GUMBRECHT - Atmosfera, Ambiencia Stimmung (Cap. 1) PDF
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GUMBRECHT - Atmosfera, Ambiencia Stimmung (Cap. 1) PDF
artefíssil
H a n s U lrich G umbrecht
Atmosfera,
ambiência,
Stimmung
Sobre um potencial
oculto da literatura
TRADUÇÃO
COBITRAPOnTO
E di to r a
PUC
R IO
© 20 11 , C arl Hanser Ver lag München
Título srcinal: Stimmungen Lesen: über eine verdeckte
Wirklichkeit der Literatur
Editora PUC-Rio
Rua Marquês de S. Vicente, 225
Ca sa Agência/Edit ora - Proj eto Com unicar
Gávea - R io d e Janeir o, RJ - Cep 22453-90 0
Telefax: (21) 3527-1760/1838
Site: www.puc-rio.br/editorapucrio
E-mail: edpucrio@puc-rio.br
Conselho Edit orial : Augusto Sam paio, Cesar Rom ero Jacob, Fernando Sá,
Hilton Augusto Koch, José Ricardo Bergmann, Luiz Alencar Reis da Silva Mello,
Luiz Roberto Cunha, Miguel Pereira e Paulo Fernando Carneiro de Andrade
Ia edição: maio de 20 14
Tiragem: 1.200 exemplares
G9S4a
Gumbrecht, Hans Ulrich, 1948-
Atmo sfera, ambiência, Stimmung : sobre um potencial oculto da literat ura / Hans
Ulrich G um brech t; tradução Ana I sabel Soares - 1. ed. - R io de Janeiro : Contrapon
to : Editora l’UC Rio, 2014
176p. ; 2 lcm
Tradução cie: Stimmungen Lesen: über eine verdeckte Wirklichkeit der Literatur
ISBN 978-85-7866-097-0
ISBN (PUC-Rio) 978-85-8006-132-1
nhum
encararprojeto ou programa
profundas diferençasexplícito),
- quantasdamos
vezes por nós a
aparente
mente inconciliáveis e mutuamente exclusivas - entre os
pressupostos básicos relacionados com a ontologia da li
teratura. (Desnecessário referir que a atual paisagem inte
lectual é bem mais complexa, mas creio que sua estrutura
começa com uma divisão básica.) O que quero dizer com
“ontologia da literatura” é o conjunto de modos funda
go
riu de Derrida,
- como maisdado
se fosse do que nenhum- que
adquirido outro, foi as
todas quem suge
funções
da literatura e dos modos de relacionamento com os textos,
por sere m “ alegorias da l eitura” , demonstram qu e a lingua
gem jamais se refere ao mundo.
Do outro lado estão o s estudos culturais. Pel o menos em
parte, eles compartilham os pressupostos metodológicos
(talvez fosse melhor dizer: ideológicos) do marxismo, que
consideram seu precursor e seu ponto de partida. Ao con
trário do desconstrucionismo, os estudos culturais - tal
como surgiram na Grã-Bretanha e vieram a transformar-se,
na Alemanha, em Kulturwissenscbaften (sem grandes dife
renças) - nunca foram céticos quanto à relação da literatu
ra com realidades extralinguísticas. Quando muito, os pes
quisadores nessa área de estudos fundiram de tal maneira
sua fé na validade da pesquisa quantitativa e empírica e sua
atitude de despreocupação relativa à epistemología, que os
modestos resultados filosóficos desta convergência fazem o
desconstrucionismo, com sua rejeição do referente, parecer
quase sedutor, ao menos em termos filosóficos.
Acredito que o campo dos estudos literários, no qual se
combinam diferentes forças intelectuais, arrisca ficar estag
nado enquanto permanecer empacado entre essas duas po
sições, cujas tensões e contrastes podem anular-se mutua
mente. Para ultrapassar tais perigos - que, em parte, já se
material izaram -, precisa mos de “ tercei ros” . A palavra ale
mã Stimmung
“terceiro” que eu(muito difícil
gostaria de traduzir)
de defender. exemplifica
Por analogia comum
a
noção de “ler para conhecer a intriga”, desenvolvida por
2
Para podermos ter consciência e perceber o valor dos dife
rentes sentidos e das nuances de sentido invocados pelo
Stimmung, será útil pensar nos conjuntos de palavras que
servem para traduzir o termo em algumas línguas. Em in
glês existem mood e climate. Mood refere-se a uma sensa
ção interior, um estado de espírito tão privado que não
pode sequer ser circunscrito com grande precisão. Climate
diz respeito a alguma coisa objetiva que está em volta das
pessoas e sobre elas exerce uma influência física. Só em ale
mão a palavra se reúne, a Stimme e a stimmen. A primeira
significa “voz”; a segunda, “afinar um instrumento musi
cal”; por extensão, stimmen significa também “estar corre
to”. Tal como é sugerido pelo afinar de um instrumento
musical, os estados de espírito e as atmosferas específicas
são experi mentados num continuum, como escalas de mú
sica. Apresentam-se a nós como nuances que desafiam
nosso poder de discernimento e de descrição, bem como o
poder da linguagem para as captar.
Interessa-me muito a componente de sentido que rela
ciona Stimmung com as notas musicais e com escutar os
sons.
vidos Einterno
bem sabido que não
e externo. escutamos
O sentido apenas com
da audição é umaoscom
ou
plexa forma de comportamento que envolve todo o corpo.
A pele, assim como modalidades de percepção baseadas no
muito
Toniconcreto comganhadora
Morrison, nosso ambiente
de umfísico.
Nobel de literatura,
descreveu uma ve z esse fenômeno atr avés do pa rad ox o e xa
to de “ser tocado, como que de dentro”. No caso, interes
sava-lhe, creio, uma experiência comum a todos: que as
atmosferas e os estados de espírito, tal como todos os mais
breves e leves encontros entre nossos corpos e seu entorno
material, afetam também as nossas mentes; porém, não
conseguimos explicar a causalidade (nem, cotidianamente,
controlar os seus resultados). Não quero afirmar que com
preendo a dinâmica que aqui está em causa, nem que con
sigo fazer dela uma imagem completa. Ainda assim, a cir
cunstância não é motivo para não se chamar atenção para
o fenômeno e descrever as suas variantes.
4
Numa nota à margem, alguns dos meus bons amigos fize
ram-me ver - e revelo-o aqui para não deixar nada de fora
- que devo apontar a relação entre minha defesa do Stim-
mung e o objetivo mais amplo, mais ou menos filosófico,
de tornar os efeitos de “presença” um objeto de pesquisa
nas humanidades. Na relação que mantemos com as coisas-
-no-mundo (e isso é uma consequência do processo de mo-
Contra
luta, o pano considerar
podemos de fundo histórico da modernização
que “a experiência estética”abso
con
siste numa muito carregada simultaneidade de efeitos de
sentido e efeitos de presença (por oposição à experiência
cotidiana, que apenas registra os primeiros). Pode dar-se o
caso de agora prestarmos mais atenção às atmosferas, aos
climas e à dimensão da presença em geral do que se presta
va há cinquenta, duzentos ou quinhentos anos. Escusa di
5
Numa brilhante contribuição para o dicionário Ästhetische
Grundbegriffe, David Wellbery recentemente reconstruiu -
pela primeira vez - a história do Stimmung e explorou as
várias camadas históricas e semânticas do termo. Gostaria
de revisitar alguns pontos-chave desse artigo, principal
mente porque ilustram o modo como a abertura às atmos
feras e aos climas pode engrandecer nossa experiência da
literatura, mas também porque seus métodos de pesquisa
nos incitam a refletir sobre a forma específica da historici
dade própria ao Stimmung. Wellbery começa por e xamin ar
o ensaio “Falconet”, de Goethe, publicado em 1776; esse
texto põe em discussão a sensação de unidade e harmonia
que tudo abarca, frequentemente vivenciada em contextos
absolutamente triviais (por exemplo, na loja do sapateiro).
Os artistas, observou Goethe, procuram dar forma objetiva
- num texto, por exemplo - às coisas intangíveis que en
contram.
StimmungPouco
viria tempo depois daum
a desempenhar publicação do ensaio, ono
papel determinante
início do discurso da estética filosófica, que começava a
surgir naquela altura; esse fato sugere que a homogeneida
de das situações e das experiências tinha se transformado
num tema para a sociedade contemporânea, que rapida
mente se via sujeita à diferenciação interna. Na Crítica do
juízo - em que a metáfora de referência é a afinação de um
instrumento musical -, Kant afirmava que “um Stimmung
equilibrado” é condição necessária às faculdades emocio
nais e racionais da compreensão humana quando se combi
nam em juízos de gosto. A interseção de sentimento e razão
-postulava
da Grécia antiga.
uma Setenta
conexão e cincoem
semelhante anos depois, mas
estrutura, Nietzsche
mui
to mais especulativa. Para Nietzsche, a palavra Stimmung
designava as memórias e intuições das fases primordiais da
existência humana. Essas maneiras de empregar o conceito
de Stimmung produziram um novo sentido, cuja complexi
dade ia muito além das tarefas de mediar entre posições
opostas (inclusive as radicalmente contraditórias) e de forjar
unidade e harmonia. Agora, Stimmung passava a significar
uma existência completa, unificada - um estado impossível
de atingir na idade moderna. A p artir d essas reflexões, Alois
Riegl estava convencido de que o Stimmung teria boa fortu
na no século XX como “princípio de nostalgia”. Duas cor
grante
bientes da condição variados
e atmosferas existencial de constante
- e em “estar-lançado”. Am
mutação -,
escreve Heidegger, condicionam nosso comportamento e
nossas sensações na existência do dia a dia; não somos li
vres para os escolher. E certo que esse aspecto da obra de
Heidegger - seu entendimento da noção de Stimmung -
não foi muito difundido. Mais importante para a sua re
cepção, no século XX, foi um uso do conceito que, de
modo paradoxal, confirmou a anterior previsão de Riegl
sobre o futuro. Essa confirmação era paradoxal porque a
carga de sentido que Riegl atribuíra a Stimmung demons
trava, por um lado, com o essa sua defini ção ti nha se torn a
do um ponto de referência na filosofia da história; por ou
tro lado, fez que surgissem influentes vozes que negavam
sua aplicabilidade no presente.
Era desse modo que Leo Spitzer (judeu nascido em Vie
na e filólogo das línguas românicas) concluía o seu Ideias
clássicas e cristãs sobre a harmonia do mundo - Prolegó
menos para uma interpretação da palavra “ Stimmung ”
(publicado em duas partes, em 1944 e 1945, depois de o
autor ter emigrado para os Estados Unidos): com a afirma
6
Desde que Stimmung deixou de implicar qualquer form a de
reconciliação ou de harmonia - inflexão totalmente incom
patível com seu sentido srcinal -, ou seja, desde que a au
sência de Stimmung no sentido clássico passou a valer
como uma das formas de Stimmung , o conceito ficou dis
ponível para uso universal. Hoje não existe situação sem
sua atmosfera própria, sem seu ambiente “próprio”, o que
significa que é possível procurarmos o Stimmung caracte
rístico de cada situação, obra ou texto. Por isso, o livro que
o leitor agora tem em mãos não se limita a contextos histó
ricos em que o desejo de mediação e de harmonia ocupe
lugar central. Na verdade, acontece o contrário: o Stim
mung é explorado como categoria universal. Não há cultu
ra nem época que não admita a questão universal das at
mosferas e dos ambientes específicos.
éacompanhar a suaconh
o exemplo mais apreciação. mas aDecameron,
ecido; O de Boccaccio,
obra de Maria de Za yas
(de que falarei adiante) é também exemplar. Niklas Luh-
mann chamou tais instruções de “comunicação compacta”.
Com isso, ele queria dizer que, à medida que a literatura se
autonomizava e se tornava independente dos contextos e
dos lugares específicos da sua performance, os autores iam
definindo enquadramentos de comunicação (eu acrescenta
ria: enquadramentos de atmosfera) para sua recitação e
para sua recepção. Talvez a maior atenção e consciência do
Stimmung tenha se desenvolvido a partir da experiência de
isolamento que condicionou a emergência das modernas
forma s de subjetivida de. O R omantism o é a segunda - e
talvez a mais exemplar - época de atmosfera e ambiente.
Stimmungen que exprimiam nostalgia ou revolta opunham-
-se à monotonia da vida na sociedade “burguesa”.
Vejo o final do século XIX como o terceiro momento
em que o Stimmung ganhou forma condensada e intensi
ficada, quando se tomaram populares a pintura histórica
e a arquitetura historicizante. Foi também quando Riegl
declarou que a atmosfera e o ambiente se desenvolveriam
análise desse
continuam aspectonado
a surgir, fenômeno
medida em queforam
ainda surgindo - e- da
persist em
crença de que o Stimmung só está acessível a partir da
experiência rara e subjetiva. Aliás, esse tipo de objeção
pode mesmo ser formulado contra este livro. Hegel já le
vantara questões sobre a falta de objetividade:
A principal tendência da [...] filosofia superficial é
fundamentar a ciência não no desenvolvimento do
pensamento e do conceito, mas na percepção imediata
e na imaginação contingente; e, do mesmo modo, re
duzir a complexa articulação interna do ético [...] à
arquitetônica da sua racionalidade - que, através de
7
A tese deste livro - e o desafio que nele se apresenta - é a de
que concentrar-se nas atmosferas e nos ambientes permite
aos estudos literários reclamar a vitalidade e a proximidade
estética que, em grande parte, desapareceram. Essa atitude
só será eficaz se tivermos em conta obras determinantes,
como as de Hegel, que ao mesmo tempo nos alertam e nos
motivam. N ão se trata de procurar possibilidades de exi stên
cia há muito desaparecidas, para as quais uma vez ou outra
pudé ssem os querer escapar. (Essa orientaç ão logo seria - ine
vitavelmente - suspeita de i ncentivar os maus hábitos da ilu
são e da compensação.) Em vez disso, o objetivo é seguir as
configurações da atmosfera e do ambiente, de modo a en
contrar, em formas intensas e íntimas, a alteridade.
O ponto de partida e o catalisador da experiência da al
teridade histórica e cultural residem, contra a polêmica de
Hegel, no campo mais fenomenal e objetivo dos textos li
terários: na sua forma prosódica e poética. Sem saber com
rigor do que se tratava, ou de quais “sentimentos” estavam
ali envolvidos, podemos ter certeza de que os dramaturgos,
os atores ecom
obcecados os espectadores da Parisgrave,
o verso fortemente do século XVII
pesado de estavam
páthos,
com a forma que chamavam de “verso alexandrino”. Num
sentido literal, ele fazia parte da realidade material da cidade
naquele tempo. Em vez de revelar o sentido ou os objetos
-Uma tendência
espec ialmenterecente nos estudos
as canônicas - comliterários
o se elas séeler as obras
propusessem
enquanto alegorias de argumentos ou agendas filosóficos.
(É evidente que, aqui, não se trata de, uma vez ou outra,
recorrer a conceitos ou argumentos filosóficos para ler lite
ratura.) Tal abord agem parec e procura r libertar o conteúdo
ideacional das entediantes complexidades da forma. Mes
mo no melhor dos casos, esse modo interpretativo é inca
paz de responder à questão sobre o motivo de os escritores
decidirem tão enfaticamente usar formas literárias compli
cadas, complexas, para sugerir afirmações filosóficas. En
contro aqui a confirmação da minha crença de que uma
função mais importante dos textos literários é o potencial
Ainda assim,
caminharmos é importante
para retomar a da
além da objetividade questão:
forma,depois de
ao ten
tar encontrar a atmosfera e o ambiente, como podemos evi
tar nos afogar n a “ tolice do cora ção ” ? N ão há respost a
definitiva a essa pergunta, nem um modo de garantir imu
-estudos
e, com tem
certeza, pelo poucopela
demonstrado interesse que nosso
questão campo
duvido de
do poder
das “teorias” para explicar atmosferas e ambientes, e olho
com suspeição para a vi abili dade de “ mé todo s” que os iden
tifiquem. Aliás, meu ceticismo quanto aos métodos é mais
forte ainda, pois acredito que os pesquisadores na área das
“ciências humanas” devem confiar mais no potencial do
pensamento contraintuitivo do que em uma “trilha” ou um
“caminho” preestabelecido (ou seja, o sentido etimológico
de método). O pensamento contraintuitivo não receia des
viar-se das normas da racionalidade e da lógica que regulam
o cotidiano. (E isso por boas r azões!) Antes, o seu movi men
to se inicia por “ palpites” . Muitas vez es percebemos um po
10
ra em tempo,
o seu que escrevia, Wellbery
mas admitia que descartava
poderia viraapossibilidade para
se concretizar:
Poderíamos supor que o desaparecimento do Stimmung
dos vocabulários de estética tenha algo a ver com o fato