Conceição Evaristo - Poemas Da Recordação e Outros Movimentos

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Revista África e Africanidades - Ano 3 - n.

11, novembro, 2010 - ISSN 1983-2354


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Conceição Evaristo – Poemas da


recordação e outros movimentos
Ricardo Silva Ramos1

Hoje não é nenhum


absurdo nem exagero afirma
que Conceição Evaristo é a
principal voz feminina da nossa
literatura afro-brasileira. Por
isso, devemos celebrar o
lançamento de “Poemas de
recordação e outros
movimentos”, pela editora
Nandyala, em 2008, antologia
poética que reúne poemas do
passado e inéditos dessa
mineira de Belo Horizonte,
nascida em 29 de novembro de
1946.
Desde os anos 1970
radicada no Rio de Janeiro,
formada em Letras, mestre em
Literatura Brasileira pela
PUC/RJ e Doutora em
Literatura Comparada pela
UFF/RJ, Evaristo teve sua
estreia literária em 1990, na série Cadernos Negros, publicação anual editada
pelo Grupo Quilombhoje com o intuito de lançar escritores afro-brasileiros,
projeto iniciado em 1978. A partir daí, a poeta começou a ter seus textos, que
navegam entre a poesia, o conto e o romance, em diversas antologias
nacionais e estrangeiras. Individualmente, publicou os seguintes romances:
“Ponciá Vicêncio” (2003 e já na segunda edição) e “Becos da Memória” (2006).
A obra de Conceição Evaristo conduz-nos a um profundo mergulho na
memória que navega entre as recordações individual e coletiva, “a memória
bravia lança o leme:/ Recordar é preciso”. Logo somos banhados pelas “águas-
lembranças” de Evaristo que se posiciona como mulher negra e da comunidade
negra em geral para transformar em poesia as suas “escrevivências”. Estas
1
Estudante de Letras- Universidade Estácio de Sá

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são motivadas pelas lembranças familiares, formadoras do binômio vida-


poesia, destacando-se a convivência com a mãe, “mulher de pôr reparo nas
coisas,/ e de assuntar a vida”, e que “me ensinou,/ insisto, foi ela,/ a fazer da
palavra/ artifício/ arte e ofício/ do meu canto/ da minha fala”, o aprendizado oral
pelos provérbios, “quando se anda descalço/ cada dedo olha a estrada”, e
também do contato frutífero com a Tia Lia que “temperando os meus dias/
misturava o real e os sonhos/ inventando alquimias./ (...) Houve um tempo/ em
que a velha/ me buscava/ e eu menina/ com os olhos/ que ela me emprestava,/
via por inteiro/ o coração da vida”.
O cruel desenvolvimento das adversidades pelas quais passam as
mulheres negras através dos tempos, configurando a dor e as experiências de
injustiças sociais, são demonstrados no poema “Vozes-Mulheres”, no qual o
sujeito lírico retoma as dores sofridas pela bisavó no passado de violenta
escravidão, como ecos na memória de “lamentos/ de uma infância perdida”.
Relembra a submissão sofrida pela avó ainda escrava diante da “obediência/
aos brancos-donos de tudo”, recorda os ecos das dores de sua mãe “no fundo
das cozinhas alheias/ debaixo de trouxas/ roupagens sujas dos brancos”. Até
chegar no tempo presente, na sua voz que ainda “ecoa versos perplexos/ com
rimas de sangue/ e/ fome”, para atingir a consciência madura de sua filha, voz
que “recorre todas as nossas vozes” e que se quer livre: “Na voz de minha
filha/ se fará ouvir a ressonância/ o eco da vida-liberdade”.
A condição feminina aparece com frequência em seus poemas. Em “Do
fogo que em mim arde” a coisificação da mulher é combatida: “Sim, eu trago o
fogo,/ o outro/ não aquele que te apraz”; conduzindo à metapoesia e à
afirmação de um sujeito feminino pleno: “Sim, eu trago o fogo,/ o outro/ aquele
que me faz,/ e que molda a dura pena/ de minha escrita./ É este o fogo/ o meu,/
o que me arde/ e cunha a minha face/ na letra-desenho/ do auto-retrato meu”.
Portanto, verifica-se a rigidez de um sujeito lírico que possui a força de dar a
vida, por fim, dar movimento ao mundo e que diz: “Eu fêmea-matriz/ Eu força-
motriz/ Eu-mulher”.
Ao posicionar-se como negra e ao fazer literatura com cariz afro-
brasileiro, torna-se inevitável apresentar temas que não integram o cânone e
são excluídos por ele, tal como a denúncia do racismo presente em nossa
sociedade que a ordem estabelecida insiste em negar e persiste com a mentira
de que vivemos em uma democracia racial. Os poemas de Evaristo invocam
este e outros assuntos referentes ao nosso cotidiano de cidadão negro e o
poema “Meu Rosário” é um excelente exemplo por tratar da religiosidade
híbrida brasileira – “Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falo/
padres-nossos, ave-marias” –, a discriminação permanente que o negro é
submetido em uma cerimônia cristã – “As coroações da Senhora, em que as
meninas negras,/ apesar do desejo de coroar a Rainha,/ tinham de se contentar
em ficar ao pé do altar/ lançando flores” –, escancara o subemprego dos
nossos pares – “As contas do meu rosário fizeram calos/ nas minhas mãos/
pois são contas do trabalho na terra, nas fábricas,/ nas casas, nas escolas, nas

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ruas, no mundo”. Entretanto, permanecem os “sonhos de esperanças” e a


transformação do verbo em poesia – “E neste andar de contas-pedras,/ o meu
rosário se transmuta em tinta,/ me guia o dedo,/ me insinua a poesia”.
Intertextualizando com Carlos Drummond de Andrade, para nós negros
há sempre incontáveis “pedras no meio do caminho”. Para suportar e superar
“a áspera intempérie/ dos dias”, necessita-se assumir “a ousada esperança/ de
quem marcha cordilheiras/ triturando todas as pedras/ da primeira à
derradeira”, “moldando fortalezas-esperanças” para sobreviver diante de tantas
desigualdades e perseguições ao nosso povo, principalmente aos jovens,
vítimas constantes da violência policial e demonstrada com sutileza pelo sujeito
lírico: “E pedimos/ que as balas perdidas/ percam o rumo/ e não façam do
corpo nosso,/ os nossos filhos,/ o alvo”. Fatos recorrentes que revoltam, o
incômodo por séculos de opressão não segura mais a língua metamorfoseando
a conjungação dos verbos: “E não há mais/ quem morda a nossa língua/ o
nosso verbo solto/ conjugou antes/ o tempo de todas as dores”. Sendo assim, o
sujeito lírico atua como agente de mudança da História e propõe o seu grito de
liberdade: “E o silêncio escapou/ ferindo a ordenança/ e hoje o anverso/ da
mudez é a nudez/ do nosso gritante verso/ que se quer livre”.
Devemos frisar que o poeta afro-brasileiro é um partícipe ativo – e por
sinal, incômodo – da presença negra na literatura brasileira, assim como possui
plena consciência da necessidade de uma revisão crítica da História oficial que
minimiza o passado de séculos de escravidão e a exclusão social que se
perpetua para a maioria de nossos pares na contemporaneidade. Só resta ao
sujeito lírico cumprir seu papel e assumir essa condição, ou seja, denunciar “o
que os livros escondem,/ as palavras ditas libertam. E não há quem ponha/ um
ponto final na história”.
Com isso, os poemas de Conceição Evaristo possuem o predomínio
temático das diversas e urgentes questões afro-brasileiras e também da
mulher, todavia, sua poesia navega com desenvoltura pela metapoética,
demonstrando reverência ao verbo poético, transbordando lirismo e
emocionando as retinas: “Quando eu morder/ a palavra,/ por favor/ não me
apressem,/ quero mascar,/ rasgar entre os dentes,/ a pele, os ossos, o tutano/
do verbo,/ para assim versejar/ o âmago das coisas”.
E é assim “crivando buscas/ cavando sonhos/ aquilombando
esperanças/ na escuridão da noite” e cosendo “a rede/ de nossa milenar
resistência” que a poesia de Conceição Evaristo insiste na defesa
inquestionável dos negros, persiste com as denúncias às condições
discriminatórias sofridas por nós e amadurece em sua estrutura estético-formal.
“Poemas da recordação e outros movimentos” mostram um verbo depurado de
uma autêntica artífice da linguagem, marcando a sua posição destacada na
construção de uma literatura afro-brasileira autônoma, para além de configurar
a inclusão do nome de Conceição Evaristo entre o que vem sendo produzido
de melhor qualidade na literatura brasileira contemporânea.

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