Heliísa e Abelardo PDF
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RESUMO
Trata-se da história de amor entre Heloísa e Abelardo,
perseguidos por amor não plenamente realizado – a história dos
grandes amores é a história dos amores infelizes: o amor profundo é
a não possibilidade de plena vivência do amor. Eles foram vitimados
pela emasculação criminosa causada a Abelardo e pelo sofrimento de
vidas separadamente vividas. Abelardo, perseguido como herege, na
voz troante de Bernardo de Claraval, condenado pela Igreja, é a versão
da vítima tornada acusada. A história dos dois amantes é a história dos
preconceitos que erigem as normas e perfazem os costumes. Direito e
sociedade são imenso precipício cavado de lágrimas, porque neles não
há prazer e não há espírito. Eles não têm o mais fácil – eles não amam:
São Bernardo, São Bernardo, São Bernardo: o grito não é ouvido mais
pelos dois amantes - feitos de luzes claras, em leito luminoso, rosa
florescente, cujo nascedouro não é a terra.
PALAVRAS-CHAVE: Amor. Heresia. Direito Penal. Filosofia.
*
Professora Adjunta da Faculdade de Direito da UFMG. Juíza de Direito do
juízo militar da Justiça Militar do Estado de Minas Gerais.
E-mail: marfreida@hotmail.com
**
Graduada em Direito pela Faculdade de Direito da UFMG.
E-mail: anaceu2000@yahoo.com.br
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HELOÍSA E ABELARDO: DIÁLOGOS SOBRE O AMOR, A POLÍTICA E O DIREITO
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“A cidade é Paris. O ano, cerca de 1118. Uma escola foi estabelecida na catedral
dos francos na ilha no Sena. Há talvez cinco mil estudantes em Paris, centrados
aqui. Combinando capacidades de lógica, debates, matemática, filosofia e
o estudo da Escritura, os eruditos de Paris estão, com efeito, inventando a
universidade moderna. Seu monumento é a catedral que está sendo erguida, a
obra-prima de Notre-Dame.
2
Preeminente nesta comunidade de gênios é Pedro Abelardo, conhecido em toda
a Europa como professor carismático. É ‘um homem belo e simpático, esbelto
e não muito alto’.
(...)
‘Assim como o portal oeste de Chartres é a porta através da qual se precisa
entrar na arquitetura gótica do século XIII’ - essa é a avaliação do historiador
norte-americano Henry Adams – ‘do mesmo modo Abelardo é o portal de
aproximação ao pensamento e filosofia gótica dentro de Chartres. Nem a arte
nem o pensamento têm um equivalente moderno: só Heloísa, como Isolda, une
as épocas. Heloísa é uma jovem brilhante que, aos dezoito anos, tem menos
da metade da idade de Abelardo. É sobrinha de Fulberto, o poderoso cônego
de Notre Dame. O fato de que o grande Abelardo a fosse tomar como aluna
testemunha a preeminência do tio dela, mas também os dons de Heloísa. ‘Era
uma dama de aparência incomum’, nos diz Abelardo, ‘ e em excelência literária
era a primeira’.
Ser professor na posição de Abelardo era ser um clérigo, embora não
necessariamente um sacerdote com os votos da ordenação. Ainda assim, é uma
grave violação quando Abelardo e Heloísa passam a se amar apaixonadamente.
‘Sob o pretexto do trabalho, nos tornamos inteiramente livres para o amor e
o prosseguimento dos estudos dela proporcionou a privacidade secreta que
o amor desejava... Havia mais beijos do que ensinamentos; minhas mãos
estavam sobre seus seios mais vezes do que pegando os livros... E quanto mais
essas delícias eram novas para nós, mais ardentemente as praticávamos.’” Cf.
CARREL, James. A Espada de Constantino. A Igreja Católica e os Judeus. São
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KANGUSSU, Imaculada. Sobre a alteridade do artista em relação ao mundo
que o cerca, segundo Herbert Marcuse. Kriterion, Belo Horizonte, v. 46, n.
112, Dec. 2005 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0100-512X2005000200017&lng=en&nrm=iso>. access on
26 Sept. 2010. doi: 10.1590/S0100-512X2005000200017.
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Fragmentos de Carmina Burana.
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La Roue de la Fortune. Calque de Miniatures de l’ Hortus Deliciarum de Herrade
de Landsberg. Paris: Bibliothèque Nationale de France (Dept Estampes Ad 144
a) apud COSTA, Ricardo da; ZIERER, Adriana. Boécio e Ramon Llull: a Roda da
Fortuna, princípio e fim dos homens. Disponível em: www. http://www.ricardocosta.
com/pub/boecioellull.htm. Data de acesso em: 06 de jan de 2011.
De forma profunda, esclarecem os autores:
“A imagem acima contém os quatro estágios simbolizados pelos quatro
personagens em torno da Roda:
1) regnabo (eu devo reinar: figura em cima, do lado esquerdo da Roda, com o
braço direito erguido)
2) regno (eu reino: figura em cima da Roda, freqüentemente coroada, para
significar o reinado)
3) reganvi (eu reinei: figura que está do lado direito da roda, caindo da graça)
4) sum sine regno (eu não tenho reino: figura na base da roda que perdeu
completamente os favores da Fortuna. Esta pessoa é as vezes completamente
jogada da Roda ou esmagada por esta, sem nenhuma chance de reinar de novo)
(STRAYER: 1983, p.145-147).
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Vista pelos antigos como deusa do acaso, a Roda da Fortuna na Idade Média
representava tanto a Roda da Vida, que elevava o homem até o alto antes
de deixá-lo cair de novo, como a Roda do Acaso, que não parava nunca de
rodar e indicava a mudança perpétua que caracteriza a natureza humana
(BIEDERMANN: 1996, p. 591).
Num mundo inseguro como o da Idade Média, onde os homens viviam em
constante perigo, com medo dos vivos e dos mortos, acreditava-se que o destino
dos homens, mesmo o dos reis e imperadores, era determinado pela Fortuna.
Além disso, o ressurgimento da imagem da Roda a partir do século XII também
se explica pelas condições materiais de então: a figura das três ordens já não
refletia a realidade. O dinheiro voltou a ser o nervo do poder, penetrando em
todas as relações de sociedade, “...se infiltrando em relações até então baseadas
na gratuidade, na amizade, na dedicação e na devoção” (DUBY, 1992, p. 162).
Provocou desestabilização, esperança de cada um “ganhar” (palavra que se
disseminou ao longo do século XII). A vida transformou-se em aventura, em
possibilidades. Em suma, enriquecer passou a ser considerado (DUBY, 1992,
p. 163-164).
O termo Roda da Fortuna parece ser uma evolução de duas diferentes deusas
antigas, provindas da cultura greco-romana, Fors (“a que traz”, relacionada
ao conceito de providência) e Fortuna (ligada à fertilidade, à agricultura e às
mulheres). Esta última tinha traços similares à Tyche, deusa grega associada ao
acaso e à sorte.
Em algum momento, a distinção entre Fors e Fortuna diminuiu com a criação
de uma única deusa, Fors (Fortuna), herdando as noções de sorte, destino e
acaso de suas predecessoras.
Existiam pelo menos três templos dedicados à deusa Fors em Roma e um
festival lhe era dedicado em 24 de junho (“Fortuna”). Ela era apresentada
freqüentemente segurando uma cornucópia e um timão, sobre uma esfera ou uma
roda, e simbolizava seu poder sobre a vida das pessoas que consideravam possuir
fortuna se tivessem sorte ou infortúnio (BIEDERMANN: 1996, p. 275-276).
O melhor exemplo desta representação na Idade Média se encontra justamente
no período de vida de Ramon Llull (1232-1316), na coleção de canções
germânicas profanas denominada Carmina Burana, uma coletânea de obras
anônimas datada de 1300 e provenientes da abadia bávara de Benedictbeuern.
Trata-se de uma estimulante exaltação à natureza em forma de fortes tons
primários, que possui uma canção a respeito da Fortuna.”Ibidem.
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Lembrados por Dante Alighieri, na Divina Comédia.
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Citado de memória – falha a lembrança onde foi lido e guardado. As imagens
perdem-se no tempo.
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WIESEL, Elie. Homens Sábios e Suas Histórias. Retratos de Mestres da Bíblia,
do Talmude e do Hassidismo. Tradução Hildegard Feist. São Paulo: Companhia
das Letras, 2006. p.73/74.
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CARROLL, James. A espada de Constantino. A Igreja Católica e os Judeus. São
Paulo: Manole, 2001. p.309/311.
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SOUZA, Alice M. de. Do silêncio das mulheres à voz de Cornélia Semprônia.
Revista História e-história. Disponível em: http://www.historiahistoria.com.br/
materia.cfm?tb=alunos&id=80. Publicado em 06 de agosto de 2007. Acesso
em 09/02/2011.
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FUNARI, Pedro Paulo A. A vida quotidiana na Roma Antiga. São Paulo:
Annablume: 2003. p. 47/48.
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STEGEMANN, Ekkehard W. e STEGEMANN, Wolfgang. História social do
protocristianismo. Trad. Nélio Schneider. São Paulo: Paulus, 2004. p. 409.
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Cornélia encontrava a sua voz nas bocas dos seus filhos. Mu-
lher silente, como muitas o foram. Há registros historiográficos de que
seu nome fora usado por seu filho, Caio Graco, para obter projeção
na disputa ao Tribunato da Plebe. Caio Graco, após a morte de seu
irmão Tibério, torna pública uma carta que sua mãe teria lhe escrito,
repleta de conselhos para vida pública. Neste documento, Cornélia
demonstra um civismo incomum quando coloca o Estado acima da
própria vingança da morte de Tibério. Pede ao filho que espere a sua
morte para então concorrer ao Tribunato. As leis populares de caráter
agrário permitiram aos irmãos Graco ganhar simpatia da plebe, mas
desagradaram muitos poderosos - mais um dos filhos de Cornélia foi
morto. Filhos mortos por sonhos, fortalecidos pela alma e espírito
da mãe.
Heloísa não morre por amor, mas vive por seu amor malogrado
e realizado. Astrolábio, seu filho, lhe importa muito – mas importa-lhe
mais Abelardo, por ele queima e, ao contrário dele, não se arrepende
nem pelo sexo, nem pelo amor. Tão contrária às mulheres do Me-
dievo, tempos nos quais: “Os herdeiros mulheres tinham que obter o
consentimento do senhor para casar. Em 1221, a Condessa de Nevers
assim reconheceu esse fato: ‘Eu Matilda, Condessa de Nevers, dou a
conhecer a todos quantos vejam esta carta que jurei sobre o sagrado
Evangelho a meu senhor mais querido, Philip, pela graça de Deus
o ilustre rei da França, que lhe prestarei serviços bons e fiéis contra
todos os homens e mulheres vivos, e que não casarei senão por sua
vontade e graça.’
Se uma viúva desejava casar-se outra vez, deveria ser paga
uma multa a seu senhor, segundo constatamos deste registro inglês
datado de 1316, referente à viúva de um arrendatário: ‘O rei a todos
que etc. saudação. Sabei que, por uma multa de 100 xelins que... nos
foi paga por Joan, ex-mulher de Simon Darches, falecido, a quem
concedêramos a honra das terras de Wallingford, damos a licença
à mesma Joan, para casar-se com quem deseje, deste que nos esteja
sujeito(...)’.” 25
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HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. Trad. Waltensir Dutra.
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estabelece uma empatia. Deste modo, por meio de trabalhos com esta
forma narrativa, o romance epistolar disseminou uma nova psicologia,
e, conseqüentemente, uma nova ordem política e social. Eles tornaram
uma criada, como Pamela, a heroína do romance homônimo de
Richardson, igual, e até mesmo melhor, que um homem rico, como
Mr. B. O romance epistolar argumentava que todos os indivíduos
seriam fundamentalmente similares, porque seus processos psíquicos
internos seriam similares; e isso demonstrou de forma dramática que
os seres se faziam por meio de processos psíquicos internos, ou seja,
que eles eram profundos. Ler os romances arrastava o leitor para dentro
destes processos psíquicos, e criava um sentimento de igualdade e
empatia, por meio do envolvimento apaixonado com a narrativa. Seria
mera coincidência que três dos melhores romances de identificação
psicológica do século XVIII, todos sob a forma epistolar, - Pamela
(1740), de Richardson; Clarissa (1748); e Julie, de Rousseau (1761)
- tivessem sido publicados no período imediatamente precedente ao
surgimento do conceito de “direitos humanos”?”29
Se, no Iluminismo, os romances epistolares estabelecem
pela identificação a trajetória da evolução dos direitos humanos –
as cartas entre Heloísa e Abelardo, ditadas no mundo silencioso e
colorido do medievo, foram re-descobertas e re-lidas pela Filosofia
e pela Literatura, não o poderiam ser pelas letras jurídicas? Abelardo
representa alteridade e culpa, arrependimento e marginalidade:
tem os atributos do panegírico da teoria do Direito em geral e,
especificamente, do Direito Penal ao avesso ou do Direito Penal
“sum sine regno”: ele é o eterno sofredor considerado culpado.
Heloísa representa ardor e paixão, comoção e sentimento, mas tem
sido relegada como a sombra de Abelardo, pálido e cego reflexo, fonte
inspiradora de todos os direitos ditos humanos: tem os atributos do
panegírico da teoria da Justiça – mas não é possível lhe ver o rosto
– os olhos humanos estiveram, estão e estarão vendados. Onde está
a sua face adorável?
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Ibidem.
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REFERÊNCIAS
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Daniela de Freitas Marques e Ana Célia Passos Pereira Campos
STADELMANN, L.I. Cântico dos cânticos. 2.ed. São Paulo: Loyola, 1998.
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