesmo dá-se com as creações de
toda espécie e já se fala em ataques pelas estradas117.
Mesmo não informando de maneira precisa se esses sujeitos eram ou não ex-
escravizados, podemos supor que a menção a “certa classe pobre” e “roceiros”, compunha-se
também desses sujeitos. Além de ressaltar as agruras por eles sentidas, o documento faz
menção às práticas que se manifestaram diante dessa situação. Por um lado, o destaque para a
caridade, como uma prática “grande”, pode ser vista como um meio utilizado para manter
esses sujeitos sob seu domínio, o que não quer dizer que houve uma submissão ou aceitação,
ao menos sob a ótica do proprietário. Por outro, a recorrência a roubos além de ser movida
pela escassez de alimentos, talvez pode ter servido como meio de reivindicar ações mais
energéticas e não ceder a tais vínculos. Deste modo, antes e a pós decretada a abolição as
estratégias de domínios dos escravos, libertos e livres, continuaram presentes na realidade
sertaneja. Concedendo alforrias, ou realizando acordos com demonstrações de benevolência,
os (ex)senhores perseguiram o desejo pela manutenção desses sujeitos debaixo de suas vistas.
Ao que tudo indica, muitos permaneceram, construindo relações, negociando e enfrentando as
dificuldades impostas cotidianamente.
Referências
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão
na corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
_________________. Machado de Assis, historiador. São Paulo: Companhia das Letras,
2003.
117
Hemeroteca Digital Nacional. Pequeno Jornal, 03 de março de 1890.
131
FILHO, Walter Fraga. Encruzilhadas da liberdade: história de escravos e libertos na Bahia
(1870-1910). Campinas: Editora da UNICAMP, 2006.
MIRANDA, Rosângela Figueiredo. Trânsitos culturais de poder local, tráfico interno de
escravos e liberdade no alto sertão da Bahia, no período de 1840 a 1888. In. XXVII
Simpósio Nacional de História, Natal –RN, 2013.
NASCIMENTO, Flaviane Ribeiro. O horizonte da liberdade e a força da escravidão: últimas
décadas do século XIX. In. CASTILHO, Lisa Earl; ALBUQUERQUE, Wlamyra; SAMPAIO,
Gabriela dos reis (orgs.). Barganhas de querelas da escravidão: tráfico, alforria e liberdade
(séculos XIII e XIX). Salvador: Edufba, 2014.
PIRES, Maria de Fátima Novaes. O crime na cor: escravos e forros no alto sertão da Bahia
(1830- 1888). São Paulo: Annablume, 2003.
__________________________. Fios da vida: Tráfico Interprovincial e Alforrias nos
Sertoins de Sima – Ba (1860-1920). São Paulo. Annablume, 2009.
MATA, Iacy Maia. Os treze de maio: Ex-senhores, polícia e libertos na Bahia pós-abolição
(1888-1889). Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2002.
________________.Sentidos da liberdade e encaminhamento legal da abolição: Bahia e
Cuba – notas iniciais. Revista de História Comparada. Rio de Janeiro, 5-1: 66 – 90, 2011.
NEVES, Erivaldo Fagundes. Pecuária, Policultura e escravidão no alto sertão da Bahia,
século XIX. Feira de Santana: UEFS Editora, 2012.
SANTANA NETO. José Pereira. A alforria nos termos e limites da lei: o Fundo de
Emancipação na Bahia (1871-1888). Dissertação de Mestrado. Salvador: UFBA, 2012.
SILVA, Ricardo Tadeu Caires. Caminhos e descaminhos da abolição: Escravos, senhores e
direitos nas últimas décadas da escravidão (Bahia, 1850-1888). Tese de Doutorado. Curitiba:
UFP, 2007.
REIS, Isabel Cristina Ferreira dos. A família negra no tempo da escravidão: Bahia, 1850-
1888.Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas. Campinas, São Paulo, 2007.
132
O CICLO POMBALINO NA LITERATURA BRASILEIRA: O URAGUAI (1769), O
DESERTOR (1774) E O REINO DA ESTUPIDEZ (1818)
INTRODUÇÃO
Essas três obras citadas por Cândido (O Uraguai; O Desertor e O Reino da Estupidez,
de Francisco de Melo Franco) incorporam as principais ideologias e o engajamento político de
seus autores, enquanto atuantes intelectuais no cenário da ilustração luso-brasileira. Estas
obras revelam o quanto seus autores se empenharam a louvar e exaltar os feitos pombalinos
que transformaram a educação brasileira a partir da segunda metade do século XVIII.
É consenso que, dentre os principais feitos de Pombal, destacam-se: o papel que o
ministro desempenhou na reconstrução de Lisboa após o terremoto de 1755; a destituição do
118
Despotismo esclarecido (ou iluminado) corresponde à forma de governar característica da Europa na segunda
metade do século XVIII, que embora partilhe com o absolutismo a exaltação do Estado e do poder soberano é
animada pelos ideais de progresso, reforma e filantropia do iluminismo.
133
poder da Companhia de Jesus em 1758, com a expulsão dos Jesuítas dos domínios
portugueses em 1759; e as reformas do sistema de ensino, principalmente do ensino superior
(OLIVEIRA, 2010; NUNES, 2013; ARRUDA, 2009; CARVALHO, 1978).
Assim, considerando que as obras retratam os feitos de Pombal desde a chegada do
Marquês à cidade de Lisboa, após o terremoto de 1755 até a destituição de seu governo com o
declínio do Reinado de D. José I, para o desenvolvimento desta análise, optar-se-á pela ordem
proposta por Candido (2006b), ou seja, começando a análise por O Uraguai de Basílio da
Gama, em seguida com O Desertor de Silva Alvarenga e finalizando com O Reino da
Estupidez de Melo Franco, sem, no entanto, deixar de fazer pontes estre elas, a fim de
descobrir, com maior precisão, como tais obras enquadram-se em um Ciclo Pombalino na
Literatura Brasileira. Um Ciclo em que cada obra reflete um momento importante no governo
pombalino.
Em O Uraguai, de Basílio da Gama, é retratada a luta pombalina contra os jesuítas que
objetivou reduzir o poder político da igreja e submetê-la integralmente ao Estado. Nesse
poema épico, a intervenção de Pombal no cenário indígena se justifica por ser o ministro o
libertador dos índios sob o domínio opressivo dos jesuítas. Assim o índio é apenas um suporte
para a celebração de Pombal, associada à desqualificação dos jesuítas (TEIXEIRA, 1999,
p.39-41).
Para Antonio Candido (2006a), ao antijesuitismo de O Uraguai corresponde o
pombalismo educacional dos dois poemas herói-cômicos (O Desertor de Silva Alvarenga, e O
Reino da Estupidez de Francisco de Melo Franco), feitos para defender a reforma da
Universidade e atacar o ensino escolástico, formando os três uma espécie de tributo às
medidas transformadoras, referente aos feitos pombalinos, como se um gênio oculto
insinuasse aos rapazes ultramarinos que elas abriam perspectivas favoráveis à superação do
estatuto colonial (CANDIDO 2006a, p.163).
Da mesma forma como Basílio da Gama, Silva Alvarenga apresenta uma posição
ideológica e estética bem definidas ao escrever o poema herói-cômico O Desertor (1774),
quando ainda era estudante em Portugal. No poema, Silva Alvarenga apoia a modernização
dos estudos universitários empreendida pelo Marquês de Pombal por influência do
pensamento ilustrado.
Com o mesmo espírito iluminista com que Alvarenga escrevera O Desertor em apoio
à reforma universitária, Francisco de Melo Franco, satirizou o regresso da treva pré –
iluminista e a volta da rotina no poema O Reino da Estupidez (1785) (CANDIDO 1999, p.34).
134
E se no primeiro poema, Alvarenga retrata o Marquês de Pombal como sendo um “Gênio da
Lusitânia” que “depois dos estragos da ignorância” “no teu seio / De novo atentas as amáveis
Artes” (ALVARENGA, 1774, p. 07), já no segundo, Melo Franco retrata a Rainha D. Maria I
como a “Deusa da estupidez” que “usurpara [...] o seu trono” (MELO FRANCO, p.03), nesse
mesmo poema o autor “Diz que já o Pombal faz tanta falta” e ainda invoca o retorno do “bom
ministro” (idem, ibidem, p.09). É assim, como afirma Candido, que aderindo às reformas
brutais, mas progressistas do Marquês de Pombal, os intelectuais brasileiros se opuseram em
geral ao retrocesso que seguiu a sua queda (CANDIDO 2006a, p.163).
Assim sendo, essa análise seguiu essa linha de interpretação ao comparar essas três
obras (O Uraguai de Basílio da Gama, O Desertor de Silva Alvarenga, e O Reio da Estupidez
de Francisco de Melo e Franco), sob a perspectiva de um Ciclo Pombalino da Literatura
Brasileira, em que cada obra denuncia o engajamento político de seus autores ao Governo
Pombalino, levando em consideração o momento histórico e sua repercussão nas artes, em
especial na literatura brasileira.
Não é exagero dizer que alguns apontamentos que culminaram nessa reflexão
surgiram há, aproximadamente, cinco anos, quando cursava a graduação em Letras e,
especificamente, durante a realização de um trabalho interdisciplinar que envolvia as
disciplinas de Literatura Portuguesa e Literatura Brasileira, em que foi proposto o estudo da
obra “O Desertor”, de Silva Alvarenga. Desse trabalho, foram encaminhadas algumas
questões estéticas que foram desenvolvidas no Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)
intitulado “O Desertor: Epos ou Romance?”. No entanto, o mais importante a frisar é que,
durante o desenvolvimento do trabalho, dentre os autores revisados119, apenas Candido (2006
b), tratava O Desertor, como obra de destaque no “ciclo do pombalismo literário”, juntamente
com O Uraguai, de Basílio da Gama, e O Reino da Estupidez, de Francisco de Melo Franco,
sendo, pelo menos, a segunda reconhecida como um clássico da literatura brasileira.
Notou-se também que, apesar dessas obras serem consideradas representativas de um
período crucial da formação da literatura brasileira, são poucas as páginas críticas dedicadas à
poesia neoclássica no Brasil. Dentre os poucos estudos desenvolvidos acerca do pombalismo
literário na literatura brasileira, embora que muito substanciais, têm-se demonstrado ainda
119
COUTINHO (2001), Introdução à literatura no Brasil; TUFANO (1983), Estudos da Literatura Brasileira;
MARTINS (2002), A Crítica literária no Brasil; CANDIDO (1999, 2006-a), SILVA (1864), Obras Poéticas de
Manoel Ignacio da Silva Alvarenga ; VERÍSSIMO (1969), História da Literatura Brasileira; TOPA (1997)
Para uma edição crítica da obra do árcade brasileiro Silva Alvarenga; TOPA (1998), “Da teoria à crítica
literária: reexame da questão à luz de um texto inédito do autor” “Os sonetos: atribuições ignoradas e
inéditos”; TUNA (2009), Silva Alvarenga: representante das Luzes na América portuguesa; NEJAR (2011),
História da Literatura Brasileira.
135
pouco devido à importância do período que compreende a segunda metade do século XVIII.
Nesse sentido, Francisco Topa percebe que este período está ainda mal estudado e cita, como
exemplo das consequências do relativo desinteresse da crítica literária, o autor árcade Manuel
Inácio da Silva Alvarenga, que apresenta vários erros e julgamentos precipitados no que diz
respeito a sua biografia e contextos histórico-cultural (TOPA 1997).
Diante disso, pretende-se com esta análise contribuir com a crítica e historiografia
literária no que diz respeito ao estudo da literatura brasileira da segunda metade do século
XVIII, e, possivelmente, complementar a fortuna crítica das obras: O Uraguay de Basílio da
Gama; O Desertor de Silva Alvarenga; e O Reio da Estupidez de Francisco de Melo e Franco.
Obras que se adequam ao espírito ilustrado da época e delineiam um Ciclo do Pombalino na
Literatura Brasileira.
Socialmente, este estudo poderá ajudar a compreender como o ministro Sebastião José
de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, com as Reformas Pombalinas, não só transformou
a educação brasileira a partir da segunda metade do século XVIII, mas influenciou a cultura e
as artes, principalmente no que diz respeito à literatura brasileira.
Para uma compreensão mais acurada sobre o contexto histórico e político de Portugal
e do Brasil, até então colônia portuguesa, na segunda metade do século XVIII, foram de
grande importância os estudos desenvolvidos por: Oliveira (2010); Nunes (2013); Arruda
(2009); Carvalho (1978). Tais estudos proporcionaram uma ampla visão sobre as influencias
históricas e políticas que motivaram e/ou inspiraram a produção literária dos poetas árcades
brasileiros, com destaque para: Basílio da Gama (O Uraguai); Silva Alvarenga (O Desertor); e
Francisco de Melo Franco (O Reino da Estupidez).
Tais obras foram analisadas sob a mesma perspectiva adotada por Ivan Teixeira (1999)
em seu estudo “Mecenato Pombalino e Poesia Neoclássica: Basílio da Gama e a poética do
encômio”, quando autor considerou que o núcleo da significação de O Uraguay encontra-se
no louvor ao Marquês de Pombal, que implica o ataque aos inacianos, e não na valorização do
índio enquanto elemento típico da terra do autor, como geralmente é abordado pela crítica
literária brasileira (TEIXEIRA, 1999, p.32-33).
Assim, O Uraguai de Basílio da Gama, O Desertor de Silva Alvarenga, e O Reino da
Estupidez de Francisco de Melo e Franco serão consideradas e interpretadas como obras
integrantes do discurso ilustrado português, dando ênfase às suas principais temáticas que
resultam no domínio das luzes, que são o antijesuitismo e o pombalismo. Para desenvolver
essa linha de interpretação, esta pesquisa contará com as contribuições de: ALBUQUERQUE
136
(1975); CANDIDO (1996, 2006 a, 2006 b); NEJAR (2011); NUNES (2011); SILVA (1864);
TEIXEIRA (1999); TUNA (2009).
Para interpretar as obras O Uraguai (1769), O Desertor (1774), e O Reino da
Estupidez (1818), como obras iconográficas do Ciclo Pombalino na Literatura Brasileira, será
adotada a primeira definição básica para a palavra “ciclo”, apresentada por Larousse (2001),
que diz respeito a uma “Série de acontecimentos ou fenômenos que se sucedem numa ordem e
período determinados” (LAROUSSE, 2001). Nesse sentido, serão considerados como
acontecimentos e fenômenos os feitos de Sebastião Carvalho de Melo, o Marquês de Pombal,
enquanto ministro de Portugal durante o reinado de D. José I.
Antes de adentrar na análise das obras, cabe salientar que, Segundo Franco 2007, as
Reformas Pombalinas tiveram como base os ideais Iluministas que eram pregados por um
grupo de intelectuais e políticos, que surgiu em Portugal no século XVIII. Trata-se de
revolucionária reforma educacional feita na Universidade portuguesa que destituiu os jesuítas
das funções de administração e magistério até então exercidas. A partir daí, foi criada a
faculdade de Filosofia e de Matemática que, juntamente com a de medicina, compunham a
congregação Geral das Ciências e suas disciplinas de História Natural, Física, Química, e
Geometria passaram a ser pré-requisitos obrigatórios para todos os alunos dos demais cursos.
Também significou a obrigatoriedade da formação de nível superior para os matemáticos e
determinou o surgimento de um novo profissional: o naturalista. Segundo Arruda 2009:
Dos muitos feitos de Pombal, os que mais destaque ainda hoje recebem da
historiografia acerca de sua vida e obra são: o papel que teve na reconstrução
de Lisboa após o notório terremoto de 1755 – evento após o qual recebeu do
monarca autoridade sem paralelos; a destituição do poder temporal da
Companhia de Jesus, a 1758, com a expulsão de todos os membros daquela
ordem dos domínios portugueses, a 1759; e, acima de tudo, as subseqüentes
reformas do sistema de ensino, em especial do ensino superior. (ARRUDA,
2009)
137
da grande tragédia, mas também um grupo de artistas e intelectuais que acreditaram e se
engajaram na política pombalina, abraçando-a com esperança de superação e fé no progresso.
Considerados como heróis nacionais, o Rei D. José I e o Marques de Pombal, foram exaltados
em diversas obras artísticas culturais do período. O soneto que abre o épico de Basílio da
Gama, O Uraguai, faz referência a tal exaltação:
A luta contra a influência dos padres jesuítas sobre os índios é característica marcante
em O Uraguai. Ex-aluno do colégio de jesuítas, Basílio da Gama mostra-se completamente
desfavorável à educação implantada pelos inacianos nas colônias portuguesas e vê na política
de Pombal um melhor destino para o país sedento de independência política e emancipação
intelectual, e, para alcançar esses fins, a educação dos padres jesuítas parecia um empecilho,
já que colocava os índios contra a coroa portuguesa. Fazendo os índios ignorar o rei
português, conforme se lê na fala de Cacambo: “De que serve ao teu rei? Aqui não temos /
Nem altas minas, nem caudalosos” (GAMA, 2009, p. 45).
Por isso que há de se concordar com Candido (1984) quando ele afirma que, embora
Basílio celebre uma guerra destruidora, no fundo o poeta não simpatiza com ela e quase
justifica o inimigo, que assim como os índios também são tratados como vítimas dos padres
jesuítas, lamentando a necessidade cruel da razão do Estado (CANDIDO, 1984, p. 08).
O general Andrade, embora fale em nome da Coroa Portuguesa desde o início da
narrativa parecia opor-se à guerra, conforme se nota em seu discurso iluminista, mas é durante
a guerra que ele parece comprovar a inutilidade desta. No capítulo IV, após a morte de
Lindóia, há uma cena, cuja narrativa é capaz de comover o leitor, quando Andrade presencia
vários corpos indígenas massacrados enquanto os padres permaneciam protegidos e salvos em
seus edifícios. Diante da cena o guerreiro português chora:
Parece que é no canto V, quando ao deparar-se com a realidade representada nas obras
de arte, pinturas da Companhia de Jesus expostas no teto, que o general Andrade irá
humanizar120-se completamente ao ver os crimes cometidos pela ordem, e compreender que
os índios foram vítimas de tais barbaridades:
120
Humanizar: v.t. (fr humaniser) [conj.4.]. 1. Tornar humano, dar estado ou condições humanas. 2. Tornar
benévolo, benigno. v.pr. 1. Tornar-se humano. 2. Tornar-se sensível, caridoso (LARROUSE, 2001, p.520).
140
Dádivas corruptoras: do outro lado
Sobre os brancos altares suspendidos
Agudos ferros, que gotejam sangue.
(CANTO V, 1-11)
Ao presenciar, nas obras de arte, tanta corrupção praticada pelos Jesuítas, Andrade fica
sensibilizado com as consequências trágicas da guerra. Os índios guaranis, vendo seus entes
queridos morrerem na guerra, também pareciam desejosos de paz, e de um fim para aquele
sofrimento. Ao que parece, o general e os índios almejam acabar com a guerra, e dar ouvidos
à voz da razão.
Se, por um lado, os padres são narrados como lobos vorazes e traidores que
abandonaram os índios à própria sorte em meio a uma guerra, conforme lê-se no fragmento
abaixo:
Em trajes de caminho ambos os padres,
Que mansamente do lugar fugiam,
Desamparando os miseráveis índios
Depois de expostos ao furor das armas.
Lobo voraz que vai na sombra escura
Meditando traições ao manso gado,
Perseguido dos cães, e descoberto
Não arde em tanta cólera, como ardem
Balda e Tedeu. [...]
(CANTO V, 108 – 116)
141
O fim do episódio da guerra para a execução do Tratado de Madri termina com a
expulsão dos jesuítas da colônia portuguesa e a submissão dos índios sobreviventes. Diante da
aparente bondade do general, os guaranis “reconhece as ordens e se humilha”. Logo, percebe-
se a dicotomia vencedor e vencido que fica evidenciada no poema através do contraste entre:
a alegria e brandura do colonizador, e choro e humilhação dos índios sobreviventes. Certo de
ter feito um épico favorável aos olhos do Rei D. José I e à política pombalina, o poeta,
confiante que o poema seria publicado com o aval do rei, suspira: “Serás lido, Uraguai”.
Após a expulsão dos jesuítas das terras portuguesas e o rompimento com o ensino
eclesiástico, conforme mostrou o épico basiliano, o caminho estava livre para a
implementação das reformas no ensino superior, e essas serão motivos de louvor e exaltação
no Poema Herói-Cômico “O Desertor”, de Silva Alvarenga.
143
De todos os ministros do Rei D. José I, o Marquês de Pombal foi o que teve maior
repercussão na Coroa e nas colônias portuguesas pela sua administração, seu empenho em
reerguer Portugal e melhorar a economia do país. Pombal, conhecido como “ministro
esclarecido”, incorpora, com tais reformas, a estética iluminista na Universidade e afasta a
ciência baseada na “ignorância”. No poema, Alvarenga traz essa mudança estética ao situar
Gonçalo como um estudante de Letras acostumado ao ensino baseado na leitura de romances,
na retórica, no ensino baseado na fé cristã e na subjetividade, considerado como um método
de “Ciência antiga”, ultrapassado. Conforme mostra o trecho abaixo, em que Tibúrcio,
influenciado pela ignorância, tenta convencer Gonçalo a desertar dos estudos, pois, na sua
visão de “ignorante”, tudo havia mudado para pior:
144
E aqueles, cujo sono não perturba
O côncovo metal, que as horas conta,
Seguiram as bandeiras da ignorância
Nos incríveis trabalhos desta empresa.
(CANTO II, 43 - 48)
Mais adiante, a Superstição discursa e reafirma que Lisboa é o lugar propício para
fundar o Reino da Estupidez, pois:
Lisboa já não é, torno a dizer-vos,
A mesma que há dez anos se mostrava.
147
É tudo devoção, tudo são terços,
Romarias, novenas, vias-sacras.
Aqui é nossa terra, aqui veremos
A nossa cara Irmã cobrar Seu reino".
(CANTO II,217-222)
Após fundar seu Reino em Lisboa, a Estupides segue com o esquadrão para a
Universidade de Coimbra. No terceiro canto é narrada a chegada da Rainha à Coimbra e
A linda perspectiva da cidade
Que tem tanto de bela, quanto é dentro
Imunda, irregular e mal calçada.
A terra é pobre, é falta de comércio:
148
O povo habitador é gente infame,
Avarenta, sem fé, sem probidade,
Inimiga cruel dos estudantes,
Mas amiga das suas pobres bolsas.
Aqui de muito tempo está fundada
A nobre Academia Lusitana.
O monstro, que é dotado de cem olhos,
Que ao longe avista os mais pequenos vultos,
Que debaixo do teto o mais forrado
Nada se passa sem lhe ser notório;
O monstro, que por outras tantas bocas,
Quanto sabe e não sabe põe patente;
Aqui em altas vozes apregoa
Que vem a Estupidez em breve tempo
Seus domínios cobrar, seu diadema,
Armada de terrível companhia.
Na minha fantasia acende, Oh Musa,
Um fogo vivo; põe na minha língua
Expressivas palavras, com que pinte
As proezas que vou dizer agora.
A Acadêmica gente alvoroçada
Não pensa, não conversa noutra coisa;
Em quase todos, geralmente reina
Excessiva alegria e nos Conventos,
De que consta a cidade em grande parte,
Mandam os guardiões que os refeitórios
De mais vinho e presunto se reencham.
(CANTO III, 16 – 46)
O Lente de prima de Teologia é totalmente descrente das ciências e crê ser uma falta
de humanidade os estudos desenvolvidos pela Medicina,
Há coisa mais cruel, mais desumana,
Mais contrária à razão, que ver os médicos
Um cadáver humano espatifando,
Um corpo que habitou o Espírito Santo?
(CANTO III, 109 – 112)
Logo mais, tem-se a fala de Tirceu – homem singelo, que consome seus dias sobre os
livros – Lente de prima de Matemática, que discursa em defesa das Ciências, evocando à
Memória do Marquês de Pombal e repelindo o culto da Estupidez que implantava seu reino na
Universidade:
— “Não é a glória vã de distinguir-me”.
Quem me obriga a encontrar a tantos votos
Que, por serem conformes, talvez sejam
Ao parecer de muitos, verdadeiros.
A glória do meu rei, o amor da pátria,
São dois fortes motivos que me impelem
A dizer francamente quanto penso.
150
Trazei, sábios ilustres, à memória,
Aquele tempo em que contentes vistes
Entrar nesta cidade triunfante
O grande, invicto, o imortal Carvalho,
Às vezes de seu rei representando;
Daquele sábio rei, cujo retrato
Inda agora me anima e me dá forças
Para que, em seu favor, em sua glória,
Derramando o meu sangue, exale a vida.
Vistes ao grão marquês, qual sol brilhante
De escura noite, dissipando as trevas,
A frouxa Estupidez lançar ao longe;
E erigir à ciência novo trono
Em sábios estatutos estribado.
(CANTO III,146 – 166)
151
Eu gostosa vos lanço a minha bênção.
Continuai, como sois, a ser bons filhos,
Que a mesma que hoje sou, hei de ser sempre."
(CANTO IV, 315 – 319)
Assim, sob a ótica de seu autor, por não estimular o progresso científico e aceitar o
método das “Ciências Antigas”, a rainha é e sempre será a “Deusa da Estupidez” e,
considerando a estética do gênero poema herói-cômico, uma anti heroína nacional, pois para
ser consagrada como heroína seria necessário um enfrentamento humano existencial por parte
da rainha que seria, uma posição favorável à ideologia pombalina. Isto é, o comportamento
esperado para a rainha seria o que desse continuidade ao progresso incentivado pelo seu pai, o
Rei D. José I, apoiando o pombalismo e não o contrário, como ela fez apoiando a igreja e se
opondo à política de Pombal.
No poema, têm-se o cenário da Universidade de Coimbra após o declínio de Pombal e
do pensamento iluminista. Vemos o fortalecimento da Igreja e o retrocesso do progresso
científico que é questionado e desacreditado pelos portugueses mais tradicionalistas e
religiosos que veneram e louvam a chegada da Estupidez que traz consigo a Superstição, a
Hipocrisia, o Fanatismo. Esses personagens alegóricos encarnam tudo aquilo que o Pombal
tentou afastar do Estado e da Universidade: a Igreja e a religiosidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
152
árcades. E a o poema herói-cômico analisado aqui, faz uma sátira cômica aos estudos que
eram realizados nas Universidades antes das Reformas Pombalinas e da chegada do
Iluminismo, na Universidade de Coimbra.
A obra, tanto na temática como no ritmo sonoro, nos remete à fugacidade Arcádia.
Pois a fuga, que Gonçalo e seus amigos praticam, é expressa nos versos enjambement, ou seja,
no cavalgamento entre um versos e outro em busca de uma unidade de sentido. Para os
Desertores, aquela vida de estudos, proposta pelos novos métodos baseado no Racionalismo,
não fazia sentido, por isso dando ouvidos à voz da Ignorância buscam aquilo que eles
acreditavam ser o verdadeiro sentido da vida que, tanto para eles quanto para os árcades, era
uma vida simples no campo, longe da cidade, e no caso dos estudantes, longe dos exaustivos
estudos implementados pelas Reformas Pombalinas, em prol do progresso científico.
Progresso científico, esse, que será questionado e menosprezado pelos seguidores
da rainha D. Maria I, a “Deusa da Estupidez”, no poema O Reino da Estupidez, de Francisco
de Melo e Souza. No anti-épico é narrada a chegada da rainha, a anti-heroína, na decadente
Lisboa, e na Universidade de Coimbra após o declínio de Pombal, e do pombalismo.
Figurando o retrocesso da modernização e retorno da treva, simbolizada pelo pensamento
religioso.
Assim, confirma-se o que foi dito a princípio, ou seja, que os três poemas aqui
analisados refletem um momento ideológico importante e decisivo no governo de Pombal,
isto é: O Uraguai, de Basílio da Gama, retrata a luta pombalina contra os jesuítas; em O
Desertor, Silva Alvarenga apoia a modernização dos estudos universitários empreendida pelo
Marquês de Pombal; e em O Reino da Estupidez (1785), Francisco de Melo Franco satirizou o
regresso da treva pré – iluminista e a volta da rotina com o declínio do Marques de Pombal e a
ascensão da rainha D. Maria I ao trono português, evocando à Memória do “bom ministro”.
Logo, conclui-se que tais obras esboçam em versos um Ciclo Pombalino na Literatura
Brasileira.
REFERÊNCIAS
Obras literárias
_______ O Desertor: poema herói-cômico; notas ao poema Joaci Pereira Furtado, Ronald
Polito. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2003.
153
GAMA, Basílio da. O Uraguay. 1.ed. Lisboa: na Régia Officina Tipografica, 1969.
_______. O Uraguai. In. O Uraguai; A declamação trágica. São Paulo: Martin Claret, 2009.
MELO E FRANCO, Francisco de. O Reino da Estupidez. 1818. Versão digitalizada pela
UNAMA: Universidade Amazônica. Disponível em: <
http://www.portugues.seed.pr.gov.br/arquivos/File/leit_online/franc_melo.pdf>. Último
Acesso em: nov. 2015.
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_______ Literatura e Sociedade. 9.ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006-a.
_______ Formação da literatura brasileira: momentos decisivos, 1750-1880. 10. ed. Rio de
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2000. 371p.; 23cm. -- (Coleção História)
LAROUSE, Ática. Ciclo. In. Dicionário da Língua Portuguesa. Paris: Larouse / São Paulo:
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NEJAR, Carlos. Arcádia e os poetas mineiros no século XVIII – Manuel Inácio da Silva
Alvarenga, In. História da Literatura Brasileira: da carta de Caminha aos Contemporâneos.
São Paulo: Leya, 2011, p. 77-78.
154
OLIVEIRA, Luiz Eduardo (org.). A legislação pombalina sobre o ensino de línguas: suas
implicações na educação brasileira (1757-1827). Maceió: EDUFAL, 2010.
SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Obras Poéticas de Manoel Ignacio da Silva Alvarenga
(Alcindo Palmireno) colegiadas, anotadas e precedidas de juízo critico dos escritores
nacionais e estrangeiros e de uma notícia sobre o autor e suas obras e acompanhadas de
documentos históricos por Joaquim Norberto de Souza Silva.1 tomo Rio de Janeiro: Livraria
B.L.Garnier, 1864.
TENGARRINHA, José (org). História de Portugal. Bauru, SP: EDUSC; São Paulo, SP:
UNESP; Portugal, PO: Instituto Camões, 2000.
TOPA, Francisco. “Da teoria à crítica literária: reexame da questão à luz de um texto inédito
do autor” “Os sonetos: atribuições ignoradas e inéditos”. Porto, XIV: Revista da Faculdade
de letras: Línguas e Literaturas,1997. P. 343-398.
_______ . Para uma edição crítica da obra do árcade brasileiro Silva Alvarenga: Inventário
sistemático dos seus textos e publicação de novas versões, dispersos e inéditos. Porto: Edição
do Autor, 1998.
TUFANO, Douglas. Século XVII - Arcadismo. In: Estudos da Literatura Brasileira. 3ed. São
Paulo: Ed. Moderna, 1983.
TUNA, Gustavo Henrique. Silva Alvarenga: representante das Luzes na América portuguesa.
São Paulo, Tese de doutorado em História Social/USP, 2009.
VERNEY, Luís Antonio. Verdadeiro Método de Estudar. Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1952.
Material da internet
155
DE INGÊNUO A MENOR: A CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA AMEAÇA NO PÓS-
ABOLIÇÃO (PERNAMBUCO, 1888-1892)
156
como uma “dupla ameaça” a um Estado que custava a gerenciar a sua população sob uma
perspectiva de aproveitamento de suas energias e de economia social121?
O Diario de Pernambuco de 18 de maio de 1888 nos permite perceber a expectativa
criada diante dessa conjuntura, arguta em prevenir maiores tumultos por conta da libertação
dos ainda nomeados como ingênuos. O recorte do texto conta com o discurso do deputado
fluminense Andrade Figueira, que se posicionava impetuosamente a favor da escravidão,
reclamando que seus pares voltassem à razão e não deixassem ser levados pela euforia diante
do término do cativeiro. O político insistia em expor o receio que o ocupava diante do
desencadeamento da nação após a Lei 3.353:
121
FOUCAULT, Michel, 2008.
122
ARQUIVO EDGAR LEUENROTH. Diário de Pernambuco, 18 de maio 1888, p.2-3.
123
Sobre a instituição, ver: BRAGA, Vera, 2003.
124
Acerca da Companhia de Aprendizes Marinheiros, ver: SILVA, Wandoberto, 2013.
157
estudo que meninos e meninas recebiam. Inaptos ao trabalho, incapazes de se tornar sujeitos
produtivos, em sua maioria, acabavam se transformando em novos problemas sociais quando
atingiam a idade adulta.
Além disso, pontuamos que nem sempre a própria manutenção desses meninos e dessas
meninas foi efetivada com diligência. Não era raro que crianças padecessem por conta da
ausência de medicamentos, higiene e alimentação de má qualidade no interior desses
edifícios. Dormindo em caixas ou ao chão, em meio a estabelecimentos que frequentemente
precisavam de reparos, conviviam com a umidade provocada pela chuva e com a presença de
animais nocivos à saúde humana.
Andrade Figueira não estava errado ao suspeitar das capacidades da nação em abrigar
esse demasiado número de ingênuos que se faziam “livres” no 13 de Maio de 1888. A soma
de aproximadamente seiscentas mil crianças, filhas de libertos, em território nacional, não nos
parece exorbitante. Como aponta Robert Edgar Conrad, o Brasil, na época da abolição,
contava com aproximadamente meio milhão de ingênuos em todo o seu território 125, isto é,
um número, que se levarmos em conta a extensão das terras brasileiras, não dista do frisado
por Figueira.
O Jornal do Recife de 7 de junho de 1888 apresentava dados mais específicos sobre o
número desses infantes na província de Pernambuco.126 A matrícula de aproximadamente
trinta e sete mil ingênuos apenas na província pernambucana reforça os números apresentados
no Diario de Pernambuco sobre o quadro das crianças libertas no início de 1888. A fonte
ainda nos permite refletir acerca de algumas questões relativas ao tratamento desses garotos
meses antes da abolição da escravidão. Aproximadamente um décimo desses meninos e
dessas meninas acompanharam as mães, que foram alforriadas. Grande parte continuou sob a
tutoria dos senhores, como recomendava a Lei do Ventre Livre127. A indenização que o
Estado legava aos proprietários não era interessante, visto ser de um valor reconhecido como
insignificante frente à utilização dos serviços desses infantes, o que impulsionava a utilização
da mão de obra desses negrinhos e dessas negrinhas.
É possível notar que Figueira, ao conjecturar acerca da futura situação dos ingênuos,
dispunha de um pensamento que buscava antecipar o futuro, tentando evitar assim que males
sociais viessem a ocorrer ou assumir maiores proporções. Esse modo de analisar a sociedade
125
CONRAD, 1972.
126
HEMEROTECA DIGITAL DA BIBLIOTECA NACIONAL. Jornal do Recife, 7 de junho de 1888,
capa. Disponível em <http://memoria.bn.br/hdb/periodicos.aspx>. Acesso em dezembro de 2013.
127
BRANDÃO, Sylvana, 2011.
158
não foge a uma das grandes preocupações políticas de boa parte do século XIX: a prevenção
social128. Preocupava-se com o futuro e também com o presente: a libertação não
comprometeria a segurança e a ordem pública?
Em Pernambuco, a quantidade de filhos de libertos pontuada sugere o contraste entre a
necessidade de grande demanda de estabelecimentos de assistência e o parco número de
instituições apropriadas a fazer desses garotos e dessas garotas sujeitos produtivos, capazes de
sustentar a si e auxiliar no desenvolvimento da sociedade. Se essas crianças não fossem
devidamente encaminhadas, poderiam representar futuros problemas sociais ao Estado, pois
cresceriam e poderiam se tornar delinquentes, prostitutas, vadios ou outras classificações que
afastassem a nação de um gerenciamento produtivo de sua população.
O panorama de medo e a incapacidade de arcar efetivamente com a assistência de quase
trinta mil ingênuos, fez com que os Juízos de Órfãos de Pernambuco, bem como o poder
provincial, vissem no encaminhamento às tutelas uma alternativa para amenizar o
agravamento de profundas desordens. É profícuo inferir, por conseguinte, que a utilização
dessa estratégia encontrou respaldo nas práticas posteriores à Lei Rio Branco, que pontuava
que o filho da mulher escravizada e possuidora de um ventre livre129, poderia ser tutelado pelo
senhor de sua mãe. Essa escolha, portanto, não se fundamentou na elaborações de estratégias
dispostas a encaminhares esses menores a destinos seguros, uma vez que as tutelas recebiam
também variadas críticas
A leitura de documentos referentes aos Juízos de Órfãos de Pernambuco nos viabilizou
atentar aos desalinhos que se revelaram diante das atitudes que deveriam vir a ser cometidas
pelos poderes públicos quanto à problemática das crianças negras libertas. É possível notar
isso no texto escrito pelo primeiro suplente do Juízo de Órfãos do termo de Ouricuri, Marinho
Falcão, em vinte e cinco de agosto de 1888. A carta fora dirigida ao presidente da província,
de Pernambuco, Joaquim José de Oliveira Andrade, expondo uma dúvida consistente diante
de que destinos a instituição em questão deveria providenciar aos filhos dos recentemente
libertos:
132
PAPALI, Maria Aparecida, 2003.
133
GOMES, Flávio, 2007.
134
MATTOS, Hebe, 1995.
161
Os ingênuos que aparecem na documentação posterior ao 13 de maio não são os
mesmos que aqueles encontrados durante a vigência da Lei Rio Branco135. Se a “ingenuidade”
dos filhos das escravizadas significava a certeza que a escravidão iria se extinguir,
apresentando a denominação um efeito de positiva emancipação, os filhos dos “treze de maio”
carregavam a certeza que a abolição não significaria o acesso à liberdade incondicional e a
ruptura imediata a um pretérito marcado de violências. Ao menor negro dos anos posteriores
ao fim da escravidão, fincava-se a herança da senzala e o perigo social que o seu corpo,
vestido da “imoralidade” que descendia da escravidão, insinuava. Uma diferenciação,
portanto, incisiva, marcada por uma trajetória que, em primeiro lugar, propagava o
desmantelamento do regime escravista, para, posteriormente, anunciar que mesmo após o seu
aniquilamento, práticas costumeiras e árduas condições sociais anunciavam as dificuldades
em lançar um violento passado para longe do que se vivia.
A circular emitida pelo presidente da província em 25 de junho de 1888, disposta a
anunciar o modo como deveriam ser tratados os filhos das “treze de maio” a todos os Juízos
Municipais e de Órfãos de Pernambuco, nos auxilia a perceber como essas crianças eram
representadas por uma forte ambiguidade, que, mesmo sendo colocadas como sujeitas à
legislação comum, ainda eram denominadas por ingênuas.136 O presidente da província
enfatizava que os meninos e as meninas cujos pais haviam sido libertados através da Lei
3.353 deveriam ser encarados juridicamente como quaisquer outros menores. É útil
rememorar que esta condição não implicava necessariamente na compreensão da criança
problema, mas a qualquer indivíduo menor que 21 anos, não necessitando ser órfão ou pobre.
Aqui os filhos das mulheres escravizadas são assemelhados a qualquer outro jovem,
independentemente de cor ou condição social, o que contribui para compreendermos o
distanciamento que a semântica do termo assumiu após o 13 de maio.
Se, legalmente, pontuava-se a equidade desses infantes junto a garotas e garotos
brancos, no universo das práticas sociais podemos assinalar gritantes diferenciações. Em
primeiro lugar, como indica a fonte, aconselhava-se que os filhos das mulheres libertas
fossem encaminhados à soldada, isto é, à tutoria juntamente ao pagamento de um salário. Esse
mecanismo, capaz de fazer da criança um sujeito trabalhador e assalariado, percorreu o século
XIX, a um nível nacional, pelo menos desde a sua terceira década, como já discutimos no
primeiro capítulo.
135
Sobre a transformação da semântica dos conceitos, ver: KOSELLECK, Reinhart, 2006.
136
ARQUIVO PÚBLICO ESTADUAL JORDÂO EMERENCIANO. Juízes Municipais e de Órfãos
(J.M.O) - 56, p. 219.
162
Ocorre que a possibilidade de pagamento de um soldo a um menor negro, através do
instrumento da tutela, apareceu como uma prática nova no pós-abolição, uma vez que no
período de regência da Lei do Ventre Livre, o senhor que assumia a tutoria de um ingênuo
não era obrigado a ceder-lhe soldada, ao contrário, possuía o direito de ser indenizado pelo
Estado. Esse mecanismo, portanto, se pautou em minimizar as tensões sociais relacionadas a
uma infância egressa da escravidão, que carregava consigo múltiplos signos de ameaças.
Apesar desses laços de trabalho contarem agora com a obrigação de um parco pagamento, em
sua maioria, isso não invalida o caráter simbólico de uma relação de poder sustentada na
expectativa de minimizar a perda da autoridade senhorial diante dos ex-escravizados, bem
como de seus filhos.
As tutelas, de tal maneira, foram os principais destinos escolhidos pelos Juízos de
Órfãos e pelo presidente da província no direcionamento dessa população “duplamente
perigosa” à tentativa de controle. Isso se deu pelo fato desse instrumento já ser largamente
utilizado desde a Lei Rio Branco, tendo favorecido os antigos senhores no emprego da força
produtiva dessas crianças a mínimos custos. Todavia, deve-se atentar aos cuidados de não
cristalizar essas relações, como se não houvesse existido, a partir de abolição, uma dinâmica
distinta daquilo que ocorria anteriormente. Não há uma continuidade das práticas tutelares
entre 1871 e os anos posteriores ao 13 de maio de 1888, mas uma transformação no modo de
encarar os infantes negros que eram tocados pelas tutelas e que, a partir da abolição, poderiam
usufruir do direito de receber salários, como previa a legislação orfanológica, e não mais a Lei
do Ventre Livre.
Portanto, apesar de a criança negra ainda ter sido denominada como ingênua, no pós-
abolição, percebemos que a conceituação da palavra se modifica bem naquilo que adverte
Koselleck e que se incide na atenção diante das transformações políticas, sociais e culturais
que sustentam uma gama de significações envoltas a um termo. Os conceitos não se
modificam apenas quando a grafia é moldada. Essa pode permanecer idêntica e designar
entendimentos destoantes do que outrora apontava.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Sylvana. Ventre livre, mãe escrava: a reforma social de 1871 em Pernambuco.
3ª. ed. rev. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2011.
CHALHOUB, Sidney. Machado de Assis: historiador. São Paulo: Companhia das Letras,
163
2003.
GOMES, Flávio dos Santos Gomes e CUNHA, Olívia M. Gomes da. Que cidadão? Retóricas
da igualdade, cotidiano da diferença. IN: GOMES, Flávio dos Santos Gomes e CUNHA,
Olívia M. Quase-cidadão: histórias e antropologias da pós-emancipação no Brasil. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2007.
MARCÍLIO, Maria Luíza. História social da criança abandonada. São Paulo: Hucitec,
1998.
164
A MÍMESIS DA ESCRAVIDÃO NA NARRATIVA LITERÁRIA BRASILEIRA DO
FINAL DO SÉCULO XIX
137
AZEVEDO, s.d., v. XI, p. 52.
138
CONRAD, 1975, p. 90.
139
Como é notoriamente sabido, dessas campanhas participaram vultos negros como Teodomiro Pereira, Manuel
Querino, José do Patrocínio e André Rebouças (um dos fundadores da Confederação Abolicionsita da Sociedade
Brasileira contra a Escravidão).
165
Como o marfim do teclado
140
PROENÇA, 1967, p. 13.
141
Ibid., loc.cit.
142
Ibid., p. 75.
143
Ibid., p. 184.
144
AZEVEDO, s.d., p. 66.
145
Em “Thématique”, Tomachevsky (1965, p. 272) considera que “As descrições da natureza, do lugar, da
situação, das personagens e de seu caráter, etc. são motivos tipicamente estáticos; os feitos e os gestos do herói
são motivos tipicamente dinâmicos”. Cf. original: “Les descriptions de la nature, du lieu, de la situation, des
personnages et de leur caractère,etc., sont des motifs typiquement statiques; les faits et gestes du héros sont des
motifs typiquement dynamiques”.
166
horaciano do ut pictura poiesis (a poesia assemelha-se à pintura) –, uma “fada” entoa uma
cantiga ao piano, rompendo, assim, o silêncio “quase harmonioso da natureza”146. O advérbio
“quase” é sugestivo, pois, logo adiante, a presença do adjetivo “ondulados” e de outro
advérbio, “fortemente”, agora modal, ambos aplicados aos cabelos de Isaura, acusam os
traços mestiços da moça. A cantiga lembra uma complainte medieval, semelhante àquela
cantarolada pelas pobres tecelãs (tisseuses) citadas por Chrétien de Troyes (século XIII) em
“Queixa das operárias da indústria de tecidos” (“Plainte des ouvrières de l’industrie de
draps”). Aqui, a voz que canta seu amargo destino não o canta em versos amplos, como os de
Troyes, mas em versos septassílabos, que conferem um ritmo aligeirado à canção:
Desd’o berço respirando
Os ares da escravidão,
Como semente lançada
Em terra de maldição,
A vida passo chorando
Minha triste condição147.
146
GUIMARÃES, 1967, p. 19.
147
Ibid., loc.cit.
148
GUIMARÃES, 1967, p. 134.
149
Ibid., p. 70.
150
Ibid., p. 111.
151
Ibid., p. 122.
152
Ibid., p. 11.
153
Os segmentos descritivos são construídos sob efeitos de redundância. Em Isaura, tudo é equilíbrio e
harmonia, o que, aliás, na opinião de Cavalcanti Proença, torna-a “simpática à sociedade escravagista do tempo”
(PROENÇA, 1976, p. 5). Assim também o desejo sexual de Leôncio por Isaura, demonstrado nas entrelinhas,
apresenta um comedimento na linguagem, bem distante, é claro, de O elixir do Pajé, livro do mesmo autor.
167
resultante de um abuso, que nos desonra aos olhos do mundo civilizado
(ibid., p. 110).
154
GUIMARÃES, 1967, p. 86.
155
Ibid., loc. cit.
156
TOMACHEVSKY, 1965, p. 269.
157
FREYRE, 1963, p. 85.
168
olhos pretos e grandes; cabelos da mesma cor, compridos e ligeiramente
ondeados; [...] tem na face esquerda um pequeno sinal preto,e acima do seio
direito um sinal de queimadura, mui semelhante a uma asa de borboleta.
Traja-se com gosto e elegância, canta e toca piano com perfeição158.
158
GUIMARÃES, 1967, p. 95. Grifo nosso.
159
Ibid., p. 132.
160
O título do romancealude, realisticamente, ao conjunto de casas habitadas por uma população pobre. É um
tipo de habitação coletiva, por analogia com o substantivo cortiço, relativo a uma colmeia.
161
AZEVEDO, 1976, p. 15.
162
CANDIDO, 1993, p. 127.
169
Ainda, para o crítico, o romance é tematicamente mais variado do que l’Assommoir
“porque Aluísio concentra no mesmo livro uma série de problemas e ousadias que Zola
dispersou entre os vários romances”163. A figuração de uma sociedade herdeira de uma
estrutura que procedia da condição colonial, e que repentinamente se depara com a
necessidade de criar outras formas de produção, constitui o fio narrativo deste romance,
composto de cerca de vinte personagens, cheios de aberrações (adultério, lesbianismo,
prostituição, alcoolismo). É em meio a essa população corrupta, hipócrita, charlatã e
alcoólatra que surge a figura da negra e ex-escrava Bertoleza, explorada pelo português João
Romão, proprietário do cortiço “São Romão”, enriquecido por meio de falcatruas. Na
esperança de que poderia, pela sua força de trabalho, juntar dinheiro para comprar sua
alforria, Bertoleza passa a viver com Romão:
Ele [João Romão] propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços
abertos, feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda
cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente
o homem numa raça superior a sua164.
163
Ibid., p. 124.
164
Ibid.,p. 16.
165
CARONE, 1972, p. 148.
166
SODRÉ, s.d., p. 171.
170
A segunda solução é estética e permite ao romancista saltar da história para a
invenção, e é nesse salto que consegue escapar dos rígidos preceitos naturalistas. Liberto
dessas amarras,o autor também escapa de explicações críticas redutoras167, cabíveis num
romance de tese: na configuração artística da negra trabalhadora, nada de vícios, nada de
taras. É assim, pois, sem vícios e sem taras, que Bertoleza aparece diante do leitor: suja por
fora, limpa por dentro; suja no corpo, limpa na alma. Limpíssima. O trecho abaixo é
elucidativo:
Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja,
sempre atrapalhada de serviço, sem domingo168.
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice de
caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre, às
quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para
os fregueses e depois preparando o almoço [...]. E o demônio da mulher
ainda encontrava tempo para lavar e consertar, além da sua, a roupa do seu
homem169.
É dessa perspectiva que deriva a força da personagem: “Sou negra, sim, mas tenho
sentimento! Quem me comeu a carne, tem de me roer os ossos!”170. Curiosa inversão: ao
salvar a personagem de vícios e taras, o escritor termina jogando-a num fosso escuro da
história – o suicídio.
Quando não podiam reagir pela resistência passiva ou a violência, muitos
escravos cometiam suicídio. “Eva, escrava de Francisco Soares Torres,
fazendeiro da freguesia de Mendes, cometeu suicídio no dia sete de abril
com uma facada no abdômen” [“O Município”, 7 de outubro de 1877].
Igualmente, “na manhã do dia 3 de novembro, Maximiniano, escravo de José
Manuel Teixeira Coelho, cometeu suicídio abrindo a barriga” [idem, 09 de
novembro de 1873]171.
O romance de Aluísio de Azevedo foi saudado pela crítica da época com a régua
naturalista. Esqueceu-se de que sua trama romanesca inscreve-se no espaço específico de
nossa história.
167
A interpretação do romance tem sido costumeiramente voltada para argumentos de tipo determinista, em que
predominam os conhecidos elementos: raça, meio e momento.
168
AZEVEDO, 1976,p. 134.
169
Ibid., p. 17.
170
Ibid., p.195.
171
STEIN, 1961, p. 170.
171
De um modo geral – sem querer entrar em detalhes alheios a este trabalho –, formou-
se a ideia, entre escritores e intelectuais dos novecentos, de que a identidade do País estaria na
paisagem, espécie de patrona de nossa literatura.172 Em seu fundamental ensaio “Instinto de
nacionalidade”, Machado de Assis transcende esse quadro crítico-ideológico e propõe uma
mudança no discurso sobre a relação literatura e nacionalidade. Diz ele: “O que se deve exigir
do escritor, antes de tudo, é certo sentimento íntimo, que o torne homem de seu tempo e do
seu país, ainda que trate de assuntos remotos no tempo e no espaço”173.Mais adiante,
acrescenta:
Um poeta não é nacional só porque se insere nos seus versos muitos nomes
de flores ou aves do país, o que pode dar uma nacionalidade de vocabulário e
nada mais. Aprecia-se a cor local, mas é preciso que a imaginação lhe dê os
seus toques, e que estes sejam naturais, não de acarreto174.
172
Ver, sobretudo, SUSSEKIND, Flora. O escritor como genealogista: a função da literatura e a língua literária
no romantismo brasileiro. In: PIZARRO, Ana. América Latina: palavra, literatura e cultura. Campinas:
Unicamp, 1994. Em nosso artigo, publicado na revista “Leitura”( PPGLL/Ufal), intitulado “História, paisagem e
construção literária” nos detivemos nessa questão. Ver: AYMORÉ MARTINS, Ana Claudia (org.). História e
construção literária. Maceió: Edufal, 2012, v. 49. p. 172-191;
173
ASSIS, 1955, p. 144.
174
Ibid., p. 145.
175
FREYRE, 1977, p. XI.
176
MACHADO DE ASSIS,1961, p. 393.
177
Ibid., p. 395.
172
Acontece que, em Machado, as coisas aparentam ser o que deviam ser, mas não são.
Ao entrar, de supetão, na casa de Sinhá Rita, Damião vê-se diante de uma simpática senhora
rodeada de bordadeiras, dentre as quais uma chamará sua atenção, ao ser ameaçada com uma
vara pela dona da casa. É Lucrécia, “uma negrinha magricela, um frangalho de nada, com
uma cicatriz na testa e uma queimadura na mão esquerda. Contava onze anos. Damião
reparou que tossia, mas para dentro, surdamente, a fim de não interromper a conversação”178.
Atenta à conversa entre Sinhá Rita e Damião, Lucrécia “esquecera o trabalho, para mirar e
escutar o moço.”179 Há momentos na narração em que se percebe o sentimento de piedade de
Damião pela menina: “Viu-a com a cabeça metida na almofada para acabar a tarefa; não riu;
ou teria rido para dentro como tossia”180. A interpretação de Sonia Brayner, segundo a qual
“um de seus[de Machado] temas prediletos [é] a distância entre o ser e o parecer”181, vem bem
a propósito. O rapaz com nome de santo, que havia prometido, para si mesmo, intervir, caso
Lucrécia não terminasse seu bordado na hora prevista, muda bruscamente de ideia:
Era hora de recolher os trabalhos. Sinhá Rita examinou-os: todas as
discípulas tinham concluído a tarefa. Só Lucrécia ainda à almofada,
meneando os bilros sem ver. Sinhá Rita chegou-se a ela, viu que a tarefa não
estava acabada, ficou furiosa e agarrou-a por uma orelha. [...]
– Minha senhora, me perdoe! Tossia a negrinha.
– Não perdôo, não. Onde está a vara? A vara estava à cabeceira da marquesa,
do outro lado da sala. [...]– Sr. Damião, dê-me aquela vara, faz favor?
Damião ficou frio... Cruel instante! Uma nuvem passou-lhe pelos olhos. [...].
Damião sentiu-se compungido; mas ele precisava tanto sair do seminário!
Chegou à marquesa, pegou na vara e entregou-a a Sinhá Rita182.
Assim, sem mais nem menos, termina o conto. O narrador deixa o leitor a ver navios,
sem lhe fornecer nenhuma solução para o problema que havia conduzido Damião à casa de
sinhá Rita. A arte deste conto está no desfecho enigmático, quer dizer, na sutilíssima ironia
machadiana pela qual o mundo real é transposto para a construção artística. Damião é um
individualista a mais na extensa galeria do autor: egoísta, esquece princípios e valores para
angariar favores ou escalar posições. Contudo, visto que as personagens de Machado vivem
por meio de disfarces, é preciso que o leitor fique de sobreaviso.
Observe-se que, nas primeiras linhas do conto, o narrador, sorrateiramente, informa o
tempo de referência de sua história: “Damião fugiu do seminário às onze horas da manhã de
178
Ibid., p. 396.
179
Ibid., loc.cit.
180
Ibid., p. 400.
181
BRAYNER, Sonia. Metamorfoses machadianas. In: BOSI, Alfredo et al.. Machado de Assis. São Paulo:
Ática, 1982, p. 435.
182
ASSIS, Machado de. 1961, p. 402.
173
uma sexta-feira de agosto. Não sei bem o ano; foi antes de 1850. [...] Para onde iria? [...]. De
repente exclamou: Vou pegar-me com sinhá Rita!”183. Para que sua narrativa pareça digna de
crédito, o narrador toma, como campo de referência, o ano em que foi sancionada a Lei
Eusébio de Queiroz184 (1850), e, logo a seguir, injeta uma boa dose de descrença quando
marca a fuga de Damião em um mês (agosto) e em um dia da semana (sexta-feira)
considerados popularmente como agourentos. Assim Machado de Assis, com sua ironia
devastadora, recusa o topos da natureza, como emblema identitário e dádiva divina, para
colocar o dedo nas feridas resultantes do processo escravocrata no Brasil.
Não há, conforme demonstrado, narradores mais opostos, pela tessitura das obras e na
vontade figuradora da história, do que essas três vozes autorais – necessárias e fundamentais
para a compreensão do pensamento político e estético do Brasil do final de século XIX.
Referências
AZEVEDO, Fernando de. Canaviais e engenhos na vida política do Brasil. 2. ed.XI. São
Paulo: Melhoramentos, s.d.
CANDIDO, Antonio. De cortiço a cortiço. In: ____. O discurso e a cidade. São Paulo: Duas
Cidades, 1993.
CARONE, Edgard. A República Velha (Instituição e classes sociais). São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1972 (Corpo e Alma do Brasil).
FREYRE, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX. Recife:
Imprensa Universitária, 1963.
FREYRE, Gilberto. José de Alencar, renovador das letras e crítico social. In: ____.
ALENCAR, José de. O sertanejo. 7. ed. Rio de Janeiro: INL, 1977.
MACHADO DE ASSIS, José Maria. Machado de Assis: seus 30 melhores contos. Rio de
183
Ibid., p. 395.
184
A Lei Eusébio de Queiroz foi precedida pela chamada Lei Bill Aberdeen, de autoria do ministro inglês George
Hamilton Gordon, Lord Aberdeen (08 de agosto de 1945), que proibia o comércio de escravos entre a África e a
América (o tráfico no Atlântico Sul).
174
Janeiro: Nova Aguilar, 1961.
MACHADO DE ASSIS, José Maria. Instinto de nacionalidade. In: ____. Crítica literária.
Porto Alegre: Jackson Inc., 1955.
TODOROV, Tzvetan. Gêneros do discurso. Trad. Elisa Angotti Kossovitch. São Paulo:
Martins Fontes, 1980.
175
AS CANTIGAS DE SANTA MARIA NO REINADO DE AFONSO X
Já para as de escarnio é preciso compor falando mal de alguma coisa, ou seja, fazendo
uma crítica a algum grupo ou pessoa através de palavras de duplo sentido e de ambiguidades,
trocadilhos e jogos semânticos.
185
MOTOYA, 2008, p.13
186
MOTOYA, 2008, p.57
177
E nas de maldizer é comum também trazer críticas, porém diretas, é normal que ocorra
agressões verbais à pessoa ou grupo que está sendo criticado, geralmente usa-se até mesmo
palavrões para compor esse tipo de cantiga, onde se revela ou não o nome da pessoa que está
sendo agredida.
187
MOTOYA, 2008, p.45
178
Ca se ela quér que seja o séu nom' e de séu Fillo nomeado pelo mundo,
desto non me maravillo, e corrudo del Mafomét' e deitado en eixillo, el e o
dïab' antigo que o fez séu avogado.188
Todo logar mui ben pode sseer deffendudo o que a Santa Maria á por seu
escudo.Poderia-vos de dur dizer as grandes dõas que aquel Soldan de Sur
deu y, ricas e bõas; demais foy-os segurar que non fosse corrudo o reino, se
Deus m' anpar, e foi-lle gradeçudo.189
Sempre se referindo aos aspctos violentos que possam lhe ser atribuidos, teremos a
canção 46 que mostra como após derrotar cristãos em um batalha e ficar com uma imagem da
Virgem Maria como spoloios de guerra, esse mouro se encanta pela imagem e ao olhar para
sua mulher e filho chama um padre para converte-los.
Adur pod' esta razôn toda o mour' encimar, quand' à omagen entôn viu dúas
tetas a par, de viva carn' e d' al non, que foron lógo mãar e deitar leite come
per canudos. Quand' esto viu, sen mentir, começou muit' a chorar, e un
crérigo vĩir fez, que o foi batiçar; e pois desto, sen falir, os séus crischãos
190
tornar fez, e ar outros bẽes connosçudos.
188
METTMANN, 1959, p.191
189
AFONSO X, Disponível em: http://www.cantigasdesantamaria.com/csm/28. Acesso em: 24 nov.2015
190
AFONSO X, Disponível em: http://www.cantigasdesantamaria.com/csm/46. Acesso em: 24 nov.2015
179
El, quand' esto viu, ergendo se foi pass', e pois correndo fogiu e, segund'
aprendo, chegou a días contados. Aos séus acomendados...A Sopetrán, cabo
Fita. E pois esta cousa dita ouve, lógo foi escrita e muitos loores dados Aos
séus acomendados...A Virgen grorïosa, Madre de Déus pïadosa, porque
sempr' é poderosa d' acorrer aos coitados. Aos séus acomendados.191
Podemos então ver um esforço notável por parte da corte afonsina, autora e promotora
das CSM, quanto da doutrina cristã em integrarem os mouros em seus projetos unificadores.
O cristianismo medieval “recupera” de uma maneira ou de outra todos os
marginais e investe, de todas as partes, a margem interna da sociedade num
prodigioso esforço de legitimação: a tarefa é relativamente fácil no caso dos
comerciantes ou dos intelectuais.192
Na cantiga 181, novamente ocorre uma demonização dos mouros, que usando de uma
violencia repentina e e brutal tentam derrubar a estabilidade cristã com a queda de um rei.
Que eran da outra parte, atal espant' en colleron que, pero gran poder era,
logo todos se venceron, e as tendas que trouxeran e o al todo perderon, e
morreu y muita gente dessa fea e barvuda. Pero que seja a gente d' outra lei e
descreuda...E per Morabe passaron que ante passad' ouveran, e sen que
perdud' avian todo quant' ali trouxeran, atan gran medo da sina e das cruzes
y preseran, que fogindo non avia niun reda tuda. Pero que seja a gente d'
outra lei e descreuda...E assi Santa Maria ajudou a seus amigos, pero que d'
outra lei eran, a britar seus emigos
que, macar que eran muitos, nonos preçaron dous figos, e assi foi ssa mercee
de todos mui connoçuda. Pero que seja a gente d' outra lei e descreuda.193
180
transportavam cruzes. A vitória heroica é conseguida e os muçulmanos derrotados e retirados
de suas terras, aqueles que sobreviveram fugiram ao ver as cruzes e as bandeiras.
As relações estabelecidas entre as minorias étnico-religiosas nas canções marianas,
quer dizer, os judeus e principalmente os mouros, foi extremamente marcada pelo
tensionamento entre incluir-los ou não na sociedade ibércia daquele momento.
194
FONTES, 2009, p.03
195
AFONSO X, Disponível em: http://www.cantigasdesantamaria.com/csm/185. Acesso em: 24 nov.2015
181
respondeu que ele poderia capturar enquanto conversava com ele. O rei deu -lhe permissão
para fazê-lo; ele ameaçou matá-lo se ele estavivesse mentindo, e prometeu recompensá-lo se
ele capturou o castelo.
O mouro saiu para Chincolla . Ele pediu ao castelão para sair e assinar um pacto
com ele. O homem desavisado saiu com dois escudeiros . Disseram-lhe que eles estavam com
medo da Mouro traí-lo . Os escudeiros , que acompanhavam o seu senhor, desarmados,
ficaram tão aterrorizada que eles correram de volta e se esconderam no castelo.
O castelão , porém, não recuou , mas atravessou o rio para atender o mouro .
Quando ele se aproximou foi capturado e levado para o rei de Granada .Orei perguntou o
castelão sobre suas posses e disse que ele iria decapitá-lo se houvesse mentira . O castelão lhe
informou que quinze homens famintos guardavam o local.
O rei de Granada reuniu imediatamente suas tropas e se dirigiu para o castelo. Ele
exigia a rendição, mas os defensores se recusaram a ceder. O rei de Granada lançou um
ataque com saraivadas de flechas e pedras .
Os defensores levaram a estátua da Virgem da capela e a colocaram sobre a muralha
. Eles oraram à Virgem para defender o castelo dos mouros infiéis .Eles deixaram a estátua lá
e todos os atacantes recuaram.
Três mouros negros, que tinham entrado no castelo, foram jogados para a morte do
alto do muro. O rei de Granada estava determinado a não ir contra a Virgem . Ele ordenou que
as tropas recuassem.
A partir deste artigo, percebemos que a representação do mouro na literatura
religiosa do século XIII passou por sua demonização. Porém, não se pode perder de vista que
as cancções marianas são um discurso régio, que carrega o modo de pensar de uma corte,
nesse caso, a de Castela e Leão representados por Afonso X.
Sendo então as Cantigas de Santa Maria uma das mais importantes obras não só do
periodo Afonsino, mas também do baixo-medievo, trazendo histórias que relacionam os
muçulmanos aos pagãos. Tais grupos eram deliberadamente associados ao Mal, com o
propósito de caracterizar e intensificar sua marginalização. enquanto os cristãos, portadores e
propagadrores do bem, da vida intergra e da verdade religiosa.
BIBLIOGRAFIA
Documentação:
AFONSO X. Cantigas de Santa Maria. Edição de Jesús Montoya. Catedra, 2008
182
AFONSO X. Cantigas de Santa Maria. Edição de Walter Mettmann. Coimbra: Acta
Universitatis Conimbrensis, 1959.
Referências:
CASTRO, B. M. de. As Cantigas de Santa Maria: um estilo gótico na lírica ibérica
medieval. EdUFF, 2006.
FONTES, Leonardo Augusto Silva. A FUNÇÃO POLÍTICA DAS CANTIGAS DE
SANTA MARIA NO REINO DE AFONSO X (CASTELA E LEÃO, 1252-1284). 2009.
Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/9854/5702>. Acesso em: 15 nov.
2015.
FONTES, Leonardo Augusto Silva. A marginalização dos mouros na literatura religiosa
do século XIII – os exemplos das Cantigas de Santa Maria e da Legenda Aurea. 2009.
Disponível em: <http://anpuh.org/anais/wp-content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0715.pdf>.
Acesso em: 24 nov. 2015.
MOISES, Massaud. A Literatura Portuguesa. 30ª ed., São Paulo: Cultrix, 1999.
SCHMITT, Jean-Claude. “A história dos marginais”. In: J. Le Goff (org.), A nova história.
4ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998, pp. 261-290
VEREZA, Renata. ESPAÇOS DE INTERAÇÃO, ESPAÇOS DE CONFLITOS: A
REPRESENTAÇÃO SOBRE OS MUÇULMANOS EM CASTELA NO SÉCULO XIII.
Revista do Mestrado de História, Vassouras, v. 11, n. 1, p.169-191, 24 nov. 2015.
183
DE JOHN KEEGAN A GARCIA FITZ: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A GUERRA
E SEUS SIGNIFICADOS
O que é a Guerra? A resposta para essa pergunta é deveras difícil de traçar com a
devida certeza, pois mesmo no âmbito linguístico atual nós temos vários significados, e
nenhum deles nos dá uma definição precisa sobre o que de fato é a guerra. Porém mesmo não
havendo uma certeza absoluta sobre o tópico, especificamente, vários trabalhos já foram
publicados sobre o mesmo, várias acepções foram criadas, várias maneiras de fazer a guerra
foram mapeadas, mas nunca se chegou a um consenso sobre o que é a guerra ou como ela é
feita. E isso não é algo que nós pretendemos alcançar aqui.
Essa primeira parte tem por objetivo delinear uma linha de pensamento, norteada por
diversos autores que tratam da guerra, seja como conceito mais abstrato ou de uma forma
mais prática, abordando movimentações, armamentos entro outros assuntos de natureza
técnica. Com isso o que queremos é tentar definir a guerra tendo em base a especificidade
espacial e temporal do tema que tomamos como ponto central: o medievo Ibérico.
John Keegan e A guerra como um aspecto social
No livro Uma História da Guerra, o objetivo central de Keegan é traçar, através da
análise antropológica de diversas sociedades tais como os Maori, os povos montados, os
samurais e Gregos, uma resposta para a pergunta que ele faz ainda na introdução do livro: O
que é a Guerra?
Porém esse questionamento serve apenas como um apoio que o autor pode deixar de
lado, a partir do momento em que nós nos apegamos a ideia de que a guerra é plural e que os
seus significados estarão postos de formas distintas em culturas diferentes. Logo, o
significado da guerra é nada mais do que social, partindo do ponto de vista da sociedade em
que o estudioso se debruça. Não existe, portanto um significado que define guerra de uma
maneira a suprir todas as culturas mais diversas existentes no globo.
184
Analisando individualmente ele encontra no que convenciona chamar de “guerra
primitiva”, convenções que nos permitem chegar a essas características. Ele incorre que, no
exemplo dos povos primitivos, nós temos a capacidade de limitar as ações da guerra. Por
exemplo, ao permitir ou não a participação de mulheres, crianças, velhos e incapazes, aqueles
que fazem a guerra estão isentando estes da violência do conflito.
Como já falado, a sociedade tem um papel determinante pois, é a mesma que irá ditar
de que forma o povo observará e lidará com a guerra. Entendemos aqui não só os fatores
estruturais e puramente militares, mas também a sua filosofia guerreira, a sua maneira de
pensar o conflito, de reagir aos inimigos e de assimilar, ou não, novas formas de guerrear. E
para o autor isso é o que define a distância que temos hoje sobre o que é fazer a guerra e se
portar na mesma, diferente do que era para esses povos.
Ele vê na sociedade ocidental um certo orgulho da guerra, muito pelo fato de que essa
maneira marcadamente ocidental de guerrear subjugou diversos povos durante a história,
durante o século XIX. Diferentes culturas, algumas inclusive que fizeram parte da análise do
livro, foram alvo nesse século da guerra ocidental aniquiladora. Sendo assim, o ocidente e seu
modelo de guerra, é vitorioso sob o modelo oriental.
Para Keegan a guerra precisa ser repensada e essa ação deve ser realizada
principalmente por aqueles que a fazem, os guerreiros devem voltar-se a reflexão, devem
reencontrar o seu papel em sociedade. Mas não com o intuito de acabar com a guerra, pois é
ela que define o guerreiro, mas para reencontrar algo que permeava as mais diversas
sociedades, principalmente as orientais: a honra daquele a faz a guerra. Mas não só isso,
precisam recuperar o papel do guerreiro como aquele que luta pela sua civilização, aquele que
defende a sua cultura e a sua sociedade.
185
[...] a guerra – os escritos dos autores cultos denominam, à época de
Bouvines, com o termo germânico e latinizado Werra – tinha sido uma boa
coisa. Para homens em condição de fazê-la, era a ocupação normal. Ela
renascia a cada ano com o bom tempo, e os deuses a abençoavam. Cumpria
uma função econômica primordial, tão importante quanto o trabalho
produtivo: era necessário combater para proteger os recursos da comunidade,
grande ou pequena, da tribo, do clã, do grupo familiar; combater era também
incrementar esses recursos, tal como pela colheita ou pela caça, indo
apoderar-se de joias, víveres, gado, rapazes e moças. Assim a paz não
passava de uma interrupção fortuita, imposta pelas circunstâncias, pelo
esgotamento das forças, pela rarefação das presas, pelo mau tempo – um
relaxamento temporário, um interlúdio durante o qual as transferências de
riqueza que suscitavam normalmente a guerra tomavam outro curso, a forma
da doação e da contradoação, do intercâmbio matrimonial, do negócio.196
Sobre esse primeiro momento podemos dizer que a guerra tem uma importância
crucial, socialmente falando, pois é a partir dela que certos tipos de trocas comerciais
acontecem, muitas vezes até antes do comércio propriamente ser inserido em certas
localidades, o butim e a rapina já eram presentes e faziam parte da realidade social local.
Podemos ver nesse primeiro momento uma maior aceitação da guerra como algo socialmente
viável, como um item que integra a própria sociedade.
De interjeição fortuita, a paz passa a ser algo mais interessante para aqueles que
integravam o clero. Portanto a concepção da paz como o caminho da salvação passa a ser
parte integrante de uma nova concepção de mundo que surge. Porém a sociedade já era
formada em meio a guerra e pela guerra, como então proceder para mudar, ou pelo menos
atenuar, essa cultura guerreira existente?
É nesse instante que surge a contradição colocada por Duby. Em um primeiro
momento uma sociedade que se desenvolve em torno da guerra, passa então a condená-la
filosoficamente. Porém com essa condenação os mecanismos sociais e de pensamento não se
esvaem completamente. Os que antes guerreavam, não deixarão de fazê-lo, os que tinham na
guerra o seu ofício primordial, aquilo que os definia socialmente, não deixarão isso para trás.
Todo o mecanismo social que antes tinha em seu centro a guerra não poderia simplesmente
deixar de existir. Assim surge uma contradição: a guerra passa a ser condenada e ao mesmo
tempo validada por seus detratores.
Partindo desse pressuposto, a figura do próprio Deus passa por uma mudança, antes o
deus de paz, passa a também ser o deus da guerra, sendo invocado contra aqueles que são seus
inimigos. Evidências para isto nas escrituras não faltam, várias são as ocasiões em que o
196
DUBY, 1993. p. 86-87.
186
próprio Deus vem ajudar seus seguidores em batalha e é sob essa ótica que continuarão os
escritos posteriores do clero.
Além disso, todos os homens estavam assim sujeitos aos pecados da carne. Dentre
eles obviamente estava a guerra e o derramamento de sangue, porém, assim como todos os
outros pecados, este também possuía uma forma de salvação. Em alguns casos o perdão
acontecia na forma de contrição, com a confissão do pecado e o pedido perdão após o
ocorrido. Mas mesmo assim, não tardaram a surgir mecanismos que validavam a guerra como
algo necessário e perdoável. Isso tudo inclusive antes mesmo de qualquer derramamento de
sangue ocorrer.
Dentre os mecanismos que surgiram a época nós temos a Guerra Justa, que segundo
Duby ao citar Isidoro de Sevilha “Justa é a guerra quando conduzida para recuperar seus bens
e para rechaçar os agressores em virtude de um édito”.197
Feita essa declaração temos podemos assumir então, que uma retaliação ou uma
vendetta, é por si só, uma causa justa e que aos olhos de Deus está livre de qualquer punição.
Além disso, temos nessa afirmação feita por Isidoro, que a autoridade real também concede
para os realizadores da guerra o aval para realiza-la. Portanto o homem que age em defesa de
si, do seu patrimônio ou em virtude do chamado real, está longe da condenação pela
violência.
Porém ao passar essa responsabilidade para o rei, o clero - além de tirar a
responsabilidade dos atos das suas mãos – coloca o papel de juiz e júri muitas vezes em mãos
reais, esses que são, em muitas das ocasiões, responsáveis pela administração da guerra.
Junto a isso, outras maneiras de santificar a guerra se manifestam: as armas
abençoadas e juramento de defesa aos fracos, antes feitos apenas por reis, são agora
estendidos a toda uma classe guerreira, criando assim laços de atuação entre todos aqueles que
tinham a guerra como seu princípios, meios e fins.
Outros mecanismos foram criados, indo da proibição de domingo à Trégua de Deus.
Porém todos esses éditos estavam não só sujeitos a interpretação dos próprios guerreiros,
como também, à aceitação daqueles que criaram todos esses regulamentos. Pessoas essas que,
como dizia Guilherme Marechal em sua cantiga, estavam propensas a aceitar as relíquias de
São Rufino e Albino, ao ouro e a prata para perdoar todas as transgressões. As leis e éditos
nada mais eram do que uma receita alternativa para o enriquecimento dos clérigos locais, ou
até mesmo do próprio Papa.
197
DUBY, 1993. p. 89.
187
O clero era vital para comprar perdões ou uma suposta autorização ao conflito,
porém não integravam o grosso do exército, o dinheiro tinha um outro papel a desempenhar
na guerra, era através dele, e porque não dizer por ele, que giravam muitos dos objetivos que
integravam a prática da guerreira.
A primeira delas é o pagamento dos soldos, os soldados deveriam ser pagos, e uma
das poucas maneiras que se observava nesse momento a manutenção do conflito era que a
própria guerra geria o pagamento daqueles que nela atuavam, o butim gera os rendimentos
necessários para a manutenção dos seus soldados e o progresso do conflito.
Mas essa equação que quase nos lembra um ciclo, tende a se quebrar na medida em
que um novo fator é inserido nesse organograma, e o desequilíbrio - se é que podemos
assumir a existência de um equilíbrio anterior – jaz na figura do Mercenário.
Aqui utilizamos o termo à maneira do autor, sem problematizar a nomenclatura a
ponto de relativizá-la, o que dá entender que todos aqueles que recebiam para lutar e que não
faziam parte de uma casta guerreira, eram de alguma forma mercenários. Outra característica
atribuída por Duby a esse grupo é a sua origem, em sua maioria advindo das classes mais
pobres e que além disso, tinham sua lealdade condicionada ao recebimento ou não do
pagamento, ou até a quantia de dinheiro proposta aos mesmos.
O que nesse quesito nos traz uma versão interessante sobre o que de fato era a honra
entre os mercenários. Pois da mesma maneira que não ser pago por seus serviços era um
motivo para virar-se contra o seu empregador, o contrário também era verdadeiro, receber e
desertar durante a batalha era um sinônimo de desonra, como também poderia atrair a ira do
seu empregador.
Mas o “problema” que representava o dinheiro nas atividades guerreiras não estava
apenas restrita àqueles que vinham das camadas mais baixas, pois aqueles que guerreavam
precisavam do mesmo para manter seus status e nesse sentido me refiro àquilo que os define
enquanto guerreiros materialmente, as suas armas. E assim surgem os terceiros filhos, ou mais
precisamente, o fenômeno dos torneios que envolvem esses cavaleiros sem-terra, que a
exemplo de Guilherme, o Marechal, vão em busca de honra, fama e glória, mas não sem
abandonar o ouro.
Torneios esses que mesmo com proibição do clero, ainda assim cumpriam bem a sua
função de preparar os inexperientes para as futuras batalhas que seriam travadas. Então a
vemos a Normandia, Ilê-de-France, Maine e Anjou serem invadidas por cavaleiros em busca
de torneios. Assim, quando a guerra de verdade acaba, aqueles que dela vivem e são
188
pertencentes a um “extrato social elevado” podem retornar as suas atividades através do
combate simulado. Em mundo onde o derrotado paga resgate àquele que o derrotou e onde
uma soma vultuosa de ouro também pode ser adquirida em apostas, verdadeiro ou simulado, o
combate faz o dinheiro girar.
Percebemos que em Duby a guerra é muito semelhante a uma estação, apesar de
todas as modificações que ela sofre, devido aos diversos impedimentos advindos da nova
concepção de paz adotada no discurso do clero, é perceptível que o próprio clero estabelece
formas de contornar essas proibições, seja atuando em conjunto com reis e guerreiros para
validar o seu pedido a guerra, ou até mesmo através do dinheiro, sendo subornado para validar
os argumentos de algum senhor a favor da guerra. Assim isso gera uma contradição, pois ao
mesmo tempo que essa nova legislação guerreira visa a paz, ela ao mesmo tempo abre
precedentes para a guerra.
Las reflexiones acerca del arte militar han venido siendo, durante mucho
tiempo, obra de historiadores que, preocupados por los procesos de dilatada
duración, han intentado comparar el período medieval con la Antigüedad y
189
con la época moderna. De forma casi invariable, han llegado a la conclusión
de que el arte militar de la Edad Media había sido rudimentario, rudo
(incluso inexistente), en el sentido de unos conocimientos pensados,
organizados y constituidos, aplicables a los diferentes niveles del
encuadramiento en función de su rango y de su papel. Muchos de estos
historiadores, oficiales militares en activo o retirados, se movían, de forma
más o menos consciente, en las perspectivas de una enseñanza pragmática,
utilitaria y destinada a futuros oficiales o a escuelas militares, por lo que
llegaban a la conclusión de que no había nada en limpio que sacar ni que
aprender del estudio de las campañas, de las batallas o de los asedios
militares.198
198
CONTAMINE, 1984.p.264
190
de Calusewitz e tantos outros do campo de batalha era diferente, ter um campo aberto onde
dois grandes exércitos se enfrentavam não fazia parte da realidade medieval, as táticas do
medievo eram distintas.
No medievo a guerra daquele que controlava o espaço e o tempo, e a recusa da batalha
frontal, para contamine é o que causa isso. Essa reação chamada de “reflexo obsidional” é a
causa para que a guerra medieval seja travada principalmente na resposta a um ataque de
forma defensiva, respondia o atacante dentro das suas muralhas. Essa característica é o que
marca o avanço muito lento dos atacantes, enquanto os atacados sempre procuram a melhor
forma de defesa possível para tecer os seus contra-ataques.
Além disso no medievo encontramos também a presença da chamada “guerra de
desgaste”, feita principalmente através da rapina, ataques aleatórios e constantes aos
territórios que acercam o ponto onde o inimigo está concentrado, o intuito disso é minar os
recursos dos defensores, fazer espalhar-se o medo dentro das suas muralhas e impedir que o
aquartelado receba ajuda de pessoas externas.
Outra característica marcante apontada por contamine é o foco na defesa através de
um conceito de fronteira estabelecido através de um ponto fortificado e não apenas através de
um limite territorial. Assim a guerra acontece através da defesa de pontos chaves no território,
pontos esses, que quando tomados pelos atacantes, servirão como uma base avançada para
esses possam progredir através do terreno inimigo, através da “guerra de desgaste” que se
torna um ponto chave da equação, pois é através dos butins conseguidos, que o exército
atacante consegue fixar-se de maneira mais contundente no território do inimigo.
Portanto vemos que a guerra no medievo, para Contamine, se dava através era do
domínio do espaço físico, aquele que conseguisse dominar o terreno através de táticas
defensivas perpetradas iria obter vantagem, mas só aquele que dominasse o momento de
atacar, podendo reagrupar as suas forças e minando as forças do inimigo através da guerra de
desgaste controlaria o tempo, podendo assim intensificar o desgaste até obter a vitória do seu
inimigo.
Assim vemos que as características da guerra na Idade Média são bastante diferentes
e não inferiores como era o pressuposto tomado através da visão de Clausewitz e Liddel Hart.
A maneira de guerrear no medievo levava em conta as especificidades do seu tempo e as suas
limitações, portanto, vemos uma guerra útil e totalmente adaptada às necessidades daquelas
sociedades, uma guerra onde o domínio do espaço e do tempo fazem mais diferença do que os
números de homens em cada exército.
191
García Fitz e as relações político/guerreiras na Península Ibérica
Em uma perspectiva que visa à aproximação entre guerra e política, temos o
medievalista espanhol Francisco García Fitz que em sua obra Relaciones políticas y guerra.
La experienciacastellano-leonesa frente al Islamsiglos XI-XIII, trata mais a fundo de como
esses dois binômios se cruzam no contexto da reconquista espanhola.
Para García Fitz, existe uma aproximação muito forte entre guerra e política, e uma
aproximação maior ainda entre a guerra e a diplomacia:
Assim, nós percebemos que para García Fitz a guerra, a política e a diplomacia são
faces de uma mesma moeda e que ambas podem sim ser utilizadas com a mesma finalidade,
que seria segundo o próprio autor, “impor sua vontade ao inimigo”. Também é possível
observar na obra do medievalista espanhol uma aproximação entre guerra e política como
âmbitos que visam alcançar o mesmo interesse e que muitas vezes podem sim ter
consequências nocivas e nefastas em ambos os lados.
O autor inclusive é categórico ao afirmar que em alguns casos a política pode causar
um dano até maior que as ações militares, ressaltando que a guerra e a diplomacia são
caminhos que muitas vezes levam a um único objetivo. No entanto, a decisão sobre qual
abordagem utilizar muitas vezes está na análise feita a partir dos recursos disponíveis naquele
momento. É então através do uso da tática e da estratégia que será decidido qual o caminho
percorrer.
Posteriormente, ele faz uma análise do Ocidente medieval, chegando à conclusão de
que sem o binômio guerra/política não seria possível a constituição dos reinos castellano-
leoneses, pois, a todo o momento os reinos cristãos da Península Ibérica estavam em contato
199
GARCIA FITZ, 2002. p. 11.
192
diplomático com os reinos taifas ali presentes. Muitas vezes, inclusive, forjando alianças e as
utilizando posteriormente como uma estratégia para a retomada de territórios.
Ainda sobre tratados militares, ele cita Gaston Bouthoul com a sua obra La guerra e
A.H. Jomini com The Artof War, a fim de mostrar uma nova visão de tratadistas sobre a
guerra, aqui já ocorre uma inversão prática do que é proposto por Clausewitz em seu
aforismo, propondo que a diplomacia e a política já seriam parte da guerra e não o contrário.
Além disso, o autor também aponta uma mudança significativa no conceito de
estratégia, mencionando que o conceito proposto pelo já citado Liddel Hart era a época muito
preso à concepção da guerra como uma situação advinda da política.
Para García Fitz, atualmente o conceito de estratégia já se encontra totalmente
desvinculado de meios exclusivamente militares operando inclusive em esferas conceituais
mais amplas:
Para ele, fica clara a importância da participação da política em meio à guerra, ou para
ser mais exato, que a guerra está longe de ser um meio político e sim o contrário: a diplomacia
e os outros meios, esses sim, figuram como parte de uma estratégia de guerra, algo que é
muito bem observado em toda a análise que se segue sobre a importância dessa diplomacia no
contexto de reconquista.
Guerra e pluralidade
Em nossa pequena trajetória sobre a guerra nesse artigo vimos diferentes abordagens e
conceitos, porém acreditamos que essas acepções podem muito bem ser utilizados de maneira
complementar.
Vimos que, por exemplo, na abordagem antropológica trazida por John Keegan a
guerra é um aspecto social, e que, portanto, é fortemente influenciada pela visão que cada
sociedade tem do fazer a guerra e da profissão exercida pelo guerreiro. Assim a própria
sociedade estabelece o papel da guerra e do guerreiro em seu seio e isso é particular a cada
200
GARCIA FITZ, 2002. p. 19.
193
meio social. Diferentes sociedades possuem diferentes visões sobre a guerra e sobre como ela
deve ocorrer, quais são suas leis e o que a caracteriza.
Com isso podemos dizer que a guerra no medievo tendo como base o pensamento de
Keegan é, portanto, um fenômeno próprio daquela sociedade, que carrega suas características
e é definido pela mesma.
Essa “definição” de guerra nós encontramos no medievalista Georges Duby, que ao
nos apresentar as características que envolvem a prática guerreira e o fazer da mesma, nos
abre precedentes para definir de que forma essa guerra é pensada pela sociedade, definida e
praticada.
Vemos a importância da dicotomia entre paz e guerra, e como os mecanismos de
permissão à guerra em uma sociedade que busca religiosamente proibi-la existem de várias
maneiras e caracterizam a sociedade, que no caso, é representada por uma forte cultura
guerreira, onde a guerra tem um papel crucial na vida das pessoas, ao ponto de ser sazonal, a
guerra no medievo é algo cotidiano para aqueles que a fazem no sentido mais prático da
palavra, existe tempos para a paz onde os guerreiros treinam entre si a suas habilidades em
combates simulados, e existem os tempos para a guerra onde essa sociedade se move e é onde
existem as suas trocas, sejam elas monetárias ou não. Nesse sentido percebemos a importância
da guerra para a sociedade, pois ela intensifica os ganhos monetários e políticos, assumindo
assim um caráter impar nessa sociedade.
Porém como essa guerra é realizada? De que forma as hostes guerreiras se movem?
Como elas atuam? A respostas para essas perguntas revelam características essenciais para
um entendimento mais aprofundado do fazer a guerra no medievo, como nos traz Phillipe
Contamine.
Com ele podemos perceber a característica evasiva da guerra medieval, onde os
defensores fixam-se em castelos enquanto aqueles que atacam buscam a todo momento minar
as forças do inimigo através do desgaste de suas tropas, esse tipo de tática revela bastante
sobre como a guerra é feita. Vimos uma predominância dos aparatos defensivos, não só em
castelos, como também nos armamentos dos guerreiros, que com o avanço do tempo ficam
cada vez mais sólidos com o intuito de preservar a vida daqueles que as usam, chegando ao
ponto de cobrir praticamente todo aquele que veste a armadura.
Mas isso revela uma sociedade onde o guerreiro tem um valor muito grande, não
apenas no sentido abstrato da palavra valor, mas também no sentido monetário, pois essas
armaduras e armas custavam verdadeiras fortunas e quanto mais protegido o guerreiro ia para
194
o combate, maior era o seu status e sua riqueza pois eram necessárias grandes somas de
dinheiro para conseguir tal armamento. Esse valor também se adequa ao custo que esse
guerreiro tinha em sua preparação. A batalha campal geralmente era evitada, pois sempre
causava grandes perdas em ambos os lados, levavam-se anos preparando e treinando esses
guerreiros e geralmente repor vidas com tal habilidade nem sempre era possível. Por isso a
cautela e o predomínio da defesa sempre existente no combate.
Porém a guerra não se restringia apenas ao combate, diplomacia, espionagem e
alianças sempre foram parte integrante da mesma, e isso não era diferente no medievo .
Garcia Fitiz nos apresenta à uma série de estratagemas que figuram a guerra, nesse caso com
especificidade na península ibérica. A península ibérica que se encaixa perfeitamente dentro
do conceito estabelecido por Contamine da guerra de fronteira, pois esta é uma sociedade que
lida a todo momento com a ameaça dos reinos taifas. Na busca para expandir seus domínios
vemos constantes movimentos de dilatação e recolhimento da fronteira entre os taifas e os
reinos da península Ibérica, muitos deles frutos de ações políticas, alianças temporárias que
visavam minar o poder do inimigo, muitas vezes aproveitando-se das querelas internas
existentes entre os senhores que integravam os reinos taifas, alimentando as rivalidades
inimigas, fazendo incursões regulares ao território, minando suas forças e aliando-se muitas
vezes com o inimigo, fazendo valer o ditado que diz “o inimigo do meu inimigo é meu
aliado”.
Portando vemos que diferente do pensam alguns, teorias não são completamente auto
excludentes, podemos perceber que sim, alguns conceitos e abordagens de outros autores
podem ser mesclados em prol de uma análise mais rica, mais precisa, e que venha colaborar
mais com o trabalho do que limita-lo, percebemos que que os autores citados tem pontos de
convergência sobre o medievo, embora alguns, como é o caso de Keegan, tenham uma visão
mais global sobre o assunto, mas que contribui para elucidar alguns problemas. Vemos então
que a guerra é social, política e diplomática e além de tudo, plural.
Referências bibliográficas
DUBY, Georges. O Domingo de Bouvines: 27 de Julho de 1214. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1993.
195
GARCIA FITZ, Francisco. Relaciones políticas y guerra. La experiencia castellanoleonesa
frente al Islam. Siglos XI-XIII. Sevilla: Universidad de Sevilla, 2002.
KEEGAN, John. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006.
196
A CRUZADA ALBIGENSE: GUERRA, PODER E HISTORIOGRAFIA
Considerações Iniciais
O início do século XIII foi marcado pela expansão e consolidação do poder real e
católico em diversas áreas da Europa. No Báltico, foi promovida uma Cruzada202 contra as
populações pagãs locais, submetendo a região à influência papal. Na Península Ibérica, a
Reconquista ganhou novo ímpeto sob a direção da coroa de Castela na Batalha de Las Navas
de Tolosa (1212), que interrompeu o avanço muçulmano e foi um ponto de virada para as
forças cristãs.203
A Cruzada Albigense, convocada pelo papa Inocêncio III como uma guerra religiosa
contra os cátaros, ou albigenses, do Languedoc, insere-se firmemente nesse contexto.
Segundo Power:
A Cruzada Albigense (1209-29) foi um evento formativo na história Europeia. No
apogeu medieval de seu poder, a Igreja Romana convocou a extirpação da heresia no
sul da França. As energias cruzadistas que haviam arrebatado a aristocracia da
Cristandade Latina por mais de um século contra o Islã, os pagãos do norte da
Europa e outros inimigos externos, eram agora direcionadas contra os habitantes de
uma região no coração da Cristandade.204
201
Graduando em História pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL.
202
A Cruzada da Livônia, autorizada por Inocêncio III.
203
FRIED, 2015, p. 299.
204
POWER, 2013, p. 1047.
205
FRIED, 2015, p. 188.
197
e/ou religiosa de cada época206, sua historiografia revela-se um tema interessantíssimo, capaz
de lançar luz sobre a maneira como a História é pensada.
Percebe-se, portanto, que a Cruzada Albigense adquiriu complexidade e expressão
inimagináveis no momento de sua deflagração. A repressão ao Catarismo foi, porém, seu
ponto de partida, de maneira que é apropriado iniciarmos nossa abordagem tratando das
crenças e práticas desse grupo religioso que despertou a ira da Igreja Católica.
O Catarismo
O que diferencia os cátaros das demais heresias da época é sua ruptura radical com a
mitologia Católica. Possivelmente influenciados pelo Bogomilismo da Trácia, eram dualistas,
206
Cf. CABRER, 2009; MACEDO, 1996; RACAUT, 1999.
207
FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 11.
208
POWER, 2013, p. 1071.
209
MACEDO, 2000a, p. 1.
210
POWER, 2013, p. 1070.
211
FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 9.
212
MACEDO, 2000a, p. 2.
198
acreditando em um Deus do Bem, que governava o reino espiritual, e um Deus do Mal,
criador do universo e tudo que há nele.213
O que define de imediato a cosmogonia cátara é a crença na coexistência eterna de
dois princípios iguais em poder e eficácia radicalmente opostos e tendo cada um seu
papel no equilíbrio do universo: o primeiro é o princípio do bem, que se confunde
com Deus; o segundo, o princípio do mal, que se confunde com Satã. 214
Ainda que o Catarismo encontrasse apoio entre homens e mulheres comuns oprimidos
pela Igreja Católica, é de se estranhar que a nobreza fosse acolher uma seita tão radical. Para
os cátaros todos os juramentos feitos aos homens eram sem validade217, o que ataca a base de
uma sociedade senhorial. Contudo, é exatamente o que acontece na Occitânia e a justificativa
está na própria ideologia cátara:
Os hereges insuflavam a nobreza com seus discursos, alimentando o
anticlericalismo. Como conseqüência, os bens eclesiásticos eram pilhados, os feudos
clericais acabavam sendo canalizados para a dependência laica com a subseqüente
cobrança de impostos e acumulação de rendas; além disso, os nobres recusavam a
repassar certos tributos devido à Igreja, como o dízimo.218
213
RUMMEL, 2006, p. 46-47.
214
MACEDO, op. cit., p. 5.
215
FRANCO JÚNIOR, op. cit., p. 19 et seq.
216
MACEDO, op. cit., p. 7.
217
FRANCO JÚNIOR, 2010, p. 11.
218
MACEDO, 2000b, p. 10
199
Raimundo Rogério, conde de Foix, Raimundo Rogério Trancavel, visconde de
Carcassonne, e especialmente Raimundo VI, conde de Toulouse, utilizavam o discurso dos
hereges quando lhes era conveniente, visando o enriquecimento e aumento de sua autonomia.
Segundo Rummel, “Podia-se contar com o Conde de Toulouse para fazer qualquer coisa que
diminuísse a influência e o poder da Igreja Romana e do Rei Filipe Augusto da França.
Raimundo foi denunciado pelo Papa diversas vezes, até excomungado, sem nenhuma
mudança real em suas ações”.219
Raimundo VI dificilmente teria agido com tanta ousadia se não tivesse o apoio de um
poderoso aliado: seu cunhado, o rei Pedro II de Aragão. A coroa de Aragão destacava-se
como um dos grandes poderes da Península Ibérica, e no final do século XII controlava
territórios na França que se estendiam até a cidade de Nice.220
Desta forma, os representantes da Igreja pregavam e exortavam a nobreza
languedociana a perseguir os hereges e eram ignorados. Até que no fatídico dia 15 de janeiro
de 1208, Pedro de Castelnau, legado papal, foi assassinado.221
Em julho do ano seguinte a Cruzada era lançada.
Guerra contra os Albigenses
A guerra era vista, deste modo, como uma maneira de restaurar a paz, obtendo justa
vingança contra os cruéis hereges que desprezaram a bondade divina e atacaram seus
emissários. Tanto que nas cartas papais referia-se à Cruzada Albigense como negotium pacis
et fidei, empresa de paz e fé224.
219
RUMMEL, 2006, p. 49.
220
FRIED, 2015, p. 188.
221
MACEDO, 2000a, p. 9.
222
Monge cisterciense autor da Historia Albigense, uma das principais fontes da Cruzada juntamente a La
Chanson de la Croisade Albigeoise, do monge trovador Guilherme de Tudela.
223
apud KURPIEWSKI, 2005, p. 1-2
224
POWER, 2013, p. 1077.
200
Sob a liderança de Simão de Montfort, conde de Leicester, cruzados do que hoje são a
França, a Alemanha, a Bélgica e a Inglaterra, entre outros225, marcharam para o sul da França
determinados a extirpar a heresia.
O primeiro embate da guerra foi o cerco da cidade de Béziers, pertencente ao visconde
Trencavel. A princípio tentou-se uma via diplomática: os cruzados ordenaram que os
moradores da cidade expulsarem os cátaros que lá viviam, no que foram recusados. Ora, por
que católicos, que afinal permaneciam a maioria da população na Occitânia, dariam proteção
aos hereges? Rummel especula que isso decorreu do estilo de vida dos sulistas, que possuíam
um forte senso de comunidade e por isso eram capazes de olhar além das diferenças
religiosas, ou nem sequer percebê-las como heresias.226 Iremos além ao sugerir que um fator
influente nessa decisão pode ter sido a percepção dos cruzados como um simples exército
invasor estrangeiro, que não tinha o direito de fazer exigências.
Qualquer que tenha sido a motivação dos sitiados, o resultado foi a tomada da cidade à
força e o massacre de quase todos os seus 20 mil habitantes. “Nada pôde salvá-los, nem cruz,
nem altar, nem crucifixo. Os mercenários mataram clérigos, mulheres e crianças; ninguém
escapou. Se Deus quiser, receberá suas almas no Paraíso! Não creio ter havido tal massacre
desde o tempo dos sarracenos”227, escreveu Guilherme de Tudela que, por ser nativo do
Languedoc, não era indiferente ao sofrimento de seus conterrâneos.
O mesmo não se observa na narrativa de Pierre des Vaux de Cernay: “[...] os cruzados,
pregadores e Pierre legitimavam o derramamento de sangue ao santificar seu propósito e
ações como parte de uma estratégia divina. Tal violência sagrada era alimentada pela certeza
desses homens de que agiam como instrumentos de Deus em passos para sua salvação”.228
Após a conquista de Béziers várias cidades e fortalezas foram tomadas, dentre as quais
Carcassonne. O visconde Raimundo Rogério Trencavel foi aprisionado e Simão de Montfort
recebeu todas as suas terras.229
Entretanto, apesar das vitórias iniciais, logo se percebeu que manter os novos
territórios seria muito mais difícil que conquistá-los. Faltavam principalmente homens e o
vasto exército que adentrou o Languedoc em 1209 começou a se desfazer, principalmente em
225
Para um estudo detalhado sobre a participação na Cruzada Albigense, cf. POWER, 2013.
226
RUMMEL, 2006, p. 49-50.
227
apud MACEDO, 2000b, p. 2.
228
KURPIEWSKI, 2005, p. 12-13.
229
MACEDO, op. cit., p. 12-13.
201
virtude do curto período de tempo pelo qual a maioria dos cruzados lutava – geralmente de
quarenta dias.230
Apesar do papa Inocêncio III prometer aos cruzados a terra confiscada dos albigenses,
a maioria dos combatentes não tinha intenção de se fixar na região231, buscando na verdade as
recompensas espirituais oferecidas pela Igreja: os que prestassem voto de cruzado receberiam
a remissão dos pecados.232 “A Igreja logo estava prescrevendo a participação na Cruzada
Albigense como uma forma padrão de penitência”233, afirma Power.
Se no imaginário cruzado a guerra permanecia como uma guerra santa com o objetivo
de combater a heresia, a realidade ia, aos poucos, se tornando outra:
Em sua fase inicial, a luta apresentou as características de uma guerra religiosa,
parecendo tratar-se de uma ação armada dos defensores da Igreja contra os
protetores dos cátaros [...]. Mas na sucessão dos acontecimentos, as conotações
religiosas perderam força diante dos interesses materiais, de maneira que, a partir de
1211, o conflito assumiu os contornos de uma guerra de conquista contra toda a
feudalidade meridional [...].234
230
POWER, 2013, p. 1048.
231
Ibid., p. 1078.
232
MACEDO, op. cit., p. 4.
233
POWER, op. cit., p. 1081.
234
MACEDO, op. cit., p. 18.
235
KURPIEWSKI, 2005, p. 21.
236
POWER, 2013, p. 1078.
237
FRIED, 2015, p. 257.
202
cerco, Simão de Montfort foi morto em um contra-ataque dos defensores em junho de
1218.238
São notáveis as discrepâncias dos epitáfios deixados pelos cronistas da época. Para
Pierre des Vaux des Cernay, seu assumido admirador:
[…] ele foi descansar na proteção do Senhor. Antes de receber o ferimento fatal, o
bravo cavaleiro do Senhor […] Seu mais glorioso mártir – foi ferido cinco vezes
pelos arqueiros inimigos, como o Salvador pelo qual ele agora pacientemente
aceitou a morte, e em cujo lado vive agora em sublime paz. 239
Ainda que a Cruzada Albigense tenha terminado em 1229, o Catarismo que ela visava
combater persistiu. A última fortaleza cátara, Montségur, foi derrotada em 1244 e no início do
século XIV os últimos seguidores daquela heresia foram mortos245. A erradicação total da
238
KURPIEWSKI, op. cit., p. 23.
239
apud KURPIWESKI, op. cit., p. 26.
240
Ibid., loc. cit.
241
MACEDO, 2000b, p. 13-14.
242
POWER, 2013, p. 1082.
243
Ibid., loc. cit.
244
MACEDO, op. cit., p. 14.
245
Ibid, p. 16.
203
seita albigense só foi possível, ressalta Le Goff, graças uma nova instituição criada na esteira
da Cruzada: a Inquisição.246
Desta forma, uma das principais consequências das duas décadas de guerra foi o
estabelecimento da autoridade e hegemonia religiosa da Igreja Católica, com efeitos que
seriam sentidos por toda a Europa. Por outro lado, as repercussões políticas também foram
notáveis, com o fortalecimento da monarquia francesa e a transformação das relações com
Aragão. Nas palavras de Fried:
A expansão de Aragão na Provença foi abruptamente revertida pela Cruzada contra
os Albigenses. [...] A partir de então, os reis aragoneses voltaram-se cada vez mais
para o sul, enquanto a monarquia Capetíngia consolidava seu controle sobre as terras
fronteiriças na costa do Mediterrâneo.247
De acordo com Nunes, “Cada documento se vale de uma rede de significados que
contribuíram para sua elaboração, assim, possui uma intencionalidade, nenhum discurso é
destituído de valor [...]”.248 Isso é perceptível desde os escritos dos cronistas da Cruzada
Albigense, que são um reflexo de suas crenças, origens e preconceitos, conforme demonstrado
anteriormente.
Do mesmo modo, as obras produzidas por historiadores sobre a Guerra contra os
Albigenses - inspiradas nessas fontes, bem como em escrituras, contratos, cartas, etc.-
possuem um forte viés valorativo e são excelentes para se compreender a época em que foram
escritas.
Macedo afirma que “Nos textos dos propagandistas dos reis capetíngios e da dinastía
dos Valois, o reino da França aparece como o eleito para a ‘nova aliança’ e o ‘Paraíso
terrestre’, espaço jamais maculado por qualquer tipo de cisma ou heresia”.249 Essa era a
França da centralização e do início da formação da monarquia nacional, projeto que não
aceitava a presença de regionalismos ou subversões.
246
LE GOFF, 1988, p. 89.
247
FRIED, 2015, p. 188-189.
248
NUNES, 2011, p. 17.
249
MACEDO, 1996, p. 107.
204
A Cruzada Albigense foi amplamente utilizada durante as Guerras de Religião na
França no século XVI, tanto por católicos quanto protestantes, para validar suas posições.
Segundo Racaut:
A comparação entre a Igreja Calvinista emergente e a heresia Albigense tornou-se
lugar comum durante das Guerras de Religião da França. Ao mesmo tempo, a
demanda Protestante por identidade e legitimidade estava sendo respondida na
forma de martirologias e histórias da Igreja Verdadeira. Os martirologistas
Protestantes gradualmente aceitaram a comparação Católica com a heresia medieval
e a inverteram para sua vantagem. 250
250
RACAUT, 1999, p. 261.
251
RACAUT, 1999, passim.
252
CABRER, 2009, p. 115 et seq.
253
MACEDO, 1996, p. 110 et seq.
205
da Frente Popular dos 30), que sofre a invasão dos cruzados do norte (os alemães)
até que a paz é restaurada pela salvadora intervenção da monarquia Capeto
(Marechal Petain).254
Essa breve explanação serve para ilustrar diversas maneiras pelas quais a Cruzada
Albigense foi utilizada no discurso histórico. Talvez o leitor contemporâneo sinta-se inclinado
a acreditar que tais “erros” pertençam ao passado, e que a História atual está livre de
interpretações subjetivas, que hoje conhece-se a “verdade histórica”. A esse respeito, Nunes
cita Pesavento:
Na reconfiguração de um tempo - nem passado nem presente, mas tempo histórico
reconstruído pela narrativa - face à impossibilidade de repetir a experiência do
vivido, os historiadores elaboram versões. Versões plausíveis, possíveis,
aproximadas, daquilo que teria se passado um dia. O historiador atinge pois a
verossimilhança, não a veracidade. Ora, o verossímil não é a verdade, mas algo que
com ela se aparenta. O verossímil é o provável, o que poderia ter sido e que é
tomado como tal. Passível de aceitação, portanto.255
E o que é passível de aceitação varia, como tudo, de acordo com o momento histórico.
Considerações Finais
A Cruzada Albigense (1209-1229) foi uma guerra brutal declarada pelo papa
Inocêncio III para destruir o Catarismo no Languedoc. Logo, contudo, tornou-se um conflito
senhorial, onde se combatia não pela religião, mas pelo controle de terras e submissão do sul
da França, ligado a Aragão, à Dinastia Capetíngia.
É nesse sentido que afirma Power:
Vinte anos de campanhas quebraram o poder da nobreza da Occitânia, permitindo à
monarquia Capetíngia extender seu domínio ao Mediterrâneo e assim pavimentando
o caminho para a supremacia francesa na Europa Ocidental. Essa revolução política
tornou possível o estabelecimento da Inquisição para perseguir a heresia. Essas duas
décadas de guerra no Languedoc e Provença contribuíram, portanto, para uma
refiguração muito mais ampla da autoridade religiosa e do poder temporal através do
continente.256
Além de seu impacto na Europa medieval, a Cruzada Albigense possui uma rica
historiografia, que merece ser apreciada por todos aqueles que se dedicam a compreender o
ofício do historiador e os processos pelos quais a História é construída.
Através de seus participantes, a Cruzada Albigense se insere num contexto muito mais
amplo, se inter-relacionando com a Reconquista e a Península Ibérica, com Bouvines e as
guerras entre Plantagenetas e Capetíngios, com a Quarta e a Quinta Cruzadas.
254
CABRER, op. cit., p. 122.
255
NUNES, 2011, p. 22.
256
POWER, 2013, p. 1047.
206
Não nos cabe aqui explorar todas essas conexões, apenas ressaltar que esse importante
evento medieval não se trata mais de um tema relativo apenas à História da França, pois,
como afirma Cabrer: “[…] há uma clara internacionalização da Cruzada Albigense, que
deixou de ser um conflito entre franceses do norte e franceses do sul para contemplar-se, hoje,
como um “affaire da cristandade” com múltiplas implicações […]”.257
REFERÊNCIAS
257
CABRER, 2009, p. 139.
207
____________________. Memória Histórica e Historiografia da Cruzada Albigense. Anos
90: Revista do Programa de Pós-Graduação em História, Porto Alegre, n. 6, p. 104-118, dez.
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208
ESCRITA DE SI: UMA ANÁLISE DAS NARRATIVAS SOBRE AS PRÁTICAS
AMOROSAS EM LUZ NA TORMENTA
Introdução
As formas de amar, assim como outros traços culturais da humanidade, passaram por
diversas transformações ao longo dos séculos. Podemos identificar essas mudanças através
das diferenças de mentalidades entre as épocas. Dessa forma, o amor e as formas de amar
estão no íntimo da natureza humana, porém cada cultura lhes imprime significados, formas de
sentir e de expor que são peculiares. Nesse sentido, este artigo tem como objeto de
investigação as práticas amorosas em Sergipe no século XIX, especificamente no período
compreendido entre os anos de 1890 a 1894.
Esse recorte temporal (1890-1894) justifica-se pelo fato de abarcar o período em que
Emilia de Marsillac Motta e Joaquim Fontes trocaram diversas correspondências com teor
amoroso e que foram, posteriormente, publicadas por Emilia na obra Luz na tormenta258
(1948). Além disso, entendemos que a redução da escala de observação de um objeto de
estudo, como a aqui pretendida, pode nos revelar aspectos que numa perspectiva ampla não
seriam apreendidos minuciosamente. Assim sendo, através de uma análise detalhada de
alguns trechos dos conteúdos daquela obra, procuraremos identificar como se desenvolviam
as práticas amorosas na sociedade sergipana naquele espaço temporal.
Os estudos sobre as práticas amorosas no Brasil ainda são muito tímidos, uma vez que
poucos pesquisadores têm se enveredado pelos terrenos invisíveis do amor. Dessa forma,
podemos citar a obra Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal (1933), de Gilberto Freyre, como um dos primeiros estudos a mencionar
aspectos da intimidade relacionada à sexualidade no Brasil. Na atualidade, Mary del Priore
(2012) pode ser destacada como uma das poucas investigadoras que se dedica aos estudos
sobre o amor no Brasil.
Em Sergipe, a temática sobre o amor e suas práticas ainda não atraiu a atenção dos
pesquisadores e nem da academia. Dessa forma, no sentido de colaborar com a investigação
sobre essa temática em nosso estado e minimizar as lacunas existentes acerca da produção
historiográfica sobre as práticas amorosas em Sergipe no século XIX, pretendemos, com esse
258
O exemplar analisado nessa pesquisa é uma cópia do original que está disponível no Instituto Histórico e
Geográfico de Sergipe. Publicado em 1948 em São Paulo com 383 páginas.
209
estudo, lançar novos olhares acerca dos costumes da sociedade sergipana relativos a essas
práticas.
Entendemos ainda que o desenvolvimento do nosso objeto de estudo, além de
contribuir para a compreensão dos relacionamentos amorosos, poderá lançar luz sobre outros
aspectos da cultura sergipana no século XIX: cotidiano, educação, política, convívio familiar,
dentre outros, que serão observados como interfaces imprescindíveis para o aprofundamento
da compreensão acerca do tema aqui exposto.
A nossa pesquisa está inserida no campo da História Cultural, que se configura como
aquela que se atribui o estudo das formas de representação do mundo no seio de um grupo
humano cuja natureza pode variar – nacional, regional, social ou política – e que analisa sua
gestação, expressão, transmissão (SIRINELLI, 1992 apud TÉTART, 2000, p. 142). De modo
genérico, os seus conteúdos devem favorecer uma melhor inteligibilidade do passado
mediante o conhecimento do universo mental no qual os homens nascem, crescem, pensam,
agem, trabalham e morrem (TÉTART, 2000, p. 142).
Dessa forma, o nosso estudo dedicará grande esforço no sentido de compreender a
constituição de expressões da mentalidade sergipana em torno das práticas amorosas por meio
da consideração da obra Luz na tormenta, como um espaço de inteligibilidade específico. Para
tanto, realizaremos uma análise minuciosa das narrativas epistolares presentes nessa obra.
Assim, dialogaremos com um referencial teórico-metodológico que trata como produtivo o
uso da escrita de si como fonte para a história.
Nesse sentido, de acordo com Philippe Lejeune, escrever sobre si mesmo é uma
atividade individual e social que não se restringe aos escritores profissionais (LEJEUNE,
2002, p. 20). Sendo assim, a escrita de si pode se apresentar configurada em livros
memorialísticos, cartas, cartões postais, fotografias, recortes de jornais ou em objetos do
cotidiano que resultem ou não de coleções. Esse conjunto de documentos, ao ter em comum o
caráter autorreferencial de seu autor, constitui formas de deixar para a posteridade algo de si e
sobre si (MAGALHÃES, 2007, p. 2).
Através da escrita de si os autores elaboram sua versão da vida, dos acontecimentos
cotidianos de sua época, enfim, travam um diálogo de si mesmo, um autorretrato escrito.
Dessa forma, a carta, uma modalidade deste gênero, faz o escritor “presente” àquele a quem a
dirige. E presente não apenas pelas informações que lhe dá acerca da sua vida, das suas
atividades, dos seus sucessos e fracassos, das suas venturas ou infortúnios; presente de uma
espécie de presença imediata e quase física (FOUCAULT, 1992, p. 8).
210
Embora a escrita de si seja compreendida como um tipo de registro individual, a
historiadora Ângela de Castro Gomes afirma que os registros contidos nas correspondências
podem ser uma “estratégia eficaz de aproximação das experiências de vida de um tempo e de
um lugar, como indícios da (s) cultura (s) de uma época e de uma certa configuração das
relações sociais” (GOMES, 2004, p. 21).
Assim, através das correspondências é possível detectar maneiras de viver, códigos e
ideias que circulavam numa determinada época, a posição social ocupada pelo autor e o seu
meio familiar, ou seja, toda realidade sociocultural na qual o autor da escrita de si está
inserido.
Dessa forma, para a mulher do século XIX, a escrita de si se configurava em um dos
poucos meios de expressão permitidos a ela. Limitada ao espaço doméstico e impedida de se
manifestar publicamente, a mulher oitocentista, que segundo Michelle Perrot (1989), se
enquadrava em uma “categoria indistinta e destinada ao silêncio”, expressava suas emoções,
principalmente, por meio da escrita de diários e cartas, um momento de liberdade exercido no
silêncio do seu lar.
Condenadas ao espaço privado de suas casas, era no seio do lar que as mulheres do
século XIX tinham a liberdade de se expressar, na dimensão privada da experiência
emocional pessoal, situando-se no mundo e deixando seu testemunho à posteridade
(PEREIRA, 2004, p. 5).
Apesar de o casamento e o lar serem os poucos locais de atuação da mulher do século
XIX, algumas delas tiveram o privilégio de ser alfabetizadas, chegando a frequentar os bancos
de uma escola ou a passar pelas mãos de preceptoras, professoras particulares, como foi o
caso da sergipana Emília que estudou o primário, porém não chegou a concluí-lo.
Mesmo com a pouca instrução formal que lhe foi concedida e, possivelmente, sem
consultar nenhum manual de escrita epistolar, Emilia escreveu diversas cartas de amor para
Joaquim Fontes. Essas cartas se tornaram uma espécie de espaço privilegiado para o
relacionamento amoroso entre os dois.
No intuito de compreender as práticas amorosas na conjuntura social sergipana de fins
do século XIX, dialogaremos com os conceitos de “cotidiano” presentes nas teorias sociais
apresentadas por autores como Georg Simmel (2006), Pierre Bourdieu (2002), Michel de
Certeau (1994), Norbert Elias (2005) e José Machado Pais (2007).
A teoria social apresenta pontos de vista divergentes sobre a noção de cotidiano, que
englobam desde aqueles que o apresentam como regularidade, normatividade, onde as regras
211
estabelecidas pela estrutura social garantem certa rotinização das condutas (SIMMEL, 2006)
até aqueles pressupostos que admitem a possibilidade de que as rupturas não colocam em
risco a cotidianidade. O cotidiano, nesse particular, seria marcado pela coexistência da
normatividade e da contingência, por uma espécie de equilíbrio instável da ordem
(BOURDIEU, 2002; CERTEAU, 1994; ELIAS, 2005; PAIS, 2007).
Nesse sentido, alinharemos as nossas reflexões a esse último posicionamento teórico,
que observa o caráter ambivalente da concepção de cotidiano, sendo esse definido,
simultaneamente, pelas regularidades e rupturas. Sobre esse particular, Pais (2007) ressaltou
as conexões entre as regularidades (rotinarização) e rotina (rupta) na análise social da vida
cotidiana. Considerado a partir de sua regularidade, normatividade e repetitividade, o
cotidiano se manifesta como um “campo de ritualidades”, a rotina sendo um elemento básico
das atividades do dia a dia (PAIS, 2007, p. 30-31). Porém, o significado de rotina está
associado à ideia de rota (caminho), do latim via, rupta, donde derivam a expressão ruptura,
ato ou efeito de romper ou interromper, corte, rompimento, fratura. É nestas rotas, na
encruzilhada entre rotina e a ruptura, que se passeia a análise social do cotidiano (PAIS,
2007).
Em suas ponderações sobre as “modalidades das práticas” dos consumidores, Certeau
parece sugerir que a existência das normas/convenções, garantia das regularidades nas ações
dos indivíduos em suas relações sociais, não impede que eles criem meios autônomos de ação
que, de alguma forma, possibilitam-lhes tirar alguma vantagem dessas convenções.
Nesse sentido, compreende-se que haveria uma “[...] proliferação de manipulações
aleatórias e incontroláveis, dentro de uma imensa rede de coerções e seguranças sócio-
econômicas: miríades de movimentos quase invisíveis, operando na textura sempre mais fina
de um lugar homogêneo, contínuo e próprio a todos.” (CERTEAU, 1994, p. 105).
Ao sugerir uma distinção entre estratégias e táticas, Certeau adotou uma postura
heterodoxa. O cotidiano para ele não se define pelas regularidades sociais, ainda que possa ser
formado por recorrências. O cotidiano para Certeau são procedimentos. Certeau aproxima seu
conceito de cotidiano à noção de jogo. As ações são proporcionais às situações vividas. Trata-
se de um jogo articulado de práticas de dois tipos: as estratégias e as táticas. Com essa dupla
de conceitos, Certeau rompeu com a definição de cotidiano como rotinização para dar lugar à
ideia de cotidiano como movimento (LEITE, 2010, grifos nossos).
Dessa forma, Certeau chamou tática “[...] a ação calculada que é determinada pela
ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de
212
autonomia. A tática não tem por lugar senão o do outro.” E por isso “deve jogar com o terreno
que lhe é imposto tal como o organiza a lei de uma força estranha.” (CERTEAU, 1994, p.
100).
A tática é caracterizada pela ausência de poder, é a “arte do fraco”, por isso ela opera
golpe por golpe, lance por lance: a tática “tem que utilizar, vigilante, as falhas que as
conjunturas particulares vão abrindo na vigilância do poder proprietário. Aí vai caçar. Cria ali
surpresas. Consegue estar onde ninguém espera. É astúcia.” (CERTEAU, 1994, p. 124-125).
Já a estratégia é entendida como cálculo (ou manipulação) das relações de forças que
se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um
exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. Dessa forma, a estratégia é
uma prática que “postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a
base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças, um
lugar do poder e do querer próprios.” (CERTEAU, 1994, p. 99, grifos do autor).
Portanto, levando em consideração o fato de a escrita de si refletir as percepções de
mundo produzidas e compartilhadas pelos atores de dado contexto sócio-histórico e,
entendendo o cotidiano como um campo imerso em regularidades e rupturas, resta-nos lançar
alguns questionamentos que pretendemos equacionar nessa pesquisa: quais os
posicionamentos das mulheres sergipanas diante das normas que orientavam as práticas
amorosas? De que maneira a obra Luz na tormenta, de Emilia Fontes, reflete as regras e os
posicionamentos das mulheres diante das práticas amorosas em Sergipe no século XIX?
Assim, a análise da obra Luz na tormenta, de Emilia Fontes, a ser aqui desenvolvida,
possibilitará o conhecimento e a compreensão da conjuntura sociocultural em que viveu sua
autora e, principalmente, das maneiras como as mulheres sergipanas do século XIX se
comportavam diante das regras sociais impostas a elas no tocante às práticas amorosas.
213
doença que acometeu o seu avô, o francês Jean Baptiste Aimé Du Verdier de Marsillac. Tal
enfermidade o impossibilitou de continuar com a criação da neta (ALBUQUERQUE, 2007, p.
15-40).
Já em Aracaju, na casa de seus pais, Emília ingressou no curso primário passando a ter
aulas com a professora Francina Telles de Menezes. Estudou também um pouco de música
com o professor Antonio Paz e piano com Natinha de Andrade. No entanto, não foi possível
concluir os seus estudos primários, pois Emilia foi surpreendida por mais uma dolorosa perda,
o passamento de sua mãe. Tendo que abandonar os seus cursos, Emília, ainda pequena, aos 14
anos incompletos, passou a dedicar-se aos afazeres domésticos (DANTAS, 2007, p.42).
Passados alguns anos, Pedro Amâncio de Almeida Motta, pai de Emilia, contraiu novo
casamento, embora não admitisse que a filha se relacionasse com nenhum homem ou
pensasse em matrimônio. Aos 19 anos de idade e sob a rigidez da educação de seu pai, Emilia
recebeu às escondidas uma carta de amor do estudante de Direito Joaquim Fontes, onde ele
revelava a sua admiração por ela e demonstrava a intenção de tê-la como sua noiva.
Joaquim Fontes, que nasceu em 1866 no Engenho Salobro em Nossa Senhora do
Socorro, Sergipe, era filho de Joana Fontes da Silva e do Dr. Francisco Joaquim Silva. Apesar
de pertencer a uma família pouco afortunada, Joaquim conseguiu concluir seus estudos na
Faculdade de Direito do Recife em 1890. Além de possuir grande competência como
magistrado, se tornou um famoso rodólogo, diplomado como membro titular da Sociedade
Francesa de Roseiristas (ALBUQUERQUE, 2006, p. 1).
A coletânea de cartas de amor trocadas entre Emilia e Joaquim, durante quatro anos de
namoro e noivado, de 1890 a 1894, constitui importante fonte de estudo para a compreensão
do cotidiano da sociedade sergipana do século XIX. A partir dos vestígios das experiências
individuais encontrados nas cartas desse casal, podemos compreender de que forma Emilia se
comportava diante das regras sociais vigentes nesse período, levando em consideração uma
sociedade marcada pelo poder masculino que exercia não só influência sobre a família, como
também sobre os relacionamentos amorosos dos filhos.
Dessa forma, a partir de breves fragmentos das primeiras cartas trocadas por Emilia e
Joaquim, poderemos perceber alguns detalhes sobre como se davam as práticas amorosas na
sociedade sergipana do século XIX.
214
Bom comportamento perante a família e a sociedade era imprescindível para qualquer
senhora ou senhorita dessa época. Assim, ao receber a primeira carta de Joaquim Fontes,
datada do dia 10 de maio de 1890, onde ele revelava o seu amor e a intenção de casar-se com
ela, Emília ficou extremamente emocionada a ponto de ler e reler a carta por várias vezes.
Porém, por não achar conveniente que uma mulher sincera e honesta como ela se
comprometesse com situações difíceis, solicitou a um amigo confidente que lhe desse
conselhos e referências a respeito da carta e de Joaquim, no que foi ligeiramente atendida.
Apesar da felicidade que sentiu ao receber a carta de um pretendente e de ter boas
referências sobre o rapaz, Emilia decidiu que inicialmente não responderia as cartas enviadas
por Joaquim. Essa decisão foi influenciada pelos padrões sociais do período, que estabeleciam
ser de bom tom para as mulheres de boa família zelar pelo seu nome e moral, evitando a
exposição de seus sentimentos amorosos à revelia do consentimento dos seus pais.
Dessa forma, o missivista apaixonado, Joaquim, indignava-se com o comportamento
padronizado de Emília, denunciando a recusa dela em corresponder-se via cartas.
Jamais em minha vida, deveria dar semelhante passo; mas hoje, levada por
um sentimento que não sei explicar, e, confiada nas reiteradas provas de
sinceridade que tive a ventura de merecer, é que me arrisco a praticar êste
259
FONTES, 1948, p. 21, grifo do autor.
215
ato de insensatez que muito desconceitua, segundo a minha maneira de
pensar. Apreensiva fico a ponderar no resultado de um extravio qualquer,
porquanto já sabe sou zelosa do meu nome... Nada temo, entretanto; pois
estou certa de que cumprirá a promessa que me fez, devolvendo as minhas
cartas, caso eu lhe escrevesse.260
Após decidir corresponder-se com Joaquim, acreditando no amor sincero que ele nutria
por ela, Emilia empenhou-se em viabilizar alguns procedimentos táticos para a efetivação
posterior do enlace entre ela e Joaquim. Dessa forma, o primeiro desafio de Emilia seria
convencer o pai, como dissemos anteriormente, homem rígido em relação aos costumes do
período, a aceitar Joaquim como noivo dela.
Para alcançar os seus objetivos, Emilia solicitou a Joaquim que escrevesse uma carta
para os irmãos dela, a fim de que eles ajudassem na tentativa de convencer o pai a aceitar o
relacionamento do casal:
Insisto no pedido que lhe fiz para escrever aos meus dois irmãos sôbre as
suas intenções a meu respeito. A proteção e o concurso dêles são-nos
utillíssimos na ocasião do pedido, pois meu pai, que não quer perder o seu
braço direito, se opõe a que eu me case, seja com quem fôr.
Sofro demais em pensar na minha situação, caso meu Pai se oponha ao nosso
enlace, porque, permita que lhe diga, não nasci para heroísmos de
insensatez!... Perdoe-me esta franqueza: mas se faz mister que o Sr. conheça
as minhas idéias e sentimentos e que partilhe deles.261
Nesse particular, entendemos como Peter Gay (1984, p. 131) que a predominância de
sentimentos de respeito e obediência que as mulheres do oitocentos nutriam em relação ao
260
FONTES, 1948, p. 38.
261
FONTES, 1948, P. 41.
216
patriarca, mantinham-nas, num plano ideal, na condição de um bem, elemento submisso e
passivo na instituição familiar. Durante boa parte do século XIX, e em todo o mundo
ocidental, as mulheres permaneceram virtualmente na condição de propriedade de seus pais e,
depois, de seus maridos. O duplo padrão, definido e defendido pelos homens, vigorou quase
sem oposição alguma.
Assim, diante da postura de Emilia de não aceitar cometer atos desvairados, como uma
possível fuga ou rapto262, e de não pretender contrariar a vontade de seu pai, Joaquim afirmou,
em outra carta, ter planejado seu casamento com Emilia, atitude pensada em meio ao
desespero e aos obstáculos enfrentados desde o início do seu relacionamento com Emilia.
Tenho concebido planos, porque, mesmo contra a vontade de seu Pai, pode
dar-se o nosso casamento, sem o menor escândalo para nós e para a
sociedade.
Por uma frase de sua carta, depreende-se claramente que a Sra., nessa
questão, se submete absolutamente à vontade de seu Pai. Mas, perdão! Isso
nunca foi amor. Em matéria de sentimento, não há submissões.... Os pais não
tem o direito de negociar com o coração dos filhos.263
Diante da possibilidade de perder de uma vez por todas a sua amada Emilia para o
convento, Joaquim, como quem pretendia expressar, através de um gesto de revolta, a sua
oposição sobre as convenções sociais da época, arrematou:
Nesse sentido, de acordo com a citação acima, podemos presumir que Joaquim adotou
uma postura crítica acerca da ideia de submissão da mulher aos padrões sociais da época, que
criavam obstáculos às suas pretensões de se casar com Emilia. Os seus posicionamentos
críticos acerca das normas sociais do período estão inscritos em expressões utilizadas por ele
para descrever a situação social da mulher naquele contexto, tais como: “velhos conceitos
sociais”, “vontade autocrática” do pai, “prejuízos sociais que agrilhoam o espírito”.
Portanto, diante do exposto pelos trechos das cartas aqui analisadas, podemos atestar
que as praticas amorosas estavam condicionadas às regularidades impostas pelas regras
sociais de fins do século XIX. Observamos, ainda, nas intenções do casal Emilia e Joaquim, a
possibilidade do desenvolvimento de ações que desafiavam constantemente as convenções
sociais (a insistência em se casarem mesmo sem a anuência do pai de Emilia, solicitar ajuda
aos irmãos na tentativa de convencer o pai a aceitar o relacionamento do casal, além da
ameaça de Emilia de enclausurar-se num convento). Porém, apesar dessas intenções do casal
representarem um indício de mudanças nos costumes, elas não colocaram em risco a
existência das normas que regulavam as práticas amorosas daquele período.
264
FONTES, 1948, p. 133.
265
FONTES, 1948, p. 131.
218
Considerações finais
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221
“INTERSECÇÃO DE CONJUNTOS”: É POSSÍVEL TRABALHAR COM A
PERIODIZAÇÃO “IDADE MÉDIA” NO NORTE DA ÁFRICA?266
“Evitamos que a Europa medieval se encerrasse em si mesma”. Então quer dizer que
onde os medievais foram, levaram consigo a Europa medieval? Mas, os povos que com eles
mantiveram contato, em qual situação enquadram-se?
Um dos pontos de contato entre cristãos e muçulmanos na região do Mediterrâneo foi
o norte da África e ainda existe o fato de que esse território foi parte integrante do mundo
clássico, compartilhando assim um elemento em comum com a Europa e fazendo parte de um
marco cronológico que identifica o início da Idade Média, como já foi exposto, o fim do
268
Idem. p. 14.
269
Idem. p. 15.
270
BLOCKMANS; HOPPENBROUWERS, 2012, p. 9
271
Idem. p. 9 e 10.
223
Império Romano. Surge um impasse de cunho historiográfico. É a partir deste momento que o
questionamento proposto no início toma forma mais explícita.
Apesar do norte da África possuir especificidades relativas à herança clássica e depois
em relação à expansão muçulmana, que criou ali sociedades genuínas e por vezes são
inseridas nos estudos medievalistas e orientalistas, a historiografia africanista, entende-se a
que elaborou a História geral da África, no geral não convém com a ideia de separar a África
em duas, tão pouco utilizar a periodização tradicional da historiografia Ocidental e analisá-la
a partir de fora.
Essa obra de grande relevância na historiografia nos traz uma proposta de análise da
África no decorrer do tempo a partir de uma perspectiva interna, pelo menos como foi
colocada pelos seus organizadores. De acordo com Muryatan Santana Barbosa:
Tratar-se-ia de uma história essencialmente examinada a partir do seu
interior. Mas ela seria também, “em larga medida”, o fiel reflexo do modo
como os autores africanos vêem sua própria civilização. Ademais, seria uma
história científica, uma história que buscasse o reconhecimento do
patrimônio cultural africano e que buscasse os fatores que contribuem para a
unidade do continente. Por fim, trataria uma concepção particular dos
valores humanos.272
Ainda sobre o propósito da obra, Ki-Zerbo, um dos autores do projeto, comenta que
não se trata de “construir uma história-revanche, que relançaria a história colonialista como
um bumerangue contra seus autores, mas de mudar a perspectiva e ressuscitar imagens
‘esquecidas’ ou perdidas” 273 do continente e dos seus povos:
Certamente, a opção e a ótica de auto-exame não consistem em abolir
artificialmente as conexões históricas da África com os outros continentes do
Velho e do Novo Mundo. Mas tais conexões serão analisadas em termos de
intercâmbios recíprocos e de influências multilaterais, nas quais as
contribuições positivas da África para o desenvolvimento da humanidade
não deixarão de aparecer.274
Como resultado desse propósito, que veio contribuir com a mudança de paradigma da
visão que era produzida na historiografia a respeito da África, uma metodologia inerente à sua
produção se fez necessária. Uma periodização considerando as necessidades de compreender
a diversidade e uma unidade do continente foi posta (e ela dá conta do que foi ressaltado
aqui):
Da Antiguidade até o Islã: Antigo Império até +622 (a noção de Antiguidade
também não é a que vigora no Ocidente);
272
BARBOSA, 2012, p. 18.
273
KI-ZERBO, 2010, p. 32.
274
Idem. p. 52 e 53.
224
Da primeira Idade Islâmica: de +622 até a metade do século XI (1050);
Da segunda Idade Islâmica: do século XI ao século XV.275
Há ainda quem subdivida essa periodização e utilize mais referenciais.276
Pois bem, percebe-se dessa maneira que os pontos levantados de ambas as
historiografias são posições interpretativas. Uma, de certa forma, vê a possibilidade de levar
noções de seu campo a fim de análise até onde puder. A outra reage a essa posição e
reivindica um estudo que privilegie os indivíduos locais do seu campo.
Reação que caracteriza um estado de “supremacia” da interpretação da História vinda
do primeiro exemplo. O que implica dizer que a historiografia Ocidental expressa ou
expressou uma relação de poder, assim por dizer, ao “impor” sua maneira de enxergar certos
processos históricos (pode até ser remetida à própria discussão a cerda da noção de Idade
Média iniciada na Renascença e combatida pela nova historiografia medievalista). Coube
então ao outro grupo expressar sua situação, apesar de não querer ser uma historiografia
“revanchista” como já foi citado, no entanto, acabou por expressar sua posição política dentro
desse jogo de relações (grosseiramente aqui explanado, diga-se de passagem, pelas limitações
que são dadas, mas levantando um ponto possível de aprofundamento) refutando modelos
conceituais a fim de evitar a disseminação de visões restritas que não se alinham com os fatos
ocorridos no continente africano e de não corroborar com o surgimento ou com as já
existentes interpretações estereotipadas e preconceituosas, apesar de, em algum momento da
História, os objetos de estudo de ambas as historiografias sejam pontos em comum, como o
Império Islâmico e sua dinâmica de relações no Mediterrâneo, por exemplo.
Referências bibliográficas
BARBOSA, Muryatan Santana. A África por ela mesma: a perspectiva africana na História
Geral da África (UNESCO). p. 18-19. Tese (Doutorado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História social, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012.
275
DJAIT, 2010, p. 72.
276
WEDDERBURN, 2005, p. 17-24.
225
DJAIT, H. As fontes escritas anteriores ao século XV. In: KI‑ZERBO, Joseph (Ed.). História
geral da África, I: Metodologia e pré-história da África. 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010.
Cap. 5, p. 77-80.
JÚNIOR, Hilário Franco. Introdução. In: ___. A Idade Média: nascimento do Ocidente. 2. ed.
rev. e ampl. São Paulo: Brasiliense, 2001, p. 9-20.
KI‑ZERBO, Joseph. Introdução Geral. In:___ (Ed.). História geral da África, I: Metodologia
e pré-história da África. 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010, p. 31-52.
THE PELICAN HISTORY OF AFRICA (1968). África. In: LOYN, Henry R. (Org.).
Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997. p. 7-8.
WEDDERBURN, Carlos Moore. Novas bases para o ensino da história da África no Brasil:
considerações preliminares. [S.l.:s.n], 2005, p. 1-40.
226
A HISTÓRIA DAS MULHERES DE GEORGES DUBY:
REPRESENTAÇÕES FEMININAS NA TRILOGIA “DAMAS DO
SÉCULO XII”
Introdução:
Ao analisarmos as representações femininas do medievo percebemos que a imagem da
mulher deste período é aquela construída por homens, principalmente, ligados a instituições
eclesiásticas, como, por exemplo, padres e monges. Nesse sentido, pretendemos destacar o
olhar que o medievalista, Georges Duby, dirigiu a condição das mulheres na sociedade
medieval. Desse modo, examinaremos como se deu à interpretação entre a imagem feminina
proposta e idealizada contrapondo a realidade daquela sociedade.
Assim, utilizaremos a trilogia, Damas do Século XII que o medievalista, Georges
Duby, escreveu sobre as mulheres, Heloísa, Isolda e outras damas no século XII (1995); A
Herança das Ancestrais (1997); e Eva e os Padres (2001), e analisaremos sua visão sobre o
sexo feminino no período do medievo, mais precisamente durante o século XII, que foi o
recorte temporal utilizado pelo autor nas suas obras.
Abordando dentro desta temática temas específicos, como por exemplo, o casamento,
as relações de dominação masculina, e a relação entre o feminino e a Igreja medieval. No
entanto, devemos entender a problemática em torno das fontes, principalmente, as que foram
utilizadas pelo medievalista já que estas informariam mais a respeito da ideologia dominante,
do que sobre a realidade. Ideologia construída em favor de uma suposta submissão da mulher
ao homem, e ambos à Igreja Medieval.
Nesse contexto, é importante destacar o conceito eclesiástico medieval ao falarmos da
mulher. Esta, considerada como fruto do pecado original que podiam levar à perdição da
sociedade, por isso precisaria ser vigiada. Assim, a mulher como sujeito geral é considerada,
pelos clérigos, passiva, mas as partes dos seus corpos são dominadoras e perigosas. O medo
da feminilidade levou os moralistas da Igreja, por exemplo, a desenvolverem um movimento
pastoral com vistas à orientação espiritual das mulheres. A compostura feminina deveria ser
assegurada a qualquer preço, inclusive com penitências, pois a honra doméstica dependia, em
larga escala, da conduta das damas.
227
No entanto, compartilhamos a visão de Duby de que é impossível separar a história
das mulheres da história dos homens, ressaltando a importância da evolução da condição de
cada sexo e nas relações de poder que permeavam o relacionamento dos casais na família
medieval. Dessa forma, o autor lança a ideia de uma “lenta promoção” do sexo feminino na
cultura medieval. Logo, podemos considerar ao analisarmos o contexto desta sociedade que
também houve uma “promoção” da condição masculina. Fato que, contribuiu para a distância
entre os sexos.
Assim, como historiador “das mentalidades” e depois de analisar e se especializar em
assuntos ligados ao medievo, Duby chega a história das mulheres pelo estudo do parentesco,
para ele esta história é concebida pela dominação masculina. Segundo Sales “sem dúvida,
Georges Duby, se convencera, no fim da vida, que os textos literários que lia e relia sem parar
não lhe permitiam fazer outra coisa senão uma história dos discursos e das representações.
Manipulada e muda, a mulher se esquivava sem cessar à sua busca”277.
Nesse contexto, precisamos nos atentar as fontes utilizadas pelo medievalista, em seus
estudos sobre as Damas do século XII, já que suas escolhas documentais, de certo modo,
privilegiaram um pequeno número de fontes narrativas, podemos citar como exemplo destas,
os escritos normativos, os textos canônicos, as crônicas de religiosos, as biografias, as
correspondências, os capitulares, os inventários, os tratados, os códices, as atas de arquivos
eclesiásticos, os cartulários, contos, literatura cortês etc. Sendo estas ligadas a opinião
dominante, logo, masculina do medievo, nelas “são sempre os homens que falam”278.
Duby, então, procurou mostrar reflexos, captou a imagem e não a verdade das
mulheres. Já que, os escritos foram redigidos por homens e o latim registrava somente as falas
importantes feitas em formas artificiais. Estes eram redigidos para a declamação ou o canto.
Lembrando que a leitura era privada, geralmente feita em voz alta e que existia uma função
pedagógica nesses textos. Assim, o medievalista se situa como historiador das estruturas,
porque o que a sociedade afirmava e ocultava permitiu alcançar as suas estruturas. Sua
operação histórica combinou releitura e identificação. Ele diz que releu “textos [...]
esforçando-me por identificar-me com aqueles que os escreveram a fim de dissipar ideias
falsas que depois perturbaram seu sentido”279.
Dessa maneira, a maioria dessas fontes são obras misóginas têm como tema recorrente
a crítica ao matrimônio, pois segundo estas a “vida doméstica” era uma verdadeira desgraça,
277
SALES, Véronique. Os Historiadores. São Paulo. Editora: UNESP, 2003. p. 279.
278
DUBY, Georges. A História Continua. Rio de Janeiro: Editora: UFRJ, 1993. p. 151.
279
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas do século XII. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. p.12.
228
enquanto que o celibato era considerado como uma condição de excelências morais,
intelectuais e espirituais. Outro assunto recorrente, que teve origem nos escritos de
Aristóteles, trata sobre a passividade da mulher na procriação, pois considerada como um
“macho deformado”, sua contribuição para a sociedade viria da chamada “cópula justa”. Mas
era consenso que considerada agenciada pelo diabo, ou comparada a uma “espada
desembainhada”, com predisposição para a incontinência, as mulheres necessitavam de
vigilância e isso reforçou a ideia do monopólio do homem na pregação e na prática de
atividades religiosas sagradas.
Analisando a Trilogia de Georges Duby, percebemos que a voz masculina abafa a
feminina, mas nem por isso a excluí, ou seja, podemos considerar que as identidades de
gênero se constroem com relação uma a outra dado a mentalidade diacrônica própria da
sociedade medieval. Dessa forma, é indubitável que a sociedade medieval pode ser analisada
sob o viés dos Estudos de Gênero e também pode ser utilizado como uma forma de significar
as relações de poder, sendo o masculino – nas fontes eclesiásticas – sempre entendido como
superior ao feminino.
Sendo que, consideramos importante em nossa análise das Damas do Século XII
sermos norteados pelos Estudos de Gênero, como uma tentativa de corrigir o privilégio
concedido pela História das Mulheres às “vítimas ou rebeldes”, “ativas ou atrizes do destino”,
em detrimento “das mulheres passivas, vistas muito facilmente como consentidoras de suas
situações”. Assim, segundo Chartier, definiremos a submissão imposta às mulheres como uma
relação de violência simbólica o que ajuda a compreender como a relação de dominação, que
é uma relação histórica, cultural e linguisticamente construída é sempre afirmada como uma
diferença de natureza, radical, irredutível, universal280.
Por fim, percebemos a importância dos Estudos de Gênero e como utilizaremos este
para nossa análise das obras de Georges Duby sobre o período medieval. Entendemos que ele
sabia das dificuldades do seu estudo, relacionado à situação das fontes, mas vemos como ele
praticamente desapareceu diante de sua obra, pois suas fontes informam mais sobre a
ideologia dominante do que a realidade. Ideologia, construída em favor de uma suposta
submissão natural da mulher ao homem. Logo, os textos da sagrada escritura se constituíram
na base teórica sobre a qual assentou a imagem exemplar da mulher medieval. Por outro lado,
domínios distintos, como a participação da mulher na vida religiosa e o do processo de
“feminização” do cristianismo no Ocidente, permaneceram à espera de investigações.
280
CHARTIER, Roger. Diferenças entre os sexos e dominação simbólica. Cadernos Pagu. Nº 4, 1995. p.
42.
229
Análise das obras:
A primeira das obras de Georges Duby, da Trilogia Damas no Século XII, ressaltando
que estas foram escritas entre as décadas de 1980 e 1990, a respeito de “Heloísa, Isolda e
outras damas no século XII”281, aborda as mulheres medievais utilizadas pelo autor e a
temática em torno do matrimônio, que será um ponto importante em nossa análise. Assim,
nesta obra, Duby dá nome a essas damas, ou seja, o livro é dividido em seis capítulos que
levam o nome de suas protagonistas, são essas: Alienor, Maria Madalena, Heloísa, Isolda,
Juette e Dorée d’Amour e a Fênix. Nestes o autor explica o porquê dessas mulheres serem
consideradas importantes. Assim, seu principal objetivo é tentar recompor o modelo da
mulher de elite na sociedade medieval. Nesse processo de interpretação e recriação do
passado, a consciência da relatividade dos fatos e da influência que os sistemas ideológicos
exercem na constituição do fato histórico tornaram-se elementos importantes para sua
narrativa.
Nos capítulos desta obra, como em uma narrativa literária, Georges Duby mostra que
apesar das particularidades das trajetórias individuais dessas mulheres consideradas damas,
elas demonstram na imaginação dos homens os comportamentos que eles exigiam ou, pelo
menos, esperavam que elas tivessem. Contrapondo, assim, a intensa relação entre o imaginado
e o vivido. Sendo que, a partir das representações masculinas registradas nos escritos
medievais são abordados problemas de várias ordens que envolvem o mundo dessas damas
podemos citar, por exemplo, a questão do matrimônio, como um desses.
O que percebemos ser um assunto recorrente durante todos os capítulos desta obra de
Georges Duby é a questão do casamento. Segundo o autor, a instituição matrimonial passou
por um processo de cristianização progressiva. Sendo que, houve dois modelos de casamento:
o laico e o eclesiástico. O primeiro modelo quer manter o “status” de uma casa, já que havia a
necessidade de impedir o empobrecimento282. E o segundo foi instituído em uma tentativa de
disciplinar a sexualidade, pois não havia uma estrita monogamia na sociedade da Alta Idade
Média e a sexualidade masculina não se reduzia ao quadro conjugal, assim, a prostituição e o
concubinato constituíam esse meio. Prontamente, a Igreja trabalhou com o intuito de corrigir
281
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das Letras,
1995.
282
DUBY, Georges. El matrimónio em la sociedade de la Alta Edad Media. In: ROJAS, Beatriz
(Presentación y compilación). Obras selectas de Georges Duby. México: Fondo de Cultura Económica: 1999, p.
281-282.
230
os “costumes matrimoniais laicos”283 e os ritos matrimoniais passaram por um processo de
sacralização.
A Igreja construiu, então, um edifício de normas matrimoniais que impunha a
castidade elaborando um modelo de vida cristão. Sobre a transformação do casamento em um
sacramento, Duby descreve:
a Igreja, na metade do século XII, acabava de fazer do casamento um dos
sete sacramentos a fim de assegurar seu controle. Ela impunha ao mesmo
tempo jamais romper a união conjugal e, contraditoriamente, rompê-la de
imediato em caso de incesto, ou seja, se verificasse que os cônjuges eram
parentes aquém do grau. O que permitia à autoridade eclesiástica, na verdade
ao papa, quando se tratava do casamento de reis, intervir à vontade para atar
ou desatar, e assim tornar-se senhor do grande jogo político.284
Constatamos que a Igreja Medieval tentava ditar modelos para toda a população, uma
vez que devido a sua interpretação do pecado original ser tratado como pecado sexual a
mulher tornava-se a peça principal da sociedade, aquela que se não fosse vigiada e controlada
levaria todos a perdição. Porém, percebemos que a institucionalização do matrimônio não
surgiu na tentativa de controlar as mulheres, mas sim de controlar a sexualidade exuberante da
sociedade medieval. E para que ocorresse esse controle sexual a Igreja criou um imaginário
em torno do sexo feminino. Este fez com que os homens as temessem e as julgasse.
A segunda obra da trilogia, “A Lembrança das Ancestrais”285, trata, essencialmente, da
imagem das damas feitas pelos cavaleiros do medievo. Dessa forma, observaremos as
consideradas funções da feminidade, a imagem ideal do feminino feita, essencialmente, pelos
clérigos e como o amor cortês fez um contraponto a esta visão e influenciou a sociedade.
O livro é dividido em três capítulos principais, sendo que estes possuem alguns sub-
tópicos, (Servir os Mortos; Esposas e Concubinas; e O Poder das Damas), nos quais o autor
procurará demonstrar o que achavam os cavaleiros e padres das mulheres “comuns”, ou seja,
das figuras femininas ligadas ao seu sangue. Aliás, este assunto ligado a linhagem de
parentesco será recorrente no livro. Para o autor saíram das sombras algumas mulheres que
não são nítidas como princesas ou santas, por exemplo. Seu objetivo principal é demonstrar
como as esposas dos senhores levavam a sua existência no período do medievo.
Nesta obra de Georges Duby, vemos como a questão da linhagem e do parentesco
atingiram ambos os sexos no medievo, pois uma mulher só tinha valor devido aos ancestrais
283
Idem. p. 285.
284
DUBY, Georges. Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das Letras,
1995. p. 17-18.
285
DUBY, Georges. Damas do Século XII: A Lembrança das Ancestrais. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997.
231
que possuía. O homem tinha necessidade de ter este prestígio social, que só seria adquirido,
no caso da maioria dos cavaleiros, pelo casamento, já que havia uma abertura para que os
homens ascendessem economicamente assim. Logo, a Igreja Cristã Medieval, cria para o
matrimônio, regras e o institucionaliza, com o intuito de evitar o incesto, porque era comum
que membros da família se casassem para manter a herança, como também para controlar a
sexualidade da época.
Com relação a ascensão social, que os homens tinham acesso ao casar com uma
“dama”, é necessário destacar que para a Igreja, “o dever do homem medieval era permanecer
onde Deus o tinha colocado. Elevar-se era sinal de orgulho (...) era necessário respeitar a
organização da sociedade pretendida por Deus e essa organização estava de acordo com o
princípio da hierarquia”286. Assim, um cavaleiro ao casar com uma dama e torna-se senhor,
estaria contrariando a lógica clerical medieval ao desobedecer às leis de Deus. Dessa forma,
constatamos que também existia modelos e regras em torno do sexo masculino, e não somente
para as mulheres existiam padrões a serem seguidos. Tanto as mulheres, quanto os homens do
medievo pensaram, agiram e viveram no quadro de determinados valores fundamentais que
correspondiam à vontade de Deus e às aspirações desses homens.
Ao abordarmos esse assunto ligados a questão da linhagem e do parentesco, a partir
dos Estudos de Gênero, percebemos que se trata de uma sociedade onde o masculino se
sobrepõe ao feminino, mas nem por isso o excluí. Através da análise que Georges Duby faz a
respeito da linhagem de algumas famílias ligadas às “grandes casas”, vemos que a mulher
tinha sua importância na sociedade. E que tinham voz, mesmo que os homens ligados a
instituições eclesiásticas quisessem abafá-la.
O último livro da trilogia, “Eva e os Padres”287, demonstra o que os norteadores de
consciência, ou seja, os homens da Igreja pensavam das mulheres. Nesse sentido,
destacaremos a misoginia medieval, onde a Igreja baseava-se na dicotomia entre a visão
feminina, isto é, o modelo comportamental a ser seguido: Maria, exemplo de mãe, esposa,
filha e mulher. Contrapondo o modelo de Eva, a pecadora original.
O livro é dividido em quatro capítulos (Os pecados das mulheres; A Queda; Falar às
mulheres; e Do amor), nos quais Duby faz uma análise sobre o cotidiano das mulheres no
século XII. Relata ainda, como a mulher era considerada possuidora do pecado na
mentalidade do mundo medieval e acerca do estigma de Eva, ou seja, escreve sobre o
tratamento dado às mulheres pelos clérigos, fraca, vulnerável, e sujeita a se entregar ao
286
LE GOFF, Jacques (dir.). O Homem Medieval. Porto: Imprensa Portuguesa, 1989. p. 29.
287
DUBY, Georges. Damas do Século XII: Eva e os Padres. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
232
pecado, aos vícios da carne, como por exemplo, enfeitiçar os homens, e serem malignas e
adúlteras. Assim, demonstrando a visão que os homens ligados às instituições eclesiásticas
tinham delas.
O autor quer nos mostrar a visão que os homens de Igreja, ou seja, norteadores de
consciência, têm das mulheres medievais, além da visão deles, para alguns temas, como, por
exemplo, o casamento e o amor entre o homem, a mulher e Deus. Ao apresentar os modelos
de feminilidade podemos encontrar a dicotomia: Eva e Maria. Eva simbolizava as mulheres
reais, plenas de pecado, e Maria, a mulher ideal, mas inalcançável. No entanto, entre os
séculos XI e XII, Eva é a mais relacionada às mulheres. Contudo, entre Maria e Eva, existe
uma “balança”, já que Madalena representaria de uma melhor forma as mulheres,
demonstrando que a salvação é possível, mas tem vários preços, entre eles, a confissão, o
arrependimento e, principalmente, a penitência.
Outra temática abordada pelos eclesiásticos e tão contraditória, entre eles, é o
casamento, a princípio considerado um ato profano, mas posteriormente institucionalizado e
sacralizado. Até que ao final do século XI e início do XII o consentimento mútuo do casal
passa a ser exigido pela Igreja. Sendo que no século XII é imposto um ritual o qual os noivos
após fazerem os votos trocam alianças que são benzidas pelo pároco. Este consentimento só
ocorria após o sacerdote ter verificado os consentimentos e a não consanguinidade entre
ambos.
Assim, a Igreja consegue impedir que os casamentos, que tinham por objetivo
estabelecer alianças e assegurar transmissão de patrimônio, assim como o sangue e a honra da
linhagem, acontecessem. Desse modo, a partir do ano mil, os “casamentos por contratos”
tendem a desaparecer. Os bens do marido cedidos à esposa, passam a ser menores, e ela é
obrigada a deixá-los aos filhos primogênitos, passando apenas a dispor do dote dos seus
familiares para passar às filhas288.
Dessa forma, a visão do sexo feminino como possuidor do pecado era retratada na
mentalidade de grupos específicos. Nesse sentido, nos modelos de feminilidade impostos
pelos eclesiásticos, Eva seria o oposto da visão de Maria e causadora de todo o pecado a que
estava sujeito a sociedade. No entanto, a documentação utilizada pelo autor afirma que seus
estudos não chegam perto, ao que de fato, era a condição das mulheres no medievo. Porém, a
importância de sua obra é incontestável no âmbito não só da História Medieval, já que se trata
de uma fase grandiosa da produção dubyniana.
288
Cf. ARIÉS Philippe; DUBY, Georges. História da Vida Privada. Porto: Ed. Afrontamento, 1990. p.
138.
233
Considerações Finais:
Com base no que foi dito, é fato que as damas escolhidas pelo Georges Duby não
representavam todas as mulheres da Idade Média, segundo Sales ele permanece instalado em
sua época de predileção, sem se aventurar além do século XII quando os discursos das
mulheres são menos abafados pelo ruído de fundo da sociedade masculina. Ele continua fiel a
um “grupo social: o das damas ociosas e sonhadoras da aristocracia, enquanto, por outros
meios, a historiografia desenvolve a figura da mulher no trabalho”289. Podemos então afirmar,
que as mulheres do medievo de Duby não eram absolutamente as da Idade Média, já que a
história delas foi escrita, a partir de um terreno estritamente delimitado, uma historiografia
que se prendeu apenas ao reflexo das mulheres no discurso dos homens.
É importante destacar que a visão sobre as mulheres para o medievalista, passa a ser
questionada. Estudos recentes, essencialmente, abordados pela historiografia feminista norte-
americana afirmam que Duby em certo sentido exagerou sobre o silêncio e a submissão das
mulheres. Em parte, isso teria explicação devido as escolhas documentais e seu olhar sob um
pequeno número de fontes narrativas.
Desse modo, percebemos que a figura feminina recebeu maior interesse nos anos 60 e
70 por historiadoras(es) e pesquisadoras(es) ligadas(os) ao feminismo. Assim, “surge” a
história das mulheres, onde a palavra “gênero”, que parece ter surgido com as feministas
americanas seria o sinônimo de “mulheres”. No entanto, é necessário afirmar que não existe
clareza ou coerência quanto ao sentido de gênero. Para Joan Scott290, é necessário conceituar
o gênero enquanto categoria útil à história e não apenas à história das mulheres.
Seria dar um caráter fundamentalmente social e entender que o gênero não estaria
filiado a um questionamento sobre desigualdade ou poder, ou tomaria partido pela “parte
lesada”291. Já que as mulheres e os homens eram definidos em termos recíprocos e não se
pode compreender qualquer um dos sexos por meio de um estudo inteiramente separado.
Nesse contexto percebemos como o sexo feminino foi negligenciado durante muito
tempo e deixado à sombra do gênero masculino. Os homens, por sua vez, eram considerados
donos das mulheres no medievo. Contudo temos que concordar com Casagrande no sentido
de que não podemos considerar que as mulheres se mantiveram submissas a tudo que estava
acontecendo, para a autora:
289
SALES, Véronique. Os Historiadores. São Paulo. Editora: UNESP, 2003. p. 279.
290
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade. Porto
Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, p. 71-99.
291
IDEM.
234
não sei em que medida as mulheres do medieval se mantiveram quietas e
silenciosas entre as paredes das casas, das igrejas e dos conventos, ouvindo
homens industriosos e eloquentes que lhes propunham preceitos e conselhos
de toda a espécie. Os sermões dos pregadores, conselhos paternos, os avisos
dos diretores espirituais, as ordens dos maridos, as proibições dos
confessores, por mais eficazes e respeitáveis que tenham sido nunca nos
restituirão a realidades das mulheres às quais se dirigiam, mas com toda a
certeza faziam parte dessa realidade: as mulheres deveriam conviver com as
palavras daqueles homens a quem uma determinada organização social e
uma ideologia muito definida tinham entregue o governo dos corpos e das
almas femininas. Uma parte da história das mulheres ouviram ser-lhes
dirigidas, por vezes com arrogância expedita, outras vezes com carinhosa
afabilidade, em qualquer caso com preocupada insistência292.
Todavia Danielle Régnier-Bohler traça um outro perfil feminino, isto é, nos mostra
uma mulher que tem voz e vontade de expor suas experiências, como, por exemplo, Maria da
França, Cristina Pisano e Berta de Corne, esta última que chegou a mencionar: “sou mulher,
não posso calar-me(...)”293. Outro ponto que merece ser ressaltado é que em algumas regiões,
mulheres da elite conseguiram comprar o direito de se casar com quem quisessem, essas
compras eram negociadas com funcionários do rei. Macedo exemplifica que:
três delas, Emma de Normanville, Roheisa e Margareth, prestaram contas de
dez marcos por uma licença parasse casar onde quisessem. Alice, condessa
de Warwich, prestou contas de mil libras para permanecer viúva, enquanto
lhe conviesse, mantendo a guarda dos filhos que teve com o marido falecido.
Noutro caso, Hawisa, viúva de Willian Fitz Robert, prestou contas de 130
marcos e quatro cavalos para Peter de Bourough, aquém o rei tinha dado
licença para casar com ela, a deixasse em paz; e para não ser compelida a
casar294.
Nosso objetivo foi demonstrar até que ponto a visão do autor foi construída e/ou
influenciada por suas fontes, especialmente aquelas de origem masculinas e clericais. E para
estudar a mulher medieval é necessário um cuidado, pois dependendo da fonte há a tendência
de uma construção da imagem mais ou menos realista ou estilizada. No entanto, gostaríamos
de frisar que a intenção desta comunicação não é reduzir a obra de Georges Duby a uma
análise baseada na História das Mulheres, mas sim demonstrar como este tipo de pesquisa é
possível sob a luz dos Estudos de Gênero.
Por fim, acreditamos estar contribuindo para ressaltar o que vem sendo abordado sobre
a temática das mulheres na Idade Média, pela historiografia, não só brasileira, mas como
292
CASAGRANDE, Carla. A mulher sob custódia. In: In: KLAPISCH-ZUBER, Christiane (Dir.). História
das mulheres no Ocidente: a Idade Média. Trad. Ana Losa Ramalho. Porto: Afrontamento, 1990. V. II. p. 99.
293
REGNIER-BOHLER, Danielle. Vozes literárias, vozes míticas. In: KLAPISCH-ZUBER, Christiane
(dir.). História das Mulheres no Ocidente: a Idade Média. Porto: Afrontamento, 1990. V. II. p. 554.
294
MACEDO, José Rivair. A Mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 2002. p. 22.
235
também, norte-americana e europeia. Para que, enfim, possamos criar uma visão do que de
fato, representa a mulher no medievo. E como as fontes da época atrapalham a visão de
muitos. Sendo que, é de suma importância abordar esta temática a luz dos estudos de gênero,
pois em nossa pesquisa, pretendemos ainda, demonstrar a clara diferença entre este e a
História das Mulheres. E como esta é primordial para entendermos a sociedade daquele
período sem favorecer ou “vitimizar” os membros desta sociedade.
Referências Bibliográficas:
236
ENTRE RUAS, BECOS E VIELAS:
O CHÃO SOCIAL DA CARESTIA EM SALVADOR (1937-1945)
Em carta escrita para Jorge Amado em agosto de 1936, Monteiro Lobato relata a
emoção trágica que os livros do escritor baiano lhe despertam. Dizia ele: “Difícil seus livros,
meu caro Jorge”, porque estes “desgarram de todos os moldes assentes”. Explicitava ainda
que eram livros “dolorosamente terríveis porque contam verdade demais. E contam verdade
demais porque, como harpa eolea que você é, eles são a própria verdade circulante no ar como
ondas e captadas por uma antena potentíssima”.295
O que Monteiro Lobato relata sobre os conteúdos dos livros de Jorge Amado podem
ser estendidas à publicação do autor para a década de 1930, quando sua produção se debruça
principalmente sobre a compreensão da realidade social de Salvador. As preocupações do
escritor, pelo menos no que toque à capital baiana, residem nas desigualdades sociais
atenuantes numa cidade que vive os prazeres e os problemas de um processo modernizador
baseado na lógica capitalista.
Os romances amadianos contém gente, ainda que, muitas vezes, apareçam sem nome.
Gente que é percebida não numa perspectiva individual, na construção de um herói, mas na
relação com o outro, nas suas experiências cotidianas, na coletividade. Trazem a perspectiva
de grupos sociais que ao mesmo tempo em que são abduzidos por uma avalanche
modernizador, dele são repelidos, ficando às margens de um processo e sofrendo as
consequências dele.
O romance Suor (1934) é um destes exemplos. Passando-se num sobrado situado na
Ladeira do Pelourinho, Centro Histórico de Salvador, a narrativa é permeada de luta pela
sobrevivência. São sujeitos diversos e de origens distintas que guardam entre si as
experiências das más condições de moradia, alimentação, trabalho e saúde. Lutam contra os
donos dos quartos, dos quais eles são inquilinos, em relação às condições e aos sucessivos
aumentos de aluguéis. Moram em um sobrado insalubre, considerado um mundo fétido. Em
sua trama Jorge Amado denuncia estas questões e põe em cheque os ditames da higienização
presente nos discursos urbanísticos da época que procurava adentrar, inclusive nos espaços
295
Correspondência de Monteiro Lobato endereçada a Jorge Amado em 23 de agosto de 1936. Documento em
exposição na Casa do Rio Vermelho.
237
privados. Entretanto, não deixa de apontar o quanto as práticas higienistas foram além da
ideia da salubridade e afetou o cotidiano dos sujeitos ao transitarem por uma cidade que
passou a arrevesar os olhos para comportamentos e atitudes considerados incivilizados.
O espaço deslindado em Suor mostra uma Salvador das contradições que fogem dos
ditames sanitaristas do urbanismo em voga. O sobrado situado na Ladeira do Pelourinho que
compõe a narrativa, não era o símbolo dos tempos modernos expressos nas “novas casas de
apartamentos, arranha-céus de dez andares que humilhavam os sobrados coloniais”296. Ele era
a face do que se queria esconder dentro deste processo de modernização urbana. Era “um
mundo fétido, sem higiene e sem moral, com ratos, palavrões e gente”297.
As experiências diante do processo de modernização, segundo Marshal Berman, levam
o ser moderno a estar compelido em ambiguidades, pois no mesmo momento em que é
buscada a unidade para se produzir a imagem da cidade radiante, lugar de aventura e
progresso, ela desintegra, desfaz para se refazer, indicando sempre a contradição existente
entre a norma e a necessidade, o idealizado e o vivido. Assim, enquanto a ideia do que é
moderno se transforma, novas estéticas e comportamentos gestados pela elite capitalista se
impõem na cidade, procurando desfazer e readequar as vivências dos sujeitos no espaço.298
As transformações urbanas que se operavam em Salvador, como em outras capitais do
Brasil, eram ressonâncias de um movimento mais amplo que vinha encontrando respaldo
entre as burguesias desde o início do século XX. A década de 1930, ao longo do governo de
Getúlio Vargas, viu o movimento de intensa transformação ir à frente como projeto das elites
brasileiras e com o objetivo de legitimar o próprio governo, que se impunha, naquele
momento, como uma nova política.299
As ambiguidades deste projeto levado a frente pelas elites econômicas
materializavam-se não só nas formas arquitetônicas, mas também na expansão das cidades,
sendo Salvador um destes exemplos. Após ter tido um crescimento lento nas primeiras
décadas do século, a década de 1940 apresentaria a capital baiana uma elevação demográfica
vertiginosa: sendo registrados em 1940, 290.443 habitantes, enquanto dez anos mais tarde
este número chegaria a 417.235. Como se vê no Gráfico 01:
Gráfico 01 – Crescimento
296
AMADO, 2011, p. 91.
297
Ibid, p. 10.
298
BERMAN, 1986, p. 10.
299
Cf. PANDOLFI, 1999.
238
demográfico de Salvador (1890-1950)
300
SANTOS, 2009, p. 49-56.
239
Fonte: IBGE. Censos demográficos de 1940 e 1950.
A partir do Gráfico 2 nota-se uma comparação entre os dois censos.301 Ele assinala a
grande quantidade de indivíduos que exerciam atividades domésticas e escolares. Vê-se como
o crescimento populacional refletiu-se nesta esfera, representando um aumento de 24,8% de
sujeitos que não tinham fonte de renda. A maioria deste grupo é representada por mulheres,
certamente donas de casa, sendo 84,1% em 1940 e 85% dez anos após.
O ramo prestação de serviço, categorizado no último censo em análise, englobam,
entre outras atividades, sujeitos que trabalham em alojamentos e restaurantes, higiene pessoal,
conservação e reparos, diversões, atividades domésticas remuneradas. Ou seja, lavadeiras302,
garçons, pedreiros, carpinteiros, empregadas domésticas. Este grupo soma 44.686 habitantes,
30% do total, dos quais 64,5% são mulheres. Muitas delas como as do casarão 68 que
resistiam às intempéries da vida lavando roupas de ganho.
Suor, assim como outros romances do escritor, retrata o lado da mulher corajosa e
perseverante na luta diária. Mulheres que não estão recônditas apenas ao privado dos lares,
mas que estão no mundo do trabalho dividindo com os maridos as despesas, quando não são
as próprias mantenedoras das casas. Algumas delas eram iguais à esposa de Joaquim, ajudante
de pedreiro que, caiu de um andaime na obra de um sobrado no Garcia onde trabalhava e
terminou falecendo, largando-a com seis filhos para dar de comer apenas com o que ganhava
como lavadeira.304
No cortiço K. T. Espero situado dentro do casarão colonial à Ladeira do Pelourinho, a
maior parte dos habitantes era formada por “lavadeiras e engomadeiras, que ajudavam os
301
Diante do quadro de ocupações dos censos de 1940 e 1950, escolheu-se destacar as atividades que havia
maior número de habitantes. Aquelas com menor proeminência foram englobadas em outros, sendo elas os
ramos de indústrias extrativistas; comércio de imóveis e valores imobiliários, crédito, seguros e capitalização,
transportes e comunicação; administração pública, justiça, ensino público; e defesa nacional, segurança pública.
302
Cf. NUNES NETO, 2005. Neste trabalho o autor procurou observar as representações da figura da lavadeira
presente nas obras de Jorge Amado Suor e Capitães da Areia, bem como seu modo de viver, e as confrontou
com notícias apresentadas no jornal Diário de Noticias e A Tarde. Com isso, percebeu em ambos aproximações
ao tratarem de aspectos cotidianos das lavadeiras na cidade do Salvador durante os anos 1930.
303
AMADO, 2011, p. 85.
304
AMADO, 2011, p. 61.
240
maridos operários no sustento da casa, entrando muitas vezes com a maior parte” 305. Isso
demonstra que, mesmo a rua sendo um espaço ainda masculino, onde o homem ganhava a
vida trabalhando no comércio, nas fábricas ou no porto, a participação da mulher, ainda que
de modo secundário e complementar, era muitas vezes decisiva na sobrevivência da família.
Ao analisar as estratégias de sobrevivência de famílias de trabalhadores, a socióloga
Elisabete Bilac, ao fazer estudo sobre a sobrevivência de famílias proletárias, percebe que esta
posição complementar do trabalho feminino se reveste por conta de uma importância dada ao
trabalho masculino, como aquele que é responsável por manter o lar. Entretanto, ela ressalta
que esse caráter secundário fica mais evidente quando se observa a dupla jornada que ela faz
parte, pois num primeiro plano sua função é da “produção de valores de uso” para a família
que são as atividades inerentes ao lar.306
A proeminência do trabalho feminino numa perspectiva complementar ao do
masculino, reforçando a ideia da produção dos valores de uso pode ser vista ao examinar que,
no ramo da indústria e do comércio, a proporção de homens sobre a de mulheres era de cerca
85% nos dois censos analisados. De preponderância masculina, esses dois setores da
economia, apesar de terem número significativo de pessoas ocupadas, são apresentados por
Milton Santos como reduzido e inelástico.307 No caso das indústrias, apesar de nestes dez anos
ter tido um aumento de 316 para 449 estabelecimentos industriais na capital, elas são
complementares às atividades comerciais, sendo, muitas delas, de fabricação artesanal e
familiar. Este caráter é explícito em toda a Bahia. Num total de 4270 estabelecimentos
industriais, 55,4% tinham de 2 a 5 operários, 14,7% tinham apenas 1 operário, enquanto que
8,9% não possuía.308 Ainda que houvesse o apelo de uma modernização econômica via
industrialização, defendida na época, Salvador, por exemplo, possuía poucas indústrias que
não fossem ligadas à vida da cidade e de suas necessidades mais imediatas, capazes de
abarcar grandes quantidades de mão-de-obra.309
Além disto, as condições de vida do operário também eram permeadas de incertezas.
Os momentos de crise econômica podiam ser carregados com o fantasma da desvalorização
305
Ibid, p 82.
306
BILAC, 1978, p. 53-54.
307
SANTOS, 2009, p. 53.
308
IBGE. Censo econômico: censo industrial de 1940 e 1950.
309
Enquanto que nesta época desenvolviam-se no sul do país as chamadas indústrias de base, arregimentadas no
plano nacional-desenvolvimentista do Brasil, no Guia Bahia de 1949 foram apresentados os seguintes ramos de
produção industrial na capital baiana: tecidos, pregos, cigarros, vidros, refrigerantes, cofres, algodão medicinal,
cal, cerâmica, óleos vegetais, tintas, chocolates, sabão, banha, massas, calçados, portas, produtos químicos, vela,
fossas, couro, ladrilho hidráulico, sacos de papel, fibras, trigo e cereais. Ou seja, a produção que se concentrava
em Salvador era estritamente voltada para o consumo local. IN: PORTO, 1949, p. 171-183.
241
dos ordenados ou então com o desemprego, como o caso de Manuel de Tal, morador do
sobrado nº68, que teve seu caso divulgado com título “em letras gordas” em um jornal da
capital.
O narrativa acima revela o desespero vivido nesta linha tênue que era a sobrevivência
para a população pobre. Discordando do tal jornalista, o narrador expõe que “crise” é o que
lhe respondiam cada vez que procurava emprego, e que sua atitude não teria sido ato de
covardia, mas de uma vida sem esperanças, pois já “não comia há dois dias e ia ser posto para
fora do quarto”311.
O desespero levava a tristes desfechos, no qual a morte era o melhor remédio para os
males em que se vivia. Como um infeliz, noticiava o jornal O Imparcial a morte de um baiano
no Rio de Janeiro que vivia “sem trabalho e faminto”. Este era Manoel Francisco de Carvalho
que do alto de uma das galerias da Câmara Federal, atirou-se em cima da bancada de Alagoas
numa altura de 15 metros.312 Tal atitude, apesar de ser visto como ato de desespero, tampouco
é inconsciente ou espasmódico, uma vez que a cena da tragédia é carregada de simbologias:
ela ocorre junto ao órgão que deveria resguardar os direitos mais básicos do cidadão.
Ainda que pouco se saiba sobre o caso de Manoel Francisco, pelos indícios oferecidos
pela nota do jornal, é simplista a compreensão de que ele se jogou apenas pela fome, como se
fosse movido apenas pelo estômago, como criticou E. P. Thompson ao analisar o
comportamento da multidão em épocas de crise de abastecimento.313 Não era apenas a fome
que trazia inquietudes à vida deste sujeito, sua própria atitude foi consciente de que no mundo
em que viver, outras alternativas não lhe restavam. Talvez, Manoel tenha estado entre muitos
que migraram do sertão baiano em direção ao sul do país e que, ao chegar à capital federal,
não tenha encontrado as oportunidades que vislumbrava para melhorar o seu padrão de vida.
310
AMADO, 2011, p. 74-75.
311
Ibid, p. 75.
312
O Imparcial. 15 de abril de 1937, p. 8.
313
Cf. THOMPSON, 1998, p. 150-202.
242
Em épocas de grande instabilidade econômica, a decorrência de insucessos na aventura
migratória pode lhe ter colocado aquela alternativa como a melhor.
Tais instabilidades econômicas não é o que propulsa as camadas populares a agirem de
tais formas, mas o que se decorrem delas como o encarecimento de vida e a diminuição da
oferta de trabalho. Edgard Carone em estudo que oferece uma série de dados sobre o período
do Estado Novo faz uma análise sobre a inflação do período, que conforma uma crise geral
que vem desde 1929, e persistiu na década seguinte e se acentua com a Segunda Guerra
Mundial (1939-1945). Segundo ele, o crescimento da inflação repercutiu no encarecimento da
vida, na qual o custo de vida se acentuou apresentando os seguintes índices: de 1934 a 1940,
teve elevação em média de 6,6% ao ano; em 1941 de 10,9%; em 1942 de 12%; em 1943 de
14,9%; em 1944 de 27,3%; e em 1945 de 16,7%.314
A partir destes índices não se pode considerar a guerra apenas enquanto confronto
direto. Ela necessita de uma perspectiva ampliada de análise: vendo-a como um todo
beligerante que irrompem consequências sobre o cotidiano dos sujeitos sob as mais variadas
formas. Assim, a declaração de guerra ao Eixo pelo Brasil em 1942, após os torpedeamentos
de navios na costa brasileira, é o início de uma participação não só mais efetiva em termos de
confronto, como também de uma série de acontecimentos que transformou a rotina da
população como o blackout, o aumento dos preços dos alimentos, ou ainda, a sua escassez.315
O cenário de crise encarecia o custo de vida da população em todo o país e
representava, para os industriais baianos, um cenário pouco atrativo para investimentos. Além
disso, a economia do período baseada numa substituição de importações não favorecia ao
modelo de industrialização baiano, já que sua produção era voltada para um consumo local.316
Situação semelhante vivenciava o comércio na capital baiana, que entre 1940 e 1950 o
número de estabelecimentos comerciais tanto atacadista como varejistas tiveram crescimento
em torno de 27%. Com pouca expansão, se comparado à oferta de trabalhadores, o que se viu
neste setor foi a profusão de um mercado informal composto por ambulantes, camelôs,
314
CARONE, 1976, p. 96.
315
Sobre os torpedeamentos de navios na costa brasileira cf.: CRUZ, Luiz Antônio Pinto. “A guerra já chegou
entre nós”! O cotidiano de Aracaju durante a Guerra Submarina (1942 -1945). Mestrado em História Social.
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. UFBA, Salvador, 2013.
316
O modelo econômico que se delineava no momento era voltado para a construção de indústrias de base, a
exemplo das siderúrgicas, como também o aumento da produção nacional. O caráter nacionalista da
industrialização para a construção de um Brasil integrado e forte, contou com o financiamento do Estado a partir
da criação da carteira de Crédito Agrícola e Industrial (Creai) do Banco do Brasil, além de incentivos e acordos
com o governo norte-americano. Sobre o assunto cf.: CORSI, Francisco Luiz. O projeto de desenvolvimento de
Vargas, a Missão Oswaldo Aranha e os rumos da economia brasileira. IN: BASTOS, 2012, p. 219-252.
243
vendedores de doces, além das quituteiras.317 À informalidade convergiam aqueles que
procuravam formas alternativas de garantirem o pão de cada dia. Sem renda fixa no mês, os
dias oscilavam entre agitações e marasmos, entre perspectivas e incertezas, cotidianos
denunciados por Jorge Amado através do personagem Artur, que era um entre tantos outros
do sobrado nº 68 que vivia as incertezas da sobrevivência:
Como morador do sobrado, pode-se supor que não só a fome apontava, mas também
um possível despejo se não tivesse dinheiro para pagar o aluguel do quarto. Contudo, ainda
que a renda fosse incerta, não se pode afirmar que todos os sujeitos que assim se ocupavam,
foi apenas pela incapacidade do mercado de trabalho lhes absorverem.
Para Sidney Chalhoub, em Trabalho, lar e botequim, o esquema que traz o trabalhador
sempre como despossuído, que detém apenas sua força de trabalho, num mercado capitalista
em formação a lhe comprimir, é engessado demais para compreender as experiências que
estão por detrás dele. Tal observação faz descortinar uma série de questões relacionadas ao
mercado informal, pois a opção por este tipo de trabalho, apesar de oscilante e incerto, traz ao
cotidiano do indivíduo a liberdade que não teria se estivesse submetido aos horários das
fábricas ou das casas comerciais. Além disto, está o desprendimento da figura do patrão, ainda
muito ligada à figura do senhor da sociedade escravocrata.319
Entretanto, ao analisar a relação entre ocupação e sobrevivência, é possível pensar que
situações como as que são romanceadas em Suor, nas quais a esperança por dias melhores se
distanciava, eram limites para que os efeitos da carestia lhes fossem mais vorazes. A falta de
rendimentos ocasionava problemas relacionados à reprodução da vida material que poderiam
desaguar em atos de desespero como o de Manuel de Tal.
Conforme evidenciou o Gráfico 2, remetendo às ocupações em 1950, a população que
vivia em condições inativas, atividades mal definidas ou não declaradas aproxima-se em
termos quantitativos o pessoal empregado na indústria ou no comércio. De um total de 25.769
317
É importante destacar que há diferenças numéricas quanto à ocupação formal no censo econômico e as
ocupações registradas enquanto atividades principais que os sujeitos exerciam no censo demográfico, sendo este
último sempre superior ao primeiro.
318
AMADO, 2011, p. 78.
319
CHALHOUB, 2012, p. 62.
244
habitantes, quase 68% eram homens, o que condiz com o que Santos afirmou sobre as
numerosas famílias cujo pai não tinha profissões definidas, vivendo de trabalhos esporádicos.
Em outros casos, a mendicância apresentava-se como alternativa à sobrevivência.
Zefa, mais uma personagem que compõe o cenário do sobrado sito à Ladeira do Pelourinho,
tem sua trama desencadeada através da mendicância na Rua Chile. Sendo a rua elegante da
cidade, Zefa mostrava os seus filhos aos transeuntes dizendo: “Tenha pena dessas crianças
sem pai...”320. Assim como ela, havia Cabaça que procurava a piedade alheia mostrando suas
feridas na perna e dormia debaixo da escada no velho sobrado à Ladeira do Pelourinho. Neste
universo, ainda é possível citar as estratégias de muitos homens e mulheres que se prostituíam
para sobreviver. Eram “mulheres da vida [que] buscavam homens que pagassem o almoço do
dia seguinte”321, eram homens que se “amigavam” com outros quando “se desempregavam e a
fome batia à sua porta e a mulher do andar falava em desalojar o quarto”322.
Ao cruzar os dados dos censos de 1940 e os de 1950 com as experiências de sujeitos
abordadas na literatura, observa-se como o crescimento demográfico da capital baiana, aliado
a uma economia pouco expansível, incapaz de absorver a mão de obra disponível, resultou no
aumento de pessoas sem profissões definidas e sem trabalho. Desse modo, diante da elevação
constante do custo de vida, aliado aos projetos de urbanização, contemplando os interesses de
uma parcela diminuta da sociedade, irrompia uma realidade difícil, uma cidade real onde
muitos necessitavam de questões básicas para sobreviver como a alimentação, a moradia e a
saúde.
Dessa maneira, a literatura descortina um mundo de vivências, de gestos, sentimentos,
sonhos e estratégias, escapáveis aos números. Em Suor, os vieses da miséria urbana são
retratados a partir dos problemas da moradia. Quartos apertados, mofados, molhados, ratos e
doenças: esta era a moradia de mais de seiscentas pessoas que, ao longo do romance, tem suas
experiências individuais entrelaçadas por meio da própria convivência e pela experiência
compartilhada naquele sobrado. Daí emergia o povo, que na sua coletividade de lutas é o
herói de sua própria história.
A narrativa de Jorge Amado parece mais fragmentada, de forma que, ao menos nos
primeiros capítulos, apenas morar no sobrado é capaz de unir aquelas vivências. Entretanto,
ao apresentar indícios sensíveis para a compreensão do cotidiano das camadas populares
relacionado às lutas pela habitação, remete também à percepção de como estes sujeitos
320
AMADO, 2011, p. 91.
321
Ibid, p. 43.
322
Ibid, p. 44.
245
vivenciavam os tempos de carestia e como estes lhes eram embaraçosos. As narrativas
literárias permitem o que é tão caro à outras tipologias documentais: o escrutínio da vida
familiar. Ao fazê-lo, os escritores permitem a análise das questões econômicas a partir de um
movimento de âmago social, coletivo, mas que insurge na vida doméstica.
A crítica literária, entretanto, vem chamando atenção para os estudos de cunho
sociológico para a literatura, iluminando os limites da relação existente entre a narrativa
ficcional com as condições sociais. Dessa forma, é salutar a distinção realizada por Lucien
Goldmann e apropriada por Raymond Williams sobre a consciência do real e a consciência do
possível. Esta dissociação apresenta primeira como a realidade no seu modo mais amplo,
escapável a qualquer interpretação totalizante; e, a segunda, como a organização da realidade
de modo coerente. Segundo Williams, a construção de uma consciência do possível é criada
coletivamente, no qual o objetivo é oferecer um caminho de respostas a uma situação dada. A
visão organizadora do mundo, estabelecida por um grupo, cria uma espécie de estrutura de
sentidos para a primeira percepção do mundo que se dá como caótica323.
Assim, ao se buscar uma compreensão do cotidiano das camadas populares a partir da
narrativa desenrolada em Suor, não se pretende encontrar nela uma imagem real da sociedade
de Salvador. A literatura amadiana possibilita encontrar verossimilhanças com o mundo em
que seu escritor viveu ou imaginou, calcado em histórias de vida e até mesmo no “ouvi dizer”.
Jorge Amado traz de modo romanceado, e não se pode esquecer de mencionar o seu
compromisso com a produção de um militante do Partido Comunista do Brasil (PCB), essa
consciência do real enquanto algo vivido. Ele transforma-o e dá inteligibilidade, construindo
tramas próprias do romance para que essas múltiplas vivências vividas, apreendidas e/ou
imaginadas tivessem coesão.
Logo, a narrativa de Suor permite um escrutínio do cotidiano das camadas populares
de Salvador, que leva à compreensão da carestia dentro de um conjunto de agruras e
condições-limites de sobrevivência, dentre elas também a moradia. Diante de um universo de
transformações que englobavam a transformação dos espaços e de hábitos, as precárias
condições de vida põem em tela as desigualdades sociais, destacando a “humanidade
proletária que se move nas ladeiras e ruas escuras”324 da cidade. É preciso ressaltar que ainda
que as normatizações dos projetos urbanos impusessem, cada vez mais, obstáculos ao viver
numa cidade em expansão tanto demográfica, quanto espacial, as experiências coletivas dos
323
WILLIAMS, Raymond. Literatura e Sociologia: em memória a Lucien Goldmann. In: WILLIAMS,
Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: EDUNESP, 2011, p. 32-33.
324
AMADO, 2011, p. 115.
246
sujeitos das classes populares expressam uma consciência social do papel que ela tem na
construção dos espaços, indo além das idealizações burguesas.
Desse modo, assim como os moradores do sobrado nº 68, tomaram consciência do
poder de ação da multidão e uniram-se contra o proprietário que os colocavam em situações
humilhantes e explorava-os com altos preços de aluguéis, pode-se inferir que, se a vida imita a
arte, os sujeitos que viviam diante do alto custo de vida, também travaram estratégias
cotidianas de ação e resistência diante da carestia.
REFERÊNCIAS
AMADO, Jorge. Suor. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
BASTOS, Pedro Pauo Zahluth; FONSECA, Pedro Cezar Fonseca (Org.). A Era Vargas:
desenvolvimentismo, economia e sociedade. São Paulo: Editora Unesp, 2012.
BERMAN, Marshal. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das Letras,
1986.
BILAC, Elisabeth Doria. Famílias de trabalhadores: estratégias de sobrevivência. São Paulo:
Símbolo, 1978.
CHALHOUB, Sidney. A cidade febril. Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim. 3ªed. São Paulo: Editora da Unicamp, 2012.
CRUZ, Luiz Antônio Pinto. “A guerra já chegou entre nós”! O cotidiano de Aracaju durante
a Guerra Submarina (1942 -1945). Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. UFBA, Salvador, 2013.
NUNES NETO, Francisco Antonio. A condição social das lavadeiras (1930-1939): quando a
História e a Literatura se encontram. Mestrado em História Social. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. UFBA, Salvador, 2005.
PALAMARTCHUK, Ana Paula. Jorge Amado: um escritor das putas e vagabundos? In:
CHALHOUB, Sidney; PEREIRA, Leonardo Affonso de Miranda (Orgs.) A história contada:
capítulos de história social da literatura do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
PANDOLFI, Dulce. (Org.) Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro: Editora FGV, 1999.
PORTO, A. Marques (Org). Guia da Bahia. Informações Turísticas. Edição comemorativa do
4º Centenário da Fundação da Cidade do Salvador. Bahia, 1949
SANTOS, Milton. O centro da cidade do Salvador. Salvador: EDUFBA, 2009.
THOMPSON, E. P Costumes em Comum. Estudos sobre a cultura popular tradicional. São
Paulo: Companhia das Letras, 1998.
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Materialismo. São Paulo: EDUNESP, 2011.
247
NAS URNAS DO TRE: PESQUISA HISTÓRICA ELEITORAL E MUSEALIZAÇÃO
(1947-1980)
Introdução
248
de graduação em Museologia da UFS tomou a iniciativa de tratar de uma documentação em
grande parte ainda não explorada nos estudos sergipanos.
249
financeiros advindos das instâncias do Poder Judiciário, intencionando revitalizar, na íntegra,
a disponibilidade infra-estrutural do CEMEL, propondo a aproximação do público mediante a
instalação de equipamentos modernos e interativos. É dessa maneira, a rigor, que o CEMEL
concede sua parcela de contribuição para a sociedade, conforme prescreve suas normas
estatutárias.
250
Tabela 3: Resultado eleitoral final – 15.03.1947
Candidatos ao Senado Partido Votação
Augusto Maynard PDS 38.225
M. Graccho Cardoso UDN 26.466
Orlando V. Dantas ED 1.225
Com base nos dados estatísticos disponíveis acima, conclui-se que a coalizão entre
PSD/PR, na qual seus egressos constituiriam a base da ARENA duas décadas depois,
dominava hegemonicamente a política sergipana até meados de 1955, alternando a ocupação
das legislaturas com a UDN. Conforme atestam Montalvão e Seidl no artigo intitulado Arena
Sergipana: Trajetórias Políticas dos Deputados, a configuração política de Sergipe se dava:
No período anterior ao golpe militar, que corresponde aos anos de 1945 e
1964, dominada por dois partidos: o PSD com aliança do PR, domina o
primeiro período (1945-1955), com os governos de Rollember Leite e
Rollemberg Garcez; já a UDN domina o período seguinte, que corresponde
aos anos de 1955-1962, com os governos de Leandro Maynard Maciel e Luís
Garcia (MONTALVÃO; SEIDL. P. 01).
251
fraudulentas e o resultado final foi oficializado após diversas ações judiciais, que foram
seguidas pela anulação de algumas urnas (DANTAS, 1989).
A 05 de agosto de 1954, em meio às campanhas eleitorais da ascese nacional, o
deputado federal Carlos Lacerda, aspirante a reeleição do citadino cargo eletivo, regressara à
residência após um comício. Constantemente ameaçado por dissidentes políticos, Lacerda
estreitou laços maciços de fidelidade com alguns membros das forças armadas e grupos de
simpatizantes, modus operandi que garantia sua segurança durante os compromissos de
campanha. Após retornar do último comício, Lacerda, seu filho e o segurança, um oficial da
aeronáutica, foram surpreendidos por um desconhecido que desferiu vários disparos contra o
automóvel, alvejando fatalmente aquele último. A oposição, por razões óbvias, atribuiu a
autoria do atentado ao governo federal, sob a liderança de Getúlio Dornelles Vargas.
Devido a grande repercussão do atentado, as consequências foram trágicas. O
envolvimento dos homens do presidente implicou no advento de uma atmosfera instável para
Vargas, que jamais assumiu a autoria do crime. Em 24 de agosto de 1954, sucumbindo às
pressões da oposição e dos militares, Vargas cometeu suicídio e pôs fim a uma trajetória
política eivada de controversas e triunfos. Café Filho, até então vice-presidente em exercício,
foi nomeado e assumiu o posto de 24 de agosto a 08 de novembro de 1955.
Depois de sucessivas e áridas consultas aos periódicos, não foi possível precisar a data
de veiculação do resultado final, uma vez que o referido periódico disponibilizou as apurações
conforme as seções eleitorais finalizavam o cômputo.
Na contramão dos eventos eivados de irregularidades insanáveis dos pleitos anteriores,
as eleições de 1958 processaram-se, guardadas as devidas proporções, dentro da mais perfeita
plenitude. O periódico Folha Popular publica, no dia 18 de outubro do citadino ano, o triunfo
do candidato Luís Garcia, que assumira o cargo de governador de Sergipe em 31.01.1959.
252
Na arena política sergipana, formaram-se duas coalizões heterogêneas, segundo
Dantas (1989). Em um espectro, encontramos a Aliança Nacional Trabalhista (ANT), que
mobilizou agremiações como UDN, PTB, PST, uma pequena fração do PSP, além dos
correligionários dissidentes do PSD; noutro, a Aliança Social Democrática (ASD), constituída
pelo PSD, PR, PRT, PDC, bem como pela dissidência da UDN.
Tabela 4: Resultado final das eleições de 07.10.1962
Fonte: Diário Oficial, 26.10.1962; FORTES, Bonifácio apud DANTAS, Ibarê Dantas. Os partidos políticos em
Sergipe (1889-1964). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989.
253
instituições, já que os livros não são tão elucidativos, ou melhor, não trazem informações
concretas sobre tal feito.
Nos anos que se seguiram, o movimento político foi angariando mais força e cresceu
em proporções consideráveis, não positivamente, infelizmente, mas por estar subsidiado por
AI’s cada vez mais severas amedrontando e reprimindo a maioria da população. Não
diferindo o processo eleitoral. A Assembléia, a Câmara e o Senado garantiam para a
agremiação ARENA o maior número de cadeiras destinadas a cada um dos espaços citados.
Durante os registros realizados ao pesquisar o Diário Oficial da década de 1970, o
informe carregava vários dados sobre o processo eleitoral, desde telegramas até informações
sobre a desistência de determinado candidato à vaga pretendida. Pode-se observar que o
mesmo expunha dados estatísticos pós-pleito de cada zona eleitoral e seus respectivos
municípios.
É possível também verificar como foram calculados os votos do pleito de 1970, uma
vez que no próprio informe há um relatório composto pela Comissão Apuradora das Eleições
Federais e Estaduais.
Vale salientar que os dados expostos acerca do pleito de 1970 não são referenciados
diretamente do Diário Oficial porque existem edições faltosas, impedindo assim a exatidão da
informação. Por isso, o uso dos dados referenciados acima tornou-se necessário.
No pleito de 1974, houve uma quebra na hegemonia da cadeira do Senado,
contrariando perspectivas, o vencedor fora um candidato do MDB. As eleições ocorreram
num momento de “afrouxamento das normas autoritárias e pelo resgate de alguns direitos
individuais e coletivos”. (DANTAS, 2014).
Tabela 5 – Resultado das Eleições
Candidato a Senador Partido Votação
João Gilvan Rocha MDB 103.454
Fonte: TRE-SE. 100 anos de Eleições em Sergipe. Tribunal Regional Eleitoral. Aracaju: TRE/SE, 2002.
Durante a pesquisa no Diário Oficial do Estado de Sergipe no que concerne ao pleito
de 1974, fora perceptível uma brusca diferença de informação do período eleitoral com
relação ao de 1970: este estava totalmente raso, não somente por falta de edições, mas por
falta de informações do próprio pleito.
Por isso, além da pesquisa histórica, o projeto em tela, representado pelo presente
artigo, buscou o desenvolvimento de uma ferramenta tecnológica capaz de socializar as
informações coletadas de modo mais amplo (imagem 2). Para isso, foi escolhida a plataforma
Wix.com, pela oferta de espaço gratuito e com boa capacidade de memória em nuvem digital
para armazenamento do banco de dados quantitativo (tabelas) e imagético (digitalização dos
jornais pesquisados), além de textos curtos sobre pesquisa histórica, processos de
musealização e uma expovirtual com base nos resultados obtidos.
Imagem 1: Site Guia de Eleições em Sergipe.
255
atribuição de sentidos dentro de um universo patrimonial amplo”, afirmando que os recortes
dos indicadores de memórias podem ser tangíveis ou intangíveis, naturais ou artificiais.
Inicialmente, o acesso ao site pelo público extra-muros universitário se deu através da
exposição “Nas urnas do TRE: Eleições & Cidadania”, realizada na praça da Catedral de
Aracaju, em julho de 2015. Com a disseminação de QR Codes, ou seja, códigos gerados
eletronicamente, impressos e afixados em árvores e postes de iluminação, era possível acessar
via celular ou tablet o site e conhecer mais da pesquisa realizada.
Considerações Finais
O presente artigo teve por objetivo apresentar dados provenientes da ação conjunta dos
envolvidos no projeto científico “Nas urnas do TRE-SE: Pesquisa Histórica dos resultados das
Eleições em Sergipe (1947-1980)”. O uso de bibliografias e jornais consultados no Instituto
Histórico e Geográfico de Sergipe (IHGSE) e no Arquivo Público do Estado de Sergipe nos
revelou uma infinidade de dados a (ainda) serem explorados com deleite e zelo, sempre o
zelo. Para nós, o que foi de grande valia nas discussões sobre os resultados conquistados foi a
arquitetura de uma exposição ao ar livre, trazendo para o século XXI a época dos momentos
eleitorais sergipanos do período da ditadura militar no Brasil e propiciando aos sergipanos o
acesso remoto, via QR Codes, ao site Guia das Eleições em Sergipe.
Hoje, cá estão os resultados deste primeiro trabalho que nos exigiu muito, mas com a
certeza ainda há de render muitos frutos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
DANTAS, Ibarê. A Tutela Militar em Sergipe (1964/1984): Partidos e eleições num Estado
Autoritário. 2ª Ed. São Cristóvão-SE: EDUFS, 2014.
256
MELLO, Janaina Cardoso de. Museus e Ciberespaço: novas linguagens da comunicação na
era digital. Cultura Histórica & Patrimônio. Vol.1, nº 2, pp.6-29, Unifal-MG, 2013.
Disponível em: http://publicacoes.unifal-
mg.edu.br/revistas/index.php/cultura_historica_patrimonio/article/view/01_art_v1n2, Acesso
em: 20/08/2015.
MONTALVÃO, A. T.; ERNESTO, Seidl. Arena Sergipana: Trajetórias Políticas dos
Deputados Federais. Scientia Plena. Aracaju, v. 6, n. 3, 2010.
NAPOLITANO, Marcos. 1964. História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Contexto,
2014.
VIEIRA, Ana Maria da Costa Leitão. Os Memoriais são um novo gênero de museu ? Revista
Museu. Disponível em: http://www.revistamuseu.com.br/18demaio/artigos.asp?id=28640,
Acesso em: 20/07/2015.
257
“CONFESSO QUE VIVI”: MEMÓRIAS DE MILITÂNCIA, REFÚGIO E EXÍLIO DE
UM MONTONERO – DÉCADA DE 1970
Marcos Gonçalves 325
Universidade Federal do Paraná
Em suas Memórias, o poeta chileno Pablo Neruda começa por dizer que o único
personagem inesquecível de sua infância foi a chuva: frequente, impassível, a ser observada
não como látego que feria as janelas da casa familiar, mas deslizando lenta e pacientemente
326
como arte produzida por um céu cinzento. Nessa fronteira extrema do Chile, ao poeta
nascido para a vida, para a terra, para a poesia e para a chuva, não houve tempo suficiente
para testemunhar e entender de pleno jovens de outra geração e outro país nascerem para a
luta política, e, no limite, morrerem na política. Se a Temuco pioneira descrita por Neruda,
posto avançado da vida chilena nos territórios do sul revelava uma longa história de sangue, a
também pioneira Buenos Aires, aristocrática, cosmopolita e esnobe, centro da cultura
latinoamericana; foi ela mesma invadida por histórias cuja dimensão trágica mostrar-se-ia em
sua inteireza na década em que as ditaduras civil-militares devastaram o continente. Histórias
escritas a fogo e sangue, vividas como paradoxal experiência acelerada e descontínua do
tempo histórico, tragadas com impaciência, e apressadamente moldadas pela vontade de
transformar para além dos irreparáveis danos existenciais, físicos e afetivos daquele agora e
do longo depois. Um dos mais inquietantes significados dessa história argentina dos anos
1970 talvez não seja a violência em si – esta, inscrita como tatuagem política no corpo do país
327
desde o tempo de suas mitologias fundadoras – e sim, o transbordamento dessa violência
em forma de extermínio planejado e sistemático. Um extermínio equivalente àquilo
denunciado por Rodolfo Walsh na célebre carta aberta escrita à ditadura militar às vésperas do
seu assassinato, como sendo “o terror mais profundo que a sociedade argentina jamais
conheceu”.328 É nessa história coletiva gerada pela intensificação de um grau inédito de terror
de Estado investido de um poder desaparecedor, nos termos de Pilar Calveiro, 329 que se
podem depreender histórias particulares, testemunhos de militância que atravessam o tempo,
325
Doutor em História. Professor do Departamento de História da Universidade Federal do Paraná. Esta
pesquisa recebe apoio do PRONEX – Programa de Apoio a Núcleos de Excelência do CNPq, e do Grupo de
Pesquisas “Mitos de unidade irracionais: sentimentos de pertença e exclusão na era dos nacionalismos”
coordenado pela Dra. Marion Brepohl de Magalhães (UFPR), e criado no âmbito de recursos do PRONEX em
2013.
326
NERUDA, 1982, p. 7.
327
Ver: SHUMWAY, 2008.
328
WALSH, 2010, p. 247.
329
CALVEIRO, 2013.
258
instalam-se no passado vivido em refúgio e exílio, e cristalizam no presente sonhado como
continuidade de uma luta por justiça menos que encerrada, mas ainda em construção.
Ao empenhar-se na compreensão sobre o “confesso que vivi” do ex-militante
montonero Miguel Fernández Long no período que corresponde à adesão aos Montoneros até
o refúgio e o exílio entre 1977/78, este texto também dialoga com interpretações normativas
que, em certa medida, tendem a relativamente desconsiderar as experiências pessoais e as
memórias individuais como bases possíveis de entendimento dos processos históricos mais
330
amplos. Por que o interesse em um militante “secundário” da organização sendo que a
historiografia tem tratado, majoritariamente, a questão dos Montoneros dentro de uma grade
pragmática de interpretação, e a partir de um corpus documental predominantemente
331
doutrinário produzido pela voz autorizada de suas lideranças? O que pode nos revelar
minimamente a trajetória pessoal sobre um fenômeno histórico de tal magnitude para uma
sociedade? De outro modo, a experiência individual da militância, e posteriormente a
proscrição do país poderiam representar um desafio de natureza analítica que proporcionasse
recursos para compreendermos os fenômenos coletivos e/ou comunitários do desterro
político?
Sem negligenciar o valor sintético-compreensivo do testemunho documental e de
como esse testemunho é organizado pelo método histórico, julgo a experiência do indivíduo
como uma experiência que deve encontrar justaposição às interpretações historiográficas. Ou,
como possibilidade de tangenciar a dualidade “memória individual” e “memória normativa”
consolidada na historiografia pela atribuição ao relato do personagem da ideia (ou paradigma)
de “indivíduo como valor”. Tomar o indivíduo como valor, como destacou Verena Alberti,
não é apenas considerá-lo uma entidade valorizada em nossa cultura individualista, o que
representaria um evidente reducionismo. Mas nutrir uma imprecisa crença de que esse
indivíduo, como outro, comporta a totalidade, apesar de nivelado e fragmentado: “Ele é igual
332
perante os outros, mas é também único e singular”. Neste sentido, a mesma autora lança
duas interrogações cruciais e inspiradoras para o meu texto:
Mas em que medida a experiência individual pode ser representativa? O que
faz um pesquisador procurar um indivíduo que tenha sido ator ou testemunha
de determinado acontecimento ou conjuntura para fazer dele um
entrevistado? Com certeza a busca de alguma informação e de algum
conhecimento que aquele indivíduo detém e que o próprio pesquisador não
detém. 333
330
Por exemplo: SZNAJDER E RONIGER, 2013.
331
GILLESPIE, 1987, e mais recentemente: PACHECO, 2014a, 2014b, 2014c.
332
ALBERTI, 2013, p. 20.
333
ALBERTI, 2013, p. 23.
259
Ao longo do último ano e meio, através de documentos do sistema de informações da
ditadura brasileira disponibilizados pelo Arquivo Nacional, estudo a trajetória de refugiados
argentinos que começaram a ingressar no Brasil a partir de meados de 1976, quando o
Proceso de Reorganización Nacional mobilizado pelos militares platinos avançava na
erradicação e extermínio físico dos integrantes de duas organizações armadas: o Exército
Revolucionário del Pueblo (ERP) e a Organização Montoneros. Essa pesquisa preliminar
resultou na produção de um artigo com informações sobre três contextos reciprocamente
considerados: os refugiados e seu processo de fuga da Argentina, o papel assumido pelo
ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) na proteção a eles, e os
dispositivos repressores da ditadura brasileira no enquadramento e vigilância de tais atores. 334
O ponto central afetado por esses contextos é que caberia ao ACNUR retirar do Brasil, no
mais breve prazo, as pessoas às quais tinha dado proteção, e como não interessava ao país
participar do processo de seleção de refugiados para consolidar os termos de destino final na
condição de exilados, restou ao ACNUR assumir uma série de responsabilidades e exigências
que, se não atendidas, colocariam seriamente em risco a vida dos refugiados argentinos.
Encurralados por cinco ditaduras (Argentina, Brasil, Paraguai, Chile e Uruguai), um caminho
pensado pelos refugiados para sobreviverem foi o Brasil. No entanto, é equivocada a
percepção de que apenas “subversivos estrangeiros” buscaram o Brasil como realidade
territorial intermediária. Centenas de familiares de desaparecidos e/ou detidos, ou então,
pessoas que sentiam-se ameaçadas pelas condições políticas impostas pela ditadura argentina
procuraram em outra ditadura militar o impulso para recompor a vida a partir de um tríplice
roteiro: fuga da Argentina, refúgio no Brasil, exílio em algum país disposto a recebê-los.
Salvo juízo mais adequado, existem poucos casos registrados pela historiografia, de
argentinos que optaram por uma atitude de risco extremo permanecendo e radicando-se no
Brasil, ou, pelo menos, na cidade do Rio de Janeiro.335 Nesse aspecto, em face de uma
realidade política extremamente desfavorável, a migração, que alude a um “horizonte de
336
assimilação mais definitiva da sociedade de acolhida”, somente foi possível em casos
muito isolados. Assim, a copiosa documentação que evidencia as negociações entre o
ACNUR e a ditadura brasileira acaba por revelar que a diáspora argentina nesse período
atingiu seus mais altos índices de frequência, transformando o Brasil em um dos corredores de
334
GONÇALVES, 2015 [no prelo].
335
QUADRAT, 2007, p. 63-102; QUADRAT, 2011, p. 169-204.
336
RONIGER, 2011, p. 39.
260
acesso a países da Europa principalmente. Engolfado por esse processo de diáspora em massa
da Argentina, estava o jovem militante montonero Miguel Fernández Long. Sua condição
impactou a minha pesquisa sobre os refugiados porque, como alguns de seus compatriotas,
Fernández Long teve uma filha nascida no Brasil enquanto aguardava a posição oficial do
ACNUR sobre o destino de exílio que acabou sendo a Suécia, como apontaram os
documentos investigados.337 E, como outros refugiados, somente conseguiu ingressar no
Brasil pela cidade de Foz do Iguaçu portando documentos falsos:
Salimos en la mañana de Aeroparque en un vuelo que hacía escala en Puerto
Iguazú y por lo tanto la aduana se hacia allá, donde asumimos que sería más
facil pasar. Íbamos por separados, ellos con sus documentos legales y yo con
uno que tenía desde que pasé a la clandestinidad en el año 75 a nombre de
Juan Domingo Montoya, DNI 103557553, nacido el 17 de octubre de 1952,
creo que hicimos aduana en San Pablo el 22 o 23 de marzo de 1977. 338
Neste sentido, após localizar Fernández Long em Necochea, cidade localizada na costa
atlântica da Província de Buenos Aires, e firmar os primeiros entendimentos para obter um
depoimento, juntei à minha reflexão categorias conceituais que indicam a privação física e
forçada do espaço original da cultura política, além do que, aparecem como marcas
emblemáticas de uma história da violência política latinoamericana. Termos como proscrição,
desterro, refúgio, diáspora e exílio, embora não tenham o mesmo significado, ou sejam
enunciados muitas vezes a partir da designação que os próprios sujeitos atingidos atribuem à
sua condição e em seu contexto histórico, em algum momento evocam relações de simetria
porque ensejam a experiência da perseguição, do abandono e expatriação. É de Silvina Jensen
a proposição de revisar a polifonia contida na experiência exilar que atravessa a história
nacional argentina desde o século XIX, para aportar na assombrosa diáspora provocada pela
ditadura militar na década de 1970. No caso de “inimigos públicos” dos regimes, as
designações para a expatriação acabaram por assumir sucessivas readequações no âmbito do
vocabulário político definindo um sistema de referências identitárias negativas: ostracismo,
339
proscrito, desterrado, apátrida, refugiado, perseguido. Evoluímos então, até chegarmos na
337
Ofício n. 131 de 05 de abril de 1978, do ACNUR/PNUD ao Ministério da Justiça e cópia ao Ministério das
Relações Exteriores. Este documento informa aos órgãos da ditadura que Miguel Fernández Long, sua
companheira S. F. e a filha brasileira M. F. L. deixaram o Brasil em 19 de março de 1978 após conseguirem
exílio na Suécia. Cf. Arquivo Nacional – Documentos do Executivo e do Legislativo. Classificação
BR.RJANRIO_TT_O_AVU_0056 , fls. 264-265.
338
FERNÁNDEZ LONG, 2015, s/p. A data de 17 de outubro aposta no documento falso de Fernández Long, é,
de fato, a data de nascimento do militante, no entanto o ano do seu nascimento é 1954. Coincidentemente, essa
data, no “calendário peronista”, seria transformada no “Dia de la Lealtad”, quando milhares de trabalhadores
argentinos ocuparam a Plaza de Mayo a exigir a libertação de Juan Domingo Perón. Na mitologia peronista, a
data corresponde à certidão de nascimento do peronismo. Ver: PLOTKIN, 2007; 2013.
339
JENSEN, 2009, p. 21. Em linha de argumentação semelhante, SZNAJDER E RONIGER (2013, p.19)
261
quintessência nomeadora e estigmatizante dos militantes políticos proscritos, exilados,
assassinados e desaparecidos durante as ditaduras mais recentes: o subversivo. O vínculo da
diáspora argentina de meados da década de 1970 na sua relação com os desterros políticos do
século XIX é que o exílio de 1976 não pode ser entendido senão:
(...) en esta tradición de expulsiones del territorio tradicional producidas bajo
gobiermos autoritarios, dictatoriales y militares que clausuraron la esfera de
acción política, pero también bajo regímenes con ciudadanias restringidas y
ampliadas que no eliminaron mecanismos legales como la relegación, la
deportación o ejercieron la persecución y propiciaron la huida. 340
estudam o exílio como um mecanismo regulador para os sistemas políticos incapazes de criar modelos de
participação plurais e inclusivos: “y pese que el destierro se desarolló como un fenómeno de élite durante el siglo
XIX cuando la participación política era restringida, se volvió una tendencia masiva durante el siglo XX, cuando
las nuevas movilizaciones y una participación más inclusiva desembocaron nuevamente en regímenes
autoritarios”. Na alusão ao século XIX, um dos responsáveis por atribuir status político à condição do exílio foi o
líder liberal Domingo Faustino Sarmiento, perseguido e desterrado pelo governo de Juan Manuel de Rosas
(1793-1877). Nas páginas iniciais do seu clássico texto Facundo, Sarmiento adverte sobre as condições que o
fizeram fugir da Argentina: “Em fins de 1840, saía eu de minha pátria, lastimavelmente desterrado, estropiado,
cheio de hematomas, pontapés e golpes recebidos no dia anterior, numa dessas bacanais sangrentas de
soldadesca e mazorqueiros”. Ver: SARMIENTO, 2010, p. 46.
340
JENSEN, 2010, p. 18.
341
PORTELLI, 2010, p. 22.
342
PORTELLI, 2010, p. 21.
262
compreensão sobre a precocidade pela qual, entre os anos 1960/70, os jovens argentinos de
classe média engajavam-se numa espécie de simbiose de militância social e política:
Nací en una clínica de la entonces capital federal, pero fui inmediatamente
trasladado a mí casa de becar partido de San Isidro. Tuve educación primaria
y secundaria en colegios privados de clase media: San Isidro Labrador, laico;
Santa Isabel, de la orden de los salesianos; Nuestra Señora de Fátima;
religioso pero administrado por laicos. (...) En la Argentina de años 50, 60 y
70 no se “entraba” en política, la política nos atravesaba desde temprano. Se
vivían tiempos signados por la experiencia democratizante del peronismo, no
solo en cuanto al respeto a los mecanismos de la democracia representativa
republicana, sino que democratizante en el sentido de la tradición moderna
revolucionária o asambleísta. 343
Ainda muito jovem e bem antes de ingressar em Montoneros, crescendo numa família
em que o pai era católico e “profundamente antiperonista y humanista”, Fernández Long
conviveu com uma dupla e paradoxal vizinhança: de um lado vivia o brigadeiro Jorge Rojas
Silveyra, notório conspirador antiperonista, e ativo participante no golpe que depôs Arturo
344
Frondizi em 1962. Em outra esquina “vivía Héctor Oesterheld, un geólogo de ideas
anarquistas, y el mayor guionista de historietas de la Argentina, creador del El Eternauta, un
345
símbolo en la Argentina del heróe colectivo”. Esta referência ao paradoxo e, sobretudo, a
Oesterheld não é gratuita nem fugaz. Ela adquire especial significado para a articulação entre
as modalidades “comunitária e pessoal” no âmbito da experiência de Fernández Long.
Oesterheld foi sequestrado e permanece, como mlhares de outros argentinos, desaparecido,
igual a três de suas quatro filhas. A outra filha, Beatriz, foi sequestrada e assassinada pelo
Grupo de Tarefas 2, atuante no CCD (Centro Clandestino de Detenção) de Campo de Mayo:
346
“con el correr del tiempo, sería mí amiga, después mí novia y mí compañera”. Vínculos
católicos – embora matize a formação com a palavra “leigo” –, classe média, e “atravessado
pela política” tal como grande parte da juventude argentina de então, é Miguel Fernández
Long o arquétipo de militante imaginado pela historiografia?
A historiadora Julieta Pacheco argumentou em trabalhos recentes que há uma
confusão entre a origem política dos militantes montoneros – classe média, proveniência do
nacionalismo católico radicalizado pelos eventos pós Concílio Vaticano II e pela interferência
343
FERNÁNDEZ LONG, 2015, s/p.
344
FERNÁNDEZ LONG, 2015, s/p; POTASH, 1980, p. 111-113.
345
FERNÁNDEZ LONG, 2015, s/p.
346
FERNÁNDEZ LONG, 2015, s/p. Além do depoimento, Fernández Long, redigiu gentilmente um documento
que intitulou “Apunte sobre la militancia de Beatriz Oesterheld”, no qual narra, entre a comoção e a lucidez, um
pouco da trajetória pessoal e política de Beatriz: “Sus lecturas, los comienzos y el luche y vuelve”, ressaltando
“Un corazón brillante, una mente lúcida y ética inflexible. Su voz todavía se escucha con claridad”.
263
347
de religiosos nucleados na organização Sacerdotes para o Terceiro Mundo – e os
antecedentes programáticos da organização, optando por uma separação de campos: a
expressão de um programa partidário, segundo a autora, acontece dissociada de possíveis
fenômenos religosos que atuam supostamente como fatores irracionais e/ou emotivos, e que
seriam levados para dentro da organização pelos militantes oriundos do catolicismo. Este fator
acentuado por Pacheco é uma crítica evidente ao trabalho pioneiro de Richard Gillespie, ainda
348
realizado no marco do Proceso. Nesse âmbito, a questão mais atual e frequentemente
problematizada por estudiosos como Julieta Pacheco em suas investigações da história
política sobre Montoneros incide num duplo movimento: 1) reavaliar os modos de
interpretação que a historiografia sobre Montoneros e as memórias de ex-militantes (diga-se,
lideranças) sedimentaram a práxis da organização, e a partir daí; 2) indagar sobre o caráter
político da organização: se revolucionário ou reformista. Essa tensão entre reforma e
revolução, segundo Pacheco, é um dado não resolvido na historiografia precedente, e,
portanto, a autora reivindica a verticalização sobre o que, de fato, expressaria a plataforma
política da organização para a determinação dos aspectos oscilantes ou descontínuos na
relação entre reforma e revolução. O dado trazido por Pacheco, se bem que relevante, não
neutralizaria a dialética presente no imaginário dos militantes quanto à pluralidade de fontes
que agem sobre os modos de categorizar o mundo do discurso político e a práxis do
movimento?
Quatro décadas passadas, Fernández Long reconstrói o labirinto de tendências
poliédricas no qual constitui-se a experiência intelectual do militante:
(...) quizás a los 14 [anos] leí Los Caudillos del historiador radical Felix
Luna, y me identifiqué con los caudillos montoneros, pariticpando en
acaloradas discusiones con mís condiscípulos y profesores, después leí El
diario de Che en Bolívia; El estado y la revolución; Católicos
postconciliares en la Argentina; La introducción a la Crítica de la Economía
Política; El origen de la familia, la propiedad y el estado; El miedo a la
libertad; Escucha Blanco; y Los condenados de la tierra. 349
Talvez a pergunta cabível aqui não seja propriamente o quanto os signos literários, e
mesmo a origem social podem influenciar a adesão a uma causa política – uma vez que nessa
época Fernández Long ainda não havia aderido a Montoneros – , ou até que ponto o
347
Seria operativo pensar na configuração sóciopolítica construída por Gillespie: “Al dar conjuntamente al
catolicismo radical, al nacionalismo y al peronismo una expresión populista de socialismo, los Montoneros
fueron capaces de aglutinar una riqueza de legitimidad histórica en algo que atrajo a los civiles de diversas
denominaciones políticas: católicos militantes, nacionalistas populares, macionalistas autoritarios pero
populistas, militantes de la izquierda tradicional y peronistas combativos”. GILLESPIE, 1987, p. 99.
348
PACHECO, 2014, p. 241-253.
349
FERNÁNDEZ LONG, 2015, s/p.
264
aprofundamento sobre o problema da dualidade reforma/revolução permeia efetivamente ou
determina a práxis do militante; mas interrogar o quanto a experiência intelectual do
indivíduo pode determinar no futuro sua completa disciplina, comprometimento e fidelidade
ao programa – sectário ou não – de uma organização sem ao menos questioná-lo.
Quando finalmente a convicção de Fernández Long o levou a ingressar na organização
no ano de 1971, o primeiro contato foi com a militância nas vilas comunitárias próximas à sua
casa, como integrante da juventude peronista. Em 1973, no contexto “camporista”, precedente
imediato ao retorno de Perón do exílio, o aprofundamento de sua formação é traduzido pelas
práticas que irá exercer em diversas unidades da organização Montoneros. A passagem
obrigatória pelas UB (Unidades Básicas), distribuídas em UB revolucionária, UB de
aspirantes e UB de combatentes foi um esquema vigente no início de sua militância
montonera, até que se chegasse ao esquema clássico de partido de revolução e exército que se
consubstancia na luta armada e no colapso do movimento.
As várias funções exercidas, assim como, o manancial de sentimentos sobre a
necessidade de intensificar a luta armada, já no contexto do Proceso, e, ao mesmo tempo,
deparar-se cada vez mais com a queda dos companheiros, com o desgaste causado pela
clandestinidade, e com a burocratização demasiada da organização, levaram Fernández Long
a duas decisões que desconstroem um sistema de crenças que considera o militante
mergulhado na disciplina e obediência militarizadas. Ou seja, as prescrições morais, tanto
provenientes da historiografia e das memórias, como salienta Esteban Campos, são
350
insuficientes para explicar a permanência do militante à organização. Em 1977, com sua
deserção da luta armada, resolve refugiar-se no Brasil, empregando o país como porta de
acesso ao exílio europeu. Em 1979, já no exílio, e junto a outros companheiros, produz o
documento “Reflexiones para la construcción de una alternativa peronista montonera
auténtica”, que marca sua saída da organização, depois de seis anos de militância.
No refúgio brasileiro:
Hacia fines del 77 vivíamos en San Pablo yo trabque a su vez los
conocióajaba en la “Livraria Zapata” el gerente de la librería era Helio
Muniz, y los dueños eran dos, Luiz Clauset era uno y el otro no recuerdo,
ellos habían participado de movimientos armados. Yo los conocí por mí
suegra que a su vez los conoció viajando a Paraguay en omnibus, ellos iban a
pasear y ella a cumplir el trámite de salir del país para obtener otra visa de
turista por seis meses. Todos sabían que yo estaba clandestino, que podía no
solo ser blanco de los servicios sino complicarlos a ellos y sin embargo me
dieron el mejor trabajo que tuve y nos contuvieron con su amistad. 351
350
CAMPOS, 2013, pp. 8-9.
351
FERNÁNDEZ LONG, 2015, s/p.
265
A intervenção de dois companheiros de militância, Abel Madariaga e Arnaldo Lizaso,
e a gestão do ACNUR junto ao Ministério de Relações Exteriores da Suécia favoreceram a
Fernández Long para que este país aceitasse seu exílio. Autores como Elda González
Martínez afirmaram que a Suécia possuía uma ampla estrutura para a recepção de exilados
latinoamericanos, além de uma política de integração projetada pela social-democracia sueca
que vinha desde a década de 1960. Tal política tinha especial atenção na ocupação laboral dos
exilados e na manutenção dos seus referentes culturais, porém, buscando uma articulação com
os referentes locais, como idioma e hábitos. 352
Como acontece essa experiência na perspectiva de Fernández Long, sabendo que suas
“errâncias” como militante político no exílio europeu continuaram? Foram comuns as
tratativas dos exilados políticos argentinos com as organizações de direitos humanos
internacionais, e, sobretudo, com as várias organizações de familiares de
detidos/desaparecidos constituídas na Europa. Desqualificados tanto pela ditadura militar
quanto por órgãos da imprensa comprometidos com o regime como antiargentinos, traidores,
e subversivos agindo desde o exterior, os exilados, mesmo aqueles não vinculados
formalmente com as organizações de direitos humanos, empenharam-se na denúncia da
repressão e das violações. Fernández Long participou de vários debates e conferências cujo
principal tema era o apoio às demandas pelos detidos/desaparecidos, porém, apenas colaborou
com estas organizações sem estar ligado oficialmente a nenhuma delas. Houve intensa pressão
para que a ditadura militar respondesse aos questionamentos efetivados pela CIDH (Comissão
Interamericana de Direitos Humanos) e Comitês espalhados pela Europa repercutiam as
demandas de exilados pelas ditaduras de países latinoamericanos, presos sem processo, e
familiares de desaparecidos, tais como: Comité de Defensa de Presos Políticos de Chile
(CDPPCH), CADHU (Comisión Argentina de Derechos Humanos); Comité Francia-Brasil,
Cristianos Latinoamericanos.
No retorno do exílio, Fernández Long, gradativamente retomará suas lutas por justiça
e reparação. Depois de 2005, quando a Corte Suprema da Nação votou pela
imprescritibilidade dos crimes cometidos pelos agentes civis e militares da ditadura, e,
igualmente, derrogou as leis de anistia do período de Alfonsín, e os vergonhosos indultos de
Menem, Fernández Long irá reconstruir sua experiência em outra esfera: como querelante nos
processos de ajuizamento dos criminosos da ditadura. Em 13 de abril de 2015, prestou
declaração testemunhal junto ao Poder Judicial de La Nación da cidade de San Martín no
352
MARTÍNEZ, 2009, p. 13.
266
Processo do CCD (Centro Clandestino de Detenção) de Campo de Mayo, campo de
confinamento e extermínio no qual sua companheira, Beatriz Oesterheld, depois de
sequestrada em 19 de junho de 1976, permaneceu presa e dias depois, nos arredores do
Arsenal Esteban de Luca, foi abatida por seus algozes, em simulação de um enfrentamento
armado.
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WALSH, Rodoldo. Operação massacre. Tradução. São Paulo: Companhia das Letras,
268
O LUGAR DO RELATO DE VIAGENS NA HISTÓRIA DA LITERATURA
Maria Elizabeth Chaves de Mello -Universidade Federal
Fluminense/CNPq/FAPERJ _ Professora Titular
Lendo esses textos, podemos afirmar que, no século XVI, os projetos de França
Equinocial e França Antártica, a fascinação pelo pau-brasil e pelos costumes indígenas, fazem
do Brasil o « avesso da Europa ». O Brasil é e tem tudo o que a Europa não é, ou tudo o que
ela não tem. Diante dos índios brasileiros levados a Rouen e exibidos na corte como selvagens
e exóticos, Montaigne se inspira e escreve uma das páginas mais importantes sobre o homem
natural, o ensaio Os canibais, em que ele questiona o epíteto de « selvagens », dado a esses
índios, e afirma sua superioridade sobre o europeu, dito « civilizado ». Estavam lançadas as
bases das teorias sobre a bondade natural do homem, o bon sauvage.
Após o fracasso da colonização no Brasil, durante muito tempo, a França voltará o seu
olhar sobre o hemisfério norte. É o tempo dos aventureiros na América do Norte, da
colonização na América Central e na África. O Brasil é constantemente saqueado por piratas
franceses e ingleses, mas só retomará um lugar no imaginário francês durante o século das
luzes.
De fato, no final do século XVIII, a Europa tornara-se maníaca pelas viagens, pelo
encontro com o outro, alargando a cada dia o seu objeto de interesse, estudo e reflexão. Ora,
entre essas novas possibilidades que se ofereciam ao Velho Mundo, a América era um dos
lugares preferidos para a difusão das luzes, o lugar de teste e prática das doutrinas sobre o
homem primitivo e a sociedade civilizada. Assim, a França lança-se às missões científicas,
que, sob pretexto de explorações do solo, do clima, da latitude e longitude, do estudo dos
povos, da fauna e da flora, vão muito mais longe, no sentido de buscarem garantir a irradiação
354
LERY, 1994 : 210-211
270
das ideias do Iluminismo. Cumpre lembrar que esses cientistas viajavam todos, ou quase
todos, em missão do governo, com o compromisso de publicarem os seus relatos, de retorno à
metrópole. Estes textos, escritos na volta à França, reforçavam a utopia do homem natural,
representado pelo indígena. Mas o mito do bon sauvage é ambíguo, servindo tanto a
religiosos quanto a ateus: aos primeiros, como base de crítica à moral da civilização do século
XVIII, apresentando-lhe o selvagem como isento de todos os vícios e defeitos dessa
sociedade; por sua vez, os cientistas livres pensadores, não religiosos, servem-se também dos
índios para provarem a superioridade do homem natural, baseada no instinto e na razão.
Acrescente-se a isso um outro elemento, pois alguns viajantes falam de seres repulsivos,
antropófagos e ferozes e teremos o selvagem ora bom, ora mau, dando respaldo a agnósticos e
religiosos, e o Brasil torna-se, ao mesmo tempo, um paraíso natural a ser preservado e um
mundo primitivo que deve ser ‘civilizado’.
Se os primeiros viajantes a escreverem textos sobre o Brasil eram franceses, religiosos
(Thevet, católico; Léry, protestante), narrando a cena da tentativa de colonização francesa do
país segundo o ponto de vista de suas respectivas crenças, será também um outro francês,
Charles-Marie de la Condamine, cientista e escritor, que reintroduzirá o Brasil na cena da
literatura mítica, quando a região havia caído no esquecimento, após o fracasso da tentativa de
Villegagnon. Em abril de 1735, La Condamine é encarregado, pela Académie des Sciences,
de organizar uma expedição ao Peru, para medir o comprimento de um arco de meridiano
perto do equador. Ele desce o Amazonas (é o primeiro cientista a fazê-lo) e chega até Caiena.
Em relação à ciência, essa viagem é importante, pois permite a primeira descrição do quinino,
assim como a descoberta da borracha e do curare. Na sua volta a Paris, em 1745, La
Condamine leva mais de duzentos objetos de história natural. Esse viajante nos fornece, no
seu relato,muitos elementos de reflexão, ao falar dos índios amazonenses:
Creio ter reconhecido em todos uma mesma característica, cuja base seria a
insensibilidade. Deixo em aberto se devemos honrá-la com o nome de apatia,
ou aviltá-la, com o de estupidez. Provavelmente, ela nasce do número
reduzido de suas ideias, que não vão muito além de suas necessidades.
Glutões até a voracidade, quando têm com o que se satifazer ; sóbrios,
quando a necessidade a isso os obriga, chegando até a ficarem sem nada,
parecendo nada desejarem ; pusilânimes e poltrões em excesso,se não forem
tomados pela bebedeira ; inimigos do trabalho, indiferentes a qualquer
motivo de glória, de honra ou de reconhecimento, ocupados apenas com o
objeto presente, e sempre por ele determinados ;sem preocupação com o
futuro ; incapazes de previsão e de reflexão sobre qualquer coisa ; quando
nada os perturba, entregam-se a uma alegria pueril, manifestada por saltos e
gargalhadas imoderadas, sem sentido e sem objetivo ; passam a vida sem
pensar e envelhecem sem sair da infância, da qual conservam todos os
defeitos355.
Esse encontro com os índios, que ele descreve como apáticos e estúpidos, sem
vontade, pusilânimes e covardes, nos remete às idéias de Montesquieu sobre o efeito do clima
nos habitantes das regiões quentes. Autêntico leitor e herdeiro da teoria dos climas do
philosophe, La Condamine interesssa-se pela questão dos escravos, pela mistura das raças,
pelos costumes nas cidades e povoados onde pernoita, sempre com um olhar minado pelo
355
LA CONDAMINE: - Relation abrégée d’un voyage à l’intérieur de l’Amérique Méridionale.
Depuis la côte de la mer du Sud, jusqu’aux côtes du Brésil et de la Guiane, en descendant la
rivière des Amazones, lue à l'assemblée publique de l'Académie des sciences, le 28 avril -
1745, pp. 52-53
271
preconceito, pelas leituras prévias que fizera, fornecendo material rico para estudar aquele
momento no Brasil, mas, também, e principalmente, para refletirmos sobre o olhar
estrangeiro, herdado do pensamento iluminista francês, sobre a nação que se formava. Esta
passagem nos fornece muito material de discussão, já que se trata de um olhar negativo,
diferente do bon sauvage, a que a literatura de viagens nos acostumara, desde o texto citado
de Jean de Léry. Trata-se aqui do selvagem, habitante de clima quente, com as características
que Montesquieu descrevia, para esses homens : a moleza, a malandragem, a pouca aptidão
para o trabalho serão o seu traço mais forte.
Com a citação acima, torna-se clara a confirmação da hipótese inicial, ou seja, da
ambiguidade do olhar europeu sobre as terras americanas, ora vistas como um lugar
paradisíaco, ora como o lugar da indolência e da crueldade, ora como o lugar ideal para a
difusão das luzes (tema presente em todos esses autores viajantes).
No entanto, poucas páginas antes, no seu relato, La Condamine trata de um Brasil do
rio e da floresta, da Amazônia, onde o viajante procura, sem encontrá-las, as mulheres
guerreiras da mitologia. A narrativa interessa-se pouco pela população, debruçando-se mais
sobre a mineralogia, a fauna e a flora, num relato pretensamente científico, fonte eventual de
lucros coloniais. O homem entra como parte do cenário majestoso e é o último, na ordem de
elementos descobertos:
Um novo mundo, afastado de todo comércio humano, num mar de água
doce, no meio de um labirinto de lagos, rios e canais que penetram, em todos
os sentidos, numa floresta imensa que só se alcança através das águas. Eu
descobria novas plantas, novos animais, novos homens356.
Assim, ao longo dos séculos XVIII e XIX, muitos viajantes escrevem sobre o
Brasil :La Condamine, Ferdinand Denis, Saint-Hilaire, Francis de Castelnau, Adèle
Toussaint-Samson e muitos outros falam de um paraíso natural, o lugar dos selvagens, da
ambição, da crueldade etc. Escolhemos, para estudar um pouco mais atentamente, dois desses
autores, considerando que os seus textos são bons exemplos desse paradoxo – sociedade
má/natureza boa (leitores de Rousseau ?) : Francis de Castelnau, cientista que esteve durante
quatro anos no país, a trabalho, e Adèle Toussaint-Samson, escritora que viveu no Rio de
Janeiro durante doze anos. Francis de Castelnau ficou no país de 1843 a 1847. Sua narrativa
de viagem contém seis volumes. O texto descreve uma parte do Brasil, bem como a
sociedade brasileira da primeira metade do século XIX, seus costumes e hábitos, assim como
a relação dos europeus com os índios e escravos, a condição da mulher, a cidade e o campo, a
floresta, os animais, o diálogo ou a falta dele entre a Europa e o Brasil, o imperador, a
aristocracia urbana e rural etc. Considerando a vastidão de estudos a que isso dá ensejo, assim
como o desconhecimento do autor sobre o Brasil, a leitura da obra é preciosa para o estudo
que realizamos sobre as relações França/Brasil.
Percebe-se que a narrativa de viagem apropria-se do ritmo e das técnicas da narrativa
histórica, para recriar a cor local, através de um olhar testemunha, subjetivo. O relato da
viagem de Francis de Castelnau sobre o Brasil e a América do Sul apresenta-nos a
oportunidade de refletir sobre até que ponto um texto pretensamente científico pode nos levar
a pensar no que é literatura, questão que está na base de todas as nossas pesquisas. O
356
Idem, p. 47
272
entusiasmo de Castelnau pela América do Sul revela-se em muitos momentos, mas é sempre
em relação à paisagem natural, ao aspecto primitivo do Brasil e da América do Sul :
Poucos lugares se oferecem à imaginação com tanto prestígio quanto a
América do Sul; enquanto a parte setentrional desse continente perde a cada
dia seu caráter primitivo, para ser substituída pelas maravilhas da indústria
moderna, a parte do Sul, ao contrário, conserva ainda hoje o selo da
natureza virgem: nada de estradas de ferro, nem de canais, nem, muitas
vezes, estrada nenhuma, mas, em toda parte, admiráveis florestas virgens,
rios, cuja extensão é sem limites, montanhas cujos cumes gelados se perdem
além das nuvens, nações selvagens, para as quais até o nome da Europa é
desconhecido.357
No entanto, ao retratar a sociedade brasileira, ele o faz com as cores mais sombrias, como
podemos ver, em descrições de cenas da vida social :
..foi com uma viva contrariedade que recebemos o convite oficial para fazer
parte de uma procissão que, no dia de Santo Antônio, devia percorrer a
cidade. Nos países tropicais, é uso celebrar tais festas após o por do sol;
mas, em Mato Grosso, por uma estranha exceção, elas acontecem quando
esse astro lança os seus raios mais ardentes. Com efeito, ao amanhecer,
fomos despertados por um barulho horrível de sinos, tambores, trombetas,
fogos etc, acompanhamento indispensável de todas as festas brasileiras; logo
vieram nos buscar para irmos almoçar no palácio e, de lá, à capela de Santo
Antonio. Esta é pequena, mas, pelo menos, desprovida dessa quantidade de
enfeites de mau gosto que, normalmente, se acumulam nas igrejas desse
país...359
357
Bulletin de la Société de géographie, 1847, tome 8, n° 43-48
358
CASTELNAU, Francis de . Expédition dans les parties centrales de l’Amérique du Sud, de Rio de Janeiro à
Lima, et de Lima au Para, exécutée par ordre du gouvernement français pendant les années 1843 à 1847. Paris :
Bertrand Libraire Éditeur, 1851, vol. 3, p. 205.
359
Idem, pp. 69-70
273
na memória, ao afirmar, desde o início da obra, que ele perdeu uma grande quantidade de suas
anotações de viagem.
Mas é também muito instigante apresentar aqui uma mulher francesa, Adèle
Toussaint-Samson. Cumpre observar que ela se distingue de outras mulheres viajantes que
escrevem sobre o Brasil, pois, ao chegar ao Rio de Janeiro, já escrevera livros na França.
No seu relato sobre o Brasil, propõe relatar a vida quotidiana do século XIX, durante os doze
anos passados no país, onde ela veio « faire fortune, ou faire l´Amérique ». O livro foi
lançado em Paris em 1883, com o título de Une parisienne au Brésil e traduzido no Brasil no
mesmo ano. Gostaríamos de aprofundar o estudo da diferença desse olhar feminino, no
intuito de questionarmos se há, efetivamente, mudanças de visão na narrativa de uma mulher.
Adèle termina o seu prefácio pedindo o julgamento do público leitor :
Cabe ao público me dar a sua opinião, e julgar, em última instância, se
tive razão de tirar esse livre do fundo da minha escrivaninha, onde o
havia relegado, e esperar que esses quadros dos costumes brasileiros,
absolutamente verdadeiros, poderão ter algum interesse para os meus
compatriotas. É o meu desejo, e peço também aos brasileiros que os
acolham bem; pois, embora eles possam não acreditar, eles foram
escritos por uma pena imparcial, mas amiga.360
Essa passagem do livro já nos apresenta muitos elementos de reflexão, pois a autora,
de volta à França há muitos anos, ignora o trabalho do imaginário associado à memória, que
estaria implícito no seu relato. As expressões « absolument vraies » e « plume impartiale »
trazem uma conotação positivista, muito adequada ao momento de publicação do texto. Antes
de ser publicado em livro, o relato surge em forma de novela, simultaneamente no Jornal do
Comércio, no Brasil e no Figaro, em Paris, onde nascera em 1826, filha caçula de
Joseph-Isidore Samson, ator, professor de teatro e autor de peças de teatro de sucesso. Ela
fora educada em um meio progressista e liberal, em contato com pessoas de teatro, das letras e
do mundo artísticco em geral. Daí a sua perplexidade diante dos temas e da futilidade das
conversas nos salões do Rio de Janeiro :
Eu, que acabava de sair do meio artístico de Paris, e estava habituada
a ouvir debaterem sobre todas as questões sociais, políticas, literárias e
artísticas nos salões do meu pai, fiquei muito espantada, na minha
chegada ao Rio, com essa falta absoluta de prática de conversa. (idem,
p. 194)
Embora arrogante, a observação justifica-se pela sua historia de vida e oferece-nos
uma visão da sociedade brasileira daquele momento. Habituada à sofisticação do meio
artístico parisiense, ela fica impressionada com a reclusão das mulheres brasileiras, que
raramente saem de casa e não sabem nem mesmo manter uma conversa nas festas, por falta de
prática. Antes de embarcar para o Brasil, com a idade de vinte anos, Adèle se casara, na
França, com um dançarino de teatro, Jules Toussaint. Embora fosse filho de francês e com
nacionalidade francesa, ele nascera no Brasil. Depois da revolução de 1848, a vida em Paris
se tornara difícil para os profissionais do meio artístico, que necessitavam de um público
espectador. Após o nascimento do primeiro filho, o casal viaja para o Brasil com o intuito de
faire l’Amérique, a convite de um tio de Jules Toussaint. Naquela época, viviam no Rio de
360
TOUSSAINT-SAMSON, Adèle: Une parisienne au Brésil. Paris, P. Ollendorf, 1883, p. XI. Disponible sur
http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k5747774p/f19.zoom
274
Janeiro muitos franceses, artistas, alfaiates, cabelereiros, professores de francês e de outras
disciplinas, lecionando inclusive o piano e a dança.
Quando o casal desembarcou no Brasil (entre 1849 e 1850), Adèle já havia publicado
dois textos na França : Essais: d’après une note manuscrite e um Livre de Poésie de Mlle.
Adèle Samson, nos quais podemos constatar seu talento para a escrita. O casal encontrou no
Rio uma cidade devastada e aterrorizada pela febre amarela, que fazia grandes estragos.
Assim que chegaram, ambos foram contaminados pela doença. No entanto, a partir de 1851, o
nome de Jules Toussaint já figura no Almanaque Laemmeert, como professor de dança e,
dois anos após, encontra-se ali também o nome de Madame Toussaint, como professora de
francês e de italiano, no mesmo endereço que o marido. Algum tempo depois, Jules torna-se
professor de dança da família imperial, nomeado por D. Pedro II. Para Adèle, mulher
obrigada a sair na rua sozinha para trabalhar, francesa, a vida era bem mais difícil, conforme
ela nos deixa entrever :
Como as brasileiras não saíam nunca sozinhas nas ruas, nessa época,
só se via, na cidade, francesas ou inglesas, que, só pelo fato de saírem
sozinhas, viam-se expostas a muitas aventuras: “É uma Madame”,
diziam sorrindo os brasileiros, o que significava uma francesa e
subentendia uma petite dame; porque a exportação de nossas petites
dames para o estrangeiro não é uma das partes menos importantes de
nosso comércio. (Idem, p. 164) 361
Quanto às brasileiras, enclausuradas por seus esposos no fundo das
casas, em meio aos filhos e escravas, só saindo acompanhadas para
irem à missa ou às procissões, não se pode crer que fossem, por isso,
mais virtuosas do que outras. Simplesmente, elas assim o parecem.
(Idem, p.164).362
Nessas passagens do texto, vale observar a reclusão a que eram condenadas as
brasileiras, impedidas de saírem na rua. Uma reclusão imposta, artificial, hipócrita. Vítima de
preconceitos, por ser francesa e por sair sozinha nas ruas, diferente das mulheres do país, a
vida de Adèle é difícil no Rio de Janeiro. Segundo ela, a importação de prostitutas europeias
era muito grande, naquele momento no Brasil, o que fazia com que toda mulher que chegasse
do Velho Mundo fosse vista com desprezo e desconfiança. Principalmente se saísse sozinha
para trabalhar. Sofrendo com esse preconceito, Adèle apresenta a contrapartida dessa
situação, no olhar sobre as negras escravas, cuja nudez a choca e escandaliza. Temos, então,
uma ambiguidade interessante, pois a vítima dos preconceitos revela-se, por sua vez,
preconceituosa. O paradoxo consiste na situação de uma francesa, educada no meio artístico e
intelectual parisiense, sofisticada e liberal, ser vista com desprezo, considerada uma cortesã
pela sociedade brasileira, pelo fato de ser estrangeira, de trabalhar e sair na rua. No entanto,
ela mesma, diante do outro, vê as negras com suas vestimentas e costumes diferentes dos
europeus e demonstra o mesmo preconceito que os brasileiros, que a tratam de « Madame ».
Nada existe de mais depravado do que essas negras minas: são elas
que pervertem e envenenam a juventude do Rio de Janeiro.363
361
Idem, p. 164
362
Idem, p.164
363
Idem, p. 47
Mina deriva de negro-mina, de São Jorge da Mina, denominação dada aos escravos procedentes da
275
As negras são impudicas, ardentes e assustadoras, do mesmo modo que ela é
considerada « cortesã » pelo fato de ser diferente. Apesar da educação liberal que recebera,
Adèle revela-se pudica, quando se refere à nudez, à exibição do corpo, tanto das negras,
quanto das mulheres brancas europeias. Mas o que é mais assustador é a escravidão, descrita
com crueza, quando ela conta sua estadia em uma fazenda do estado do Rio :
Foi ali que as misérias da escravidão surgiram para mim em toda a sua
hediondez. Negras cobertas de farrapos, outras seminuas, tendo como
única vestimenta um lenço amarrado atrás do pescoço e sob os seios,
que escondia apenas a garganta, e uma saia de índia, cujos rasgões
deixavam ver seu pobre corpo descarnado; negros de olhar selvagem
ou abobalhado vieram se colocar de joelhos no piso da varanda.
(Idem, p.104) 364
À medida que o texto avança, percebe-se uma mudança no olhar da francesa sobre a
mulher negra. De repente, a nudez não está mais relacionada à falta de pudor, mas à miséria
da escravidão, o que a espanta mais no Brasil, naquele momento. Assim, o olhar outrora
arrogante da escritora europeia fica cheio de solidariedade diante das vítimas de um sistema
que ela recusa e critica. Desde o relato de sua chegada no Brasil, a crítica da escravidão está
presente na voz da narradora. Oriunda de Paris, então o centro da « civilização », e de uma
família de artistas, Adèle possuía um olhar avançado e moderno sobre a escravidão,
participando de discussões sobre inúmeras questões, inconcebíveis até entre as mulheres
europeias de meios menos evoluídos. Isso faz com que ela interfira no apartamento de uma
vizinha, que surrava as escravas por tudo e por nada. Ela narra essas interferências com muito
bom humor, e ridiculariza os resultados : a vizinha passa a amordaçar as escravas, para que os
seus gritos não cheguem à vizinhança. Haveria muitos outros episódios a contar, percebe-se
que o olhar feminino é mais rigoroso do que o masculino, pois Adèle denuncia a escravidão
de maneira muito mais aguda e crítica do que a maioria dos viajantes do sexo masculino,
desgostando-se e sofrendo, diante das cenas de violência e crueldade com os escravos. A
sociedade brasileira é apresentada por ela de maneira bem negativa : selvagem, despudorada,
vulgar.
No entanto, ao voltar à França, Adèle reproduz as atitudes clichés dos viajantes,
quando valoriza a natureza, que ela vai eleger como o máximo de valor positivo no Brasil :
Quantas vezes senti falta desses imensos horizontes que alargam a
alma e o pensamento; meus banhos de mar à luz do luar na praia
fosforecente; minhas corridas a cavalo na montanha; aquela baía
esplêndida, para a qual davam as janelas da minha casa, e onde, à
noite, barcas de pescadores passavam agitando suas tochas sobre as
ondas.... Prefiro os países onde a vida é maior, onde o ar e o sol não
são contados, onde não se corta uma fruta em quatro, onde se toma
banho todos os dias, e onde, por quase nada, pode-se comprar , não
um pedacinho de terra, mas léguas de terreno....(Idem, pp. 216-
217)..365.
“costa situada a leste do Castelo de São Jorge da Mina” (Verger, 1987: 12) , no atual República do Gana,
trazidos da região das hoje Repúblicas do Togo, Benin e da Nigéria, que eram conhecidos principalmente
como negros mina-jejes e mina-nagôs.
364
Idem, p.104
365
Idem, pp. 216-217
276
Ao ler esses viajantes, constatamos o que já suspeitávamos desde o início do nosso
trabalho: que o Brasil é um mito paradoxal para os franceses, na modernidade, servindo como
base de crítica à moral da civilização, pelo fato de oferecer o espetáculo da superioridade do
homem natural. O mito de um mundo novo a ser preservado, um mundo primitivo que deve
ser civilizado... E onde o imaginário tem o seu lugar... Esse imaginário surgido dessa visão
ambígua dos viajantes europeus será responsável pela imagem que os brasileiros fazem de si
mesmos, ainda hoje. E que estão na base de muitos temas nas obras literárias, teatrais e
cinematográficas do Brasil, ainda hoje. Daí a importância de ler e estudar esses textos na
História da Literatura, para uma melhor compreensão da formação da nacionalidade
brasileira, através do olhar do outro.
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278
A OBRA QUE REFLETE A VIDA – APOLÔNIO ALVES DOS SANTOS
Este artigo é parte da pesquisa realizada para o projeto de mestrado apresentado e aceito no
Programa de Pós Graduação em História. O trabalho foi realizado com base nas pesquisas de campo
relatadas neste artigo e tiveram por principal objetivo refazer e tornar conhecimento a trajetória de
vida do poeta cordelista Apolônio Alves dos Santos. A pesquisa realizada não tem cunho biográfico,
no entanto reconhecemos que para melhor compreender a obra do artista se faz necessário o
conhecimento de sua vida e os percursos trilhados. Em um âmbito mais geral o projeto desenvolvido
ao longo do curso de mestrado, tem por objetivo geral o estudo da conjuctura política e econômica
durante as décadas de 70, 80 e 90, no entanto para está comunicação apresentaremos apenas o
resultado da investigação realizada para descobrir a história de vida do cordelista.
Sereno, introspectivo e observador. É assim que Apolônio Alves dos Santos é descrito
pelos colegas cordelistas que vendiam folhetos de cordéis no Rio de Janeiro com ele. Nasceu
em 20 de setembro de 1926, em Serraria – PB, porém cresceu na cidade de Guarabira – PB,
com seus pais Francisco Alves dos Santos e Antônia Maria da Conceição366. Muito jovem,
começou a ajudar o pai no trabalho do campo, porém tinha um forte desejo de estudar. Apesar
do desejo, cursou apenas até a segunda série do Ensino Primário, o que lhe possibilitou
aprender a ler e escrever.
Desde cedo, Apolônio dos Santos interessou-se pela arte de fazer rimas e contar
histórias, dizia que seu pai tinha um pouco de talento com a poesia e por isso levava sempre
folhetos para o filho ler para sua mãe e irmãs nas festas (SLATER, 1984, p. 128). Com
366
O Nordeste. Enciclopédia Nordeste. Apolônio Alves dos Santos. Olinda: [s. d.]. Disponível em:
<http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Apol%C3%B4nio+Alves+dos+S
antos<r=a&id_perso=1241>. Acessado em: 09 mar. 2015.
367
SANTOS, Apolônio Alves dos. O Encontro do Cangaceiro Vilela com o Negrão do Paraná. Rio de Janeiro.
[s.d.] p. Quarta capa.
279
dezoito anos, escrevia estrofes completas e rabiscava seus primeiros folhetos368. Não demorou
muito para concluir seu primeiro romance, com o título de Maria Cara de Pau e o Príncipe
Gregoriano, que encontra-se disponível para consulta no acervo da Fundação Casa de Ruy
Barbosa e na Biblioteca Átila Almeida – UEPB. Como não tinha condições financeiras para
editar e publicar o romance, vendeu-o a José Alves Pontes, em 1948, e no ano seguinte foi
realizada a publicação do folheto369.
Aos vinte quatro anos e sem muita perspectiva em Guarabira, Apolônio dos Santos
resolveu sair de seu município rumo à cidade do Rio de Janeiro. Assim como muitos
nordestinos, vivenciou a difícil vida de quem morava na região nordeste do país, sem muita
esperança de futuro ou mesmo qualidade de vida. A cidade de Guarabira, entretanto, nunca
esteve entre as regiões do Nordeste mais sofridas em decorrência da seca, muito pelo
contrário, era conhecida como Rainha do Brejo, por estar próxima da Microrregião do Brejo
Paraibano. Também auferiu esse nome por ser uma referência econômica e política na região,
e pelo grande volume de chuva que sempre recebeu.
Embora Guarabira estivesse a apenas 98 km da capital do estado, João Pessoa, esta
nunca foi uma opção para Apolônio dos Santos. Ele queria algo que pudesse lhe oferecer
maiores e melhores perspectivas. A partir das leituras dos cordéis, percebe-se que as poucas
condições de vida oferecidas pelos pais, as limitações políticas e econômicas de Guarabira e
as prováveis oportunidades que o Sudeste poderia fornecer foram fatores que impulsionaram
Apolônio dos Santos a, em 1950, decidir migrar para o Rio de Janeiro.
Ao chegar à grande capital, logo começou a trabalhar, exercendo diversas profissões
como pedreiro, ladrilheiro na construção civil e porteiro de edifício. Porém, não conseguiu
desenvolver de forma significativa sua carreira como poeta, pois a vida nos canteiros de obra
era difícil e fatigante.
Apolônio dos Santos continuou alargando seus horizontes. Em 1959, seguiu para
Brasília, onde estava sendo construída a nova capital do Brasil. Em meio às construções e
ainda com a função de pedreiro, o poeta aperfeiçoou seus versos e começou uma produção um
pouco mais expressiva. Agora não apenas trabalhava nos canteiros de obra, mas também
368
SANTOS, Manuela Fonseca dos. Le DVD : une nouvelle technologie au service de l'édition de la littérature
populaire brésilienne. Revista: Escritural Ècritures d’Amérique latine. N°02, dècembre 2009, Issn n°2102-5797.
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poitiers.fr/crla/contenidos/ESCRITURAL/ESCRITURAL2/ESCRITURAL_2_SITIO/PAGES/Fonseca.html#t3>
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369
O Nordeste. Enciclopédia Nordeste. Apolônio Alves dos Santos. Olinda: [s. d.]. Disponível em:
<http://www.onordeste.com/onordeste/enciclopediaNordeste/index.php?titulo=Apol%C3%B4nio+Alves+dos+S
antos<r=a&id_perso=1241>. Acessado em: 09 mar. 2015.
280
produzia e vendia seus folhetos de cordéis. Com o término da construção, em 21 de abril
1960, Brasília foi inaugurada e Apolônio dos Santos escreveu o folheto A construção de
Brasília e sua inauguração, que esgotou rapidamente370. Diferente da maioria dos
trabalhadores, que fixou residência nas cidades-satélites do Distrito Federal, resolveu voltar
para o Rio de Janeiro – contando então com uma estrutura financeira melhor para dar
continuidade à sua carreira como poeta cordelista.
Na capital fluminense, conheceu Dona Enedina Silva Martins, que também havia
migrado do Nordeste para o Rio de Janeiro com o intuito de trabalhar. Durante anos, ela foi
funcionária da empresa Casa da Borracha, em que também se aposentou371. Apolônio dos
Santos casou-se oficialmente em 1968 com Dona Enedina, que passou a carregar o sobrenome
do esposo, Enedina Silva dos Santos. Viveram juntos até os últimos dias de vida do poeta 372.
Juntos moraram durante anos no bairro Benfica, região próxima a sede do 16° Distrito
Policial, onde as casa são improvisadas, sem organização, asfalto, saneamento, e onde
residiam outros nordestinos, trabalhadores, operários, pobres (SLATER, 1984, p. 127).
Como o casal não teve filhos, encontrar informações a respeito da vida particular
tornou-se um grande desafio para este trabalho de pesquisa; porque em geral, após a morte do
cordelista, os filhos cuidam de manter as memórias, documentos, dados que podem ser
disponibilizados ao pesquisador. Esse não foi o caso de Apolônio dos Santos; que, contudo,
deixou informações biográficas em seus próprios escritos. No folheto O divórcio no Brasil,
por exemplo, ele revela que, mesmo de maneira informal, havia passado por uma convivência
conjugal antes de conhecer Dona Enedina. Ele diz “casei-me novamente” e nos versos
anteriores conta que, antes de migrar para o Rio de Janeiro, vivera outro relacionamento e que
não havia sido muito feliz. Após sua viagem ficou sabendo por carta de sua irmã que a mulher
também teria ido embora para outras “bandas” 373.
Logo após a inauguração de Brasília, Apolônio dos Santos voltou para o Rio de
Janeiro onde se estabeleceu e passou então a priorizar sua carreira, dedicando se
exclusivamente à produção de cordel. O poeta fazia questão de participar de todo processo de
produção, publicação e divulgação de suas obras. Ele era perfeccionista na construção poética,
em especial, na métrica. Sua sobrinha, Sr.ª Maria José, conta que os dicionários eram os
370
BELIZARIO NETO, Manuel Messias. Cordel Paraíba. Cordelista paraibano póstumo APOLÔNIO ALVES
DOS SANTOS. Paraíba: 2010. Disponível em:<http://cordelparaiba.blogspot.com.br/2010/06/cordelista-
paraibano-postumo-apolonio.html.> Acesso em 09 mar. 2015. Até o momento o folheto sobre a inauguração de
Brasília não foi encontrado em nenhum nos principais acervos de cordéis.
371
SILVA, Gonçalo Ferreira da. Entrevista a autora. Rio de Janeiro: 26 nov. 2014.
372
SILVA, Maria José da. Entrevista a autora. Campina Grande: 27 fev. 2015.
373
Idem.
281
grandes companheiros no momento da escrita. A composição, a revisão ortográfica e a
métrica eram extremamente importantes para Apolônio dos Santos, e os poetas que até os dias
atuais ao se referirem a ele logo o caracterizam pela exigência e por ser meticuloso. Esta é
uma das características do poeta que escreve o folheto de cordel e que se difere do poeta
cantador, a pesquisadora Rosilene Melo aponta essa distinção:
No início da sua carreira de poeta, Apolônio dos Santos não tinha máquina de
datilografar, assim, escrevia seus versos em folhas de papel pautado. Somente na década de
70 adquiriu sua máquina de datilografia. Os originais eram enviados para a gráfica, o editor
fazia a correção e reenviava para o poeta, que novamente corrigia. Nesse processo, o poeta
374
Mote é a repetição de dois ou quatro versos no final de cada estrofe. Ver: ALMEIDA, Átila Augusto de.
SOBRINHO, José Alves. Dicionário bio-bibliográfico de repentistas e poetas de bancadas. João Pessoa: Editora
Universitária, 1978.
375
SANTOS, Apolônio Alves dos. O Bom Tempo Não Volta Mais. [s.d.], p. 01.
282
contatava o xilógrafo e lhe entregava o poema completo para que lhe servisse de inspiração
para criar a xilogravura que iria compor a capa.
Os principais locais de edição e impressão dos folhetos de Apolônio dos Santos foram
a Gráfica e Editora Dantas Ltda., Luana Artes Gráficas e Editora Ltda. E a Tipografia Pontes.
Desses locais, a Tipografia Pontes foi a que mais publicou folhetos do poeta, a partir da
década de 1970. Ela pertencia a José Alves Pontes, que acompanhou Apolônio dos Santos
desde o início de sua carreira. As outras duas gráficas citadas publicaram folhetos a partir da
década de 80, junto com a Tipografia Pontes.
As capas de Apolônio dos Santos seguem a ordem título, nome do autor e imagem,
utilizando quase sempre figuras produzidas a partir da xilogravura. Apenas alguns folhetos, os
quais acredito serem da década de 60, utilizam imagem a partir de clichês fotográficos.
Para ser um cordelista com “nome na praça” não bastava ser comunicativo. O
principal requisito era fazer boas rimas, escrever bons poemas. Apolônio dos Santos tornou-se
um cordelista referência no auge da sua carreira de poeta, nas décadas de 70 e 80, não apenas
pelos temas que escolhia, mas principalmente pela qualidade das suas rimas e a composição
dos elementos da poética.
Na literatura de cordel de Apolônio dos Santos existe uma predominância dos
tradicionais folhetos de 8 e 16 páginas. Porém, o poeta escreveu também romances, que é uma
classificação atribuída a cordéis com 16, 24, 34, 48 e 64 páginas (LESSA, 1973, p. 16). Com
base na catalogação realizada, o poeta escreveu 14 romances.
O Aventureiro do Norte, composto de 32 páginas, é um exemplo de romance escrito
por Apolônio dos Santos. Esse romance provavelmente foi adquirido pela Tipografia Pontes,
uma vez que na capa e na primeira folha constam “Editor Prop. – José Alves Pontes”. A
compra dos direitos autorais do folheto era algo comum quando o poeta não tinha condições
financeiras de publicá-lo, principalmente quando se tratava de um romance. O que comprova
a autoria do título referido é o acróstico na última estrofe:
Afinal já terminei
A história de Honorina
Leiam com muita atenção
Vendo a sorte o que se destina
Esses fatos de amores
Só Deus é quem determina.
FOLHETARIA SANTOS
DE
APOLÔNIO ALVES DOS SANTOS
Bêco Expedicionário, 63 – C. 11 – B. do Vasco,
ou nos Domingos na Feira Nordestina, Campo
de São Cristovão – Rio de Janeiro.
376
Direitos Autorais. Registro ou Averbação. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional. Disponível em
http://www.bn.br/servico/direitos-autorais/registro-ou-averbacao. Acesso em: 01 jun. 2015.
284
A conquista da firma Folhetaria Santos não foi algo imediato ao retorno de Apolônio
dos Santos ao Rio de Janeiro. Apesar de ter retornado de Brasília “mais equilibrado, [pronto
para] experimentar viver exclusivamente da Literatura de Cordel”, como o próprio afirmou
em sua autobiografia377, o caminho até conquistar a folhetaria levou cerca de uma década.
Apenas em alguns poucos cordéis do final da década de 70 e em folhetos da década de 80 em
diante é possível encontrar referência à Folhetaria Santos.
Apolônio dos Santos, assim como a maioria dos cordelistas, tinha seus pontos de
venda fixos, mesmo antes de ter a folhetaria. Na quarta capa do folheto Novo pacote depois
da eleição – Foi Traição!..., por exemplo, o autor indica os lugares onde pode ser encontrado:
o anexo a Feiarte, Praça XV de Novembro e a Feira Nordestina Campo de São Cristóvão.
Slater indica ainda que Apolônio dos Santos informou em entrevista sobre as vendas que
realizava no Largo do Machado durante a década de 70.
Aos 63 anos, Apolônio dos Santos e sua esposa Enedina dos Santos resolveram voltar
para sua terra, Paraíba. Apesar de tantos anos no Rio de Janeiro, sempre foi seu desejo voltar
para o Nordeste e viver mais tranquilamente.
Nos folhetos escritos por Apolônio dos Santos após seu retorno para a Paraíba,
encontramos o seguinte endereço nas quartas capas dos folhetos publicados a partir da década
de 1990: Rua Dr. Eduardo Correia de Lima, n° 12, Quadra 95, Conjunto Álvaro Gaudêncio –
Bodocongó, bairro mais conhecido como Malvinas. Em visita ao local, encontramos uma
antiga casa e uma senhora, de nome Maria José da Silva, sobrinha do casal por parte de Dona
Enedina dos Santos. Foi através da Sr.ª Maria José que obtivemos algumas informações
pessoais sobre Apolônio dos Santos.
Em 1989, a ida para Campina Grande foi definitiva. Na cidade, passaram a morar em
um anexo construído pela sobrinha, a Sr.ª Maria José, atrás da sua própria casa. O poeta
continuou escrevendo seus folhetos e publicando, enviando ainda muitos para revendedores
no Rio de Janeiro, até o adoecimento que o levou a falecer, no dia 18 de novembro de 1998.
Lutou contra o diabetes por anos, mas foi um câncer no estômago a causa do seu falecimento.
Chegou a realizar uma cirurgia, mas após um mês internado no Hospital Alcides Carneiro,
não resistiu.378
Apolônio dos Santos, mesmo deixando o Rio de Janeiro, até o fim da vida, dedicou-se
ao cordel. Nos últimos versos escritos pelo poeta e publicados In Memoriam pela ABLC, um
clamor a Deus e aos Santos em dias difíceis:
377
SANTOS, Apolônio dos. A Descrição da Cidade e o Progresso do Rio de Janeiro. [s.d]
378
SILVA, Maria José da. Entrevista a autora. Campina Grande: 27 fev. 2015.
285
Com tantas complicações
Minha vida se declina
Estou confiando em Deus
E na Santa Medicina
Combatendo a diabete
Na base da insulina.
O poeta deixou uma extensa produção, que ficou sob a responsabilidade de sua esposa.
Alguns meses depois do falecimento, Dona Enedina dos Santos vendeu parte dos folhetos ao
cordelista Manuel Monteiro e outra parte foi doada para o acervo da ABLC.
Reconstituir a vida do cordelista Apolônio dos Santos foi um desafio, o que é natural
quando se trata dos artistas populares. A produção artística na cultura popular é grande, em
decorrência muitos dos seus autores e atores acabam no anonimato. Poucos tornam-se
inspirações de pesquisas e muitos acabam esquecidos com o passar do tempo. Superar os
obstáculos para encontrar informações sobre o poeta, um cordelista até então anônimo, foi
uma tarefa árdua, em alguns momentos, frustrante. Nem mesmo as principais instituições de
acervos da cultura popular que foram visitados, as informações sobre a vida de Apolônio dos
Santos, não eram significativas, elas sempre se repetiam. Sempre o mesmo parágrafo com
dados resumidos e superficiais.
Somente depois de meses de pesquisas, seguindo os sucintos rastros fornecidos pelos
cordelistas e os que foram deixados pelo próprio poeta nos folhetos que escreveu até seu
último ano de vida, conseguimos então encontrar um parente. Assim muitas informações que
compõe a narrativa da vida de Apolônio dos Santos foram possíveis através das entrevistas
que realizamos com sua sobrinha, a senhora Maria José da Silva, cordelistas que tiveram
longo tempo de convivência com o poeta, como o Gonçalo da Silva e o Marcelo Soares, e os
próprios folhetos que entre uma estrofe e outra guardam informações pessoais do cordelista.
Também foram importantes nessa investigação duas publicações em que Apolônio dos
Santos cedeu entrevista direta, relatando sobre sua história, cotidiano e vida enquanto poeta
cordelista. Ambas as pesquisas realizadas no decorrer da década de 1970. O primeiro deles foi
379
SILVA, Gonçalo Ferreira da. (org). In Memoriam de Apolônio Alves dos Santos. Rio de Janeiro: Studio
Gráfico e Editora, 1998, p. 08.
286
o livro A Vida no Barbante – A Literatura de Cordel no Brasil, da pesquisadora Cadance
Slater, publicado em 1984, a qual a autora dedica o capítulo V “O Monstruoso Sequestro de
Serginho de Apolônio Alves dos Santos” para analisar o folheto do poeta que leva este
mesmo título, antes, porém Slater relata sobre a vida do cordelista e apresenta algumas frases
ditas pelo mesmo em entrevista. O segundo trabalho, O Cordel no Grande Rio, publicado em
1985 e organizado pela professora Cássia Frade reuni uma classificação e relação dos folhetos
disponibilizada pelo próprio poeta e uma entrevista onde o mesmo relata sua história e o
cotidiano da produção dos cordéis.
Concluímos que através das obras do poeta cordelista Apolônio Alves dos Santos foi possível
traçar sua trajetória de vida, identificar vestígios que levaram a sujeitos que conviveram com o poeta e
reconstruir sua carreira e contribuição enquanto cordelista. Entendemos ainda que a vida e obra de
Santos é um legado que deve ser salvaguardado, visto a contribuição ofertada não apenas ao mundo da
literatura popular poética, mas a história e a cultura brasileira.
Referências Bibliográficas
287
“JUVENTUDES”: UMA REFLEXÃO SOBRE A CATEGORIA JUVENTUDE
Mateus Antonio de Almeida Neto
380
MARCON e TOMÁZ, 2012, p. 138.
288
sociedade encontra-se em estado de fluxo, mas até esse fluxo traz um sentido de organização
para os agentes sociais”381.
Ainda dentro da ótica dos estudos funcional estruturalista, a juventude passa a ser
observada como um fenômeno moderno e de caráter mais universalista. Essa tendência se
refere às dificuldades da juventude de se integrar na sociedade, devido o grau de
especialização exigido para algumas atividades e as distorções geracionais, que passaram a dá
espaço à distribuição da juventude em grupos etários, o que explicaria o surgimento de grupos
de subculturas juvenis, além de um maior aproveitamento dos equipamentos urbanos e dos
espaços públicos para reificar o lazer e o consumo como uma forma de demarcar gostos, o
que não era comum até os últimos decênios do século vinte, explica Tavares (2012, p. 183).
381
TAVARES, 2012, p. 182.
289
Stuart Hall, entre outros intelectuais, passaram a discutir sobre uma nova abordagem que não
incluía as tradicionais concepções psicológicas e sociológicas da juventude. Aí se
desenvolveu uma historiografia de inspiração marxista combinada com uma antropologia
cultural, que sofreu inspirações da Escola de Chicago, além do interacionismo e da etnografia.
No CCCS, os estudiosos passaram a desenvolver a teoria das subculturas, mas no sentido de
descrever os estilos de vida, neste caso, os da juventude inglesa operária.
Nesse contexto, Willis (1977) em sua obra Learning to labour, através de uma
pesquisa etnográfica, percebeu o comportamento de oposição dos jovens marcado pelo
desprezo a escola, e assim se voltavam para a formação de grupos de afinidades, definido por
um estilo de vida peculiar. Ficava exposto que, às desigualdades, como parte de um sistema
econômico capitalista não oferecia condições semelhantes de mobilidade social para a
juventude.
382
FREIRE FILHO, 2005, p. 141.
290
se tratava apenas de produzir inventários de padrões de consumo e estilos subculturais, mas
uma forma de avaliar as funções dos artefatos culturais de consumo no tempo e nos espaços
territoriais, além das formas que assumiam perante as instituições dominantes da sociedade,
diz Freire Filho (2005, p. 141).
Feixa (s/d, p 01), em seus estudos sobre a juventude na Espanha percebeu que o
conceito de subcultura não seria tecnicamente correto, pois historicamente está associado ao
desvio social no sentido de patologia, o qual observava o jovem como delinquente. Além
disso, o autor também propõe mudar o prisma do olhar sobre a cultura jovem, termo mais
acionado na literatura para destacar uma heterogeneidade interna. Tais mudanças envolve a
maneira de refletir o problema, o qual possibilita transferir à ênfase da identidade
marginalizada e a violência para as estratégias da descrição dos estilos, o lazer, as práticas
culturais, os usos dos espaços de sentidos e os jovens como atores sociais.
Como destaca Feixa (s/d), a categoria juventude precisa ser repensada a partir da
ótica dos estilos, como microculturas, ou seja, no plural, culturas juvenis. Tal conceito refere-
se às experiências sociais dos jovens expressas de forma coletiva através da construção de
estilos distintos que são vivenciados principalmente no universo do lazer ou em espaços
intersticiais da vida dos jovens. Nesse sentido, formam microsociedades definidas pela
aparência, linguagens, práticas e gostos com graus significativos de autonomia das
instituições dos adultos, especificamente coincidindo com os processos de mudança social no
domínio econômico, educacional, trabalho e no terreno ideológico, que historicamente foram
se constituindo nos países ocidentais após a Segunda Guerra Mundial e ganhou maior
ressonância com o processo de descolonização.
Pais (2003), ao estudar a juventude portuguesa decide não adotar nenhuma dessas
correntes como pressuposto principal para a análise. Afirma se valer da realidade do campo,
revelada através da observação participante e focar nas diferentes manifestações culturais
juvenis, “[...] de tal forma que umas vezes elas aparecerão como culturas de geração, outras
como culturas de classe, outras vezes, ainda, como culturas de sexo, de rua, etc"383. Feixa
(s/d) também segue tais direcionamentos, afirma que os estudos sobre a juventude precisam
focar nas microsociedades e nas microculturas da juventude, ou seja, nas culturas juvenis, na
dinâmica dos gostos.
383
PAIS, 2003, p. 109.
292
3. Aspectos da constituição de um campo: apontamentos sobre os estudos da juventude
no Brasil
No contexto brasileiro, os primeiros estudos sobre juventude estavam voltados para a
percepção da geração em termos de estrutura social, na relação de classe e status sociais.
Apenas nos anos oitenta e noventa do século vinte, abordagens à maneira dos estudos
culturais, interessados numa etnografia das subculturas juvenis, teve maior visibilidade no
âmbito da pós-graduação. Já nos anos noventa, autores como Sposito (1994), Abramo (1994),
Madeira (1999), entre outros, passaram a se dedicar a temática da juventude no Brasil e a
influenciar instituições como a Unesco e o próprio Estado, que contribuíram para a
articulação dos estudos frente a criação de políticas públicas. Em linhas gerais, a temática da
juventude foi problematizada no Brasil pelos contributos da Escola de Chicago e o Centre for
Contemporary Cultural Studies.
A autora também demonstra uma inquietação sobre alguns argumentos que trata a
categoria juventude a partir da busca de uma unidade sobre o conjunto de percepção dessa
categoria, o que provavelmente pode criar um postulado estanque. Com efeito, grupos sociais
podem ser reais sem, no entanto, serem homogêneos, como as mulheres, as crianças e os
idosos, entre tantos outros. A reflexão sobre a juventude que segue essa corrente precisa ser
tencionada e construída pelas experiências juvenis e a formação de um mundo dito jovem
relativamente autônomo, assim como a distribuição de indivíduos na estrutura social
(SPOSITO, 2009, p. 34).
Considerações finais
Associado a essa perspectiva crítica dos estudos culturais, o mundo passou pelo
processo de descolonização, sujeitos foram repatriados e outros ficaram em trânsito, entre
fronteiras, como diria Hall (2003; 2006). Além disso, bens culturais ganharam outros sentidos
daqueles ditos como autênticos. Surge uma perspectiva pós-colonial que passou a perceber a
juventude entre questões global e local. A indústria cultural jovem possibilitou aspectos que,
em escala global, passou a ser denominada de culturas juvenis: vestimentas, acessórios,
trejeitos e linguagens que associados à música criaram gostos, intensões, atitudes políticas e
estilos. Contudo, bens culturais atrelados a um determinado estilo de vida passou a ser
reapropriado por outros, que em contexto diferente, ganhou novos sentidos. A tecnologia de
comunicação estreitou o mundo e as culturas possibilitando um caldeirão de enunciados.
Sposito (2009, p. 30) destaca que em todos os eixos de estudos sobre a temática da
juventude é predominante a condição juvenil urbana, sobretudo de grandes metrópoles, o que
pode induzir a generalizações sobre a juventude brasileira, “[...] se não forem levadas em
conta as condições de vida das pequenas e médias cidades e das zonas rurais”384. Tais estudos
podem ser reveladores de múltiplas temporalidades, gostos e estilos, imbricadas nas relações
sociais, e podem articular as relações de complementariedade e das tensões existentes entre
384
SPOSITO, 2009, p. 30.
294
metrópoles e cidades de escalas reduzidas, muitas vezes obscurecidas por uma ótica
excessivamente urbana, enfatiza a autora.
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297
OS REFLEXOS DO IMPERADOR:
UMA ANÁLISE ESTÉTICA DAS BIOGRAFIAS SOBRE D. PEDRO II ESCRITA
POR GILBERTO FREYRE E PEDRO CALMON
Mauro Henrique Miranda de Alcântara385
385
Professor do Instituto Federal de Rondônia. Doutorando em História pela Universidade Federal de Mato
Grosso. Bolsista FAPERO/CAPES. Contato: alcantara.mauro@gmail.com
386
ARFUCH, Leonor, 2010. p. 117.
298
narrativo, a interpretação minuciosa de documentos e a figuração de espaços
reservados que, teoricamente, só o eu poderia alcançar387.
Verifica-se, portanto, que a forma estética é uma estratégia do biógrafo para conseguir
reunir em sua narrativa as características apresentadas por Arfuch: um relato ao mesmo tempo
histórico e um romance, o ajuste da cronologia vivida pelo biografado e a invenção de um
tempo narrativo. Na biografia, o autor organiza o caos que é a trajetória de uma vida, de
forma análoga à construção do “herói” em um romance. Segundo Bakthin, o autor abre um
caminho entre o caos das reações cotidianas de uma vida, buscando estabilizar os valores, os
quais ele verifica como primordiais no personagem, para que o “rosto” dele apresente as
características necessárias para a compreensão de sua trajetória388.
A partir da perspectiva de Bakhtin, podemos verificar que tanto o Imperador Cinzento
de Freyre, quanto o Rei Filósofo de Calmon, são construções dos biógrafos, buscando tal
estabilização através dos valores captados no personagem biografado. Por vezes, a mesma
característica pode ser apresentada como positiva em uma obra, e negativa em outra. É o caso
da intelectualidade de D. Pedro II nas biografias mencionadas, como poderemos ver adiante.
O processo de fabricação do herói em narrativas biográficas, todavia, não é idêntico ao
herói do romance livre. Bakthin descreve que os traços de um personagem biografado, são
preconcebidos pelo biógrafo. Diante disso, para o teórico o herói nesse tipo de romance
permanece inalterado, e o que será movido para apresentar as escolhas estéticas do escritor,
serão os acontecimentos e fatos da vida do protagonista. Eles serão delineadores para
justificar o destino do herói:
(...) esses traços têm um caráter estratificado, preconcebido, são dados enquanto
tal desde o início e, em toda a duração do romance, o homem permanece
inalterado. Os acontecimentos não modelam o homem, mas seu destino (ainda
que este seja criador)389
387
ARFUCH, 2010, p. 137-138.
388
BAKHTIN, Mikhail M., 1997.
389
BAKHTIN, 1997, p. 233.
299
vividos que justifiquem o destino do biografado, dando forma a sua escolha estética. É o que
Bakthin nos diz: “os acontecimentos não modelam o homem, mas seu destino”.
Esse é um aspecto intencional do biógrafo. É outra estratégia para produzir na
narrativa, qualidades que acompanham o personagem do início ao fim da sua trajetória. Dessa
forma, além de estabilizar as características que ele evidencia no seu herói, procura também
universalizar um “tipo ideal” de personalidade. Para Paul Ricoeur, a narrativa como é
construída, tende a agir sobre os personagens nela evolvidos:
Compreende-se mais uma vez por que a ação prima sobre os personagens: é
a universalização da intriga que universaliza os personagens, mesmo quando
eles conservam um nome próprio. Donde o preceito: primeiro conceber a
intriga, em seguida dar nomes390.
No caso das biografias que aqui analisamos, o sujeito biografado é o mesmo, mas as
descrições sobre a sua trajetória, tornam-no diferente. Diante disso, é a narrativa que constrói
e universaliza o Imperador Cinzento de Freyre e o Rei Filósofo do Calmon.
A utilização de inovações semânticas nas duas obras, para explicar a trajetória do
biografado, demonstra que essa é uma estratégia para amarrar a estória do personagem
narrado, porém, apresentando algo novo, “inédito”. Esse é um artifício utilizado pelo
biógrafo, na narrativa, para apresentar a estabilização e universalização do protagonista,
dotando-o de atributos heroificados (positivamente ou negativamente).
Paul Ricoeur descreve que o uso de inovação semântica é uma tática, que ele nomeia
como imaginação produtiva, que consiste na síntese dos valores verificados nos personagens,
por meio de termos e expressões:
390
RICOEUR, Paul., 2010. p. 73.
391
RICOEUR, 2010, p. 2.
300
Diante do exposto, a intenção desse trabalho é demonstrar como as construções
estéticas nas narrativas biográficas desenvolvem atividades miméticas, devido a busca da
“imitação” ou “representação” de D. Pedro II.
O ambiente, aliás, não pede outra atitude: nem o assunto pedia outro
ambiente. O ambiente de uma biblioteca. A sombra dos livros. Entre os
livros, mais que entre as casacas dos ministros e os decotes das viscondessas,
viveu Dom Pedro II; e agora que ele é morto, e passa o centenário do dia em
que nasceu, é justo que falemos de sua vida entre os livros que tanto amou.
Entre os livros que amou demasiadamente. Entre os livros que no seu palácio
recebia, como Pedro I às mulheres: antes dos grandes do Império392.
A analogia que Freyre faz entre o lugar da sua conferência com o lugar de preferência
do Imperador demarca uma característica importante, e que será o mote principal da vida do
monarca, para esse escritor: o amor às letras e a busca por se apresentar intelectualmente.
Verifica-se, também, que ele compara o amor de D. Pedro II pelos livros, ao amor de
D. Pedro I às mulheres. A excessiva libertinagem do primeiro imperador, o levou à ruína. O
excesso de intelectualidade do segundo o levou para o mesmo caminho. A partir disso, outra
característica que o escritor descreve como importante para um príncipe é a necessidade de
certa malemolência, típica dos brasileiros para ele. A intransigência e tirania da moralidade
foi um dos maiores erros do D. Pedro II, segundo Freyre.
Assim que toma as rédeas do seu reinado, a partir da maioridade, o monarca começa a
moldar o país a partir de seus valores, delineando no Brasil uma “Era Vitoriana brasileira”,
“projetando sobre a vida nacional uma sombra de governante inglesa fantasiada de
imperador”393. O biógrafo apresenta as tendências e virtudes do Imperador como cinzentas.
Inicialmente, aparenta-se como um atributo interessante, inovador e que traria benefícios para
o país. No entanto, tal peculiaridade, acaba por se tornar uma “tirania da moralidade”,
trazendo prejuízos para o seu governo, e para a sua posição de governante:
392
FREYRE, Gilberto.,1975. p. 9.
393
FREYRE, 1975, p. 12.
301
Dizer-vos que o Segundo Reinado foi no Brasil, pela tirania moral de Pedro
II e o seu lápis fatídico – que até ao um tanto boêmio Barão do Rio Branco
dificultou a ascensão política – um período melancolicamente virtuoso, isto
não hesito. Não é que a virtude não se possa aguçar em alegria artística. (...)
Mas a estética da virtude dificilmente a conseguem os governantes que se
parecem às governantes; ou que pretendem tiranicamente acinzentar em
calvinistas os povos que governam. E é o que foi Pedro II com sua “ditadura
da moralidade”, com suas preocupações de marcar a lápis azul o estadista
que tinha amante, o senador que bebia, o político que jogava. (...) A tirania
moral tem o inconveniente de dar saudade dos próprios excessos do
pecado394.
E de tanto manejar o lápis azul de censor moral, o falado lápis fatídico, Dom
Pedro acaba quase perdendo o jeito de empunhar o cetro. Este, o seu drama –
ou a tragicomédia? – da Monarquia no Brasil do século XIX: um Brasil
predisposto ao governo de um Arqui-Patriarca, cujo palácio fosse uma arqui-
Casa-Grande e cuja figura só surgisse aos olhos do povo a cavalo, as esporas
de ouro tilintando como as de um Carlos Magno de história de Trancoso396.
Pedro Calmon, em sua biografia “A vida de D. Pedro II: O Rei Filósofo”, apesar de
apresentar o seu protagonista diferentemente da perspectiva do Gilberto Freyre, também tem
397
FREYRE, 1975, p. 15.
398
FREYRE, 1975, p. 10-11.
303
no amor do Imperador pelas artes, ciências e letras, o mote principal para sua narrativa.
Afinal, era D. Pedro II, um Rei Filósofo, para Calmon. E assim como Freyre, Calmon destaca
a biblioteca como um lugar central na vida do monarca.
Para Calmon, D. Pedro II cumpriu com determinação e esmero seu papel de
Imperador. Por mais entediantes que pudessem ser suas funções, sempre que era possível,
fugia para sua biblioteca, devorava os livros, como se fossem brinquedos:
É possível perceber nessa passagem, que ser Imperador para o sujeito Pedro de
Alcântara, era um ofício fatigante, praticamente um sacrifício que fazia. Em diversas outras
passagens da obra, essa argumentação é repetida, às vezes até mais enfática e efusivamente.
Essa é uma estratégia do biógrafo, para demonstrar que o seu protagonista exercia sua função
de monarca, como uma obrigação, e não pelo amor ao poder. Para Calmon, a vida ideal, a
qual D. Pedro II sonhou para si, seria ser um professor, mestre-escola. As leituras, as
curiosidades científicas, o amor as artes, era o que mais deixava o monarca feliz. A biblioteca
e os livros são a válvula de escape do personagem. E essas passagens repetidas no transcorrer
da narrativa, são inseridas após Calmon descrever funções políticas, as quais o monarca as
cumpria sem grande entusiasmo.
Para Calmon, D. Pedro II era um modelo humano, um “indivíduo raro”. Sua obra seria
um retrato verídico da memória do Imperador. Este que presenciou e participou de mudanças
importantes da realidade brasileira:
401
CALMON, 1975, p. 171.
402
CALMON, 1975, p. 173.
305
vaidade... Porque as pequenas províncias não têm pessoal para a federação,
e seria um desgoverno geral, que acabaria pela separação. (...)
República era, para ele, como para Montesquieu, a virtude civil, sem
ambições e pompas da coroa, que é a glória. Poderia ser mais exato: era
democrata. Que ninguém sobrepusesse à razão e ao povo um direito, mesmo
que fosse o seu direito403.
Nessa passagem, verificamos que o biógrafo cita um trecho como se fosse de autoria
do próprio imperador, se autoproclamando republicano404. E ele corrige D. Pedro II, alegando
que na verdade ele era um democrata. Ambas as colocações, estão para ratificar a posição que
colocamos no início da análise da biografia escrita por Calmon: o desapego do Imperador ao
poder, mas ao mesmo tempo seu cuidado com o país e presteza e zelo com suas funções
políticas. Nesse momento, o biógrafo insere, o que ele faz em diversos momentos da obra,
qual seria o destino do protagonista: perder a sua coroa e a implantação da República. No
entanto, esse advento não era algo inesperado ou contrário a vida do D. Pedro II, ao contrário,
era um destino natural do país, e que ele vislumbrava que aconteceria, cedo ou tarde.
Diferentemente do Gilberto Freyre, as qualidades do Imperador na biografia de Pedro
Calmon, apresentam-se de forma positiva. Esses atributos estabilizam uma vida (como o
próprio Calmon descreve) longa e como podemos perceber pela grandeza da sua obra e pela
sua forma de narrar, repleta de eventos, fatos e episódios. Esses adjetivos, ao mesmo tempo,
modelam o caráter do biografado, colaborando para o desfecho da sua vida. Mas não há
rupturas, todos os atos são condizentes com as suas virtudes e, sair de cena na proclamação da
República, fora mais um ato de alívio, fim do sacrifício, do que uma perda para D. Pedro II:
D. Pedro II não falava sobre política, após o exílio, pois ela nunca lhe interessou, na
visão do Calmon. Nesse fragmento, o qual apresenta uma interpretação do biógrafo e um
trecho do diário do Imperador, para ratificar sua interpretação, percebemos que o exílio fora
mais uma aposentadoria, ou até mesmo, um júbilo para o Imperador, do que um momento de
angustiante tristeza ou sentimento de perda. Para Calmon, o sistema republicano viria
engrandecer o reinado do D. Pedro II, que não foi nada mais do que um momento de
preparação da população brasileira, para a vida republicana.
403
CALMON, 1975, p. 263.
404
No entanto, não há referências de qual fonte/arquivo foi retirado esse fragmento.
405
CALMON, 1975, p. 295.
306
A descrição do reflexo do Imperador para Pedro Calmon, é de um homem
magnânimo, democrata coroado, republicano, visionário e, acima de tudo, filósofo. Tais
características, verificadas em toda a obra, em todos os momentos, inclusive nos mais
complexos, são as “inovações semânticas”, que Calmon utiliza para “universalizar” sua
narrativa, e com isso, universalizar a sua ideia/percepção de um Rei Filósofo. Este é
construído heroificadamente, e o seu destino (o exílio) foi um presente para um homem que
sacrificou sua vida pelo bem da nação que governava.
Tanto foi um presente, que foi “agraciado pelo regime que o derrubou com os
vencimentos de presidente da Nação”406, insiste o biógrafo. Tais adjetivos são a representação
da “imaginação produtiva” do Calmon. É através deles, que o autor consegue estabilizar uma
longa trajetória, repleta de enigmas e situações de difícil explicação. A partir dessas palavras
adjetivas, ele conseguiu fazer a “síntese do heterogêneo”, garantindo uma narrativa que
explica a vida do seu protagonista, mesmo em situações difíceis de serem explicadas, em
lugares, como diz Arfuch, que somente o “eu” poderia ter acesso, bem como, o representa
como um modelo humano, um príncipe ideal. Uma típica biografia exemplar.
Considerações Finais
406
CALMON, 1975, p. IX.
307
envolvidos nela. Freyre e Calmon, buscam a partir das suas escolhas documentais, e
principalmente, das suas escolhas estéticas, apresentar uma narrativa justificadora para o
destino do biografado, utilizando qualidades e figuras de linguagens que representam
(mimeticamente) o seu biografado.
REFERÊNCIAS
308
A LEI DE MOISÉS E A JUSTIÇA DOS HOMENS: AS ATAS DAS CONGREGAÇÕES
JUDAICAS ZUR ISRAEL, EM RECIFE, E MAGUEN ABRAHAM, EM MAURÍCIA E A
ESTRATÉGIA DE AUTORREGULAMENTAÇÃO DOS JUDEUS DO RECIFE
HOLANDÊS (1648-1654)
Nelson Santana Santos*
Resumo:
Esta comunicação apresentará uma breve análise acerca de alguns dispositivos constantes do
livro de Atas das Congregações Judaicas de Recife e Maurícia, escrito entre 1648 e 1654. O
foco principal estará sobre as regras que prescreviam normas de comportamento, cuja
fiscalização e aplicação de sanções – em casos de descumprimento – eram de competência da
própria comunidade judaica. Busca-se demonstrar como aquela comunidade desenvolveu uma
estratégia de autorregulamentação de suas condutas. Tal estratégia, apesar de formalizada em
um documento de cunho religioso, tinha como um de seus corolários a tentativa de resguardar
o máximo possível aquele grupo da necessidade de recorrer à justiça estatal, em decorrência
da perseguição sofrida pelos judeus em diversos espaços e temporalidades. Intenta-se, assim,
demonstrar in casu a estreita inter-relação existente entre religião, justiça e poder, na
sociedade colonial seiscentista.
1. Introdução:
Durante quase todo o período de domínio português sobre sua colônia na América, a
única religião permitida foi a católica. Os súditos da coroa lusa sobre os quais pairassem
indícios (ou boatos) de práticas diversas dos ensinamentos daquela religião corriam o risco de
serem processados e condenados pelo Tribunal do Santo Ofício.
Exceção a este cenário foi o interregno de domínio holandês sobre a porção nordeste
da colônia portuguesa. Naquele período, transcorrido entre 1630 e 1654, a administração
batava garantiu aos habitantes daquela colônia o mesmo direito que gozavam os cidadãos da
*
Mestrando em Ciências da Religião (PPGCIR-UFS), membro do Grupo de Pesquisas Diáspora
Atlântica dos Sefarditas. Licenciado em História (UFS) e Bacharel em Direito (UFS).
309
metrópole neerlandesa: a liberdade de consciência religiosa. Mesmo antes de efetivarem seu
domínio sobre as terras até então pertencentes a Portugal, os holandeses já haviam editado um
documento que assegurava a todos os cidadãos de suas colônias a liberdade de consciência
religiosa. Tratava-se do Regimento do Governo das Praças Conquistadas ou que forem
conquistadas nas Índias Ocidentais, redigido em 1629, pela Companhia das Índias Ocidentais
– sociedade responsável pela administração da colônia neerlandesa –, o qual em seu artigo 10
proclamava que:
Percebe-se que além dos católicos – que, como já vimos, compunham a única religião
permitida na colônia portuguesa até então – o documento faz menção expressa à liberdade de
consciência religiosa para os judeus. Com base nesta garantia jurídica estabelecida pelo
“Regimento das Praças”, bastou que o domínio neerlandês se efetivasse sobre o nordeste
brasileiro para que os judeus começassem a surgir naquela região. A rigor, alguns deles já
viviam ali, sob a condição de cristãos-novos, ou seja, judeus forçados à conversão ao
catolicismo ou descendentes destes. Outros vieram da Holanda – a nova metrópole para
aquelas terras – onde o número de judeus portugueses fugitivos da vigilância da Inquisição já
era bastante considerável.
A comunidade judaica reunida na colônia holandesa na América inicialmente praticava
seus rituais religiosos em casas: as chamadas esnogas particulares. A partir de 1636, o fluxo
de judeus oriundos da Holanda para Pernambuco e províncias vizinhas intensifica-se cada vez
mais. Como decorrência disto, fez-se necessária a construção de sinagogas. Apesar de
referências esparsas a existência de outros locais de reunião dos judeus no chamado Brasil
holandês408, só há prova documental da existência de duas sinagogas naquele período: a
Kahal Kadosh Zur Israel [Santa Congregação Rochedo de Israel], em Recife e a Kahal
Kadosh Magen Abraham [Santa Congregação Escudo de Abraão], na Cidade Maurícia –
povoação construída defronte para Recife, na Ilha de Antônio Vaz, na outra margem do Rio
407
RIAHGP, 1886, p. 292.
408
Bruno Feitler (2005, p. 72), por exemplo, refere-se à existência de sinagogas informais na Paraíba, em
Olinda, em Itamaracá e em Penedo.
310
Capibaribe, atual bairro de Santo Antonio – fundadas, respectivamente, em 1636 e 1637409.
Estas duas congregações tiveram existência independente em certo momento porém no ano de
1648, a congregação de Maurícia passou a subordinar-se a Zur Israel. Dentre os documentos
produzidos por tais congregações, o mais importante foi o seu “Livro de Atas”.
O Livro de Atas das Congregações Judaicas410 é um documento fundamental para o
estudo do judaísmo no Brasil Holandês. Alguns estudiosos deste período da história brasileira,
a exemplo de Ronaldo Vainfas (2010) e David Weitman (2003) concordam que tal documento
tem sido muito citado por estudiosos de tal religião no Brasil, porém, por mais paradoxal que
pareça, tem sido – em contrapartida – pouco estudado. De acordo com o professor de História
Moderna da UFF, o “Livro de Atas” trata-se de “documento valioso, que permite reconstruir o
modelo organizacional da Zur Israel, sua filosofia de governo, seu sistema de escolha dos
dirigentes, as rendas da Congregação e os detalhes da visa sinagogal”411.
O objetivo deste artigo é abordar alguns aspectos desta importantíssima fonte
documental. Mais precisamente, buscaremos, neste escrito, tratar deste documento enquanto
fonte de regulamentação interna da comunidade judaica, inclusive como estratégia para evitar
a interferência da justiça estatal sobre a vida de tal comunidade.
409
FEITLER, 2005, p. 69
410
Doravante, referido apenas como “Livro de Atas” ou “Pinkas”(palavra hebraico para designar os livros
de atas das sinagogas).
411
VAINFAS, 2010, p 149.
412
WEITMAN, 2003, p. 20.
311
administração daquelas comunidades julgou importantes o suficiente para serem anotadas no
seu principal instrumento de documentação. Percebe-se, portanto, que é nesta segunda parte
que o “Livro” se aproxima mais claramente do tipo de documento que lhe serve de título. É
nesta parte que efetivamente encontramos um “Livro de Atas”.
Como já indicado anteriormente, o Pinkas começou a ser escrito em 1648. Isto se deve
ao fato de que naquele ano o conselho executivo das sinagogas, o Mahamad413, reuniu-se para
proceder a uma reformulação das haskamot até então existentes. Assim, os 42 artigos
anotados no Livro de 1648 substituem um conjunto de regulamentos anterior. Constituem-se
na sua reformulação. Quanto ao conjunto de normas anterior, não se tem notícia nem do
documento original nem de cópia do mesmo.
O domínio holandês em Pernambuco estendeu-se de 1630 a 1654. Nesta última data,
momento em que os portugueses retomaram o controle político e militar sobre todo o nordeste
de sua colônia na América, os judeus aqui residentes viram-se obrigados a deixar o Brasil ou
(re)converterem-se ao catolicismo. A maioria dos que optaram pela primeira alternativa
tomaram como destino a mesma terra onde já viviam antes: a Holanda. O “Livro de Atas”
seguiu este mesmo trajeto rumo às Províncias Unidas. Acabaria guardado na livraria Ets
Haim-D. Montezinos (o arquivo da comunidade judaica), em Amsterdam, onde permaneceria
no esquecimento historiográfico por quase três séculos.
Conforme apurado por Arnold Wiznitzer414, após 1653 (ano do último registro
inserido), a primeira referência ao “Livro de Atas” foi feita pelo historiador português J.
Mendes dos Remédios, em 1911. Posteriormente, referências esparsas foram feitas por
importantes nomes como J.S. da Silva Rosa, em 1925; Nahum Sokolow, em 1929; Cecil Roth,
em 1931; Samuel Oppenheim e Herbert Bloom, em 1934; Salo Baron, em 1942; e José
Honório Rodrigues, em 1949. No entanto, tal documento só se tornaria efetivamente
conhecido através da iniciativa do pesquisador austríaco Arnold Wiznitzer, o qual resolveu
transcrevê-lo na íntegra e torná-lo público através de sua inserção no volume 74 dos Anais da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. O ano era 1953. Exatos trezentos anos haviam passado
desde que o último registro fora inserido no Pinkas, em 1653.
413
O Mahamad era composto por cinco integrantes: quatro parnassim (conselheiros) e um gabai
(tesoureiro), eleitos pelo próprio Conselho. A este conselho cabia “a direção da comunidade, velando pela
realização do culto divino, evitando disputas entre correligionários” (MELLO, 1996, p. 336).
414
WIZNITZER, 1953, p. 216-218.
312
Vistas sucintamente a estrutura e a história do “Livro de Atas”, passemos então à
apresentação dos artigos que mais interessam ao objetivo deste texto.
415
Bruno Feitler (2005, p. 71) acrescenta ainda o fato de que as comunidades judaicas de Pernambuco
exerciam uma política da “maior descrição possível”. Para ele, tanto a comunidade de Recife quanto a de
Amsterdam, adotavam tal postura a fim de “não se demarcar culturalmente da sociedade protestante que a
acolhia”. Ronaldo Vainfas (2010, p. 183), por sua vez, destaca que “buscava-se preservar a pureza da lei e a
ordem da congregação, quer para reforçar a autoimagem de todos, quer para defender a comunidade das
hostilidades externas”.
313
A haskama de nº 19 estabelece o seguinte416:
Nº 19
Que nenhuma pessoa faça reuniões com outras, em público ou em segredo,
para obter votos, pareceres por escrito ou não, para efeito de irem contra o
que os Senhores do Maamad ordenarem. Nem pode [ninguém] defender
[ações] que se façam para obstruir as ordens dos Senhores do Maamad e a
quietação deste K.K. Qualquer pessoa que for tão atrevida a for contra este,
pagará de pena 250 florins. Sendo admoestado e ficando em sua contumácia,
o declaramos desde logo apartado de nossa nação. Não serão admitidos sem
primeiro pagarem a dita pena e fazer a penitência que os senhores do
Maamad lhes ordenarem. Na mesma pena incorrerá quem fizer papéis
difamatórios ou pasquins, ou escrever cartas difamatórias contra qualquer
pessoa que seja, tanto neste Recife como para a Holanda e outras partes, e
sempre fará a penitência que os Senhores do Maamad ordenarem417.
Berachá é o termo hebraico utilizado para designar uma espécie de advertência que
constitui-se num passo inicial para o afastamento da congregação. A palavra significa
literalmente benção, no entanto seu uso ocorre como “eufemismo para significar maldição”
(WEITMAN, 2003, p. 18). A norma em tela refere-se a um serviço de escopo público: a
entrega de cartas. Diante de tal prescrição não há como não lançar a pergunta: seria a prática
de ficar com cartas alheias um hábito tão comum, na comunidade, a ponto de ser elaborado
416
Quanto à transcrição dos artigos, optamos por apresentá-las sob a forma modernizada, conforme
apresentadas pelo Rabino David Weitman (2003). Por questão de espaço, ficamos impossibilitados de apresentar
a transcrição paleográfica. O leitor mais ávido, no entanto poderá consultá-la na célebre transcrição realizada por
Arnold Wiznitzer (1953).
417
WEITMAN, 2003, p. 31.
418
Ibidem, p. 31.
314
um estatuto específico para proibi-lo?
Na haskama de nº 25, lemos o seguinte:
Nº 25
Terão os Senhores do Maamad obrigacão de se ajuntarem duas vezes na
semana para tratarem das necessidades que houver na terra e cuidar delas e
juntamente do bem comum. Particularmente, para que não haja pessoa de
ruim vivenda, ou de outras suspeitas ruins e tratar de emendá-la pelo melhor
meio que se possa, sem escândalo público. E, caso não haja progresso, ditos
Senhores do Maamad lhe darão a pena que merece tal desobediente, e a que
se lhe puser se executará. Entende-se sempre que a pena imposta por
execução é para que não haja iniquidade em Israel419.
Uma das percepções mais claras da comunidade judaica era a de que todas as disputas
de cunho religioso em que os judeus se envolviam sempre redundavam em se prejuízo. Por
este motivo, a postura mais correta – e segura – era evitar qualquer tipo de disputa acerca de
419
WEITMAN, 2003, p. 33.
420
Ibidem, p. 33.
421
WEITMAN, 2003, p. 33.
315
assuntos religiosos.
Já na haskama de nº 28, a determinação diz que:
Nº 28
E, havendo alguma divergência de dinheiro ou fazenda ou crime ou outra
divergência qualquer entre os Yachidim deste K.K., serão obrigados a vir
com ela diante dos Senhores do Maamad como é costume do povo de Israel,
sob pena de Berachá. Os Senhores do Maamad os ouvirão e os julgarão
fazendo compromisso ou não; procurando que a pena que se puser a quem
não estiver com razão, que uma metade seja aplicada para os nossos pobres e
a outra metade para o hospital. Se alguma das partes puser suspeita em
alguma pessoa do Maamad, seja lícita ou ilícita, se aceitará e se porá outra
pessoa em seu lugar a contento das partes. E parecendo aos Senhores do
Maamad ser conveniente remeter o caso a outros homens bons, poderão
fazê-lo e as suas sentenças e acordos terão o mesmo vigor que as dos
Senhores do Maamad, ficando reservados casos que parecer aos Senhores do
Maamad que convém dar licença para ir à justiça. Que nenhuma pessoa dê
testemunho contra seu próximo sem licença dos Senhores do Maamad nem
por palavra nem por escrito sob pena de Berachá422.
A festa de Purim ocorre no dia 14 do mês de Adar (ou no dia 15, em cidades muradas,
cf. WEITMAN, 2003, p. 21). Mi Sheberach é “uma prece oferecida pelo cantor para honrar
pessoas, pedindo a benção de D-us para aqueles mencionados na prece” (WEITMAN, 2003,
p. 21). A presente determinação pretende que a ordem prevaleça não só no interior da
sinagoga como em todo o seu entorno já que nenhum pedido de esmola poderia ser feito fora
da casa de orações.
Finalmente, a anotação inserida no Livro em 05 de Hesvan de 5411, estabelece que:
Em 5 de Cheshvan, de 5411
Considerando os Senhores do Maamad o dano que podem causar os
ajuntamentos e tumultos de goim que ocorrem na noite de Simchá Torá por
se abrir a sinagoga depois de arvit e, juntamente, ser isto causa de se
422
Ibidem, p. 35.
423
Ibidem, p. 35.
316
cometerem descomposturas tanto de goim como dos nossos, coisas que não
se permite que aconteça na casa de nossas orações.
Comparaceram todos os Yachidim deste K.K. e concordaram que em dita
noite de Simchá Torá e Shabat Bereshit, ao sair de arvit se feche a porta da
sinagoga levando as chaves o Parnas que então servir, com o que se evitará
toda inquietação e escândalo; E que tudo seja Besiman Tov em serviço do D-
us Bendito424.
Goim é o termo que designa as pessoas que não são adeptas da religião judaica.
Simchá Torá trata-se “do festival de júbilo pela Lei, o qual encerra o festival de Sucot
(Tabernáculos). Arvit é o serviço religioso noturno. Shabat Bereshit é o sábado em que se lê a
primeira seção do Pentateuco. Besiman Tov significa de bom algúrio. É uma “maneira usual
de congratular-se com alguém” (WEITMAN, 2003, p. 18-23).
Ronaldo Vainfas (2010, p. 185) tece algumas considerações acerca da festa de Simchá
Torá. Para ele “o livro de Atas da Zur Israel comprova que a festa de Simchá Torá parecia ser
a mais desordeira no cotidiano da comunidade”. Vainfas conjectura ainda que, “nessa ocasião,
contrariando o isolamento pretendido pela Zur Israel, havia um congraçamento geral na noite
da Torá, reunindo-se os judeus com seus conterrâneos cristãos-novos ou até cristãos-velhos”.
Esta concentração inesperada inclusive de pessoas de outras religiões é que teria levado o
Mahamad a determinar o fechamento da sinagoga, inclusive devendo o Parnas levar as
chaves.
5. Considerações finais:
O GT para o qual este trabalho foi escrito busca discutir as relações entre Poder,
Sociedade e Justiça no Mundo Ibero-Americano entre os séculos XVI e XVIII. Ao longo deste
texto buscamos apresentar, através do “Livro de Atas” das congregações judaicas, um caso
exemplificativo do entrelaçamento de poder, sociedade e justiça com um quarto elemento
extremamente importante na história humana: a religião. Ao indicarmos como determinados
artigos constantes de um texto de regulamentação da vida religiosa acabavam interferindo –
propositalmente – sobre aspectos seculares da vida dos fiéis regidos por aquele documento,
tencionamos demonstrar que na sociedade ibero-americana do século XVII, a diferenciação
entre aspectos laicos e religiosos não era tão clara como na sociedade contemporânea. Num
contexto societário onde a religião perpassava por todas as dimensões da existência da
maioria dos seres humanos, o poder e a justiça não escapariam a tal influência. Ali, o
424
WEITMAN, 2003, p. 63.
317
entrelaçamento entre as esferas do poder, da sociedade, da justiça e da religião era muito mais
intrincado do que o senso comum contemporâneo permite enxergar. Eis o que esperamos ter
dado a entender.
Referências:
WIZNITZER Arnold. O livro de atas das congregações judaicas “Zur Israel” em Recife e
“Magen Abraham”, em Maurícia, Brasil, 1648-1653. in Anais da Biblioteca Nacional, Vol.
74. Rio de Janeiro, 1953, p. 214-240.
318
O EROTISMO DOS HEREGES: UM ESTUDO SOBRE A MORAL
SEXUAL DOS CRISTÃOS-NOVOS
Nilton Bruno Feitosa Santana425
Introdução
425
Mestrando em História pela UFS (Universidade Federal de Sergipe) e membro do GPDAS (Grupo de
Pesquisa Diáspora Atlântica dos Sefarditas). Cursa Mestrado pelo PROHIS (Programa de Pós-graduação da
UFS). Email: nbrunofs@yahoo.com.br
426
No decorrer do artigo poderão ser utilizadas as palavras: cristão-novo, marrano ou anussin. Esses termos são
usados para descrever os judeus da Península Ibérica que foram forçados a se converter ao catolicismo em 1492
na Espanha e em 1496 em Portugal (NOVINSKY, 1992). O Tribunal do Santo Ofício da Inquisição criado
primeiramente na Espanha (1478) e depois em Portugal (1536) teve o intuito de perseguir os hereges do
catolicismo e colocar em voga os Ideais de Pureza de Sangue, onde todo aquele que tivesse sangue judeu, negro
ou mouro seria considerado impuro (GREEN, 2007).
319
de obras escritas pelos próprios cristãos-novos, observar o que escreveram sem perder de vista
que produziram sob o reinado do medo inquisitorial (GREEN, 2007).
Como bem sublinha Laraia (1986) os modos como suprimos as nossas necessidades
varia muito de acordo com o grupo social, e essa variação é o que chamamos de cultura.
Esther Villar (1974) também fala em sua obra que os impulsos naturais são racionalizados
pelo homem, encontrando diversas maneiras de conceder vazão as necessidades básicas.
Laraia e Villar atestam para o fato de que os impulsos naturais são universais. A cultura por
sua vez é uma forma de adaptação do homem, o meio pelo qual encontra uma maneira de
suprir as suas necessidades. Em outras palavras, os modos como esse homem satisfaz as suas
necessidades básicas é que deflagra uma atitude cultural. Alimentar-se é uma necessidade
fisiológica, no entanto, a maneira como satisfazemos isso denuncia a nossa cultura, e esta se
modifica de acordo com o povo e o tempo em que se está inserido (Ginzburg, 1986). Dentre
as maneiras que evidenciam a cultura temos a sexualidade.
A antropologia além de evidenciar a Cultura como um meio de adaptação, também a
encara como um sistema Simbólico. Em seu reconhecidíssimo e magistral trabalho, Clifford
Geertz (2008) deixa claro que os objetos e as experiências não possuem significados
intrínsecos, e sim significados aceitos e propagados socialmente. Os símbolos são utilizados
para conceder uma concepção de mundo, uma classificação que o homem faz do mundo a sua
volta para se situar e agir. Fornecendo programas para o processo social que condicionam o
comportamento. Poderíamos afirmar que a cultura opera por meios simbólicos, o próprio
idioma é um conjunto de símbolos que possibilita o aprendizado e está dentro da cultura
(Laraia, 1986). Desse modo observar como cada povo significa a sua sexualidade pode nos
revelar muito acerca da sua significação de mundo. Perpassando pelos tabus e pelos costumes
podemos conhecer a religiosidade e a cultura e mentalidade de cada época.
A cultura como bem assinalou Robert Darnton (1984) e Carlo Ginzburg (1986) por se
tratar de um conjunto de símbolos necessita ser interpretado, ser lida com um texto. Esse
empreendimento se faz necessário afim de que se possa apreender sobre determinada época. É
preciso adentrar no universo simbólico de cada povo para entender a sua cultura. Ver o
significado que os membros davam a cada atitude de sua esfera sexual, e por meio disso,
320
poderemos esquadrinhar a moral em que baseavam o seu erotismo. Observando a maneira
como se doavam aos prazeres corporais pode-se traçar mais nitidamente a sua mentalidade,
encarando a cultura como uma linguagem resgatável a partir de documentos, e ver como esses
refletem o seu ambiente social estando encaixados em um universo simbólico como bem
salienta Darnton (1984).
428
Calisto que durante a caça busca seu falcão em um pomar, encontra-se com a bela Melibea e a partir desse
momento a paixão o toma de assalto. Depois de investidas frustradas, decide procurar Celestina, uma espécie de
feiticeira e cafetina que em troca de dinheiro utiliza de feitiçarias e de astúcias para facilitar-lhe a aproximação
dos dois. Tendo conseguido aquilo que almejava, Calisto dá cem moedas de ouro a Celestina como pagamento
pelos serviços de alcoviteira. Celestina fora assassinada depois de um desentendimento originado pela ganância
com os dois criados de Calisto, isto é, Parmeno e Sempronio que também tramavam contra seu senhor. Ambos
também foram sentenciados e enforcados pelo crime. Por vingança aos amigos e a Celestina, as prostitutas Elicia
e Areusa, promovem um acidente que levará a morte de Calisto. Após saber que seu amante despencara da
escada, Melibea suicida-se, atirando-se de uma torre. O último capítulo apresenta o lamento niilista de Pleberio,
pai da jovem. (ROJAS, 1994)
429
Sobre a vida de Fernando de Rojas posso acrescentar que além de um grande dramaturgo foi também
advogado e exerceu a função de alcaide maior (o que seria hoje como um tipo de oficial de justiça) na cidade de
Talavera de la Reina, na região de Toledo na Espanha. Não convém aqui entrar na discussão sobre os autores de
La Celestina, Fernando de Rojas certamente é “um” dos autores ou “o” autor desse texto dialogado (AGUIAR,
2011).
322
Disfrutad vuestros hermosos años. Besaos y abrazaos, que a mi no me queda
outra cosa sino disfrutar viéndolo. (Las dos parejas se besan y se acarician.)
¡ Cómo reís y disfrutáis! ¿ En esto há terminado vuestro enfado? ¡ Cuidado,
no tireis la mesa!
(ROJAS, Fernando de. La Celestina, p. 55).
Colocaria nesse ínterim o Fernando de Rojas e o Garcia da Orta, além de tantos outros
que mereceriam a mesma atenção. Os marranos são na verdade homens sem compromissos
dogmáticos, pois, não são representados por nenhuma religiosidade ortodoxa. O único
engajamento que tinham era com a investigação e reflexão sobre a verdade. Como fala o
próprio Morin (2007) de maneira poética, eram amantes da verdade. Fernando de Rojas não
foge a essa linha a analisar o homem sem as interferências divinas, as suas reflexões são
unicamente terrenas e baseiam-se no mundo dos sentidos, sejam esses sentidos da alma ou da
carne, o que o aproxima bastante do filósofo grego Epicuro431. O mundo dos sentidos é
sempre o exaltado e o único no qual se podem encontrar os prazeres que dão significado a
430
Termo clássico do renascimento e muito presente em Obras como as Cartas Chilenas de Tomás António
Gonzaga e que teve início nos poemas de Horácio.
431
Para maiores conhecimentos sobre o Hedonismo recomendo as obras de Epicuro em sua Carta sobre a
Felicidade ou até mesmo Diogenes Laertios que retrata a vida e a doutrina dos principais filósofos gregos e
latinos.
323
“doce” vida. Ressalto aqui a liberalidade erótica presente em La Celestina onde o sentido de
uma vida feliz e completa é acompanhado pela consumação sexual dos amantes.
Um marrano na Índia
Cumprir com seu papel sexual era assunto também da Igreja, uma vez que o “Crescei e
multiplicai-vos” do texto bíblico era posto como uma obrigação sagrada, uma lei na qual os
homens eram responsáveis por cumprir. Os processos contra maridos frígidos eram comuns
432
Nascido em 1499, na cidade de Castelo de Vide, iniciou os seus estudos médicos nas universidades
espanholas, terminado a sua formação regressou a sua terra natal. O que mais nos interessa é que em 1534
abandona a Universidade portuguesa na qual trabalhava e embarca para a Índia sob a proteção de Martim Afonso
de Sousa onde exerce o ofício de médico durante trinta anos. Nesse ínterim Orta escreve o primeiro livro feito
por um europeu onde se relata o conhecimento sobre plantas e as mais variadas drogas da Índia. Foi também
amigo de Camões e chegou a trabalhar como físico do Rei D. João III de Portugal (FICALHO, 1886).
324
nos séculos XVI e XVIII, inclusive houve um documento papal alegando que a impotência
era um impedimento ao casamento. Houve homens que em julgamentos públicos tinham que
demonstrar exames de “elasticidade”, em suma, exames de ereção. (PRIORE, 2011). A ideia
de individualidade ainda não grassava na Europa, e os problemas conjugais eram problemas
expostos para toda uma sociedade, uma vez que a ideia de privacidade ainda não tinha surgido
(CASTAN, 2002).
Para a sorte de alguns homens, remédios que visavam excitar o apetite sexual eram
importados da Índia. As drogas indianas que visavam estimular o apetite sexual passaram a
ser largamente utilizados na Europa na intenção de excitar os amantes e também fazê-los
escapar da vergonha pública. Nesse meio é que entra a obra de Garcia da Orta intitulada
Colóquios dos simples e drogas da Índia. Dentre as drogas listadas pelo português temos:
a) As que visavam melhorar o hálito para que os namorados pudessem se aproximar sem
grandes repulsas, ou seja, conceder um “bom cheiro a boca”. Nisso temos o Gengibre, o
Cardomomo, o Betel que era muito usado em relações amorosas pelas mulheres, a Noz-
moscada e o açafrão. b) As que visavam excitar as mulheres. Aí temos a Cannabis Sativa,
conhecido hoje como maconha e que Orta chama de Bangue, nome comum dado na sua
época. Temos também a pimenta negra e a Noz-moscada que eram usadas com esse mesmo
propósito. c) Orta lista ainda especiarias para untar o corpo antes das relações sexuais como o
Ambre e o Almiscar.
Por último temos o Amfiam, ou como hoje é conhecido por Ópio. Orta (1885) diz que o
ópio era usado como agilizador da “virtude imaginativa” e retardador da “virtude expulsiva”.
Em outras palavras, controla o orgasmo e a ejaculação masculina, fazendo com que a relação
sexual perdure por mais tempo. Orta ainda aconselha que seja utilizado em pequena
quantidade para que se estimule a “virilidade”.
Em meio a essa divisão podemos observar uma preocupação em instigar o erotismo
feminino, mas isso não significa dizer que a cultura portuguesa estava dando maior atenção
aos desejos carnais das mulheres, lembremos que Orta estava descrevendo o uso das
especiarias pelos indianos e não pelos europeus. Fez uma obra que relata o uso de drogas pela
farmacopeia oriental. Mas é claro que aquilo foi descrito em seu livro pode ter surtido efeitos
em Reinos europeus e em suas colônias ultramarinas. A própria Mary Del Piore (2011)
ressalta que o uso destes remédios eram amplamente usados em Portugal e na sua colônia
americana, o que induz a pensar que os afrodisíacos eram conhecidos por essas terras. A
325
autora lembra que na Europa, Portugal era a porta de entrada desses produtos. Pode-se dizer
que um cristão-novo concedeu aos europeus um catálogo de especiarias afrodisíacas.
Outra observação é pertinente acerca de Garcia da Orta, seria o fato do compromisso
técnico-científico que tinha na época, pois, seu compromisso era ater-se as especiarias e as
suas funcionalidades em Goa. Tinha certo desprendimento para com os dogmas científicos e
filosóficos de sua época, pois, em nenhum momento hesitou em criticar autores clássicos do
pensamento Greco-romano ou até mesmo árabe. Relatou sobre os afrodisíacos é que com
certeza percebeu a necessidade e o almejo que os europeus detinham por esses produtos.
Podemos acentuar o puro compromisso que o autor tinha com a farmacopeia oriental. Mas
vejo que o seu interesse em publicar a obra que cita a estimulação dos prazeres carnais em
ambos os sexos diz muito acerca do seu desprendimento com a moral sexual ortodoxa
católica. Garcia de Orta estimulou muitos amantes com seus escritos e salvou muitos
casamentos no mundo ocidental.
Conclusões:
Fontes:
Garcia de Orta, Colóquios dos Simples e Drogas da Índia, Academia Real das Ciências de
Lisboa. Vol. II. Imprensa Nacional
Referências
326
AGUIAR, Andrea Augusta de. O discurso de Celestina: a construção e a desconstrução da
personagem. São Paulo, 2011. 152f. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas.
Departamento de Letras Modernas. Área de concentração: Língua e Literatura Espanhola e
Hispano-americana, Universidade de São Paulo, 2011.
DEL PRIORE, Mary. Histórias Íntimas: Sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.
FICALHO, Conde. Garcia da Orta e o seu tempo. Lisboa: Imprensa Nacional, 1886.
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1986.
MELLO E SOUZA, Laura. O Diabo e a Terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das
Letras, 1986.
MIGUEZ, Antón Castro. O Judeu-espanhol na comunidade Sefaradi de São Paulo. São Paulo,
2004. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
MORIN, Edgar. O mundo moderno e a questão judaica. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2007
NOVINSKY, Anita. Cristãos Novos na Bahia: A Inquisição. 2ª Edição. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1992.
VAINFAS, Ronaldo; SOUZA, Juliana Beatriz de. Brasil de todos os santos. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editora, 2002.
______. Trópico dos Pecados: moral, sexualidade e Inquisição no Brasil. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1997.
327
VILLAR, Esther. O Sexo polígamo: o direito do homem a duas mulheres. Rio de Janeiro:
Editorial Nórdica LTDA, 1974.
328
ÍNDIOS ALDEADOS E ÍNDIOS DISPERSOS NA PROVÍNCIA DE
SERGIPE
Prof. Dr. Pedro Abelardo de Santana 433
pedroabelardo@ig.com.br
Introdução
Esta pesquisa embrionária registra algumas notícias a respeito de dispersão espacial
de índios em Sergipe oitocentista. As fontes indicam a constante movimentação de indígenas
de uma aldeia para outra, principalmente no século XIX, sendo a disputa por terras a
motivação aparente. Também são retratados os perfis de alguns indígenas vivendo fora das
aldeias e convivendo com outros trabalhadores brancos e pardos.
Uma das notas sobre os deslocamentos refere-se a aldeia de São Pedro do Porto da
Folha e, certamente, retrata um episódio ocorrido nos finais do século XVIII. Segundo
Manuel Aires de Casal, em 1817, o aldeamento era habitado por aproximadamente “oitenta
vizinhos”, na maioria indígenas das etnias dos “romarís” e “Ceocoses” (Xocó), estes trazidos
da serra de Pão de Açúcar, que, por sua vez, tinham vindo do riacho Piancó em
Pernambuco.434 A anotação “vizinhos” deve se referir a quantidade de habitações e não o total
de pessoas. Mas, o destaque é para essa origem migratória de parte do aldeamento. Embora
Aires de Casal não esclareça o motivo da migração, sabemos que o sertão das capitanias da
Bahia e Pernambuco foi palco de inúmeras disputas por terra envolvendo fazendeiros e
indígenas. A violência desses conflitos, aliada as secas e a atuação de religiosos explica a
movimentação de grupos indígenas em direção aos aldeamentos já formados.
Pelos indícios encontrados, as entradas e saídas de indígenas dos aldeamentos eram
constantes. No ano seguinte, 1818, uma leva de indígenas teria se ausentado de São Pedro do
Porto da Folha e se dirigido para o território de Pernambuco onde foram buscar trabalho. Esse
ato de retirada também teve como motivação as desavenças com o pároco Antônio Simões,
responsável pela administração das terras e bens do aldeamento. Os aldeados o acusaram de
arrendar as terras e deixá-los sem ter onde plantar, de usar a mão de obra indígena em
proveito próprio, além de castigá-los caso descumprissem as suas ordens.435
433
Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD) da CAPES, ligado ao Programa de Pós-Graduação
em História (PROHIS) da Universidade Federal de Sergipe.
434
CASAL, 1976, p.250-51.
435
Sumário de Testemunhas produzido em prova da conta que deram os índios da Missão de São Pedro contra
seu Reverendo Pároco, 2 de janeiro de 1818. DANTAS e DALLARI, 1980, p.151.
329
Durante as primeiras décadas do século XIX, a aldeia de São Pedro continuou
recebendo índios de outras missões. Em 1823, o padre Gaspar de Faria Bulcão, diretor dos
índios, comunicou que no mês de abril aportaram no aldeamento todos os índios da missão
Águas Belas, em Pernambuco, acompanhados com seus oficiais. Chegaram cerca de sessenta
indivíduos portando “arcos”, enquanto em São Pedro só existiam 30 arcos, por esta razão não
foram repelidos, mas aceitos de bom grado.436 O interesse do prelado pelos “arcos” deve ser
entendido como o aumento da mão de obra a seu dispor.
Em 1827, trinta e seis índios procedentes da “aldeia de Curral dos Bois” se
estabelecem em São Pedro juntando-se aos outros haviam imigrado anteriormente. Assim, em
1829, este aldeamento contava com índios das seguintes procedências: Curral dos Bois,
Rudela, Águas Belas, Pacatuba, Colégio, Traipu e Pambu. Neste período, dos indivíduos
residentes no aldeamento, os brancos exerciam predominantemente as atividades de
agricultura e pecuária, enquanto os índios estavam mais voltados para atividades extrativas e
o exercício de pequenos ofícios. Também as mulheres índias se dedicavam mais a cerâmica
enquanto as portuguesas ocupavam-se de fiar, tecer, costurar e fazer rendas.437
Política de aldeamentos
O confinamento dos índios em aldeamentos foi uma prática dos primórdios da
colonização. Visava atender a dois objetivos: um era o de liberar os seus territórios
tradicionais de vivência para dar lugar aos colonos; o outro era facilitar a catequese católica.
No modo de ver dos colonos, os índios catequizados e aldeados tinham mais aptidão para o
trabalho, porque, além de mais “civilizados que o gentio selvagem” passavam a ter alguma
noção de trabalho manual adquirido com os padres das diversas ordens religiosas. Isso explica
também a dubiedade da legislação indígena que revezava agrados ora aos religiosos, ora aos
colonos, promovendo, dessa forma, a dilatação da fé católica e do Império português.438
Uma disposição legal do início do século XVII fazia a subdivisão das aldeias em três
tipos: Aldeias do Colégio – da Companhia de Jesus, Aldeias de El-Rei e as de “repartição”.
As primeiras eram definidas como estando à serviço do sustento dos missionários, as
seguintes destinavam-se a realizar serviços públicos em salinas e pesqueiros – por exemplo, e
as últimas como estando a serviço dos moradores. Essa derradeira caracterização engloba
436
Ofício do vigário de São Pedro ao Presidente da Província 6 de abril de 1823. DANTAS e DALLARI, 1980,
p.151.
437
Relação dos habitantes da Freguesia Missão de São Pedro do Porto da Folha, seus nomes, (...) em 1829.
DANTAS e DALLARI, 1980, p.151 e 158.
438
PINHEIRO, 2003, p.8-9.
330
outro tipo chamado de aldeia ou missão, que acabou predominando como modelo. Ficava
longe das cidades ou vilas e constituía-se em núcleos principalmente de evangelização, para a
fixação de índios em lugares remotos. No imaginário da época, a aldeia simbolizava a
fronteira entre o mundo civilizado e o selvagem.439
A formação dos primeiros aldeamentos resultou do “descimento” ou migração forçada
dos indígenas do interior para a zona litorânea. Esses aldeamentos foram desastrosos para os
índios, em decorrência da sua proximidade com a vila dos brancos, ocasionando doenças,
mortes e fugas. Num segundo momento, após um século de colonização, os religiosos
passaram a separar os aldeamentos dos povoamentos portugueses e a adaptar-se aos costumes
indígenas. A realidade desses lugares era mais ou menos a mesma em várias partes da
Colônia. A descrição de um aldeamento de São Paulo serve como ilustração: os homens eram
retirados dele para o garimpo e nunca mais voltavam, ficando as mulheres abandonadas; a
catequese era como um sistema militar, com castigos incluindo o tronco e chibatadas diárias e
os índios sendo obrigados a trabalhar alguns dias por semana para a missão.440
A empresa missionária no sertão do São Francisco entrou em choque com os
interesses dos fazendeiros de gado cuja prosperidade dependia da eliminação dos grupos
indígenas. A imagem típica desse conflito é a oposição entre o padre Martinho de Nantes e o
coronel Francisco Dias d’Ávila na segunda metade do século XVII. A razão principal dos
atritos entre os fazendeiros e os religiosos era o fato das missões serem “cidades só de índios”,
consideradas como lugares de “armazenamento de peças”, ideais para as incursões
escravistas. Até os índios não subordinados aos padres eram seus inimigos.441
As missões do rio São Francisco estavam sob a responsabilidade da Prefeitura da
Bahia (pertencente aos capuchinhos), seus missionários eram residentes, mas após a expulsão
pombalina eles passaram a ser ambulantes, não permanecendo nos aldeamentos mais que
alguns dias. Os missionários eram remunerados com recursos do erário público, mas, para
complementarem essa renda possuíam fazendas onde mantinham escravos e exploravam o
trabalho indígena. Houve casos em que os religiosos foram grandes fazendeiros. As
justificativas de Pombal para acabar com as missões atacavam esses pontos, ou seja, as
missões enriqueceram demais, não obedeciam às autoridades civis, militares ou religiosas de
fora, entre outras.
439
LEITE, 1943, p.97.
440
HOORNAERT, 1992, p.126-9.
441
OMEGNA, 1961, p.75.
331
No período imperial os aldeamentos viviam numa situação de quase abandono,
resultado da expulsão dos jesuítas em 1758. O trabalho mais sistemático dos religiosos nessa
época foi entregue aos capuchinhos italianos a partir de 1840, pelo governo regencial. Em
todo o Império, os padres totalizavam apenas 45 missionários (quando expulsos os jesuítas
beiravam 500 padres), que cuidaram de reorganizar os aldeamentos. Estes se formavam e se
desfaziam com a mesma facilidade. Até chegar a República o número de missionários foi
decaindo, até porque sua maior parte não se dispunha ao trabalho com os índios. Entre outras
razões, eles alegavam dificuldades para sobreviverem entre nas missões. Ao final do Império
brasileiro, a preocupação das autoridades com a catequese estava voltada para o norte do país
como o Amazonas, o rio Branco e o rio Negro, por isso, os capuchinhos foram chamados de
volta ao Brasil e suspensas todas as restrições anteriormente impostas a esta ordem.442
442
HOORNAERT, 1992, p.296-304.
443
Quadro da população livre da Província de Sergipe em 1849; Mapa estatístico da população livre e escrava da
Província de Sergipe em 1850.
332
indígenas geralmente era simulada, uma forma de explorar o seu trabalho, pouco tendo a ver
com uma relação filial. O “pai” adotivo, José Francisco de Oliveira, criou o índio e, depois de
adulto, providenciou o seu casamento com sua escrava, a mulata Nicácia. No dia 7 de janeiro
de 1804 sofreu a acusação de ter matado o indígena, frequentemente chamada “tapuia” na
documentação. Por esse e outros motivos foi preso e enviado para as cadeias da cidade da
Bahia, possivelmente Salvador, juntamente com outro réu, Manoel Francisco de Oliveira.444
O proprietário da engenhoca deu outra explicação para a sua prisão e para a morte do
indígena. Afirmou se encontrar em querelas com um agregado de João Batista da Sylveira,
irmão do sargento-mor, por um falso testemunho lhe imputando ter assassinado um índio de
nome José, o qual foi criado pelo réu. Agravou a morte do índio o fato de ter sido enterrado
fora da igreja. José Francisco explicou não ter matado este índio, atribuindo sua morte ao
vício de comer terra. Sobre o enterro explicou, quando ocorreu o falecimento era tempo de
inverno e, por estarem cheios os rios ele não pode conduzir o cadáver para a igreja localizada
na povoação de Estância, distante da sua morada mais de quatro léguas, assim o mandou
enterrar na beira de uma estrada pública, mas logo que os rios deram passagem ele tratou de
comunicar ao pároco do ocorrido através de um documento.445
Um breve perfil da vida de José Francisco de Oliveira é esclarecedor de como ocorria
a exploração do trabalho indígena fora da aldeia. José Francisco foi descrito como branco,
casado, idade superior a setenta anos, morador no termo de Santa Luzia há mais de quarenta
anos, afável e prestável para todos, sem nunca transgredir as leis. Exercia a função militar de
“Soldado de Acavalo” matriculado há mais de trinta anos, sendo obrigado a conservar para o
real serviço (cita um Decreto de 22 de março de 1766) armas como clavina (a qual utilizava
somente para o Real Serviço), fardamento de cavaleiro e escudeiro, sendo seu superior o
comandante capitão geral Luis da Fonseca Maciel.446
As propriedades de José Francisco de Oliveira eram uma “engenhoca” de fazer
rapadura, fábrica que contava com uma quantidade de escravos e bois para a sua manutenção
e para as outras necessidades da agricultura; atividade que o obrigava ter uma tenda, isto é,
oficina de sapateiro e outra de ferreiro, operadas por profissionais do ramo. A existência desse
tipo de atividade era comum em todas as propriedades dos senhores de engenho e demais
lavradores. Além da acusação de matar o índio José, pesava contra o senhor de engenho a
acusação de fabricar armas. Porém, na sua defesa, ele afirmou nunca ter permitido que os
444
Arquivo Judiciário de Sergipe. EST/C. 2º Of. Justificação Cível. 7 de janeiro de 1804. Cx. 01/587.
445
AJES. EST/C. 2º Of. Justificação Cível. 7 de janeiro de 1804. Cx. 01/587.
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AJES. EST/C. 2º Of. Justificação Cível. 7 de janeiro de 1804. Cx. 01/587.
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trabalhadores de sua tenda de ferreiro fizessem armas de fogo “prohibitivas pelas Sanctas
Leys”. Afirmou também possuir nas terras de sua propriedade vários agregados, tanto pessoas
estranhas como parentes seus por afinidade e por laços sanguíneos, todas essas pessoas
procediam bem, estavam no “temor de Deos”, sendo assim, em suas fazendas nunca
ocorreram procedimentos revoltosos, nem da parte de desocupados, nem da parte dos seus
agregados.447
José Francisco de Oliveira, para se defender, falou da sua vida pregressa. Destacou ter
vivido muitos anos no engenho Poços, na vila de Santa Luzia, o qual pertencia ao capitão-mor
das ordenanças da vila, Domingos de Almeida Branco. Durante esta estada nunca teve
desavenças com o proprietário nem com sua família. Com relação ao avultado número de
vizinhos da propriedade, afirmou sempre ter uma boa relação com eles, sem intrigas. Muitos
poderiam ser consultados, mas faleceram ou se mudaram por diversos motivos. Segundo ele,
a provável razão do seu encarceramento, como era do conhecimento público, era estar
“bastante intrigado” com o sargento-mor Vicente Felix a Sylveira, atual proprietário dos
engenhos Poços e Panelas, o qual era seu vizinho. O motivo da desavença foi o fato de ele
proteger um agregado do sargento-mor, Domingos José de Oliveira Santos, o qual foi
maltratado com muitas bordoadas. Essa teria sido a razão para ser denunciado perante o
sargento-mor, por Miguel de Souza, de trazer armas de defesa.
Como ocorreram as prisões? Aconteceu no dia 8 de dezembro de 1803, quando se
encontravam na povoação de Estância para participar da costumeira demonstração geral
comandada pelo capitão-mor governador das armas, com a assistência do coronel da
cavalaria. Concorreu para a prisão dos réus o comparecimento de Miguel de Souza perante a
Ouvidoria Geral do crime da capital, onde foram denunciados. Mas a prisão foi executada por
outro inimigo dos réus, o alferes Luiz Vieira de Britto. José Francisco de Oliveira foi preso
enquanto estava no seu próprio quartel, em Estância, onde iria participar do ato com o
governador das armas. Após executar a prisão, o alferes Luis Vieira que era seu inimigo,
recolheu as armas, pólvora, chumbo e balas.448
Outro episódio revela pistas de como viviam os indígenas ausentes do aldeamento. Em
novembro de 1810, o índio Felipe de Santhiago, morador no Sítio Serrado, vila de Santa
Luzia, foi testemunha no processo apurando a morte de João Barbosa Ramos. Este indivíduo
apareceu morto e, segundo seu meio irmão, Manoel do Nascimento, ela havia se ausentado de
casa no dia de Todos os Santos. Saindo com os vizinhos para procurar ao clarão no dia
447
AJES. EST/C. 2º Of. Justificação Cível. 7 de janeiro de 1804. Cx. 01/587.
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AJES. EST/C. 2º Of. Justificação Cível. 7 de janeiro de 1804. Cx. 01/587.
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seguinte, encontrou de trás de uma moita de capim e caraíbas, morto e caído sobre uma estaca
ou tora de pau. Não sabendo a causa da morte, acrescentou que seu meio irmão era doido e
destemperado.449
Felipe de Santhiago, de nação índio, era lavrador e contava com a idade de quarenta
anos. Disse ter participado no dia de finados, juntamente com outros vizinhos, da procura de
João Barbosa Ramos desaparecido de casa no dia antecedente. Avistaram um homem muito
inchado parado no clarão, morto, caído com a barriga para cima, mas não sabia quem para
isso concorreu. São poucas as informações sobre a vida desse indígena, mas sabemos que era
lavrador, provavelmente ocupando uma posse de terras, convivendo com outros posseiros
pardos e brancos.450
Um caso rumoroso envolveu o espancamento do índio Ignácio Correia, de “Nação
Tapuia”, na povoação de Estância. O fato ocorreu na noite de 20 de agosto de 1813. A
acusação recaiu sobre a mulata Bernarda, escrava de Antônio José Cabral, e outros mulatos
dos quais estava acompanhada. O cirurgião descreveu da seguinte forma os ferimentos: achou
“uma ferida na cabeça, procurando a fronte com três relepadas de boca funda ali do crânio
com couro e carne cortada e bastante efusão de sangue, que declarou não ser de necessidade
mortal, da mesma sorte achou uma contusão bastantemente inxada e de negridade e outra
igual no braço esquerdo e outra igual com ferimento na coxa direita acima do joelho que tudo
mostra ser feito com instrumento contundente”.451
O local do acontecimento foi a praça do Rosário, em Estância. Os envolvidos eram o
índio Ignácio Correia (vítima), o pardinho José Francisco, de Abadia, uma mulata de nome
Bernarda, cativa de Antônio José Cabral, outro mulatinho baixo. Segundo relatos, a mulata
Bernarda com um pau de ticum tirado da cerca do curral, feriu o índio. Outro mulato fugitivo,
nome Francisco Antônio, de Itapicuru, era amigo de Bernarda e a ajudara.452
Em seu depoimento, Úrsula das Virgens, mestiça forra, casada, moradora no Caminho
dos Patinhos, subúrbio de Estância, vinte e oito anos de idade, disse estar em sua casa
acampado um mulatinho do Hospício de nome Francisco Antônio, chegou seu companheiro
de ofício, José, chamado o caseiro, amásio da mulata Bernarda, escrava de Antônio José
Cabral. Bernarda foi comprar um pouco de aguardente, o índio Ignacio sentiu ciúmes e
quebrou a garrafa, em seguida a mulata tirou uma estaca de um curral e lhe deu a pancada que
449
AJES. EST/C. 2º. Of.- Auto de Devassa. Cx. 05/668. 08/11/1810.
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AJES. EST/C. 2º. Of.- Auto de Devassa. Cx. 05/668. 08/11/1810.
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AJES. EST/C. 2º. Of.- Auto de Devassa. Cx. 05/668. 23 de agosto de 1813.
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AJES. EST/C. 2º. Of.- Auto de Devassa. Cx. 05/668. 23 de agosto de 1813.
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lhe quebrou a cabeça, e outra no rosto dela testemunha quando foi acudir o índio. Chegando o
caseiro para auxiliar sua amásia, ambos bateram mais no caboclo.
Para outros a causa da briga foi o fato de a mulata tomar uma garrafa de bebida do
índio e este lhe dar uma pequena cipoada, como vingança, ela juntamente com um mulato do
Hospício, Francisco Antônio, lhe deram muita pancada e quebraram a cabeça. Houve
testemunha que atribuiu a briga à putaria.
O indígena aparece nas falas das testemunhas com referências diversas: é chamado de
caboclo Ignacio, um índio, “um Tapuia”, “um Tapuio”, um caboclo, “um vermelho”. Das
mais de trinta testemunhas convocadas, a maioria morava na rua do Rosário, ou próximo dela,
e era parda (22), seguida de brancos (7), mestiços (2), e um declarado “forro”. Dentre as
profissões a maioria era ferreiro ou vivia embarcado, mas aparece também um músico, um
seleiro e um oleiro. O processo foi concluído com as condenações a pena de prisão contra a
mulata Bernarda, o mulato José Francisco e o outro mulato, Francisco Antônio Moraes,
morador no Hospício. Quanto ao índio, ficamos sabendo da sua convivência pessoas da sua
condição.
Considerações finais
Podemos concluir que as pressões sobre os aldeamentos indígenas ocorreram desde a
sua formação na fase colonial e se acentuaram no século XIX. Estavam relacionadas com a
cobiça pelas terras das aldeias, com a exploração do trabalho indígena e com a administração
dos bens e terras desses estabelecimentos. Como resultado, ocasionavam fugas de pequenos
grupos, deslocamentos da aldeia inteira, ou a saída de indivíduos para sobreviver fora do
mundo do aldeamento.
Apesar das disputas, viver no aldeamento e identificar-se como índio, era um benefício
e garantia o direito à terra. Nas poucos casos apresentados, pois é um estudo em andamento, a
vida dos indígenas não parece se diferenciar daqueles que ficaram nas aldeias. Fora desta,
restava a prática da agricultura como posseiro de um pedaço de terra irregular ou viver
agregado sob o poder de algum senhor de engenho. Em todos os casos, os indivíduos são
identificados inequivocamente como indígenas. Sendo casos da primeira metade do século,
possivelmente demonstrem a valorização da identidade como um elemento garantidor de
direitos, apesar de estarem dispersos e dos preconceitos enfrentados.
336
REFERÊNCIAS
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aldeias coloniais do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 2003.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Os índios na História do Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2000.
DANTAS, Beatriz G. DALLARI, Dalmo A. Terra dos Índios Xocó: estudos e documentos.
São Paulo: Editora Parma, 1980.
HOORNAERT, Eduardo. Et alli. História da Igreja no Brasil. 4ª ed. Petrópolis: Vozes; São
Paulo: Paulinas, 1992.
OMEGNA, Nelson. A Cidade Colonial. Rio de Janeiro: Ed. José Olympio, 1961.
REGO, André de Almeida. Deslocamentos espaciais de índios nas aldeias e vilas indígenas da
Bahia do século XIX. Revista Trilhas da História. Três Lagoas, v.2, nº 4, jan-jun 2013. p.48-
67.
SILVA, Amaro Hélio da Silva. Trabalho indígena na formação das Alagoas (século XIX): os
índios das matas nas falas e relatórios oficiais. Anais do XXVI Simpósio Nacional de História
da ANPUH, São Paulo, 17 a 22 de julho de 2011.
337
TERRAS INDÍGENAS E LIBERALISMO
Introdução
O liberalismo, doutrina liberal ou política liberal tem suscitado intensos debates desde
longa data. Porém é preciso esclarecer que desde sua concepção as ideias liberais passaram
por diversos enfoques, mas o que é o liberalismo? O liberalismo é uma corrente ou
pensamento que toma ao indivíduo como responsável de seu próprio destino, não existe um
determinismo seja este religioso, econômico ou social, de alguma maneira todos podem
alcançar a prosperidade por meio de seu próprio esforço.
A pesquisa está estruturada da seguinte forma. Começa expondo os antecedentes do
pensamento liberal na visão de diferentes autores como Max Weber e Richard Hooker.
Posteriormente, trabalha os três estágios do liberalismo para logo passar até a primeira crise
do modelo liberal na Inglaterra do século XIX com a aparição do socialismo. Fazendo um
paralelo, veremos a situação do liberalismo na América Latina. Finalmente, analiso como a
doutrina liberal na América Latina foi decisiva para a realidade de pobreza e exclusão dos
indígenas na região, embora existam exemplos de reforma agrária, como o caso da Bolívia,
que conseguiu uma divisão de terras adequada. (Muñoz e Lavandez, 1997: 56).
O foco da pesquisa será o contexto histórico que fez possível a situação dos indígenas
da América Latina na atualidade. Desde o momento da independência, continuando com as
estruturas tradicionais oligárquicas até a aparição do Estado burguês e as consequências
políticas e econômicas que trouxe para a população indígena.
Finalmente, este trabalho pretende contribuir com a discussão referente à questão
indígena, um problema complexo, pois os indígenas não compartilham o mesmo modelo de
sociedade consumista e, por isso, as políticas públicas em relação a eles têm que ser
específicas e que procurem melhorar sua situação.
Antecedentes Históricos
Já no século XVI é possível identificar algumas sementes de onde surgiria o
pensamento liberal. Diversos autores afirmam, com destaque para o sociólogo alemão Max
Weber, que as sementes podem encontrar-se na doutrina protestante. Também o pastor inglês
338
Richard Hooker defendia a separação entre a Igreja e o Estado, fato necessário para a aparição
de um pensamento secular.
Ao falar do liberalismo é importante entender que não existe um liberalismo único,
pois este sofreu diversas mudanças ao longo do tempo, assim como as diferentes direções que
tomou no contexto em que era utilizado. Nesse sentido, pode entender-se como um primeiro
estágio do liberalismo à chamada filosofia liberal que destaca o filósofo inglês John Locke,
denominado o pai do liberalismo. Na obra Segundo Tratado do Governo Civil (p.10), Locke
indica que o homem tinha uma propriedade em seu próprio corpo e por meio de seu próprio
trabalho poderia conseguir bens, em outras palavras os bens são a extensão de seu próprio
corpo o que torna o princípio da propriedade privada. Este pensamento é crucial pois torna a
propriedade como um direito natural e algo inerente ao homem.
O segundo estágio histórico do liberalismo é o chamado liberalismo econômico que
posteriormente, foi uma projeção do liberalismo político. Neste caso, a figura corresponde ao
pensador escocês Adam Smith em sua obra Riqueza Das Nações (pag.13) que estipulou que o
Estado não deveria interferir nas ações económicas, pois estas encontram-se já
regulamentadas por meio de leis naturais como a mão invisível, entenda-se mercado. Neste
momento as leis da produção deixou de lado uma utilidade coletiva ancestral. mudaram,
foram encontrados novos modelos de produção aparecendo assim o capitalismo.
É com a Revolução Francesa no século XVIII que aparece o liberalismo político já
definido. As ideias de liberdade, cidadania e igualdade dos iluministas franceses ganharam
uma força surpreendente que motivou a mudar a ordem política na França monárquica.
Estas ideias com o tempo foram ultrapassando fronteiras até chegar a América. As
ideias da revolução de 1789 estiveram presentes no momento da declaração de independência
das treze colônias americanas que posteriormente formaram os Estados Unidos. Pode-se dizer
sem sombra de dúvidas esta este documento é manifesto eminentemente liberal.
Na Inglaterra do século XIX com a descomposição do utilitarismo ortodoxo, um
renovador de certos princípios da escola clássica foi David Ricardo. Em sua obra Princípios
de Economia Política e Tributação 1817, reconhece a propriedade privada como uma
necessidade social e uma fonte de riqueza. Desse modo as leis de produção são consideradas
como eternas e naturais (pag.19). Aqui se vê que os antigos modelos do liberalismo clássico
são transformados em paradigmas o que levaram posteriormente a uma crise do liberalismo.
Posteriormente, com o advento da escola utilitarista que propunha um individualismo
abstracto, o modelo econômico liberal começou sendo deixado de lado pelo socialismo
339
incipiente no século XIX, um retorno a filosofia liberal clássica que os especialistas
acostumam chamar de “escola idealista” de Thomas Hill Green. O socialismo enfraquece a
influencia das doutrina liberais nas políticas públicas aparecendo um novo enfoque que
pretende estabelecer um novo modelo de produção e uma nova ordem social.
340
cultural de seus ancestrais levando a um processo de exclusão histórico. Pode ser o caso de
países como Mexico, Ecuador, Perú e Bolivia.
Embora a pluralidade de uma nação seja uma sinal de riqueza cultural se faz difícil a
construção de uma proposta homogênea capaz de englobar todos os grupos sociais.
Seguindo a tendência liberal, cujo postulado é que a riqueza se origina por meio da
labor do indivíduo deixando ao Estado livre de qualquer compromisso económico, muitos
países entenderam que o desenvolvimento passava por liberar as terras produtivas ociosas que
naquele momento estavam na posse dos grandes proprietários. Assim temos um modelo onde
aparecem oligarcas com tendências conservadoras.
Esta maneira de abordar a problemática económica e social, contraria ao que muitos
pensam está enraizada em uma profunda raiz liberal. Efetivamente, o filósofo inglês John
Locke (2005, p.5) postulava que a propriedade era fruto do trabalho, uma extensão do corpo
da pessoa que transforma aquilo que esta na natureza em propriedade sua. Vemos aqui que a
propriedade é um principio moral, aquele que realmente trabalha – neste caso a terra – deve
ser sua propriedade.
O problema que suscita – e efetivamente suscitou – é que existe uma brecha enorme
entre o proprietário lockiano e a realidade latino-americana. Os índios viviam em condições
de extrema pobreza, com uma alta taxa de analfabetismo, não tinha as ferramentas necessárias
para alcançar um sistema produtivo coerente que impulsionasse seu desenvolvimento
econômico e social.
Visto deste modo o acesso à terra foi somente o primeiro passo, pois o sistema
colonialista e explorador – a outra cara do sistema – submetia estas pessoas humildes a um
circulo vicioso de pobreza, apatia e desesperança.
Não existia também iniciativa para formar Estados produtivos. Os modelos
econômicos tinham como objetivo o papel extractor de riquezas com o intuito de conseguir
matéria primas a industria ou as iniciativas privadas eram muito incipientes.
Para poder facilitar uma visão rápida do que pode considerar-se como panorama geral
do liberalismo latino-americano no século XIX, e sem ignorar o desfase histórico e ideológico
que se observa no caso de alguns países e figuras individuais, como aconteceu com a tardia
maduração do pensamento liberal em Bolivia e Equador se inclui o seguinte esquema: (Diaz,
2010: 10)
341
A questão indígena devemos considera-la a partir de uma revisão histórica onde nos
remite ao estudo de um fato fundamental em todos os países latino-americanos: o fato
colonial. América Latina atualmente é fruto da condição histórica produto da colônia. Desde o
primeiro momento em que a conquista europeia se instalou em América o que antes foi um
conjunto de grandes sociedades independentes, começaram a perder sua autonomia e
passaram ser satélites de uma metrópole colonial que impus sua organização política que
quebrou a matriz económica redistributiva das sociedades andinas e da América Central para
submeter a seus habitantes a um tipo de produção para o mercado, dentro de relações de
produção servis.
As formas económicas-políticas e ideológico-culturais impostas pelos europeus para
montar seu próprio império colonial se impuseram como as únicas formas nacionais em seu
alcance geográfico e su organicidade. Os povos indígenas começaram perder as condições
históricas para seu desenvolvimento autónomo. Desde então a reprodução de suas formas
económicas, políticas e cultural-ideológicas que se fez dentro do sistema colonial ia
introduzindo nos povos indígenas.
A independência da Espanha não significou para muitos ou quase todos os povos
indígenas de América Latina o rompimento da situação colonial. Pelo contrario, o processo
republicano aprofundou a dominação sobre os indígenas. A monarquia espanhola tentou
conservar o indígena e sua legislação foi eminentemente protecionista e afirmando uma
suposta inferioridade do índio.
E importante citar aqui a figura de José Carlos Mariategui. Um dos principais
pensadores do socialismo; no Perú que embora proclama certas doutrinas que o aproxima ao
pensamento liberal, em seu Sete ensaios da Interpretação da Realidade Peruana, sustenta que a
questão indígena começa da economia, tendo suas raies no regime da propriedade da terra,
embora que sua estrutura não seja liberal, mas feudal. Nesse sentido o indígena esta submerso
em uma condição onde é submetido de maneira sistemática por causa não de um modelo
liberal, mas ao contrario por um modelo onde esta presente um pensamento feudal onde um
grande senhor ou proprietário controla a terra. (pag.27)
Mariategui continua. O programa liberal da independência compreendia também a
redenção do índio e seus postulados igualitários, embora isto, a aristocracia conservou a
estruturas das colônias e seu direitos feudais sobre a terra e por conseguinte do índio. Ele
compara o virreynato como um regime medieval e estrangeiro onde a figura da republica
deveria redimir as condições de seus cidadãos como fez a revolução na França com seus
342
ideários liberais. (pag. 42) Não entanto, a republica só consistia na troca de uma classe
dominante que terminou apropriando das terras indígenas. Em outra palavras não se podia
falar de promoção do indio mantendo as mesmas estruturas medievais que truncavam seu
desenvolvimento social. (pag. 63)
Na América Latina, a estrutura da tenência da terra se caracteriza por dois tipos de
propriedade: a concentração da terra agropecuária privada em mãos de poucos proprietários e
a terra comunal em mãos de comunidades campesinas e grupos indígenas. Uma grande
proporção da terra agropecuária privada está controlada por uma porcentagem pequena de
proprietários quem também tem os melhores terrenos para cultivo, deixando à maioria de
famílias campesinas sem terra ou com tão pouca que não satisfazem suas necessidades
básicas. (Diez Hurtado, 2010: 10)
Ao longo de varias décadas (de 1950 a 1980) de reformas agrarias que tentaram
redistribuir a terra aos minifundistas e camponeses sem terra, pode-se perceber nos anos
oitenta e noventa, que os países adotaram políticas neoliberais, em outras palavras, um
abandono os programas de reforma agraria. A falta de vontade política e de apoio
internacional, junto com a pouca capacidade do setor reformado de converter suas parcelas
em unidades agrícolas altamente produtivas orientadas à produção para o mercado,
contribuindo a que os governos desmantelassem os programas de redistribuição. (Lastarria,
2011: 62)
O desenvolvimento agrícola e rural almejado com a reforma agraria e a distribuição
de terra aos pequenos camponeses, foram substituídos com programas para favorecer o
mercado de terras: a titulação ou legislação de direitos e a modernização das instituições de
administração da terra (os registros públicos e os cadastros). Esta viragem nas políticas
agrarias se justificava em supor que a titulação asseguraria os direitos de propriedade para
todos os proprietários incluindo os camponeses; lhes daria acesso ao crédito bancário e
promoveria o investimento e produção agropecuária, ao mesmo tempo que criaria um
mercado dinâmico de terras: requisito básico para o uso “eficiente” da terra. A sua vez, por
médio deste mercado dinâmico de terras se geraria a redistribuição das terras dos
latifundiários e camponeses improdutivos para os produtores mais eficientes. (Lastarria, 2011:
62).
Na realidade latino-americana não há crédito bancário para pequenos produtores.
Apesar de ter títulos de suas parcelas, camponeses com pequenas extensões de terra não
podem aceder ao crédito para a produção agropecuária e menos para investimentos em terra.
343
As terras comunais, ou seja aquelas em mãos de comunidades camponesas ou
indígenas, geralmente segue um modelo de uso que combina a exploração individual de terras
cultiváveis e algum tipo de controle comunal sobre terras para pastar e terras para fins
florestais. Coma comercialização da agricultura e os projetos de titulação, a forma de
propriedade comunal esta-se transformando em propriedade privada e individual. Grupos
indígenas também controlam grandes extensões de terra, frequentemente áreas de floresta.
Países como Bolivia e Equador explicitamente reconhecem os direitos ancestrais de grupos
indígenas outorgado direitos sobre seu território. O Estado geralmente deixa a administração
destas terras sobre o governo de um grupo indígena. Sua propriedade também está sofrendo
transformações a raiz da comercialização da produção agropecuária e outros fatores como a
influencia de concessões a companhias agro exportadoras, petroleiras e madeiras dentro ou
perto do território indígena.
Como ja se fez menção, quando se outorgam títulos coletivos, a distribuição de
direitos à terra dentro da comunidade é decidida geralmente segundo as normas
consuetudinárias do momento. Pode ser que estas práticas não estejam em função com as
normas e regras formais que reconhecem iguais direitos e acesso a terra. Inclusive é comum
que extensões significativas de terra e recursos naturais estejam em mãos de homens da
comunidade.
A comparação de caso pode nos ajudar a explicitar esta problemática. Como a maioria
dos países America Latina Bolivia e Guatemala tiveram uma estrutura de tenência dominada
pela fazenda e o latifúndio desde a colônia e durante o século XX. Ate meados de dito século,
nos dois países a população e a produção agrícola se concentravam na região da serra. Os
processos políticos foram diferentes tanto pelos impactos na estrutura e nas formas de
tenência da terra por parte da população indígena.
O planalto temperado da Guatemala e a serra na Bolivia são as regiões mais
densamente habitadas de ambos países, a maioria da sua população é indígena. A diferença da
região do litoral, predomina o parcelamento de pequenos espaços no altiplano. Atualmente as
terras comunais no sentido que tem a propriedade comunal quase não existe na Guatemala,
inclusive no planalto, pois o estado se nega a reconhecer os direitos destas comunidades
indígenas impondo um modelo de propriedade privada individual. Neste caso, é perceptível
que os interesses do governo está orientado a favorecer o setor latifundiário, pois a ideologia
das comunidades indígenas não é a propriedade privada nem a lógica que companha
economia do mercado.
344
Por tradição indígenas na Guatemala as terras cultiváveis, pelo geral, são passadas de
pais a filhos, nesse sentido a agua e a floresta da comunidade são de propriedade comunal.
Neste caso a família e a comunidade indígena utilizam a terra não como sua propriedade e
para ser explorada, mas como recurso que a natureza oferece. A terra é fonte de vida e não
fonte de riqueza material. Os títulos de terra que possuem os indígenas não significam uma
mercadoria, mas o direito de utilizar esta parcela para alimentar à família. Pese ao
conhecimento desta realidade cultural o governo da Guatemala não tem formulado e aprovado
normas agrarias necessárias que sistematize os conceitos e direitos que corresponde aos
indígenas nem a propriedade coletiva.
No caso da Guatemala parece que oficialmente não existe uma tenência que poda ser
chamada de comunal.fora das áreas de floresta. Desde a independência do país o estado
liberal guatemalteco tentou destruir as comunidades indígenas promovendo a propriedade
privada e permitindo que os latifundiários produtores de açúcar, café e criadores de gado. A
legislação em Guatemala impus desde 1825 a propriedade privada, começando pelas terras
abandonada e depois pelas terras das comunidades indígenas. Embora poucas comunidades
privatizaram suas terras naquela época, os latifundiários terminaram se apropriando das terras
situadas nos municípios com maioria indígena principalmente como resultado de invasões,
porém também por intermédio da compra. Se calcula que desde a colônia, as colônias
indígenas perderam a metade de suas terras. As tentativas que se deram desde a década de
1950 de redistribuir terras a camponeses (pois segundo a ideologia liberal ja não tinha
indígenas) foram derrotadas.
A distribuição da terra em Guatemala é bastante desigual: em 1979 segundo um censo
agropecuário; 2,6% das fincas ocuparam 65% da terra agrícola. Em promédio estas
propriedades tem uma superfície de 900 hectares. Alem disso, a concentração da propriedade
nos lugares com terras mais férteis. Um informe do Banco Mundial no ano de 1994 a baixa
utilização da terra, junto com uma distribuição sumamente desigual, significa que a maioria
da população rural não tenha acesso à terra para subsistência nem oportunidades de conseguir
emprego assalariado nas fincas grandes. Estes dois fatores, junto com as políticas agrarias
orientadas à exportação, contribuem à situação de pobreza e extrema pobreza da população
rural – leia-se indígena – na Guatemala.
Por outro lado na Bolivia, as terras comunais existem tanto no planalto como nos vales
andinos, assim como na terras baixas onde tem presença de grupos indígenas são
reconhecidas pelo Estado. O movimento indígena na Bolivia é muito forte e ativo. Durante as
345
reformas neoliberais dos anos noventa, os povos indígenas fizeram conhecer suas chamadas
para o reconhecimento de seus territórios e culturas. Em agosto de 1990, os povos indígenas
das terras baixas organizaram uma marcha para a sede do governo em La Paz. O resultado
principal foi o reconhecimento de suas demandas e em 1994 se reformulou a constituição para
incluir uma definição de Estado como diverso etnicamente e multicultural.
Posteriormente entre 1993 e 1996, os povos indígenas fizeram campanha para a
titulação comunal de suas terras e ter acesso a seus recursos naturais. Anteriormente, os povos
indígenas simplesmente não estavam reconhecidos. Em 1996, a lei INRA (Instituto Nacional
de Reforma Agraria da Bolivia) reconheceu a propriedade comunal e a criação e titulação de
territórios indígenas.
Em Bolivia, o Estado pós colonial liberal tentou converter as terras comunais que
ainda existiam em terras privadas. A venda e ocupação forçada das terras das comunidades
passou suas propriedades à população criolla para formar grandes fazendas. A estrutura da
propriedade era extremamente concentrada, especialmente no planalto e os vales andinos,
onde a começo do século XX aproximadamente 4% dos proprietários controlaram 82% da
terra. Depois de vários anos de mobilização camponesa contra as condições de trabalho
extremamente inumana nas fazendas uma reforma agraria relativamente radical foi instaurada
em 1953.
Na Bolivia após de meio século de reforma agraria e de colonização nas terras baixas,
a distribuição de famílias rurais e de terra segue sendo altamente desigual. Mais da metade
das famílias camponesas mora no planalto em parcelas cuja extensão não ultrapassa as três
hectares e com terras de baixa produtividade que apenas permite subsistir. Outro 20% vive e
trabalha nos vales andinos onde as terras são mais férteis, onde as parcelas podem produzir
ate dois cultivos por ano com irrigação apropriada. Outro 20% da população da população
camponesa mora nas terras baixas onde se trabalha em parcelas mais grandes de 20 a 30
hectares. Os latifúndios estão situados geralmente nesta região que gera a maioria dos
produtos agropecuários comerciais e quase toda a exportação agrícola consistente em soja,
cana de açúcar e algodão. (Lastarria, 2011: 9).
Uma possível razão para que na Bolívia se tenha distribuído terra a famílias
camponesas, é que su reforma agraria de 1953 introduz a figura legal da função social da
terra. A lei 1,715 e a lei 3,545, mais as constituições de 1967 (artículo 7º) e de 2009 (Articulo
56º) reconhecem o direito de cada pessoa à propriedade individual e colectiva, e afirmam a
função social da propriedade da terra. Por outro lado na Guatemala nunca se definiu uma
346
política explícita que borde o problema de acesso à terra e reconheça a função social da terra,
apesar de ser este um dos compromissos do Estado adquiridos no acordo de paz de 1996.
Embora a distribuição de terra tanto na Guatemala como na Bolivia está muito
concentrada, o fato que Bolivia tivesse uma reforma agraria relativamente efetiva nas décadas
de 1950 e 1960 gerou a distribuição de terras entre a população indígena, tanto na serra como
nas terras baixas. Porém, a distribuição de terras em ambos países está altamente desigual, o
resultado é que as famílias indígenas carecem de terra apropriada que garanta seu sustento.
Consideraciones finais:
O pensamento liberal latino-americano em seus inícios esteve cheio de boas intenções.
Junto como ele acompanhou um espírito progressista latino-americano que combinou, ao
longo do século XIX as aspirações democráticas, embora de um grupo reduzido da população.
A população indígena historicamente submetido por causa de uma modelo latifundiário
medieval encontrou uma resposta positiva no começos do século XX. Países de maioria
indígena como no caso da Bolivia criaram estatutos especiais que permitem respeitar sua
cultura e o acesso a terra de maneira ancestral.
Embora este panorama existe ainda um longo percurso para que a população indígena
seja consciente de seus direitos e alcance finalmente o status de cidadania. Em palavras de
Mariategui esta tarefa corresponderia a eles e teria que passar por uma solução social pois s
ideias de individualidade e mercado são desconhecidas para eles e difíceis de por em prática.
Referências
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348
OPOSIÇÃO AO PODER DA RELIGIÃO OFICIAL EM SERGIPE
COLONIAL
Priscilla da Silva Góes453
Como esta era uma época onde a Península Ibérica estava iniciando a colonização da
América, muitos judeus que decidiram aceitar a religião católica para não ter que saírem de
seus países de origem acabaram vindo para as Colônias fugidos, em forma de degredo457 ou
simplesmente na tentativa de iniciar uma vida com menos pressão por parte da Inquisição e
aqui acabaram deixando suas marcas. Os judeus que se convertiam ao catolicismo eram
chamados de “cristãos-novos” para fazer diferença entre os de famílias católicas que eram
chamados de “cristãos-velhos”.
453
Mestranda em Ciências da Religião /PPGCIR-UFS; bolsista da Fundação de Apoio à Pesquisa e Inovação
Tecnológica do Estado de Sergipe (FAPITEC/SE) e membro do Grupo de Pesquisa "Diáspora Atlântica dos
Sefarditas".
454
Foi rei de Portugal entre os anos 1481 a 1495.
455
Foi monarca português de 1495 a 1521.
456
O Decreto de Alhambra: Assinado pelos reis da Espanha em 31 de março de 1492. Em 1496 o rei de Portugal
impôs aos judeus do reino: Ou se convertiam ao catolicismo ou seriam expulsos.
457
O degredo era um dos tipos de punições da Inquisição. Consistia em afastamento compulsório da terra natal
por certo tempo ou por toda vida. Ver mais em CIDADE, Rodrigo Ramos Amaral. Direito e Inquisição, o
processo funcional do Tribunal do Santo Ofício. 5ª ed. Curitiba: Juruá, 2009, p.88.
349
Obrigar um povo a aceitar outra religião não é algo simples. Muitos judeus que não
quiseram fugir aceitaram a nova religião por conveniência, e em alguns casos tentaram
expressar sua fé judaica escondido, das mais variadas maneiras. A esse judaísmo secreto
damos o nome de criptojudaísmo.
Sobre esse assunto, Carsten L. Wilke em seu livro História dos Judeus Portugueses
nos dá um panorama do que significou tal ato:
Essa “forte coesão social” a que Wilke se refere ultrapassou o Oceano e se espalhou
pela América espanhola e portuguesa. No caso do Brasil, há alguns estudos sobre essa
temática como os feitos por José Gonçalves Salvador, Anita Novinsky, Elias Lipner, José
Antônio Gonçalves de Mello, Nelson Omegna, Geraldo Pieroni, Ronaldo Vaifas, Lina
Gorenstein, Caesar Sobreira, Renata Rozental Sancovsky e Ângelo de Assis. Tais estudiosos
têm pesquisas relevantes sobre a inquisição e os cristãos-novos tanto na Península Ibérica
quanto no Brasil.
350
Esse artigo faz parte da pesquisa de mestrado que estamos desenvolvendo no curso de
ciências da religião da Universidade Federal de Sergipe, tendo como objetivo estudar dois
casos de cristãos-novos acusados de judaizantes em Sergipe del Rey Diogo Vaz Penalvo e
Antõnio da Fonseca.
Na obra já citada de Luiz R. Mott, o autor tratou a partir dos processos inquisitoriais
da Torre do Tombo, dos casos investigados pelo tribunal do Santo Ofício em Sergipe. Ele
identificou os principais motivos da perseguição religiosa na referida capitania que seriam
351
praticar as “seitas” de Maomé e Moisés, a bigamia, feitiçaria e sodomia. Ele também ressaltou
que, no período da invasão holandesa ao Brasil, muitos judeus tentaram escapar das
perseguições da igreja, a qual, por sua vez, passou a persegui-los ainda mais atentamente.
Além disso, os cristãos-novos também eram acusados de ajudarem os holandeses na luta
contra Portugal, por isso, constituíam-se de grande ameaça para a hegemonia do catolicismo
na Colônia (MOTT, 2013: 41).
Segundo o processo da Inquisição, Diogo Vaz Penalvo veio para o Brasil em 1653, o
que confere com a documentação do Arquivo Histórico Ultramarino458 onde encontramos
dados sobre sua vida no exército português nas Colônias. Antes de ser sargento-mor ele foi
soldado alferes459 de 1653 a 1662, sendo que em 1653 chegou a Pernambuco e lutou contra os
holandeses, indo posteriormente à Bahia, onde ficou até 1659, indo à Angola como capitão de
infantaria, e foi nomeado como sargento – mor de Sergipe em 6 de junho de 1666.
Porém, antes que fossem completados os três anos do cargo de sargento – mor ele foi
preso na Bahia pelo Tribunal do Santo Ofício em 19 de agosto de 1667. Sua irmã Anna
Rodrigues havia sido presa em Lisboa pelo mesmo tribunal em 1662 e confessou que
458
Conselho Ultramarino Brasil-Sergipe, 06 de julho de 1666.
459
Cargo cuja função consistia no soldado que carregava a bandeira do país nas batalhas.
352
judaizava juntamente com seus irmãos. A sua sentença foi o degredo para Brasil por três anos
e o uso do hábito penitencial.
O degredo era uma das penitencias adotadas pela Inquisição, que “consistia em
mandar uma pessoa condenada pela Inquisição para um local diferente do seu domicílio”
(CIDADE, 2009: 88). Já o uso do hábito penitencial ou sambenito, era uma roupa especial
que deveria ser usada pelo sentenciado pelo prazo que os inquisidores estabelecessem. Essa
foi a pena mais concedida aos cristãos-novos.
Foi a confissão da irmã de Diogo Vaz que fez com que o processo se iniciasse contra
ele. O réu foi entregue ao cárcere secreto da Inquisição em Lisboa em 8 de dezembro de 1667,
sendo sua primeira audiência em 17 de janeiro de 1668. Na ocasião, foi admoestado a
confessar suas culpas, mas sem dizer por que ele estava ali. Então, ele confessou que praticou
a sodomia com Simão de Andrade. O inquisidor o admoestou pe a não cometer mais tal
pecado, e que se afastasse de pessoas que pudessem provocá-lo a cometê-lo.
Mesmo após as torturas Diogo Vaz continuou afirmando ser inocente. A sua sentença
final foi dada em 21 de fevereiro de 1669, onde os Inquisidores afirmam que o réu vivia
apartado da fé católica, porém, como não há provas suficientes para sua condenação para a
pena máxima, sua sentença foi de ir ao Auto de Fé461 de 31 de março de 1669 com vela acesa
na mão para ouvir sua sentença que foi abjurar de levi462, sentenças espirituais e usar o
sambenito ou hábito penitencial por alguns anos (não disse quantos), além do confisco de
bens que já tinha sofrido no início do processo.
460
O primeiro “perdão geral” aconteceu em 07 de abril de 1533, onde o papa anistiou todas as faltas anteriores a
essa data (WILKE, 2009: 82)
461
Eram cerimônias, geralmente anuais, onde as sentenças dos processos concluídos pela Inquisição eram lidos.
Havia uma procissão e uma missa e era imprescindível a participação das pessoas assistindo ao “espetáculo”, que
servia como um exemplo do que acontecia com quem andasse fora dos caminhos da Igreja.
462
Abjurar de Levi: Segundo o Manual do Inquisidor, o acusado que teve fracas suspeitas, deveria abjurar
publicamente no auto-de-fé que não compactua com as heresias que fora acusado.
354
Moisés. Seu irmão foi sentenciado com hábito penitencial perpétuo em 06 de setembro de
1726.
Até onde analisamos o réu não confessou ser culpado das acusações de judaizante,
embora houvesse acusações por parte de outras pessoas de que ele não trabalhasse aos
sábados, que não comia carne de porco e não falava no nome de Jesus. A sua defesa foi feita
por seu procurador alegando que ele era um bom católico, que sempre ia à igreja, se
confessava, comungava, venerava os sacramentos e as imagens. Além disso, ele servia na
Irmandade do Santíssimo onde residia e fazia caridades ajudando principalmente os doentes.
As fontes inquisitoriais trazem uma riqueza de elementos que podem ser estudados
pelo historiador. No entanto, ela revela somente um lado do fato, o que o Inquisidor queria
que fosse perpetuado. Devemos ter clareza que os momentos dos interrogatórios consistiam
em nervosismo, angústia, tristeza, humilhação e raiva para os acusados. Nos casos que
estudamos, eles foram afastados da família, presos em outro país longe dos amigos. A postura
que adotam de não confessar podem ser entendidas de duas maneiras principais: Ou realmente
eram inocentes no que os acusavam, apesar de terem descendência cristã-nova, não
praticavam os ritos judaicos, ou, mentiram para não serem levados a pena máxima, a fogueira.
Uma confissão poderia também acarretar o envolvimento de outras pessoas do seu convívio,
que passariam pelo mesmo processo que eles.
Viver uma religiosidade aparente e outra sigilosa. Essa foi durante muitos anos a
experiência criptojudaica. Resgatar os por menores dessa história é algo denso e complexo.
Nesse campo de estudo ainda há muito que investigar. A religiosidade judaica foi colocada de
lado durante muito tempo no que se refere aos estudos sobre a matriz da religiosidade
brasileira. Porém, novos estudos nessa área estão revelando que a resistência religiosa foi tão
forte que passou a caracterizar vários dos costumes de boa parte do povo brasileiro.
Percebemos, portanto a importância de ampliarmos as pesquisas nessa área no Brasil.
355
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358
MARCHA POR DEUS E PELA LIBERDADE EM SERGIPE (1964): CULTURA
POLÍTICA, CONSERVADORISMO SOCIAL E MUSEALIZAÇÃO, COM ÊNFASE
NA PESQUISA E BANCO DE DADOS
INTRODUÇÃO
O Brasil estava imerso, nos idos da década de 60, numa desordem político-
administrativa que implicou no advento duma serie de contínuas articulações em nossa ascese
eletiva. Conforme as literaturas que se debruçam sobre as metamorfoses do período em tela,
as intervenções estratégicas para a consolidação dos militares no seio da direção executiva do
país remetem, sobretudo, ao ano de 1961, quando da renúncia de Jânio Quadros.
Desde então, em meio a um cenário de intensa mobilização política, principalmente
após a nomeação de João Goulart para assumir o posto presidencial, registrou-se a realização
de algumas manifestações populares e sindicais, cujo uso tácito de suas atribuições operou
sob ópticas dicotômicas. Em um espectro, determinados grupos de extrema-esquerda,
corporificados pelos movimentos sindicais e membros das forças navais, declararam apoio
incondicional a permanência de Jango, sob a alegação de respeitar a idoneidade da Carta
Constitucional; noutro, à articulação dos atores da extrema-direita, respaldados por
instituições civis, militares e religiosas, assentadas em uma orientação conservadora e
reacionária, reivindicavam a deposição do presidente em exercício, sob o pretexto de repelir
quaisquer intervenções que fossem responsáveis pela implementação de uma ditadura
comunista, uma vez que existia demasiada ojeriza ao citadino regime, sobretudo após o
desfecho positivo para os ortodoxos revolucionários cubanos, artífices da instauração de uma
“ditadura vermelha” no país caribenho.
Partindo destes pressupostos, o presente projeto de pesquisa, representado mediante a
produção desse manuscrito, consiste em investigar uma manifestação pública atribuída aos
atores que constituíram a extrema-direita: a “Marcha por Deus e pela liberdade”. A citadina
represália aos movimentos esquerdistas é proveniente de São Paulo e, em escala gradativa,
irrompeu pelas demais regiões do país. Nosso recorte espacial, no entanto, reduzir-se-á
Sergipe, o qual foi palco de várias mobilizações nos municípios do interior.
463
Graduando em Museologia pela Universidade Federal de Sergipe e bolsista Pibic/CNPq (2015/2016).
359
A problematização do presente empreendimento reside, com efeito, nas seguintes
indagações: onde e de que modo foram realizadas as manifestações no seio do golpe de 64?
Como a Museologia poderá contribuir para disponibilizar uma reflexão crítica desse virulento
período da história política local?
Para tanto, a presente produção prescreveu algumas diretrizes visando responder as
inquietações e concretizar os resultados preliminares estabelecidos pelo exercício da
atividade, dentre os quais destacamos a identificação de percursos, participantes, motivação
das marchas pela família em Sergipe e os impactos na cultura política local; elaboração de
uma base de dados eletrônica com informações sobre o tema, a partir do material pesquisado
em arquivos textuais e fontes documentais; realização de exposições itinerantes onde
aconteceram as marchas, musealizando os documentos pesquisados; e, por fim, organização
de mesas-redondas nas quais os alunos e a coordenação do projeto possam construir reflexões
conjuntas com professores de História e Geografia de escolas públicas sergipanas.
Os procedimentos metodológicos que nortearão o desenvolvimento das atividades
subdividiram-se em algumas etapas, com ênfase no levantamento documental nos centros de
arquivo do Estado, além da coleta de informações orais, levantamento bibliográfico e
discussões teórico-metodológicas.
Destarte, o presente artigo está discernido em duas seções. A primeira, em linhas
gerais, versará sobre o contexto da deflagração do golpe militar, interpretando analiticamente
a conjuntura política nacional que alude a gestão de Jânio Quadros e estender-se-á deposição
de João Goulart. A segunda, por sua vez, narrará os impactos causados pela ascensão dos
militares na cultura política de Sergipe, tomando como eixo analítico a realização da Marcha
por Deus e pela liberdade.
SOB OS AUSPÍCIOS DO “COMBATE A SUBVERSÃO”: O CONTEXTO DO GOLPE
MILITAR DE 1964
Embora a deflagração da contrarrevolução464 tenha consolidado-se em 1964, os
mecanismos que condicionaram às desarticulações estruturais do modelo político vigente
datam de 1960-1961. Neste período, em decorrência da aplicação de ações executivas mal-
sucedidas, a popularidade de Jânio Quadros foi acometida a um substantivo decréscimo,
projetando alguns aspirantes para a sucessão presidencial, conforme previam as prerrogativas
da Carta Constitucional de 1946. Tendo em vista a iminente possibilidade de ser pressionado
464
Para Ibarê Dantas (2014), julgou-se mais apropriado caracterizar a intervenção em curso de contrarrevolução,
pois apresentava uma natureza preventiva e neutralizadora das novas correntes políticas que surgiam, além de
estabelecer um sentido propositivo para implementar uma nova ordem político-administrativa.
360
a renunciar através da pressão exercida pela opinião pública, o até então chefe do poder
executivo envia o vice-presidente João Goulart para à China comunista, afirmando que o
objetivo do compromisso de Jango consistia em empreender intervenções efetivas, visando
estreitar as relações comerciais e diplomáticas com Pequim.
Desse modo, segundo atesta Ricardo Souza Mendes (2005), autor do artigo
“Marchando com a família, com Deus e pela liberade – o ’13 de março das direitas’”,
Quadros delineou uma estratégia precisa: em primeira instância, visava repelir a nomeação de
um vice-presidente após a transgressão dos princípios prefixados no documento constitucional
de 46; num segundo momento, por conseguinte, obteria tempo necessário para que os
militares da conjuntura ministerial mensurassem as consequências e impactos nocivos caso
um suposto sucessor, que carregava consigo tênues relações com organismos sindicais465,
capitaneasse as rédeas do país. O intento, portanto, era persuadir os ministros militares, grupo
constituído por egressos da facção conservadora do exército, a exigirem sua permanência.
Havia, também, segundo as perspectivas de Quadros, uma maciça manifestação de
popularidade do eleitorado para com o presidente eleito em 1960, que declararia apoio
irrestrito a sua continuidade no poder, caso a renúncia fosse oficializada. Quaisquer
possibilidades lastreadas, entretanto, não se materializaram. Mendes afirma, ainda, que “o seu
eleitorado permaneceu passivo, atônito pela situação da renúncia de um presidente que havia
submetido o povo a uma política econômica antiinflacionária baseada na restrição do crédito,
salários congelados e corte de subsídios de importações” (MENDES, 2005; p. 02).
Por conseguinte, a conjuntura ministerial militar executou parcialmente a estratégia
elaborada por Quadros, pois rechaçou a ascensão de Jango ao poder. Contudo, não
empreendeu os esforços necessários para que Quadros permanecesse à frente da chefia
executiva, fato que o levou a renunciar ao cargo em 1961.
Com efeito, instaurou-se uma desordem político-administrativa que transformou a
seara eletiva nacional em um antro de conflitos ideológicos. Não obstante a essas
circunstâncias adversas, João Goulart assume a presidência aos 07 de setembro de 1961,
conduzindo um modelo político “biprocessual”, assentado nas diretrizes do presidencialismo e
parlamentarismo, responsável por limitar suas ações à frente da chefia executiva. Os militares,
então, empreenderam uma evacuação estratégica, posto que um conflito de forças era
inexequível naquele momento, pois existiam cisões no seio das próprias engrenagens
ideológicas das Forças Armadas.
465
Somando-se ao episódio da viagem à China, as estreitas relações de Jango com os movimentos sindicais
acentuavam o temor pela implantação de uma ditadura comunista.
361
Para efeito de análise, a narrativa historiográfica é enfática ao afirmar que o período
alusivo aos citadinos e descritos eventos sinaliza que a controversa renúncia de Jânio Quadros
foi responsável pelo advento de estratégias efetivas, tencionando neutralizar a suposta
implementação de um regime comunista no Brasil. Foram registrados, portanto, grandes
embates entre os grupos de direita, cujos objetivos consistiam, a rigor, em instaurar um
projeto político que atendesse aos seus respectivos interesses, dentre os quais destacamos o
empresariado em torno do complexo multinacional, militares influenciados pela Doutrina de
Segurança Nacional, os autoritários-internacionalistas e nacionalistas-ditadoriais (Rouquié,
1984).
Conforme o bojo político nacional acentuava suas polarizações, sobretudo no período
que remete aos anos de 1963-1964, os referidos grupos estreitaram seus laços ideológicos e
aglutinaram articulações para inibir a ação das alas esquerdistas.
Segundo Ibarê Dantas (2014), nas entrelinhas do compêndio intitulado “A tutela
militar em Sergipe (1964-1984)”, as coalizões de extrema-direita reduziam-se a dois grupos.
Para ele:
Pelo menos dois grupos militares estiveram a disputar o poder.
Incialmente, gozava de ascendência intelectual o setor da alta
oficialidade vinculado a ESG, qualificada de “soborne”
brasileira. De outro lado, situavam-se os oficiais da “linha
dura” que tinham na são uma das principais agências de suas
inquietações (DANTAS, Ibarê; P. 22, 2014).
Vale salientar, também, a caracterização, bem como o viés ideológico das facções
descritas por Dantas. A vertente alcunhada de “sorbonista” estendia-se entre alguns atores da
sociedade civil, sobretudo aqueles que participavam do Instituto Político de Estudos
Superiores (IPES), entidade que concentrava uma fração da oficialidade das Forças Armadas
e membros da elite empresarial brasileira. A coalizão entre as duas instâncias, oficializada
diante da ameaça esquerdista, consistia, dentre outros aspectos, em promover estratégias de
ação objetivando “transformar o modelo populista numa forma de Estado mais permeável aos
interesses do grande internacional e mais fechada as reivindicações de populares” (BRANCO,
1984; Apud DANTAS, 2014). Em contrapartida, a Doutrina de Segurança Nacional
desenvolvida pela ESG, sob influência das correntes ideológicas estadunidenses, constituiu
diretrizes que lastrearam os princípios basilares do Estado autoritário que estava restes a
emergir.
Os meses que precederam a deflagração da contrarrevolução, pois, foram eivados de 3
focos analíticos que dinamizaram as estruturas do modelo político em curso, dentre os quais
destacamos a rebelião dos marinheiros, o comício da Central do Brasil, bem como a
362
assembléia realizada no Automóvel Clube do Brasil. A nossa ênfase investigativa, no entanto,
não consiste em descrever o viés operacional desses eventos que polarizaram a ascese política
nacional, mas, dentre outras perspectivas, propusemo-nos a investigar os impactos causados
por essas manifestações nas alas de extrema-direita.
A 13 de março de 1964, portanto, Jango gerenciou um grande comício, no qual tornou
pública suas proposições para a implementação de um reforma política. Na ocasião, o citadino
dirigente contou com a participação de inúmeros movimentos sociais coniventes a aplicação
de suas práticas reformistas, pois havia uma atenuante consonância ideológica recíproca desde
os primeiros anos em que Jango exerceu o cargo de chefe do executivo.
Estas ações, por sua vez, não atendiam aos interesses das elites empresariais, grandes
proprietários e, sobretudo, da classe média. Não obstante as divergências ideológicas causadas
pela defesa das intervenções reformistas explanadas por Jango, membros das Forças Armadas,
assentados no apoio logístico concedido pelos EUA, articularam-se com o objetivo de
destituí-lo da presidência.
A 05 de abril de 1964, um dia após a deposição de Jango, o periódico intitulado Folha
Trabalhista veiculou a informação em sua primeira página, afirmando:
Movimento irrompido em Minas Gerais contra o Governo
Federal, na madrugada do dia 31, culminou com a deposição
do presidente João Goulart – Presidente da Câmara Federal,
deputado Ranieri Mazzili, na presidência da República.466
466
Folha Trabalhista, 05/04/1964.
363
deliberou, em face da articulação dessas alas, apoio irrestrito a implementação de um regime
liberal-conservador, cujos artífices eram os militares.
A 19 de março, em São Paulo, as Marchas consistiram em atos públicos gerenciados
por segmentos católicos da classe média urbana, lastreados por políticos conservadores, pela
elite empresarial, além dos movimentos femininos. Esta articulação político-ideológica, então,
irrompeu em várias regiões do país e transitou por alguns municípios de Sergipe, nosso
recorte espacial analítico.
ENTRE TERÇOS E QUEPES: OS IMPACTOS DO GOLPE MILITAR EM SERGIPE
E A MARCHA POR DEUS E PELA LIBERDADE (Apresentação dos resultados
preliminares da pesquisa)
Horas após a deposição de Jango, aos 31 de março de 1964, informes inócuos foram
veiculados nos diversos recônditos da capital sergipana, constituindo um cenário de intensas
inquietações. Grupos cuja orientação ideológica alinhava-se com os movimentos de esquerda,
em riste, empreendiam irrelevantes esforços para resistir a uma transição político-
administrativa; os atores que aglutinavam as alas de direitas, por sua vez, materializadas pela
conjuntura conservadora e reacionária de Sergipe, encontravam-se em polvorosa pela
iminente intervenção militar.
No dia seguinte, uma grande fração dos estabelecimentos comerciais permaneceu
fechada e inúmeros civis dirigiram-se à Praça Fausto Cardoso. Diante da efusiva
mobilização, o deputado Euvaldo Diniz, correligionário da UDN, proferiu um prolixo
discurso de repúdio às ações perpetradas contra o regime populista, mas, imediatamente, foi
detido e permaneceu sob custódia dos militares. Não obstante a ampla escala de detenções em
meio a uma atmosfera política virulenta, estava clarividente para a população que o país,
mediante as últimas intercorrências na ascese executiva, perpassava por um período no qual o
ímpeto da coerção militar, no âmbito do exercício da dominação, sobrepunha-se ao civil.
Ao retornar de viagem, João Seixas Dória, até então governador de Sergipe, tendo em
vista o triunfo do movimento militar, pronunciou-se ao povo sergipano numa frustrada
tentativa de reafirmar sua conivência às reformas estruturais. A ação de Dória, então,
transgrediu as orientações prefixadas pelo aparato burocrático-militar, que dirigiu-se ao centro
do poder executivo governamental e deteve o governador. O periódico A Semana, nas
entrelinhas de sua segunda página, descreveu o desenrolar do fato episódico. Conforme o
semanário:
Na noite de quarta-feira da semana passada, forças do 28º
B/C, em Aracaju, efetuaram a prisão de Seixas, investindo no
364
governo o vice Celso Carvalho. O Sr. Seixas Dória foi
conduzido para Salvador, onde permanece preso e
467
incomunicável no quartel do 19º B/C.
A deposição do governador se deu, de acordo com um comunicado oficial dos
militares, porque Dória exerceu uma atividade que suscitou o desenvolvimento de práticas
como “instrumento de forças extremistas atentando contra a segurança e tranqüilidade do país
e do Estado”. Para além da substituição do governador, Dantas conclui:
Além de substituírem o governador, cassarem deputados e
interferirem no judiciário, os militares desenvolveram também
a operação definida como combate à subversão e corrupção
pelo interior. Os prefeitos, identificados com a política das
reformas de base e/ou acusados de corrução, foram presos,
enquanto as respectivas câmaras municipais eram
pressionadas a formalizar deposições (DANTAS, 2014; P.
34).
467
A Semana, 11/04/1964.
365
canalizou suas atenções para o campesinato local, expandiu o número de paróquias e
implantou em cada uma delas a política de Ação Católica para promover o desenvolvimento
das comunidades (Morato, 2005).
Contudo, ao tornar pública sua orientação político-ideológica, D. Távora foi ameaçado
de prisão e esteve confinado no Palácio Episcopal durante inúmeros dias, conforme atesta
Dantas (2014). Segundo o autor, ainda, o arcebispo “escapou de maiores hostilidades por
interferência do general Juarez Távora, seu parente” (FALCÃO, 93; DANTAS, 2014). Em
linhas gerais, os sindicatos foram constantemente submetidos a um processo de investigação,
a imprensa, por sua vez, foi controlada e a igreja católica dividida em duas facções.
Na contramão dos políticos, civis e eclesiásticos perseguidos por serem considerados
subversivos, existiram membros desses mesmos segmentos que se opuseram a proposições
reformistas e declararam publicamente seu apoio irrestrito a contrarrevolução. Dentre todas as
manifestações públicas de autoria desses grupos, destacamos a “Marcha por Deus e pela
liberdade”, que, como já foi descrita anteriormente, consistiu num ato organizado e realizado
por alas de reacionárias de extrema-direita, constituídas por dirigentes políticos
conservadores, membros da classe média e grupos eclesiásticos simpatizantes, com o intento
de reafirmar conivência a postura dos militares numa intervenção preventiva para assegurar os
princípios democráticos do país, em meio à ameaça de uma ditadura comunista.
366
possível, entretanto, identificar os participantes e o percurso adotado pelos civis, eclesiásticos
e políticos que se fizeram presentes na ocasião, pois o conteúdo informacional do jornal foi
reduzido aos parágrafos discriminados na imagem.
Ademais, seguindo a ordem cronológica dos acontecimentos, identificamos que o
periódico Gazeta de Sergipe, um dos poucos veículos de imprensa que encontrava-se operante
em Aracaju no curso da contrarrevolução, noticiou informações sobre a realização da Marcha
em Aracaju.
367
Fonte: imagem extraídas de um periódico impresso do APES. Gazeta de Sergipe, 03/05/1964.
Após a ampla adesão do ato de solidariedade ao golpe militar na capital, a Marcha
chegou aos municípios de Barra dos Coqueiros e Laranjeiras. Na tarde do dia 13/05/1964,
populares da Ilha de Santa Luzia (Barra dos Coqueiros) prepararam uma homenagem especial
às Forças Armadas durante a realização da Marcha, que estava programada para ser realizada
por volta das dezesseis horas do citadino dia. Em Laranjeiras, conforme atesta o conteúdo
informacional do jornal Gazeta de Sergipe, a manifestação iniciaria às dezenove horas do
mesmo dia, contando com a participação de diversas autoridades religiosas, civis e políticas,
inclusive do governador recém-nomeado.
368
Para as próximas etapas deste empreendimento, espera-se cumprir as demais diretrizes
que fundamentam o exercício proposto pela atividade, promovendo a realização de mesas-
redondas com alunos e professores da escolas públicas sergipanas e socializar o quantitativo
de informações armazenadas ao longo do processo para além dos muros da universidade
mediante a montagem de exposições.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, Verena. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 1989.
AMADO, J.; FERREIRA, M. M. (Org.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Ed.
Fundação Getúlio Vargas, 1996.
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Annablume, 2005. Revista Brasileira de História. São Paulo, vol. 24, no.47, 2004.
CODATO, Adriano Nervo; OLIVEIRA, Marcus Roberto de. A marcha, o terço e o
livro:catolicismo conservador e ação política na conjuntura do golpe de 1964. Revista
Brasileira de História, São Paulo, vol. 24, no. 47, 2004.
DANTAS, Ibarê. A Tutela Militar em Sergipe. São Cristóvão-SE: EDUFS, 2014.
DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História oral: memória, tempo, identidades. Belo
Horizonte: Autêntica, 2006.
FERREIRA, Jorge; GOMES, Angela de Castro. 1964: o golpe que derrubou um presidente,
pôs fim ao regime democrático e instituiu a ditadura no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2014.
MENDES, Ricardo Antonio Souza. Marchando com a família, com Deus e pela
liberdade: o"13 de Março" das direitas. Varia hist. [online]. 2005, vol.21, n.33, pp. 234-249.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. São Paulo: Editora
Contexto, 2014.
REIS , Daniel Aarão. Ditadura militar, esquerdas e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
369
O CANÔNICO E O ANTICANÔNICO EM LUIZ VILELA
468
Professor de Literatura Brasileira no Câmpus do Pantanal, em Corumbá, atua no PPG-Letras
Mestrado e Doutorado no Câmpus de Três Lagoas; é líder do GPLV – Grupo de Pesquisa Luiz
Vilela.
370
conjunto de obras que conforma o cânone, já de si uma lista plasmada por autoimagem
idealizada e idealizante, estagnada e estagnante, em que o eu é uno, belo (o que quer que isso
signifique na subjetividade e relatividade de cada momento dado), plácido, não acolhendo
aporias, dissensos, cicatrizes ou representações a contrapelo do instituído.
Vejamos um único exemplo. Bernardo Guimarães é um clássico de leitura perenizada
nas escolas brasileiras — e clássico, aqui, remonta à etimologia da palavra, referindo-se ao que
é indicado em classes para estudo. Nos quadros do Romantismo, Bernardo Guimarães,
romancista e poeta, tem seu nome e obra integrando todos os estudos historiográficos que
tratam da literatura brasileira do século XIX. Alfredo Bosi, na sua aclamada e essencial
História Concisa da Literatura Brasileira, lhe dedica algumas páginas. Em nota de rodapé,
menciona a parte fescenina, paródica e satírica de Bernardo Guimarães, considerando-a menor
e desprezível de autor, de resto, a seu ver, de pouca importância.
Refere-se a poemas como “O elixir do pajé”, com certeza, e talvez a narrativas como
“Jupira”. Justo, talvez, em ambos os casos, à melhor, mais inventiva, mais questionadora,
mais antecipatória dentre todas as produções de Bernardo Guimarães. A paródia crítica
derrisória da visão indianista de Gonçalves Dias e de José de Alencar, a desidealização
antirromântica por excelência da mitificação nacionalista do período, a prática literária
consciente da paródia formal, do tom grandiloquente pelo avesso e da carnavalização do tema
é um modo literário que somente terá predominância no modernismo, e com tal vigor
consciente, muito provavelmente, tão só no modernismo tardio. Mas prevalece, em Bosi, a
visão eurocêntrica, católica, cartorial, conservadora, que nega o dissenso na ordem do
Romantismo e na idealização da figura do indígena forjada no albor da pátria recém-
independente.
Neste quadro, como definir o que é o anticanônico?
Nas pegadas de Bernardo Guimarães, trata-se do que está a contrapelo da estética
predominante, do que está ao reverso da ideologia aplaudida em uníssono, trata-se do que
questiona as opções que a sociedade e a crítica institucionalizada aplaudem, incentivam,
incensam, repercutem — em uma palavra: canonizam.
Após um século, o novecentos, em que predominou a tradição da ruptura, a sucessão
de vanguardas e o elogio ao experimental; em uma época, aquele final do segundo milênio e
neste início de terceiro milênio, em que a diluição de certezas, o alexandrinismo vigente e a
ausência de parâmetros que estabeleçam o que é a literariedade; em uma sociedade em
mutação constante, acelerada, de hábitos, conceitos, visões de mundo, relações interpessoais,
371
inter-étnicas e intergêneros; enfim, em nossos dias, com o cânone questionado a cada passo,
como tratar o canônico e o anticanônico em um escritor consagrado como o é Luiz Vilela.469
Para os limites deste estudo, o canônico é composto pelo conjunto de escritores
paradigmáticos que inventaram um novo modo de narrar no âmbito das poéticas do conto, em
especial os seguintes autores, com suas reflexões sobre a literatura: Edgar Allan Poe, Anton
Tchekhov, James Joyce, Franz Kafka, Virgínia Woolf, Katherine Mansfield, Ernest
Hemingway e Jorge Luís Borges. Por consequência, o anticanônico é a retomada crítica
desses contistas, utilizando em clave diferenciada o modo de narrar que cada um deles forjou,
para expor diferente visão de mundo e constituir uma nova e original cosmovisão.
Comecemos por afirmar que Luiz Vilela, em suas três primeiras coletâneas — Tremor
de terra, 1967; No bar, 1968; e Tarde da noite, 1970 —, de certo modo experimenta, senão
todos, quase todos os modos de narrar da história do conto, do causo em torno da fogueira
primitiva (nas duas variantes de narrador definidas por Walter Benjamim em seu clássico
ensaio sobre Leskov) à fábula grega, do flagrante pitoresco ao ensaio filosófico, do efeito
único de Poe à atmosfera rarefeita, e suas variantes, Tchekhov, Woolf ou Mansfield. Mostrar
essa retomada, que segue nos dois livros posteriores — O fim de tudo, 1973, e Lindas pernas,
1979 —, é uma boa tese, ainda por fazer, da qual este artigo é mero rascunho.
Vejamos um primeiro exemplo com o conto “Os mortos que não morreram” (Tarde da
noite). Já o título traz em si a alusão ao mais famoso conto de James Joyce, “Os mortos”. Da
leitura de Os dublinenses depreendemos de Joyce um conto que parece romper com as
unidades de tempo e espaço e com o enredo objetivo, de poucas personagens, que se volta de
modo inexorável para um clímax revelador. Verificamos também a força das descobertas
diegéticas produzidas pelo diálogo encenado, em procedimento a que Joyce nomeou de
epifania. “Os mortos”, de Joyce, que em suas sepulturas estão, pairam, no entanto, por sobre a
terra e a vida; o título de Vilela é ao mesmo tempo o reconhecimento disso e uma afirmação
para além do espírito joyceano.
O eixo do conto de Joyce está na sucessão de epifanias pelas quais o protagonista,
Gabriel Conroy, descobre a existência do feminino como um outro desconhecido,
inapreendido e surpreendente. No conto de Vilela, amigos conversam em uma casa, em
ambiente festivo (o ambiente tem parcial similaridade ao do conto de Joyce), e as cenas se
desdobram em paralelo, quase que com autonomia entre si, na sala, na cozinha e em um
469
Para informações biobibliográficas sobre Luiz Vilela, ver as diversas abas do blog do Grupo de
Pesquisa Luiz Vilela, em < http://gpluizvilela.blogspot.com.br/ >.
372
quarto. Não há um protagonista como Conroy, mas a anfitriã está no centro da narrativa,
ligando os episódios entre os três espaços: na sala, um debate filosófico sobre o homem; no
quarto, uma criança assustada com sonhos ruins; na cozinha, um convidado relembra à
anfitriã uma noite de amor que tiveram. Os episódios se ligam pela metáfora da memória
como “o porão da alma”, que esconde “nossos mortos que não morreram; [...] nossos gestos
que ficaram acorrentados no escuro” (p. 135-136). Entre elogios ao pernil servido (“Ela é
fogo na cozinha”, diz o convidado que mais à frente vai à cozinha assediar a anfitriã,
insinuação que reverbera nos porões da alma e no espaço protegido da vista dos demais
presentes à reunião de amigos), a discussão pontua a busca inútil por segurança “que todo
mundo procura: velhos, adultos, crianças, homens e mulheres” (p. 137) e conclui que “tudo é
permitido”, que “nada é proibido ao homem” (p. 142), não havendo que considerar nenhuma
“moral: o bem, o mal, o pecado”. Nesse momento, a criança dá um grito assustado e a mãe
retorna ao quarto para acalmá-la: a criança conta que um bicho a queria pegar e a mãe a nina,
protegendo-a. Neste conto de Luiz Vilela, a personagens vivenciam poucas descobertas, o que
sobre-eleva é o debate implícito estre o passado — no porão da alma — vivido em liberdade e
as correntes sociais e morais — os monstros — do presente. O modo de narrar à Joyce defende
visão de mundo que o ciumento Joyce provavelmente não endossaria, o que faz de “Os
mortos que não morreram” um conto inteiramente à Luiz Vilela, se assim podemos nos
expressar.
Verifiquemos, agora, o modo pelo qual Luiz Vilela trabalha, ou subverte, o universo
kafkiano no conto “O buraco” (Tremor de terra). Em primeira pessoa, autodiegético, o conto
de Vilela narra a transformação do protagonista em tatu, à medida em que cava um buraco no
quintal de sua casa: Zé é mais feliz isolado em sua toca do que no convívio com a família.
Desse modo, perde a noiva, e o conto, aludindo ao sensacionalismo da imprensa, faz blague
em seu fecho, mencionando manchete em que a antiga noiva se matava por namorar um tatu.
Mais do que na novela “A metamorfose”, o conto de Luiz Vilela parece dialogar com
a narrativa “O covil”, texto aparentemente inacabado de Franz Kafka. Em “A metamorfose”,
a transformação já ocorreu, o narrador é em terceira pessoa e o protagonista vive sua agonia e
morte a partir da metamorfose. Exceto pela transformação, pouco parece haver de comum — à
primeira vista — entre o sombrio, monstruoso e absurdo inseto de Kafka e o auto-irônico
narrador de Vilela, que se escolhe tatu. Em close Reading, observamos pontos similares entre
“A metamorfose” e “O buraco”, mas aqui não abordamos tal aspecto.
373
Voltemo-nos para “O covil”, narrativa menos conhecida. Em primeira pessoa, o
protagonista, um animal subterrâneo, vive a aflição de que a qualquer momento terá sua toca
invadida. Acumula provisões para um tempo de penúria ou cerco, elabora estratégias de
defesa, cria rotas de fuga, cava tuneis falsos para despistar invasores. Vive, enfim, para e pelo
“covil” que é sua moradia: só posso confiar em mim mesmo em o meu covil”, diz a
personagem.
A linguagem segue o padrão de Kafka, com longos parágrafos e longos períodos, nos
quais se desenvolve uma lógica implacável, jurídica, argumentativa, que considera os prós e
os contras a cada situação, a cada pensamento. Tal linguagem realça o absurdo das situações,
do que não se dá conta a personagem, imersa em seu mundo e em seus raciocínios. Há uma
falha de base na constituição mental desse universo, falha jamais explicitada no discurso, e
que constitui a estranheza criada pela ficção de Kafka: “Para falar verdade”, argumenta o
animal, “não devo lastimar de estar só e de não ter ninguém em quem confiar”.
Se o animal kafkiano é um ser solitário, de origem desconhecida e futuro inescrutável,
a personagem de Luiz Vilela tem família, com a qual convive, é protegido pela mãe e, ao
optar pela solidão, se sente solitário e lembra dos amigos, das brincadeiras com outras
crianças, da vida social de adolescente e da noiva. Opta, no entanto, pelo buraco em sua
transformação contínua em tatu. O momento doloroso de sua transformação se dá quando,
após ouvir na rua, meio que sem querer, coisas duras a seu respeito, chega em casa e começa a
andar de quatro. Quando a mãe chega, dá um grito, horrorizada, e o abraça, enquanto ele tem
dificuldade em ser... bípede.
O que em Kafka acontece sem justificativa e é vivido como um absurdo naturalizado,
em Vilela surge como espanto, como processo, como escolha. “A metamorfose” e “O covil”
encenam um mundo sem saídas, ameaçador, opressivo, em que o espaço define as
personagens, enquanto em “O buraco” a cena é familiar, corriqueira, e a lenta transformação é
opção da personagem, ainda que sem ter consciência do que o motiva.
Por seu lado, em No bar, dois contos configuram um modo de narrar normalmente
considerado como “experimental” por não seguir a lógica linear das narrativas canônicas. Em
“Gaveta”, uma história de amor encontra uma forma narrativa inusitada. Do caos de limpar a
gaveta enquanto pensa sobre o que vai encontrando, os pensamentos desvelam um
relacionamento amoroso que chegou ao fim.
Em “Rodoviária”, o movimento caótico do espaço encenado contamina a narrativa, e o
caos da narrativa representa o caos de uma época que estilhaçou todos os seus parâmetros
374
canônicos, se me é permitido um trocadilho. O rompimento da linearidade narrativa, da cena
com começo, meio e fim claros no discurso, insere esses dois contos de Luiz Vilela em um
espaço anticanônico por excelência.
O que temos, pois, como conclusão preliminar desses aspectos aqui levantados, é um autor
que se vale das conquistas literárias da tradição e as subverte para produzir efeitos de sentido
renovados, que melhor representam o tempo em que viveu e em que vive o autor Luiz Vilela.
O cânone é retomado, citado, manipulado, contestado, subvertido, constituindo, nos termos
aqui definidos, narrativas anticanônicas, uma vez que forjam cosmovisão autoral diversa e
muita oposta à do autor canônico. Da fonte universal e cosmopolita de autores paradigmáticos
da história do conto, Vilela narra sua terra, sua Minas Gerais, seu local particular, seu
universo de eleição, na linguagem peculiar que o caracteriza como autor único, diferenciado,
criador de um idioleto baseado no diálogo coloquial prescrito pelo Modernismo, cuja
realização em toda a plenitude só com o autor mineiro veio a se configurar. Se a invenção é a
marca por excelência do literário e da literariedade, Luiz Vilela é o anticanônico que se torna
canônico.
375
LAS ESTRATEGIAS DE DOMINACIÓN DEL GOBIERNO PRIISTA: DE LA
REPRESIÓN VIOLENTA A LOS MEDIOS SUTILES
1. INTRODUCCIÓN
376
Nuestra hipótesis es de que el gobierno priista no sólo se utilizó de la represión
violenta como medio para la manutención de su poder en el dicho período, como también
cooptó la prensa y además de esto utilizó el discurso apolítico y acrítico existente en la
producción cinematográfica en cuestión para alejar la población de tales discusiones,
discusiones estas presentes en la generación cinematográfica anterior, ofuscada por las
ficheras.
Para aclarar tales cuestionamientos y embazar nuestra hipótesis, serán utilizados
autores como Marc Ferró470 y su teoría del cinema como agente del devenir histórico; además
de autores que se dedicaran a estudios del régimen priista como Elena Peniatowska471, entre
otros.
Esto estudio tendrá su impacto en la discusión acerca de la construcción democrática
del país e intentará poner en practica la finalidad primera de la historia, que es beneficiar el
presente con las luces del pasado, ambicionando provocar en el público receptor, la crítica
sobre las configuraciones de la sociedad en que ellos mismo se insertan.
470
Marc Ferro. Cinema e História. (São Paulo: Paz e Terra, 1992).
471
Elena Poniatowska. La Noche de Tlatelolco. (México: Era, 2009); Elena Poniatowska. The Student
Movement of 1968. (In Gilbert M. Joseph y Timothy J. Henderson, 2002).
472
Manuel Gollás. Breve relato de cincuenta años de política económica. (in Ilán Bizberg y Lorenzo
Meyer [coord.], Una historia contemporánea de México: Océano, 2003) p. 229.
377
infraestructura agrícola y se llevó a cabo un programa masivo de distribución
de tierras.
Esta Formula funcionó con eficacia hasta 1958; pero a flote de los primeros
síntomas del agotamiento del esquema: ya no existían condiciones externas
que habían generado una demanda importante; la plata productiva
comenzaba a ser obsoleta u crecía el endeudamiento del país. Además la
agricultura tenía problemas serios y los trabajadores, que habían resentido
tanto la devaluación como la inflación, reclamaban un mejor reparto de
riqueza y mayor independencia sindical.473
Los efectos que culminan en 1970, ya pueden ser observados en su fase embrionaria
ya en la década anterior. Surgen huelgas, protestas, grupos de estudiantes, obreros y médicos
salen a las calles exigiendo desde mejores condiciones de trabajo, hasta más apertura política
y derechos civiles en general. Como ejemplo de tales movimientos, es posible aludir a la
huelga de los ferrocarrileros de 1958, observada de cerca por las autoridades policiales; la
huelga de médicos residentes en 1964; las huelgas de estudiantes en Morelia en el año de
1965, en Sonora e Hidalgo en 1966 y 1967, respectivamente. Empieza así, el período que nos
cabe enfocar en este ensayo.
3. REACCIONES VIOLENTAS:
473
Miguel Ángel Gallo. Una Historia Crítica de México. (México, D.F.: Ediciones Quinto Sol, 2007.)
474
Manuel Gollás. Breve relato de cincuenta años de política económica. (in Ilán Bizberg y Lorenzo
Meyer [coord.], Una historia contemporánea de México: Océano, 2003) p. 230.
378
Los hechos enumerados en la sección anterior constituyen el inicio de los actos de
protesta, que serían juzgados como actos de desobediencia civil y en muchos casos
terrorismo. Los años que se siguen, son marcados por más protestas. El divisor de aguas en la
relación de la sociedad civil indignada y las reacciones del gobierno puede ser observado en
los hechos de 2 de octubre de 1968, en la actual Plaza de Las Tres Culturas, conocido por la
historiografía como La Noche de Tlatelolco o la Masacre de Tlatelolco.
En este día, indignados por la falta de respuesta positiva del gobierno a las
reivindicaciones de los movimientos anteriores, estudiantes, profesores, obreros y otros
sectores se unirán en la referida plaza con el objetivo de hacer un gran acto de protesta
visando mayor apertura política en el país, un proceso de democratización real y libertades
civiles.
Creyendo estar amenazado en la manutención de la imagen democrática, el gobierno
enfrenta los manifestantes y los reprime de forma extremamente violenta. En este episodio, el
periodista Inglés John Rodda475, contabilizó 325 muertos, pero el número exacto jamás será
conocido. Esto fue apenas el inicio de la llamada “Guerra Sucia”, donde militantes fueron
presos y torturados, bien como sus familiares476.
Mismo con la represión violenta creciendo, mismo con los movimientos contrarios
aumentando diametralmente, este gobierno logró su manutención hasta los años 2000.
Cuestionamos, de este modo, se únicamente la violencia sería la herramienta para la
permanencia de este grupo en el poder.
La manutención del poder por parte del Partido Revolucionario Institucional no sería
tan exitosa sin estrategias como la cooptación de la prensa y de estrategias de conducción de
la producción artística según sus intereses. Es lo que se puede observar a partir de los
ejemplos traídos por esta sección. Aquí serán demostrados el discurso de algunos de los
principales periódicos del país y de la producción cinematográfica de entonces.
Empezaremos con el análisis del discurso presentado por los medios en el día
siguiente a la ya mencionada masacre:
475
Apud Kate Doyle. La masacre de Tlatelolco. (2006. Disponible en:
<http://www2.gwu.edu/~nsarchiv/NSAEBB/NSAEBB201/proceso.pdf> Asesado en 08/11/2013)
476
Laura Castellanos. México Armado. (México: Era, 2006.)
379
El Excélsior, caracteriza el ocurrido como “Recio Combate al Dispersar el Ejército un
mitin de Huelguistas” y contabiliza “20 Muertos, 75 Heridos, 400 Presos”. Información
extremamente contrastante con la que fue dada por el periodista Rodda (op. cit.) y su contaje
de 325 muertos.
En el Universal el conteo sube un poco más, verdaderamente poco más, son “29
Muertos y más de 80 Heridos en Ambos Bandos; 1000 Detenidos”. Además de esto, nos
gustaría exponer los términos por los cuales son tratados los grupos de manifestantes, el
periódico les caracteriza como “terroristas” y afirma: “Durante Varias Horas Terroristas y
Soldados Sostuvieron Rudo Combate”.
El Heraldo destaca una versión un tanto lejana de la que hoy es defendida por la
historiografía acerca de los hechos de Tlatelolco, tal como relata Elena Poniatowska477, por
ejemplo. En su versión “Francotiradores dispararon contra el Ejército: el General Toledo
lesionado”, con destaque para la lesión del General.
Por fin, el objetivo de los dichos terroristas es aclarado por El Sol de México, el
periódico evidencia la siguiente frase para explicar los hechos, primero con el título “Manos
Extrañas se Empeñan en Desprestigiar a México” y siguiendo con la explanación:
“Francotiradores dispararon contra el Ejército: el General Toledo lesionado. […] El Objetivo:
Frustrar los XIX Juegos”.
Las narrativas desencontradas de los hechos, hoy pueden nos parecer evidente, pero no
podríamos caer en las trampas del anacronismo historiográfico. Es necesario que se acorde
que estos medios eran las fuentes mayoritarias de información de la población mexicana en
este período.
Según Poniatowska478, durante el sexenio del presidente Díaz Ordaz (1964-1970),
“Only the magazines Sucesos and Política defended them. But in general the press, the
misinformed public and the media applauded the government measures”. Ella se refría a ya
comentada huelga de médicos residentes en 1964. Sin embargo, afirmamos que esa disparidad
en la opinión de la prensa contra y a favor del gobierno, no cambió mucho hasta 1968.
De ese modo, la llamada Guerra Sucia estaría por venir. La violencia contra los
opositores, que crecieran de manera exponencial en los años que se seguirán a la masacre, fue
477
Elena Poniatowska. La Noche de Tlatelolco. (México: Era, 2009)
478
); Elena Poniatowska. The Student Movement of 1968. (In Gilbert M. Joseph y Timothy J.
Henderson, 2002) p.560.
380
una de las estrategias de los gobiernos siguientes como evidencia Loeaza479 y seguía también
encubierta por los medios:
[…] Las organizaciones guerrilleras fueron combatidas por el Estado en una guerra
sucia, de la que la opinión pública nunca fue informada. Sus operaciones no
respetaban los derechos fundamentales de los guerrilleros; […] muchos de ellos
sufrieron tortura y murieron asesinados por la policía o por miembros del ejército.
Según Gustavo Hirales, antiguo miembro de la Liga 23 de Septiembre, en los setenta
se murieron así cerca de mil quinientos guerrilleros.
Pero la violencia, mismo que encubierta por el discurso de los medios, no fue la única,
o la más sutil, de las maneras de alejar la población de los contenidos y expedientes políticos
más espurios e ilícitos. Evidenciaremos, en el siguiente apartado, un medio extremamente
efectivo promover el olvido de prácticas como las que acaban de ser evidenciadas, hablamos
del efecto catártico que el cinema ejerce en la población.
abundancia”, 1977-1981, in Enrique Florescano. México: Grijalbo, 2009 pp. 234-276.) p. 236
381
4.1. El Cinema como medio de promoción del alejamiento de contenidos políticos: El
fenómeno “Cine de Ficheras”
480
Marc Ferro. Cinema e História. (São Paulo: Paz e Terra, 2002).
481
JARA, Paula Klein. Estereotipos de la Cultura Popular Urbana en las Sexicomedias Del Cine
Mexicano. ([Tesis de maestría] México: Centro Universitario Querétaro, 2013). P.99
382
orgullo y marcarían su trayecto en la posteridad. Con la ausencia de estas películas, la
concurrencia a las ficheras estaba liquidada.
Otra medida del gobierno, favoreció enormemente las producciones de las
sexycomédias. Fue la Ley Federal de Cinematografía, promulgada en 1949, durante el
gobierno de Miguel Alemán (1946 – 1952), y que vigoró hasta 1993, en su texto previa que
las salas de exhibición deberían dedicar un mínimo de 30% de su espacio a las películas de
producción nacional. Ante la baja en la producción de otros géneros como fue evidenciado,
¿qué películas nacionales ocuparían el espacio cedido por la ley? La respuesta es obvia, el
Cine de Ficheras, única producción abundante e, en bueno número, independiente de recursos
gubernamentales en el período.
Además de este incentivo legal, las ficheras lograran pasar por la censura estatal, en
sus años ya mucho más relajada que anteriormente, cuando fue instituida en 1º de octubre de
1919, junto con el Departamento de Consejo de Censura. Como Afirma Millán Hernández482:
“[…] el Departamento de Censura había permitido la presentación de desnudos femeninos,
experimentando si con esto podían lograr la atención de la gente. Los productores llegaron a
abusar de este tipo de imágenes.”
La independencia financiera del cine de ficheras y su falta de ligación formal con el
gobierno es el último punto que nos cabe tocar para evidenciar los hechos ahora explicados.
Estos dos últimos factores abrirían margen para que el Estado se eximiese de
responsabilidades en relación a tales producciones. Además de esto, el gobierno la criticaba
públicamente, tajando siempre las producciones de dotadas de “argumentos y películas
inmorales, vulgares o pornográficas”483, macularían por lo tanto la imagen del cine mexicano.
Discurso que no es compatible con la práctica del gobierno, que podría ser caracterizada ante
todos los factores enumerados, al menos, como negligente frente a un género que
públicamente se trataba como detractor.
En paralelo a esto, los movimientos civiles aumentaban, protestas, huelgas y
reacciones armadas explotaban en cada rincón del país, como ya vimos. El pueblo necesitaba
ser distraído. Olvidar de cuestiones políticas y pensar en otros asuntos mientras el gobierno
“arreglaba” todo el resto. Pensamos que las ficheras, su falta de contenido político y su
enorme suceso frente a la mayor parcela de la población conformaban una importante
482
HERNÁNDEZ, Millán, M. A. Investigación del factor que influye en la temática de producción del
cine mexicano contemporáneo. ([Tesis Licenciatura] México: Universidad de las Américas Puebla,
2004.) p.16.
483
IDEM, p.23.
383
herramienta para el alejamiento de tales discusiones. Creemos que con su discurso moralista y
contrario a estas producciones, el PRI lucró doblemente en términos políticos, alejó la
población de los contenidos indeseados y eximió de cualquier ligación con la herramienta
utilizada para tal.
5. CONSIDERACIONES FINALES
384
REFERENCIAS:
385
PRIMEIROS ESBOÇOS DE RELIGIOSIDADE NAS TERRAS DE RIACHÃO DO
DANTAS-SE (1855-1870)
O culto a Nossa Senhora do Amparo chegou ao Brasil, logo após aquilo que se
convencionou chamar de “descobrimento”. Sob sua proteção foram fundadas diversas igrejas,
uma das primeiras fica em Olinda-PE. Também varias cidades foram fundadas em sua
homenagem e permanecem sobre seu arrimo, em Sergipe temos o exemplo de Amparo do São
Francisco.
A vida dos santos é um capítulo a parte na história da Igreja católica. No que se refere
à invocação mariana temos representações evidenciadas pelas passagens bíblicas. A devoção
Mariana tem suas bases nos cultos religiosos cristãos em que se louva Maria, mãe de Jesus. A
personificação de Maria Santíssima é representada por diversas imagens entre elas temos
Nossa Senhora do Amparo. A adoração a Nossa Senhora do Amparo representa para os
cristãos o momento da crucificação de Jesus, onde ele apresenta sua mãe como Mãe de todos
os homens, para que esta venha ampara-los.
A história de Riachão tem sua origem nesta devoção a Nossa Senhora do Amparo. Foi
João Martins Fontes que ao mandar construir em sua fazenda uma capela dedicada a esta
santa, introduziu o seu culto nas terras do Riachão. Lembremos que um dos principais
requisitos para que uma povoação passasse a assumir o título de Vila era ter uma igreja
sagrada pelas autoridades eclesiásticas e seu território já ter sido elevado à condição de
freguesia. Vejamos o que Agenor Soares Silva Junior escreve a respeito:
Foi justamente por este processo que o povoado do Riachão passou. A construção da
capela suscitaria à elevação da povoação a condição de freguesia, que a partir daí elevaria a
capela a condição de Igreja, e então a freguesia transformar-se-ia em vila.
484
SILVA JUNIOR, 2013. p.94.
386
Após a morte de João Martins Fontes, seus herdeiros doaram a capela a Nossa Senhora
do Amparo para que esta fosse elevada a condição de matriz. De acordo com a escritura, a
doação ocorreu em 28 de abril de 1853 na Vila do Lagarto, Comarca de Estância, na casa do
Capitão-mor Joaquim Martins Fontes, um dos herdeiros das terras.
Durante a segunda metade do século XIX a Igreja Católica passava por um momento
de renovação de suas diretrizes. Buscava-se cada vez mais tornar o catolicismo “puro”, livra-
lo dos elementos considerados “populares” e que haviam se misturado aos ritos católicos.
485
Transcrição da Escritura de doação das terras do Riachão (1853). Acervo da Cúria Metropolitana de
Salvador. Laboratório de Conservação e Restauração Reitor Eugenio de Andrade Veiga. Faculdade Católica da
Salvador.
486
ANDRADE, 2010. p. 21.
387
formuladas durante o Concilio de Trento realizado entre 1545 e 1563 onde se buscou
“reafirmar os princípios fundamentais da moral católica, confirmar e definir seus rituais 487”.
Porém as Constituições não conseguiram atingir os objetivos por elas definidos.
487
Ibidem, p. 18.
488
MICELI, 2009. p.18.
489
ANDRADE, 2010.. p. 56.
490
Ibidem, 2010.. p. 22.
491
ANDRADE, p. 63.
388
processo de Romanização, que segundo Andrade tinha como traços centrais “a espiritualidade
centrada na prática dos sacramentos e na obediência a hierarquia eclesiástica492”. O objetivo
basilar era recolocar a Igreja na posição de centralismo que havia sido abalada durante as
primeiras décadas do século.
Em Sergipe foi possível notar as atividades reformistas propostas por estas novas
correntes que se desenharam durante o século XIX, porém os efeitos da romanização foram
fazendo-se sentir aos poucos e de formas diversificadas. Segundo Andrade os traços desta
reforma foram que:
Em meio a essa fase de reformulação de suas diretrizes a Igreja viu-se diante de uma
nova querela. Com o advento da República, deu-se o momento de separação de Igreja e
Estado através do fim do regime do padroado que unia essas duas instancias. O padroado nada
mais era que a tutela de atividades características da Igreja Católica concentradas sobre o
domínio do poder estatal. A partir deste momento de ruptura a Igreja é obrigada a reorganizar
sua liberdade e finanças e buscar novos investimentos para manter-se. Entretanto o sociólogo
Sergio Miceli defende que “a separação não significou uma ruptura com os setores dirigentes
492
Ibidem, p.24.
493
Ibidem, p. 152.
494
SANTOS, 2013, p.179.
495
ANDRADE, 2010, p.99.
389
locais nem suscitou um redirecionamento das políticas e investimentos da Igreja (...)496”.o
autor centra sua análise na busca por entender de que forma a igreja desenvolveu seu processo
de “construção institucional” estabelecendo, portanto as bases futuras de sua nova relação
com as camadas dominantes, para poder reassumir um papel de destaque no cenário nacional.
Para Santos, a separação entre Igreja e Estado deixou a primeira em meio a uma dupla
divergência “se, por um lado, ficava mais a vontade para gerir seus projetos, por outro,
precisava se reafirmar enquanto instituição religiosa e enquanto estrutura de poder mesmo 497”.
Essa breve análise da conjuntura em que estava inserida a Igreja Católica durante o
século XIX fez-se necessária devido a fundação eclesiástica de Riachão do Dantas inserir-se
nela. É basilar sabermos que o Padre João Batista de Carvalho Daltro sofreu a influência do
projetor romanizador durante sua formação no Seminário da Bahia, e que este e outros
prelados do período foram imbuídos da nova doutrina empregada por Dom Romualdo
Antonio Seixas, doutrina esta de reformulação das práticas do clero. A doutrinação dos
prelados passaria desta forma a uma subordinação a maiores instancias, isto é, obediência
inquestionável ao poder papal.
496
MICELI, 2009, p.26.
497
SANTOS, 2013, p.220.
498
MICELI, 2009, p.65.
390
em 1853499”. Sua ordenação aconteceu no seminário Santa Tereza-BA.
Adalberto Fonseca descreve seus atributos físicos “Alto, alvo, rosado, olhos
intensamente azuis, forte, sadio, feitio preponderantemente varonil, assim como se impunha
de sua voz e de seus modos, a cabeça, rosto e mãos talhadamente bem feitos500”. Mas Daltro
entraria para a história não por seus atributos físicos e sim por sua forte personalidade,
“dominava com sua presença e pela expectativa de ser ouvido e acatado 501”. A construção da
religiosidade riachãoense deu-se aos poucos e com ajuda de um homem a frente do seu
tempo, é assim que o definiríamos.
Como já dissemos, Daltro ordenou-se padre no período em que Dom Romualdo Seixas
era o chefe da Igreja na Bahia, entretanto Claudefranklin Monteiro Santos não o insere no
conjunto de párocos formados naquele período e que levaram ao “pé da letra” os ideais
reformistas do Arcebispo.
Temos desta forma um padre inserido no contexto de romanização, mas que não levou
ao extremo suas práticas em busca de uma Igreja renovada.
Seus primeiros passos da carreira religiosa foram dados ainda em Salvador onde atuou
em “rápidas passagens pela Paróquia de Pilar e pela Igreja do Bonfim na condição de
capelão503”. Desta forma entendemos que a primeira experiência de Daltro enquanto pároco
deu-se na recém-criada Freguesia de Nossa Senhora do Amparo do Riachão.
O vicariato de Daltro em Riachão segundo consta, não transcorreu de forma fácil para
o novo pároco. No ano que Daltro chegara à freguesia uma epidemia de cólera-morbus
assolava a população, entretanto sabemos que sua atuação foi fundamental no socorro a esta.
499
GUARANÁ, 1925, p. 245.
500
FONSECA, 2002, p. 105.
501
Idem, p.105.
502
SANTOS, 2013, p.180.
503
Idem p. 180.
391
A atuação de Daltro em Riachão não é muito revisitada, devido ao fato de sua notável
presença enquanto pároco ter se desenvolvido na Vila do Lagarto. Entretanto, muito fez este
pela freguesia de Nossa Senhora do Amparo do Riachão. Infelizmente o livro de Tombo da
passagem de Daltro pela Paróquia de Nossa Senhora do Amparo não foi encontrado para que
pudéssemos estender uma análise mais aprofundada de seu vicariato, segundo informações o
livro teria desaparecido, não se sabe como.
Em Lagarto vivera os anos mais benfazejos de sua carreira sacerdotal. Para Armindo
504
GUARANÁ, 1925, p. 245.
505
FONTES, 1965-1978, p.78.
392
Guaraná fora em Lagarto que Daltro “passou a maior parte de sua longa e proveitosa
existência semeando o bem em torno de si (...)506”. Padre Daltro ficaria reconhecido na
posteridade, por ter implementado um projeto de reforma agrária, entendido por alguns
estudiosos como “sociologia agrária”.
Participante ativo da política da vila do Lagarto foi considerado um homem que sabia
transitar por entre as querelas que definiam a relação entre Igreja e Estado. Segundo Santos,
Daltro teve por vezes uma atitude política conciliadora510.
Seu empenho lhe renderia vários títulos entre eles o de Monsenhor, como ficara
conhecido nas terras sergipanas. Os últimos anos de sua vida foram de desalento por conta da
doença que afligia seus momentos finais, “cada vez mais tomado pela idade, 80 anos, doente,
ele não conseguia mais da conta de suas atividades administrativas511”.
506
GUARANÁ,, 1925. p. 245.
507
TAVARES; VIEIRA JUNIOR, 2012, p.06.
508
SANTOS, 2013, p.211.
509
GUARANÁ, 1925, p.245.
510
Ibidem, p.214.
511
SANTOS, 2013, p. 226.
393
Matriz de Nossa Senhora da Piedade em Lagarto. Sua postura em favor daqueles mais
necessitados lhe rendera uma vida voltada para o bem da humanidade e um reconhecimento
relegado a poucos nos dias atuais. Luis Antonio Barreto chega a afirmar que “o padre Daltro
não apenas viveu em Lagarto, mas viveu por Lagarto e pelo seu povo 512”. Armindo Guaraná
define Daltro com as seguintes palavras:
De sua vida pessoal, tem-se um capítulo que esteve na obscuridade por muito tempo.
Daltro teve dois filhos: Ester Deolinda de Matos e Pedro Garcia Moreno. A primeira esteve ao
lado do pai até os últimos momentos de sua vida. Já Pedro Garcia Moreno tornou-se um
respeitável farmacêutico sergipano. Segundo Claudefranklin Monteiro essa revelação só viera
tornar-se pública, muitos anos após a morte de Daltro. Este mesmo autor é enfático ao afirmar
que:
(...) Monsenhor Daltro não era o tipo de padre que a romanização queria ou
propugnava. Esteve diretamente ligado a política, esteve amasiado e gerou
filhos. Entretanto, doutrinária e administrativamente, no círculo da Igreja de
sua época, ainda que ultramontana, ele foi importante514.
Entendemos desta forma que Padre Daltro foi essencial no estabelecimento da religião
católica nas terras do Riachão, e que seu desempenho a frente da paróquia da Freguesia de
Nossa Senhora do Amparo foi essencial à fortificação da religiosidade riachãoense.
512
BARRETO, 2014. (eletrônico)
513
GUARANÁ, 1925, p.245.
514
SANTOS, 2013. p. 237
515
FONTES, 1992, p.40.
394
BIBLIOGRAFIA
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Cristóvão: Editora UFS, 2010. Fundação Oviedo Teixeira.
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http://www.infonet.com.br/luisantoniobarreto/ler.asp?id=95175&titulo=Luis_Antonio_Barret
o. Acessado em 15 de Janeiro de 2014.
FONSECA, Adalberto. História de Lagarto. Governo de Sergipe, 2002.
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GUARANÁ, Armindo. Dicionário Bio-bibliográfico Sergipano. Rio de Janeiro: Editora
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395
http://fjav.com.br/revista/Downloads/edicao07/Abordagens_sobre_a_Expansao_Comercial_e
_Economica_da_Cidade_de_Lagarto_SE.pdf. Acessado em: 20 de dezembro de 2013.
396
ASPECTOS SOBRE MORTE E FÉ CRISTÃ NO JORNAL O MAROINENSE (1887-
1892)
Suelayne Oliveira Andrade, mestranda em História (UFS)516
Introdução
A partir da organização e higienização dos jornais da hemeroteca da Biblioteca
Pública Epifânio Dórea, atividades desenvolvidas pelo projeto de pesquisa "Escrevendo em
nome da fé e diante das vicissitudes históricas...": Imprensa cristã e artigos de cristãos nos
jornais laicos sergipanos temos nos deparado com instigantes objetos de estudos. Dentre estes
objetos a ideia de morte e as práticas de luto presente através dos necrológios publicados nos
jornais.
Compreendendo que os jornais é um dos meios em que podemos identificar as ideias e
comportamentos socioculturais próprios de cada período, torna-se fácil entender como estas
fontes apresentam um meio promissor para a análise de representações e comportamentos que
nos levem a resgatar o passado. A proposta não é uma descrição pura e simplesmente do
passado em si, mas perceber as mudanças comportamentais provocadas pelo dinâmica
cultural através do tempo, sendo possível, também, entender os resquícios deste passado na
contemporaneidade.
O objetivo deste trabalho é apresentar uma breve análise sobre as simbologias da
morte cristã através do jornal O Maroinense, com o intuito de evidenciar as práticas sociais a
partir da experiência vivida pelo exercício do luto no final do século XIX na sociedade
sergipana, tendo como campo de observação, especificamente, a sociedade maruinense. O
recorte temporal, corresponde a 1887-1892, determinado por ser o período dos exemplares do
jornal O Maroinense analisados.
Justifica-se o desenvolvimento deste trabalho como um acréscimo a contribuição ao
campo da história cultural, que venha a compor mais um elemento para a compreensão da
sociedade sergipana e suas práticas culturais no século XIX.
A metodologia utilizada foi a análise das fontes para a compreensão das
representações iconográficas e textuais, embasadas numa construção do conhecimento
imediato, reconhecendo a distinção entre representantes e representados, compreendendo que
estas ordens podem ser corrompidas a partir das formas de representação social (CHARTIER,
516
Bolsista tendo como agência financiadora a CAPES. Membro do grupo de pesquisa Imprensa cristã e artigos
de cristãos nos jornais laicos sergipanos. Professor orientador Dr°. Antonio Lindvaldo Sousa. Endereço
eletrônico: su.elayne@hotmail.com.
397
1990, p.20-21). A entonação do texto, da caligrafia, ou neste caso as fontes utilizadas na
impressão, está ligada a uma escolha cultural, pois não se pode compreender o texto sem
conhecer os caracteres que está escrito (GINZBURG, 1990, p. 157-158).
Entender a representação e a experiência proposta a partir dos símbolos textuais e
iconográficos, favorece o entendimento destes através da percepção das sensações que que as
palavras podem provocar no leitor. Se “as palavras orientam e determinam a experiência”
(ANKERSMIT, 2012, p.244) permiti-nos compreender através do código simbólico da
linguagem escrita, a experiência vivida pelos indivíduos históricos, o que favorece o
entendimento da realidade.
Neste sentido, para contribuir com entendimento das representações do simbólico
através dos necrológios, é de grande valia, entender de que forma se dava o evento da morte
nas sociedades de cultura embasada no cristianismo. Para isto vamos utilizar da conceituação
e caracterização de morte a partir de Phillipe Ariés.
Assim, este artigo apresenta o tema desenvolvido a partir da caracterização do jornal O
Maroinense, objetivando o entendimento deste meio de comunicação como fonte de estudo e
veículo de informação. Em seguida, apresentamos os aspectos gerais sobre a representação da
fé cristã no jornal, o que nos levará a analisar e refletir os necrológios em O Maroinense,
buscando a caracterização e análise das representações textuais e iconográficas. Por fim,
apresentamos outros elementos que aparecem no jornal que ajudam a entender a visão de
morte na sociedade sergipana do século XIX e que complementa a análise dos necrológios.
O Maroinense
398
presentes nas matérias e o reconhecimento das personagens que estão por detrás, ou mesmo
apresentadas pelo jornal, vai nos proporcionar a visão e o comportamento social de um
determinado grupo na sociedade maruinense no final do século XIX. Pois, a historização da
fonte favorece a compreensão das funções sociais destes impressos (DE LUCA. In: PINSKY,
2005, P.132).
Assim como muitos periódicos do século XIX, O Maruinense teve um tempo de
circulação efêmero, surgiu no ano de 1886 e parou de circular no ano de 1893. De acordo com
Armindo Guaraná, O Maroinense “veio a desaparecer depois de danificada a oficina
tipográfica pelos agentes do governo de então” (GUARANÁ, 1925, p.?).
De propriedade de Antônio Augusto Gentil Fortes, O Maroinense era autointitulado de
periódico imparcial e neutro em questões políticas, como aparece em sua primeira página. A
partir do ano de 1890, tais características descritas na primeira página desaparecem. Este
silenciamento quanto a sua posição ideológica pode ser interpretado como um posicionamento
diante dos grupos político-sociais de Maruim que estão explícitos nos discursos publicados no
impresso, sendo possível identificar um discurso conservador ligado ao grupo político dos
Cabaús (grupo político sergipano ligado aos antigos monarquistas), e religioso, propagando os
ideais cristãos provenientes do catolicismo.
399
Aspectos da fé cristã no jornal O Maroinense
A prática católica é marcante por todo século XIX consequência das permanências
culturais de nossa formação colonial. O Brasil herdou o traço forte religioso dos portugueses,
imposto desde a chegada dos europeus a estas terras, o catolicismo como doutrina religiosa
dos grupos sociais dominantes permanecerá presente por muitos séculos constituindo uma
marca nas formas de regulação moral e nas práticas sociais.
517
O Maroinense. 02 de out. 1892. Nº314. Acervo Biblioteca Pública Epifânio Dórea. Pac. 42
400
em um elemento de notória contribuição religiosa, pautada também na observância de
aspectos de moralidade cristã.
De acordo como Giacoia Jr. (2005), a morte tem uma relevante importância pois
desperta a reflexão sobre a vida. O ato de apresentar elogios fúnebres ou mesmo notas de
falecimento traz à tona os comportamentos e sentimentos despertados nos indivíduos a partir
do evento da morte.
401
Le Goff (2003:444) afirma que “A memória pode resultar em escatologia, negar a
experiência temporal e a história. Será uma das vias da memória cristã ". Desta forma
compreende-se que a memória no cristianismo deveria legitimar a lembrança para manter
orações pelos que morreram (escatológico) e por suas boas ações (memorial), mas para
aqueles que não foram práticos das boas ações o esquecimento de seus nomes deveria ser
condicionado, não deveriam ser lembrados.
O século XIX foi marcado pelas expressões de religiosidades no momento da morte.
Aríés aponta algumas descrições que nos ajudam na compreensão destes aspectos, que nos
leva a compreensão o entendimento da morte durante o período aqui proposto. Ao longo do
século XIX sutis transformações ocorreram no modo de ver e se transmitir a morte, esta passa
a ser vista como uma vida sublimada (ARIÉS, 2012:151). Ao mesmo tempo que os mortos e
morte passam a ser visto como aparente, mas sem distanciar o medo perante o evento,
entretanto, este medo está associado a uma vida que foi abreviada sem ter conquistado seus
objetivos plenos a serviço da sociedade e pelo medo da perda, da ausência do outro.
O medo e a beleza da morte passam a ser associada aos interditos, aos silêncios.
Portanto, os necrológios apresentam o memorável e silencia o não memoriável, pois, os
indivíduos devem ser lembrados perante a sociedade a partir de suas benfeitorias, como pode
ser percebido no necrológio a seguir:
Na madrugada do 4 corrente falleceu na cidade de Aracajú, a Exmº
Sr. D. Maria Carolina do Espirito Santo.
A finada era excelente mãi de família; durante sua vida soube
sempre trabalhar para manter-se com toda hombriedade e decência.
No Aracajú gozou de todo conceito, e de acordo com suas forças,
teve sempre muito credito sua palavra.
Ás suas dignas filhas enviamos nossos pezames.518
Este necrológio é um exemplar de que o que deve ser memorável são as benfeitorias,
as qualidades positivas. Ele pode ser visto também como o monumento que perpetua a
identidade do indivíduo (profissional, familiar, feitos, etc.) perante a sociedade. Tais
distinções do indivíduo morte e sua memória na sociedade em se estava inserido, permitiu que
ao analisarmos os necrológios no jornal O Maroinense houvesse distinções entre os
necrológios que perpetuavam a memória de pessoas comuns e aqueles que apresentam um
destaque na sociedade (aqueles que a memória ao qual representa um grupo social dominante
e que precisa ser preservada).
518
O Maroinense. 11 de set,1892. Nº 311. Acervo Biblioteca Pública Epifânio Dórea. Pac. 42
402
Estas distinções entre os necrológios estão perceptíveis nas imagens da morte
transmitidas pelos mesmos. A respeito das imagens apresentadas sobre a morte Ariés (2012:
151) indica que “traduzem as atitudes dos homens diante da morte numa linguagem nem
simples nem direta, mas cheias de artimanhas e circunlóquios”. Para este mesmo autor ao
final do século XIX as imagens da morte tornam-se incompreensível (Ariés 2012: 152).
Entretanto, para nossa análise as representações da morte ainda persistem na associação com a
fé cristã através de uma linguagem romântica, que também propagou o culto aos mortos a
partir da monumentalidade dos cemitérios. Nos necrológios o romantismo está presente nas
expressões em que descreve a morte, a exemplo da frase: “Cedeu ao golpe terrível do
devastador anjo da morte...” (O Maroinense. 24 de fevereiro de 1888. Edição nº149. Acervo
Biblioteca Pública Epifânio Dórea).
Quanto maior o grau de importância o indivíduo representava para a sociedade maior
destaque e elogios teria em seu necrológio. Assim dentro das análises feitas nos necrológios
do jornal O Maroinense, maior seria sua representatividade social. Esta significância do
indivíduo perante a sua sociedade ou grupo social ao que eram pertencentes os necrológios
apresentavam signos que destacava a nota fúnebre. Cruz adornada de folhagens, cruz simples
e tarjas pretas destacando a notícia estavam associadas ao destaque destes indivíduos na
sociedade
O Maroinense. 26 de outubro de 1890. nº 223. Acervo Biblioteca Pública Epifâneo Dórea. Pac. 42
Estas expressões de morte estão ligadas a um sentimento religioso herdados pela cultura
cristã, a própria morte de cristo seria uma representação de morte memorável, por isso o
símbolo da cruz tem uma expressão bastante representativa na morte de cristãos. De acordo
com Cirlot (2005:197) o emblema gráfico da cruz é universalmente pelo influxo cristão, sua
determinação se resume a conjunção dos contrários: o positivo (vertical) e o negativo
(horizontal), representa a dicotomia superior e inferior, vida e morte. Assim, ainda citando
403
Cirlot, “em sentido ideal e simbólico, estar crucificado é viver a essência do antagonismo base
que constitui a existência, seu cruzamento de possibilidades”.
Considerações finais
Podemos dizer, sem pretensão de uma conclusão definitiva, que a simbologia da morte
expressa através dos necrológios do século XIX estaria entre a expressão dos antigos gregos,
com a exaltação dos feitos e a construção memorial dos mitos heroicos e a expressão da fé
cristã. A persistência da presença destas notas fúnebres nos apresenta a possibilidade de
compreender as representações sociais a partir dos impressos.
Referências
405
A MULHER NEGRA ESCRAVIZADA NO BRASIL COLONIAL NA OBRA CASA GRANDE
& SENZALA DE GILBERTO FREYRE
Introdução
Com o tema “A mulher negra escravizada no Brasil Colonial na obra Casa Grande e Senzala
de Gilberto Freyre”, o artigo vincula-se à necessidade de compreender melhor a história da mulher
negra escravizada no Brasil no período Colonial.
O trabalho tem como seu objetivo geral compreender melhor o âmbito da história da mulher
negra escravizada no Brasil Colonial. Identificar as funções desenvolvidas pela mulher negra
escravizada; Identificar as formas de relação da mulher negra diante da escravidão; Apresentar os
aspectos da sociabilidade da mulher negra escravizada com os senhores de escravos, refere-se aos
objetivos específicos para nortear a pesquisa.
O trabalho justifica-se na importância de salientar a importância do estudo acerca da mulher
negra escravizada, uma vez que, falar da mulher escrava num período de extrema opressão à
população negra é penetrar no universo de quem viveu a experiência de ter tido sua identidade
invisibilisada, ter sido submetida à violência, mas também destacam suas ações de resistência ao
sistema. Portanto, para a compreensão da sociedade atual que possamos primeiramente apreender
informações relevantes da sociedade em que derivamos, ou seja, torna-se necessário que
compreendamos primeiramente nosso contexto histórico. É nesse sentido que se mostra relevante à
construção do presente trabalho, como uma tentativa de discutir sobre a mulher negra escravizada no
Brasil Colonial.
A problemática constitui-se na dificuldade de olhar o presente sem considerar aspectos
passados, já que o processo histórico é imprescindível para a visão crítica da atualidade. Dessa forma,
é fundamental a contextualização sobre a mulher negra escravizada no Brasil Colônia, onde serão
apresentados alguns fatores históricos que permitem perceber um pouco da realidade da mulher negra
brasileira.
406
Embora a análise de Freyre sobre a sociedade patriarcal e escravocrata seja vista como
açucarada, a obra não nega a violência do sistema, e por não ser este seu foco, ela aparece entremeada
às relações no cotidiano dos senhores de engenhos e escravos. Assim como o branco português, o
negro africano também foi apresentado como colonizador, mas dentro da lógica da escravidão. Dessa
forma, a sua influência se daria através da criação de um mundo paralelo ao dos brancos, utilizando
para isso a relação de submissão, necessária para sua sobrevivência, e as lembranças de suas tradições
e sua cultura de origem.
A obra “Casa Grande e Senzala” de Gilberto Freyre define-se como uma obra revolucionária
aos estudos da História do Brasil, em se tratando do Brasil Colonial. Em sua obra é expressamente
visto o pensamento escravista, dando-se ênfase ao domínio das raças.
Portanto, o presente artigo está dividido em três partes. Na primeira parte é abordado a
Introdução; Na segunda é analisada o referencial teórico sobre “A mulher negra escravizada no Brasil
Colonial”; Na terceira, as Considerações finais e por fim, as Referências bibliográficas.
Nesta segunda parte será abordada como principal foco a figura da mulher negra no período
colonial da escravatura tendo como base a obra de Gilberto Freyre Casa-grande & senzala, onde o
autor buscou discorrer seu ensaio sociológico sobre o papel do escravo na vida sexual e no cotidiano
familiar da colônia portuguesa.
Em Casa-grande & senzala, Gilberto Freyre dedica os capítulos IV e V para discorrer seu
ensaio sociológico sobre o papel do escravo na vida sexual e no cotidiano familiar da colônia
portuguesa519.
Muitos são os autores que tratam em analisar a cultura africana e a dos afrodescendentes em
variadas situações e em contextos diferenciados. Os últimos debates da historiografia sobre o tema
vêm colaborando para a formulação de novos conceitos, aos quais estão sendo utilizados tanto pelos
Currículos Nacionais, quanto pelas produções acadêmicas. Entretanto, poucos são os trabalhos que
tratam em analisar as mulheres negras e escravas do período colonial. Muitos estudos vêm trabalhando
a temática ainda superficial e tímida, focando principalmente no século XIX. A ausência de tais
pesquisas marginalizam o protagonismo de tantas mulheres que lutaram e trabalharam nos antigos
canaviais, nas casas de senhores e nas ruas de outrora.
519
BARCELOS, Ana Regina Ferreira de; ROCHA, J. S. O lugar da mulher e da criança na obra Casa
Grande e Senzala. In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação no Brasil. Universidade Federal de
Santa Catarina. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2013. V. CD. p. 1-14. Disponível em:
http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/04%20HISTORIA%20DA%20EDUCACAO%20DAS%20CRIAN
CAS%20JOVENS%20E%20ADULTOS%20NO%20BRASIL/O%20LUGAR%20DA%20MULHER%20E%20
DA%20CRIANCA.pdf. Acesso em: 30/07/2015.
407
Os atuais estudos revelam que os recentes debates estão seguindo o viés para a questão da
pluralidade cultural e multiculturalismo520. Essas produções sofreram influências muito consistentes
dos estudos Pós-Coloniais521.
Ao que tudo indica, o centenário da abolição em 1988 foi o auge do interesse dos
pesquisadores pela escravidão e pela cultura afro-brasileira. É importante citar aqui o estado de Minas
Gerais, Bahia e Rio de Janeiro como grandes celeiros, divulgadores desses estudos. Esse interesse
renovado por escravos e seus descendentes, enquanto agentes históricos, enfatizando sua história
cultural, as identidades e as representações resultaram em várias obras.
Uma autora que entende as mudanças significativas nos recentes estudos historiográficos
sobre a África e afrodescendentes é Fabiana Schleumer. No seu artigo publicado recentemente
intitulado Cenários da escravidão colonial: história e historiografia, fala sobre o debate racial nos
últimos 30 anos. Para ela, a querela sobre a questão racial no Brasil, principalmente após o centenário
da abolição dos escravos, gerou uma série de análises revisionistas do passado colonial brasileiro.
Segundo a autora, é preciso pensar a escravidão e o protagonismo da mulher negra/escrava para além
dos lugares comuns, constantemente frequentados pelos historiadores estrangeiros e nacionais. É
preciso pensar que a família escrava, o quilombo representa o papel de uma ação negociada, onde o
escravo é o sujeito que negocia e reelabora valores e estruturas fundamentais a sua sobrevivência em
novas terras.
Sabe-se que no Brasil Colonial desde os primórdios este país povoou-se com colonizadores
portugueses, sendo alguns aqueles que ficavam agrupados em núcleo familiar, ou seja, famílias com
estrutura patriarcal na casa-grande, com quase nenhuma presença feminina, sendo que se baseavam no
trabalho agrícola; e os chamados degredados, que por sua vez eram exilados nas novas terras imperial,
durante os séculos dezesseis e dezessete vigorados por lei, pelo fato de serem acusados de estarem em
irregularidades, ou até mesmo excesso na vida sexual, e de heresia.
O estudo focou-se nas mazelas, em meio da exploração sexual, em que as negras sofreram, e
por vez ainda sofrem, mesmo estando inseridas na sociedade pós-escravocrata. Gilberto Freyre, fala
sobre o papel ativo da mulher escrava na formação da família patriarcal brasileira.
A trajetória da Mulher e da criança na obra Casa Grande & Senzala aparece intimamente
imbricada. Em diferentes escalas as relações de submissão fortemente exercidas pelo senhor de
engenho tomam corpo no cotidiano, sejam elas do Senhor sobre a família e escravos, da Sinhá-dona
em relação aos escravos, da sinhá-moça sob as mucamas, ou entre os meninos brancos e os meninos
520
Segundo Gusmão (Apud OLIVA, 2012, p. 34) o termo multicultural “é entendido como uma constatação da
presença de diferentes culturas num determinado meio [...]”. De acordo com Oliva, este termo é o mais utilizado
aqui no Brasil.
521
Estudos revisionistas elaborados desde a década de 80 do século passado. Essas pesquisas colocaram no cerne
das discussões temas que anteriormente foram esquecidos, como: práticas agrárias, receitas de cozinha,
produções artísticas, etc.
408
escravos. A prática da opressão, que subjuga o mais fraco, tem lugar de destaque no convívio
estabelecido entre os indivíduos. 522
Na época colonial do Brasil de acordo com Freyre (1989, p. 307) “Os escravos vindos das
áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento ativo, criador, e quase que se pode
acrescentar nobre na colonização do Brasil, degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe
de terem sido apenas animais de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura”. Ou seja, neste
período os negros escravos foram comparados a instrumentos de trabalho e animais. Foi negado a eles
o status de cidadãos de segunda classe, excluídos dos direitos sociais e de cidadania e
desconsiderados, e assim, gerando as sequelas de mitos e de tabus, em relação à negra.
Outro fator relevante na vida da mulher negra escravizada é com relação a doenças, como o
próprio Freyre (1989, p. 318) “[...] Mas no ambiente voluptuoso das casas-grandes, cheias de crias,
negrinhas, molecas, mucamas, é que as doenças venéreas se propagaram mais à vontade, através da
prostituição doméstica – sempre menos higiênica que a dos bordéis”.
Neste sentido, com relação a doenças, Freyre busca mostrar principalmente no caso da sífilis,
que no Brasil colonial, o homem branco da casa-grande que disseminou na genitália da negra, e assim,
foi passando a outros brancos e chegaram até a senzala. Com isto, o círculo fechava-se, sifilizando o
Brasil colonial, pois, estas mesmas negrinhas eram as responsáveis da precoce maturação sexual do
jovem donzelo, ou seja, menino ou adolescente dos engenhos. “A sífilis fez sempre o que quis no
Brasil patriarcal” (FREYRE, 1989, p. 318).
Para o autor em estudo quem saía lucrando com essas práticas de prostituição eram as
mulheres brancas, pois as mesmas sendo exploradas por seus maridos, eles a deixavam mais
tranquilas, para não cumprir com suas obrigações de esposa. No Brasil patriarcal, a mulher agregou-se
a inferioridade gerada pelo status de escrava, fazendo da cultura brasileira, uma cultura com muitos
dos seus elementos mais ricos abafados e proibidos de se expressarem pelo tabu do sexo.
Como Freyre (1986, p. 443) afirma que as relações do branco com a mulher negra eram mais
violentas do que com as índias, segundo o autor introduzidas às mulheres africanas no Brasil dentro
dessas condições irregulares de vida sexual, a seu favor não se levantou nunca, como a favor das
mulheres índias, a voz poderosa dos padres da Companhia. De modo que por muito tempo as relações
entre colonos e mulheres africanas foram as de franca lubricidade animal, ou seja, pura descarga de
sentidos.
Segundo Gilberto Freyre, a casa grande é na verdade o centro da depravação resultante da
condição econômica do senhor, o conquistador, no seu permanente ócio e que se enriquece sem
522
BARCELOS, Ana Regina Ferreira de; ROCHA, J. S. O lugar da mulher e da criança na obra Casa
Grande e Senzala. In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação no Brasil. Universidade Federal de
Santa Catarina. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2013. V. CD. p. 1-14. Disponível em:
http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/04%20HISTORIA%20DA%20EDUCACAO%20DAS%20CRIAN
CAS%20JOVENS%20E%20ADULTOS%20NO%20BRASIL/O%20LUGAR%20DA%20MULHER%20E%20
DA%20CRIANCA.pdf. Acesso em: 30/07/2015.
409
trabalho. Não tendo como se defender, a escrava negra era obrigada a se prostituir aos domínios do
senhor e a se entregar à violência (e à sífilis). “No interesse da procriação à grande, uns; para
satisfazerem caprichos sensuais, outros” (FREYRE, 1986, p. 364).
Para Freyre, a pegajenta luxúria constitutiva do espírito de cada brasileiro resulta do sistema
econômico que dominou o país por muito tempo e, talvez, pelo clima. Neste sentido, as condições
socioeconômicas foram favoráveis ao sadismo e ao masoquismo, numa divisão da sociedade entre
senhores poderosos e escravos passivos.
As marcas de um Brasil agrário, regido pela monocultura, patriarcal e escravocrata
“continuaram a influenciar a conduta, os ideais, as atitudes, a moral sexual dos brasileiros” (FREYRE,
2006, p.51) durante a constituição de uma sociedade pré- urbano-industrial que se configurava no final
do século XIX.
Abordar a história da população negra no Brasil, assim como as especificidades em relação à
mulher negra escrava, é sem dúvida um exercício que vem sendo buscado cada vez mais pelos
estudiosos na recente historiografia social da escravidão523.
As mulheres escravas, por sua vez, foram vítimas de uma série de formas de abusos – além do
trabalho, teve outra incumbência, a da satisfação sexual do colono privado. Nesse sentido explana
Caio Prado Júnior524 em História Econômica do Brasil:
Como as passagens bem registram a mulher escrava, inclusive do ponto de vista dos serviços
sexuais que era forçada a prestar, era um instrumento, animalizada, reificada – longe da esfera humana
dos sentimentos. Segundo Caio Prado Junior525 toda a vida social colonial se fundou precipuamente na
regulamentação de dois instintos primários do homem: o econômico, através do trabalho, e o sexual,
através das relações de família. As negras eram mão de obra escrava e a forma com que foram
abusadas sexualmente foi um dos elementos centrais na constituição da família e das relações
coloniais. Vigorava uma “indisciplina sexual”, na expressão de Prado (1994), e todos faziam o uso
sexual de suas negras, apesar de grande parte dos discursos oficiais condenarem este “hábito
disseminado entre homens, casados ou solteiros, ricos ou pobres” (Del Priore, 2000, p. 26).
523
SILVA, Maria da Penha. Mulheres Negras: Sua participação histórica na sociedade. Cadernos
Imbondeiro. João Pessoa, v. 1, n. 1, 2010. Disponível em:
http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ci/article/download/13509/7668. Acesso em: 26/07/2015.
524
JÚNIOR, Caio Prado. História econômica do Brasil. 41. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
525
Ibidem. Op. Cit, 1994.
410
No período colonial as mulheres negras/escravas desempenharam dezenas de papeis. Ora elas
avolumavam as fileiras do duro labor da campo, trabalhando sob o sol e sofrendo castigos terríveis,
ora elas estavam nas ruas estreitas dos antigos centros coloniais, vendendo os seus produtos.
Diferentemente das escravas que engrossaram o trabalho no campo, as mulheres cativas da colônia ao
qual estavam trabalhando para os seus senhores nas cidades possuíam “autonomia”. Podiam, em certa
medida, e quando sob a ordem dos seus donos, dormir em outras residências (cortiços) próximas ao
seu ambiente de trabalho. Esses “arranjos” eram bastante privilegiados por todos os escravos. Tais
possibilidades de trabalho faziam com que parte significativa dessa mão-de-obra conseguisse juntar
um pecúlio suficiente para a compra de alforrias.
Freire resgata o relato de Joaquim Nabuco, no qual ele destaca que “a parte mais produtiva da
propriedade escrava é o ventre gerador” (2006, p.399), de forma que a suposta depravação sexual
estava vinculada a condição de escravidão, uma vez que se tornava fundamental que as negras
produzissem mais crianças526.
Gilberto Freyre527 afirma que as relações do branco com a mulher negra eram mais violentas
do que com as índias: “Introduzidas às mulheres africanas no Brasil dentro dessas condições
irregulares de vida sexual, a seu favor não se levantou nunca, como a favor das mulheres índias, a voz
poderosa dos padres da Companhia”. De modo que por muito tempo as relações entre colonos e
mulheres africanas foram as de franca lubricidade animal. Pura descarga de sentidos.
Existia uma perversidade que permeava as relações sexuais entre senhor e escrava. Para
Freire528
tais relações sempre foram relações entre “vencedores com vencidos”, sendo que a escravidão
era mesmo “o grande excitante da sensualidade” entre nossos colonizadores. Para ele as relações
sexuais dos homens brancos com as mulheres negras eram relações “de ‘superiores’ com ‘inferiores’
e, no maior número de casos, de senhores desabusados e sádicos com escravas passivas”. Segundo
Freyre, é um sadismo persistente do conquistador sobre o conquistado, de branco por negro, do
homem sobre a mulher, o que sugere a analogia entre a mulher e o ser colonizado.
Freyre529 também argumenta que a miscigenação “corrigiu” a distância social e foi feita
“gostosamente”; que a sociedade híbrida brasileira se constituiu “harmoniosamente quanto às relações
de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de
aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado”. Por outro lado, a
passagem a seguir demonstra o quanto o autor entra em contradição em querer defender a harmonia,
526
BARCELOS, Ana Regina Ferreira de; ROCHA, J. S. O lugar da mulher e da criança na obra Casa
Grande e Senzala. In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação no Brasil. Universidade Federal de
Santa Catarina. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2013. V. CD. p. 1-14. Disponível em:
http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/04%20HISTORIA%20DA%20EDUCACAO%20DAS%20CRIAN
CAS%20JOVENS%20E%20ADULTOS%20NO%20BRASIL/O%20LUGAR%20DA%20MULHER%20E%20
DA%20CRIANCA.pdf. Acesso em: 30/07/2015.
527
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Editora Global, 49ª ed. São Paulo. 1986.
528
Ibidem.Op. Cit, 1986.
529
Ibidem.Op. Cit, 1986.
411
mas ter que descrever a realidade do que se passou: “A história do contato das raças chamadas
superiores com as consideradas inferiores é sempre a mesma. Extermínio ou degradação.
Principalmente porque o vencedor entende de impor ao povo submetido a sua cultura moral inteira,
maciça, sem transigência que suavize a imposição”.
Importante ainda dizer que existe, em algumas passagens da obra de Gilberto Freyre, uma
inversão ideológica de papéis. Por exemplo: “Diz-se geralmente que a negra corrompeu a vida sexual
da sociedade brasileira, iniciando precocemente no amor físico os filhos-família. Mas essa corrupção
não foi pela negra que se realizou, mas pela escrava. Onde não se realizou através da africana,
realizou-se através da escrava índia” (Freyre, 1986, p. 338). Ou então: “No interesse da procriação à
grande, uns; para satisfazerem caprichos sensuais, outros. Não era o negro, portanto, o libertino: mas o
escravo a serviço do interesse econômico e da ociosidade voluptuosa dos senhores” (Freyre, p. 341).
O autor, tentando defender a mulher negra, ou os escravos em conjunto, afirma que ela
corrompeu a família não por ser negra (1986, p. 342), mas pela sua condição de escrava. Ora, não foi à
negra que corrompeu a família, tampouco a escrava! A sociedade patriarcal, escravocrata e machista é
que corrompeu a negra escrava, transformando-a em objeto sexual.
O próprio Gilberto Freyre (1986), porém, o reconhece em seguida: “Não era a ‘raça inferior’ a
fonte da corrupção, mas o abuso de uma raça por outra”. Abuso que implicava em conformar-se a
servil com os apetites da todo-poderosa.
Freyre (1986) argumenta que a miscigenação “corrigiu” a distância social e foi feita
“gostosamente”; que a sociedade híbrida brasileira se constituiu “harmoniosamente quanto às relações
de raça: dentro de um ambiente de quase reciprocidade cultural que resultou no máximo de
aproveitamento dos valores e experiências dos povos atrasados pelo adiantado”. Por outro lado, a
passagem a seguir demonstra o quanto o autor entra em contradição em querer defender a harmonia,
mas ter que descrever a realidade do que se passou: “A história do contato das raças chamadas
superiores com as consideradas inferiores é sempre a mesma. Extermínio ou degradação.
Principalmente porque o vencedor entende de impor ao povo submetido a sua cultura moral inteira,
maciça, sem transigência que suavize a imposição”.
É possível dizer que a sociedade brasileira, miscigenada, foi mais propensa a integrar a
mestiça, sobretudo, as mais claras; a integrar. A mulata por sua vez não tão bonita quanto simpática,
foi sempre o mais favorecida, herdando da raça negra a alegria e a cordialidade que a ajudaram a
gingar e combater os preconceitos sociais e raciais da sociedade republicana nascente. Em
contrapartida, a sociedade patriarcal foi acomodando a ancestral senzalada da mestiça, fazendo-a,
literalmente, desaparecer; marginalizando-a sempre mais, recluindo-a em mocambos e, depois, em
favelas, priva de atenção público-governamental.
Gilberto Freyre chama à atenção às formas light de trabalho e servidão, criadas pela libertação
dos escravos; formas nas quais, em detrimento das negras e mulatas, exaltava a nova força
412
trabalhadora estrangeira, revelando, de outra parte, a postura anti-xenofóbica do brasileiro, não
excluindo o preconceito de cor, já que, estes novos trabalhadores não provinham das Terras Negras.
Ainda no período colonial, aos negros, à negra e à mucama, vinha-lhes imposta qualquer
forma de vestir ou se adornar que pudesse avizinhá-los aos seus senhores. No Império, chegou-se ao
ponto de, nem sequer, dar o direito de irem fazer queixas das mazelas dos seus senhores para com eles
à autoridade policial constituída. Estas eram as respostas para os que desejavam viver segundo a
situação social que havia alcançado.
Nada autoriza concluir que o negro trouxe para o Brasil a luxúria530. Esta vem do “sistema
econômico e social de nossa formação”. Para ele, a escravidão inclusive fez abafar no escravo africano
as suas melhores tendências.
A historiografia brasileira, até cerca de 30 anos atrás, preferiu adotar a tese segundo a qual os
escravos “se adaptaram bem” ao regime tirânico que lhes foi imposto no Brasil e que, neste país, a
escravidão teria sido relativamente branda. O mito do “bom senhor” quase adquiriu força de lei depois
do lançamento, em 1933, de “casa Grande & Senzala”, de Gilberto Freyre. No início dos anos 60,
surgiram os textos revisionistas da chamada “escola paulista”, liderada por Florestan Fernandes,
Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso.
Assim, no Brasil republicano, a tendência miscigenante acentuou-se ainda mais, e o grande
favorecido foi à própria nação. Nesse sentido Freyre se permite afirmar que, no Brasil, as regiões ou
áreas de mestiçamento mais intenso se apresentam as mais fecundas em grandes homens. Muitos são
os fatores impende a híbrida brasileira como a favela, o sistema educacional deficitário, o sub-
emprego, a má nutrição, racialmente ou culturalmente miscigenada, de atuar com todas as suas
potencialidades, e assim confirmando, mesmo tendo que relativizar, a validade da teoria freyriana da
democracia racial, tão rebatida pelos seus críticos.
Considerações Finais
530
Ibidem.Op. Cit, 1986.
413
Por isso, pode-se ratificar, dentro dos limites já expostos do status de escrava da mulher de
cor, e do de, quase-escrava, da mulher branca, a hipótese de que não obstante o seu status de escrava,
a mulher contribuiu para a formação, não só da família patriarcal, mas, da cultura e da própria
sociedade brasileira, dentro daqueles que são os limites do sistema patriarcal, como afirma, em síntese,
o próprio Gilberto Freyre. Contudo, não só historicamente, mas, retoricamente, a pesquisa freyreana è
inacabada; è uma tentativa de dar respostas históricas à situação na qual, nos dias atuais comparada
com a mulher branca, a mestiça encontra-se em situação social desvantajosa.
À extrema diferenciação e especialização do sexo feminino em ‘belo sexo’, ‘sexo frágil’; e
‘sexo útil’ e ‘sexo parazeiroso’ a ponto de fazer, da mulher, muitas vezes, um ser artificial e mórbido,
serva do homem e boneca de carne do marido ou do senhor, que, quando senhora, encontrava na
religião e no confessionário os caminhos para a sublimação dos seus sofrimentos psíquicos e, que,
quando escrava, encontrava na miscigenação a única oportunidade de fazer ascender a sua
descendência.
Não se pode esquecer que o serviço da mulher escrava na não se resumia só em ficar na
senzala, na maioria das vezes, também participava da vida social na colônia ou no império como
escrava de ganho. A mando do senhor, saía para vender produtos que chamamos de negra de tabuleiro.
É interessante também ressaltar de que existia as obrigações de trabalho quando as escravas
constituíam pecúlios familiares. Muitos senhores, através de acordos, concediam um pedaço de terra
para essa nova família. Então, além de trabalhar para o senhor, a escrava tinha que manter junto com o
esposo o pecúlio familiar e a sobrevivência da família e seus filhos.
Era, todavia, a cargo delas que ficava o asseio e a limpeza da casa, a preparação dos alimentos,
o comando das escravas e dos índios domésticos, além de grande parte da indústria caseira. Afinal,
toda a sua educação era voltada para o casamento, para as atividades que deveriam desempenhar
enquanto mães e esposas.
Por outro lado, deve-se reconhecer que a mulher escrava não contribuiu para que fosse
mudado o status do gênero feminino no Brasil. Porém, aliou-se a ela, chegando, muitas vezes, à
rivalidade, para que fosse vencido os grandes desafios da colonização: a grande extensão territorial e a
carência de elemento feminino. Ela foi escrava, como foi também escrava a mulher branca; a única
diferença reside no fato que, a escrava tinha dois senhores: o senhor e a senhora.
Pode-se dizer que as escravas lograram ajudar os colonos brancos na adaptação às terras
tropicais, jogando um papel decisivo não só na miscigenação, mas na geração da família e da
sociedade patriarcal e, se ainda hoje, sofre as consequências do status dos seus ancestrais, não é
exclusivamente por razão de cor, mas, sim, pela sua condição social.
Partindo dessas análises, precisamos entender que as experiências das mulheres negras
escravizadas devem ser levadas em conta na hora de escrever a história da escravidão e do próprio
país, pois o conhecimento de suas experiências, suas estratégias de sobrevivência e de mobilidade
414
social, não apenas permite que a história das mulheres seja vislumbrada num aspecto mais amplo,
como torna possível uma revisão crítica da escrita histórica.
Dessa forma, essas experiências referem-se ou estão indiretamente relacionadas com
manifestações de mulheres negras em relação ao sistema escravista, preferencialmente os que dizem
respeito à resistência ou a maneira de conquistar a liberdade, pretende-se destacar a condição
particular e específica dessas mulheres, buscando recuperar na interconexão entre escravismo e
patriarcado, as estratégias de resistência e as maneiras como a mulher escravizada procurava a
liberdade, ou a liberta procurava ascender socialmente.
Conclui-se então que é necessário fazer uma tentativa de se apreender, com o máximo rigor
possível, as ambiguidades que atravessam a experiência das mulheres negras, escravas ou libertas,
num quadro social que as oprimia, partindo da análise de que as mulheres negras participavam da
sociedade escravista tanto na condição de escrava quanto de liberta e livre com demandas específicas e
maneiras próprias, dada sua condição naquele quadro social.
Referências
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Grande e Senzala. In: VII Congresso Brasileiro de História da Educação no Brasil. Universidade
Federal de Santa Catarina. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2013. V. CD. p. 1-14.
Disponível em:
http://sbhe.org.br/novo/congressos/cbhe7/pdf/04%20HISTORIA%20DA%20EDUCACAO%20DAS%
20CRIANCAS%20JOVENS%20E%20ADULTOS%20NO%20BRASIL/O%20LUGAR%20DA%20
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(Org.). Historiografia Brasileira em Perspectiva. 3 ed. São Paulo, SP: Contexto, 2000.
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Paulo. Anhembi, 1971.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala. Editora Global, 49ª ed. São Paulo. 1986.
FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. 26ª edção. Rio de Janeiro: Record, 1989.
FREYRE, Gilberto. O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro. In: FREYRE, G.
Casa- grande & senzala.51ª Ed. rev.- São Paulo: Global, 2006.
415
MUNANGA, Kabengele. Negritude: uso e sentidos. São Paulo: 1988.
OLIVA, Anderson Ribeiro. Entre máscaras e espelhos: reflexões sobre a identidade e o ensino de
História da África nas escolas brasileiras. Revista História Hoje. v. 1, nº 1, p. 29-44, 2012.
PARDO, Aristides Leo. A escravidão no Brasil Colônia, às relações entre cativos e a paulatina
chegada da liberdade. Nethistória (Brasília), v. 2012, p. 01, 2012.
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Imbondeiro. João Pessoa, v. 1, n. 1, 2010. Disponível em:
http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/ci/article/download/13509/7668. Acesso em: 26/07/2015.
416
A BAGACEIRA E AS IDEIAS SOCIOLÓGICAS MODERNISTAS
A bagaceira, publicado em 1928, é saudado pelo principal crítico da época, Tristão de Athayde,
como o romance que o modernismo não havia ainda conseguido escrever. “Qualquer coisa de definitivo”
dissera o primeiro grande crítico do modernismo sobre a obra do paraibano José Américo de Almeida em seu
artigo “Uma Revelação” (escrito em 1928, mas publicado posteriormente em Estudos, 3ª Série, 1930). Para
Alfredo Bosi a obra passou a marco da literatura social nordestina menos por seus méritos intrínsecos do que
por ter definido uma direção formal realista e uma diretriz temática: a vida nos engenhos, a seca, o retirante,
o jagunço (BOSI, 1984, p.444). De fato, as obras marcantes do Romance de 30, como Fogo morto, do
também paraibano José Lins do Rêgo, O Quinze, de Rachel de Queiroz, Vidas Secas de Graciliano Ramos,
seguirão na trilha apontada por Américo, não apenas quanto a temática, mas na própria estilística, com um
tratamento mais coerente da linguagem coloquial e utilização das técnicas impressionistas na descrição e no
nível dos significados.
Ainda que seja apontada como a obra pioneira do Romance de 30, A bagaceira estaria no hall das
obras avulsas da literatura brasileira, que não se vinculam necessariamente a uma corrente ou a um
movimento literário definido, ainda que tenha apontado a direção pra o movimento literário da década
seguinte, no caso, o romance regionalista de 30. Não pode ser considerada uma obra pré-modernista, como é
comumente classificada a literatura escrita no inicio do século XX, como Os Sertões, de Euclides da Cunha
ou Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, pois é publicada pós-1922. Dessa forma, é possível
localizá-la mesmo no meio do caminho, pois é inegável que a escrita de José Américo incorpora algumas das
liberdades e novidades estilísticas trazidas pelos intelectuais do eixo São Paulo-Rio de Janeiro ligados ao
modernismo, assim como prenuncia os elementos que serão elaborados pelos escritores vindos do nordeste 532
do país, que ficariam conhecidos como a geração regionalista 30.
Entender a bagaceira nesse meio do caminho não é possível sem recuperar a trajetória de formação
intelectual do escritor, desde sua formação na faculdade de direito do Recife, o grande centro de difusão de
conhecimento e debate das ideias dos estados do nordeste do país, até o contexto em que ele publica seu
romance de estreia, isto é, os anos 1920.
531
Mestrando em História pela Universidade Federal de Pernambuco; victorlustosa@gmail.com
532
É preciso atenção ao utilizar os termos norte ou nordeste pra esse período, pois a divisão administrativa que
conhecemos hoje foi definida nos anos 1960. Nesse período, os estados que hoje fazem a parte da região nordeste, como
Paraíba, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará, por exemplo, eram referidos como estados do Norte oriental, ou
simplesmente do Norte. Sobre a evolução da divisão territorial do brasil, ver o sítio do IBGE, no endereço eletrônico
http://www.ibge.gov.br/
417
A formação na faculdade de Direito do Recife: Breve trajetória de José Américo de Almeida
A faculdade de direito do recife tem sua origem durante o Império. Ao lado da faculdade de direito
de São Paulo, essas duas faculdades representam o movimento do Império brasileiro de romper com a
tradição de formação das elites brasileiras em Coimbra, no sentido de adquirir independência intelectual em
relação a antiga metrópole. Durante o século XIX e entrando no século XX, esses dois ambientes acadêmicos
irão se desenvolver de forma distintas, criando duas intelligentsia autônomas , reflexo das diferenças
econômicas e sócio-políticas entre os dois centros, um em declínio e o outro e ascensão.
Ingressando na faculdade de direito do recife no inicio do século XX, bacharelando-se em 1908, José
Américo de Almeida estudou no ambiente acadêmico pós-geração de 70, geração que introduzira no Brasil
as teorias cientificas que rompiam com o pensamento religioso em prol de uma visão laica de mundo. No
Recife, a introdução simultânea dos modelos evolucionistas e social-darwinistas ganhou uma desenho
próprio, na medida em que tentava-se a adaptar o amalgama dessas teorias ao direito na tentativa de entender
e propor soluções para a realidade do país. Como esses intelectuais estavam cada vez mais distantes do
centro das decisões politicas mais significativas, eles acreditavam ao menos representarem a vanguarda
científica do Brasil, o que explica o apego radical às doutrinas deterministas e naturalistas (SCHWARCZ,
1993, p 150).
É nesse contexto, em fins do século XIX, que as “leis naturais” assumem o posto dogmático
incontestável que antes cabia ao pensamento religioso. Os contos e os romances Realistas se revestirão,
portanto, da tintura naturalista “sempre que fizer personagens e enredos submeterem-se ao destino cego das
`leis naturais`”(BOSI, 1984, P.187). É o caso da prosa de Raul Pompeia, Aluísio Azevedo e de Adolfo
Caminha.
418
A especificidade dos estados do norte do país diante da adaptação das ideias cientificas naturalistas
tinha um problema, especialmente as teorias raciais. Diferente dos estados do sul e sudeste que receberam os
imigrantes europeus com ares de salvação, dado que a doxa era que o progresso estava intimamente ligados
às raças brancas superiores e não mestiças, os estados do nordeste não contava com o trunfo do
embraquecimento, daí que as teorias raciais tinham que ser adaptadas à situação. Essa operação coube a
Silvio Romero, um dos intelectuais mais enérgicos e radicais do Recife. Romero rejeita o positivismo francês
e vai buscar em Haeckel, Darwin e Spencer, a construção intelectual que constituía a solução para o
problema da homogeneidade nacional, isto é, a mestiçagem, que, para ele, seria o resultado da luta pela
sobrevivência das espécies, de acordo com as teorias deterministas da época. (SCHWARCZ, 1993, p.154).
Não é nosso objetivo aqui alongar e detalhar as ideias difundidas pelo intelectuais do recife em fins do século
XIX e início do século XX, mas é imprescindível entender a formação dos estudantes daquela instituição
sem entender a influencia de Silvio Romero, que era uma espécie de “pai fundador” do direito enquanto
ciência maior para resolver os problemas da nação.
É, portanto, nesse novo status do direito que se forma José Américo de Almeida, em 1908. Tão logo
conclui o bacharelado, retorna à Paraíba, assume o cargo de promotor na comarca de Souza, sertão
paraibano, e já se filia ao partido de oposição ao governador do Estado, Monsenhor Walfredo Leal, seu tio.533
Em 1911 assume o cargo de procurador do Estado, cargo que ocupa por 11 anos. Faço esse breve relato da
trajetória de José Américo logo após finda sua formação em direito no recife, pois, foi com a experiência e a
vivência adquirida nos cargos públicos que ocupou no pobre estado da Paraíba durante esses anos que o
futuro ministro de viação e obras publicas do governo Vargas se reveste da propriedade de testemunha, além
da já conquistada legitimidade de homem do direito ( portanto, homem da ciência) para escrever não ainda A
bagaceira, mas seu vasto e minucioso ensaio A Paraíba e seus problemas, em 1923, que congrega um
533
O corpo de estudantes da faculdade de direito Recife não era composto apenas pelos filhos das elites pernambucanas,
mas dos estados vizinhos como a Paraíba, Alagoas e Rio Grande do Norte, também de estados mais distantes no norte,
como Piauí, Ceará, Maranhão e mesmo de Estados mais próximos a São Paulo, como minas Gerais e Rio de Janeiro.
Alguns desses estudante, ao terminarem o curso iriam assumir cargos ou exercer a advocacia em outros estados, mas a
maioria desses estudantes retornavam ao seu estado de origem para assumir cargos públicos ou mesmo entrar para a
política. (BEVILAQUA, 1977)
419
conjunto de conhecimentos e informações bem detalhadas sobre a Paraíba, em seu aspecto climático,
geográfico, antropológico, histórico e político, em suma, total, pois era apenas na totalidade que um ensaio
daquele período adquiria o status de excelência.
A Paraíba e seus problemas foi uma espécie de grito (racional, erudito) da Paraíba diante de
federação, tal qual a bagaceira será considerado também um grito, um romance de denuncia. Grito pelo que?
Ora, é obvio, contra o esquecimento com que encarava a federação e os centros econômicos mais
desenvolvidos do país frente ao problema da seca no nordeste, mas, nesse caso do ensaio, está em pauta a
especificidade da Paraíba. Igualmente revestido da legitimidade de testemunha do romancista (que também
estará presente nos romancistas da geração de 1930), o testemunho do ensaísta Américo será o testemunho
de um bacharel em direito, erudito, e, ainda que pertencente à elite decadente, que coloca o Estado e as
inovações técnicas modernas como a saída para o atraso econômico de sua região. O ensaio, publicado em
1923, foi realizado durante o período em que o também paraibano, e também bacharel em direito pela
faculdade de direito do recife, Epitácio Pessoa ocupava o cargo de presidente da Republica, entre 1919 e
1922. Eis o início do prefácio da primeira edição:
O presidente Solon de Lucena achou que o meio mais sensível de expressar ao sr. Epitácio
Pessoa o reconhecimento da Paraíba pelos benefícios outorgados, como solução do problema
das secas, seria perpetuar num livro a história desse esforço redentor (...) A história das secas e
do combate aos seus efeitos não é a mesma para o Ceará, o Rio Grande do Norte e a Paraíba:
cada uma dessas unidades tem sua situação, à parte.( AMÉRICO, 1994, p.25/26)
420
Atento às teorias deterministas e evolucionistas que conhecia bem, Américo enxerga na ação
modernizadora do Estado, a solução para os problemas da seca. É, portanto, essa a acepção do sentido de
modernidade que interessa ao paraibano e é dentro desse arcabouço teórico definido, legitimado pela
qualidade de testemunha e fundamentado no conhecimento sociológico da época que ele elabora o ensaio e,
cinco anos mais tarde, lega ao seu romance de estreia, A bagaceira, a mesma autoridade dos argumentos
científicos e sociológicos que construíra o ensaio, facilmente percebido na voz do narrador.
O sucesso de A bagaceira foi imediato, tão logo lançado, obteve quatro edições no mesmo ano e
logrou do principal crítico da época, Tristão de Athayde, elogios que alçaram o livro ao posto de marco
divisor da literatura brasileira, “Qualquer coisa de definitivo”, afirmara o crítico, dizendo que a literatura
brasileira já não podia viver sem ele e que nele estavam a terra a alma do Nordeste, a síntese entre a natureza
e a cultura. “Ora culto, ora bárbaro, mas sempre em brasileiro, sem transição brusca e artificial entre a
linguagem dos que sabem e a dos que não sabem. Uma língua só e nova, em todas suas gradações” (LIMA,
1930 apud TELES, 1983, p.55).
O romance se passa entre 1898 e 1915, os dois períodos da seca e narra a história dos retirantes
Valentim Pereira, sua filha Soledade e a filha do Pirunga que abandonam a fazenda Bondó, no sertão da
paraíba, e se encaminham para o brejo, região dos engenhos, onde se estabelecem no engenho Marzagão, de
propriedade de Dagoberto Marçau, viúvo, pai de Lúcio, jovem e idealista, advogado.
Tal como no ensaio, legitimado pela ciência do ensaísta, aqui, o narrador é legitimado pelo
testemunho de ter nascido e crescido na região do brejo, na cidade de Areia, e de ter presenciado os retirantes
famintos do sertão em busca de melhores condições no brejo, região mais alta no relevo paraibano, região em
que a altitude corrigia o fatalismo e a deficiência da latitude. A bagaceira é um romance em que se
encontram dois mundos físicos e espirituais, o sertão e o brejo, duas realidades distintas, mas vítimas do
mesmo descaso e mesquinhez, ancoradas no tempo frente aos avanços da sociedade moderna.
Os sertanejos, vítimas maiores por causa da seca, no impasse entre a vida e a morte, fogem do
inferno que outrora era paraíso, e andam sem rumo, guiados pelo instinto de vida que lhes sobrara, o instinto
quase selvagem de apenas sobreviver.
Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar,
porque não sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em
421
descaminhos, no arrastão dos maus fados(...) Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado
nomadismo (...) Mais mortos do que vivos. Vivos, vivíssimos só no olhar. Pupilas do sol da
seca.(...) Fariscavam o cheiro enjoativo do melado que lhes exacerbava os estômagos jejunos.
E, em vez de comerem, eram comidos pela própria fome numa autofagia erosiva (AMERICO,
1997, P.08)
O olhar do narrador não é, no entanto, fruto de imaginação, mas o olhar de quem testemunhou os
repetitivos afluxos de sertanejos nômades nas terras brejeiras paraibanas em que fora criado, o olhar de quem
testemunhara o encontro entre os dois mundos. “Párias da bagaceira, vítimas de uma emperrada organização
do trabalho e de uma dependência que os desumanizava, eram os mais insensíveis ao martírio das
retiradas”(ALMEIDA, 1997, P.08). Seus impulsos de ensaísta ganha espaço em sua narrativa, mas diferente
do romance naturalista, que dava voz às leis naturalistas estrangeiras de forma dogmática e quase que por
obrigação e dever, o narrador de A bagaceira fala com sua própria voz, na autoridade de homem de ciência,
é verdade, mas de um homem que conhecia bem aquela realidade que romanceava, aquele encontro de dois
mundos. “A colisão dos meios pronunciava-se no contato das migrações periódicas. Os sertanejos eram
malvistos nos brejos. E o nome de brejeiro cruelmente pejorativo” (ALMEIDA, 1997, P.08)
José Américo de Almeida jamais negou sua intenção na obra. Ficaria conhecida sua frase, ao se referir
ao romance, expressão artística de quase mentira, quase verdade: “Há muitas formas de se dizer a verdade.
Talvez a mais persuasiva seja a que tem a aparência de mentira”. Já no prefacio deixa claro que é um livro
engajado, uma denuncia, que só tomou a forma de romance para, através da aparência de mentira, tornar a
verdade mais persuasiva. No seu ensaio de 1923, ele dedica numerosas páginas recuperando o debate dos
senadores e deputados paraibanos durante o século XIX, acusa a imprensa e a elite paraibana de ter sido
letárgica, não tornando conhecido o sofrimento da seca na Paraíba, diferente dos políticos e da imprensa do
Ceará, que haviam somado forças para tornar conhecido ao poder central os males que sofria com a seca. “A
história politico administrativa da Paraíba, nas suas relações com os poderes centrais, desde o tempo da
conquista até 1919, é um documento de preterições e de abandono”(ALMEIDA, 1994, p. 225). E ainda, “ O
maior mal, porém, foi a falta de atuação política da Paraíba, de um prestígio que se impusesse nos conselhos
do império como patrono dos nossos reclamos” (ALMEIDA, 1994, p. 265). Acusava os políticos e os
homens que representaram província ao longo da história de desvalidos crônicos. No romance de 1928, as
inúmeras páginas de relatos minuciosos dão lugar à frases que saltam no meio da estrutura narrativa, entre as
roupagens mentirosas da criação ficcional, aparecem as denuncias, “A história das secas era uma história de
passividades” (ALMEIDA, 1997, P.09). Mas é através do jovem e idealista advogado Lúcio, o seu disfarce
dentro de sua criação, que o autor consegue falar livremente.
422
Então, disfarçou-se de Lúcio, o estudante, o único que tinha olhos abertos, naquele mundo de
miséria, e sabia que a técnica e a justiça social poderiam transfigurar-lhe a torva fisionomia.
Por isso, como o autor “Lúcio responsabilizava a fisiografia paraibana por esses choques
rivais” entre brejo e sertão. Como o autor, ele se compadecia da terra, tratada a enxada e
coivara, deformando-se em culturas mesquinhas, quando as máquinas poderiam rasgar-lhe “as
entranhas para as fecundações mais profundas” (...) Era uma denuncia . E só o desmedido
talento do romancista poderia ter conseguido fazê-lo, antes de tudo, um verdadeiro, um grande
romance, que, na época, foi impacto violento na literatura brasileira, ainda engatinhando nos
caminhos do modernismo. (PROENÇA, 1968, p.lxii)
Fica evidente, portanto, a maior preocupação do autor, que seria tornar publico, para todo o país, o
martírio da seca no paraíba, nos dizeres do autor: “Há uma miséria maior do que morrer de fome no deserto:
é não ter o que comer na terra de Canãa”.534 Entretanto, reduzir a obra a um mero caráter de denuncia
panfletária disfarçada de romance não faz sentido, dado a importância que a obra adquiriu e o elogio
arrancado dos críticos literários e dos escritores ligados ao modernismo. Sobre o sucesso da obra entre os
modernistas, apesar do pouco modernismo ( no sentido estilístico mesmo), escreve Wilson Martins:
A Bagaceira (...), apesar do estilo claramente pouco modernista, lançava desde logo os grandes
temas que o romance brasileiro ia explorar na década seguinte: a terra, o regionalismo, a
decadência da sociedade patriarcal, a luta de classes, os problemas sociais e doutrinários. Era um
romance telúrico, sociológico e político – exatamente a fórmula de ficção o Modernismo andava
procurando e que ia se realizar plenamente no chamado “Romance do Nordeste”. (1978, p 434)
Ele lembra ainda que esses temas não eram novidades e que já existiam na literatura da época, mas
como fatos isolados, sem perspectiva e que fora José Américo o responsável por aglutinar esses temas em A
bagaceira, conferindo-lhes um significado novo, isto é, apontando o caminho para o moderno romance
brasileiro. (MARTINS, 1978, p 434). Para Josué Montello, o romance brasileiro após Machado de Assis
ensaia vários caminhos, com Lima Barreto, Afrânio Peixoto, Benjamin Costallat, Theo Filho, mas foi apenas
a partir de A bagaceira que ele se estabeleceu enquanto caminho convergente, em torno de um mesmo
proposito, de denuncia, num amálgama de todos esses temas tratados por José Américo. Para ele, o romance
534
No ensaio de 1923, A Paraíba e seus problemas, José Américo tenta desconstruir a ideia de que, não apenas a
Paraíba, mas também os outros estados que sofriam com a seca, não eram o Saara brasileiro, ou seja, um deserto
impossível de gerar riqueza. Essa falsa ideia, fruto de desconhecimento, impedia um pensamento de ação política fora
da natureza de esmola, daí que seu empenho estava em demonstrar que a terra era boa e que a ação do Estado e da
ciência deveria se a de conhecer os extremos da natureza, principalmente a seca, e domá-la, através das novas técnicas
de açudamento, por exemplo.
423
de 30 seria a “expressão do neorrealismo brasileiro, com uma fisionomia própria, ligada à tradição
romanesca do século XIX, notadamente a que vinha de Aluízio Azevedo. (MONTELLO, 1983, p28,29)
A década de 20, marcada pelas tensões e conspirações políticas e militares que irá culminar na
insurreição de 1930, é marcado também pelas rebeliões estéticas literárias e artísticas, que tem marco na
semana de 22. O que é preciso ter em mente é que a atmosfera de rebelião/inovação/construção artística e
cultural não é exclusivo de São Paulo e do Rio de janeiro, em diversos pontos do país temos movimentos
semelhantes. Lembremos que da faculdade de Direito do recife emanavam redes de relações acadêmicas,
politicas e intelectuais que, ainda que estivessem atentos aos passos dos modernistas do sudeste, tinham sua
autonomia intelectual e suas próprias preocupações políticas e estéticas. Em São Paulo e no Rio de Janeiro,
os centros urbanos mais avançados economicamente do país, o movimento dos artistas e intelectuais ligados
à semana de 1922 assumiam um caráter de rebelião estética em consonância com as vanguardas europeias, o
primeiro fôlego desses artistas era de natureza cosmopolita, era preciso alcançar os passos dos países mais
civilizados, nas suas concepções artísticas. Talvez Mário de Andrade tenha sido uma das poucas vozes
dissonantes dentro daquele grupo, entretanto, sua divergência assumia um caráter nacionalista e sua atuação
crítica, nesse sentido nacionalista, era mais concentrado na música do que na literatura. Lembramos ainda
que as inovações e as rupturas estilísticas propostas pelos modernistas de São Paulo estavam restritos a
poesia, a prosa ainda estava à deriva, esperando uma direção, daí que Tristão de Athayde afirma que A
bagaceira era o romance que o modernismo não conseguira escrever.
Diante do modernismo estilístico dos modernistas de São Paulo, o regionalismo que surgirá como
movimento no romance na década de 1930 é gestado ainda nos anos 1920 no Recife, entre aqueles
intelectuais egressos da faculdade Direito do recife, como Gilberto Freyre, José Lins do Rêgo e José
Américo de Almeida.535
535
Há uma confusão sobre o movimento regionalista do recife, mas precisamente em torno do manifesto Regionalista
de 1926, que fora lido por Gilberto Freyre na década de 1950, em ocasião de comemoração de aniversário do manifesto.
Alguns intelectuais lançaram dúvidas sobre a veracidade da data de elaboração do documento. Sobre isso ver a obra
Modernismo e Regionalismo (os anos 20 em Pernambuco), de Neroaldo Pontes de Azevedo ( AZEVEDO, 1984, p
141)
424
Andrade, mas o Ministério de Viação e Obras Públicas, para prosseguir com as obras de combate a seca que
foram abandonadas durante a década em que escrevera A bagaceira.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS
ALMEIDA José Américo de. A Bagaceira. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997
ALBUQUERQUE, Durval Muniz. A Invenção do Nordeste e outras Artes. 5ªed. São Paulo: Cortez, 2011.
AZEVÊDO, Neroaldo Pontes de. Modernismo e Regionalismo (Os anos 20 em Pernambuco). João Pessoa:
Secretaria de Educação e Cultura, 1984
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira.2ªed. São Paulo: Cultrix, 1984
BEVILAQUA, Clóvis. História da Faculdade de Direito do Recife. 2ªed. Brasília: INL, 977
MARTINS, Wilson. História da Inteligência Brasileira. São Paulo: Cultrix: ed da Universidade de São
Paulo, 1978
MONTELLO, Josué. Revisão do romance Nordestino de 30. In: SEMINÁRIO SOBRE O ROMANCE DE
DO NORDESTE. Fortaleza: Universidade federal do Ceará – Proed, 1983.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças: cientistas, instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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