A Arte de Ouvir e Contar Histórias

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Projeto “Era uma vez...


Adultos que sabem ouvir
Crianças que sabem contar

A arte de ouvir
e
de contar histórias

Mônica Cavalcanti Lepri


cientista social e contadora de histórias

Guanabara - Brasil
APOSTILA I

HISTÓRIAS DA TRADIÇÃO ORAL

O QUE SÃO?
POR QUE CONTÁ-LAS?

mlepri/96 2
"As fábulas, tomadas em conjunto, em sua sempre
repetida e variada casuística de vivências humanas, são
uma explicação geral da vida, nascida em tempos
remotos e alimentada pela lenta ruminação das
consciências até nossos dias; são o catálogo do destino
que pode caber a um homem e a uma mulher. (...)
E, neste sumário desenho, tudo: a drástica divisão dos
vivos em reis e pobres, mas sua paridade substancial; a
perseguição do inocente e seu resgate como termos de
uma dialética interna a cada vida; o amor encontrado
antes de ser conhecido e logo depois sofrimento enquanto
bem perdido; a sorte comum de sofrer encantamentos,
isto é, ser determinado por forças complexas e
desconhecidas, e o esforço para libertar-se e
autodeterminar-se como um dever elementar, junto ao
de libertar os outros, ou melhor, não poder libertar-se
sozinho, o libertar-se libertando; a fidelidade a uma
promessa e a pureza de coração como virtudes basilares
que conduzem à salvação e ao triunfo; a beleza como
sinal de graça, mas que pode estar oculta sob aparências
de humilde feiúra como um corpo de rã; e sobretudo a
substância unitária do todo: homens animais plantas
coisas, a infinita possibilidade de metamorfose do que
existe.
Agora que terminei esse livro, posso dizer que não foi
uma alucinação, uma espécie de doença profissional.
Tratou-se de uma confirmação de algo que já sabia desde
o início, aquela única convicção que me arrastava para a
viagem entre as fábulas.
E penso que seja isso: as fábulas são verdadeiras."
Ítalo Calvino

“O conto folclórico é uma cartilha para a compreensão


da linguagem pictórica da alma.”
Joseph Campbell

mlepri/96 3
“Trabalhando durante trinta e cinco anos com fontes
escritas e orais de nossa herança mundial de contos,
percebemos que existe um verdadeiro elemento vivo
neles, o qual torna-se surpreendentemente evidente
quando isolamos as histórias “básicas”: aquelas que
tendem a viajar mais longe, que aparecem no maior
número de coleções clássicas, que inspiraram grandes
escritores do passado e do presente. Graças a esse
contato com os elementos de fundo da tradição, que
constantemente clamam para serem mais uma vez
projetados, tornamo-nos conscientes de que a história -
de uma maneira indefinível, impalpável - é a forma básica
sugerida. Linguagem, estilo, caracterização e crenças,
didáticas ou nacionalidades - tudo isso cede o lugar para
o conto, que parece pedir para renascer através de
nossos esforços. E esses mesmos esforços, de uma
estranha maneira, são experenciados como sendo algo
semelhante aos relativamente pobres conhecimentos da
mais humilde parteira.
É o conto em si mesmo, quando emerge, que é o rei.”
Idries Shah

“A criança transportada pelo encanto de uma história


talvez necessite de alívio para aquele momento, no qual a
vida se apresenta repleta de sofrimento e crueldade; ela
precisa ser lembrada que esse tom e esse espírito, de
uma nobreza suave e cordial, realmente existem - em
algum lugar. E mais tarde, quando seu tempo chegar, a
curiosidade fará seu trabalho; e o jovem (o adulto ou o
ancião, já que todos têm um relógio interno que soa na
hora certa) se sentirá impelido a passar os olhos outra
vez no texto original da história - e ali encontrará os
significados precisos, ponderados e até mesmo
desconfortáveis contidos (e protegidos) pelo maravilhoso,
o fantástico. Mas, em qualquer forma que apareça, seja
qual for o gênero de linguagem utilizada, cada história
tem o seu lugar, a sua função, o seu uso, o seu tipo
particular de prazer, e cada uma chamará a atenção da
pessoa que, naquele momento, estará pronta para ouvi-
la, assim como a história estava pronta para ela.”
Doris Lessing

mlepri/96 4
“O objetivo dessas histórias cativantes e divertidas,
recolhidas na tradição oral e em coletâneas individuais
(...) é levar as pessoas a pensarem por si mesmas.”
Robert Graves

“Naquele tempo havia um homem lá. Ele existiu naquele


tempo. Se existiu, já não existe. Existiu, logo existe
porque sabemos que naquele tempo havia um homem, e
ele existirá enquanto alguém contar a sua história. Era
um ser humano que estava lá, ‘naquele tempo’, e só
seres humanos podem contar sua história porque só eles
sabem o que aconteceu ‘naquele tempo’. ‘Aquele tempo’
é o tempo dos seres humanos, o tempo humano.
‘Um homem estava ‘lá’, naquele tempo. Estava lá e não
aqui. No entanto, está aqui e permanecerá, enquanto
alguém narrar aqui a sua saga. Era um homem quem
‘estava lá’, e apenas os seres humanos podem situá-lo
‘lá’, pois só eles sabem a respeito de ‘aqui’ e ‘lá’,
categorias que constituem o espaço dos seres humanos,
o espaço humano.
‘A historicidade não é apenas alguma coisa que acontece
conosco, uma mera propensão, na qual nos ‘metemos’
como quem veste uma roupa. Nós somos historicidade:
somos tempo e espaço.”
Agnes Heller

“Se nas sociedades sem escrita os conhecimentos


científicos estavam muito aquém dos poderes da
imaginação e cabia aos mitos preencher esses espaços,
nossa sociedade se encontra na situação inversa, mas
que leva ao mesmo resultado. Entre nós os
conhecimentos científicos transbordam de tal forma os
poderes da imaginação que esta, incapaz de compreender
o mundo cuja existência lhe é revelada, tem como único
recurso voltar-se para o mito.”
Claude Lévi-Strauss

mlepri/96 5
Existe uma história que já usei antes e usarei novamente.
Um homem desejava saber sobre a mente e perguntou a
seu computador: ‘Você computa que algum dia você
pensará como um ser humano?’
O computador começou então a trabalhar para analisar
seus próprios hábitos computacionais. Finalmente, a
máquina imprimiu a sua resposta:
’Isto me lembra uma história.’
Agora quero lhes mostrar que seja qual for os significado
da palavra história na história que lhes contei, o fato de
pensar em termos de histórias não isola os seres
humanos como alguma coisa separada das estrelas e
anêmonas-do-mar, dos coqueiros e das prímulas.
Na verdade, se o mundo é ligado, se estou
fundamentalmente correto no que estou dizendo, então o
‘pensar em termos de histórias’ deverá ser repartido
por toda mente ou mentes, sejam as nossas ou aquelas
das florestas de sequoias e das anêmonas-do-mar.
Gregory Bateson

“Quem tem ouvidos, ouça.”


Mateus, 11,15

mlepri/96 6
REQUISITOS ESSENCIAIS PARA
NARRAÇÃO & AUDIÇÃO DE HISTÓRIAS:

O TEMPO,
O LUGAR
E AS PESSOAS

mlepri/96 7
“Não posso imaginar maneira melhor de iniciar uma reflexão sobre histórias do que
contando uma, pequena e verdadeira, acerca das condições e das reais complexidades
com as quais nos deparamos ao lidar não apenas com histórias, mas com o processo
mesmo de falar e ouvir.
Pouco tempo atrás eu estava dando uma conferência a respeito da dificuldade que
as pessoas têm para assimilarem situações - especialmente com certa rapidez - mesmo se
o fazem sequencialmente; e de como uma história, ou até uma afirmação, pode
transformar-se, por assim dizer, numa propriedade pessoal de cada indivíduo, podendo
então ser recordada e considerada de vários pontos de vista.
"Observou-se", continuei, "que muitas informações não são absorvidas porque a
maior parte das pessoas é realmente incapaz de absorver algo que escuta apenas uma
vez..." Imediatamente uma mão levantou-se e alguém sentado na primeira fila pediu-me:
"Poderia repetir isso novamente?" Mais tarde investiguei e descobri que essa pessoa não
sofria de nenhum tipo de deficiência auditiva, e nem se tratava de um humorista
perspicaz.
Julgamos que esse intervalo entre a apresentação de materiais e sua integração
ao pensamento e ao repertório de ação do indivíduo precisa ser ensinado à maioria das
pessoas interessadas em histórias. Isto é útil também em outros campos, mas achamos
que é algo fácil de ser observado e comprovado no ambiente de narração e audição de
histórias. O método holístico é capaz de dar conta de certos elementos e o método linear
de outros. Nenhum dos dois, no entanto, será capaz de perceber outras dimensões da
história antes que certa habilidade tenha sido desenvolvida. Este pequeno conto sufi é
empregado com o propósito educativo de, pelo menos, instalar na mente a asserção de
que a pessoa necessita deste lapso de tempo para que tal objetivo seja alcançado. Não
tem a intenção, portanto, de zombar de nenhum dos personagens fictícios que nele
aparecem.”
Idries Shah, A Perfumed Scorpion

mlepri/96 8
TEMPO E ROMÃS

Um candidato a discípulo foi até a casa de um médico e pediu para tornar-se


aprendiz da arte da medicina.
"Você é impaciente e por isso fracassará em observar os fatos que necessitará
aprender", disse o médico. Mas o jovem implorou e ele concordou em aceitá-lo.
Depois de alguns anos o jovem sentiu que poderia exercer certas habilidades que
aprendera. Um dia, um homem caminhava em direção à casa e o médico - olhando-o à
distância - disse: "Esse homem está doente. Ele necessita de romãs."
"O senhor fez o diagnóstico; deixe que eu receite para ele e terei feito metade do
trabalho", disse o estudante.
"Está bem", disse o professor, "desde que você se lembre que a ação também
deve dar a impressão de ser uma ilustração", disse o professor.
Assim que o paciente chegou à soleira da porta, o estudante puxou-o para dentro
e disse: "Você está doente. Coma romãs."
"Romãs!", gritou o paciente. "Romãs para você! Que loucura!" E foi-se embora.
O jovem perguntou a seu mestre o significado do diálogo.
"Eu o esclarecerei da próxima vez que tivermos um caso similar", disse o médico.
Algum tempo depois os dois estavam sentados do lado de fora da casa quando o
mestre olhou para cima de relance e viu um homem se aproximando.
"Aqui está o seu esclarecimento - aí vem um homem que necessita de romãs", ele
disse.
O paciente foi levado para dentro e o médico lhe falou:
"Você é um caso difícil e intricado, pelo que vejo. Deixe-me pensar... Sim, você
necessita de um dieta especial. Ela deve ser composta de alguma coisa redonda, que
possua naturalmente pequenas bolsas em seu interior. Uma laranja... teria a cor errada...,
limões... são muito ácidos... Já sei: romãs!"
O paciente foi embora, satisfeito e agradecido.
"Mas, mestre", disse o estudante, "por que o senhor não falou "romãs" logo de
saída?"
"Porque ele necessitava de tempo tanto quanto de romãs", ele respondeu.

mlepri/96 9
COMO A VERDADE ENTROU NO PALÁCIO DO SULTÃO

Um dia, a Verdade se dirigiu até o palácio do Sultão de Bagdá e bateu no imenso


portão.
O guarda que estava na vigia abriu uma pequena janela e, ao ver o rosto de
traços nobres da mulher, perguntou-lhe gentilmente:
- Quem és e o que desejas?
- Sou a Verdade, e desejo ser recebida pelo Sultão - ela respondeu.
O guarda apressou-se em abrir o portão, mas ao ver que a mulher vestia apenas
uma longa túnica transparente, que em nada escondia a sua nudez, imediatamente
fechou-o de novo e gritou:
- Este é um lugar de respeito! Pessoas como a senhora não podem entrar aqui!
A Verdade deu meia volta e começou a vagar, cabisbaixa, pelas ruas da cidade. De
repente alguém tocou-lhe o ombro e perguntou:
- Amiga, o que está acontecendo contigo?
Ao levantar os olhos, a Verdade deparou-se com a Parábola, vestida como sempre
com suas roupas alegres e coloridas, cheia de colares e adereços enfeitando-lhe a cabeça.
A Verdade contou-lhe o que havia acontecido e a Parábola falou:
- Vem até minha casa que nós duas daremos um jeito nisso.
Lá chegando, a Parábola escolheu uma de suas melhores roupas, algumas jóias de
grande beleza e com elas adornou a Verdade.
Assim vestida, a Verdade foi recebida com todas as honras no palácio, onde
sentou-se ao lado do Sultão e pode então contar-lhe muitas coisas que o ajudaram a
governar com justiça e sabedoria o seu povo.

mlepri/96 10
A HISTÓRIA DO MERCADOR E O LOURO

Era uma vez um mercador que mantinha um papagaio preso em uma gaiola.
Quando estava para ir à Índia, em uma viagem de negócios, ele disse ao pássaro:
- Estou indo à sua terra natal. Você quer que eu leve alguma mensagem para os
seus parentes que vivem nas florestas de lá?
- Simplesmente diga a eles que estou vivendo aqui em uma gaiola - respondeu o
pássaro.
Quando o mercador retornou, falou ao papagaio:
- Eu sinto dizer que tão logo encontrei seus parentes lá na floresta, e os informei
que você estava engaiolado, o choque foi forte demais para um deles. Logo que ouviu a
notícia ele caiu do galho onde estava, não tenho dúvidas de que morto de tristeza.
Imediatamente, assim que o mercador terminou de falar, o papagaio teve um
colapso e caiu inerte no chão de sua gaiola.
Penalizado, o mercador tirou o pássaro da gaiola, e colocou-o do lado de fora, no
jardim. Nesse momento o papagaio, que havia captado a mensagem, levantou-se e voou
para fora do alcance do mercador.

mlepri/96 11
AS FORMIGAS E A PENA

Uma formiga, que caminhava perdida sobre uma folha de papel, viu uma
pena que desenhava traços negros e finos.
- Que maravilha! - exclamou. - Que coisa notável! Tem vida própria e faz
garatujas nesta bela superfície a ponto de poder equiparar-se aos esforços conjuntos de
todas as formigas do mundo. E que rabiscos faz! Parecem formigas, milhões de formigas
trabalhando juntas!
Contou seus pensamentos a outra formiga, que ficou igualmente
interessada e elogiou os poderes de observação e reflexão da primeira. Mas outra formiga
disse:
- Valendo-me de seus esforços, devo admiti-lo, tenho observado esse
estranho objeto. Mas cheguei à conclusão de que não é ele que impulsiona seu trabalho.
Você cometeu o erro de não observar que a pena está ligada a outros objetos que a
rodeiam e conduzem. Esses devem ser considerados como a origem de seu movimento,
acredite.
Desse modo as formigas descobriram os dedos.
Passado algum tempo, outra formiga caminhou sobre os dedos e percebeu
que faziam parte da mão, que explorou total e minuciosamente, ao estilo das formigas,
esquadrinhando-a toda. Voltou então para junto de suas companheiras e gritou-lhes:
- Formigas! Tenho importantes notícias para vocês. Aqueles pequenos
objetos fazem parte de outro muito maior. E este é o que realmente move tudo.
Depois descobriram que a mão estava ligada a um braço, e o braço a um
corpo; que não existia uma, e sim duas mãos; e que existiam dois pés, que não
escreviam.
As investigações prosseguiram. Assim, as formigas chegaram a ter uma
idéia adequada da mecânica da escrita.
Através de seu método de investigação costumeira, entretanto, nada
conseguiram saber a respeito do sentido e da intenção da escrita, nem sobre como,
finalmente, eles eram determinados. Porque elas não haviam aprendido a "ler".

mlepri/96 12
O SIGNIFICADO DE UMA LENDA

Uma antiga lenda, que usa as pirâmides egípcias como metáfora, ajuda a explicar
a maneira pela qual as histórias podem nos levar a aprender.

Era uma vez um certo faraó que mandara construir uma câmara secreta em sua
tumba piramidal, enquanto ainda estava vivo, pois dessa forma todos os seus tesouros
poderiam acompanhá-lo ao próximo mundo.
O construtor, no entanto, disse aos seus dois filhos: “Eu morrerei pobre, mas
vocês serão capazes de entrar na sala do tesouro usando a passagem secreta que está
desenhada nesse mapa que deixo de herança a vocês, pois o rei é um usurpador e
acumulou o ouro de gente pobre como nós.”
Quando os filhos haviam retirado uma parte do ouro, porém, um deles foi
capturado por uma armadilha oculta. Ele persuadiu seu irmão a cortar sua cabeça, pois
assim a família não seria presa e poderia continuar a entrar ali. Após argumentar um
pouco, o irmão o fez, e escapou a salvo.
O rei ficou surpreso ao encontrar o corpo sem cabeça. Ele ordenou que o corpo
ficasse amarrado num muro e fosse vigiado. Os parentes, pensou, iriam querê-lo de volta,
e se tentassem reclamá-lo, ele os prenderia.
Mas o irmão que sobrevivera era engenhoso. Ele apanhou alguns odres de vinho,
carregou-os num burro e deixou-os derramarem-se na estrada, perto dos vigilantes. Os
guardas aproveitaram para se apossar de uma parte do vinho e o beberam. Quando
ficaram bêbados, o irmão levou o corpo para o enterro.

Esse conto exemplifica como os eventos são paralelos ao trabalho mental. O


tesouro simboliza o conhecimento humano acumulado, o faraó é a tendência delinqüente
da mente que impede as pessoas de aprenderem algo que é para seu benefício. O pai é o
homem que sabe como obter conhecimento, e os dois filhos são duas condições da mente
humana. O primeiro irmão representa o seu uso imprudente, ainda que imaginativo; o
segundo simboliza o sobrevivente, o princípio ativo, que possui tanta inventividade quanto
o outro.
Não é necessário que essa história seja inverídica para que seja significativa como
exemplo.

mlepri/96 13
A ÁGUA DO PARAÍSO

Harith, o Beduíno, e sua esposa Nafisa, indo de um lugar para o outro, erguiam
sua tenda esfarrapada onde quer que encontrassem tamareiras, ervas para alimentar seu
camelo, ou um poço de água salobra. Esta vinha sendo sua forma de vida por muitos
anos, e Harith raramente variava sua ronda diária: caçando ratos para aproveitar-lhes a
pele, trançando cordas de fibras de palma para vender aos caravaneiros que por ali
passavam.
Um dia, contudo, surgiu um novo manancial no areal, e Harith levou um pouco
daquela água aos lábios. Teve a impressão de estar provando a verdadeira água do
paraíso, pois era muito menos suja que aquela que estava acostumado a beber. A outros,
no entanto, teria parecido desagradavelmente salgada.
“Devo levar essa água a alguém que irá apreciá-la”, disse Harith.
E foi assim que partiu rumo a Bagdá, em busca do palácio de Harun el-Raschid,
viajando sem deter-se a não ser para mastigar algumas tâmaras. Harith levou consigo
dois odres de couro cheios daquela água: um para ele e outro para o califa.
Dias depois chegou a Bagdá e logo se dirigiu ao palácio. Ali os guardas ouviram
sua história, e somente por ser esta a norma usual, deixaram-no participar da audiência
pública de Harun.
“Comendador dos Crentes”, disse então Harith, “eu sou um pobre beduíno e
conheço todas as águas do deserto, embora saiba pouco a respeito de outras coisas.
Acabo de descobrir esta água do paraíso, e julgando-a uma oferenda digna de vós, vim
logo oferecê-la.
Harun, o Íntegro, provou da água, e como compreendia bem o seu povo, ordenou
que os guardas do palácio levassem Harith e o mantivessem detido por algum tempo, até
que ele tornasse conhecida sua decisão sobre aquele caso. Depois, chamou o capitão da
guarda e lhe disse:
“O que para nós nada é, para ele é tudo. Portanto levem-no deste palácio à noite.
Não deixem que ele veja o poderoso rio Tigre. Escoltem-no até sua tenda no deserto,
sem permitir que prove água doce. Então, junto com o meu agradecimento pelo seu
serviço, lhe dêem mil moedas de ouro. Digam-lhe que ele é o guardião da água do
paraíso e que deve distribuí-la gratuitamente, em meu nome, a todos os viajantes.”

mlepri/96 14
O HOMEM MAIS FELIZ DO MUNDO

Um homem que vivia numa situação bastante confortável foi um dia visitar um
sábio que tinha fama de possuir grandes conhecimentos.
- Grande sábio - disse ele - não tenho problemas materiais. Contudo não estou
satisfeito. Durante anos tenho procurado ser feliz, encontrar uma resposta para meus
pensamentos, estar em paz com o mundo. Por favor, aconselhe-me: como posso curar-
me desse mal?
- Meu amigo - respondeu-lhe o sábio - o que está oculto para uns é evidente para
outros, o que é evidente para uns está oculto para outros. Tenho a solução para o seu
mal, mas não é um remédio comum. Você deve viajar à procura do homem mais feliz do
mundo. Quando o encontrar deve pedir sua camisa e vesti-la.
Incansável, aquele buscador começou a procurar homens felizes. Um por um,
encontrou-os e interrogou-os. Todos disseram:
- Sim, sou feliz, mas há alguém mais feliz do que eu.
Depois de viajar de país em país, por muito tempo, chegou a um bosque onde,
diziam, vivia o homem mais feliz do mundo. Ouviu o som de uma risada através das
árvores e apressou o passo até chegar perto de um homem que estava sentado numa
clareira.
- Você é o homem mais feliz do mundo, como dizem? - perguntou-lhe.
- Sou, com certeza - disse o homem.
- Meu nome e minha posição são tais e tais. Meu remédio, receitado pelo maior
sábio, é usar sua camisa. Por favor, poderia dá-la para mim? Em troca lhe darei tudo que
possuo.
O homem mais feliz do mundo olhou-o bem de perto e riu. Riu e riu.
Quando o homem se acalmou um pouco, o inquieto viajante, um tanto aborrecido
com sua reação, disse:
- Você deve estar fora do seu juízo, para rir de um pedido tão sério.
- Quem sabe? - disse o homem feliz. - Mas se você apenas tivesse se dado ao
trabalho de olhar, teria visto que não possuo camisa alguma.
- E agora, que faço então?
- Agora você ficará curado. Esforçar-se por uma coisa inatingível predispõe à
prática de conseguir o que é necessário. Como quando um homem reúne todas as suas
forças para saltar sobre um rio, como se ele fosse mais largo do que realmente é.
Certamente ele atravessa esse rio.
Então o homem mais feliz do mundo tirou o turbante cuja ponta escondia o seu
rosto. O homem inquieto viu que se tratava do grande sábio que o tinha aconselhado no
início.
- Por que não me disse isso tudo quando fui procurá-lo há tantos anos? -
perguntou o viajante desconcertado.
- Porque naquela época você não estava pronto para compreender. Precisava de
certas experiências, e elas tinham que lhe ser proporcionadas de um modo que garantisse
que você passaria por elas.

mlepri/96 15
AS CHAVES

O vizinho de Nasrudin, chegando em casa já de madrugada, viu-o ajoelhado


debaixo do poste de luz que ficava do outro lado da rua.
- O que você está fazendo? - perguntou-lhe.
- Estou procurando as minhas chaves - respondeu Nasrudin.
- E onde exatamente você as perdeu? - ele indagou, enquanto se ajoelhava
também para ajudar a procurar..
- Na porta da minha casa - falou Nasrudin.
- Então por que você está procurando por aqui?
- Porque aqui tem mais luz.

∗∗∗∗∗∗

Um dia, Nasrudin estava sentado na corte. Queixava-se o rei de que seus súditos
eram mentirosos.
- Majestade - disse Nasrudin, há verdade e verdade. As pessoas precisam praticar
a verdade real antes de poderem usar a verdade relativa. Mas sempre tentam inverter o
processo. Resultado: sempre tomam liberdades com a verdade humana, porque sabem,
por instinto, que se trata apenas de uma invenção.
O rei achou a explicação complicada demais.
- Uma coisa tem que ser verdadeira ou falsa. Farei as pessoas dizerem a verdade
e, com essa prática, elas adquirirão o hábito de serem verazes - falou o soberano.
Quando abriram as portas da cidade na manhã seguinte, uma forca se erguia
diante de todos, controlada pelo capitão da guarda. Um arauto anunciou:
- Quem quiser entrar na cidade terá de responder primeiro com a verdade à
pergunta que lhe será formulada pelo capitão da guarda.
Nasrudin, que estava esperando do lado de fora, foi o primeiro a dar um passo à
frente.
O capitão dirigiu-se a ele:
- Onde você vai? Diga a verdade, a alternativa é a morte por enforcamento.
- Vou ser enforcado naquela forca - replicou Nasrudin.
- Não acredito em você!
- Pois, muito bem. Se eu disse uma mentira, enforque-me!
- Mas isso faria dela a verdade!
- Exatamente - confirmou Nasrudin -, a sua verdade.

∗∗∗∗∗∗

- O que é a verdade? - perguntou um discípulo a Nasrudin.


- Algo que nunca, em nenhum momento, eu falei, nem falarei - ele respondeu.

mlepri/96 16
DE COSTAS PARA FRENTE

Certa vez o Sultão disse a Nasrudin:


- As pessoas razoáveis sempre vêem as coisas da mesma maneira.
- É exatamente este o problema das pessoas razoáveis - respondeu Nasrudin. –
Em geral elas vêem apenas uma única possibilidade onde existem potencialmente duas.
O Rei convocou os sábios do reino para que explicassem essa afirmação, mas eles
acharam que Nasrudin estava mais uma vez dizendo tolices.
No dia seguinte Nasrudin desfilou pela cidade montando um burro de costas, isto
é, com seu rosto olhando para a cauda do animal. Foi até o palácio onde o Sultão se
encontrava reunido com seus conselheiros e disse:
- Alteza, por favor, pergunte-lhes o que acabaram de ver.
O Sultão fez o que Nasrudin pedia e todos responderam:
- Um homem montando o seu burro ao contrário, isto é, de costas para a frente.
- Eis justamente o problema - replicou Nasrudin. - Quem pode afirmar que eu não
estou corretamente montado, o burro é que está de costas, e ninguém percebeu!

∗∗∗∗∗∗

Um dia chegou a Aksehir, em uma caravana, um sábio chinês. Muita gente se


reuniu ao seu redor, pois comentava-se que ele possuía grande sabedoria. Quando todos
estavam reunidos, o sábio declarou que ia dizer e expor um único pensamento, a respeito
do qual havia meditado durante quarenta anos:
- Cada pessoa deve considerar seu comportamento como consideraria o de seu
semelhante. Deves ter em teu coração, para outros, o que tens em teu coração para ti
mesmo.
- Essa seria uma observação surpreendente se alguém se detivesse para verificar
o que é que um homem deseja para si mesmo. Talvez seja algo tão indesejável para si
como para seus inimigos - replicou Nasrudin ali presente. E prosseguiu:
- O que devemos ter no coração para os outros não é o que se quer para si
mesmo. É o que deveria ser para si e o que deveria ser para todos. Isto se evidencia
somente quando conhecemos a verdade interior. Tudo isso me recorda a história de um
pássaro que ingeriu certas favas venenosas sem que, no entanto, elas lhe fizessem mal.
Alguns dias depois recolheu mais algumas dessas favas e decidiu abrir mão de seu
alimento para oferecê-las a seu melhor amigo: um cavalo.

mlepri/96 17
APOSTILA II

Histórias para contar...

mlepri/96 18
A SORTE DE CATARINA

Há muito tempo atrás viveu um mercador muito rico e generoso, que possuía um
palácio deslumbrante. O orgulho de sua vida era a filha, uma linda criatura chamada
Catarina. Catarina era alta e magra, com cabelos negros e olhos grandes e brilhantes.
Suas mãos e seus pés eram pequenos e delicados, sua pele tão macia como as pétalas de
uma rosa.
No palácio havia tronos de ouro, turquesas enfeitavam cadeiras de prata, rubis, as
molduras dos quadros, e diamantes, as fontes de água. Tudo ao redor de Catarina era
luxo e beleza. Pavões passeavam pelos jardins, flores desabrochavam em vasos
pendurados nas árvores, em suma, o melhor que o dinheiro podia comprar.
Um dia, quando Catarina estava andando pelo jardim, vestida numa longa túnica
de seda bordada em finíssimas pérolas, com um capuz do qual pendiam outras tantas
fileiras de pérolas, uma dama de aparência elegante surgiu à sua frente.
Havia algo de notável nessa mulher, seus olhos eram muito penetrantes e escuros,
suas roupas pareciam não ser nada além de cortinas luminosas.
“Catarina, minha querida criança,” disse a dama, “o que você prefere: gostaria de
gozar sua vida na sua juventude ou gostaria de gozá-la na sua velhice? Você tem
somente essas duas escolhas.”
Catarina pensou por um momento e então falou: “Se eu tiver o meu prazer agora,
sofrerei por isto nos meus últimos anos?”
E a alta dama respondeu: “Sim.”
“Mas como é que você sabe?”, perguntou Catarina, que continuava a ponderar
sobre a questão.
“Porque eu sou a sua Sorte,” respondeu a aparição.
“Oh, então eu terei a minha boa fortuna na minha velhice,” disse Catarina.
“Muito bem, que assim seja”, disse a sua Sorte; e desapareceu.
Catarina nada pensou a respeito desse encontro e retornou à casa para trocar
suas roupas por outras ainda mais finas. Mas alguns dias depois coisas terríveis
começaram a acontecer.
Uma grande tormenta se abateu sobre o mar. O pai de Catarina estava esperando
seus navios voltarem de um país estrangeiro, carregados de ricas mercadorias, mas todos
eles foram mandados para o fundo do oceano pela tempestade.
Seus armazéns foram derretidos por um misterioso fogo; então, quando ele
decidiu preparar novos navios, nada havia para colocar dentro deles. Ele alugou seus
barcos a um duque, que queria acompanhar um príncipe que seguia para a guerra, mas
todas as naus foram afundadas num encontro com piratas. Os homens do duque foram
mortos e o próprio duque ficou sem um tostão.
Ladrões arrombaram a casa e roubaram todas as jóias de Catarina; suas roupas
foram então vendidas para que eles tivessem o que comer por mais algum tempo. Por
fim, infeliz e doente, o pai de Catarina morreu, deixando-a só no mundo. Sem dinheiro e
com roupas muito simples, Catarina decidiu abandonar essa cidade que havia lhe trazido
tanta má sorte e encontrar, se possível, algum trabalho num outro lugar. Então ela disse
adeus à cidade onde nascera e começou a sua longa e penosa marcha.
Finalmente alcançou uma aristocrática cidade longe de seu próprio país e parou
um instante no meio da rua, imaginando aonde ir. Tinha um pouco de dinheiro, que uma
antiga ama havia lhe dado, e estava pensando onde poderia comprar um pouco de pão.
Uma dama de boa posição, olhando para fora de sua janela, viu-a e chamou-a:
“Quem é você, minha querida, e de onde vem? Você não é dessa parte do mundo.”

mlepri/96 19
“Senhora, estou sozinha no mundo, pois meu pai, que uma vez foi um rico
mercador, morreu. Procuro um lugar onde possa comprar um pouco de pão,” ela disse.
“Venha para minha casa, eu preciso de uma criada e você desempenhará essa
função muito bem,” disse a nobre senhora; e Catarina entrou agradecida na enorme
construção.
A dama afeiçoou-se muito a Catarina e lhe confiava todos os seus bens. Um dia a
dona da casa lhe disse:
“Preciso sair por um momento; feche bem a porta e não deixe ninguém entrar ou
sair até que eu volte.”
Então Catarina fechou a porta e sentou-se perto do fogo. Mal a nobre senhora
havia saído, a porta se abriu e sua Sorte entrou.
“Olhe, aí está você, Catarina!”, gritou sua Sorte asperamente. “Arranjou um bom
lugar para ficar, não é mesmo? Bem, você não pode escapar de mim dessa maneira,
sabe...”, e começou a atirar no chão todos os objetos de valor da dona da casa,
quebrando vidros e porcelanas, rasgando em pedaços linhos caríssimos.
“Oh, não, não, não!”, gritou Catarina. “Isso vai me causar problemas terríveis! A
senhora confia em mim!”
“Ela confia?”, zombou sua Sorte. “Bem, explique isso quando ela voltar, então!”, e
transformou as longas cortinas de seda em farrapos.
Catarina colocou as mãos no rosto e fugiu correndo da casa, sem nunca olhar para
trás, no caso da sua Sorte estar lhe seguindo.
Mal ela acabara de sair, sua Sorte colocou tudo novamente como estava antes e
desapareceu.
Quando a dama retornou, a casa estava perfeitamente arrumada, mas Catarina
tinha ido embora. A senhora chamou e chamou, mas claro que a pobre garota não ouviu,
pois estava já muito longe.
A dama examinou tudo, pensando que talvez Catarina a tivesse roubado, mas
nada estava faltando. Ela não pôde entender o que acontecera, pois a garota parecia ser
de toda confiança.
Ora, a pobre Catarina correu até alcançar outra cidade e, ao procurar um lugar
onde pudesse comprar um pouco de pão, outra senhora que estava parada na janela a
notou.
A dama abriu a janela e lhe falou: “De onde você é e o que faz neste lugar, já que
é obvio que está perdida?”
“Sou uma pobre garota de longe e procuro algo para comer, pois tenho muita
fome,” respondeu Catarina.
“Bem, venha para minha casa,” disse a dama, “eu vou alimentá-la, vesti-la e
arranjar-lhe um lugar entre a minha criadagem.” então Catarina entrou.
Mas a mesma coisa aconteceu, como antes.
Assim que ela se estabeleceu na casa e todos os valores lhe foram confiados, sua
Sorte apareceu e criou o caos em apenas alguns segundos.
“Você pensa que há algum lugar nesse mundo onde eu não seja capaz de
encontrá-la?”, gritou sua Sorte asperamente, derrubando frascos de incenso de valor
incalculável que se espatifaram no chão. Catarina colocou as mãos no rosto e correu.
E assim foi durante sete anos. Cada vez que Catarina era acolhida por alguma
simpática senhora, o aparecimento de sua Sorte fazia com que ela tivesse que partir em
viagem, infinitamente, parecia-lhe. Mas ela nunca conseguia escapar por muito tempo.
Porém - e isto Catarina não sabia - sua Sorte sempre restaurava tudo à antiga
forma no minuto mesmo em que Catarina desaparecia.

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Bem, sete anos se passaram e quando Catarina estava trabalhando para uma
senhora nobre, muito bondosa de coração, parecia quase que sua Sorte havia se
esquecido dela. Dia após dia Catarina cuidava da casa e tudo dava certo para ela. No
entanto, a tensão era muito grande, pois a cada hora ela esperava que a porta se abrisse
e sua Sorte aparecesse.
Todo dia ela devia ir à montanha para sua patroa, com uma cesta repleta dos
mais finos pães e queijos. Uma figura alta e digna pegava a cesta de suas mãos
graciosamente a cada dia e, após cumprimentá-la, desaparecia na caverna.
Um dia sua senhora lhe disse: “Sempre procuro ganhar as boas graças de minha
Sorte dessa maneira. Se eu não enviar-lhe pão fresco e queijo, tremo só em pensar o que
ela poderia causar-me.”
Nesse momento Catarina começou a chorar, incapaz de esconder sua dor, pois ela
havia sofrido demais nos últimos sete anos e não conseguia continuar escondendo sua
tristeza.
“Minha querida criança, o que está acontecendo com você? Conte-me logo!”,
gritou a bondosa senhora, colocando sua mão no ombro de Catarina.
Então Catarina contou-lhe a história da crueldade da sua Sorte e completou:
“Penso que não posso continuar nessa angústia, esperando que ela apareça a qualquer
momento e transforme tudo em pedaços, como já fez tantas vezes. Na verdade, quero ir
embora daqui logo, pois dessa forma não trarei a destruição da minha Sorte para essa
casa.”
“Agora, deixe-me pensar num plano,” disse a nobre mulher, balançando a cabeça.
“Sim, já sei! Quando você for à montanha levar o pão para minha Sorte, conte-lhe sua
história e apele para que ela tenha um palavrinha com a sua Sorte, para que deixe de
atormentá-la dessa maneira. Tenho certeza de que minha Sorte, que é bondosa,
ajudará.”
Assim, no dia seguinte, quando Catarina foi à montanha levar o pão para a Sorte
de sua senhora, pediu para que ela intercedesse junto à sua própria Sorte.
“Bem, sua Sorte está dormindo debaixo de sete cobertas nesse momento,” disse a
Sorte de sua patroa, “mas quando você vier amanhã ela deve estar acordada e eu a
levarei até ela.”
Catarina foi embora cheia de esperanças e dormiu esta noite quase
completamente em paz.
Ao levar o pão à montanha na manhã seguinte, a Sorte de sua senhora levou-a
até sua própria Sorte, que estava deitada numa grande cama, enfiada até os olhos
debaixo de sete cobertores de pena.
“Bem, irmã, aqui está Catarina,” disse a Sorte da nobre senhora. “Pare de
atormentá-la desse jeito; deixe-a um pouco em paz agora, eu lhe peço.”
Sua Sorte disse apenas: “Aqui está uma meada de seda, cuide dela com carinho,
ela se será muito útil. Agora deixe-me descansar.” E desapareceu embaixo dos
cobertores.
Intrigada com isso, Catarina voltou para casa. Sua patroa estava ansiosa para
saber o que acontecera, mas a história que Catarina lhe contou parecia não ter pé nem
cabeça: “Essa seda não vale muita coisa, mas é melhor você guardá-la. Ela lhe deve ser
útil, como sua Sorte disse”, falou a nobre mulher.
O Rei daquele país, que era jovem e extremamente bonito, estava para se casar.
O alfaiate real estava muito constrangido, pois descobriu que, em todo o reino, não se
encontrava seda da cor apropriada em quantidade suficiente para costurar o traje de
núpcias do Rei.

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“Lancem uma Proclamação!”, disse o Rei. “Preciso que minha roupa fique pronta a
tempo! Enviem-na aos quatros países que fazem fronteira com o meu reino e aos quatro
cantos dos meus domínios! Qualquer pessoa que tiver seda dessa cor deve trazê-la até a
corte e eu a recompensarei generosamente.”
A nobre senhora ouviu a proclamação e veio contar para Catarina: “Catarina,
minha criança, coloque este vestido e leve sua meada de seda até a corte. É exatamente
da cor que o alfaiate real está procurando,” ela gritou excitada. “Tenho certeza que você
será generosamente recompensada!”
Quando Catarina apareceu na corte e se postou diante do trono, o jovem rei
achou-a tão bela que não conseguia desgrudar os olhos de seu rosto.
“Sua Majestade,” disse Catarina, “será que essa seda é adequada para seu traje
de núpcias?”
“Você será paga com puro ouro por ela,” disse o rei. “Tragam a balança e nós
pesaremos essa meada. Seja qual for o seu peso, você receberá o equivalente no mais
fino ouro do meu reino.”
Trouxeram a balança, mas não importa quanto ouro fosse colocado, a meada
sempre era mais pesada.
O rei mandou trazer balanças maiores e despejou todo o seu tesouro nelas, mas a
meada de seda continuava pesando mais.
Então, no auge da exasperação, o rei tirou a coroa de sua cabeça e colocou-a na
balança. No mesmo instante a balança se equilibrou e o rei sorriu.
“Onde você conseguiu essa seda, minha querida?”, ele perguntou a Catarina.
“De minha patroa,” disse Catarina.
“Impossível!”, gritou o rei. “Que tipo de mulher é sua patroa para possuir uma
seda mágica como essa?”
Então Catarina contou ao Rei tudo o que havia lhe acontecido e ele tomou-lhe as
mãos entre as suas: “Vou me casar com você em vez de com a jovem à qual eu havia
sido prometido.” Ele falou e assim aconteceu.
Daí em diante, Catarina, que tinha sofrido tanto na sua juventude, viveu até se
tornar uma senhora bem velhinha e foi feliz até o momento da sua morte como rainha
desse longínquo país.

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O FILHO DO REI

Uma vez, num país onde todos os homens eram como reis, vivia certa família,
plenamente feliz, em meio a um ambiente de tais características que a linguagem
humana não conseguiria descrever em termos de coisa alguma conhecida atualmente
pelo homem. Este país de Sharq parecia satisfatório aos olhos do jovem príncipe Dhat,
isto até o dia em que seus pais disseram:
- Querido filho, é costume obrigatório em nosso país que cada príncipe da casa
real, ao atingir certa idade, viaje a fim de se submeter a uma prova. Isto é feito com o
objetivo de prepará-lo devidamente para reinar, e para que obtenha em reputação e na
realidade, por meio de seu empenho e espírito de alerta, um grau de nobreza que não se
obtém de nenhum outro modo. Assim tem sido determinado desde o princípio, e assim
será feito até o fim.
Desse modo, o príncipe Dhat se preparou para a sua viagem, munido do que sua
família podia proporcionar-lhe para seu sustento: uma comida especial que o alimentaria
durante seu exílio, de pequeno volume mas de inapreciável valor nutritivo.
Também lhe deram certos outros recursos, que não é possível mencionar aqui, que
usados devidamente o protegeriam.
Devia viajar a um certo país, chamado Misr, e teria que ir disfarçado. Foi assim
que lhe escolheram guias para a viagem, e trajes adequados à sua nova condição.
Roupas que guardavam pouca semelhança com a usada por alguém de sangue real. Sua
missão seria resgatar certa jóia, guardada em Misr por um temível monstro.
Quando seus guias partiram de volta, Dhat se viu só, mas logo se encontrou com
alguém que ali se achava cumprindo uma missão similar. E, juntos, puderam manter viva
a lembrança de suas origens nobres. Mas, devido ao ar e à comida daquele país, uma
espécie de sono logo os envolveu. E Dhat se esqueceu de sua missão.
Durante anos viveu em Misr, ganhando a vida no desempenho de uma função
humilde, aparentemente alheio ao que deveria estar fazendo.
Graças a um recurso que lhes era familiar, mas desconhecido para outras pessoas,
os habitantes de Sharq vieram a conhecer a lamentável situação de Dhat, e juntos
agiram, de um modo por eles conhecido, para ajudar a libertá-lo daquele encantamento e
permitir-lhe prosseguir com sua missão. Por meio de um estranho expediente uma
mensagem foi enviada ao jovem príncipe, dizendo: “Desperte, pois é filho de um rei,
enviado em uma missão especial, e deve retornar a nós.”
Essa mensagem despertou o príncipe, que conseguiu localizar o monstro, e graças
ao emprego de sons especiais o fez adormecer, recolhendo a jóia inestimável que ele
guardava.
Então Dhat obedeceu aos sons da mensagem que o tinha despertado. Trocou suas
roupas pelas de seu país e sempre guiado pelo Som voltou ao país de Sharq.
Num tempo surpreendentemente curto, Dhat viu-se de novo contemplando suas
antigas vestimentas, e o país de seus antepassados, e chegou ao seu lar.
Desta vez, no entanto, graças a experiência adquirida, pôde ver que se tratava de
um lugar mais esplêndido que nunca, um lugar seguro para ele. E percebeu que era
aquele o lugar relembrado vagamente pela gente de Misr como Salamat; palavra que
para eles significava Submissão, mas que, agora podia compreender bem, significava paz.

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O CAMPONÊS, O REI E O SHEIK

Certo dia um persa apareceu na cidade do Cairo a fim de medir sua inteligência
com a de todos os sábios da corte. Como ele afirmava ser um renomado vizir em sua
terra natal, o rei do Egito acabou por mandar chamá-lo e nomeou-o para um alto posto
da sua administração.
Isso fez com que os grandes homens de Al Azhar, a Universidade de Ouro do Islã,
requisitassem uma audiência com seu soberano:
“Ó grande sombra de Deus sobre a terra, portão da sabedoria e jóia do mundo!
Permita que este forasteiro nos faça uma pergunta que não saibamos responder e então
nós o reconheceremos como nosso superior. Mas se ele não for capaz de nos superar,
devemos pedir que seja mandado de volta ao seu próprio país.”
O rei aceitou a sugestão e ordenou que todos os nobres de sua corte o
encontrassem na Sala de Audiências. Logo, uma enorme assembléia havia se reunido no
grande salão. Todos os homens mais talentosos e inteligentes do país ali estavam
presentes. A um sinal do rei, o erudito persa levantou-se de seu lugar e fez um gesto em
direção à audiência, e sem dizer uma única palavra voltou a sentar-se. Os homens
inteligentes do Cairo ficaram completamente confusos e disseram:
“Ó majestade! Não conseguimos adivinhar o que este instruído persa quer dizer.
Conceda-nos um prazo de seis dias para que possamos discutir entre nós esse assunto,
na tentativa de compreendê-lo.”
O rei deu seis dias para que solucionassem o problema, e cada um deles tomou o
seu próprio caminho.
Nos cafés e nos gabinetes de estudo, os eruditos sheiks repassavam a questão
vezes sem conta: “Qual o significado do que o persa dissera? De que forma poderiam
contestá-lo para que, assim, ele finalmente fosse mandado de volta ao seu próprio país?”
Mas, embora passassem dia e noite comentando o assunto, não conseguiam achar uma
resposta. Então um dos sheiks falou:
“Vamos procurar um jovem aldeão sem nenhum estudo e perguntar-lhe o que isso
pode significar. Talvez em sua ignorância ele acabe tropeçando na resposta, como
acontece às vezes com as crianças.”
Logo em seguida um dos velhos sheiks partiu em direção aos bazares da cidade
do Cairo e, vejam, justo ao cruzar os portões da Universidade de Al Azhar ele se deparou
com um autêntico matuto, recém-chegado da roça, que estava vendendo algumas
cenouras e um ovo. O sheik segurou-o pelo ombro e disse:
“Meu filho, venha comigo, pois preciso falar com você.”
O pobre camponês ficou muito assustado e seu rosto empalideceu. Como não
tinha a menor idéia do que podia lhe acontecer na cidade grande, ele escondeu o ovo e o
amarrado de cenouras dentro de sua camisa, pensando que o velho sheik barbudo ia
pedir para ficar com seus bens. Ao perceber o quanto o jovem estava amedrontado, o
sheik tentou acalmá-lo, perguntando:
“Qual é o seu nome, meu bom rapaz?”
“Abdula, ó grande sheik”, respondeu o matuto. E depois permaneceu em silêncio
imaginando um jeito de escapar, pois se sentia muito embaraçado conversando ali, de pé,
com um barbudo tão sábio e instruído como aquele sheik de Al-Azhar.
“Bem, Abdula”, disse o sheik, “eu quero que você venha comigo encontrar um
certo cavalheiro persa que fala somente através de sinais. Você deverá responder-lhe da
mesma maneira. Este persa desafiou-nos a todos no Cairo para um debate, embora ele

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não diga nada, apenas faça sinais. Agora, se você aceitar essa tarefa e desempenhá-la
com sucesso, ganhará muitas piastras.”
“Oh, que o senhor possa viver para sempre!”, exclamou Abdula. “Fico muito feliz
em poder ajudar, pois estou mesmo devendo muitas piastras, e por mais que tenha
tentado, hoje não consegui vender nem minhas cenouras, nem este ovo.”
“Precioso colega, tenha a bondade de me acompanhar”, disse o sheik, “pois
deverei levá-lo ao encontro dos outros sheiks e sábios, aos quais o persa já desafiou em
sua linguagem de sinais sem conseguir resposta.”
Ao verem aquele aldeão matuto, os outros sheiks quase morreram de rir com sua
figura cômica: o rosto comprido e vulgar, a camisa remendada, os pés descalços e as
mãos calejadas. Seja como for, eles colocaram um longo manto sob suas costas, um
turbante em sua cabeça e elegantes botas de couro em seus pés. Abdula não permitiu
que lhe tomassem as cenouras e o ovo, escondendo-os dentro da camisa, bem junto ao
peito.
Arrumado dessa maneira, ele foi conduzido ao debate com o persa na Sala de
Audiências, onde os vizires e emires da corte formavam um grande círculo ao redor de
seu soberano. O rei sentou-se em seu trono de mármore e anunciou:
“Em nome de Allah, o Misericordioso, que tenha início o debate.”
Logo após terem soado os gongos, os procedimentos começaram. O persa
ergueu-se de sua almofada, fez uma reverência e sentou-se novamente. Também o
camponês sentou-se em um pequeno divã, aparentando estar tão despreocupado como
se estivesse num curral.
O persa então tornou a levantar-se e apontou um dedo na direção do camponês.
Abdula respondeu-lhe apontando dois dedos. Os cortesãos observavam a cena com a
respiração presa.
O persa elevou sua mão e a manteve no alto por alguns segundos. E então o
camponês colocou sua mão no chão, vagarosamente.
O persa apanhou uma caixa, abriu-a, tirou lá de dentro uma galinha e a lançou
para o camponês. Abdula enfiou a mão dentro da camisa, pegou o ovo e o lançou para o
persa.
Nesse momento o persa balançou a cabeça e falou para todos os sábios ali
presentes:
“Vejam, o sheik de vocês respondeu à minha pergunta e agora sou eu que devo
me tornar um de seus discípulos.”
O rei ficou muito satisfeito e recompensou o simples Abdula com uma bolsa cheia
de piastras, o suficiente para mantê-lo confortavelmente por muitas luas. Os cortesãos
voltaram para suas casas envoltos no mesmo clima de mistério que haviam sentido
durante a primeira reunião na Sala de Audiências.
Antes que Abdula regressasse para sua aldeia, o sheik que o trouxera ao palácio
disse:
“Meu querido jovem, você se portou muito bem e demonstrou sua valentia, mas,
conte-me, qual o significado de todos esses gestos que você e o persa trocaram durante
o debate?”
“Bem, senhor, o que eu entendi foi o seguinte”, falou Abdula. “Quando o
cavalheiro apontou o dedo para mim, pensei que isso significava que ele estava dizendo:
‘Se você não ficar de olho aberto, eu enfiarei meu dedo nele - assim!’ Então, repliquei
com dois dedos, que no meu entender representava: ‘Se você me provocar, eu furarei
seus dois olhos.’ No momento em ele suspendeu a mão e ficou com ela parada no alto,
por alguns segundos, eu pensei que ele estava falando: ‘Se você me superar, eu o
pendurarei no teto.’ Quando ele fez esse gesto, fiquei com raiva e respondi colocando

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minha mão no chão, querendo dizer: ‘Se você me tratar dessa maneira, vou derrubá-lo no
chão e esmagar sua cabeça.’ Aí, ao perceber que eu estava levando a melhor, ele tirou
aquela caixa da túnica e jogou a galinha que estava dentro dela em mim, para dizer que
tinha o costume de comer carnes requintadas. Nesse instante lhe atirei o ovo que
carregava, para mostrar que também eu tinha o hábito de comer coisas boas como, por
exemplo, ovos cozidos. O resto o senhor já sabe: ele se convenceu da minha lógica e
disse que queria se tornar meu discípulo.”
Bem, como o erudito persa partiria na próxima caravana com destino a Isphahan,
o sheik foi despedir-se dele e aproveitou para perguntar-lhe:
“Ó culto persa, tenha a bondade de me contar como nosso jovem amigo foi capaz
de debater com você, mesmo sem conhecer uma só palavra da sua língua? Diga-me,
quais os significados que os gestos dele tiveram para você?”
“Apenas os significados corretos, naturalmente”, respondeu o persa. “Seu jovem
amigo foi brilhante. Até hoje nunca fui capaz de encontrar, em todos os países nos quais
travei esse debate, ninguém que conseguisse responder corretamente às minhas
perguntas.”
“Fale, então, por favor, para que eu também possa me beneficiar”, suplicou o
sheik.
“Saiba, ó sheik,” continuou o persa, “que quando ergui meu dedo na direção do
jovem mestre, no início, era como se eu estivesse dizendo: ‘Não há outro Deus a não ser
Allah, o Único!’ Ao apontar com os dois dedos, ele me fez compreender que Allah era o
Deus, mas que Maomé era o seu profeta. Quando mantive minha mão erguida para o teto
por alguns segundos, era como se eu estivesse dizendo: ‘Allah sustenta os céus sem o
auxílio de pilares’. Colocando sua mão no chão, o jovem mestre replicou que Allah era o
Deus da Terra, tanto quanto do Céu. Então lancei a galinha em sua direção para dizer-lhe
que Allah faz com que a vida seja gerada a partir da morte. Ele respondeu atirando o ovo,
lembrando-me que Deus também produz a morte a partir da vida. Assim foi como acolhi
suas respostas às perguntas que venho formulando por cada capital da Ásia, sem nunca
ter conseguido receber de volta, até agora, uma réplica correta. Por isso estou tão
satisfeito! Que grande inteligência deve possuir seu jovem amigo: que Allah o abençoe!”
O sheik de Al-Azhar seguiu seu caminho de volta para os iluminados gabinetes de
estudos da universidade, pensando consigo mesmo quão estranha é a vida... Que fato
mais curioso este, de duas pessoas, com mentes tão diferentes quanto as do erudito
persa e do jovem camponês, serem capazes de conversar uma com a outra, através de
gestos, saírem ambas totalmente satisfeitas e, no entanto, o significado do que haviam
dito não ter sido de modo algum o mesmo.

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O REI SEM OFÍCIO

Era uma vez um rei que havia esquecido o velho conselho dos sábios segundo o
qual quem nasce na comodidade e no conforto precisa fazer um esforço pessoal maior
que os outros. Mesmo assim ele era um rei justo e popular.
Um dia, quando viajava para visitar uma de suas terras mais distantes, uma
tempestade desabou e separou seu barco da escolta real. A tempestade serenou depois
de sete dias de fúria. O barco havia afundado e os únicos sobreviventes do naufrágio
foram o rei e sua pequena filha, pois eles, de algum modo haviam conseguido subir em
uma balsa. Depois de muitas horas a balsa foi jogada numa praia de um país totalmente
desconhecido para os viajantes. Eles foram recolhidos por pescadores que os ajudaram
no início, mas que passado algum tempo lhes disseram:
"Somos muito pobres e não podemos continuar a mantê-los. Se caminharem para
o interior, quem sabe poderão encontrar os meios de ganhar a vida."
Agradecendo aos pescadores e sentindo pesar por não poder conviver com eles, o
rei começou a vagar pela região. Ele e a princesa foram de aldeia em aldeia, de povoado
em povoado buscando comida e ajuda. Não aparentavam ser melhores do que mendigos,
e assim eram tratados. Às vezes conseguiam alguns pedaços de pão, outras vezes palha
seca para dormir.
Cada vez que o rei procurava melhorar sua situação, pedindo trabalho,
perguntavam: "O que você sabe fazer?" O rei então se dava conta de que não era capaz
de realizar as tarefas exigidas, e retomava seu caminho. Em todo o país existiam poucas
oportunidades de tarefas manuais, pois havia muitos trabalhadores especializados. À
medida que iam de um lugar para outro, ele percebia que ser rei sem país era uma
condição inútil, e refletia profundamente sobre o provérbio dos anciãos que dizia:
"Só pode ser considerado seu aquilo que puder sobreviver a um naufrágio."
Depois de três anos nessa existência miserável e sem futuro, ambos se
encontraram pela primeira vez numa fazenda cujo proprietário estava procurando alguém
que cuidasse de suas ovelhas. Ele viu o rei e a princesa e lhes perguntou:
"Precisam de dinheiro?" E eles responderam que sim.
"Sabem cuidar de ovelhas?"
"Não", disse o rei.
"Pelo menos você é honesto", disse o fazendeiro, "e por isso darei a você uma
oportunidade de ganhar a vida."
O fazendeiro os enviou ao campo com algumas ovelhas e eles logo aprenderam
que tudo o que precisavam fazer era protegê-las dos lobos e cuidar para que não se
perdessem. Uma cabana lhes foi dada e, conforme os anos passavam, o rei recuperou
algo de sua dignidade, embora não tivesse recuperado a felicidade. A Princesa se
transformou numa jovem bela como uma fada. Como ganhavam apenas o necessário
para viver, não podiam planejar ainda o retorno à sua terra.
Um dia, quando havia saído para caçar, o sultão daquele país viu a moça e
enamorou-se dela. Então enviou um representante ao pai da jovem para pedi-la em
casamento.
"Ó camponês!", disse o mensageiro, "O sultão, meu amo e senhor, pede a mão de
sua filha em casamento.
"E o que ele sabe fazer, qual é o seu ofício e como ele pode ganhar a vida?",
perguntou o ex-rei.
"Idiota! Vocês camponeses são todos iguais", gritou o mensageiro. "Você não
entende que um rei não precisa ter ofício, pois sua habilidade consiste em conduzir

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reinos? E que você foi eleito para uma honra que ordinariamente estaria muito além de
qualquer esperança possível para pessoas comuns?"
"Tudo que sei", disse o rei-pastor, "é que seu amo, sendo sultão ou não, não será
marido para minha filha, a menos que seja capaz de ganhar a própria vida. Eu sei uma ou
duas coisas a respeito do valor das habilidades."
O mensageiro regressou e contou a seu amo real o que o estúpido camponês
havia dito, acrescentando:
"Não devemos nos preocupar com pessoas como essas, senhor, porque elas nada
sabem a respeito das ocupações de um rei."
Mesmo assim, uma vez recobrado de sua surpresa, o sultão disse:
"Estou perdidamente apaixonado pela filha desse pastor, e por isso devo estar
preparado para fazer qualquer coisa que seu pai ordene, a fim de casar-me com ela."
Deixando o reino nas mãos de um regente, o sultão tornou-se aprendiz de um
tecelão de tapetes. Quase um ano depois, ele já dominava a arte de fazer tapetes
simples. Com alguns de seus próprios trabalhos dirigiu-se à cabana do rei-pastor e
apresentou-se diante dele dizendo:
"Sou o sultão desse país e queria casar-me com sua filha. Tendo recebido a
mensagem de que você requer de seu futuro genro habilidades úteis, estudei tecelagem.
Aqui estão alguns exemplos do meu trabalho."
"Quanto tempo você levou para fazer este tapete?", perguntou o rei-pastor.
“Três semanas", respondeu o sultão.
"Quando o vender, quanto tempo poderá viver com o que obtiver?"
"Três meses", respondeu o sultão.
"Você pode se casar com minha filha, se ela quiser aceitá-lo", disse o pai.
O sultão ficou encantado e feliz quando a princesa consentiu em casar-se com ele.
"Seu pai", disse ele, "mesmo sendo um camponês, é um homem sábio e sagaz."
"Um camponês pode ser tão inteligente quanto um sultão", disse a princesa, "mas
um rei, se teve as experiências necessárias, pode ser tão sábio quanto o camponês mais
sagaz."
O sultão e a princesa se casaram com todo esplendor. O rei-pastor, com a ajuda
de seu novo genro, regressou ao seu país, onde ficou conhecido para sempre como um
monarca bom e inteligente, que nunca se cansou de alertar a todos e a cada um de seus
súditos para que aprendessem um ofício útil.

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AS PESSOAS QUE SE REALIZAM

Certo dia, Isa (Jesus) viu algumas pessoas tristonhas sentadas num muro junto à
estrada.
- Qual o motivo de sua tristeza? - perguntou Isa.
E elas responderam a uma só voz:
- Nós ficamos assim por temer o inferno.
Isa seguiu seu caminho e viu então um grupo de pessoas desconsoladas em
atitudes diversas a um lado da estrada. Dirigiu-se a elas, indagando:
- Qual é a causa de sua aflição?
E elas retrucaram:
- O anseio pelo paraíso nos fez assim.
Isa prosseguiu andando até encontrar um terceiro grupo de pessoas. Tinham o
aspecto de quem já enfrentara muitas dificuldades, mas seus rostos eram animados pela
alegria.
- O que os fez contentes assim?
E eles responderam:
- O Espírito da Verdade. Nós temos visto a realidade, e isso nos fez esquecer
nossos objetivos menores.
E Isa disse então:
- Estas são as pessoas que se realizam. No dia do Juízo Final serão estes que se
acharão na presença de Deus. (Idries Shah, Histórias dos Dervixes)

O ELEFANTE NO QUARTO ESCURO

Alguns hindus estavam exibindo um elefante num quarto escuro, e muita gente se
reuniu para vê-lo. Mas como o quarto estava escuro demais para que eles pudessem ver
o elefante, todos procuravam senti-lo com as mãos, para ter uma idéia de como ele era.
Um apalpou sua tromba e declarou que o animal parecia um cano de água; outro apalpou
sua orelha, e disse que devia ser um leque enorme; outro sua perna, e pensou que fosse
uma coluna; outro apalpou seu dorso e declarou que o animal devia ser como um grande
trono. De acordo com a parte que apalpava, cada um dava uma descrição diferente do
animal. Um, por assim dizer, chamou-o de A e outro de Z. (Rumi – Masnavi)

OS PATINHOS QUE FORAM CRIADOS POR UMA GALINHA

Embora uma ave doméstica tenha tomado a ti


Que és um patinho, debaixo de tua asa e te nutrido,
Tua mãe foi uma pata daquele oceano;
Tua ama foi terrena e tua asa a terra firme.
A nostalgia do oceano que enche teu coração
- Essa nostalgia inata de tua alma vem de tua mãe.
Tua saudade da terra firme vem de tua ama;
Deixa tua ama pois ela irá te desencaminhar.
Deixa tua ama em terra firme e segue adiante,
Entra no oceano do Ser real, como os patos!
Embora tua ama possa afugentar-te da água,
Não temas, precipita-te no oceano!
Não és como uma ave doméstica que só tem conforto em sua casa,
Tu és um pato, e prosperas na terra e na água. (Rumi – Masnavi)

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A GAROTA QUE ERA IRMÃ DE SETE DIVES

Os dives são seres muito interessantes encontrados em vários países do Oriente. São
seres encantados, não possuem um tamanho ou forma específicos, mas existem sob os
mais diversos disfarces. Podem parecer com um homem ou uma mulher, ou ser enormes
e monstruosos como imensos gigantes, com dentes pontudos e compridos, olhos muito
grandes e ferozes, e garras ao invés de pés e mãos.

Era uma vez, no alto de uma montanha no antigo Irã, uma garota que foi adotada
por sete Dives, que a encontraram um dia na floresta onde caçavam. Eles a levaram para
o castelo onde moravam e ela foi criada pela velha ama da casa até os seus 17 anos.
No dia do seu décimo sétimo aniversário ela estava tão linda como a mais
adorável princesa da Terra e, nesse dia, ela chegou à janela para ver alguém que se
aproximava pela pequena estrada que conduzia ao castelo.
- Ama, ama! - ela gritou à velha mulher. - Que coisa é essa subindo a colina em
direção ao castelo? Eu nunca vi nada como isso na minha vida!
- Senhorita Fátima, saia já dessa janela ! - gritou a criada que era uma enorme e
horrorosa mulher Dive com uma verruga no queixo. - Isso que você vê é um ser humano
e você não deverá falar com ele, porque os seus sete irmãos ficarão furiosos!
- Bobagem, ama - disse Fátima, que era bastante decidida e que gostava de fazer
as coisas a seu modo. - Vou abrir a janela e chamá-lo, porque ele me parece cansado e
suado. Tenho certeza de que ele está perdido e faminto.
A criada começou a chiar e a rosnar de raiva, mas Fátima não lhe a menor deu
atenção e, abrindo a janela, chamou o viajante com uma voz melodiosa.
- Entre no castelo, homem, para que você tenha algo para comer e beber. Estou
sozinha aqui, pois meus sete irmãos estarão fora o dia inteiro caçando.
Acontece que o estranho era um príncipe, que se chamava Nuredin. Ele havia
perdido seu cavalo ao passear pelos arredores e ficou encantado quando olhou para cima
e viu a garota a observá-lo da janela. A criada abriu os portões e pouco tempo depois
Nuredin estava sentado com Fátima comendo uvas, queijo e deliciosos doces.
Fátima estava encantada com o jovem. Ela lhe fez centenas de perguntas e ele lhe
falou sobre o mundo lá fora do castelo.
- Preciso conhecer todas essas maravilhas! - disse ela. - Ah, se meus irmãos me
deixassem partir!
- De jeito algum, senhorita Fátima! - falou a criada que os servia. - A senhorita
sabe que os seus sete senhores nunca a deixarão partir do castelo, pois eles são muito
ciumentos e matariam esse humano se o vissem por aqui.
- Então eu mesma darei um jeito e fugirei daqui - declarou Fátima solenemente. -
Assim eu poderei ver todas essas maravilhas que existem no mundo sobre as quais esse
jovem me falou.
O príncipe ficou muito contente e prometeu a Fátima que a levaria até o reino de
seu pai tão logo tivesse descansado da jornada. Mas, naquele instante, antes que Fátima
pudesse dizer alguma coisa, ouviram-se gritos que vinham da estrada e latidos de cães
misturados ao relinchar de cavalos.
- Ó Ser humano! - gritou a ama - esconda-se nesta arca pois os meus senhores já
retornaram, e eles o farão em pedaços no instante em que o virem.

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Muito embora ela fosse uma dive e normalmente detestasse os humanos, ela
sabia que Fátima gostava do jovem e por isso queria ajudá-lo.
Imediatamente o príncipe entrou na arca e Fátima fechou o tampo coma as mãos
trêmulas. O príncipe mal acabara de ser escondido quando a porta se abriu e os sete
Dives irromperam pela sala.
- Irmã Fátima! Irmã Fátima, o que temos para jantar? - berrou o primeiro Dive. Os
outros deram início a gritarias e gargalhadas enquanto tiravam suas enormes botas.
Fátima e a criada foram ajudá-los a tirar os casacos de pele.
- Ama, traga-nos vinho para beber. Estamos queimando de sede! - eles
ordenaram, e a velha mulher Dive saiu apressada para cumprir a ordem.
Os servos conduziam os cavalos para o pátio e os cães rosnavam sobre os ossos
na cozinha.
De repente, os Dives, um após o outro, começaram a farejar o ar com suas
enormes narinas e gritaram enraivecidos:
- Um homem! Sinto cheiro de um homem!
Fátima ficou pálida e o seu coração disparou violentamente. Dentro da arca, o
príncipe havia se enrolado em roupas que não o deixavam ser visto.
- Alguém esteve aqui! Irmã Fátima, onde está ele?
Todos os Dives então se levantaram e começaram a gritar furiosamente. Iniciaram
uma corrida de um quarto para o outro, escancarando todas as portas, farejando o ar e
bufando como bestas selvagens.
Eles estavam tão excitados que nem pensaram em olhar na arca na qual o
príncipe Nuredin se encontrava. Sendo assim, tão logo eles se encontraram fora da sala,
Fátima abriu a arca e puxou o príncipe para fora.
- Depressa, depressa, eu vou lhe mostrar um caminho secreto para você sair do
castelo. Se você não fugir, meus irmãos o farão em pedaços!
Como a noite estava caindo e os Dives ainda estavam investigando todos os
cantos da casa, Fátima começou a sentir medo. Os dois correram de mãos dadas em
direção à lareira e Fátima o ajudou a entrar na chaminé. Lá dentro, ele descobriu
pequenos e escuros degraus.
- Venha comigo, Fátima, eu vou libertá-la deste terrível lugar - sussurrou o
príncipe, e ela silenciosamente acenou com a cabeça concordando.
E assim eles escalaram os degraus de pedras escorregadias até saírem para a
noite carregada de estrelas.
- Onde estão os cavalos? - perguntou o príncipe em tom de urgência, e Fátima o
conduziu até o estábulo.
Silenciosamente, como duas sombras, eles rastejaram por trás do castelo. Os
criados da estrebaria estavam dividindo os lucros dos roubos do dia e por isso não viram
quando dois de sues melhores cavalos estavam sendo selados por Nuredin para ele
mesmo e para Fátima.
Quando ambos estavam montados, a barulheira no castelo aumentou e os sete
Dives os viram à luz da lua galopando para fora dos imensos portões.
- Atrás deles! - rugiu o Dive mais velho. - Tragam os dois vivos e nós os
assaremos como frangos no espeto!
Os cavalos galoparam como o vento e voaram montanha abaixo como animais
encantados, o que na realidade eles eram. Imediatamente os sete Dives partiram no
encalço dos jovens montando cavalos igualmente ligeiros e fortes.
- Fátima, volte! Nós a perdoaremos, mas deixe-nos pegar o humano!
A garota amedrontada podia ouvi-los gritando lá atrás e sabia que seria apenas
uma questão de segundos até que os Dives desenfreados os alcançassem. Então ela

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investigou o seu bolso e encontrou uma semente de capim mágico e a jogou por cima do
seu ombro esquerdo. No mesmo instante uma grande planície de capim surgiu entre os
Dives e os fugitivos. Os cavalos dos Dives não puderam mais correr como antes
enquanto não conseguiram sair do capim alto e espesso que se enrolava nas suas pernas
e os atrasava. Porém ao cabo de meia hora eles já estavam próximos e Nuredin
perguntou:
- Fátima, o que vamos fazer? Temos que detê-los, pois estamos apenas a meio
caminho do reino de meu pai, onde deveremos chegar ao amanhecer, se os Dives
puderem ser detidos de alguma forma.
- Não tenha medo - disse Fátima com bravura, procurando, mais uma vez, algo no
seu bolso. - Acho que posso fazer alguma coisa - e jogou por sobre o ombro uma pinha.
No mesmo instante surgiu uma incrível e densa floresta de pinheiros, e os fugitivos
puderam galopar sem ver os Dives atrás deles.
Os cavalos os levavam cada vez mais perto das terras do príncipe. Fátima, com
seus cabelos flutuando ao vento, começava a se sentir finalmente salva, quando o
príncipe olhou para trás e gritou:
- Ah! Eles nos alcançaram mais uma vez. Eles nos pegarão em poucos segundos, a
menos que alguma coisa os detenha...
Fátima investigou os seus bolsos e quase perdeu o controle das rédeas do seu
cavalo. Ela já estava quase caindo em desespero quando os seus dedos se fecharam
sobre um grão de sal no cantinho do seu bolso. Ela o atirou para trás e imediatamente
um espumante e imenso mar surgiu atrás dos cascos do seu cavalo, atirando os sete
Dives e os seus cavalos dentro de ondas enormes como montanhas. E assim eles se
afogaram, pois os Dives não conseguem nadar com segurança em água salgada.
Fátima e Nuredin cavalgaram então um pouco mais e quando o dia clareou eles
chegaram à bela cidade de Nishapur. Lá o palácio real brilhava no esplendor de ouro e
turquesas, com pavões nas alamedas do jardim exibindo cheios de orgulho suas
maravilhosas caudas abertas em leque. Então os soldados nas muralhas, vendo o príncipe
se aproximar, fizeram soar suas trombetas de prata incrustadas de pedras preciosas.
Fátima foi recebida como uma princesa, o que de fato ela se tornou ao se casar
com o príncipe Nuredin numa festa que durou sete dias e sete noites.

Os cavalos encantados que os levaram até lá desapareceram um mês depois, quando a


lua era cheia. Eles sabiam que a sua jovem senhora era, apesar de tudo, um ser humano
e eles preferiam viver a serviço dos Dives, pois esta é a lei mágica, estabelecida quando o
mundo começou, através de Salomão,
Rei dos Feiticeiros e dos Animais Encantados
(Que ele descanse em paz!)

mlepri/96 32
ORIGENS E DESTINO

Esta é a introdução à história do Homem, da Serpente e da Pedra.


A história que se relata a seguir refere-se às origens e ao destino da
humanidade, não devendo, no entanto, ser considerada histórica. É antes uma alusão à
situação que existe naquela região onde nosso passado, presente e futuro formam uma
unidade. A dificuldade de captar esse conceito é, em parte, eliminada em função da
própria história. Em outras palavras, é por esta razão que ela foi composta dessa forma.
O relato é curto e não requer nem concentração nem perplexidade para abordá-lo. Você
tem que se familiarizar com suas principais linhas de ação. Sua função é a de
restabelecer, na região da mente onde se perdeu, a conexão entre origem e destino. Esta
história não é feita para entreter, nem para passar o tempo, nem é uma instrução moral,
nem é para educação circunstancial, nem tampouco visa fins de propaganda. Ela é feita
para você se familiarizar.

O HOMEM, A SERPENTE E A PEDRA

Um dia, um homem que não tinha nenhuma preocupação na vida, ia por um


caminho. Um objeto estranho ao lado da estrada chamou sua atenção.
- Devo investigar o que é isso - disse consigo.
Tão logo se aproximou, viu que se tratava de uma pedra grande e muito plana.
- Devo investigar o que há debaixo dela - disse consigo. E levantou a pedra.
Ao fazê-lo, ouviu um forte silvo e uma enorme serpente saiu deslizando de um
buraco que havia debaixo da pedra. O homem, alarmado, deixou a pedra cair.
A serpente enroscou-se e disse:
- Agora vou matar-te, pois sou uma serpente venenosa.
- Mas eu te libertei - disse o homem. - Como podes pagar o bem com o mal? Tal
ação não está de acordo com um comportamento razoável.
- Em primeiro lugar - falou a serpente - levantaste a pedra por curiosidade,
ignorando as possíveis conseqüências. Como pode essa ação converter-se de repente em
"Eu te libertei"?
- Sempre devemos voltar ao comportamento razoável, quando nos colocamos a
pensar - murmurou o homem.
- Invocas isto quando pode convir a teus interesses - asseverou a serpente.
Sim - disse o homem -, fui um tolo em pensar que se poderia obter conduta
razoável de uma serpente.
- De uma serpente, espera comportamento de serpente - objetou o animal. - Para
uma serpente a conduta de serpente é o que se pode considerar como razoável. Agora
vou matar-te - continuou dizendo.
- Por favor, não me mates - disse o homem - dá-me outra oportunidade. Tu me
ensinaste sobre a curiosidade, a conduta razoável e o comportamento de serpente. Agora
me matarás antes que eu possa pôr em prática este conhecimento.
- Muito bem - disse a serpente - dar-te-ei outra oportunidade. Eu te acompanharei
em tua viagem. Pediremos à primeira criatura que encontrarmos, que não seja nem
homem nem serpente, que julgue nosso caso.

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O homem cedeu e empreenderam o caminho. Logo se encontraram com um
rebanho de ovelhas em um campo. A serpente se deteve e o homem gritou:
- Ovelhas, ovelhas, salvem-me por favor. Esta serpente pretende me matar; se lhe
disserem que não o faça, ela me perdoará. Dêem um veredicto a meu favor, pois sou um
homem, o amigo das ovelhas.
Uma das ovelhas respondeu:
- Fomos expulsas dessas terras depois de termos servido durante anos a um
homem. Nós lhe demos lã, ano após ano, agora que estamos velhas, amanhã ele nos
matará para utilizar a nossa carne. Esta é a medida da generosidade dos homens.
Serpente, mata esse homem.
A serpente se levantou e seus olhos verdes brilharam enquanto dizia ao homem:
- Assim é como teus amigos te vêem. Tremo ao pensar como são teus inimigos.
- Dá-me mais uma oportunidade - gritou o homem desesperadamente. - Por favor,
vamos encontrar alguém mais que dê sua opinião, para que a minha vida seja perdoada.
- Não quero ser tão irracional quanto pensas que sou - disse a serpente -
portanto, continuarei de acordo com teu esquema, e não com o meu. Perguntemos ao
próximo indivíduo, que não seja nem homem nem serpente, qual será teu destino.
O homem agradeceu à serpente e continuaram a viagem.
Em pouco tempo se encontraram com um cavalo solitário, preso em um campo. A
serpente se dirigiu a ele e disse:
- Cavalo, cavalo, por que estás preso dessa maneira?
- Durante muitos anos servi a um homem - respondeu o cavalo. - Deu-me comida
que não pedi e me ensinou a servi-lo. Disse que isso era em troca da comida e do
estábulo. Agora que estou muito fraco para o trabalho, decidiu vender-me como carne de
cavalo. Estou preso porque o homem acredita que se ando solto por este campo, comerei
demais do seu pasto.
- Pelo amor de Deus, não faças que este cavalo seja meu juiz - exclamou o
homem.
- De acordo com nosso pacto - disse a serpente, inflexível - este homem e eu
decidimos que tu julgues nosso caso.
Resumiu-lhe a situação, e o cavalo respondeu:
- Serpente, está além de minhas capacidades e de minha natureza matar um
homem. Mas penso que tu, como serpente, não tens alternativa, pois tens um homem em
teu poder.
- Se me desses só mais uma oportunidade - suplicou o homem - estou seguro de
algo virá me ajudar. Tive má sorte nessa viagem e esbarrei apenas em criaturas
ressentidas. Escolhamos algum animal que não tenha tal ressentimento e, portanto, não
tenha qualquer má vontade generalizada para com minha espécie.
- As pessoas não conhecem as serpentes, e no entanto parecem ter uma
animosidade generalizada em relação a elas - disse a serpente. - Mas estou disposta a te
conceder apenas mais uma oportunidade.
Seguiram seu caminho.
Logo viram uma raposa, dormindo embaixo de um arbusto ao lado do caminho. O
homem despertou-a com delicadeza e disse:
- Nada temas, irmã raposa. Meu caso é este, e meu futuro depende de tua
decisão. A serpente não me dará nenhuma outra oportunidade e, assim sendo, somente
tua generosidade ou altruísmo podem me ajudar.
A raposa pensou por um instante e logo disse:
- Não tenho certeza de que somente a generosidade e o altruísmo podem
funcionar aqui, mas me ocuparei deste assunto. Para poder chegar a uma conclusão devo

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me basear em algo mais do que tu possas me contar. Devemos demonstrá-lo também.
Vamos, regressemos ao começo da tua viagem, e examinemos os fatos no próprio lugar
onde ocorreram.
Voltaram para onde acontecera o primeiro encontro.
- Agora reconstituiremos a situação - disse a raposa. - Serpente, tem a bondade
de voltar ao teu lugar novamente, debaixo dessa pedra plana.
O homem levantou a pedra e a serpente se meteu na cavidade. O homem deixou
a pedra cair. A serpente estava presa mais uma vez e a raposa, dirigindo-se ao homem,
disse:
- Retornamos ao princípio. A serpente não pode sair a menos que tu a libertes.
Aqui a serpente abandona a nossa história.
- Obrigado, obrigado - disse o homem com os olhos cheios de lágrimas.
- Agradecimentos não são suficientes, irmão - disse a raposa. - Além da
generosidade e do altruísmo, existe a questão do meu pagamento.
- De que maneira vais forçar-me a te pagar? - perguntou o homem.
- Qualquer indivíduo que possa resolver um problema como o que acabo de
solucionar - disse a raposa - está suficientemente capacitado para se encarregar de um
detalhe como este. Mais uma vez te convido a me recompensar, ainda que seja por medo
e, se você não tiver senso de justiça, poderíamos chamá-lo em tuas palavras de "ser
razoável".
O homem disse: - Muito bem. Vem à minha casa e te darei uma galinha.
Chegaram à casa do homem e este foi ao galinheiro, logo voltando com uma
sacola cheia. A raposa arrebatou-a e estava prestes a abri-la, quando o homem disse:
- Amiga raposa, não abra o saco aqui. Tenho vizinhos humanos que não devem
saber que estou cooperando com uma raposa. Poderiam matar-te e me censurar
também.
- É um pensamento razoável - disse a raposa. - O que sugeres que eu faça?
- Estás vendo aquele grupo de árvores ali? - disse o homem, enquanto as
apontava.
- Sim - disse a raposa.
- Corre até elas com a sacola, assim poderás desfrutar a tua comida sem que
ninguém te importune.
A raposa afastou-se correndo. Logo que chegou às árvores, foi capturada por um
bando de caçadores que o homem sabia que estavam ali.
Aqui ela abandona a nossa história.
E o homem? Seu futuro ainda está por chegar.

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A INICIAÇÃO DE MALIK DINAR

Depois de muitos anos de estudo sobre temas filosóficos, Malik Dinar achou que
chegara o momento de viajar em busca de conhecimento. - Irei a procura do Mestre
Oculto, de quem é dito também achar-se na parte mais profunda de meu ser - disse para
si mesmo. Saíra de sua casa levando como alimento apenas algumas tâmaras, quando se
encontrou com um dervixe que caminhava com certo esforço pela estrada empoeirada.
Malik se pôs a caminhar junto a ele em silêncio. Finalmente o dervixe perguntou:
- Quem é você e para onde se dirige?
- Eu sou Dinar, e inicio a viagem em busca do Mestre Oculto.
- Eu sou El-Malik El-Fatih, e seguirei com você - disse o dervixe.
- Poderá ajudar-me a encontrar o Mestre? - indagou Dinar.
- Posso ajudá-lo e pode você ajudar-me? -perguntou Fatih, no estilo meio irritante
próprio dos dervixes. - O Mestre Oculto, segundo dizem, reside no próprio ser do homem.
A maneira de encontrá-lo depende do uso que se faça da experiência. E isto é algo que
só é transmitido parcialmente por um companheiro.
Pouco tempo depois, chegaram ao pé de uma árvore que estava balançando e se
inclinando. O dervixe parou e disse após alguns instantes:
- Esta árvore está dizendo: “Alguma coisa me incomoda, parem e tirem do meu
flanco a causa desse incômodo, a fim de que eu possa repousar.”
- Estou com certa pressa - retrucou Dinar. - E além disso, como pode uma árvore
falar? - E seguiram seu caminho. Algumas milhas adiante, o dervixe disse:
- Quando estávamos perto da árvore julguei ter sentido cheiro de mel. Talvez haja
algum ninho de abelhas no interior da árvore.
- Sim, deve ser isso - disse Dinar. - Voltemos lá depressa, assim poderemos
recolher o mel, para nos alimentarmos com uma parte e vender a outra para nos
mantermos durante a viagem.
- Como queira - disse o dervixe. Quando se acercavam novamente da árvore,
viram que outros viajantes já tinham se antecipado, recolhendo uma grande quantidade
de mel.
- Que sorte a nossa! - diziam aqueles homens. - Aqui há mel suficiente para
alimentar todo um povoado. Nós, pobres peregrinos, poderemos agora converter-nos em
mercadores. Sim, nosso futuro está garantido.
Dinar e Fatih seguiram seu caminho. Pouco tempo depois alcançaram o sopé de
uma montanha, onde ouviram um zumbido. O dervixe encostou o ouvido no solo. Então
disse:
- Debaixo de nós há milhões de formigas, construindo uma colônia. Este zumbido
é um pedido coletivo de ajuda. Na linguagem das formigas quer, dizer: - Ajudem-nos,
ajudem-nos. Estamos escavando, mas esbarramos em pedras estranhas que impedem
nosso avanço. Ajudem-nos a tirá-las do caminho! - Indagou o mestre dervixe.
- Formigas e rochas não são assunto nosso, irmão - disse Dinar -, pois eu, de
minha parte, estou à procura de meu mestre.
- Está bem, irmão - falou o dervixe -, embora digam que todas as coisas se acham
relacionadas, e isto poderia ter uma certa conotação conosco.
Dinar não prestou a devida atenção ao que o velho murmurava, e assim foi que
seguiram adiante. Fizeram uma parada ao anoitecer, e aí Dinar deu por falta de seu
canivete.
- Devo tê-lo deixado cair perto daquele formigueiro. Amanhã voltaremos lá.

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Na manhã seguinte, ao chegarem novamente ao lugar do formigueiro, não
encontraram nem sinal do canivete de Dinar. Em troca, viram um grupo de pessoas,
cobertas de barro, descansando junto a uma pilha de moedas de ouro.
- Fazem parte de um tesouro escondido que acabamos de desenterrar -
explicaram aquelas pessoas. - Seguíamos pela estrada quando um velho e frágil dervixe
nos disse: “Cavem neste lugar e encontraram aquilo que para uns é simples rocha e para
outros, ouro.” Dinar lamentou sua má sorte. E observou:
- Se tivéssemos parado um pouco aqui ontem, você e eu estaríamos ricos agora, ó
dervixe.
- Forasteiro, o dervixe que o acompanha se parece bastante com o que vimos
ontem à noite - disseram os homens que haviam achado o tesouro.
- Todos os dervixes se parecem muito - disse Fatih. E retomaram seu caminho.
Dinar e Fatih prosseguiram viagem, chegando alguns dias depois às margens de
um belo rio. O dervixe parou, e enquanto esperavam sentados a chegada de uma balsa,
um peixe pulou fora d’água várias vezes, sempre perto dos dois viajantes.
- Este peixe nos envia uma mensagem - disse o dervixe. - Ele diz: - Engoli uma
pedra que me sufoca. Segurem-me e me dêem certa erva para comer. Assim poderei
vomitar a pedra e me sentir aliviado. Caminhantes, tenham piedade!
Nesse instante a balsa chegou, e Dinar, sempre impaciente para seguir viagem,
empurrou o dervixe para dentro da embarcação. O barqueiro mostrou-se agradecido pela
moeda que lhe deram, e Fatih e Dinar dormiram bem naquela noite, na margem oposta,
numa casa de chá para viajantes que fora construída por alguma alma caridosa. Na
manhã seguinte estavam tomando chá quando apareceu o barqueiro. Segundo ele, a
noite passada fora muito afortunada. Os peregrinos lhe haviam trazido sorte. Beijou as
mãos do venerável dervixe, para receber sua bênção.
- Você bem o merece, meu filho - disse Fatih.
O barqueiro agora era um homem rico. Explicou aos dois homens o que realmente
lhe acontecera. Já se dispunha a voltar para casa quando vira o dervixe e seu
companheiro sentados na margem do rio. Aí resolveu fazer mais uma viagem, ainda que
eles parecessem pobres, a fim de obter a “baraka”, isto é, a bênção pela ajuda prestada a
um viajante. Mais tarde, de retorno à outra margem, viu um peixe que parecia muito
aflito. Estava junto à margem do rio e tentava engolir algo. Aí o barqueiro pôs uma erva
com cuidado na boca do peixe. Este vomitou uma pedrinha e voltou à água. Pois bem, a
tal pedra era um grande e perfeito diamante de incalculável valor e brilho.
- Você é um velho demônio! - gritou Dinar, furioso, ao dervixe Fatih. - Estava a
par dos três tesouros graças a alguma percepção oculta, e no entanto nada me revelou
nas três ocasiões apropriadas. Isto é que o verdadeiro companheirismo? Antes, a minha
má sorte era muita, mas sem você jamais teria conhecido as possibilidades ocultas em
troncos de árvores, formigueiros e peixes!
Mal dissera tais palavras sentiu como se um forte vento lhe sacudisse o íntimo.
Então compreendeu que acabara de dizer o reverso da verdade. O dervixe, cujo nome
significa Rei Vitorioso, tocou suavemente o ombro de Dinar, sorriu e disse:
- Agora, irmão, descobrirá que pode aprender com a experiência. Eu sou aquele
que se acha a serviço do Mestre Oculto.
Quando Dinar se atreveu a erguer a vista, viu seu Mestre afastando-se pela rua,
com um pequeno grupo de viajantes que discutiam sobre os riscos da longa jornada que
os esperava. Hoje, o nome de Malik Dinar figura entre os principais dervixes,
companheiro e modelo, o Homem que Chegou.

mlepri/96 37
A PRINCESA OBSTINADA

Um certo rei acreditava que o correto era o que lhe haviam ensinado e aquilo que
pensava. Sob muitos aspectos era um homem justo, mas também era uma pessoa de
idéias limitadas.
Um dia reuniu suas três filhas e lhes disse:
- Tudo que tenho é de vocês, ou será um dia. Por meu intermédio vieram a este
mundo. Minha vontade é que determina o futuro de vocês três e, portanto, os seus
destinos.
Obedientes, e persuadidas da verdade enunciada pelo pai, duas das moças
concordaram. Mas a terceira, no entanto, retrucou:
- Embora a minha posição me obrigue a acatar as leis, não posso acreditar que
meu destino deva ser sempre determinado por tuas opiniões, pai.
- Isso é o que veremos - disse o rei.
Ordenou que prendessem a jovem rebelde numa pequena cela, onde ela penou
durante alguns anos. Enquanto isso o rei e suas duas filhas submissas dilapidaram bem
depressa as riquezas que de outro modo também teriam sido gastas com a princesa
prisioneira.
O rei disse para si mesmo:
- Essa moça está encarcerada não por vontade própria, mas sim pela minha. Isto
vem provar, de maneira cabal para qualquer mentalidade lógica, que é a minha vontade e
não a dela que está determinando seu destino.
Os habitantes do reino, inteirados da situação de sua princesa, comentavam:
- Ela deve ter feito ou dito algo realmente grave, para que um monarca, no qual
não descobrimos nenhuma falha, trate assim a sua própria filha, semente viva do seu
sangue.
Mas eles ainda não haviam chegado ao ponto de sentir a necessidade de contestar
a pretensão do rei de ser sempre justo e correto em todos os seus atos.
De tempos em tempos o rei ia visitar a moça. Conquanto pálida e debilitada pelo
seu longo encarceramento, ela se obstinava em sua atitude.
Finalmente a paciência do rei chegou a seu derradeiro limite.
- Seu persistente desafio - disse à filha - só servirá para me aborrecer ainda mais,
e pode vir a enfraquecer os meus direitos, caso você permaneça em meus domínios. Eu
poderia matá-la, mas sou magnânimo. Assim, me limitarei a desterrá-la para o deserto
que faz divisa com meu reino. É uma região inóspita, povoada somente por animais
selvagens e proscritos excêntricos, incapazes de sobreviver em nossa sociedade racional.
Ali logo descobrirá se pode levar outra existência que não a vivida no seio de sua família;
e se a encontrar, veremos se a preferirá à que conheceu aqui.
O decreto imperial foi prontamente acatado e a princesa conduzida então à
fronteira do reino. A moça logo se encontrou num território selvagem, que guardava uma
semelhança mínima com a ambiente protetor no qual vivera sua infância. Mas bem
depressa ela percebeu que uma caverna podia servir de casa, que nozes e frutos
provinham tanto de árvores quanto de pratos de ouro, que o calor provinha do Sol.
Aquele deserto tinha um clima e uma maneira de existir próprios.
Após algum tempo ela já conseguira organizar sua vida tão bem que obtinha água
de mananciais, legumes da terra cultivada e fogo de uma árvore que ardia sem chamas.

mlepri/96 38
- Aqui - murmurou a princesa desterrada - há uma vida, cujos elementos se
integram, formando uma unidade, mas que nem individual nem coletivamente obedecem
às ordens de meu pai, o rei.
Certo dia, um viajante perdido - casualmente um homem muito rico e sentimental
- encontrou a princesa exilada, enamorou-se dela, e a levou para seu país, onde se
casaram.
Passado algum tempo, os dois decidiram voltar ao deserto, onde construíram uma
enorme e próspera cidade. Ali, sua sabedoria, recursos próprios e sua fé se expandiram
plenamente. Os "excêntricos" e outros banidos, muitos deles tidos como loucos,
harmonizaram-se plena e proveitosamente com aquela existência de múltiplas facetas.
A cidade e a campina que a circundava tornaram-se conhecidas em todo mundo.
Em pouco tempo eclipsaram amplamente em progresso e beleza ao reino do pai da
princesa obstinada.
Por decisão unânime da população local, a princesa e seu marido foram escolhidos
como soberanos daquele novo reino ideal.
Finalmente o pai da princesa obstinada resolveu conhecer de perto o estranho e
misterioso lugar que brotara do antigo deserto, povoado, pelo menos em parte, por
aquelas criaturas que ele e os que lhe faziam coro tanto desprezavam.
Quando, de cabeça baixa, ele se acercou do trono onde o jovem casal estava
sentado e ergueu os olhos para se encontrar com os daquela soberana cuja fama de
justiça, prosperidade e discernimento superava em muito o seu renome, pode captar as
palavras murmuradas por sua filha:
- Como pode ver, pai, cada homem e cada mulher têm seu próprio destino e
fazem sua própria escolha.

mlepri/96 39
A LENDA DO CHÁ

Em tempos remotos, o chá só era conhecido na China. Ecos da sua existência


tinham chegado ao conhecimento dos homens sábios e dos não- sábios dos outros
países, e eles trataram de averiguar o que era o chá, cada grupo agindo de acordo com o
que desejava ou pensava que aquilo devia ser.
O Rei de Inja (“aqui”) enviou uma embaixada à China, e no palácio lhes foi servido
chá pelo imperador chinês. Mas ao verem que o povo dali também bebia chá, concluíram
que não era algo apropriado para seu amo, o rei. Chegaram até a supor que o imperador
chinês procurava ludibriá-los, oferecendo-lhes outra coisa para beber que não a celestial
bebida.
O maior filósofo de Anja (“ali”) recolheu todas as informações possíveis acerca do
chá, concluindo daí que devia ser uma substância muito rara, e de uma natureza distinta
de qualquer outra coisa conhecida até então. Por acaso não se referiam a ela como sendo
uma erva, uma água, verde, negra, algumas vezes amarga, outras doce?
Nos países de Koshish e Bebinem, durante séculos, as pessoas testaram todas as
ervas que puderam encontrar. E muitas ficaram intoxicadas, e o desapontamento tornou-
se geral. Ninguém trouxera a planta do chá para as suas terras, portanto não podiam
mesmo encontrá-la. Assim mesmo, ingeriram todos os líquidos que conseguiram
descobrir, mas sem êxito algum.
No território de Mazhab (“Sectarismo”), uma pequena sacola de chá era levada em
procissão ante o povo enquanto este realizava seus ofícios religiosos. Mas ninguém
pensou em prová-lo, pois na realidade ninguém sabia como prepará-lo. Estavam todos
convictos de que o chá, em si, era dotado de uma qualidade mágica. Um homem sábio
lhes disse:
- Derramem água fervendo sobre ele, ignorantes.
Foi enforcado e crucificado, porque fazer o que ele dizia, de acordo com suas
crenças, pressupunha a destruição do chá. Isso vinha a provar que tal homem era um
inimigo da religião que cultivavam.
Antes de morrer, o homem sábio revelara seu segredo alguns poucos, que
conseguiram obter algo do chá e o beberam às escondidas. Quando alguem dizia: - O que
estão fazendo?, eles respondiam: - É apenas um remédio que tomamos para certa
enfermidade.
E assim acontecia no mundo inteiro. Muitas pessoas o viram crescer mas não o
reconheceram. Foi servido a outras, mas estas pensaram tratar-se de bebida de gente
comum. Estivera ainda em mãos de pessoas que o transformaram em objeto de
veneração. Fora da China, só poucos realmente o bebiam, mas sempre ocultamente.
Foi então que surgiu um homem dotado de conhecimento e disse aos mercadores
de chá, e a outros:
- Aquele que prova, conhece. O que não prova, não conhece. Em vez de discorrer
sobre a celestial beberagem, nada digam, mas a ofereçam em seus banquetes. Aqueles
que a apreciarem pedirão mais. Os que não desejarem repetir, demonstrarão que não
estão capacitados para ser bebedores de chá. Fechem as lojas das discussões e dos
mistérios, e abram a casa de chá da experiência.
E o chá foi trazido de uma hospedaria a outra ao longo da Rota da Seda, e quando
um comerciante que transportava jade, jóias ou seda parava ali para descansar, fazia chá
e o oferecia a quem dele se acercasse, conhecedor ou não do renome do chá. Assim
começaram as Chaikhanas, as casas de chá, que foram sendo abertas ao longo de todo o

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trajeto que vai de Pequim a Bokhara e Samarkand. E aqueles que o saboreavam davam
prova de conhecimento.
No início, nunca se esqueçam disto, somente os grandes e os que almejavam ser
sábios é que procuravam a celestial bebida, e aí exclamavam:
- Mas isto são apenas folhas secas! - Ou então: - Por que ferves água, estrangeiro,
se tudo que quero é a celestial bebida? ou ainda: - Como pode saber o que é isto? Trate
de provar-me. Além do mais, a cor do líquido não é dourada e sim ocre!
Quando a verdade foi conhecida, e o chá trazido para que todos o provassem, os
papéis se inverteram, e as únicas pessoas que diziam coisas semelhantes às pronunciadas
anteriormente pelos grandes e inteligentes eram os absolutamente tolos. E tal é a
situação até os dias atuais.

DEUS É MAIS FORTE

Ibotity tinha subido numa árvore quando o vento soprou; a árvore se partiu,
Ibotity caiu e quebrou a perna.
- A árvore é forte porque quebrou minha perna - disse.
- O vento é mais forte do que eu - disse a árvore.
Mas o vento disse que a colina era mais forte, já que ela podia parar o vento.
Ibotity, é claro, pensou que a força estava na colina, porque ela podia parar o vento, o
vento que partiu a árvore, a árvore que quebrou sua perna.
- Não - disse a colina, enquanto explicava que o rato era mais forte, porque podia
esburacar a colina.
- Eu posso ser morto pelo gato - contestou o rato.
E assim Ibotity pensou que o gato deveria ser o mais forte.
- De jeito nenhum - disse o gato, dizendo que podia ser apanhado por uma corda.
Ibotity achou que a corda devia ser a coisa mais forte. A corda, porém, explicou
que podia ser cortada pelo ferro. Portanto o ferro era mais forte. O ferro, por sua vez,
negou ser o mais forte, já que podia ser derretido pelo fogo.
Ibotity então pensou que o fogo devia ser o mais forte, porque ele derretia o
ferro, o ferro que cortava a corda, a corda que prendia o gato, o gato que caçava o rato,
o rato que esburacava a colina, a colina que parava o vento, o vento que partiu a árvore
que quebrou a perna de Ibotity.
O fogo disse que a água era mais forte. A água declarou que a canoa era muito
mais forte, porque sulcava a água. Mas a canoa foi superada pela rocha, e a rocha pelo
homem, e o homem pelo mago, e o mago pela prova do veneno, e a prova do veneno
por Deus. Assim, Deus é mais forte de que tudo.
Ibotity então pensou que Deus podia vencer a prova que imobilizava o mago, que
dominava o homem, que quebrava a pedra, que derrotava canoa, que fendia a água, que
apagava o fogo, que fundia o ferro, que partia a corda, que prendia o gato, que matava o
rato, que esburacava a colina, que parava o vento, que rachava a árvore que quebrou a
perna de Ibotity.

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O PARAÍSO DA CANÇÃO

Era uma vez um poderoso forjador de espadas chamado Ahangar, que vivia num
dos vales do leste do Afeganistão. Em tempos de paz, ele fabricava arados de ferro,
ferrava animais e, sobretudo, cantava.
As canções de Ahangar - conhecido por nomes diferentes em várias partes da Ásia
Central - eram muito apreciadas pelos habitantes dos vales. Eles vinham dos bosques de
nogueiras gigantes de Pagman, das montanhas nevadas do Hindu-Kush, de Kunar e de
Herat para ouvir suas canções. Vinham principalmente ouvir a canção das canções: a
canção do Vale do Paraíso de Ahangar.
Essa canção tinha a propriedade de fascinar. Possuía uma melodia estranha e
contava uma história mais estranha ainda, tão estranha que as pessoas sentiam que
conheciam o remoto Vale do Paraíso, sobre o qual o forjador cantava. Frequentemente,
quando não estava com disposição e lhe pediam para cantá-la, negava-se a fazê-lo. Às
vezes as pessoas lhe perguntavam se o vale existia realmente, e Ahangar só podia dizer:
- O vale da canção é tão real quanto a realidade pode ser.
- Como você sabe? Já esteve lá alguma vez? - perguntavam.
- Não em uma forma ordinária - dizia Ahangar.
No entanto, para Ahangar, como para quase todo aquele que o escutava, o Vale
da Canção era real, tão real quanto a realidade pode ser.
Aisha, uma jovem do lugar a quem ele amava, duvidava da existência daquele
vale; o mesmo acontecia com Hasan, um pretensioso e temido esgrimista que jurava que
se casaria com Aisha, e que não perdia uma oportunidade de rir do forjador.
Um dia, quando todos do povoado estavam sentados em silêncio ao redor de
Ahangar, que lhes havia estado contando a sua história, Hasan falou:
- Se você acredita que esse vale é tão real e fica, como diz, nas longínqüas
montanhas de Sangan, onde nasce a neblina azul, por que não trata de encontrá-lo?
- Sei que não estaria bem fazê-lo - respondeu Ahangar.
- Você sabe o que lhe convém saber, mas não sabe o que não quer saber! - gritou
Hasan. - Agora, amigo, proponho-lhe uma prova. Você quer Aisha, mas ela não confia em
você. Ela não tem fé nesse absurdo vale seu. Nunca poderá casar-se com ela, porque
quando não confiam um no outro, um homem e uma mulher não podem ser felizes, e
acabam acontecendo toda sorte de desgraças.
- Você espera, então, que eu vá até o vale?
- Sim - disseram Hasan e todos os presentes.
- Se eu for e voltar a salvo, Aisha consentiria em casar-se comigo? - perguntou
Ahangar.
- Sim - murmurou Aisha.
E foi assim que Ahangar apanhou algumas amoras secas e um pouco de pão,
também seco, e correu para as montanhas distantes.
Escalou e escalou, até chegar a um muro que rodeava toda a serra. Quando
conseguiu galgar suas paredes escapardas, encontrou outro muro ainda mais difícil de
transpor que o primeiro. Depois deste, um terceiro muro, e um quarto e, finalmente, um
quinto muro.
Ao descer do outro lado, Ahangar se encontrou em um vale, surpreendentemente
parecido com o seu.
Pessoas vieram saudá-lo e, ao vê-las, Ahangar percebeu que estava acontecendo
uma coisa muito estranha.

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Meses depois, Ahangar, o forjador de espadas, caminhando como um ancião e
coxeando, chegou ao seu povoado natal e dirigiu-se à sua humilde choupana. Assim que
a notícia correu pela região, as pessoas se juntaram na frente de sua casa para ouvir suas
aventuras. Hasan, o esgrimista, falou por todos e chamou Ahangar à janela.
Fez-se silêncio quando viram o muito que ele havia envelhecido.
- Bem, mestre Ahangar, chegou ao Vale do Paraíso?
- Sim, cheguei.
- E como ele é?
Ahangar, buscando suas palavras, olhou as pessoas reunidas, e com um cansaço e
um sentimento de desalento que nunca havia sentido antes, disse:
- Escalei, escalei, escalei. Quando parecia que não podia haver sinais de vida
humana em um lugar tão desolado, e depois de muitas provas e desilusões, cheguei a um
vale. Esse vale é exatamente igual ao que vivemos. E então observei as pessoas. Não só
são como nós, mas são as mesmas pessoas. Por cada Hassan, cada Aisha, cada Ahangar,
por cada um dos que estamos aqui, há outro exatamente igual nesse vale. Quando vemos
essas coisas, elas são para nós semelhanças e reflexos. Porém somos nós que nos
parecemos e refletimos àqueles que estão ali, nós somos seus gêmeos...
Todos pensaram que Ahangar havia enlouquecido devido ao sofrimento pelo qual
passara , e Aisha se casou com Hasan, o esgrimista.
Ahangar logo envelheceu e morreu. E todos os que haviam escutado a história dos
seus lábios primeiro murcharam, depois ficaram velhos e morreram, pois sentiam que ia
acontecer uma coisa sobre a qual não tinham nenhum controle e que não tinham
esperanças. Assim perderam o interesse na própria vida.
Só uma vez em cada mil anos este segredo é visto pelo homem. Quando o vê,
muda. Quando conta os fatos tais como são, se vai e morre.
As pessoas acreditam que tal evento é uma catástrofe e que, portanto, não devem
saber sobre ele, pois não podem compreender (tal é a natureza de suas vidas ordinárias)
que têm mais de um eu, mais de uma esperança, mais de uma oportunidade lá em cima,
no Paraíso da Canção de Ahangar, o poderoso forjador de espadas.

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A HISTÓRIA DE HATIM TAI

Há muito tempo atrás viveu Hatim Tai, o mais nobre e generoso líder tribal que a
Arábia conheceu. Naquela época, muitas tribos que vagavam com seus rebanhos em
busca de melhores pastagens haviam se colocado sob sua proteção. Dessa forma, sua
liderança se espalhava entre os donos de incontáveis tendas e vastas eram as terras e
riquezas sob sua guarda.
Ora, como o número de membros das tribos sob a proteção de Hatim crescia cada
vez mais, o rei da Arábia tornou-se ciumento dessa sua reputação de grande senhor.
“Que ousadia demonstra esse Hatim Tai ao se apresentar como um líder de
homens...”, disse o rei. “Todos falam como se ele fosse ainda mais poderoso do que eu!
Sua amabilidade, sua generosidade, seu senso de justiça... ele parece um exemplo de
todas as virtudes! Estou cansado de ouvir falar a seu respeito. Sua maneira de conquistar
meu povo e juntá-lo ao seu redor é uma traição!”
“Sem dúvida alguma, ó rei”, falou o vizir, que era um sujeito um tanto hipócrita.
“Sua Majestade está certa, como sempre. Devem ser dadas ordens para que ele seja
decapitado?”
“Não, não”, respondeu o rei. “Ele precisa morrer em batalha. Diga ao chefe do
exército que marcharemos contra as tendas de Hatim Tai assim que for possível reunir
todos os soldados do meu reino. Em breve veremos quem é mais poderoso!”
Os preparativos já estavam em andamento há alguns dias, com as tropas se
concentrando para a batalha, quando a notícia chegou a Hatim Tai. Certa manhã,
enquanto ele tomava uma xícara de café do lado de fora de sua tenda, um membro de
sua tribo aproximou-se e tocou em sua túnica - o sinal tradicional de que precisava falar
com seu líder:
“O rei de toda a Arábia declarou guerra contra suas tendas, pois está ciumento de
seu poder nessas terras, ó Hatim Tai! Arme os homens e responda ao ataque!”
“Se o rei da Arábia me odeia, isso nada tem a ver com os membros de minhas
tribos”, respondeu Hatim Tai. “Por que vocês deveriam perder suas vidas, trazendo
sofrimento às suas viúvas, apenas por causa da inveja que um homem sente por outro?
Vou partir e me esconder nas montanhas, até que a situação mude. O rei acabará me
esquecendo e talvez um dia eu possa retornar.”
“Devemos levantar acampamento hoje mesmo e viajar em busca de outras
pastagens”, disseram os anciãos da tribo. “Nós não lutaremos, pois esse é o desejo de
Hatim Tai.”
Então, enquanto mulheres e crianças empacotavam os utensílios de cozinha e
roupas, os homens desarmaram as tendas. Eles tocaram os camelos e os rebanhos para o
deserto à procura de um novo lugar para o acampamento.
Ao saber que Hatim Tai tinha fugido e que suas tribos haviam se dispersado, o rei
da Arábia ficou furioso e disse:
“Que grande covarde esse famoso e generoso homem deve ser! Mal ouviu falar
que meu exército estava pronto para atacá-lo, fugiu como um rato do deserto, mostrando
quão fraco na verdade é. Agora o povo será capaz de perceber o quanto seu líder
realmente vale.”

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“Ó grande rei da Arábia”, disse o vizir, “permita-me enviar soldados em todas as
direções à procura de Hatim Tai, pois sua traição continua sendo uma ofensa que merece
punição. Faça também com que seja oferecida uma grande recompensa por sua cabeça,
já que ele é um inimigo de Sua Majestade e merece ter uma morte desonrosa.”
“Excelente!”, respondeu o rei. “Que uma proclamação seja lida nos mercados, nas
praças, em todo e qualquer lugar onde as pessoas se reunam: mil peças de ouro serão
dadas àquele que o trouxer à presença do juiz.”
E assim todas as riquezas de Hatim Tai foram confiscadas.
Havia muitas pessoas no país que sabiam onde ele estava escondido, mas
nenhuma o denunciou aos soldados que o procuravam. Para quase todos, Hatim Tai era
uma lenda viva e ele continuou livre ainda por muito tempo. Secretamente o povo
enviava comida e roupas para seu esconderijo nas montanhas; assim, ele não morreu de
fome ou de frio.
Nessa região isolada, um velho e sua mulher ganhavam a vida catando lenha para
fazer carvão. Um dia eles foram trabalhar perto do lugar onde Hatim Tai também estava
recolhendo alguns galhos de árvore para acender seu fogo. Ao ouvi-los conversando,
Hatim se escondeu atrás de uma rocha. Enquanto se curvava para apanhar um galho, a
velha mulher disse:
“Não seria maravilhoso se, pela misericórdia de Deus, nós pudéssemos encontrar
Hatim Tai? Assim, poderíamos ir até o rei e receber as mil peças de ouro!”
“Silêncio, mulher! Não diga uma coisa dessa, mesmo que você viva cem anos!
Como poderíamos entregar Hatim Tai ao rei? Nem vinte mil peças de ouro seriam
suficientes para que fizéssemos algo tão ruim! É nosso destino sermos carvoeiros e se
permanecermos no caminho reto Deus não nos abandonará.”
Resmungando um pouco, a velha curvou-se novamente e, nesse momento, Hatim
Tai saiu de seu esconderijo, dizendo:
“Deus ouviu suas preces hoje. Eu sou Hatim Tai. Leve-me até o rei e você ficará
rica ao receber as mil peças de ouro.”
“Oh, não, generoso Hatim Tai”, disse o velho chorando. “Não faça mau juízo de
nós, pois foi apenas um impulso perverso que o demônio colocou na mente de minha
mulher. Vendê-lo para seu inimigo em troca de ouro? Que Deus possa ser meu juiz! Não
serei eu a causa de sua morte dessa maneira desonrosa.”
Hatim Tai então respondeu:
“Vamos, levem-me, pois se minha vida puder beneficiar a você e à sua esposa,
permitindo que passem os restos de seus dias tranqüilos, eu ficarei feliz. Que utilidade
posso ter para alguém, vivendo aqui nessa caverna como um animal enjaulado?”
Mas, enquanto o velho protestava, um destacamento de soldados se aproximou e
escutou tudo o que foi dito. Eles ouviram Hatim Tai falando e assim o identificaram. Antes
que ele pudesse entender o que acontecia, os soldados o agarraram e o levaram. O pobre
carvoeiro e sua esposa, sem saber o que fazer, os seguiram em silêncio.
Ao perceber que uma grande multidão se reunira no pátio do palácio, o rei
apareceu e perguntou ao vizir:
“O que está acontecendo? Por que tanto tumulto e gritaria?”

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“Sua Majestade”, disse o vizir, “Hatim Tai, o traidor, foi encontrado e finalmente
será julgado.”
“Quem o encontrou? E onde?”, perguntou o rei.
Nesse momento todos os soldados começaram a gritar, cada um reivindicando
para si próprio a façanha, até que o rei levantou sua mão, fazendo-os calar e disse:
“Não é possível que cada um de vocês ganhe mil peças de ouro. Apenas um deve
tê-lo encontrado e a esse eu darei a recompensa.”
Hatim Tai então falou:
“Ó rei da Arábia, quem me encontrou foi este velho carvoeiro. Dê a ele o ouro,
pois sua necessidade é muito maior do que a desses soldados, que apenas me trouxeram
até aqui.”
“Sua Majestade”, exclamou o velho, “eu lhe peço, escute a verdade. Foi o próprio
Hatim Tai quem veio até nós e nos disse que o levássemos, pois assim poderíamos
receber o dinheiro. Ele ouviu minha mulher falar, enquanto recolhia madeira, que as mil
peças de ouro da recompensa nos permitiriam viver com fartura pelo resto de nossos
dias. Enquanto discutíamos, esses soldados apareceram e capturaram Hatim Tai, pois ele
havia se descuidado de zelar por sua própria segurança.”
Ao ouvir esta história, o coração do rei da Arábia foi tocado e ele percebeu que
Hatim Tai era realmente tão generoso quanto contava a lenda. O rei ficou envergonhado
e fez um sinal para que os soldados o soltassem.
“Deixem-no partir em paz!”, ele disse. “Que ele volte às tendas do seu povo, pois
ficou comprovado, sem a menor sombra de dúvida, que Hatim Tai é o mais nobre de
todos os homens que vivem em nosso reino.”
Hatim Tai permaneceu por um momento na frente do rei e, então, deu graças a
Deus por sua misericórdia naquele dia. O rei ordenou que mil peças de ouro fossem
dadas ao velho casal e devolveu a Hatim Tai todas as suas riquezas.
Quando a notícia de que seu líder havia recuperado a liberdade chegou às tribos,
um grande número de pessoas se dirigiu à cidade para acompanhá-lo até seu novo
território. E o rei da Arábia deixou Hatim Tai e sua gente em paz para sempre.

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PRÍNCIPE ADIL E OS LEÕES

Há muito tempo atrás, em terras distantes daqui, vivia um rei chamado Azad que
tinha um filho bastante parecido consigo mesmo quando jovem. O rei Azad amava esse
rapaz, que era muito bonito, com uma grande ternura. Um dia, ele disse a seu grão-vizir:
"Venha, vamos levar meu filho até a Caverna do Leão e lhe contar o que
esperamos que ele faça, agora que completou dezoito anos."
Foram juntos ver Adil e o grão-vizir disse:
"Príncipe, foi sempre costume nesta nobre família que o herdeiro do trono seja
submetido a uma certa prova, ao atingir a idade que você tem agora. O objetivo dessa
prova é verificar, sem a menor sombra de dúvida, se ele está pronto ou não para ser o
futuro governante de nosso povo. Venha conosco e lhe mostraremos o lugar onde você
deverá vencer esse desafio."
O príncipe acompanhou seu pai e o vizir até uma imensa porta fixada por pregos
na parede de uma caverna rochosa. Na porta havia uma pequena grade através da qual
era possível ouvir o rugido de um leão.
"Olhe, meu filho", disse o rei alisando a barba, "aí dentro encontra-se um enorme
leão, criado na floresta, que é seu dever enfrentar e dominar usando apenas adaga e
espada. Você escolherá o momento de fazê-lo. Todo varão de nossa família que estava na
linha direta do trono teve de passar por essa prova."
O príncipe olhou através da grade e empalideceu ao ver um enorme leão andando
de um lado para o outro no chão forrado de ossos da caverna. O animal tinha uma juba
espessa e dentes brancos extremamente afiados que ficavam à mostra quando ele rugia,
irascível.
"Enfrentar? Dominar? Matar essa coisa?", gaguejou o jovem. "Como poderei fazê-
lo? Até hoje o máximo que consegui foi caçar antílopes, ou lançar meu falcão atrás de um
ou outro pássaro! Realmente penso que está além de minhas capacidades enfrentar um
leão deste tamanho e força."
"Não tenha medo", interrompeu o vizir, "você não precisa fazê-lo agora. Em algum
momento futuro, quando tiver se acostumado com a idéia, você o fará. Refletindo um
pouco mais sobre o assunto, com a graça de Deus, ganhará a confiança de que precisa.
Todos os seus antepassados assim o fizeram, no seu devido tempo."
O rei sorriu e fez um sinal para que um servo jogasse um pouco de carne para o
animal. À medida que ele dilacerava a comida em pedaços, seus urros iam se
transformando em rugidos de contentamento.
Nos dias que se seguiram, embora o rei continuasse tratando seu filho tão
carinhosamente como antes, Adil tinha a impressão de que aquela prova estava suspensa
sobre sua cabeça e que seu pai estava ansioso para que ele matasse o leão de uma vez.
Pensando na luta, ele não era mais capaz de entregar-se aos seus pequenos
divertimentos habituais. Sua vida perdera todo o brilho, pois imaginava que todos
aguardavam sua entrada na cova do leão, na tentativa de igualar os feitos dos famosos
heróis das lendas. Mas ele não se sentia nem um pouco como um deles.

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Certa noite, depois de virar-se de um lado para o outro em seu leito sem
conseguir dormir, Adil levantou-se e se vestiu. Então, enchendo uma bolsa com um
número suficiente de moedas de ouro, dirigiu-se aos estábulos reais sob a luz da lua. Lá
encontrou um cavalariço adormecido e mandou-o selar seu cavalo favorito. Disse-lhe que
informasse ao rei, seu pai, que ele tinha partido em uma jornada.
Sem olhar para trás, Adil saiu cavalgando à procura da resposta para seu
problema. Ao amanhecer alcançou um rio suave e aprazível, com belos prados que se
estendiam em ambas as margens. Ali ele desmontou para deixar que seu cavalo
bebesse um merecido gole de água. Nesse momento escutou o som de uma flauta sendo
tocada e viu um jovem pastor conduzindo um rebanho de ovelhas. Adil perguntou-lhe se
havia algum lugar nas redondezas onde ele pudesse passar alguns dias. O pastor
respondeu que o levaria até seu amo, um rico homem que morava em uma grande casa
ali perto.
Lá, o dono da casa e das terras vizinhas convidou Adil para jantar.
"De onde você vem e como andam os seus negócios?", perguntou o velho homem,
que se chamava Harun. O príncipe respondeu-lhe de forma evasiva, dizendo:
"Tenho problemas em casa, que me obrigaram a partir. Por ora, peço que me
permita dizer-lhe apenas o seguinte: estou à procura de respostas para algumas questões
pessoais."
O homem mais velho respondeu que o príncipe poderia permanecer como seu
hóspede pelo tempo que sentisse ser necessário, usando aquela casa como se fosse a sua
própria. Seu cavalo foi levado para o estábulo, junto aos do próprio Harun e Adil pensou
que gostaria de ficar bastante tempo naquelas paragens tranqüilas.
Todo dia ele descobria novos lugares encantadores e ouvia o som das flautas de
cada pastor nas redondezas: na verdade havia um grande número delas, pois esta era a
“Terra dos Flautistas Celestiais”. Mas uma noite, para seu horror, Adil escutou o rugido de
leões não muito longe da casa e no café da manhã comentou o assunto.
"Oh, sim", respondeu calmamente Harun, "este lugar está infestado de leões
selvagens. Durante a maior parte do ano eles passam a noite toda caçando! Estou
surpreso de que não os tenha ouvido antes. Esta é a razão do alto muro em volta do meu
jardim. Se não fosse assim, eles poderiam carregar os membros de minha própria
família!", disse ele gargalhando ruidosamente, como se tivesse contado uma piada muito
engraçada.
O coração do príncipe encheu-se de medo. Assim que conseguiu ter seu cavalo
pronto, ele despediu-se do amável Harun e, uma vez mais, cavalgou tão rápido quanto
sua montaria era capaz.
Viajou e viajou. Logo os verdes bosques e prados foram deixados para trás e a
paisagem foi se tornando cada vez mais árida. A estrada desapareceu numa planície
áspera e arenosa e, tão longe quanto a vista alcançava, não havia nenhuma folha verde.
Constantemente o vento levantava poeira de pequenas dunas de areia que,
erguidas como montes de neve, faziam aquele cenário parecer ainda mais desolado.
Embora fosse um puro sangue árabe, seu cavalo começou a cambalear, tropeçando com
freqüência sob o sol inclemente. Adil sabia que precisava encontrar água para ambos com
urgência. Em silêncio, rezou para que atrás da próxima duna houvesse um acampamento
de beduínos ou um pequeno oásis.

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Como em resposta à sua oração, ele viu uma fileira de tendas negras surgir do
outro lado da elevação. Ao aproximar-se, vários guerreiros cavalgaram em sua direção
agitando vigorosamente suas armas, gritando "Que a paz esteja com você!" e
exclamando "Seja bem-vindo!".
Os guerreiros escoltaram Adil até seu líder, o sheik, que o recebeu calorosamente,
dizendo-lhe que ele era seu convidado de honra e que poderia permanecer ali pelo tempo
que desejasse.
Após uma maravilhosa refeição de carneiro cozido, arroz com especiarias, figos e
tâmaras de uma incrível doçura, o sheik perguntou a Adil que acaso o havia levado
naquela direção.
"Por favor, não me pergunte mais nada", disse o príncipe. "Basta dizer que sou
alguém que deixou sua casa com um problema, que espero resolver ausentando-me das
terras de meu pai durante o tempo necessário para ganhar a confiança de que preciso e,
assim, resolver minha situação."
O sheik inclinou sua cabeça, alisou sua barba, deu um outro trago em seu
narguillé e murmurou:
"Se pudermos ser pacientes, o tempo nos proporciona todas as respostas".
No dia seguinte ele convidou o jovem para caçar antílopes; no outro para falcoar,
o que agradou profundamente a Adil. Respirando o ar leve e refrescante do deserto,
comendo da mesa farta do sheik e de seus parentes, o príncipe sentiu que poderia ficar
ali para sempre, vivendo sob as estrelas e a luz dourada do sol.
Mas um dia, quando ele já gozava da hospitalidade dos beduínos havia duas
felizes semanas, o velho sheik chamou-o e disse:
"Meu filho, o povo que vive nessas tendas sob minha proteção está muito
satisfeito com você, assim como eu, e admira o espírito com que você se uniu a nós em
nossos modestos passatempos. Mas esses homens e eu somos também guerreiros e
precisamos muitas vezes travar batalhas com outras tribos. Cada um de nós precisa
possuir uma grande bravura para garantir a sobrevivência de nossa própria gente. Por
isso meus homens e eu gostaríamos que você se submetesse a um teste para que
pudéssemos ter algumas provas de sua coragem. Três quilômetros ao sul daqui há uma
grande cadeia de montanhas infestada de leões. Amanhã, levante-se bem cedo e, depois
da prece matinal, monte nosso melhor cavalo. Com espada e lança, mate uma dessas
criaturas selvagens e traga para nós a sua pele. Assim, você terá comprovado sua
coragem a nossos olhos, meu querido e jovem amigo."
O rosto bronzeado do príncipe Adil empalideceu, enquanto o medo tomava conta
de seu ser e, ao desejar boa noite ao sheik, ele sabia que não seria capaz de enfrentar
aquelas criaturas selvagens.
Durante o jantar, observando aqueles rostos felizes brilhando à luz das fogueiras,
Adil pensou consigo mesmo: "Céus! Parece que eu tenho a má sorte de encontrar leões
em todos os lugares aonde vou! Não consigo entender isso... por que abandonei minha
casa, senão para evitá-los?"
Quando todos dormiam, ele deslizou para fora de sua tenda, procurou seu cavalo
e silenciosamente abandonou o lugar onde havia sido tão feliz por duas longas semanas.
Será que seu destino era viajar pelo mundo para sempre, sem nunca encontrar um lugar
onde não houvesse leões?

mlepri/96 49
Ele cavalgou e cavalgou noite estrelada adentro. Quando os tons róseos da aurora
começaram a tingir o céu, Adil avistou uma região muito bela, com colinas e vales
cobertos de flores silvestres, onde seu cavalo pôde beber em um pequeno lago de águas
tranqüilas. Então, na claridade resplandecente do dia, ele viu um magnífico palácio, o
mais maravilhoso entre todos os que havia conhecido. Suas paredes, erguidas com uma
pedra cor-de-rosa, eram pontilhadas por colunas de lápis-lazúli e balcões coloridos de
madeira trabalhada. Ao redor do palácio, os jardins repletos de fontes, de pavilhões
cobertos por jasmins e rosas docemente perfumadas e de árvores floridas atraíam um
incontável número de pássaros que cantavam.
“Este lugar é um verdadeiro paraíso terrestre!”, murmurou Adil para si mesmo
enquanto se aproximava do palácio. Chegando ao portão principal, foi recebido por
guardas que o conduziram a um pátio interno e logo um jovem encarregou-se de levar
seu cavalo para ser alimentado e tratado. Adil foi encaminhado a um quarto de hóspedes,
onde pôde banhar-se e vestir roupas limpas, ajudado por servos sorridentes.
Por fim ele foi conduzido à presença do emir, um homem de barba grisalha, rico e
muito encantador que, em meio aos cumprimentos de praxe, perguntou o que o trouxera
naquela direção. A princesa Peri-Zade estava tomando o desjejum com seu pai e Adil
ficou impressionado com sua graça e beleza, enquanto ela lhe servia um refresco de
frutas adocicado de uma jarra de cristal. A princesa tinha maravilhosos olhos
amendoados, uma pele perfeita e seus cabelos, arrumados em pequenas tranças, eram
negros como a cauda do corvo.
“Minha situação é tal que eu... eu... não posso falar sobre ela”, gaguejou Adil
emocionado, tentando não olhar para a adorável Peri-Zade, por quem já havia se
apaixonado. “É suficiente dizer que precisei deixar meu país porque tinha um problema a
resolver...”, respondeu, permanecendo então em silêncio, a saborear o delicioso refresco
de frutas com os olhos baixos.
O emir anuiu com a cabeça sabiamente e afagou a barba: “Eu compreendo”,
replicou em voz baixa, passando a falar de outros assuntos. A princesa olhava para Adil
por sob seus longos cílios, achando-o um jovem de bela aparência e perguntava-se a si
mesma qual poderia ser o seu problema e se ela seria capaz de ajudar a resolvê-lo.
Após a refeição, o emir mostrou a Adil o interior do palácio. Se o exterior era
grandioso, quão mais extravagante ele era por dentro! Escadas de mármore polido e
pórfiro vermelho conduziam a vários cômodos, decorados com móveis de madeira de
todas as partes do mundo. As paredes e os tetos eram recobertos por afrescos, espelhos
e mosaicos de ouro e turquesa.
Nas mesas esculpidas em jade repousavam tigelas de pedras preciosas e
madrepérola. As janelas eram de um vidro translúcido, cuja coloração ia de um rosa que
lembrava o pôr-do-sol a um verde tão profundo quanto o mar, passando por outros
maravilhosos tons. Assim, os raios de sol, ao passar por elas, iluminavam o pavimento
com cores encantadoras. Os tapetes que forravam o salão principal eram macios como
seda: alguns mostravam árvores bordadas de onde pendiam frutos de ouro; outros,
animais e pássaros tão habilmente ornamentados que Adil admirava-se que tivessem sido
feitos por mãos humanas.
O emir conduziu-o até o melhor quarto de hóspedes e rogou-lhe que vestisse as
roupas limpas que estavam sobre a cama, convidando-o a permanecer no palácio por
quanto tempo lhe fosse possível fazê-lo.

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Ao ficar a sós, admirando o esplendor à sua volta e suas vestes ricamente
bordadas, Adil pensou que aquele era o único lugar no mundo onde ele poderia ficar pelo
resto de sua vida.
O tempo foi passando e a princesa Peri-Zade encantava-se em poder mostrar o
jardim a Adil em diferentes horas do dia. Uma noite, perambulando pelas alamedas
perfumadas de jasmim, ele escutava-a cantar uma canção, acompanhando-se ao alaúde,
que ela tocava com grande arte. O Palácio estava iluminado de cima a baixo por milhares
de velas e os empregados apressavam-se em preparar as iguarias para a festa noturna.
De repente, Adil escutou um som que fez que os cabelos de sua nuca se
arrepiassem:
“Pare!”, ele gritou e, virando-se para a princesa, perguntou “O que foi isso?”
“O que foi o quê?” ela respondeu um tanto rispidamente, pois ficara aborrecida
com a aparente falta de interesse dele por sua música. Ela continuou tocando e então Adil
escutou o som novamente.
“Pare agora, por favor, querida princesa”, disse ele com urgência. “Foi ali, nos
arbustos... parecia... o som de um rugido de leão!”
Ela riu e encarou-o: “É apenas Rustum, nosso guardião, como o chamamos! Ele é
o animal de estimação de todos na corte e patrulha os arredores do palácio a essa hora
da noite”, disse ela sorrindo. “Eu o conheço desde que era apenas um pequeno filhote
desajeitado e ele sempre dorme junto à porta de meu quarto!”
O príncipe Adil empalideceu e sugeriu que, como a noite estava esfriando, eles
deveriam retornar ao palácio. Mais tarde na festa, sentado à direita do emir, Adil mal
conseguia comer pensando em quando ele poderia encontrar-se frente à frente com o
leão, que nesse momento rugia de forma bastante ruidosa no jardim. Ninguém mais
parecia perceber o barulho e todos, menos ele, deleitavam-se com a excelente comida.
Quando a festa terminou, seu anfitrião levantou-se e acompanhou Adil pela
escada de mármore que conduzia ao quarto de hóspedes. Ali no topo estava o imenso
leão de aparência feroz. Adil teria dado meia-volta e seguido na direção oposta se o emir
não tivesse dito:
“Veja, você está sendo homenageado, meu filho! O bom e velho Rustum está aqui
esperando para acompanhá-lo até o quarto de dormir! Posso lhe assegurar que ele não
faz isso com qualquer hóspede. Rustum só fica zangado quando percebe que alguém tem
medo dele”, brincou o emir, “mas no fundo é extremamente manso”.
“Eu tenho medo dele”, sussurrou Adil, “realmente tenho...”
Mas o emir pareceu não ouvir e desejou boa-noite ao seu convidado. O leão
seguiu ao lado de Adil enquanto ele percorria o caminho até seu quarto. Ao alcançá-lo, o
jovem tratou de entrar depressa e fechou a porta.
O leão postou-se do lado de fora e pareceu a Adil que o animal não parava de
farejar pela fechadura e de tentar virar a maçaneta com os dentes e as patas. Ao
amanhecer, Adil despertou de um sono agitado e abriu a porta. O leão tinha ido embora.
Nesse momento Adil decidiu voltar para casa. Havia tantos leões no mundo que
seria melhor enfrentar o leão na caverna e terminar logo com aquilo, em vez de continuar
fugindo o resto da vida.
Assim que se lavou e se vestiu, foi até seu anfitrião e disse:

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“Ó grande emir! Peço sua permissão para deixar o palácio agora e, à minha
maneira, enfrentar meu próprio problema. De outro modo, sei que nunca estarei em paz
comigo mesmo. Sou um covarde e quero mudar isso, por amor a meu pai. Sou o filho do
rei Azad e fugi de um dever que todos os homens de nossa família precisam cumprir.
Estou envergonhado e sei que nunca poderei pedir a mão da princesa Peri-Zade, se não
encarar meu destino e lutar com o leão na caverna”.
“Muito bem dito, meu filho”, disse o emir. “Soube quem você era assim que
chegou, devido à sua estreita semelhança com seu pai quando jovem. Sempre respeitei e
admirei o rei Azad. Vá, enfrente o leão e lhe darei minha filha Peri-Zade em casamento,
pois ela já me falou de você com grande afeição”. E, apoiando sua mão carinhosamente
no ombro de Adil, ele sorriu.
O príncipe montou seu cavalo e galopou até alcançar o acampamento de tendas
negras, onde passara momentos tão felizes algum tempo atrás. Quando Adil apareceu
cavalgando, o sheik beduíno, que estava sentado fumando seu narguillé, saudou-o
amigavelmente:
“Seja bem-vindo, príncipe Adil!”, ele disse. “Conheci seu querido pai muito bem,
quando nós dois tínhamos aproximadamente a sua idade... Na verdade, agora você está
mais parecido com ele do que nunca, embora eu já tivesse notado a semelhança da
primeira vez que esteve aqui e foi por isso que adivinhei quem você era...”
Então Adil contou que estava voltando para casa a fim de enfrentar o leão na
caverna. O sheik ficou muito satisfeito e convidou-o para passar a noite no acampamento,
de forma a estar bem-disposto na manhã seguinte.
Refeito da primeira etapa da viagem de volta, Adil cavalgou ao nascer do sol rumo
ao seu próprio país. De repente, ele se deu conta de que ansiava por ver sua casa
novamente, com leão e tudo. Mal podia esperar para contar a seu pai que estava pronto
para enfrentar a enorme criatura na caverna.
Rapidamente chegou ao belo país dos Flautistas Celestiais. Para sua alegria, viu o
mesmo jovem de antes, tocando suas ovelhas com o som de suas flautas. Mais tarde o
dono dos rebanhos deixou seu pátio ensombreado para receber o príncipe. Depois de
tomar um refresco, Adil explicou que não poderia ficar, pois estava em seu caminho de
volta ao castelo de seu pai:
“Ao chegar aqui, pela primeira vez, eu era apenas um covarde querendo escapar
de seu destino”, ele explicou. “Mas agora estou pronto para enfrentar o leão. Todos os
meus antepassados lutaram com um animal igual, sem se importarem com o resultado da
luta. Colocarei minha fé em Deus, o compassivo”.
“Que assim seja!”, respondeu o ancião. “Fico realmente feliz em ouvir que você
chegou a um acordo com as suas questões. Sabia que, no momento certo, você iria
assumir suas responsabilidades - sendo de verdade o filho de seu pai, meu generoso
companheiro de estudos. Vai, e que Deus esteja contigo!”
Depois de despedir-se, Adil encontrou-se uma vez mais em seu caminho e, no
devido tempo, alcançou seu próprio país. Após saudar seu pai beijando-lhe as mão, ele
disse corajosamente ao grão-vizir:
“Leve-me imediatamente à caverna desse leão feroz que devo enfrentar, pois
sinto-me bastante forte agora para tentar a luta!”

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Transbordando de alegria, o velho rei abraçou o jovem príncipe e, junto com o
grão-vizir, os três tomaram uma vez mais o caminho da cova do leão.
A espada e a adaga que Adil carregava brilhavam à luz do sol e, quando um
empregado abriu a imensa porta da caverna, ele entrou bravamente na sombria cova. O
leão começou a rugir, agachou-se, chicoteou o chão com sua cauda, ergueu-se e então
veio na direção de Adil com as enormes mandíbulas abertas.
O príncipe fitava a besta sem medo, armas na mão, enquanto o rei, o grão-vizir e
o servo olhavam silenciosamente. O leão emitiu outro rugido, mais forte ainda que os
anteriores e investiu contra ele. Então, para a surpresa de Adil, o monstro começou a
esfregar a cabeça em seus joelhos e a lamber suas botas como um cãozinho de
estimação!
Nesse momento o grão-vizir exclamou:
“Ó, príncipe auspicioso! Agora você vê que este leão é tão inofensivo quanto um
servo devotado e seria incapaz de machucar alguém. Você passou no teste ao entrar na
cova, provando assim o seu valor. Agora é digno de ser nosso futuro rei. Deus seja
louvado!”
O jovem mal podia acreditar no que havia acontecido e, ao deixar a caverna, o
leão o acompanhou como um amigo dedicado, brincando a seu lado até ser levado de
volta para a cova pelo servo. O Rei felicitou o filho por sua coragem, que agora não
poderia mais ser posta em dúvida. Pela graça de Deus, Adil estava preparado e merecia
ser Rei depois dele.
Uma grande alegria tomou conta do Palácio. No dia seguinte, houve também
muitos festejos nas casas das cidades vizinhas pois, como rezava a tradição, moedas de
ouro e de prata foram atiradas pelo feliz rei para a multidão que se juntava no pátio
embaixo do balcão real.
Adil contou que havia pedido a mão da linda princesa Peri-Zade e perguntou ao rei
Azad se ele abençoaria essa união. O rei concordou e um veloz mensageiro foi
despachado rumo ao longínquo país onde ela vivia.
Para Adil pareceu uma eternidade o tempo que se passou até que o cortejo
trazendo sua amada chegasse. Ela veio acompanhada por uma multidão de parentes e
amigos, vestidos em trajes de gala para o casamento. A visão da princesa Peri-Zade,
vestida com a mais fina seda e adornada por jóias de grande valor, entrando no grande
pátio de seu palácio cavalgando uma égua árabe branca, permaneceu na memória do
Príncipe Adil até o fim dos seus dias.
A festa de casamento durou sete dias e sete noites e durante esse tempo
nenhuma lágrima foi derramada em todo reino.
Assim, eles viveram felizes para sempre e, quando Adil tornou-se rei depois de seu
pai, fez com que as seguinte palavras fossem escritas - em letras de ouro - no chão de
seu gabinete de estudo:
“Nunca fuja de um leão.”

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WALI E O ALFORJE MÁGICO

Era uma vez, três irmãos que viviam numa pequena aldeia não muito longe de
Herat. O mais velho chamava-se Masud, o do meio Hamid e o mais novo Wali. Seus pais
tinham morrido durante uma fome que assolara a região e, embora os vizinhos se
oferecerem para cuidar deles, os três decidiram partir em busca de suas próprias
fortunas. Os bondosos vizinhos colocaram então todo dinheiro que puderam reunir numa
bolsa de couro e, com muitas bênçãos, os despacharam para sua jornada.
Quando eles já estavam bem longe, acamparam no sopé de uma montanha e
pegaram no sono. Durante a noite, Masud teve um estranho sonho. Sonhou que os sinos
tocavam e que vozes lhe diziam:
- Masud, Masud. Cave a terra embaixo de você e encontrará ouro...
De fato, tão logo amanheceu, Masud correu a buscar uma pá em sua bagagem e
cavou até encontrar peças de ouro. Então, ele encheu os bolsos e disse:
- Irmãos, agora eu já encontrei ouro suficiente para construir uma casa para mim
e conseguir uma esposa. Por isso, aqui me despeço de vocês e espero que tenham tanta
sorte quanto eu.
E, desse jeito, pôs-se a caminho de casa.
Hamid e Wali retornaram sua marcha, pois pensavam que era preciso procurar
ainda mais, de forma a encontrar suas próprias fortunas. Assim, continuaram sua
caminhada por mais um dia e, quando a noite caiu, eles estavam na borda de uma
enorme floresta. Então, ajeitaram um lugar debaixo de uma grande árvore e foram
dormir. No meio da noite, Hamid teve um estranho sonho, no qual ouviu o som de
trombetas tocando e de vozes que diziam:
- Hamid, Hamid. Cave a terra embaixo de você e encontrará jóias...
Quando foi amanhecendo, Hamid mais que depressa pegou uma picareta em sua
bagagem e começou a cavar. Cavou, cavou e, quando Wali acordou, seu irmão já havia
encontrado um pote de barro cheio de valiosas jóias de todos os tipos.
- Irmão, disse Hamid, agora já encontrei minha fortuna, volto para a nossa aldeia,
compro uma casa e arranjo uma esposa, como Masud o fez. Por isso, aqui me despeço de
você. Adeus! E espero que tenhas tanta sorte quanto eu.
E, pelo mesmo caminho que veio, foi-se embora.
Com a partida do irmão, Wali sentiu-se um pouco sozinho, mas não se desesperou
e saiu caminhando pela floresta. Havia uma passagem estreita, com árvores de ambos os
lados e ele se perguntou se poderia chegar a uma clareira onde houvesse uma pequena
fonte ou regato, pois já estava ficando com muita sede. Mas, aquelas árvores pareciam
não ter fim e ele começou a sentir que antes de poder atravessar toda a floresta estaria
morto de fome e sede. Foi então que subiu até o topo de uma árvore muito alta e olhou
em todas as direções, mas nada avistou senão árvores por toda a parte.
Quando desceu da árvore, qual não foi sua surpresa ao encontrar, ali mesmo no
chão, um alforje lindamente bordado. Como parecia não haver ninguém por perto, bem
depressa ele o revistou, pensando que dentro poderia haver alguma comida deixada por
quem ali o perdera. Mas estava vazio.
- Oh, que falta de sorte a minha! disse comigo mesmo. Um dos meus irmãos
encontrou ouro, o outro jóias e eu, tudo que pude encontrar, foi um alforje vazio. Oh, se
ao menos ele estivesse repleto de coisas gostosas para comer...
Mas, tão logo as palavras lhe saíram da boca, ele percebeu que o alforje, antes
vazio, agora estava bojudo. Quando o abriu, encontrou uma galinha assada, uvas, doces
e suco gelado numa garrafa. Ele estava com tanta fome, que num instante já havia
terminado com tudo e, deitando-se, relaxou profundamente.

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“Claro que este alforje é mágico”, pensou. “E tudo que tenho a fazer é ordenar o
que preciso e pronto.”
Imediatamente, ele desejou uma roupa nova e eis que encontrou uma linda calça
e uma túnica de couro debruada de pele. Então, ele pediu um par de botas, que num
piscar de olhos apareceram. Ele estava elegante e confortável, quando de novo
empreendeu sua caminhada através do bosque, o alforje pendurado em seu ombro.
Wali ainda não havia pedido que o alforje lhe proporcionasse ouro, prata e pedras
preciosas, por temer que, numa viagem como essa, poderia topar com um ladrão e
melhor seria não carregar nada de muito valor. Então, dia após dia, ele caminhou sem
preocupação, recebendo sempre a comida que pedia e só o tanto de que necessitava.
Ao final de seis dias, ele chegou ao fim do bosque e encontrou-se diante de uma
fértil planície. Milharais ondulavam à brisa e pereiras, macieiras e pessegueiros estavam
carregados de frutos. À distância ele avistou uma casa com flores e rosas crescendo à sua
volta.
“Bem, até que enfim vou poder conversar com alguém”, pensou.
E logo em seguida batia à porta. Esta foi aberta por uma mulherzinha gorda, toda
coberta por um véu e manto pretos.
- Mãe, disse ele, será que posso lhe pedir para passar a noite aqui, pois já faz
muito tempo que não durmo numa casa, desde que saí pelo mundo em busca de fortuna
com meus irmãos...
- Venha, entre, disse a mulher. Eu tenho um filho da sua idade e seria bom para
ele ter um amigo, já que vivemos nesse lugar tão isolado. Mas onde é que estão seus
irmãos? Não estão com você?
- Eles já encontraram suas próprias fortunas, respondeu Wali, pois um achou ouro
e o outro pedras preciosas. Mas tudo o que pude encontrar foi esse alforje velho, apesar
de que ele tem me servido bastante bem, continuou Wali, preferindo não contar nada
sobre o alforje mágico, para evitar que ela o cobiçasse.
Quando seu filho voltou do campo, a mulher serviu a comida, enquanto os jovens
sentavam-se à mesa. Então, o filho da mulher perguntou a Wali:
- Para onde você vai e de onde vem, para passar por nosso lugar, longe de tudo?
- Irmão, disse Wali, venho de uma aldeia perto de Herat, mas para onde vou
ainda não sei, pois estou caminhando pelo mundo em busca de minha própria sorte.
Nesse momento a mulher queixou-se:
- Oh, que infortúnio... Esqueci a carne! Na excitação de receber uma visita,
cozinhei apenas arroz... e puxava seus cabelos, aborrecida.
- Não se aborreça mãe, vou conseguir um pouco de carne para nós - Wali disse.
E meteu a mão dentro de seu alforje, tendo feito primeiro a intenção de que a
carne suficiente para três pessoas fosse providenciada. Ao entregá-la, a mulher
exclamou:
- Como, senhor?! Sois uma espécie de Dive capaz de extrair de vosso alforje
aquilo de que necessito?
Ao que ele imediatamente respondeu:
- Não, não! Sou humano tanto quanto a senhora e seu filho o são, só que possuo
um tipo de alforje muito especial...
Bem, o filho da mulher ficou morto de curiosidade ao escutar isso, e resolveu dar
uma olhada no alforje, assim que seu hóspede fosse dormir. E à noite, quando Wali se
encontrava deitado no chão quentinho perto do forno, o jovem camponês foi
sorrateiramente se esgueirando até ele. Examinou cuidadosamente o alforje, confiando
encontrar todo tipo de coisa ali dentro, mas e ele estava vazio. Desapontado, foi embora
para o seu quarto.

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Wali, que tinha visto tudo com seus olhos semicerrados, ficou certo de que deveria
ir embora bem cedinho, ou seu segredo seria descoberto e a mulher e seu filho
acabariam roubando seu alforje. Assim sendo, na manhã seguinte, bem cedo, ele deixou
aquela casa, partindo de madrugada.
Logo chegou à cabana de um pescador à margem de um rio muito largo e bateu à
porta. O pescador, que estava consertando suas redes lá dentro, abriu a porta com ar
surpreso.
- Bem-vindo, jovem rapaz! disse ele. Não é comum ver gente por esses lados. De
onde você vem e para onde vai?
- Eu venho de uma aldeia perto de Herat, respondeu Wali, e ando em busca de
minha fortuna pelo mundo. Posso ficar com você essa noite? Pois estou muito fatigado e
só assim poderei descansar um pouco.
- Certamente, disse o pescador. Fique por aqui o tempo que lhe agradar, pois
vivendo nessa cabana isolada, não é sempre que tenho alguém com quem conversar.
Ele fez com que Wali entrasse em sua pequena morada de um só aposento, e lhe
deu um pouco de peixe cozido para comer. Depois de conversarem por algum tempo, o
pescador começou a contar o grande desgosto de sua vida: ladrões, na noite anterior,
haviam levado embora sua mulher.
- Nunca poderei trazê-la de volta, pois não tenho com que resgatá-la.
- Talvez eu possa fazer alguma coisa a esse respeito, disse Wali. Se você olhar
para o outro lado e contar até cem, sua mulher lhe será trazida de volta.
O pescador fez do jeito que lhe foi dito e, quando Wali abriu o alforje (depois de
fazer a intenção), lá estava a mulher do pescador, sã e salva, saindo de dentro dele.
- Misericórdia sobre nós! exclamou o pescador. Será você alguma espécie de Dive
ou Gênio para fazer tal mágica?
E ele foi abraçar sua mulher, que não parecia nada abalada por suas aventuras.
- Não! disse Wali. Sou tão humano como você e sua mulher, mas é que possuo
um tipo de alforje um tanto especial.
E assim passaram a noite festejando e celebrando, pois Wali providenciara tudo
para eles. Na manhã seguinte, quando saiu para tomar ar fresco, Wali escutou a mulher
dizendo ao pescador:
- Marido, você precisa tomar o alforje desse rapaz, pois veja como nos seria útil.:
você não precisaria mais ser um pescador e viveríamos como gente importante.
Quando Wali ouviu isso, entendeu que devia ir embora o quanto antes, pois a
astuta mulher não descansaria enquanto seu marido não possuísse o alforje... e, nesse
caso, o que seria dele? Portanto, ele partiu, atravessando a ponte sobre o rio e chegou ao
outro lado, quando o sol começava a se elevar nos céus.
Wali estava agora rodeado por penedos enormes e por rochas pontiagudas e, de
vez em quando, avistava abutres sobrevoando o céu por cima de sua cabeça. As rochas
tornavam-se cada vez maiores e o caminho mais e mais difícil sob seus pés, a tal ponto
que foi preciso parar e sentar, pois suas botas novas estavam quase desfazendo-se em
tiras. O sol ardia sobre a sua cabeça e o dia era de intenso calor. De repente, ele pensou
ouvir alguém chamando por detrás de uma moita de arbustos:
- Socorro! Socorro! Salve-me! Salve-me por piedade!
Ele deu um pulo, pendurou seu alforje no ombro e saiu à procura do dono daquela
voz. Daí a pouco, ele a escutou de novo e acabou por descobrir uma pobre menina com
as vestes em farrapos, atadas pelos pés e pelas mãos atrás de um gigantesco rochedo.
Ela tinha seus longos cabelos negros completamente despenteados e embaraçados e seus
pés estavam descalços. Wali tirou uma faca de seu cinturão e cortou-lhe as amarras dos
pulsos e dos tornozelos.

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- Quem fez isso com você? Perguntou. E como foi que ficou assim desse jeito?
- Meu nome é Zuleika, ela balbuciou quando Wali deu-lhe de beber água em seu
cantil, e meu pai casou-se novamente no mês passado. Mas, em vez de ser uma mãe
para mim, minha madrasta mandou-me viver na casa de um servo, pois não podia
suportar a minha presença. Consegui escapar daquela gente, que me mantinha
prisioneira sob as ordens dela, mas fui raptada por um ladrão que roubou-me todas as
jóias e abandonou-me para morrer à míngua aqui nessas rochas, tão perto de minha
antiga casa.
- Que coisa mais afortunada eu ter vindo por esse caminho e ter parado para
descansar meus pés doídos, pois, do contrário, suponho que você nunca teria sido
encontrada, disse Wali.
- Mil graças lhe sejam dadas e, se você puder me levar de volta à casa de meu
pai, estou certa de que ele não lhe seria mal-agradecido, rogou a menina. É perto daqui.
- Levarei você de volta em seguida, se me disser como chegar lá, disse Wali. Mas,
se você me perdoar o atrevimento, penso que primeiro deveria vestir umas roupas novas.
Então, ele a colocou num lugar agradável à sombra de um grande rochedo e pediu
tudo quanto ela poderia necessitar. Em poucos minutos, diante dos olhos assombrados da
garota, ele retirou de seu alforje calças de seda, um véu cor-de-rosa, uma túnica de
veludo e sapatilhas douradas. Quando ela acabou de se vestir e saiu de trás de um
arbusto, mais parecia uma princesa. Enquanto isso, Wali fez surgir alguns petiscos para
que comecem e água de rosas para lavarem as mãos.
Wali pediu então ao alforje um novo par de botas para si mesmo e, quando
terminou de calça-las, ele e Zuleika partiram rumo à casa de seu pai. O sol já não era tão
forte e era mais fácil caminhar. E, de repente, a menina apontou para um grande prédio
na encosta de uma colina.
- Olhe! Lá está minha casa, exclamou. Vamos depressa, pois não agüento mais
esperar para contar minha aventura ao meu pai.
Em pouco tempo, Wali estava batendo à porta da casa e Zuleika cobriu a face com
o véu, com medo de ser vista por sua madrasta. O porteiro perguntou a Wali o que ele
desejava e olhou-o com desconfiança.
- Diga-lhe que você traz notícias de Zuleika, soprou a menina e Wali assim o fez.
- Oh! Notícias de minha pobre patroinha tão tragicamente desaparecida... disse o
homem, abrindo a porta de uma vez.
Logo, Wali e Zuleika estavam diante do chefe da casa, que amavelmente os
saudou e os convidou a contar tudo, sem omitir nenhum detalhe.
- Senhor, sua filha Zuleika está sã e salva e breve estará consigo.
- Que maravilhosa notícia! gritou o velho homem. Pois eu temia que aquela
querida menina, a Luz dos meus olhos, estivesse morta. Diga-me como a encontrou e
onde ela está agora?
Nesse momento, sem agüentar conter mais suas lágrimas, Zuleika correu e,
tirando o véu, jogou-se nos braços do pai.
Então, pouco a pouco, toda a história foi contada. Quando seu pai soube que sua
nova esposa havia sido tão cruel, mandou-a de volta para o seu próprio povo e nunca
mais ela colocou os pés naquela casa.
Por fim, Wali e Zuleika se casaram e viveram felizes para sempre. Cada dia eles
tomavam do alforje apenas o que necessitavam e por isso nunca lhes faltou nada. Pois
aquele alforje tinha sido feito de uma tal maneira que, somente se pedissem o
essencialmente necessário e nada mais, ele continuaria a servi-los. No entanto, se
tivessem sido gananciosos e desejado demais, ele teria desaparecido, para nunca mais
ser visto.

mlepri/96 57
Quando as águas foram mudadas

Certo dia, faz muito tempo, um ser que nutria profunda simpatia pela espécie
humana dirigiu uma advertência a todos os homens e mulheres que habitavam o planeta
naquela época . Numa data determinada, ele declarou, todas as águas do mundo que não
forem especialmente guardadas desaparecerão. Serão então renovadas com uma água
diferente e que fará os homens enlouquecerem.
Somente um homem prestou atenção à advertência. Recolheu bastante água e
armazenou-a num lugar seguro, esperando que as águas mudassem suas características.
No dia indicado as correntes deixaram de correr, os poços secaram, e o homem
que dera ouvidos à advertência, vendo o que ocorria, foi a seu refúgio e bebeu da água
guardada no pequeno reservatório.
Quando notou, lá de seu abrigo, as fontes jorrarem novamente, desceu da colina
e foi misturar-se aos outros homens. Comprovou que eles estavam pensando e falando
de um modo inteiramente diverso do anterior; nem sequer tinham lembrança do que
acontecera, tampouco de terem sido alertados pelo ser. Quando tentou dialogar com eles,
percebeu que o julgavam louco, tratando-o com hostilidade ou compaixão, ao invés de
compreendê-lo.
De início ele não bebeu da água renovada, retornando a seu refúgio e servindo-se
diariamente da água que guardara. Mas, finalmente, resolveu beber da nova água por
não poder suportar mais a tristeza de seu isolamento, comportando-se de maneira
diferente dos demais. Bebeu a nova água e tornou-se igual aos outros. Então se
esqueceu inteiramente de tudo que se referia à água especial que armazenara. E seus
semelhantes passaram a encará-lo como a um louco que milagrosamente havia
recuperado a razão.

mlepri/96 58
A Serpente e o Homem Sábio

Nos arredores de uma pequena aldeia na Índia vivia uma serpente não venenosa. Sua
mordida não era fatal, mas podia deixar um homem doente por várias semanas. Rápida e
perversa, ela atormentava o povoado. Um homem sábio passou pela aldeia certa primavera,
durante a sua peregrinação anual. Aos poucos, todos, adultos e crianças, foram se reunindo em
torno dele, pedindo para serem abençoados. Um dos camponeses, no entanto, fez um passo atrás,
hesitante, e só quando o sábio posou a mão sobre a última cabeça, ele se aproximou novamente.
“Eu não peço uma benção para mim, mas para toda a aldeia,” disse o camponês. “Se ao
menos você pudesse nos livrar da serpente que nos atormenta, então nós nos sentiríamos
abençoados em atos tanto quanto em palavras.”
O sábio pediu para ser conduzido até a cova da serpente. Ela estava deitada do lado de
fora, seu corpo todo enroscado, formando uma espiral. O sol brilhava em seu dorso lmacio,
fazendo com que as listras verdes e amarelas que a envolviam faiscassem.
“Serpente,” murmurou o sábio, “eu vim para falar com você.”
A serpente ergueu a cabeça e fitou o homem através de seus olhos rasgados.
“Serpente,” sussurrou o sábio com voz melodiosa, “você precisa abandonar o perverso
caminho no qual tem deslizado. Esta vida é curta. Quem sabe quantas longas vidas terá que
atravessar para reparar esta aqui?”
Enquanto falava, ia tocando o dorso da serpente com a ponta dos dedos. Lentamente ela
foi deixando sua cabeça repousar e seus olhos fecharem.
“Serpente,” prosseguiu o homem sábio, “você deve seguir um caminho de paz, vivendo em
harmonia com todos os seres.”
Nesse momento a serpente soltou um longo silvo. Mas o sábio seguiu sussurrando e
acariciando. Devagarinho a serpente foi se desenroscando e começou a balançar o corpo
suavemente, seguindo o ritmo gentil daquela voz. O sábio escolhia com cuidado cada frase, até
que a serpente quedou completamente enredada em suas palavras. O dia virou noite e o homem
ainda falava. Finalmente disse:
“Serpente, preciso deixar-te agora, mas devemos antes selar um pacto. Durante todo o
próximo ano você não vai fazer nenhum mal aos aldeões. Eu voltarei ao fim deste tempo e nós
conversaremos uma outra vez.”
A serpente deu sua palavra.
******
Um ano se passou e de novo o sábio se postou em frente à cova da serpente.
“Serpente, aqui estou!”, ele chamou.
Depois de um longo momento, a serpente se arrastou para fora da cova, vagarosa e
dolorosamente. Seu outrora lustroso corpo apresentava-se agora pálido e sua pele repleta de
feridas, algumas ainda sangrando, outras já cicatrizadas.
“Serpente, minha querida serpente, quem fez isso com você?” gritou o homem.
Falando sem amargura, a serpente começou seu relato: quando os aldeões perceberam a
transformação da serpente, por seu turno começaram a atormentá-la. De início, atirando paus e
pedras de longe. E então, vendo que ela não reagia, foram se tornando cada vez mais ousados.
“Eu mantive minha promessa,” disse a serpente, “e o resultado é que não posso nem
mesmo dormir ao sol sem ser furada, chutada ou golpeada. Eu estava errada ao te escutar. Você é
o culpado da minha miséria.”
O homem sábio acariciou gentilmente o dorso magro da serpente e falou:
“Ah, pobre serpente! Realmente sou eu o culpado. A causa do teu tormento foi um grande
erro que cometi, ao não me expressar da maneira correta. Eu queria que você parasse de morder
os aldeões. Nunca disse que você deveria deixar de silvar para eles.”
In “Stories from an Eastern Coffee House”, Elizabeth Retitov, Doric Pub.Co, 1963.

mlepri/96 59
A velha arca da jovem esposa de Nuri Bey

Nuri Bey era um próspero camponês, sensato e respeitado por todos na aldeia,
que há alguns anos se casara com uma mulher muito bonita e muito mais jovem do que
ele.
Certa tarde, ao voltar para casa mais cedo do que de costume, seu mais antigo e
fiel empregado dele se acercou e disse:
_ Sua esposa, minha patroa, está procedendo de maneira suspeita. Ela se
encontra em seu quarto nesse momento, junto a uma enorme arca que foi de sua avó;
uma arca grande o bastante para caber um ser humano dentro.
_ Talvez só contenha roupas e bordados antigos _ retrucou Nuri.
_ Acho que deve haver muito mais ali, agora. E minha patroa não permite que eu,
o mais antigo de seus empregados, veja o que há na arca.
Nuri foi ao quarto da esposa, encontrando-a sentada, com ar desconsolado, junto
à enorme caixa de madeira.
_ Que me mostrar o que há dentro dessa arca? _ ele perguntou à esposa.
_ Por causa das suspeitas de um outro? Ou por que você não confia em mim?
_ Não seria mais fácil abri-la, em vez de se ater a insinuações?
_ Não creio que seja possível.
_ Está trancada?
_ Sim _ ela respondeu.
_ E onde está a chave?
_ Despeça o empregado e eu a darei.
O antigo colaborador foi despedido. A mulher entregou a chave.
Nuri Bey foi passear no pomar de forma a meditar sobre a situação.
Ao voltar para casa, tarde da noite, acordou o outro homem que morava e
trabalhava em suas terras e que permanecera na propriedade e os dois carregaram a
enorme arca até debaixo da romanzeira. Ali, sob a sombra rendilhada da lua em sua
décimaquarta noite, enterraram a arca, sem abri-la.
E o assunto nunca mais foi comentado.

mlepri/96 60
A Lenda das Areias

Vindo de suas origens nas montanhas distantes, após passar por inúmeros
acidentes de terreno nas regiões campestres, um rio finalmente alcançou as areias do
deserto. E do mesmo modo como vencera os outros obstáculos, o rio tentou vencer este
de agora, mas se deu conta de que suas águas desapareciam assim que tocavam as
areias.
O rio tinha certeza, no entanto, de que cruzar aquele deserto fazia parte de seu
destino, embora não visse como fazê-lo. Então uma voz misteriosa, saída das próprias
areias, sussurrou: “O vento cruza o deserto, o mesmo pode fazer o rio.”
O rio retrucou que estava sendo absorvido assim que se arremessava contra as
areias, enquanto o vento podia voar, conseguindo dessa maneira atravessar o deserto.
“Arrojando-se com violência, como vem fazendo, você não conseguirá cruzá-lo.
Assim apenas irá desaparecer ou transformar-se num pântano. Você deve permitir que o
vento o conduza a seu destino.”
“Mas como isto pode acontecer?”, perguntou o rio.
“Você precisa consentir ser absorvido pelo vento.”
Tal sugestão parecia inaceitável para o rio. Afinal de contas, ele nunca fora
absorvido até então. Não desejava perder sua individualidade. Uma vez a tendo perdido,
como poderia saber se a recuperaria mais tarde?
“O vento desempenha essa função”, disseram as areias. “Eleva a água, a conduz
sobre o deserto e depois a deixa cair. Caindo na forma de chuva, a água novamente se
converte num rio.”
“Como posso ter certeza de que isto é verdade?”, falou o rio.
“Pois assim é, e se não acredita, não se tornará outra coisa senão um pântano, e
ainda isto levaria muitos e muitos anos; e um pântano certamente não é a mesma coisa
que um rio.”
“Mas não posso continuar a ser esse mesmo rio que fui até agora?”
“Você não pode, de jeito nenhum, permanecer assim”, retrucou a voz. “Sua parte
essencial será transportada e formará um rio novamente. Você é chamado assim - rio -
ainda hoje, por não saber qual a sua parte essencial.”
Ao ouvir estas palavras, certos ecos começaram a ressoar nos pensamentos mais
profundos do rio. Recordou vagamente uma época em que ele, ou uma parte dele, não
sabia qual, fora transportada nos braços do vento. Também se lembrou, ou assim lhe
pareceu, de que era isso que devia fazer, embora não fosse a coisa mais natural.
O rio elevou seus vapores nos acolhedores braços do vento, que suave e
facilmente o conduziu para o alto e para bem longe, deixando-o cair suavemente tão logo
tinham alcançado o topo de uma montanha, léguas e léguas adiante. Porque tivera
suas dúvidas, o rio pôde recordar e gravar com mais firmeza em sua mente os detalhes
daquela experiência. E, ao final, refletiu: “Sim, agora conheço minha verdadeira
identidade.”
O rio estava fazendo seu aprendizado, mas as areias que se estendiam das suas
margens até as longínquas montanhas, viam essa operação ocorrer dias, já tinham esse
conhecimento. É por isso que se diz que o caminho pelo qual o Rio da Vida tem de seguir
em sua travessia está escrito nas Areias.

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Cinderela
(Versão dos Índios Algonquins)

Havia uma vez uma grande aldeia de índios MicMac, dos algonquins do leste, que
ficava bem na beira de um lago. Na extremidade mais longínqua do acampamento havia
uma cabana na qual vivia um ser que era sempre invisível. Ele tinha uma irmã que
cuidava dele e todos sabiam que qualquer moça que pudesse vê-lo se casaria com ele.
Por esta razão pouquíssimas eram as jovens que não o tentavam, mas passaria muito
tempo antes que alguma conseguisse.
Esta é a maneira através da qual a prova da visão era realizada: ao cair da tarde,
quando o Invisível costumava voltar para casa, a irmã dele acompanhava as moças que
aparecessem na beira do lago. É claro que ela podia ver o irmão, pois ele era sempre
visível para ela. Assim que o via chegando, perguntava às moças:
“Vocês conseguem ver meu irmão?”
“Sim!”, era o que elas normalmente respondiam, embora houvesse algumas que
dissessem: “Não.”
Para aquelas que diziam que podiam vê-lo, a irmã costumava perguntar:
“De que é feita a sua alça de ombro?” Certas garotas diziam que ela podia
perguntar também:
“Qual é o seu troféu da corrida de alces?” ou “Com que ele puxa o seu trenó?”
E as jovens responderiam:
“Uma tira de couro” ou “um galho verde flexível” ou algo desse tipo.
Sabendo que elas não tinham falado a verdade, a irmã diria então:
“Muito bem, vamos para o wigwam!1”.
Depois de terem entrado, a irmã as avisava para não se sentarem em certo lugar,
porque pertencia ao Invisível. Então, depois de ajudarem a cozinhar o jantar, as moças
esperariam com grande curiosidade o momento de vê-lo comer. Elas podiam ter certeza
de que ele era uma pessoa real porque no momento que tirava os mocassins, eles se
tornavam visíveis e a irmã os pendurava. Mas não viam nada além disso, mesmo as que
passavam a noite toda no local, o que muitas costumavam fazer.
Bem, naquela aldeia morava um velho homem viúvo com suas três filhas. A mais
jovem era muito pequena, fraca, às vezes doente: e ainda assim as suas irmãs,
especialmente a mais velha, a tratavam cruelmente. A segunda filha era mais gentil e às
vezes se colocava a seu lado: mas a irmã malvada queimava-lhe as mãos e os pés com
cinzas ardentes; por causa deste tratamento o corpo da menina era coberto de cicatrizes.
Ela era tão marcada que as pessoas a chamavam de Oochigeaskw, “a garota da cara
áspera”.
Quando seu pai voltava para casa e perguntava porque a moça tinha essas
queimaduras, a irmã malvada dizia logo que era por culpa dela, que tinha desobedecido
ordens, ido para perto do fogo e caído nele.
Essas duas irmãs mais velhas decidiram um dia testar as suas sortes, indo ver o
Invisível. Vestiram suas roupas mais lindas, tentando parecer o mais graciosas que
podiam... Encontraram a irmã do Invisível e fizeram o passeio usual à beira d’água.
Quando ele chegou e a irmã lhes perguntou se eram capazes de vê-lo, elas
responderam: “Claro que sim!”

1
Habitação típica dos índios das planícies norte-americanas.

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E quando perguntadas acerca do suspensório ou da corda do trenó, elas
responderam: “Uma peça de couro cru.”
Mas claro que estavam mentindo, como as outras, e não conseguiram nenhum
alívio para suas dores.
Na tarde seguinte, quando o pai regressou para o lar, trouxe consigo muitas das
pequenas e bonitas conchas com as quais é feito o wampum e as moças se prepararam
para o trabalho de encordoá-las.
Naquele dia a pobre pequena Oochigeaskw, que sempre andara de pés descalços,
pegou um par de mocassins do seu pai, muito, muito velhos e os colocou na água para
amolecê-los, de forma a poder usá-los. Depois pediu às suas irmãs algumas conchas de
wampum. A maior a chamou de “pestinha”, mas a mais nova lhe deu algumas. E então,
sem nenhuma roupa além dos seus trapos usuais, a pobre garota foi à floresta e pegou
ela mesma algumas folhas de bétula e fez uma roupa, que decorou com os sinais, como
faziam os antigos. Fez uma anágua, uma túnica bem solta, um chapéu, perneiras e um
lenço. Colocou os velhos mocassins de seu pai, que eram grandes demais para ela, e foi
testar a sua sorte. Tentaria descobrir se poderia ver o Invisível, ela pensava.
Ela não começou muito bem. Assim que a viram colocando em prática seu
intento, suas irmãs passaram a gritar, enxotar, vaiar e berrar, tentando impedi-la. E os
vagabundos que ficavam em torno da aldeia, vendo a estranha pequena criatura,
gritaram: “Vergonha!”
A pobre garota com suas roupas estranhas e a cara cheia de cicatrizes era uma
horrível aparição, mas foi gentilmente recebida pela irmã do Invisível. E isto
evidentemente acontecia porque a compreensão da nobre mulher ia muito além da
simples aparência que o resto do mundo conhecia. Quando o céu dourado da tarde se
enegreceu, a mulher levou-a até o lago.
“Você pode vê-lo?” perguntou a irmã do Invisível.
“Eu o vejo sim; e ele é maravilhoso!”, respondeu Oochigeaskw. A irmã perguntou:
“Como é a corda do seu trenó?”
A garota respondeu: “É o arco íris!”
“E o que é, minha irmã, a corda do seu arco?”
“É o Caminho dos Espíritos - a Via Láctea.”
“Sim, você o vê...” disse a irmã.
Ela levou a garota para casa e lhe deu um banho. Durante o banho, todas as
cicatrizes foram desaparecendo de seu corpo. Seus cabelos cresceram novamente, longos
e brilhantes como a asa de um melro. Seus olhos eram como estrelas: em todo o mundo
não havia uma beleza parecida. Então, de entre os seus tesouros, a dama tirou os
ornamentos de casamento e os colocou na moça.
Depois falou para Oochigeaskw se sentar no lugar da esposa dentro do wigwam:
aquele ao lado de onde o Invisível se sentava, junto à entrada. E quando ele chegou,
terrível e maravilhoso, sorriu e falou:
“Então nós fomos descobertos!”
“Sim!”, disse a irmã. E assim Oochigeaskw se tornou sua esposa.

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Bibliografia:

World Tales
Caravan of Dreams
A Perfumed Scorpion
(Octagon Press - London)

Histórias dos Dervixes


(Nova Fronteira – Rio de Janeiro)

Os Sufis
(Cultrix/Círculo do Livro – São Paulo)

de Idries Shah, pensador, pesquisador e escritor anglo-indiano.

Folk Tales from Central Asia


Arabian Fairy Tales
(Octagon Press – London)

O Jardim e a Primavera: a história dos quatro dervixes


(Editorial Attar – São Paulo)

de Amina Shah, contadora de histórias, irmã de Idries.

Fábulas Italianas
(Companhia das Letras – São Paulo)
de Ítalo Calvino

Masnavi,
Fihi-ma-fihi,
Divan de Shams e outros poemas

de Jallaludin Rumi

Material preparado por

Mônica Cavalcanti Lepri


São Francisco da Guanabara

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