Esta Mira
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RESUMO
O propósito deste trabalho é averiguar as probabilidades de resistência à psiquiatria (enquanto
um dispositivo biopolítico de governo das diferenças) presente nas falas e na existência da
personagem Estamira, reproduzidas no documentário homônimo. Através da perspectiva
analítica de Foucault, compreendo “diferenças” como as exceções, as fugas, os excessos, os
afrontamentos às normas disciplinar e biopolítica. A partir de Foucault, apresento também
considerações acerca da emergência de um governo das diferenças com a consolidação das
estratégias de normalização do biopoder. De maneira específica, destaco como se concretizou
um governo das diferenças através do dispositivo psiquiátrico. Em termos metodológicos,
utilizando as reflexões de Foucault e Butler, tomo “Estamira” como um documentário de
inspiração genealógica visto que permite a manifestação do discurso sujeitado e a apreensão
das condições precárias da personagem. Dessa forma, examino o conteúdo audiovisual do
documentário procurando descrever e analisar as sujeições e resistências de Estamira aos
governos religioso, familiar (como instância de normalização disciplinar do sujeito e como
instrumento da psiquiatria) e psiquiátrico de sua existência. Ao estabelecer-se em um lixão
(como um espaço heterotópico), essa mulher classificada como louca e diagnosticada como
esquizofrênica apresenta, de maneira paradoxal, uma resistência mais lúcida e crítica contra as
investidas do poder psiquiátrico.
1
Noção analítica utilizada por Foucault (2016c), dispositivo compreende toda uma rede heterogênea de práticas
de poder, de discursos, de instituições, de leis, de normas, dentre outros elementos.
2
Para Foucault, a modernidade pode ser descrita: a) em um ângulo histórico, a partir do final do século XVIII; b)
em uma perspectiva política, a partir do exercício do biopoder; c) em um ponto de vista epistêmico, com a
constituição das ciências humanas (CASTRO, 2009, p. 301).
3
Estudiosos da obra de Foucault – como Machado (2016, p. 32) e Castro (p. 264) – comumente dividem a sua
trajetória intelectual em três períodos: uma arqueologia dos saberes, das regras de enunciação e de circulação dos
discursos (anos 1960); uma analítica genealógica sobre os dispositivos de poder-saber que formam discursos e
sujeitos (anos 1970); a fase ética de problematização do sujeito e das práticas através das quais o ser humano
constituiu-se enquanto sujeito (anos 1980). Todavia, essa periodização não é suficientemente precisa na
articulação da produção de Foucault visto que as questões do poder, sujeito e discurso estão entremeadas nas
suas inúmeras análises, ainda que com distintos enfoques e abordagens em cada uma delas.
Por essa lógica, examino o conteúdo audiovisual do documentário, descrevendo e
analisando – com o apoio também das considerações de Giorgio Agamben (2010) e Peter Pál
Pelbart (2007) – as sujeições e as oposições de Estamira às tentativas de governo religioso, de
governo familiar e de governo psiquiátrico de suas condutas.
A despeito do tom um tanto absoluto na fala de Estamira (“Não vou ceder o meu ser a
nada”), é principalmente contra o dispositivo psiquiátrico, quando estabelecida no lixão –
enquanto um espaço heterotópico (FOUCAULT 2013a) –, que Estamira se mostra em uma
posição de resistência mais articulada, próxima até mesmo de uma atitude crítica
(FOUCAULT, 1990). Paradoxalmente, essa mulher rotulada de louca e diagnosticada como
esquizofrênica, parece apresentar maior lucidez na crítica ao governo psiquiátrico de sua
existência.
4
No curso de 1975-76, Em defesa da sociedade (1999), Foucault realiza uma autocrítica ao modelo binário da
guerra enquanto princípio de análise das relações de poder (utilizado nos estudos anteriores citados). Tal modelo
da guerra entre dois antagonistas seria insuficiente para compreender a multiplicidade das relações de poder, já
que as codifica, de forma excessiva, como violência, enfrentamento, rivalidade (PELBART, 2017, p. 14).
dimensões do biopoder (a disciplina, individualizante; a biopolítica, massificante), a vida
humana foi inserida em uma série de mecanismos de poder que possuem como objetivos a
maximização das forças individuais e a otimização da vida coletiva.
Desde os fins do século XVII, a primeira interface do biopoder – a anátomo-política
enquanto sistema generalizado de poder – submeteu o corpo individualizado em seus detalhes
(hábitos, movimentos, comportamentos) às práticas disciplinares (como o controle do tempo,
a distribuição espacial dos corpos, a vigilância hierárquica e contínua) no interior de
instituições (a prisão, o hospício, a fábrica, a escola, etc.). Sujeição disciplinar que objetivava
adestrar os corpos, criando indivíduos úteis e dóceis: úteis na medida em que deveriam ser
formados, corrigidos, receberem certas habilidades e aptidões, serem qualificados como
corpos capazes de trabalhar; dóceis, uma vez que deveriam se tornar mais obedientes e
disciplinados (1987, p. 157).
Na implementação das tecnologias disciplinares, Foucault (2010a, p. 43) destaca
também a elaboração de uma série de normas (de modelos considerados como “ótimos”) que,
como mecanismos de poder, possuíam a finalidade de coerção e correção dos indivíduos e
grupos nos diferentes domínios em que elas se aplicavam. A partir das normas, o olhar
normalizador do exame – constituindo saberes como a psiquiatria, a criminologia, a
pedagogia – compôs um sistema exaustivo de classificação e hierarquização das diferenças
individuais (os “normais” e os “anormais”, os “aptos” e os “inaptos”).
Já na biopolítica, a partir do final do século XVIII, a vida – em sua multiplicidade de
circunstâncias sociais – foi reduzida à dimensão biológica de espécie humana (1999, p. 289) e
circunscrita à noção de população enquanto o conjunto plural de corpos vivos (2008, p. 28).
Dessa forma, em sua interface biopolítica, o biopoder tomou, como objeto, os
fenômenos biossociológicos da espécie humana como as doenças, a natalidade, a mortalidade.
Tratava-se, assim, de buscar melhorar as condições de existência de uma população,
procurando aumentar a vida, visando “intervir para fazer viver, e na maneira de viver, e no
‘como’ da vida” (1999, p. 295). Nesse sentido, ao longo do século XVIII, implementou-se
uma série de tecnologias biopolíticas como as campanhas médicas de inoculação e de regras
de higiene, os mecanismos de controle do sexo e sua função reprodutiva (mirando tanto a
regulação do tamanho da população, como a proteção da sociedade contra ameaças
hereditárias), a vigilância dos indivíduos perigosos, a caça aos vagabundos e mendigos.
Para dar conta, em nível global e na fineza dos detalhes (2006b, p. 302), dos múltiplos
domínios da vida, a biopolítica, por um lado, consolidou uma expansão e multiplicação das
artes de governar5 (1990, p. 3): governo da população pela economia política, governo das
crianças pelos professores, governo do indivíduo pela família, governo dos doentes pelo
médico, governo dos ilegalismos pelo sistema prisional. Através de um neologismo, Foucault
designa esse processo de desenvolvimento de inúmeros dispositivos específicos de governo e
de saberes sobre a população de “governamentalidade” (2006b, p. 303). Por outro lado, a
biopolítica levou também a uma organização e centralização estatal dos aparelhos de governo,
a uma tendência de “estatização do biológico humano” (1999, p. 286), que implicou numa
“governamentalização do Estado” (2006b, p. 384) como o processo no qual o Estado passou a
coordenar os governos de múltiplos aspectos micropolíticos da vida.
Como discursos de saber da biopolítica, constituiu-se a demografia, a estatística, a
economia política e a medicina social. Discursos que ocupavam-se do conjunto da população
e seus fenômenos e fundamentavam procedimentos de normalização – distintos da
normalização disciplinar (2008, p. 83) – que visavam coeficientes gerais normalmente
esperados sobre a população e suas secções internas (como taxas de mortalidade e de
morbidade de grupos específicos, de ocupações específicas que não colocassem em risco a
vitalidade e a força produtiva de uma população).
Enquanto tecnologias que visavam fazer viver, pode-se considerar que, na efetivação
da biopolítica ainda nos séculos XVIII e XIX, constituiu-se um governo das anomalias, das
causas de “diminuição do tempo de trabalho, baixa de energias, custos econômicos” (1999, p.
290), das doenças como fatores de “morte permanente, que se introduz sorrateiramente na
vida, a corrói perpetuamente, a diminui e a enfraquece” (p. 291). Consequentemente, as
incapacidades biológicas diversas foram assumidas como ameaças à vida e os doentes, os
sujeitos na velhice e qualquer perigo interno em relação à segurança do conjunto (loucos,
degenerados, criminosos, mendigos) foram tomados como diferenças a serem governadas,
rejeitadas, expulsas e, no limite, deixadas morrer.
Dessa forma, no contexto de uma sociedade de normalização (1999, p. 302) que
congrega as normalizações disciplinar e biopolítica, deixar morrer é resultado de uma gestão
calculista da vida que, para maximizar a existência biológica de uma população, distribui
“vivos em um domínio de valor e utilidade” (1985, p. 157) e chega até mesmo a planejar e
exigir a morte de outros.
5
Emergência de inúmeras artes de governo que ocorreu a partir da generalização extra-religiosa do poder
pastoral no século XV(FOUCAULT, 1990). Em vários trabalhos (1990, 2006b, 2008), Foucault realiza uma
genealogia do poder pastoral enquanto governo das condutas de todos e de cada um, bem como da apropriação e
transformação dessa forma de governo pelo Estado moderno.
Todavia, é necessário sublinhar que as análises de Foucault referem-se a uma
sociedade de normalização e não a uma sociedade normalizada (CASTRO, p. 309). Ou seja, a
normalização diz respeito ao modo de funcionamento e a finalidade do biopoder e, ainda que
tenham atingido uma extensão considerável, os procedimentos de normalização nem por isso
deram-se – ou se realizam atualmente – de forma absoluta, sem resistências, críticas e
movimentos de luta. Existiram – e sucedem-se – fugas e restos às tentativas biopolíticas de
totalização da massa de sujeitos à população. Ocorreram – e ainda se desenrolam – escapes às
normas disciplinares e biopolíticas: a própria norma “traça a fronteira do que lhe é exterior (a
diferença com respeito a todas as diferenças), a anormalidade” (CASTRO, p. 310).
Efetivaram-se e realizam-se críticas e questões ao fenômeno da governamentalidade: como
não ser governado dessa ou daquela forma? (FOUCAULT, 1990).
Em suma, da consolidação de uma sociedade da normalização emergiu também um
governo das diferenças, dos que resistem, insubordinam-se e escapam tanto às normas
disciplinares quanto às biopolíticas.
6
A teoria da degenerescência, sistematizada pelo médico franco-austriáco Bénédict Morel (1809-1873), concebia
as doenças mentais a partir da noção de degenerescências – os supostos desvios da natureza biológica original do
homem, a progressiva degeneração mental hereditária entre as gerações.
7
No curso Em defesa da sociedade (1999), Foucault descreve como esse racismo interno transformou-se em um
mecanismo que permite ao Estado, no biopoder, reativar o direito soberano de matar ou expor à morte (o
anormal, o desviante, o incorrigível, os que podem constituir riscos ao futuro da sociedade e da espécie humana).
III) PERSPECTIVA METODOLÓGICA
8
Apesar das diferenças entre a problemática do reconhecimento (com as possibilidades inerentes de qualificação
da vida) proposta por Butler (2015) e a questão da identificação singular através das relações de poder que
tombam sobre o sujeito, descrita por Foucault (2006a). Pesquisar verificação em Foucault!
9
Butller (2015) realiza uma distinção entre apreensão e conhecimento: apreender implicar reconhecer o outro
por uma forma não conceitual de conhecimento, através do sentir e do perceber (p. 18).
conjunto com trabalhadores da saúde mental (AMARANTE, 1998). Essa legislação tornou-se
a referência da política nacional de serviços psiquiátricos, consolidando a reorientação da
prática psiquiátrica no país10 através de propostas de fechamentos de manicômios e a
implantação, nos anos seguintes, de serviços substitutivos de atenção ambulatorial aos
doentes mentais, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS).
As primeiras cenas do documentário, em preto e branco e acompanhadas de uma
música em tom lamurioso, apresenta-nos a área externa de um simples barraco, coberto de
telhas de zinco e com paredes de papelão e lona. Ao seu redor, perambulam cachorros. Ao
longo de outras passagens, o documentário retrata o interior dessa morada: garrafas vazias
jogadas ao chão de terra batida, uma faca sem cabo, utensílios domésticos enferrujados, um
enfeite em forma de lua pendente do teto, um boneco do Batman também como adorno, uma
camisa do Flamengo pendurada na parede e um livro religioso, “O Reino de Deus, Nosso
Iminente Governo Mundial”. Aqui reside Estamira, nesse barraco por ela construído a partir
do que retirava do lixão em que trabalha há cerca de duas décadas: “Não caguei essa casa,
não. Não foi cagada, não. Foi trabalhado, suado! Dia e noite e no sol e na lama.”
(ESTAMIRA, 2006).
A história dessa personagem – mulher, negra, miserável, portadora de transtornos
psíquicos, catadora de lixo, idosa – nos é então apresentada ao longo do filme. As toneladas
de lixo que vemos chegar diariamente ao aterro correspondem ao peso das violências que
tombaram sobre Estamira, narradas por ela e por seus três filhos (Hernani, Carolina e Maria
Rita): órfã de pai aos dois anos, a mãe também portadora de transtornos mentais – “Coitada
da minha mãe. Mais perturbada do que eu. Bem, eu sou perturbada, mas lúcida e sei
distinguir a perturbação. Entendeu como é que é? E a coitada da minha mãe não conseguia.
Mas também pudera, eu sou Estamira!”–, abusada sexualmente na infância, prostituída na
pré-adolescência, traída duas vezes pelos maridos, vítima de violência doméstica, viveu na
rua, estuprada, separada de uma filha contra a sua vontade, estuprada novamente.
10
Sobre a introdução da psiquiatria e do asilo medicalizado no Brasil em fins do século XIX, pode se conferir a
obra de Roberto Machado e seus colaboradores (1978). Em trabalho anterior (SOARES, 2017), procurei também
demonstrar, através de revisão bibliográfica, como no momento da introdução e implementação da psiquiatria no
Brasil (entre fins do século XIX e início do XX), as figuras – de certa forma – representantes das diferenças
foram capturadas na trama psiquiátrica: indivíduos das camadas populares; a mulheres que destoavam, em seus
comportamentos, da norma sexual monogâmica e patriarcal; os homossexuais; os anarquistas e os negros.
11
Na transcrição, mantive as falas de Estamira na forma como foram enunciadas. Alterar sua fala seria submetê-
la aos enquadramentos de linguagem e de compreensão da, assim denominada, norma culta da gramática.
ele pra comprar uma sandália pra mim... pra mim ir na festa que eu queria
a sandália. Ele falou que só comprava se eu deitasse com ele. É, eu não
gosto do pai da minha mãe, porque ele me pegou com 12 anos e me trouxe
pra Goiás Velho. E... lá era um... era um bordel. É... Era um bordel, sabe, e
eu prostituí lá. Era da filha dele. Aí, o pai do Hernani, ele me conheceu lá...
aonde meu avô me deixou, lá no bordel... aí, eu já tinha 17 anos. E gostou
demais de mim e deu no meu pé e arrumou uma casa e pôs eu dentro da
casa. Mas o pai do Hernani, ele era muito cheio de mulher. Eu peguei e não
aguentei. Larguei tudo dentro da casa e só apanhei o menino. Apanhei o
menino e vim embora pra Brasília. Eu tava lá na casa da tia, lá em Brasília
e apareceu o pai da Carolina lá, o italiano, e levou eu na casa dele. Aí deu
certo e, depois, nós foi morar junto. E ele também é cheio de mulher. Eu vivi
com ele 12 anos.
12
Nos rastros de Foucault, o filósofo italiano Giorgio Agamben (2010) denomina o que resta da produção
biopolítica de população como a “fratura biopolítica fundamental” (p. 173) de dois polos irreconciliáveis:
“Povo” como o corpo político integral e incluído (de certa forma, próximo à noção de população em Foucault) e
“povo” como a pluralidade dos corpos rejeitados.
devolvo o teu trato. E faço questão de devolver em triplo. Onde já se viu
uma coisa dessa? A pessoa não pode andar nem na rua onde mora, nem
trabalhar dentro de casa e nem trabalho nenhum, em lugar nenhum. Onde o
senhor já se viu? Que Deus é esse? Que Jesus é esse, que só fala em guerra
e não sei o quê? Não é ele que é o próprio trocadilo? Só para otários, pra
esperto ao contrário, abobado, bestalhado.
“A minha missão é revelar, seja lá quem for, doa a quem doer. A verdade é
nua e crua. Ninguém errado gosta da verdade. E eu via verdade. Eu faço o
máximo para não machucar quem quer que seja. Agora, se quem quer que
seja sente-se machucado é porque está errado”.
“A única sorte que eu tive foi conhecer o Sr. Jardim Gramacho, o lixão”
Muitas passagens do documentário possuem, como cenário, o lixão de Jardim
Gramacho, espaço de trabalho e convívio de Estamira. Localizado no município de Duque de
Caxias e às margens da Baía de Guanabara, o aterro foi fechado em 2012 após mais de três
décadas em operação. Esse lixão chegou a ser considerado o maior aterro da América Latina
quando recebia, em média, mais de 7.000 toneladas de lixo por dia provenientes da cidade do
Rio de Janeiro e contava com cerca de 1.600 catadores disputando o lixo (MARTÍN, 2017).
No filme, há vários enquadramentos em que figuram as condições do lixão: montanhas de lixo
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A noção de parrhesia da antiguidade grega pode ser traduzida como a fala franca, a coragem de enunciar a
verdade em uma situação de risco. Foucault analisa, em seus trabalhos dos anos 1980 (2013b, 2017), os
empregos e as práticas de parrhesia no mundo greco-romano (a passagem de uma parrhesia política para uma
parrhesia ética). Sobre as aproximações entre Estamira e a prática parresiástica cínica pode se conferir o trabalho
de Mansanera (2015).
e de sujeira; caminhões descarregando mais detritos; urubus pairando; poças de chorume;
vários trabalhadores do local em vestes maltrapilhas garimpando, com as próprias mãos, os
amontoados de lixo.
Eu não gosto de falar lixo, não, né? Mas vamos falar lixo. É cisco, né? É
caldinho disso. É fruta, é carne, é plástico fino, é plástico grosso... É não sei
o que lá mais... E aí vai azedando, é laranja, é isso tudo... E aí faz esse
porque, sabe? E aí, imprensa, azeda, fica tudo danado e faz a pressão
também. E aí vem o sol e esquenta e mais o fogo de baixo...
A potência de vida em Estamira também permite que ela ressignifique esse lugar. Não
somente como espaço para o lixo, mas, aos olhos de Estamira, o aterro configura-se como um
local de “transbordo” – “Você sabe o que é um transbordo? Bem, toda coisa que enche,
transborda!” –, uma área que recebe os “descuidos”:
Do lixão de Jardim Gramacho, além de construir também sua morada, Estamira retira,
do lixo, o seu luxo:
Aí foi estrupada uma vez no centro de Campo Grande. Foi estrupada uma
segunda vez aqui nessa mesma rua que eu moro. Na época, não tinha nem
luz aqui. Aí falou, né, que... o cara fez sexo anal com ela e ela gritando:
“Para com isso, pelo amor de Deus!”. “Que Deus? Esquece Deus!”, o
estrupador falava pra ela. E fez sexo de todas as formas que quis com ela e
depois mandou ela ir: “Se adianta, minha tia, se adianta”. Mandou embora.
Aí, chorava, contava esse caso... Ela é muito revoltada, né? Nesse tempo ela
não tinha alucinações nenhuma. Não tinha perturbação nenhuma. Muito
religiosa. Acreditava que Deus ia... Que aquilo que ela tava passando tipo...
Era uma provação.
Já me bateram com pau pra mim aceitar Deus. Mas esse Deus desse jeito,
esse Deus deles, esse Deus sujo, esse Deus estrupador, esse Deus assaltante,
de qualquer lugar, de tudo quanto é lugar, esse Deus arrombador de casa...
Nem a minha carne picadinha de faca, de facão, de qualquer coisa... Eu não
aceito, não adianta. Eu sou a verdade, eu sou da verdade. Os home é
superior na terra, o bicho superior. Home também é bicho, mas é superior.
Trocadilo fez isso. Agora vou revelar. Quem quiser me matar pode matar.
Não mataram Jesus? Jesus não é bom demais agora depois que ele morreu?
Mas eu não, comigo é esquisito.
Seu filho Hernani acredita que a loucura de Estamira decorre de uma incorporação
demoníaca, de uma possessão maligna, o que explicaria suas falas hereges e suas blasfêmias:
“É louca, né? Tem o laudo até do médico. Mas, ela espiritualmente, ela parece... a pessoa,
acredita ou não acredita, é influência demoníaca, demônios, né?”. E é a partir dessa
concepção religiosa dos males de Estamira que decorre conflitos entre mãe e filho:
Hernani: “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas... cada um se
desviava pelo seu caminho, mas o Senhor fez cair sobre eles... a iniquidade
de todos nós”.
Estamira: Credo em cruz, credo em cruz... Entendeu? O meu ouvido não é
privada, otário! (...)
Hernani [se despedindo da mãe após os insultos]: Bom, Shalom Adonai.
Estamira: Vai tomar no rabo! Vai tomar no seu cú! Entra dentro do cú da
desgraça, da sua desgraça! Esse pastor todinho é vigarista, vadio e
vagabundo. Todos eles! Pior do que os padres!
“Mãe, sai dessa vida lá do lixão. Lá é difícil. A pessoa tem que dormir no relento...”
A instituição familiar esta presente na existência de Estamira. Em vários momentos, o
documentário exibe a personagem acompanhada, em sua casa, de seus familiares (os três
filhos, os netos e outros agregados). Apesar das resistências e conflitos entre Estamira e seus
filhos, há até mesmo cenas de troca de afetos e carinhos (em especial, entre ela e a filha
caçula). Já enquanto modalidade de governo que busca dirigir as condutas de Estamira, a
família pode ser analisada, no filme, como instância de normalização disciplinar do sujeito e
como instrumento do dispositivo psiquiátrico.
No âmbito da família como instituição disciplinadora do indivíduo (em seus
comportamentos e formas de agir), há uma passagem na qual sua filha Carolina narra a
insistência da família para que Estamira largasse a vida errante, suja e livre no lixão:
Carolina: Mas ela morrerá feliz se for no meio da rua do que numa clínica
lá. Ela sabe... Ela prefere viver dois anos livre do que viver cinco anos...
bem, trancada num lugar, você sabe disso.
Hernani: Você não está me entendendo. Isso aí... não vou dizer que ela vai
ficar a vida, o resto da vida... o pouco ou, sei lá, o muito que ela tiver. Ela
vai ficar até pelo menos ela... entendeu? Ela... ela... eu acho mais o
problema dela é sistema nervoso.
Carolina: Mas só que pra ficar lá, teria que ser dopada, amarrada. Pra
mim... ele é mais forte que eu nesse caso, se precisar de amarar e dopar é
com ele mesmo. Eu já não... Eu acho judiação, não tenho coragem de
deixar, entendeu?
“Se eu beber diazepam... se eu sou louca, visivelmente, naturalmente, eu fico mais louca!”
Estamira submete-se a certas prescrições do governo psiquiátrico de sua existência: há
cenas nas quais ela frequenta um CAPS; onde fala a respeito do uso de medicações; em que
apresenta disartria (“língua enrolada”) e tremores pelos efeitos colaterais de medicamentos,
“E eles tudo é dopante, esses remédio. Eu acho que é por isso que eu tô com a língua assim”;
quando lê, com dificuldades, o atestado do seu diagnóstico conferido pelo saber psiquiátrico,
“Atesto que Estamira Gomes de Souza... portadora de quadro... é... psicótico de evolução...
crônica... alucinações... auditivas... ideias de... influências... discurso místico... deverá
permanecer em tratamento psiquiátrico...”.
No entanto, apesar da sujeição a algumas práticas médico-psiquiátricas, Estamira
também resiste ao assédio de outras investidas do dispositivo psiquiátrico. Em uma passagem
do documentário, há o relato de uma tentativa, pelo filho e pelo ex-marido, de internação de
Estamira. Mas diferente de quando se curvou ao desejo do marido na internação de sua mãe e
agora vivendo no aterro enquanto seu espaço heterotópico, Estamira insurgiu-se de forma
violenta, como conta o filho:
Seu Leopoldo, o falecido Leopoldo Fontanive, né? Meu pai de criação. Ele
não deu dinheiro nenhum pra ajudar minha mãe, não. Então aí eu fiquei
ligando a semana toda pra esses hospital, né?...Que trata da cabeça das
pessoas, vê se tinha vaga pra poder internar ela, eu tinha combinado com
ele assim. Aí fui no hospital lá de Caxias... Fui primeiro com o velho, né?
Fui no carro dele. Aí consegui uma ambulância. Aí fomos prá lá pro lixão.
Aí, chegou lá, até os bombeiros estavam com medo de encostar a mão nela,
porque ela queria morder e tudo, começou a gritar nome de entidades de
macumba, né? E daquele jeito, chega espumando, né... parecendo bicho
mesmo.
A doutora passou remédio pra raiva. [Risos]. (...) Presta atenção nisso.
Olha, e ainda mais, eu conheço médico, médico, médico, médico mesmo!
Direito, entendeu? Ela é copiadora. Eu sou amigo dela. Eu gosto dela, eu
quero bem a ela. Quero bem a todos, mas ela é a copiadora. Eles estão,
sabe, fazendo o quê? Dopando, quem quer que seja... com um só remédio!
Não pode, o remédio... Quer saber mais do que Estamira?
V) CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em 2011, cinco anos após o lançamento do documentário, Estamira, aos 70 anos,
faleceu em um hospital público – vítima de uma infecção generalizada ocasionada por um
ferimento no braço – após esperar por atendimento médico por mais de 5 horas (VAZ, 2011).
No interior de uma biopolítica dos anormais/das diferenças, Estamira foi, literalmente,
deixada morrer. Contudo, parafraseando Butler (2015, p. 130), graças à construção de um
quadro de apreensão de sua singularidade pelo documentário, Estamira sobrevive, já que a
circulação indefinida de sua imagem e de sua voz permite que sua existência continue a
acontecer. E, neste sentido, ela nos lembra, talvez como consolo a aqueles para quem sua
morte tornou-se lamentável, que “visivelmente, naturalmente, se eu me desencarnar, eu tenho
a impressão que eu serei muito feliz”.
Não obstante os limites trazidos pelas operações de poder inerentes à produção
cinematográfica e o muito de potência de vida em Estamira que transborda e escapa nesse
trabalho, procurei averiguar as possibilidades contemporâneas de resistência às distintas
formas atuais de governo (no caso específico, os governos religioso, familiar e psiquiátrico
das condutas). E é no lixão, compreendido como um espaço heterotópico, que Estamira
produz – paradoxalmente, visto o seu diagnóstico de psicótica – uma experiência de
resistência e de contra-conduta mais articulada e mais consciente contra as práticas atuais da
psiquiatria. Experiência de resistência que se realiza com fragilidades: apesar de alguma
sujeição, ainda que em precárias condições materiais, trilhando um tênue limiar entre
assujeitar-se e adotar uma atitude crítica.
Se Estamira pode ser apresentada como a loucura irredutível que tenta escapar das
estratégias de normalizações do poder, o documentário (caracterizado como de inspiração
genealógica) dá voz à desrazão de Estamira, libertando-a do “monólogo da razão sobre a
loucura” (FOUCAULT, 2006e, p. 153, grifo do autor) que caracteriza a experiência moderna
do louco.
Enfim, Estamira – como contracondutora dos governos religioso, familiar e
psiquiátrico – parece que toma, em suas falas e em sua existência, a tarefa apresentada por
Nietzsche (2009): realizar a transvaloração de certos valores morais (Deus, justo, certo,
errado, lúcido)!
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua I. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2010. p. 327-351.
AMARANTE, Paulo. Loucos pela vida. A Trajetória da Reforma Psiquiátrica no Brasil. Rio
de Janeiro: Editora Fiocruz, 1998.
BAZIN, André. Ontologia da imagem fotográfica. In: XAVIER, Ismail (org.). A experiência
do cinema: antologia. Rio de Janeiro: Embrafilme, Edições Graal, 1983, p. 121-128.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2015.
ESTAMIRA. Direção: Marcos Prado. Rio de Janeiro. Zazen Produções Audiovisuais, 2006.
Documentário, Cor e PB, (115 min). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?
v=jSZv8jO9SAU&t=314s>. Acesso em: 01 jul. 2018.
MACHADO, Roberto. Introdução: Por uma genealogia do poder. In: FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2016. p. 7-34.
MACHADO, Roberto et al. Danação da norma: medicina social e constituição da psiquiatria
no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1978.
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