Texto Teoria Decolonial
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Texto Teoria Decolonial
O artigo discute que lugar ocupa – e que lugar poderia ocupar – a categoria de
movimentos sociais na teoria decolonial. Os movimentos são citados, nesta teoria, como
exemplos de resistência à colonialidade, seja como grupos que colocam em prática o
pensamento decolonial ou que promovem modernidades alternativas. É comum
encontrar citações ao MST no Brasil, aos Zapatistas no México ou aos movimentos por
outra globalização. Menos, entretanto, foi escrito analisando detalhadamente como os
movimentos sociais constroem suas resistências em contato com outros movimentos,
Estados, opositores (alguns bons exemplos nesse sentido referem-se ao Processo de
Comunidades Negras, na Colômbia). Após discutir esta percepção, o artigo abordará o
sentido de empregar movimentos sociais e ação coletiva como categorias para o
pensamento decolonial. Por um lado, ela poderia facilitar o estudo de como os grupos
subalternos vêm organizando sua resistência frente aos Estados nacionais e ao poder
econômico, abrindo caminho para estudos em nível microsociológico no interior das
teorias decoloniais, que permitiriam compreender melhor as complexas imbricações
entre resistência e colonialidade. Por outro, há que discutir se esta categoria não estaria
demasiado imbuída de ideias coloniais, a ponto que seja melhor trabalhar com outros
termos para pensar a organização e a resistência de grupos não hegemônicos nas
sociedades latino-americanas.
1
1 Introdução1
1
Artigo produzido com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES). Agradeço aos comentários de Johanna Monagreda e de Clarisse Paradis a versões anteriores
desse trabalho. Algumas das citações em espanhol foram mantidas no idioma original; pretendo traduzi-
las em versões posteriores do trabalho.
2
Para o autor, entretanto, parece problemáticos caracterizar tais movimentos
simplesmente como pós coloniais, pois, “no fundo, não se explica a lógica da ação
coletiva e da produção e reprodução desses movimentos, baseados em demandas
bastantes materiais e de grande complexidade” (ibid.,p.192).
Concordo com as citações acima, entendendo que a teoria decolonial ganha
muito quando sai de narrativas gerais dos processos de resistência política e
epistemológica, e trabalha mais detidamente as possibilidades e limites das populações
sob o jugo colonial. Nos anos recentes, no entanto, creio se possível afirmar que a teoria
já vem dando passos interessantes nesse sentido. Sem pretender chegar a um tratamento
exaustivo do tema, busco, no presente texto, algumas ideias já reunidas pelos teóricos
decoloniais sobre quem age, e como, nessa teoria, apoiando-me, sobretudo, nas
contribuições de pesquisadoras e pesquisadores que já refletiram sobre o tema.
Múltiplas interações
Antes de pensar sobre como os acúmulos sobre a lógica da ação coletiva e dos
teóricos sobre movimentos sociais podem ser úteis para o pensamento decolonial, cabe
refletir sobre as possibilidades e limites do emprego das teorias existentes. Flórez
(2015) apresenta interessante esforço de voltar a lente decolonial às teorias de
movimentos sociais e de ação coletiva e encontra, nelas, forte discurso colonial,
presente sobretudo na maneira como os teóricos “globais”, isto é, aqueles que têm a
possibilidade de falar por todo o planeta, enquadram as ações na América Latina como
exceções, às quais em geral falta algo para que possam ser igualadas às experiências
européias ou norte-americanas, conforme veremos com mais detalhe no item 4.
Além desse, encontro outros três ângulos a partir dos quais é possível pensar a
interação entre a teoria decolonial e as teorias sobre movimentos sociais e ação coletiva.
O segundo relaciona-se à acolhida ou impacto que as reflexões pós e decoloniais
tiveram sobre estudiosos e teorias de movimentos sociais, classificadas como
“desiguais” por Bingel (2011, p.188) e como “muito poucas” por Flórez (2014, p.88)2.
O terceiro refere-se não às teorias, mas aos grupos organizados em si. Os
conceitos de colonialidade, decolonialidade ou descolonização vêm cada vez mais
fazendo parte dos vocabulários de ativistas latino-americanos, sobretudo a partir dos
movimentos indígenas e de seus intelectuais, mas também de camponeses e de
feministas (Leyva, 2009; Castillo, 2013).
De quarto ângulo dessa interação, é possível observar como a teoria decolonial
vem trabalhando os processos de ação, resistência, as articulações e protestos dos
grupos que a interessam. É este o ângulo ao qual pretendemos dar prioridade no
presente texto. No título do artigo, uso o termo movimentos sociais por sua difusão para
se referir tanto a ações quanto aos grupos organizados e pela capacidade de sintetizar a
ação política daqueles que não têm acesso direto ao poder. Não pretendo, aqui, realizar
debate extenso sobre as diversas definições possíveis, ainda que volte ao tema adiante.
A primeira parte do texto apresenta rapidamente as origens e alguns dos
principais conceitos da teoria decolonial. E seguida, argumento haver, nessa teoria, pelo
menos duas formas de compreender os atores organizados: uma delas como pensamento
decolonial em marcha e a outra como formas politicamente enriquecidas de alteridade e
modernidades alternativas. Na terceira parte, sintetizo duas contribuições mais recentes
e próximas ao segundo entendimento, de Escobar (2003 e 2010) e Flórez (2015). A
partir de ambos, busco alinhavar características do entendimento sobre movimentos
2
Ela inclui na lista das teorias com pouca acolhida pelas teorias clássicas de movimentos sociais também
a epistemologia feminista situada, os estudos culturais e os pós-desenvolvimentistas.
3
sociais, sugereindo também diálogo com outros acúmulos teóricos feministas e latino-
americanos. Breves considerações finais encerram o texto.
Este artigo mantém algo de colagem, de incompletude. Certamente deixou
autores importantes de fora. Apresenta, possivelmente, mais questões do que respostas,
nesse caminho de compreender se e como a teoria decolonial é capaz de olhar não só
movimentos sociais mas, de forma mais geral, a possibilidade de agência daqueles que
vivem em seu cotidiano os processos da modernidade/colonialidade.
1 Do pós-colonial ao decolonial
3
Este conjunto de autores dialoga bastante com os pós-estruturalistas europeus (Derrida, Deleuze e
Foucault), além de Freud, Lacan e Gramsci, e também com teóricos dos estudos culturais em sua
preocupação com identidade, cultura e globalização (BALLESTRIN, 2013, p.93).
4
O termo decolonial entra em cena apenas em 2009, como contribuição de
Catherine Walsh, membro de primeira hora do grupo radicada no Equador, para “insistir
no fato de identificar, conferir visibilidade e alentar lugares de exterioridade à
modernidade, como uma luta contínua e de absoluta vigência” (Walsh, 2009, p.86). Em
definição de Mignolo, o decolonial “significa pensar a partir da exterioridade e em uma
posição epistêmica subalterna vis-à-vis à hegemonia epistêmica que cria, constrói um
exterior a fim de assegurar sua interioridade” (2008, p.305). A ênfase, portanto, reside
nas posições de exterioridade à modernidade.
O pensamento decolonial enfatiza os vínculos entre modernidade e colonialidade
que estruturam o capitalismo, entendido como o atual padrão de poder mundial e
iniciado com a constituição da América. Para Quijano, o padrão de poder
contemporâneo é conformado pela articulação de quatro elementos:
Destaco dois itens dessa definição, por considerá-los os de maior influência para
o pensamento sobre movimentos sociais a ser discutido adiante. O quarto ponto trata da
diferença epistêmica construída pela modernidade, calcada na rejeição de formas de
conhecimento distintas da racional-científica por ela afirmadas, e a partir dele é possível
entender do que se trata a diferença colonial. Quando o pensamento eurocêntrico se
estabelece como forma hegemônica de produzir conhecimento – pretendendo-se
universal, válido para qualquer grupo ou região do planeta –, outras formas de produzir
saber passam a ser entendidas como particulares, localizadas, tradicionais ou atrasadas.
A diferença torna-se uma falha, um erro, algo a ser superado. A perspectiva epistêmica
ocidental passa a ser, então, aquela a partir da qual “todas as outras crenças e
conhecimentos podiam ser descritos, classificados e hierarquizados”. O que não cabe
nessa perspectiva é rejeitado e considerado tradicional: “a tradição era a diferença
colonial necessária para afirmar e defender a ideia de modernidade” (ibid., p.676).
O primeiro item da definição de Quijano, por sua vez, demarca a importância
conferida às hierarquias raciais para a estruturação da colonialidade de poder que
organiza a classificação da população do planeta. A raça é elemento central para a
diferenciação entre “modernos” e “tradicionais” e para as múltiplas hierarquias que
disso decorrem:
5
Em textos posteriores de Quijano, fica claro que poder, trabalho, sexo,
subjetividade, autoridade pública, bem como seus recursos e produtos, estão
relacionados aos processos de colonialidade, não apenas a classificação racial
(QUIJANO, 2009, p.70). Assim, se bem compreendo, em definições posteriores a
colonialidade aparece como expressão vinculada a tudo o que a modernidade tenta
apagar para ocultar suas marcas de exploração, ainda que a raça seja a questão original e
proeminente.
A modernidade, com seu discurso universal, busca esconder a colonialidade,
oculta-a. Porém, não teria havido modernidade sem a colonialidade, pois elas são
mutuamente constitutivas. É por isso que Mignolo, ao afirmar que a colonialidade é a
face oculta da modernidade, sugere que este processo passe a ser denominado
modernidade/colonialidade, pois não pode haver modernidade sem colonialidade.
A colonialidade passa a ser também o lugar, o espaço, de onde é possível revelar
o projeto moderno e o que ele se recusa a ver. Espaço de pensar e enunciar “novos
projetos” (de vida, de mundo). Escobar (2010) aponta como a colonialidade assinala
dois processos paralelos: a tentativa de supressão dos conhecimentos e culturas
subordinados, que passam a ser vistos como conhecimentos particulares. Tais
conhecimentos, ainda que moldados por essa experiência, têm o potencial de converter-
se em projetos alternativos. É este o mecanismo que permite aos teóricos e teóricas
decoloniais conferir capacidade de ação, de resistência e de produção de conhecimentos
aos grupos localizadas nas fronteiras da modernidade/colonialidade, racializados. Em
outros termos, oque ocorre é
4
Quijano e Escobar são autores com longa trajetória de investigação sobre (e apoio a) movimentos
sociais na América Latina.
6
ou de “promoção de modernidades alternativas”, nos termos do segundo. Por vezes –
mas nem sempre – usam o termo movimentos sociais.
Quando partem para os exemplos e para os estudos empíricos, entretanto, esses
autores parecem seguir trilhas mais distintas. Em Mignolo (2008), movimentos sociais e
grupos sob o jugo da colonialidade aparecem como exemplos da decolonialidade em
marcha. Quijano analisa movimentos antiglobalização com entendimento parecido, mas
com ênfase em sua resistência ao padrão de poder capitalista. Escobar, por sua vez, se
debruça mais longamente sobre a questão dos movimentos sociais. Entendo que essa
característica de seu trabalho permita que aborde de maneira mais detida e detalhada o
sentido da ação dos sujeitos racializados (indígenas, negros) e dos movimentos em torno
dos quais se organizam.
Nas próximas páginas, pretendo aprofundar este argumento apresentando alguns
exemplos, entre muitos outros possíveis, de como grupos étnicos, movimentos sociais e
organizações de movimentos sociais – e, mais raramente, ONGs – vêm sendo citadas
como agentes da descolonização. Sugiro haver, dentro da teoria decolonial, duas
respostas para a pergunta sobre quem são os sujeitos capazes de realizar o trabalho de
decolonização e como o estão organizados. Chamo a primeira abordagem de
“movimentos como o pensamento decolonial em marcha” e a segunda de “movimentos
como produtores de modernidades alternativas”.
Não é meu objetivo, aqui, colocar os autores em oposição, tendo em vista que
eles convergem na compreensão teórica geral da colonialidade, mas apontar que, nesse
tema específico, suas análises trilham caminhos distintos.
7
para a reprodução da morte (...) estão ganhando terreno (MIGNOLO, 2008,
p.296).
8
da ya en varias formas semióticas paralelas y complementarias a
movimientos sociales que se mueven en los bordes y en los márgenes de las
estructuras políticas (estados, partidos políticos) y económicas (explotación,
acumulación, opresión) (LEYVA, 2009, p.113).
Note-se que o autor emprega o termo movimento social, ao qual seu fazer
acadêmico/intelectual é paralelo e complementar. Também preocupado com questões de
construção de conhecimento, ele enfoca a necessidade de pensar, imaginar e atuar além
de categorias da modernidade/colonialidade, aceitando outras formas de pensamento, de
teoria política, de política econômica, de ontologia. Usa, a certo ponto, o termo "grupos
organizados em luta", termo emprestado da "antropologia descolonizada ativista".
Em abordagem que considero similar por considerar os grupos em questão como
expressão da decolonialidade ao questionarem o capitalismo neoliberal, situaria o
trabalho de Quijano (2009)5. Em texto sobre o imaginário anticapitalista, esse autor trata
da resistência à globalização imperialista e cita mobilizações dos anos 80 e 90 que,
apesar dos impulsos diferentes, marcaram o Brasil, a Argentina, o Peru, o México a
partir de Chiapas, a Venezuela desde o Caracazo, as lutas na Bolívia e Equador e,
finalmente, o Fórum Social Mundial, como exemplo de "resistência [que] se massifica e
globaliza", de uma "nova consciência rapidamente formada entre trabalhadores e jovens
de classes médias em curso de inestabilização e desintegração (QUIJANO, 2009, p.65).
Para o autor, tais exemplos mostram que a luta contra a globalização do atual padrão de
poder também se globalizou. Apesar do quadro econômico e social negativo que
encontra na América Latina, Quijano percebe a existência de um novo imaginário
histórico em processo de construção contra o padrão de poder colonial-capitalista.
Em introdução a livro sobre política na América Latina, no qual também está o
texto citado de Quijano e que reúne artigos de diversos autores e autoras decoloniais,
Hoetmer (2009, p.12) fala em intensificação das lutas sociais no planeta, marcadas pelo
questionamento ao capitalismo neoliberal. Nos exemplos, cita de levantes indígenas na
Bolívia e Equador, o processo do Fórum Social Mundial, protestos questionando OMC,
FMI e Fórum Econômico Mundial. Como reação à onda neoliberal na América Latina,
cita processos de mobilização social protagonizados por indígenas, movimentos de
bairros, mulheres, mas também ocupações de terra, os Zapatistas e a construção de
espaços políticos autônomos que disputam pretensões hegemônicas do imaginário
neoliberal, etc. O autor ressalta a construção de alternativas desde abajo é
profundamente cultural e depende de outras concepções de práticas sociais de
democracia, de autonomia, de corpo, de natureza e de território, em abordagem
inspirada em Alvarez, Dagnino e Escobar (2008). Segundo Hoetmer, “em movimentos e
lutas ao redor do planeta se construíram outras relações sociais, modelos econômicos,
direitos individuais e coletivos, e práticas de democracia que dão pistas para processos
de transformação social maiores” (ibid., p.13).
Como já adiantei na introdução, sinto falta, nessa literatura, de reflexões sobre
como esses grupos constroem sua ação no espaço de exterioridade; quais resistências
são possíveis, quais não são; quais foram os mecanismos de sobrevivência utilizados ao
longo dos séculos – os silêncios, os recolhimentos, as atividades ocultas para fugir dos
olhos do Estado. E também as formas de organização, de resistência, os embates. Os
sujeitos que desafiam a modernidade/colonialidade são sempre grupos étnicos? Como
abordar os sujeitos e sua ação a partir de perspectiva decolonial? Quais conflitos
internos emergem? Será que é possível situar como exemplos da decolonialidade em
5
Entendo ser ainda necessário incluir outros trabalhos do autor, por sua importância na teoria latino-
americana em geral e na teoria decolonial.
9
marcha todos os grupos étnicos e indígenas, tendo eles ou não assumido o discurso da
modernidade/colonialidade/descolonialidade? Até que ponto a teoria decolonial busca
generalizações nesse sentido? Por outro lado, ao não descer à especificidade dos casos, o
que se perde? Será que na verdade a teoria decolonial prefere desconstruir a ideia
(originalmente externa) de indígenas e trabalhar simplesmente com cada povo, por
exemplo? Ou seria o caso de simplesmente perguntar como a colonialidade opera em cada
caso? Será que as poucas respostas encontradas a todas essas perguntas são indicativo do
que Rosa (2013) denomina déficit sociológico da teoria decolonial?
10
estão conectadas questões globais, do capitalismo, as questões nacionais e as locais,
situadas no espaço concreto.
É interessante notar que o diálogo com a ideia de subalternidade continua, pelo
menos para alguns autores – como vimos, ela remete a uma das origens do grupo
Modernidade/Colonialidade. Em obra de 2010, Escobar retoma esse conceito. Chama as
lutas subalternas de “estratégias baseadas-no-lugar, mas transnacionalizadas” (2010,
p.31). No livro Territórios da Diferença, ele trata do caso do Processo de Comunidades
Negras (PCN), da costa do Pacífico colombiano.6 O livro é uma etnografia das práticas,
estratégias e visões de mundo do PCN, preocupado em articular os conhecimentos por
eles produzidos com os conhecimentos que derivam de lugares acadêmicos, ainda que
considere embaçadas as fronteiras entre ambos.
6
Na obra, Escobar não trabalha apenas no marco decolonial, mas convoca em diálogo vários ramos teóricos que,
segundo este autor, tem em comum a preocupação em problematizar a produção de conhecimento. Ele chega a
chamá-los de um movimento social dentro da academia por um tipo diferente de produção de conhecimento. São
eles: “modernidade/colonialidade /descolonialidade”, “política de lugar”, “economias diversas”, “culturas da
economia” , antropologias do mundo e uma análise particular de movimentos sociais (trabalho em conjunto com
Sonia Álvarez y Evelina Dagnino, além de seu grupo de pesquisa na universidade Chapel Hill).
11
3. Movimentos sociais como produtores de conhecimento e uma tentativa de
definição decolonial
12
situação de colonialidade, mas aqueles que ativamente questionam as bases da
modernidade/colonialidade, implícita ou explicitamente. Estes grupos
(a) produzem conhecimento e ele deve ser levado em conta nas análises;
(b) têm o potencial de produzir modernidades alternativas, dado que estão em constante
contato com a modernidade e dada sua localização nos limites da
modernidade/colonialidade;
(c) atuam, simultaneamente, em múltiplas esferas – local, nacional, transnacional –
desde que a modernidade/colonialidade se instalou no continente.
Essa tentativa de definição procura incluir todos os “outros” da modernidade
(sujeitos racializados, subalternizados e subalternizadas, mulheres, não brancos e
brancas, não heterossexuais, não cristãos, etc...).
Entendo que essa definição, com as possibilidades que abre e os limites que
carrega, difere de outras, comuns entre estudiosos de movimentos sociais e ação
coletiva, seja as que os definem a partir de suas formas de ação (McAdam, Tarrow e
Tilly, 2001), a partir de sua capacidade de transformação (Melucci, 1996), como
campos ou domínios discursivos e político-culturais (Alvarez, 2009), ou como redes de
limites difusos que incidem em processos de mudança social (Mendiola, 2002 e Flórez,
2015). Pode, porém, entrar em diálogo com todos e cada um deles.
7
Mesmo sem discordar da força que essa narrativa tenha sobre a ação dos movimentos, não estou segura
de que as teorias de origem norte-americana tenham preocupação central com a modernidade, tampouco
com a superação da modernidade pelos movimentos sociais. Talvez o mais importante, no caso delas,
seja que o entendimento de movimentos sociais é profundamente baseado nas experiências da
Europa e dos EUA, e que seria necessário se perguntar em quais condições suas definições e
categorias podem ser utilizadas em outras regiões. O próprio Tilly (em TILLY E WOOD, 2013)
tem ressalvas a universalizar sua definição, de forte base histórica.
13
devido a que a região ainda carece do solo moderno onde a fincar. Em
poucas palavras, consideram que a análise de tais movimentos não pode
mostrar os limites de uma modernidade que ainda não é conhecida pelas
sociedades de onde emergem (FLÓREZ, 2015, p.20).
Teria que se pensar como seguir valendo-se das ricas ferramentas que
provêem (organização racional, estrutura de oportunidades políticas, aliados
influentes, marcos cognitivos, identidade coletiva, campos
pluriorganizacionais, redes submersas, etc.), mas desprendendo deles seus
parâmetros restritivos de análise (dispor de recursos ‘básicos’ e ‘suficientes’
para ser mobilizados, contar com um cenário político ‘normal’, cobrir
‘primeiro’ as condições materiais e econômicas de existência e depois as
culturais e simbólicas, ter ‘absoluta’ e ‘contínua’ autonomia frente ao Estado,
etc) (FLÓREZ, 2015, p.74).
Ela propõe, então, diálogo com as teorias, “reconhecendo seu valor heurístico e
analítico e, ao mesmo tempo, seus limites” (ibid, p.26). Lembra, ademais, que face às
dificuldades de emprego das teorias existentes para compreender as experiências latinas,
vêm surgindo enfoques diversos, sejam antropológicos e que incluem ativistas como
produtores de conhecimentos e a disposição política dos investigadores, gerando
concretamente teorias e métodos de etnografias de redes, etno-cartografias, cartografias
de conhecimentos, a política cultural, antropologia ativista ou militante, entre outras.
Como dialogar, então, reconhecendo os limites das teorias – inclusive da
decolonial? Não pretendo, aqui, ter condições de propor qualquer conclusão teórica para
essas questões. Possivelmente, são questões melhor resolvidas nas práticas de pesquisa.
Antes de terminar, porém, gostaria de revisitar duas abordagens, ambas de
origem feminista, sugerindo que também podem trazer contribuições importantes para
pensar resistências, movimentos sociais e ações coletivas, a partir de uma abordagem
decolonial. Uma delas, Karina Bidaseca, dialoga intensamente tanto com os decoloniais
como com o Grupo de Estudos Subalternos, e a outra, Sonia Alvarez, insere-se no grupo
que pensa cultura e política nos movimentos sociais latino-americanos.
14
Bidaseca (2010) trabalha com o termo pós-colonial (não decolonial), e discute
igualmente autores considerados pós-coloniais (Fanon, Memi, Guha, Spivak, - bem
como negras pós coloniais como bel hooks e Anzaldúa) e decoloniais (Quijano, Dussel,
Mignolo). Ela identifica que, na América Latina, o sujeito pós-colonial, que permanece
colonizado, é “migrante, diaspórica/o, estrangeiro, indígena, afro-descentente ou
simplesmente ‘o Outro’ que irrompe na cena das metrópoles” (BIDASECA, 2010,
p.18). Em outro trecho, afirma estar interessada nas “histórias subalternas dos
imigrantes, dos colonizados, das mulheres” (ibid., p.19). Em diálogo com Spivak,
Bidaseca enfatiza heterogeneidade da subalternidade contemporânea:
8
A meu entender, com a apresentação em “palpites” das aproximações teórico-conceituais e analíticas, a
autora parece quere evitar trabalhar com uma teoria com fronteiras muito bem definidas e
universalizantes, coerente com sua postura feminista.
15
movimentos sociais. O primeiro palpite refere-se ao neoliberalismo não ser apenas um
projeto econômico, mas político e cultural, o que torna a cultura um terreno crucial de
lutas, tendo em vista que política e cultura constituem-se mutuamente; no segundo,
Alvarez sustenta que os movimentos sociais não devem ser reduzidos aos protestos
políticos; o terceiro, que “os movimentos sociais podem ser considerados campos ou
domínios político-culturais”, formados na sociedade civil, nos partidos, Estado,
academia, meios de comunicação, etc.; e o quarto discute a Agenda da Sociedade Civil
(ALVAREZ, 2009, p.25).
Detenho-me nos dois palpites iniciais. No primeiro, ela define o neoliberalismo
como multidimensional, incluindo as dimensões de cultura e política, o que tem como
conseqüência a necessidade de tornar mais visíveis as práticas dos movimentos em suas
lutas materiais, políticas e culturais. A cultura, nesse entendimento, é dimensão presente
em instituições econômicas, sociais e políticas. Ela é, em si, política, porque os
significados que carrega constituem os processos políticos, de definições de poder, que
ocorrem na sociedade e no Estado. Daí o conceito de política cultural ou política da
cultura (cultural politics), de Alvarez, Dagnino e Escobar (2008). Entendo que essa
aposta de Alvarez nos ajuda a evitar pensar os grupos organizados na
modernidade/colonialidade apenas como resistência à colonialidade, mas também em
seus aspectos culturais e na interação entre o cultural e o político. Isso está em estreito
diálogo com Escobar – ambos autores, de fato, escrevem e pesquisam juntos há décadas.
O segundo “palpite” é que os movimentos não existem apenas quando
protestam, sendo estes apenas a ponta de um processo de fluxos e refluxos. “Abaixo,
atrás, pelos lados, acima dos protestos há formas e expressões de militância, de
intervenção política-cultural, que são mais o menos constantes, ainda que menos
visíveis, e que fazem possíveis os chamados ciclos de protesto dos movimentos”
(Alvarez, 2009, p.30). Essa segunda aposta, me parece, nos recorda que há mais
movimento do que apenas nos episódios marcantes que são constantemente citados
pelos decoloniais: que entender a emergência, a capacidade de desafiar a colonialidade,
as intenções mesmas de desafiar a colonialidade, passaria por observar esses grupos em
sua formação, desenvolvimento, conflitos, dúvidas, não apenas nos momentos de maior
expressão. Isso também já faz Flórez (2015), em livro que observa movimentos a partir
de suas trajetórias de vitórias e derrotas, de consensos e dissensos, que lhes são
constitutivos.
Ainda que ciente do esforço dos teóricos e teóricas decoloniais em se afastar das
bases teóricas “ocidentais”, creio ser interessante perceber como o resgate de alguns
debates acumulados no continente podem ser de grande valia se o que se busca é um
olhar mais detalhado para os processos de resistência e de organização coletiva que se
desenvolvem por aqui.
5 Considerações finais
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mulheres, da população LGBT, de pescadores, de trabalhadores urbanos, e menos ainda
citações a, por exemplo, catadores de lixo, prostitutas, usuários de drogas, e outras
populações também excluídas da modernidade. Haveria de se pensar por que esses
grupos estão mais distantes do radar da modernidade/colonialidade e o que isso diz
sobre a teoria.
Nas discussões aqui apresentadas, espero ter tratado, ainda que rapidamente, de
algumas possibilidades, limites e desafios para a agência dessas pessoas e grupos a
partir dos conceitos da teoria decolonial. Certamente há muito mais acúmulo sobre
movimentos sociais, ação coletiva e processos de resistência na teoria decolonial do que
identifiquei até agora, já que me ative principalmente a autores reconhecidos no campo.
De toda forma, essa teoria tem muito a ganhar quando consegue olhar com mais atenção
e vagar a esses grupos e aos processos de resistência que engendram. A pergunta que
orienta esse artigo, então, talvez devesse ser recolocada: qual espaço da agência na
teoria decolonial?
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