SARLET Ingo O STF e o Direito A Vida
SARLET Ingo O STF e o Direito A Vida
SARLET Ingo O STF e o Direito A Vida
V. 01, N. 02
julho – dezembro de 2014
ARTIGOS // ARTICLES
JÜRGEN HABERMAS, INEZ LOPES, FERNANDO DE
CASTRO FONTAINHA, MARCÍLIO TOSCANO FRANCA
FILHO & MARIA FRANCISCA CARNEIRO,
MARIA CANDIDA CARVALHO MONTEIRO DE ALMEIDA,
RAMÓN NEGOCIO
COMENTÁRIOS DE JURISPRUDÊNCIA // CASE
NOTES AND COMMENTARIES
DEBORA DINIZ, INGO WOLFGANG SARLET
RESENHAS // BOOK REVIEWS
MATHEUS BARRA, NATHALY MANCILLA ÓRDENES
O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E
O DIREITO À VIDA – COMENTÁRIOS
À DECISÃO NA ADPF Nº 54 SOBRE
A INTERRUPÇÃO DA GRAVIDEZ NOS
CASOS DE ANENCEFALIA FETAL // THE
BRAZILIAN SUPREME COURT AND THE
RIGHT TO LIFE – COMMENTARIES TO
THE COURT’S DECISION ON ADPF 54,
REGARDING PREGNANCY INTERRUPTION
IN CASES OF FETAL ANENCEPHALY
1 – Notas introdutórias
Uma rápida mirada sobre a decisão do STF na ADI 3.510, permite afir-
mar que, a depender do voto do Ministro Carlos Britto, não haveria titu-
laridade de um direito à vida antes do nascimento com vida! Com efeito,
ao que tudo indica, o STF (aqui considerando que a maioria dos Minis-
tros acompanhou o voto do Relator) partiu do pressuposto que a Consti-
tuição não faz de todo e qualquer estádio da vida humana um bem jurídi-
co autônomo assegurado na condição de direito (subjetivo) fundamental,
mas apenas da vida que já é própria de uma concreta pessoa, porquan-
to nascida com vida, de tal sorte que a inviolabilidade da qual trata o art.
5º “caput” diz respeito exclusivamente a um indivíduo já personaliza-
do. De outra parte, ficou assentado naquela decisão que o embrião, para
merecer a proteção da ordem jurídica, deve ter a possibilidade de vir a
ser pessoa, não bastando que tenha sido fecundado de modo artificial, de
tal sorte que em não sendo implantado o embrião produzido in vitro não
será jamais pessoa, não podendo ser, por via de consequência, objeto de
proteção pelo Direito. Assim, parece que, para o STF, há que traçar uma
distinção entre embriões obtidos de modo artificial e não implantados,
destituídos de proteção jurídica, e embriões implantados e daqueles que
se desenvolvem a partir de uma concepção e fecundação convencional,
os quais, embora não sendo pessoas, já gozam de um determinado nível
de proteção pela ordem jurídica ainda que não possam ser, enquanto não
nascidos com vida, titulares de direitos.
À vista do exposto, verifica-se que a distinção entre indivíduos e pesso-
as (ou entre vida ou dignidade humana e pessoa humana, titular de um
direito à vida e um direito à proteção e promoção de sua dignidade), pare-
ce, portanto, ter sido consagrada pela nossa mais alta Corte, ressalvan-
do-se a existência de posição em parte divergente do Ministro Ricardo
Lewandowski, que, no seu voto, lembrou que a Convenção de São José da
Costa Rica, como já referido na parte inicial, refere expressamente que
a vida humana deve ser protegida desde a concepção. Por outro lado, é
possível extrair da decisão ora colacionada, que a proteção jurídico-cons-
titucional da vida intrauterina, portanto, da vida antes do nascimento,
se dá por conta da extensão do âmbito subjetivo (pessoal) de proteção da
dignidade da pessoa humana, no sentido que embora não se possa falar
de uma pessoa, na condição de sujeito de direitos fundamentais, existe
uma proteção que atinge todo o processo vital, compreendido como um
processo indivisível de formação do ser humano, que deságua no indiví-
duo-pessoa resultante do nascimento com vida.
A decisão do STF sobre a legitimidade constitucional das pesquisas
com células-tronco obtidas a partir de embriões derivados de uma fertili-
zação artificial e não implantados no ventre feminino, convém destacar,
embora tenha trazido elementos importantes para a discussão (a despei-
to de uma posição nada clara e conclusiva em matéria de titularidade de
direitos fundamentais) não se presta como paradigma (ao menos exclu-
sivo) para a discussão em torno da interrupção da gravidez, pois aqui está
em causa – na visão do próprio STF – um “ser para pessoa”, que já recebe
alguma proteção do direito positivo (tutela dos interesses do nascituro),
cuidando-se, nesses casos, sempre de uma entidade pré-natal instalada (e
A despeito de ter sido consagrado no art. 5º, caput, onde lhe foi solene-
mente assegurada a sua inviolabilidade, não se poderá reconhecer que o
direito à vida assume a condição de um direito absoluto, no sentido de
absolutamente imune a intervenções legítimas sob o ponto de vista jurí-
dico-constitucional. Diversamente do que ocorreu na Alemanha, onde
a Lei Fundamental estabeleceu uma expressa reserva legal, a CF assegu-
rou uma proteção aparentemente mais forte ao direito à vida, o que, toda-
via, não procede, visto que bastaria apontar para a exceção, prevista na
própria CF, de que em caso de guerra declarada, nos casos regulamenta-
dos pela legislação infraconstitucional, cabível a aplicação da pena de
morte, o que não se verifica no caso da Alemanha. Da mesma forma, a
mera previsão, ainda que de modo limitado, de hipóteses legais admitin-
do a interrupção da gravidez, igualmente demonstra que a ordem jurí-
dica reconhece situações nas quais a supressão da vida de um ser huma-
no (sem prejuízo, no caso da interrupção da gravidez, da discussão sobre
a existência de uma pessoa humana e de um direito subjetivo à vida) é
tida como juridicamente tolerada, pelo menos no sentido de não impli-
car ato ilícito passível de sanção, o mesmo ocorrendo nos casos de legíti-
ma defesa, exercício regular de um direito, etc., onde a ilicitude do ato de
matar é afastada.
O exemplo do direito à vida, diversamente da generalidade dos direi-
tos fundamentais, revela também que a assim chamada garantia do
núcleo essencial poderá coincidir, a depender da concepção adotada, com
o próprio conteúdo do direito, visto que qualquer intervenção no direito
à vida implica a morte de seu titular. Por outro lado, também são classi-
ficadas como intervenções no direito à vida hipóteses de grave ameaça e
risco para a vida, que, no caso de efetivadas, levariam à morte, e, portanto,
teriam caráter irreversível21. A questão, portanto, não é a de aqui discutir
a legitimidade de intervenções restritivas, no sentido próprio do termo,
mas sim a de verificar a consistência jurídico-constitucional de medidas
>> NOTAS
1 Cf. Michael Kloepfer, Verfassungsrecht II, München: C.H. Beck, 2010, p. 167.
2 Cf. Christian Starck, Kommentar zum Grundgesetz, vol. 1, 6ª ed., München: Verlag Franz
Vahlen, 2010, p. 255.
3 Cf. Michael Kloepfer, Verfassungsrecht II, Op. Cit., p. 167.
4 Cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, vol. I, Coimbra: Coimbra
Editora, 2004, p. 223.
5 Cf. André Ramos Tavares, Curso de Direito Constitucional, 9ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 543
6 Cf. BVerfGE 39, p. 42.
7 Cf. Luis Maria Díez-Picazo, Sistema de Derechos Fundamentales, 2ª ed., Madrid: Civitas, 2005,
p. 215.
8 Cf., por todos, Michael Kloepfer, “Vida e Dignidade da Pessoa Humana”, In: Ingo Wolfgang
Sarlet (Org.)., Dimensões da Dignidade. Ensaios de Filosofia do Direito e Direito Constitucio-
nal, 2ª ed,, Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, p. 171 e ss.
9 Cf. Hans-Detlef Horn, “Allgemeines Freiheitsrecht, Recht auf Leben u.a.”, In: Klaus Stern;
Florian Beckerm (Coord.), Grundrechte Kommentar, Köln: Carl Heymanns Verlag, 2010, p. 181.
10 Cf. Robert Alexy, Theorie der Grundrechte, 2ª ed., Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1994, p. 159 e ss.
11 Cf., por todos, Helmuth Schulze-Fielitz, “Das Recht auf Leben und körperliche Unversehrtheit
(Art. 2 II 1 GG)”, In: Horst Dreier (Ed.), Grundgesetz Kommentar, cit., p. 210-11.
12 Sobre o tópico, v., dentre outros, a síntese de Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos
Fundamentais, 11ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 141 e ss., bem como as lições
(ainda que em parte divergentes do primeiro autor citado e por isso relevantes também como
contraponto) de Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria Geral dos Direitos Fundamen-
tais, 4ª ed., São Paulo: Atlas, 2012, p. 111 e ss.
13 Cf., em caráter ilustrativo, Ingo Wolfgang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, cit., p.
151 e ss.
14 Cf. Christian Starck, Kommentar zum Grundgesetz, cit., p. 263.
15 Cf., dentre tantas, especialmente, a decisão no Agravo Regimental no Recurso Extraordiná-
rio nº 271.286-8/RS, Rel. Min. Celso de Mello, publicada no DJU em 24.11.2000, bem como, mais
recentemente, a decisão na STA nº 175/CE, julgada em março de 2010, Rel. Min. Gilmar Mendes.
16 Cf. Christian Starck, Kommentar zum Grundgesetz, cit., p. 263-64.
17 Para o caso brasileiro, v. o art. 91 do Estatuto do Estrangeiro, lei 6.815/80 e reiterada jurispru-
dência do STF nesse sentido. Na doutrina, v., por todos, Gilmar Ferreira Mendes, “Direitos
Fundamentais de Caráter Judicial e Garantias Constitucionais do Processo”, In: Gilmar Ferreira
Mendes e Paulo Gustavo G. Branco, Curso de Direito Constitucional, op. cit., p. 565 e ss
18 Cf. Christian Starck, Kommentar zum Grundgesetz, cit., p. 264-65.
19 Cf., por todos, Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco, Curso de Direito Consti-
tucional, 6ª ed., São Paulo: Saraiva, 2011, p. 289.
20 Sobre o tema da titularidade, seguindo uma linha inclusiva, remetemos também a Ingo Wolf-
gang Sarlet, A Eficácia dos Direitos Fundamentais, op. cit., p. 209 e ss. Adotando entendimen-
to mais restritivo (embora sem deixar de criticar a fórmula adotada no texto constitucional) v.
Dimitri Dimoulis e Leonardo Martins, Teoria Geral dos Direitos Fundamentais, cit., p. 72 e ss.
21 Cf. Helmuth Schulze-Fielitz, cit., p,. 212-13;
22 Cf. o famoso caso Roe vs. Wade, julgado em 1973, onde se entendeu que o direito à privacida-
de abrange a liberdade da mulher de decidir sobre a continuação da gravidez nos primei-
ros três meses de gestação, ao passo que no segundo trimestre, embora ainda cabível o abor-
to por decisão da gestante, o Estado poderia regulamentar o exercício do direito objetivando a
proteção da saúde da própria gestante. A respeito da discussão sobre o aborto nos EUA v. por
todos Ronald Dworkin, O Domínio da Vida. Trad. Jefferson L. Camargo, São Paulo: Martins
Fontes, 2003.
23 No que diz com a descriminalização do aborto na Alemanha houve três importantes momen-
tos na esfera legislativa, submetidos ao crivo do Tribunal Constitucional Federal (destaque
para as decisões Aborto I e II, de 1975 e 1993, respectivamente) e que acabaram conduzindo a
uma progressiva descriminalização, muito embora a legalização generalizada e o reconheci-
mento de um direito fundamental ao abortamento não tenham sido chanceladas pelo Tribu-
nal. Especialmente a decisão conhecida como Aborto II.
24 Cf. Paulo Mota Pinto, “Breves considerações a propósito da interrupção da gravidez de fetos
com anencefalia”, p. 2 e ss. (texto disponibilizado pelo autor e aguardando publicação).
25 Cf., nesse sentido, as ponderações de José Roberto Goldim,”Bioética, Anencefalia e o Início da
Vida e do Viver”, p. 6 e ss. (texto disponibilizado pelo autor e aguardando publicação).
26 Cf. Jörg Neuner, “Da capacidade jurídica das pessoas naturais”, In: Direitos Fundamentais &
Justiça n. 21, set-dez. 2012.
27 Sobre tal discussão, v., por todos, Daniel Sarmento, “Legalização do aborto e Constituição”, In:
Daniel Sarmento e Flávia Piovesan (Coord.), Nos Limites da Vida. Aborto, Clonagem Humana e
Eutanásia sob a perspectiva dos Direitos Humanos, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, especial-
mente p. 23 e ss.