ART RANGEL - Afrofuturismo

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Afrofuturismo e questões políticas do negro na

ficção científica

Edson Rangel1

Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar a relação entre obras
literárias e audiovisuais do universo da ficção científica e a desconstrução
de determinismos raciais decorrentes do racismo contra pessoas negras.
Para isso, apresentamos alguns dos principais aspectos que a abordagem do
Afrofuturismo lança sobre o tema, para então analisarmos os filmes Space
is the Place e Branco sai, preto fica a partir de alguns parâmetros dessa
abordagem.

Palavras chave: Afrofuturismo, diáspora, ficção científica, modernidade,


negro.

Afrofuturismo e ficção científica



Afrofuturismo é um movimento estético que surge do
encontro da tecnologia e da ficção científica com as questões da
diáspora, da escravidão e dos determinismos raciais vividos pelo
negro em meio à modernidade.

1 Designer gráfico, roteirista e mestrando em Comunicação Social e


Territorialidades pela Universidade Federal do Espírito Santo.

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O termo foi criado em 1995 por Mark Dery, escritor
de ficção científica que trabalha principalmente o universo
do cyberpunk, que o conceitua como a ficção especulativa
que trata de questões afro-americanas no contexto da cultura
tecnocientífica do século XX (DERY, 1995, p. 180).
Em seu conhecido ensaio Black to the Future, Dery
entrevistou os escritores afro-americanos Samuel R. Delany, Greg
Tate e Trícia Rose e para eles lançou o seguinte questionamento:

por que há tão poucos escritores afro-americanos que


escrevem ficção científica, um gênero que trabalha justamente
o encontro com o outro – o estranho numa terra estranha – algo
que parece singularmente interessante para tratar de questões
próprias dos escritores afro-americanos? (DERY, 1995, p.179,
tradução nossa).

Em meio a diferentes posicionamentos sobre essa questão,


os escritores entrevistados têm em comum a percepção de que
os negros vivem em suas vidas, por efeitos e desdobramentos da
diáspora negra e da escravidão racial, a real experiência de serem
aliens em meio à sua condição marginal na modernidade (DERY,
1995, p.212). A condição de estranhos numa terra estranha.
Esse estranhamento é fundamental para
compreendermos o Afrofuturismo. Ele foi construído no seio da
própria modernidade por meio de processos de ordens diversas,
como o histórico, o racionalista iluminista e o econômico, que

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são abordados pelo Afrofuturismo.
O massivo deslocamento e a escravidão de pessoas
negras trazidas da África para a América, como aponta Delany,
envolveu um processo sistemático de destruição do passado e
das relações materiais e simbólicas que as ligavam a sua condição
histórica de origem (DERY, 1995, p. 191).
De uma forma organizada segundo as regras do comércio
escravagista, filhos, parentes e amigos foram separados de seus
próximos, aspectos de identificação e afinidade como língua e
cultura foram quebrados e formas de organização política e social
pré-existentes foram reordenadas ao critério de um comércio de
grande escala que firmou seu modelo de escravidão.
Mais do que um momento histórico, a escravidão negra
constituiu um processo de apagamento das imagens e lembranças
do passado (DERY, 1995, p.191). Um tipo de ruptura que levou
os negros deslocados pelos processos de diáspora e escravidão
racial a serem os primeiros a viverem dentro da modernidade

a experiência da captura, roubo, abdução, mutilação e


escravidão. Foram submetidos às reais condições de uma
existência sem lugar, alienada, deslocada e desumanizada, que
filósofos como Nietzsche definiram depois como a quintessência
moderna (ESHUN, 2003, p. 288, tradução nossa).
A diáspora e a escravidão configuraram uma espécie
de trauma coletivo para o negro, ocorrido na base da própria

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modernidade, que produziu para pessoas negras efeitos de
exclusão de toda ordem. Sua extensão se mostra nas disputas
por equiparação e reparação que ocorrem ainda hoje, as quais
indicam que esse trauma persiste na era contemporânea (ESHUN,
2003, p. 288).
Diretamente ligados a essa ruptura histórica, o
racionalismo moderno e o pensamento iluminista contribuíram
para cristalizar e naturalizar o racismo construído por meio da
escravidão.
O projeto iluminista de apreensão e compreensão do
mundo teve por características a ideia de sua universalidade, da
fixação de significados e da coerência dos sujeitos (GILROY, 2012,
p. 126). Mas a universalidade e os significados produzidos e fixados
por esse “sujeito e pensamento universal” são eurocêntricos, o
que conduziu muitos grupos social e politicamente minoritários
a diversas formas de constrangimento e opressões raciais
produzidas por mecanismos e aparatos de conhecimento que se
apresentam como racionalmente transparentes.
Dentro de um projeto social que pregava valores
universais de liberdade, igualdade e fraternidade, os negros
trazidos para a América foram submetidos a uma condição em
que, como escravos, não eram reconhecidos como humanos,
mas sim como objetos, propriedades, máquinas de trabalho

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(CUTIE, 2011, p. 4). E no contorno de um pensamento racionalista
de pretensão universal, essa relação foi justificada, política e
teoricamente, ao classificar os negros como seres biologicamente
inferiores (GILROY, 2012, p. 101), ou como não-humanos (CUTIE,
2011, p. 3). A variável econômica é também relevante às
questões do Afrofuturismo, estando intrinsicamente ligada
aos desdobramentos contemporâneos da construção histórica
moderna e do pensamento racionalista iluminista.
Num cenário globalizado, em que diferentes sociedades
e grupos sociais estabelecem uma complexa interação cultural e
econômica, as projeções de mercado que direcionam interesses
financeiros compõem outro fator de determinismo na questão
racial. Investimentos e movimentações financeiras que podem
produzir visibilidade ou apagamento cultural são guiados em
escala global por projeções tanto de ordem formal – como
simulações computadorizadas e tendências de mercado – como
de ordem informal – como o cinema e os contos de ficção
(ESHUN, 2003, p. 290) – que constroem cenários de possível e
provável ganho econômico num mercado cada vez mais global.
Mais do que medições de mercado na ordem de um
tempo passado ou presente, o que vivemos é a predição das
possibilidades econômicas e tecnocientíficas de um tempo
futuro. A movimentação de grandes investimentos em capital

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econômico e cultural busca produzir e gerenciar a encomenda e
entrega de futuros possíveis. Estabelece um tipo de predição para
a produção de futuros que estejam de acordo com os interesses
de grandes grupos econômicos que, cada vez mais, concentram
o poder de produzir esses futuros, assim como o poder de
condenar a viver no passado os grupos não empoderados
(ESHUN, 2003, p. 289), entre os quais destacamos a massiva
presença de populações negras ou mesmo de parte significativa
do continente africano.
Hoje, o grande número de negros vivendo em bairros
pobres, os altos índices de criminalidade que envolvem pessoas
negras, o predomínio de negros na composição da população
carcerária, a violência policial dos Estados em relação às pessoas
negras, o desemprego ou o exercício de funções de menor
remuneração, são algumas das realidades para as pessoas
negras que fazem confrontar, de um lado, um ideal de igualdade
e desenvolvimento pregados pelo pensamento modernista
iluminista e, de outro, os desdobramentos da escravidão do
período colonial e a marginalidade contemporânea vividas por
negros. Para uma maioria de pessoas negras, hoje, não há uma
previsão concreta de melhorias sociais significativas, um quadro
desenhado em vários países.
Observamos nesse quadro que as pessoas negras vivem,

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veridicamente, o estranhamento imaginado pela ficção científica
(REDELL, 2013, p. 92). A condição de estranhos numa terra
estranha de que fala Mark Dery.

Diferentes fases da abordagem Afrofuturista na produção


literária
Como vimos, o termo Afrofuturismo foi criado em 1995,
por Mark Dery, mas realizadores e produções de entretenimento
apontadas como Afrofuturistas não são elencados em uma
década específica ou reunidos em um grupo coeso de artistas.
A professora Lysa Yaszek, que estuda temas de ficção
científica relacionados a questões de raça e gênero, afirma
que artistas que fazem uso da ficção científica para fins de
entretenimento e como estratégia para desconstrução de
determinismos raciais, uma das principais características do
Afrofuturismo, podem ser identificados já no século XIX (YASZEK,
2013, p. 3).
Segundo Yaszek, quando uma nação ou grupo étnico
começa a participar da cultura industrial, a produção de histórias
de ficção científica torna-se uma das formas ideais para se pensar
criticamente o impacto da tecnologia e da ciência em suas novas
formas de produção econômica e política (YASZEK, 2013, p. 1).

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Ela divide em três as fases em que produções do campo
da literatura apresentam algumas características de similaridade
estilística que podem ser identificadas como de uma abordagem
Afrofuturista: 1. Afrofuturismo nos EUA (1850 a 1960), 2.
Afrofuturismo nos EUA (1960 até presente) e 3. Afrofuturismo
Global (1980 até o presente).
A primeira fase, Afrofuturismo nos EUA (1850 a 1960),
coincide com o estabelecimento do gênero da ficção científica
na literatura, quando foram escritas algumas obras precursoras
do gênero como Frankenstein (Mary Shelley, 1818), The Battle
of Dorking (H.G. Wells, 1871), Guerra dos Mundos (H.G. Wells,
1898) e Looking Backwards (Edward Bellamy, 1887). Nessa fase,
ela cita Sutton E. Griggs e seu trabalho Imperio in Imperium
(1899), uma história em que negros norte-americanos lutam
contra os opressores brancos numa guerra no futuro e destaca
que nessa história dois protagonistas dividem as ações de
respostas à opressão sofrida pelos negros. Um deles busca
uma via pacífica de integração social do negro por meio da
aquisição de conhecimentos tecnocientíficos necessários à sua
independência, como conhecimentos nas áreas de agricultura
e engenharia. Mas ele falha, então um segundo protagonista
lidera os negros no confronto imposto pela opressão do homem
branco (YASZEK, 2013, p. 4).

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Outra história situada por Yaszek nessa primeira fase é
The Comet, publicada em 1920 e escrita pelo sociólogo e ativista
por direitos civis W.E.B. Du bois, um dos primeiros teóricos
sobre questões raciais a ter destaque no cenário político norte-
americano. Na história, um cometa que se choca contra a Terra
gera uma catástrofe da qual, acredita-se, apenas um homem
negro e uma mulher branca são os sobreviventes. É apenas após
essa catástrofe que o homem negro e a mulher branca veem a
possibilidade de compartilhar um mesmo mundo e até mesmo
a possibilidade de gerarem um novo mundo juntos. O que não
se concretiza, pois se descobre que há mais sobreviventes. Na
história, Du Bois sugere que apenas uma catástrofe poderia unir
o negro e o branco como iguais (YASZEK, 2013, p. 6).
A segunda fase, Afrofuturismo nos EUA (1960 até o
presente), é caracterizada por uma integração entre Afrofuturismo
e a produção da ficção científica do universo mainstream.
Yaszek supõe que os principais motivos dessa integração foram
a efervescência dos movimentos por direitos civis que marcou
o cenário político e cultural norte-americano na década de 60
e no qual os negros figuravam como um dos principais grupos
representativos, e também o surgimento de uma nova geração
de autores de ficção científica que trouxe maior relevância para
as questões de gênero e de raça (YASZEK, 2013, p. 7).

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Nessa fase se encontram autores consagrados como
Samuel Delany, Octavia Butler e Charles Saunders, que publicam
histórias de ficção científica que envolvem questões de ordem
social, de raça e de gênero, em destacadas revistas do universo
da ficção científica. Em 1984, Octavia Butler publica na revista
Asimov’s magazine o conto Bloodchild, pelo qual recebeu
os prêmios Hugo e Nebula, os mais importantes prêmios de
publicações no campo da ficção científica. Trata-se de um conto
especialmente interessante por sua complexidade no tratamento
de questões de gênero e de raça.
Em Bloodchild os humanos, conhecidos como terranos,
vivem num planeta e futuro desconhecidos nos quais são
colonizados por uma raça alienígena, os Tlics, que os utilizam,
homens ou mulheres, para a gestação de seus ovos num processo
que produz nos humanos efeitos alucinógenos e afrodisíacos. A
história é narrada por Gan, um terrano que tem uma relação de
proximidade com a alienígena T´Gatoi, pertencente a um tipo de
família de grande influência política em meio aos Tlics.
A relação de colonização se dá pelo controle que os
Tlics tem sobre os terranos, que são confinados numa região
chamada de Reserva. A Reserva tem o objetivo de controlar os
humanos e protege-los da ganância dos Tlics, que os desejam
para sua reprodução. Mas ainda que seja estabelecido um tipo de

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colonização entre os Tlics e humanos, sua relação não constitui
um tipo de oposição simples, do tipo dominador e dominado.
Os alienígenas precisam dos terranos para sua procriação, além
do fato da relação com os humanos lhes conferir uma posição
social de destaque. Por outro lado, foram os Tlics que salvaram
os antepassados dos terranos, que fugiram do planeta Terra
diante da iminência de sua morte ou escravidão diante de outros
grupos de sua própria espécie.
Na história, a relação entre os protagonistas é complexa,
envolve sentimentos de amor e medo. Gan ama T´Gatoi,
por quem foi criado e com quem tem uma boa relação, mas
sente medo diante do risco de uma terrível morte durante o
nascimento dos alienígenas que serão inseridos nele por T´Gatoi,
algo que Gan descobre em meio a trama. No conto, os conflitos
são pessoais, mas também políticos e são construídos por Butler
de forma a evidenciar a complexidade das relações sociais entre
as diferentes espécies.
A terceira fase, Afrofuturismo Global (1980 até o presente),
é identificada por Yaszek como aquela em que as publicações que
adotam a abordagem do Afrofuturismo passam a ser realizadas
em colaboração com realizadores, revistas e publicações online
fora dos EUA, tais como Jungle Jim, Story Time e 3Bute, nas quais
se reflete sobre o provável fato de que a experiência de passado,

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presente e possibilidade de futuro vivida por negros nos EUA
pode ser semelhante à experiência de negros que vivem em
outras partes do mundo (YASZEK, 2013, p. 9).
Ela cita como exemplos a escritora jamaicana Nalo
Hopkinson, que escreveu Midnigth Robber (2000), uma história
em que uma colonização galáctica ocorre num futuro que
combina avançadas redes de computadores, nanotecnologia e
histórias caribenhas. Também o canadense-queniano Miniter
Faust, que publicou o aclamado Coyote Kings of the Space Age
Bachelor Pad (2004), uma história em que dois geeks negros
canadenses devem combinar tudo que aprenderam sobre ficção
científica, quadrinhos e jogos de RPG com práticas militares e
uma ancestral ciência africana (YASZEK, 2013, p. 10).
Os autores e obras apontados por Yaszek, situados nas
três fases que ela identifica em meio às produções literárias de
abordagem Afrofuturista, nos levam a entender que a adoção
dessa abordagem no tratamento da relação entre ficção
científica e questões de ordem política, social e de raça, além da
questão de gênero, já ocorriam antes da criação do termo – em
1995, por Mark Dery – e que ela não está circunscrita apenas no
tratamento da experiência vivida pelos negros nos EUA.
A abordagem Afrofuturista e os filmes Space is the Place e
Branco sai, Preto fica em sintonia com a crítica do Afrofuturismo

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em relação à condição marginal vivida por pessoas negras na
contemporaneidade, filmes como Space is the Place (John Coney,
1974) e Branco Sai, Preto fica (Adirley Queiroz, 2015) trabalham
sua construção narrativa e estética de forma a evidenciar as
condições marginais vividas por pessoas negras nas sociedades
modernas, norte-americanas ou brasileiras, e também de forma
a evidenciar que o uso da tecnologia e a construção dos aparatos
de conhecimento científico, cultural e religioso, possuem sempre
um posicionamento político. Não são transparentes ou inocentes
em suas demarcações das relações de poder.
Em Space is the Place, Sun Ra é um tipo de ser intergalático
que vive num planeta onde as formas de conhecimento e
tecnologia são diferentes daquelas do planeta Terra. Um mundo
onde é possível ao homem negro viver sua própria plenitude,
livre da opressão causada pelo conhecimento e pela tecnologia
do homem branco. Ele se dirige então para a Terra com o objetivo
de resgatar e transportar para esse planeta as pessoas negras
que vivem a opressão imposta pelo homem branco.
Na Terra, além de um ser intergaláctico, ele se apresenta
também como um músico. Essas duas formas remetem a duas
dimensões do personagem: a do ser intergaláctico como uma
personificação das forças do universo que agem a favor do negro
e a do músico como o agente político e tecnológico da ação do

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resgate. As duas dimensões se misturam em todo o filme.
Sun Ra confronta o seu antagonista, o personagem
conhecido como o Supervisor, que personifica as forças do
universo que oprimem o negro no planeta Terra, uma espécie de
homem de negócios que é “um negro de alma branca”. Sun Ra
e o Supervisor disputam o destino dos negros no planeta Terra:
o primeiro como o agente do resgate e o segundo como o do
controle e do tratamento das pessoas negras como um tipo de
propriedade.
No filme não existe uma diferença clara entre tecnologia,
música, ação politica e ação mística. A tecnologia para o negro é
também uma forma de sua própria consciência, de sua própria
existência como negro. Da mesma forma, não existe uma
separação clara entre o resgate para outro planeta e a superação
das dificuldades e limitações sociais vividas pelo negro no
planeta Terra. Quando a nave de Sun Ra pousa, sua primeira
ação após anunciar o objetivo de resgate é abrir uma agência de
empregos a fim de selecionar as pessoas negras que poderiam
ser resgatadas.
Na disputa entre Sun Ra e o Supervisor, a vitória do
primeiro se dá com o uso da música como uma tecnologia de
teletransporte que embarca as pessoas negras para dentro da
nave espacial de Sun Ra, que se dirige então para o espaço. Um

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resgate que os livra da opressão e do próprio fim da Terra, que
explode no final do filme.
Fora do filme, o artista Sun Ra, que em Space is the
Place faz o papel dele próprio, é um artista que desconstrói as
fronteiras entre representação, ficção, mito e realidade. Ele foi
um importante músico do Jazz, mas também um artista múltiplo
que transcendeu a prática da performance ao se reinventar na
vida real como um tipo de ficção ou, antes, ao evidenciar a ficção
de sua existência chamada verídica. Arte, música, tecnologia e
filosofia foram para ele formas cósmicas de compreensão do
mundo e de sua própria reinvenção.
O filme brasileiro Branco Sai, Preto fica, traz uma
abordagem que mistura ficção e realidade em uma construção
narrativa e estética que evidencia os ruídos e posicionamentos
políticos da tecnologia e da produção cultural da sociedade
brasileira.
O nome do filme vem de uma violenta ação policial contra
pessoas negras ocorrida num baile charme nos anos 1980, em
Ceilândia, cidade-satélite de Brasília. Na abordagem policial, os
gritos eram de “Branco sai, preto fica!” (MENDONÇA, 2015).
Na história, dois dos personagens negros estavam entre
as vítimas da ação policial e um terceiro é um detetive, também

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negro, que veio do futuro com a missão de colher provas de
racismo contra o estado brasileiro.
O filme brasileiro faz grande referência à integração
tecnológica entre homem e máquina, e nele podemos observar
que os dois personagens que foram vítimas da ação violenta
no baile utilizam algum tipo de máquina integrada ao corpo: o
primeiro uma cadeira de rodas, o segundo uma perna mecânica.
Mas a integração tecnológica mostrada no filme é ruidosa,
exige manutenção, troca de peças. A cadeira de rodas, o elevador,
a prótese, o carro, o veículo que viaja no tempo, são todos
ruidosos e exigem algum tipo de atenção ou de manutenção.
Mesmo a viagem no tempo não ocorre com perfeição, há perda
de materiais, perda de memória, há preocupação do viajante e
da equipe do futuro com questões econômicas e políticas.
Percebemos que mesmo a religião é mostrada como
politicamente posicionada. O detetive e viajante do futuro,
quando informado de que as coisas no futuro estão feias porque
o partido da vanguarda cristã assumiu o poder, demonstra
preocupação quanto ao seu retorno para o futuro.
No filme, a música e os equipamentos de gravação ou
radiodifusão são, ao mesmo tempo, formas de expressão e
entretenimento, mas também, como vemos no desfecho do filme,

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uma arma lançada como um ato de vingança contra o centro do
poder político brasileiro: uma Brasília situada no futuro, na qual
as populações periféricas não tem permissão para entrar.
Em Branco Sai, Preto fica não há uso de tecnologia
ou produção de expressão cultural que seja transparente ou
inocente, antes, constituem ou instrumentalizam ações políticas
com forte demarcação nas relações de poder.
Assim, a crítica presente nas práticas de imaginação e
ficção científica adotadas pela abordagem do Afrofuturismo,
além de constituírem formas de entretenimento, evidenciam
os processos de construção histórica do racismo, da sua
naturalização pela via do pensamento racionalista iluminista e
de determinismos de ordem econômica que geram e ampliam
a condição social marginal dos negros em meio a modernidade.
Constituem estratégias que buscam evidenciar e desconstruir
a inocência e a transparência dos processos históricos, da
tecnologia, e dos aparatos de conhecimento aos quais os negros
foram, e são, submetidos (ESHUN, 2003, p. 297).
Evidenciam a condição dos negros de estranhos numa
terra estranha: aliens que foram abduzidos por outros seres em
naves espaciais – navios negreiros – que viajaram pelo espaço
sideral – oceano – para um planeta estranho – continente
americano – onde foram estudados e classificados segundo uma

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tecnologia estranha e desconhecida – ciência moderna e política
– e foram submetidos aos interesses dos seres que promoveram
sua abdução – escravidão e determinismo econômico.
Uma condição que persiste ainda hoje, quando avanços
conquistados pelas vias formais, como as políticas democráticas,
as políticas afirmativas, as tentativas de redução da desigualdade
na disputa por empregos e de acesso a meios produtivos, por
exemplo, se mostram bastante tímidos e, por vezes, politicamente
ineficazes para uma efetiva integração entre pessoas brancas
e negras, em um modelo de sociedade em que as últimas são
historicamente marginalizadas.
Acreditamos que a abordagem Afrofuturista soma
esforços em meio a essas vias formais para uma necessária e,
talvez, possível desconstrução dos determinismos raciais que
impedem a efetiva integração entre diferentes grupos étnicos.
Concluímos que a ficção científica empregada por artistas
e pensadores que adotam a abordagem do Afrofuturismo busca
não apenas produzir mundos meramente imaginados, mas
também mundos possíveis frente à impossibilidade, para um
grande número de pessoas negras, de viver o mundo verídico
moderno.
Como aponta J. G. Ballard (REDELL, 2013, p. 92), num

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sentido amplo e que envolve não apenas pessoas negras, diante
da realidade distópica e violenta que prevalece no mundo
moderno, que parece profundamente irreal, a função da ficção
científica passa a ser a de inventar a realidade.

Referências
BRANCO sai, preto fica. Direção: Adirley Queiroz.
Produção: Simone Gonçalves, Adirley Queirós e Denise Vieira.
Brasil . Produção Cinco da Norte Serviços Audiovisuais, 2015.
BUTLER, Octavia. Bloodchild and Other Stories. Nova York:
Open Road Integred Media, 2012.
CUTIE, Francis. Mediums of Consciousness in Afrofuturism.
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Acesso em 20 de julho de 2015.
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https://thenewblack5324.files.wordpress.com/2012/08/mark-
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GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla
consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo: ed. 34;
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REDELL, Trace. Ethnoforgery and outsider Afrofuturism.
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br/2015/04/07/branco-sai-preto-fica/ >. Acesso em 15 de
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Newman. EUA, 1974.
YASZEK, Lisa. Race in Science Fiction: The Case of
Afrofuturism. 2013. Disponível em < http://virtual-sf.com/wp-
content/uploads/2013/08/Yaszek.pdf >

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