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HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE

O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO

Daniela de Freitas MARQUES*


Ana Célia Passos PEREIRA CAMPOS**

RESUMO
Trata-se da história de amor entre Heloísa e Abelardo,
perseguidos por amor não plenamente realizado – a história dos
grandes amores é a história dos amores infelizes: o amor profundo é
a não possibilidade de plena vivência do amor. Eles foram vitimados
pela emasculação criminosa causada a Abelardo e pelo sofrimento de
vidas separadamente vividas. Abelardo, perseguido como herege, na
voz troante de Bernardo de Claraval, condenado pela Igreja, é a versão
da vítima tornada acusada. A história dos dois amantes é a história dos
preconceitos que erigem as normas e perfazem os costumes. Direito e
sociedade são imenso precipício cavado de lágrimas, porque neles não
há prazer e não há espírito. Eles não têm o mais fácil – eles não amam:
São Bernardo, São Bernardo, São Bernardo: o grito não é ouvido mais
pelos dois amantes - feitos de luzes claras, em leito luminoso, rosa
florescente, cujo nascedouro não é a terra.
PALAVRAS-CHAVE: Amor. Heresia. Direito Penal. Filosofia.

SUMÁRIO: 1. As folhas mortas do tempo. 2. Os dois


amantes. 3. Abelardo, emasculado e culpado. 4. Heloísa,
o canto de Cornélia no Medievo e a enunciação de Júlia
no Iluminismo. Referências.

*
Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG. Juíza de Direito do
juízo militar da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais.
E-mail: marfreida@hotmail.com
**
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG.
E-mail: anaceu2000@yahoo.com.br

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HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO

“muito bonita de rosto, sem rival pela


extensão de sua cultura literária”(Abelardo)

1. As folhas do tempo desdobraram-se nos suaves tons de


muitos outonos e nos prenúncios frios de futuros invernos sem amores.
Século XII1 - Nem a vocação e nem o amor de Heloísa eram
dedicados a Deus, mas dedicados a Abelardo - unicamente a Abelardo.
O amor malogrado levou-a a dizer “repleta de lágrimas e soluços
na voz: ‘Só nos resta, portanto, perder-nos um e outro e sofrer tanto
quanto amamos’”.2

1
“A cidade é Paris. O ano, cerca de 1118. Uma escola foi estabelecida na catedral
dos francos na ilha no Sena. Há talvez cinco mil estudantes em Paris, centrados
aqui. Combinando capacidades de lógica, debates, matemática, filosofia e
o estudo da Escritura, os eruditos de Paris estão, com efeito, inventando a
universidade moderna. Seu monumento é a catedral que está sendo erguida, a
obra-prima de Notre-Dame.
2
Preeminente nesta comunidade de gênios é Pedro Abelardo, conhecido em toda
a Europa como professor carismático. É ‘um homem belo e simpático, esbelto
e não muito alto’.
(...)
‘Assim como o portal oeste de Chartres é a porta através da qual se precisa
entrar na arquitetura gótica do século XIII’ - essa é a avaliação do historiador
norte-americano Henry Adams – ‘do mesmo modo Abelardo é o portal de
aproximação ao pensamento e filosofia gótica dentro de Chartres. Nem a arte
nem o pensamento têm um equivalente moderno: só Heloísa, como Isolda, une
as épocas. Heloísa é uma jovem brilhante que, aos dezoito anos, tem menos
da metade da idade de Abelardo. É sobrinha de Fulberto, o poderoso cônego
de Notre Dame. O fato de que o grande Abelardo a fosse tomar como aluna
testemunha a preeminência do tio dela, mas também os dons de Heloísa. ‘Era
uma dama de aparência incomum’, nos diz Abelardo, ‘ e em excelência literária
era a primeira’.
Ser professor na posição de Abelardo era ser um clérigo, embora não
necessariamente um sacerdote com os votos da ordenação. Ainda assim, é uma
grave violação quando Abelardo e Heloísa passam a se amar apaixonadamente.
‘Sob o pretexto do trabalho, nos tornamos inteiramente livres para o amor e
o prosseguimento dos estudos dela proporcionou a privacidade secreta que
o amor desejava... Havia mais beijos do que ensinamentos; minhas mãos
estavam sobre seus seios mais vezes do que pegando os livros... E quanto mais
essas delícias eram novas para nós, mais ardentemente as praticávamos.’” Cf.
CARREL, James. A Espada de Constantino. A Igreja Católica e os Judeus. São

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Daniela de Freitas Marques e Ana Célia Passos Pereira Campos

Em Paris, no cemitério Père-Lachaise, os dois amantes foram


sepultados. Negada a vida em comum, não lhes foi negado o abraço
da morte eterna.3 De Heloísa, de seus restos mortais enleados aos
restos mortais de Abelardo - seu amante, marido e mestre - ecoam as
palavras: “(...) Eu sou do meu amado, e seu desejo volta-se para mim.”4
Heloísa é o desejo pulsante. Os tradicionais e antigos
ensinamentos de São Jerônimo sobre a mulher assombravam as
consciências e avassalavam os espíritos: “A morte veio-nos por Eva; a
vida, por Maria”5. Tomás de Aquino, em tempos futuros, não pensaria
diferente – negava às mulheres a existência da pulsão sexual: “(...)
não se pode pedir a Tomás que seja Heloísa.”6
Em 1930, “(...) um tribunal dos Estados Unidos proibiu
a circulação das Cartas de amor a Heloísa, de Abelardo, porque
defendia os sentimentos, sempre temidos, e promovia uma respeitável
introdução ao sexo entre intelectuais.”7
Heloísa é a leitora ávida, conhecedora das Escrituras e
do Latim. A tradicional ignorância reservada às mulheres, não lha
alcançou. A sua perfeição de rosto e de forma – se estiveram presentes
ao espírito de Abelardo – eram preteridas à sua inteligência, à sua
erudição e à sua notável coragem.8 Insubordina-se ante a hegemonia

Paulo: Manole, 2001. p. 306/307.


Ibidem. p. 67.
3
A idéia também está presente em Rubem Alves. Cf. ALVES, Rubem. Sobre o
tempo e a eternidade. 13ed. Campinas: Papirus,1995. p. 127.
4
Cântico dos Cânticos, 7,11. Cf. STADELMANN, L.I. Cântico dos cânticos. 2.ed.
São Paulo: Loyola, 1998. p. 187.
5
Citação de memória.
6
ECO, Umberto. Ensaios sobre a literatura. Rio de Janeiro: Record, 2003. p.251.
7
BAEZ, Fernando. História Universal da Destruição de Livros: das tábuas sumérias
à Guerra do Iraque. Tradução de Léo Schlafman. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006.
p. 131.
8
“Sobre a vida de Heloísa e a sua condição de estudiosa de letras e filosofia,
algumas informações foram dadas por Pedro, o Venerável, abade do monastério
de Cluny, onde Abelardo se refugiou antes de morrer. O abade assim escreveu:
Eu era adolescente ainda na flor da idade quando o teu nome já era famoso,
não pela vida religiosa que em seguida escolhestes, mas por teus admiráveis
e profundos estudos. Vim a saber que uma mulher se dedicava com todas as

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da castidade e da ignorância e ante a submissão contínua da mulher


ao homem.9 Prefere a situação de amante à de esposa, porque deteria
a glória de Abelardo. A humildade não é atributo dos amantes. Agiram
em nome próprio e não em nome de Deus. Pecado e hybris estiveram
presentes na decisão. Heloísa é profundamente humana.
Abelardo é professor. O grande amor e desejo por Heloísa
marcarão seu pensamento e sua filosofia:10 tão indissociáveis a
vida do espírito e a vida do corpo. A culpa pelo desejo também
assombrará os seus dias. Tocado pela vaidade ou “por um ligeiro ar
de exibicionismo”11, serão considerados herege o seu pensamento e,

forças ao estudo das letras e à busca da sabedoria, fato raríssimo, e não se


deixava distrair pelos prazeres e alegrias do mundo... tu, com o teu amor pela
ciência, superou não apenas todas as mulheres, mas também a maior parte
dos homens (PIETRO, o Venerável, apud. ABELARDO, 1997, p. 18).”
Cf. SCHLESENER, Ana Paula. Abelardo e Heloísa: considerações sobre a situação
da mulher na Idade Média. Disponível em: http://www.unicentro.br/editora/
revistas/analecta/v4n1/artigo%206%20abelardo%20e%20heloisa.pdf. Data de
acesso em: 25 de setembro de 2010.
9
“(...) a subordinação da mulher possui uma raiz espiritual, mas também corporal.
‘A mulher é fraca’, observa Hildegarde de Bingen no século XII, ‘ela vê no homem
aquilo que pode lhe dar força, assim como a lua recebe sua força do sol. Razão
pela qual ela é submetida ao homem e deve sempre estar pronta para servi-lo’.
Segunda e secundária, a mulher não é nem o equilíbrio nem a completude do
homem. Em um mundo de ordem e de homens necessariamente hierarquizado,
‘o homem está em cima, a mulher embaixo’, escreve Christiane Klapisch-Zuber.
O corpus da interpretação dos textos bíblicos dos Padres da Igreja dos séculos IV e
V (como Ambrósio, Jerônimo, João Crisóstomo e Agostinho) é incansavelmente
retomado e repetido na Idade Média. Assim, a primeira versão da Criação
presente na Bíblia é esquecida em proveito da segunda, mais desfavorável à
mulher.” Cf. LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo
na Idade Média. Tradução Marcos Flamínio Peres. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2006. p.52/53.
10
Não se reputa inteiramente correta a afirmação – “Há, por certo, o ‘Abelardo sem
Heloísa’, filósofo e teólogo”. Cf. ESTÊVÃO, José C. Sobre Heloísa e Abelardo e
sua fortuna crítica. In: GILSON, Étienne. Heloísa e Abelardo. Tradução Henrique
Ré. São Paulo: Edusp, 2007. p. 11.
Há um Abelardo antes do encontro com Heloísa, como há uma Heloísa antes
do encontro com Abelardo – mas o encontro de ambos tornou-os Abelardo e
Heloísa e Heloísa e Abelardo.
11
CHESTERTON, G.K. São Francisco de Assis e São Tomás de Aquino. Tradução
Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. Rio de Janeiro: Sinergia:
Ediouro, 2009. p. 266.

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o implacável Bernardo de Claraval o perseguirá tanto pela diferença


de idéias, quanto pelo amor à Heloísa: “ (...) Bernardo era inclemente
na defesa da castidade do amor e na aversão a qualquer imiscuição do
prazer físico na relação amorosa. Como Orígenes, dera o exemplo de
seu próprio sacrifício. Havendo, quando moço sentido uma ereção ao
contemplar com emoção uma jovem, mergulhou num poço de água
gelada para livrar-se do incômodo e dos maus pensamentos que com
ele surgiram, tomando, nessa hora, a decisão de tornar-se monge.
Em sua biografia, notam-se episódios que revelam nesse inspirado
pregador do amor os extremos de dureza aos quais sua ascese podia
conduzir. Para Marvin Pope, o encarniçamento de Bernardo com
relação a Abelardo teria sido motivado tanto por suas desavenças
teológicas com o filósofo a respeito da teoria agostiniana do pecado
original quanto por seu repúdio à aventura amorosa do preceptor de
Heloísa. E Pope reproduz de Bernardo trecho da carta por ele dirigida
ao papa Inocêncio III na qual equipara Abelardo ‘à raposa que destrói
a vinha do Senhor’. Henry Adams cita, do Venerável Peter, abade de
Cluny, que abrigou Abelardo contra a fúria dos seus acusadores no
Vaticano até o fim dos seus dias, a cruel reprovação que faz de São
Bernardo ao escrever-lhe: ‘Vós cumpris todos os mais difíceis deveres
religiosos; vós jejuais, vós vigiais, vós sofreis, mas vós não suportais
os fáceis – vós não amais’.”12
Não é possível amar Bernardo de Claraval, porque nele só
havia rigidez e disciplina, deveres e obrigações, admoestações e
punições. Mas o espírito inclina-se a Abelardo, porque humano,
orgulhoso e profundamente sofrido e, também a Pedro, o Venerável - o
Abade de Cluny, que, ao abrigar e ao acolher Abelardo, possibilitou-
lhe a morte tranqüila e o conforto do enterro cristão.
Abelardo nomeia os goliardos.13 Bernardo de Claraval o
comparara a Golias, o inimigo da fé. Os goliardos foram o extremo
12
CAVALCANTI, Geraldo Holanda. O Cântico dos Cânticos. Um ensaio de
interpretação através de suas traduções. São Paulo: Edusp, 2005. p.55.
Registre-se pequeno equívoco na transcrição – o Papa era Inocêncio II e não
Inocêncio III.
13
A origem do nome goliardos é duvidosa. “O goliardo diz a mesma coisa que
os alegres foliões do Carnaval; se seu riso se revela subversivo, é porque ele

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da liberdade e os marginais da sociedade dos séculos XII e XIII: a


“(...) origem deste nome ainda não está estabelecida. Já foi atribuída
ao fato de eles beberem como gigantes e “costumarem referir-se a si
mesmos como discípulos de Golias”. Alguns identificam os goliardos
com gens goliae, o gigante filisteu do Livro de Samuel, símbolo
do demônio. Alguns com Pedro Abelardo (1079-1142), chamado,
nos processos que lhe moveu a Igreja, de Golias, inimigo da fé. Os
goliardos foram tratados como vagabundos, lascivos, bufões, tachados
de boêmios, falsos estudantes, às vezes vistos com ternura, é preciso
viver a juventude, outras vezes com temor e desprezo: arruaceiros,
transgressores da ordem, não eram eles gente perigosa? Outros, ao
contrário, viam neles uma espécie de intelligentsia urbana, um grupo
revolucionário, aberto a todas as formas de oposição declarada ao
feudalismo.
O certo é que a revigoração dos estudos clássicos, ao final da
Idade Média, nas escolas das catedrais e nas primeiras universidades foi
seguida pela produção de excelentes poesias latinas. Aos professores
e estudantes universitários que viviam em viagens contínuas entre
as universidades de Bologna, Paris e Oxford juntavam-se os clerici
vagi, padres sem prebenda, e, nessa vida livre, muitos se perdiam
pelas estradas ou na anarquia das grandes cidades. Dos encontros nos
caminhos surgem os goliardos, e entre estes seres errantes nasceu uma

se encarna num gênero de vida que propõe uma verdadeira alternativa. O


goliardo, vagabundo semidelinqüente, pretende reativar e personificar a idéia
do Cristo-palhaço, do saltimbanco de Deus, que ri de tudo porque o verdadeiro
sagrado está além do sensível, fora do alcance dos gracejos humanos. Maurice
Lever escreve a propósito do goliardo: ‘O palhaço recusa-se a viver na realidade
presente. Ele pressente aí uma outra. Desafia a lei da seriedade, enche o policial
de sarcasmo, ridiculariza os outros atores. Por seu intermédio, nós entrevemos
outro mundo que invade este e inverte as regras e os usos.’ É exatamente isso
que o torna insuportável. O riso do goliardo é o único riso subversivo da Idade
Média clássica, porque não se contenta em zombar: ele vive de maneira diferente
e sugere, com isso, que é possível existir outro sistema de valores. O riso da festa
dos bobos ou do Carnaval mostra a loucura de um mundo às avessas; o riso do
goliardo mostra a loucura do mundo do lado direito. E isso não é mais jogo.”
Cf. MINOIS, Georges. História do riso e do escárnio. Tradução Maria Helena O.
Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora Unesp, 2003. p. 187/188.

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lírica rimada e cantada, cujos versos mordazes e satíricos celebram


as belezas naturais, a vida nas viagens, os prazeres da bebida e do
jogo, as alegrias do amor, o gozo da liberdade. O caráter errante, on
the road, destes cancionistas facilitou a difusão de sua poesia. Quase
todos permaneceram anônimos. Em 1230, poemas e canções dos
goliardos foram reunidas e copiadas na abadia beneditina de Beuern,
na Baviera, mas o manuscrito permaneceu oculto, devido a seu caráter
licencioso e contestatório, só vindo a público no século XIX, com o
nome de “Carmina Burana” (Canções de Beuern), o registro mais
expressivo da poesia goliárdica.
Segundo Marcuse, os goliardos foram os primeiros artistas
autoconscientes, cuja errância e oposição à sociedade eram modeladas
e enfrentadas como necessidade artística (KR, p. 13). A dignidade
destas vidas é o espírito livre, a negação da ortodoxia religiosa e
ideológica.”14
Todo poema é irrisão social e dotado de profundidade racional.
A vida dos goliardos, marcada pela rebeldia, era sentida na transito-
riedade da vida, dos prazeres e das dores humanos: a sorte mutável
como a lua, a roda da fortuna no giro sem fim, os prazeres do sol e da
primavera, os vícios e as virtudes da vida e as amarguras do coração,
os jogos, as bebidas e os amores - quod per sortem/ sternit fortem,/
mecum omnes plangite!15 Porque a vida toda é choro, como o Direito
também o é. Direito e Política na roda caprichosa da fortuna, faz a
todos chorar clamorosamente ou, no recôndito das almas, com o falso
sorriso nos lábios. O Direito é cantata retórica.

14
KANGUSSU, Imaculada. Sobre a alteridade do artista em relação ao mundo
que o cerca, segundo Herbert Marcuse. Kriterion,  Belo Horizonte,  v. 46,  n.
112, Dec.  2005 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0100-512X2005000200017&lng=en&nrm=iso>. access on 
26  Sept.  2010.  doi: 10.1590/S0100-512X2005000200017.
15
Fragmentos de Carmina Burana.

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La Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l’ Hortus Deliciarum  de Herrade
de Landsberg. Paris: Bibliothèque Nationale de France (Dept Estampes Ad 144
a) apud COSTA, Ricardo da; ZIERER, Adriana. Boécio e Ramon Llull: a Roda da
Fortuna, princípio e fim dos homens. Disponível em: www. http://www.ricardocosta.
com/pub/boecioellull.htm. Data de acesso em: 06 de jan de 2011.
De forma profunda, esclarecem os autores:
“A imagem acima contém os quatro estágios simbolizados pelos quatro
personagens em torno da Roda:
1) regnabo (eu devo reinar: figura em cima, do lado esquerdo da Roda, com o
braço direito erguido)
2) regno (eu reino: figura em cima da Roda, freqüentemente coroada, para
significar o reinado)
3) reganvi (eu reinei: figura que está do lado direito da roda, caindo da  graça)
4) sum sine regno (eu não tenho reino: figura na base da roda que perdeu
completamente os favores da Fortuna. Esta pessoa é as vezes completamente
jogada da Roda ou esmagada por esta, sem nenhuma chance de reinar de novo)
(STRAYER: 1983, p.145-147).

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2. A história dos dois amantes representa o enaltecimento


do espírito goliardo. Liberdade, negação de ortodoxia religiosa e
ideológica, celebração da carne e dos prazeres, profundo e com-
pleto diálogo entre duas inteligências, iguais por afinidade e por
sentimento.

Vista pelos antigos como deusa do acaso, a Roda da Fortuna na Idade Média
representava tanto a Roda da Vida, que elevava o homem até o alto antes
de deixá-lo cair de novo, como a Roda do Acaso, que não parava nunca de
rodar e indicava a mudança perpétua que caracteriza a natureza humana
(BIEDERMANN: 1996, p. 591).
Num mundo inseguro como o da Idade Média, onde os homens viviam em
constante perigo, com medo dos vivos e dos mortos, acreditava-se que o destino
dos homens, mesmo o dos reis e imperadores, era determinado pela Fortuna.
Além disso, o ressurgimento da imagem da Roda a partir do século XII também
se explica pelas condições materiais de então: a figura das três ordens já não
refletia a realidade. O dinheiro voltou a ser o nervo do poder, penetrando em
todas as relações de sociedade, “...se infiltrando em relações até então baseadas
na gratuidade, na amizade, na dedicação e na devoção” (DUBY, 1992, p. 162).
Provocou desestabilização, esperança de cada um “ganhar” (palavra que se
disseminou ao longo do século XII).  A vida transformou-se em aventura, em
possibilidades. Em suma, enriquecer passou a ser considerado (DUBY, 1992,
p. 163-164).
O termo Roda da Fortuna parece ser uma evolução de duas diferentes deusas
antigas, provindas da cultura greco-romana, Fors (“a que traz”, relacionada
ao conceito de providência) e Fortuna (ligada à fertilidade, à agricultura e às
mulheres). Esta última tinha traços similares à Tyche, deusa grega associada ao
acaso e à sorte.
Em algum momento, a distinção entre Fors e Fortuna diminuiu com a criação
de uma única deusa, Fors (Fortuna), herdando as noções de sorte, destino e
acaso de suas predecessoras.
Existiam pelo menos três templos dedicados à deusa Fors em Roma e um
festival lhe era dedicado em 24 de junho (“Fortuna”). Ela era apresentada
freqüentemente segurando uma cornucópia e um timão, sobre uma esfera ou uma
roda, e simbolizava seu poder sobre a vida das pessoas que consideravam possuir
fortuna se tivessem sorte ou infortúnio (BIEDERMANN: 1996, p. 275-276).
O melhor exemplo desta representação na Idade Média se encontra justamente
no período de vida de Ramon Llull (1232-1316), na coleção de canções
germânicas profanas denominada Carmina Burana, uma coletânea de obras
anônimas datada de 1300 e provenientes da abadia bávara de Benedictbeuern.
Trata-se de uma estimulante exaltação à natureza em forma de fortes tons
primários, que possui uma canção a respeito da Fortuna.”Ibidem.

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Etienne Gilson, em sua obra belíssima, traduz o encanto, a


suavidade e luxúria dos dois amantes. Seriam também os dois amantes
tristes sombras, como Paolo e Francesca?17 Não se lhes pode atribuir
tristeza, embora houvesse muito para causar sofrimento e separação,
dor e infelicidade.
Abelardo via-se como culpado, considerava-se responsável
pela emasculação – daí a sua ética, porque ele violou as regras de
hospitalidade e de educação, seduzindo a sua própria pupila.
Abelardo se achava merecedor? Considerou a emasculação
como algo “divino”, como a “justa punição”? Há registros do remorso
de Fulbert? As perguntas perdem-se no vazio e, nos tempos de hoje,
onde todos são vítimas ou perseguidos, onde ninguém é merecedor de
pena ou ninguém é vítima de sua própria consciência perseguidora.,
parece ingênuo fazê-las.
Abelardo aceitou as conseqüências da infração ao rígido có-
digo de conduta – pois acaso não violara as leis da hospitalidade e,
incendiado de paixão, seduzira ou fora seduzido por Heloísa? Hoje,
não há quem aceite as conseqüências da infração aos códigos de con-
duta ou às próprias leis da humanidade. Todos são inocentes. E, em
mundo algum ou em era alguma, houve inocentes. Todos atribuem
a si próprios a inocência pelas leis dos homens, reconhecendo a sua
culpa pelas leis de Deus. Prefere-se a justiça humana à divina. Vive-se
a subversão do mundo de Abelardo.
O goliardo representa o homem à margem das normas e
da sociedade: seu espírito parece alegre, mas faz-se-lhe presente
a íntima angústia e a perene voz da consciência. Abelardo via-se
como pecador – mas atribuindo-se a falha de toda a condição hu-
mana – pôde ser compassivo e misericordioso. A sua filosofia é a
da alteridade – herege declarado – também os seus escritos foram
postos à margem. Por que tudo o que é bom, compassivo e miseri-
cordioso não ocupa o centro do discurso religioso ou jurídico? Por
que nunca houve bem o suficiente no mundo para compreender-se
o amor, a paixão, a sedução e o sexo?

17
Lembrados por Dante Alighieri, na Divina Comédia.

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Daniela de Freitas Marques e Ana Célia Passos Pereira Campos

A pretendida liberdade sexual e amorosa são quimeras em


todas as épocas – o sexo e o amor são frutos de intensa normatividade.
Nas permissões e nas proibições do sexo e do amor, compreendem-
se as pessoas e as sociedades de todas as épocas – são as maçãs de
Sodoma: diz a lenda que são belíssimos frutos, os quais pegos pelos
viajantes famintos, convertem-se em pó,18 significando que naquela
terra maldita e material: tudo o que é viçoso é podre e tudo é pecado
e perdição.
Não se pode acreditar num Deus punitivo – embora Ele tenha
destruído Sodoma e Gomorra por seus pecados da carne – ele há de
ter tido compaixão. Quiçá a mulher de Lot não esteja mais convertida
em pedra, esquecida nas areias do tempo, mas tenha sido levada ao
coração de Deus – como todos os pecadores sempre encontraram
guarida em Seu Seio. A pessoa humana deve ser como a mulher de
Lot – deve olhar para o passado, guardar as memórias e as lembranças
dos acontecimentos:
“O que significa a história de Sodoma? Vitória ou derrota?
Ou ambas, talvez? Basicamente, Sodoma significa o malogro de uma
sociedade e o triunfo de uns poucos indivíduos. De que era culpada a
sociedade sodomita? Ela se condenou ao rejeitar, humilhar e oprimir
os pobres, os estrangeiros e os refugiados – que, mais que ninguém,
precisam de compaixão e generosidade. A história de Sodoma é a
história de uma avertência a cada um de nós, em todas as épocas.
A lição? Uma sociedade que violenta a humanidade de seus
componentes mais fracos está legando, se não produzindo, o próprio
infortúnio, a própria maldição. Sodoma não é apenas um lugar de
um tempo antigo; suas chamas percorreram nosso passado recente e
devoraram-lhe os edifícios.
Nossa história se reflete na história de Lot. Perguntas referen-
tes a ele também se aplicam a nós. Preciso formulá-las? Por que meus
contemporâneos europeus se recusaram a crer que a morte se apro-
ximava? Por que tantas crianças foram vítimas de homicidas? Onde

18
Citado de memória – falha a lembrança onde foi lido e guardado. As imagens
perdem-se no tempo.

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HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO

estava a justiça divina? Por que um sobreviveu e tantos morreram?


Por que minha geração não teve intercessores, se até mesmo Sodoma
teve quem intercedesse por ela? Essas perguntas são incômodas e
eternas. As respostas? Desconheço-as.
Tudo que sei é que entendo a mulher de Lot melhor que Lot.
Pois às vezes é necessário olhar para trás – a fim de não correr o risco
de transformar-se em estátua. De pedra? Não: de gelo.”19

3. Se Abelardo não tivesse sido considerado herege, as linhas


histórico-filosóficas do mundo seriam diversas? É visão defendida
por James Carroll, porque Abelardo representaria a compreensão de
um mundo judaico-cristão – de imensa simpatia com as fraquezas
humanas. A cruz não é símbolo das guerras e das perseguições, mas
a manifestação material do amor de Deus e da salvação humana. Ela
não é a discórdia (e os fundamentalismos do mundo atual tem-na
como arma de guerra), mas ponte entre o mundo divino e o humano.
Abelardo representa o canto de Davi – ambos erraram e
pecaram – mas foram amados por Deus. “A obra de Abelardo, diz
McCallum, é ‘uma aguda revisão do ponto de vista... [mostrando]
que o homem não é culpado por hereditariedade... que há fraquezas
humanas, mas estas não são em si pecaminosas’. Os seres humanos
em si mesmos não são, por definição, sem esperança.
Assim, para Abelardo, o estado da queda não é um obstáculo
para a salvação, mesmo para os pagãos, judeus ou outros ‘infiéis’ –
todos os que eram rotineiramente pronunciados como condenado à
danação pelos contemporâneos de Abelardo, embora ainda não por
algum pronunciamento solene da Igreja. (...)
(...) O mais feroz adversário de Abelardo acaba sendo Bernardo
de Claraval: o monge-cruzado que vimos antes, ao advertir a Renânia
contra a violência antijudaica. Bernardo é o autor de Contra os Erros
de Abelardo, um longo tratado que, entre outras coisas, defende a

19
WIESEL, Elie. Homens Sábios e Suas Histórias. Retratos de Mestres da Bíblia,
do Talmude e do Hassidismo. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006. p.73/74.

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ideia nuclear de Anselmo. Bernardo afirma a necessidade de restaurar


a honra de Deus por meio da crucificação, para levar o universo à
sua ordem correta. Envia esse tratado ao papa, sendo bem-sucedido
na oposição a Abelardo. ‘Bernardo desconfiava, de coração... de
Abelardo...”, escreve Karen Armstrong, ‘e jurou silenciá-lo. Acusou
Bernardo de ‘tentar reduzir a nada o mérito da fé cristã, pois supõe
que, pela razão humana, pode compreender tudo o que Deus é’. E se
Abelardo podia, desse modo, compreender Deus, assim o poderiam
também os judeus e ‘outros povos e nações’. O que significaria para
eles a vinda de Cristo?
‘Seus livros têm asas’, queixou-se Bernardo de Abelardo.
‘Seus escritos passaram de país em país, e de um reino para outro.
Um novo evangelho está sendo forjado para os povos e para as
nações, uma nova fé está sendo proposta e uma nova fundação está
sendo estabelecida ao lado daquela que foi estabelecida’. E, em outro
trecho, Bernardo alcançou a profundidade da questão: ‘É um homem
que não conhece suas limitações, tornando nula a virtude da cruz pela
inteligência de suas palavras’.
Para Abelardo, durante toda a controvérsia, a coisa permanece
clara: Deus não é um soberano cruel a ser apaziguado com a morte
de seu único filho nascido, mas um pai que mandou esse Filho para
revelar seu amor constante – seu amor a todos.”20
Acaso o espírito cruzado da civilização ocidental e os precon-
ceitos diversos teriam vigorado e teriam matado milhares de pessoas se
o pensamento tivesse sido outro? Se vitorioso tivesse sido Abelardo?
Deus-amor e não Deus-vingança; a cruz como meio de unificação e
de misericórdia, desacompanhada do gládio e da sede punitiva.
Abelardo, em “História das Minhas Calamidades”, diz sobre
a chaga do seu corpo – a ferida que o tornou tão profundamente
humano: “Depois que amanheceu, estando a cidade inteira reunida
em torno de mim, seria difícil, ou melhor, impossível exprimir o
espanto, a estupefação que deles se apoderou, as lamentações a que

20
CARROLL, James. A espada de Constantino. A Igreja Católica e os Judeus. São
Paulo: Manole, 2001. p.309/311.

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HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO

se entregaram, os gritos com que me afligiram e o pranto com que


me perturbaram. Na verdade, foram principalmente os clérigos e,
de modo especial, os meus alunos que me torturaram com os seus
intoleráveis lamentos e queixumes, de tal modo que eu me via
muito mais incomodado pela sua compaixão do que pelo sofrimento
da ferida; sentia mais a vergonha do que a mutilação e era mais
atormentado pela infâmia do que pela dor. Ocorria-me o pensamento
da grande glória que eu havia pouco desfrutava e de que modo ela
fora abatida por um incidente vulgar e vergonhoso, ou melhor, como
ela fora completamente destruída e, por justo juízo de Deus, eu fora
castigado naquela parte do meu corpo em que eu pecara, e como por
uma justa traição aquele que eu antes atraiçoara me deu o troco por
sua vez; como os meus rivais exaltaram uma equidade tão manifesta,
e como essa chaga provocaria a desolação de um sofrimento perpétuo
em meus parentes e amigos, e com que extensão essa infâmia singular
difundir-se-ia pelo mundo inteiro.”21
A culpabilização do ofendido, por si próprio e por aqueles que
o cercam, não é alheia ao psiquismo humano. Vítimas de atentados mo-
rais ou sexuais viram-se, a si próprias, como culpadas. Qual o mundo
onde o criminoso ousa mostrar o seu rosto? Fulbert não se demonstra
arrependido, a história o esqueceu por seu passado lamentável. Mas
a história esquece – como o Direito também o faz - os ofendidos e as
vítimas. Os casos penais notabilizam-se pelo nome do acusado, pelo
local da tragédia ou pelo binômio acusado-vítima. Quando a vítima
é lembrada, ela o é porque parcela da culpa do crime ou do pecado
ser-lhe-á atribuída, nos anais da história ou da jurisprudência.

4. A vida de Heloísa ecoa na História, como o canto de Cornélia


Semprônia. Mulher que muito amou e muito sofreu e dotada de virtude
– coragem e honra. Raras são as mulheres virtuosas. Virtuosas pela
palavra e pela retidão – por inteligência e por profunda dedicação
aos seus ideais. A interpretação não se restringe ao corpo – à suposta
21
Santo Anselmo de Cantuária e Pedro Abelardo. Os Pensadores. Traduções de
Angelo Ricci, Ruy Afonso da Costa Nunes. São Paulo: Victor Civita, 1984. p.
269/270.

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pureza de corpo disciplinada para garantir a certeza da paternidade e


para desvelar o mistério da concepção.
Cornélia, filha do Cipão Africano e de Tércia Hemília, mãe dos
irmãos Graco, que governaram Roma por magistraturas subseqüentes.
Estudos revelam que Córnelia era uma mãe dedicada à criação e
educação dos filhos. À ela, como mãe, é atribuída a seguinte história:
diz-se que uma mulher de elevada classe da Campânia estava na casa
de Cornélia, vangloriando-se de suas jóias e dizendo serem as mais
belas que existiam. Cornélia a ouviu até que seus filhos regressassem
das lições, então disse à mulher: “estas são minhas jóias.”22
Cornélia, tendo perdido o marido e a maioria de seus filhos,
permaneceu fiel à memória do marido, recusando-se a casar com o
rei Ptolomeu VIII, para manter os interesses políticos da sociedade
romana. Sem a presença do marido, cuidava de sua família sozinha.
A distância milenar entre Cornélia e Heloísa revela a
proximidade incomum de espíritos. As mulheres são feitas da mesma
argila, quando nelas habita a verdade indômita de sua bravura, sem
o cerceio das convenções.
Cornélia pertencia à República. Naqueles tempos, já se
observam nos registros históricos a subvalorização do papel da
mulher na cultura romana. Às mulheres, lembradas na morte como
esposas ou mães, era proibido desempenhar atividades ligadas aos
cargos públicos, como o senado e os tribunais. O arqueólogo Funari,
professor na Universidade de Campinas, relativiza o patriarcalismo
da época referenciando inclusive outros estududos:
“A ênfase que Wiedemann depositou no caráter militar, punitivo e
cruento da arena, como definidor de uma identidade romana conformista
e respeitosa da dura lex (dura lei), masculina, talvez deixe pouco espaço
para a diversidade de identidades romanas, pois nem mesmo a supremacia
e exclusividade de mando patriarcal podem ser aceitas como absolutas
e incontestes. Lisa Savunen (1995) estudou as inscrições eleitorais
femininas de Pompéia, contabilizando 54 mulheres que apoiaram 28

22
SOUZA, Alice M. de. Do silêncio das mulheres à voz de Cornélia Semprônia.
Revista História e-história. Disponível em: http://www.historiahistoria.com.br/
materia.cfm?tb=alunos&id=80. Publicado em 06 de agosto de 2007. Acesso
em 09/02/2011.

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HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO

candidatos diferentes; neste contexto, seria possível supor que havia


uma única identidade romana, capaz de englobar homens e mulheres,
ricos e pobres, livres e escravos, citadinos e agrestes? Parece preferível
supor que diferentes concepções, às vezes contraditórias, mas sempre
em contato, conviviam, produzindo uma profusão de imagens da própria
condição, individual e grupal.”23

A Política e o Direito manifestam-se no espaço público – mas


elas são gestadas no interior dos lares e no silêncio oculto daquelas
mulheres cujas vozes foram ocultadas pelos registros históricos.
Ilustram os Stegemann em sua obra sobre o protocristianismo:
“A influência política de mulheres, sobretudo de famílias da
elite, recebe comentários extremamente críticos na literatura antiga
e, em geral, é descrita com exagero. Precisamente nas famílias de
liderança da sociedade romana cresceu bastante a influência de
mulheres também na política. Por isso, não é por acaso que muitas
mulheres de césares romanos e de líderes da aristocracia imperial se
caracterizassem, ao mesmo tempo, por uma vida devassa e pela sua
grande influência política, ou seja, justamente a incursão de mulheres
da elite no domínio masculino da política parecer ter provocado de
forma especial a crítica severa a seu modo de vida em geral. Algumas
dessas mulheres chegaram a ter uma importância proverbial, isto é,
por causa de sua ingerência em questões políticas, em parte também
por causa de sua participação em conjurações sou guerras civis, ela se
tornaram exemplos de mulheres “masculinas”. Assim, por exemplo,
Semprônia, que teria cometido, no contexto da conjuração catilinária,
“muita atrocidade de ousadia masculina”, segundo formulação de
Salústio. Famosa e famigerada foi igualmente Fúlvia, uma das esposas
de Marco Antônio, de quem se dizia que o seu corpo era a única coisa
feminina nela. Também à mães se atribui grande influência sobre os
seus filhos politicamente ativos – por exemplo, Servília, a mãe de
Bruto, o assassino de César.” 24

23
FUNARI, Pedro Paulo A. A vida quotidiana na Roma Antiga. São Paulo:
Annablume: 2003. p. 47/48.
24
STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. História social do
protocristianismo. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Paulus, 2004. p. 409.

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Daniela de Freitas Marques e Ana Célia Passos Pereira Campos

Cornélia encontrava a sua voz nas bocas dos seus filhos. Mu-
lher silente, como muitas o foram. Há registros historiográficos de que
seu nome fora usado por seu filho, Caio Graco, para obter projeção
na disputa ao Tribunato da Plebe. Caio Graco, após a morte de seu
irmão Tibério, torna pública uma carta que sua mãe teria lhe escrito,
repleta de conselhos para vida pública. Neste documento, Cornélia
demonstra um civismo incomum quando coloca o Estado acima da
própria vingança da morte de Tibério. Pede ao filho que espere a sua
morte para então concorrer ao Tribunato. As leis populares de caráter
agrário permitiram aos irmãos Graco ganhar simpatia da plebe, mas
desagradaram muitos poderosos - mais um dos filhos de Cornélia foi
morto. Filhos mortos por sonhos, fortalecidos pela alma e espírito
da mãe.
Heloísa não morre por amor, mas vive por seu amor malogrado
e realizado. Astrolábio, seu filho, lhe importa muito – mas importa-lhe
mais Abelardo, por ele queima e, ao contrário dele, não se arrepende
nem pelo sexo, nem pelo amor. Tão contrária às mulheres do Me-
dievo, tempos nos quais: “Os herdeiros mulheres tinham que obter o
consentimento do senhor para casar. Em 1221, a Condessa de Nevers
assim reconheceu esse fato: ‘Eu Matilda, Condessa de Nevers, dou a
conhecer a todos quantos vejam esta carta que jurei sobre o sagrado
Evangelho a meu senhor mais querido, Philip, pela graça de Deus
o ilustre rei da França, que lhe prestarei serviços bons e fiéis contra
todos os homens e mulheres vivos, e que não casarei senão por sua
vontade e graça.’
Se uma viúva desejava casar-se outra vez, deveria ser paga
uma multa a seu senhor, segundo constatamos deste registro inglês
datado de 1316, referente à viúva de um arrendatário: ‘O rei a todos
que etc. saudação. Sabei que, por uma multa de 100 xelins que... nos
foi paga por Joan, ex-mulher de Simon Darches, falecido, a quem
concedêramos a honra das terras de Wallingford, damos a licença
à mesma Joan, para casar-se com quem deseje, deste que nos esteja
sujeito(...)’.” 25

25
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Trad. Waltensir Dutra.

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HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO

Desafiadora das convenções, seu amor faz-se notável e notório,


essencialmente nas cartas endereçadas a Abelardo:
“Na verdade, só tu és capaz de me entristecer e de me alegrar
ou consolar. E, somente tu, isto muito me deves. Sobretudo, agora
que fiz tudo o que me mandaste fazer e, de tal modo, que não sendo
capaz de te ofender em coisa alguma, eu tive coragem, por ordem tua,
de perder-me a mim mesma. E o que é ainda maior e mais digno de
admiração, o meu amor tornou-se tão insensato que, sem nenhuma
esperança de recuperação, desfez-se daquilo que era seu único desejo,
quando, por determinação tua imediatamente mudei não só de habito,
mas também de opinião, para mostrar que somente tu és o único dono
tanto de meu corpo quanto de minha alma.” 26
Não lhe agradavam o casamento ou a reparação, mas queria
o amor e queria a Abelardo por ele próprio e tão somente por ele.
“Jamais (Deus o sabe) procurei, em ti senão a ti mesmo.
Somente a ti desejei, não as tuas coisas. Nada esperei do contrato
matrimonial, nem vantagens de qualquer espécie nem tampouco
procurei (como sabes) fazer meu desejos nem minhas vontades, mas
os teus. E, mesmo que o nome de esposa parecesse mais santo e mais
valiosos, foi para mim sempre mais doce o de amante, ou, se ao te
indignares, o de concubina ou de mulher da vida, para que quanto
mais por tua causa me humilhasse, maior favor obtivesse junto de ti
e, desse modo, também menos ofendesse a glória de tua grandeza. Tu
mesmo não te esqueceste disso completamente, naquela carta (à qual
antes me referi), escrita para a consolação de um amigo, e te dignaste
expor algumas das razões pelas quais eu me esforcei para dissuadir-
te do nosso casamento e das nossas infelizes núpcias. No entanto,
silenciaste muitas razões, pelas quais proferira o amor ao casamento
e a liberdade ao vínculo conjugal.”27
O amor de Heloísa e a sua independência manifestam-se na
recusa ao casamento. Sua opinião, entretanto, não foi considerada, o

Zahar Editores: Rio de Janeiro, 1974, p. 21.


26
Ibidem. p. 183.
27
Ibidem. p. 185.

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Daniela de Freitas Marques e Ana Célia Passos Pereira Campos

que expressa a força com que se impunha o silêncio às mulheres. O


casamento fora então consumado em segredo, a pedido de Abelardo. A
vingança de Fulbert não se faria por esperar – a mutilação aguardava
Abelardo.
A suave fala e a terna resistência mostram e demonstram ser
Heloísa inspiradora de novos romances e novas lutas, como Júlia
ou a A Nova Heloísa, de Jean-Jacques Rousseau, cujas epístolas
representam o nascimento dos direitos humanos no século XVIII.
Heloísa é e torna-se pessoa por ela própria – não se realiza por meio
do homem – não é sombra, não é espelho, não é reflexo. Muitos
séculos depois, Heloísa é exemplo de mulher e forma de heroína a ser
louvada e seguida. O nascimento dos direitos humanos vincula-se à
compaixão e à identificação com as personagens femininas. O atributo
de virilidade desperta poder e violência – mas não o respeito ao “ser
pessoa”, fundamento de todos os direitos humanos.
Lynn Hunt, a quem a originalidade da idéia deve ser atribuída,
diz: “Embora seja digno de nota que o Contrato Social, de Rousseau,
faça um uso antecipado do termo droits de l’homme, seu best-seller
Julie or The New Heloise pode, ao menos, ter sido tão influente para o
desenvolvimento dos direitos humanos, quanto o seu freqüentemente
mal entendido tratado político. Os efeitos psicológicos das narrativas
sobre as mulheres e suas buscas por amor pode explicar, melhor que
qualquer outro aspecto isolado, a capacidade dos direitos humanos
para pegar, para fazer sentido na linguagem comum, para ter uma
extensa ressonância emocional entre os integrantes das classes
educadas.”28
(...) “(...) Quando se lê um romance epistolar - romances que se
baseiam na troca de cartas, e que atingiram o auge de sua popularidade
na segunda metade do século XVIII - um leitor se identifica com uma
pessoa comum, que ele não conhece pessoalmente, mas com quem
28
HUNT, Lynn. O romance e as origens dos Direitos Humanos: interseções
entre história, psicologia e literatura. Varia hist., Belo Horizonte,  v. 21,  n.
34, July  2005 .   Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0104-87752005000200002&lng=en&nrm=iso>. access on 
09  June  2011.  doi: 10.1590/S0104-87752005000200002.

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 123-146, jan./jun. 2011 141
HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO

estabelece uma empatia. Deste modo, por meio de trabalhos com esta
forma narrativa, o romance epistolar disseminou uma nova psicologia,
e, conseqüentemente, uma nova ordem política e social. Eles tornaram
uma criada, como Pamela, a heroína do romance homônimo de
Richardson, igual, e até mesmo melhor, que um homem rico, como
Mr. B. O romance epistolar argumentava que todos os indivíduos
seriam fundamentalmente similares, porque seus processos psíquicos
internos seriam similares; e isso demonstrou de forma dramática que
os seres se faziam por meio de processos psíquicos internos, ou seja,
que eles eram profundos. Ler os romances arrastava o leitor para dentro
destes processos psíquicos, e criava um sentimento de igualdade e
empatia, por meio do envolvimento apaixonado com a narrativa. Seria
mera coincidência que três dos melhores romances de identificação
psicológica do século XVIII, todos sob a forma epistolar, - Pamela
(1740), de Richardson; Clarissa (1748); e Julie, de Rousseau (1761)
- tivessem sido publicados no período imediatamente precedente ao
surgimento do conceito de “direitos humanos”?”29
Se, no Iluminismo, os romances epistolares estabelecem
pela identificação a trajetória da evolução dos direitos humanos –
as cartas entre Heloísa e Abelardo, ditadas no mundo silencioso e
colorido do medievo, foram re-descobertas e re-lidas pela Filosofia
e pela Literatura, não o poderiam ser pelas letras jurídicas? Abelardo
representa alteridade e culpa, arrependimento e marginalidade:
tem os atributos do panegírico da teoria do Direito em geral e,
especificamente, do Direito Penal ao avesso ou do Direito Penal
“sum sine regno”: ele é o eterno sofredor considerado culpado.
Heloísa representa ardor e paixão, comoção e sentimento, mas tem
sido relegada como a sombra de Abelardo, pálido e cego reflexo, fonte
inspiradora de todos os direitos ditos humanos: tem os atributos do
panegírico da teoria da Justiça – mas não é possível lhe ver o rosto
– os olhos humanos estiveram, estão e estarão vendados. Onde está
a sua face adorável?

29
Ibidem.

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HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO

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Recebido em 10/06/2011 – Aprovado em 23/08/2011

Rev. Fac. Direito UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 123-146, jan./jun. 2011 145

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