A Atuação Do Psicólogo Clínico
A Atuação Do Psicólogo Clínico
A Atuação Do Psicólogo Clínico
Introdução
Para Freire (2002), o nascimento da Psicologia apresenta dois nomes que disputam sua
paternidade. São eles Fechner e Wundt. O primeiro está relacionado com a publicação
de sua obra “Elementos da Psicofísica”, publicada em 1860. Já o segundo, está ligado à
publicação de seu livro Elementos de Psicologia Fisiológica, em 1864, e a criação do
primeiro laboratório psicológico, em Leipzig, Alemanha, em 1879. A afirmação da
Psicologia, enquanto autônoma e experimental, liga-se a esses dois fatos e dão a Wundt
a sua paternidade. Seguindo o autor, Wundt reúne e classifica em grupos os elementos
da vida mental, determina o seu objeto e objetivo, enuncia os seus princípios e os seus
problemas, estabelece os métodos de estudo, enfim, estrutura e normatiza a Psicologia.
Com isso, dá à Psicologia também, uma nova definição. A Psicologia deixa de ser o
estudo da vida mental e da alma e passa a ser o estudo da consciência ou dos fatos
conscientes. Assim, estruturada e sistematizada, a mesma passa a ser uma ciência
autônoma, não mais um apêndice da filosofia ou da fisiologia.
Por outro lado, o funcionalismo foi a primeira escola norte americana. Teve, como
norte, ideias do evolucionismo de Darwin, Psicologia do ato, fenomenológica e o
naturalismo de Rousseau. Seus representantes foram Dewey, Angel, Carr. William
James lançou as suas bases ao criticar o atomismo associacionista, que considera a vida
psíquica como um agregado de elementos simples, como defende o estruturalismo. O
funcionalismo surge como a primeira reação organizada e sistematizada contra a escola
de Titchener. Para os funcionalistas, as operações e processos mentais seriam
instrumentos da adaptação e se expressariam claramente nos comportamentos
adaptados. Através da observação desses comportamentos, a mente poderia ser
estudada.
Nesse sentido, cada escola formava um sistema fechado que, no entanto, possuía pontos
comuns e divergentes em todas elas. Em meados do século XX, as escolas perdem a sua
força como centro de estudos teóricos. A Psicologia, daí em diante, caracteriza-se pela
sua abertura e tolerância aos diversos caminhos de pesquisa, os quais foram tão
volumosas, diversificadas e profundas que levaram ás especializações e à formação de
microssistemas, sendo o Behaviorismo e a Psicanálise as escolas que continuaram sua
influência por mais tempo.
Figueiredo (2002) apresenta, por outro lado, uma visão panorâmica e crítica da
Psicologia contemporânea. Coloca que é muito recente o conceito de ciência como é
usado hoje e que a elaboração dos primeiros projetos de Psicologia como ciência
independente é ainda mais recente. Assim, segundo o mesmo, foi a partir da segunda
metade do século XIX que surgiram homens que pretendiam reservar aos estudos
psicológicos um território próprio. Só então a figura do Psicólogo passou a existir e
foram criadas as instituições voltadas para a produção e transmissão de conhecimento
psicológico.
De acordo com Malvezzi (2010), ao longo dos últimos 150 anos, a Psicologia criou um
campo fértil de conhecimento sobre a pessoa, evidenciado pelo seu visível e contínuo
desenvolvimento, amplamente reconhecido pelas inegáveis contribuições para o
progresso da ciência. Hoje em dia, a conscientização das pessoas sobre a vida pessoal e
comunitária, sobre a saúde, o bem-estar e sobre a própria participação na construção do
futuro pessoal e da sociedade como um todo, é fruto das teorias e dos conceitos sobre os
processos psíquicos e do trabalho dos psicólogos. Estes ofereceram explicações sobre o
funcionamento psíquico do ser humano, inspiraram e fundamentaram projetos e
atividades que contribuíram para o desenvolvimento da qualidade de vida, fato
observado na contemporaneidade.
A autora, pensando sobre a problemática da técnica e ética, coloca que a formação não
envolve somente o aprendizado de técnicas e o modo de como se fazer um rapport,
dentre outros. No entanto, a autora não exclui essas dimensões da formação,
considerando também necessárias. Diz ainda que a formação do psicólogo transcende a
aprendizagem formal, teórica e técnica e que esta se relaciona mais com o
desenvolvimento de uma atitude. Ou seja, “envolve um modo de ser, um modo de ver e
de estar no mundo, o qual se assenta num ethos, que, resumidamente, pode ser definido
como abertura a alteridade”. (DUTRA 2009, p.61). Nesse sentido, a autora faz a
colocação de que os profissionais, professores e supervisores são afetados naquilo que
estão fazendo e produzindo, seja na direção de tal atitude, seja em outra direção. Fala de
uma atitude ética e política que deve ser transmitida, não só pelos saberes teóricos e
metodológicos, mas, sobretudo, por uma forma de estar no mundo, refletida nos saberes
e fazeres do campo da Psicologia e na vida.
Figueiredo (2004), fala da relação teoria e prática na Psicologia clínica, a qual o mesmo
considera bastante complexa. Apresenta as formas de conhecimento e fala da
contribuição decisiva de Polanyi que consistiu na formulação do conceito de
conhecimento tácito ou pessoal em oposição ao que chamou de conhecimento explícito,
o qual poderíamos designar, de forma apropriada, de conhecimento representacional ou
teórico. Diz que, segundo Polanyi, tácito é o conhecimento incorporado às capacidades
afetivas, cognitivas, motoras e verbais de um sujeito e que tal conhecimento é
caracterizado por ser de natureza pré-reflexiva e oferecer certa resistência aos discursos
representacionais objetivadores. Etimologicamente, quer dizer calado, silencioso.
Contudo, o autor em seu pensamento acredita ser realmente necessário levar a sério a
ideia de que a experiência incorporada, o conhecimento tácito e pessoal entranhado no
corpo, não se vê convertido em teoria. Também, afirma que o inverso também é fato, ou
seja, os sistemas representacionais nunca serão totalmente incorporados ás práticas. No
entanto, o mesmo fala que seria errado dispensar as formas e modalidades de
conhecimento explícito, por ser perigoso confiar cegamente no conhecimento pessoal,
sendo este muito vulnerável a rotinização e à repetitividade. Sugere manter as relações
entre conhecimentos tácitos e conhecimentos explícitos, entre experiências e discursos
representacionais em um ótimo nível de tensão.
O que supõe, no exercício desta escuta, uma subjetividade descentrada e capaz de tirar
partido do seu próprio descentramento. É dessa oscilação que podem emergir os
insights. Em outras palavras “as teorias, se bem apropriadas pelo clínico e mantidas
em uma tensão ótima com o saber de ofício, valoriza o conhecimento tácito e, em
última análise, é esta valorização o que realmente importa”. Figueiredo (2004.p.127).
A Relação Intrínseca Entre Ética e Técnica
Coelho Júnior (2007), desenvolvendo seus argumentos sobre ética e técnica em seu
artigo Ética e técnica em Psicologia: Narciso e o avesso do espelho, nos leva a repensar
que essa relação começa durante a formação. Entende que as prescrições de normas e
técnicas no decorrer do curso devem fomentar a formação de atitude ética no futuro
profissional e que existe uma preocupação por parte dos alunos expressa em seu
comportamento e na sua fala com relação ao futuro no exercício profissional. Por existir
um mercado claramente pragmático, no qual a eficiência profissional é, por vezes,
avaliada pelo primor da técnica, compreende-se que em Psicologia, por razões da
diversidade e multiplicidade, não é uma tarefa simples. Contudo, cada teoria traz em,
seu bojo, princípios éticos e técnicos, nos mostrando suas verdades e
incompatibilidades.
O mesmo, citando Figueiredo (1996), coloca de forma clara seu argumento sólido com
respeito à escolha da ética ou técnica a ser feita. Diz ser essa escolha uma questão
“ética”, pois deve-se fazer reflexões sobre a forma como cada teoria e técnica abre-se
para o diferente e como se propõe a acolher ou não a alteridade, assim como quais as
concepções éticas que sustentam cada uma das teorias psicológicas. Falando sobre a
concepção de técnica, o autor nos diz que esta costuma ser estabelecida por oposição à
ao conhecimento teórico e que, por vezes, acaba sendo considerada uma forma de
aplicação de certo saber. Explicita em sua visão que toda técnica deve ser ética e que
não deveria ser possível separar ética de técnica.
O autor diz que o desastre que pode ocorrer pelo primado da técnica é o de nos
aprisionar no mundo da atividade e do fazer, sem deixar espaço para nossa possibilidade
de ação passiva, própria da atitude do “pro-duzir”, agir e se colocar em repouso à espera
do surgimento de algo. Ainda citando, “a técnica não é, portanto, um simples meio. A
técnica é uma forma de descobrimento”. Acrescentando, o primado da técnica, no
contexto marcado por um pragmatismo selvagem, deixa de lado a possibilidade de uma
reflexão mais efetiva sobre as metas de toda e qualquer ação humana. (COELHO
JÚNIOR apud HEIDEGGER,2002, p.27). Em seguida falaremos da importância do
ethos na clínica psicológica.
Silva, (2001) argumentando sobre ética na Psicologia clínica, nos fala sobre o cuidado,
colocando que o encontro na clínica não se trata mais apenas de receber o paciente
tendo a cura como promessa, não “tratando apenas da realidade interna, remetendo todo
e qualquer sentimento de mal-estar existencial para o território da falta e reduzindo o
inconsciente á sua dimensão familiarista-edipiana.” (SILVA apud RODRIGUES, 1998,
p 68). Não se procura mais em descobrir a patologia que o sujeito possui. O mesmo
continua dizendo que devemos estar em busca de um fazer clínico que efetue
intervenções nas vidas e nas relações e subjetividades das pessoas, reconhecendo que o
sujeito busca algo que o cure. Este algo é uma modalidade de relação, modo de se
relacionar com o mundo e com o outro, uma ética, pois passamos por momentos críticos
e precisamos clinicar com o cuidado.
Cuidar é responsabilizar-se pela beleza e sofrimento clinicados. Cuidar é inventar
ações desnaturalizantes para a nossa Psicologia: ciência e profissão. Mas, sobretudo,
cuidar é acolher o sujeito que busca neste habitat do psicólogo a clínica, uma clínica
de transformação á existência. Aproximando-se de Naffah Neto (1994), pode-se propor
que o cuidado é o que há de mais importante no processo psicoterapêutico, pois é este
que vai garantir assento, morada, espaço de vida e transformação ao sujeito acolhido.
(SILVA, p 8, 2001).
Para Dutra (2004), o diferencial da escuta clínica está na qualidade da escuta e acolhida
que se oferece a alguém que apresente uma demanda psíquica, um sofrimento,
representando uma certa postura diante do outro, entendendo-o como sujeito que pensa,
sente, fala e constrói sentidos nas relações de subjetividades. Significa “outorgar à
psicoterapia um lugar diferente dentro de outros campos de atividade profissional do
psicólogo” (DUTRA apud GONZÁLES-REYS p.212 2001). Continuando, a autora faz
considerações sobre o sofrimento psíquico na contemporaneidade, argumentando sobre
o desamparo que o ser humano carrega intrinsecamente consigo, por sua existência
solitária e finita, num mundo tendo que fazer escolhas e se construir no seu devir e
lidando com as contradições da vida moderna. Cada vez mais o sujeito vê-se esmagado
pela cobrança que a sociedade contemporânea exerce sobre sua subjetividade. A mesma
constata que, na vida do homem contemporâneo, diante da realidade que lhe é imposta,
à Psicologia é exigida uma reflexão a cerca dos seus saberes.
Continuando, o autor diz que moralidade não é um fato testável por procedimentos
científicos, mas é algo que concerne ao sentido da vida, e o “sentido da vida” não é
quantificado nem corroborado ou falsificado por observadores independentes em
diversos tempos e lugares da realidade. O mesmo diz que a partir do culto à
racionalização, o sagrado foi profanado e então sumiram os mistérios e maravilhas, com
isso, também o sentido da vida. Em decorrência desse fato na história, o sujeito passou,
a partir desse momento, a queixar-se dos vícios e maldades de seus respectivos tempos e
também da falta de sentido. O mesmo nos fala que na vida cotidiana, a falta de sentido
em geral aparece por nos acharmos despreparados para lidar com necessidades
concretas e circunscritas. O autor, dizendo de outra maneira, fala que “a falta de sentido
surge quando há contradição entre a motivação para obedecer à lei e a motivação para
contrariá-la, sem que se possa invocar um imperativo irrevogável como fiador da
decisão tomada”. (FREIRE COSTA p.21,22. 2010).
O autor, fazendo menção à questão ética fala que ela não é a aplicação irrefletida de
regras.
Ética é a relação com um outro singular que sempre exige adendos aos códigos
racionais ao espirituais de orientação de condutas. O outro, em sua irrepetível
originalidade, pede uma resposta “ visceral” ás suas interpelações e não a consulta
burocrática ao manual da lei instituída, por mais abrangente ou indulgente que seja. O
confronto permanente entre as vísceras e o código estaria, assim, na base das queixas
atuais sobre a falta de sentido. (FREIRE COSTA, p.22, 20100)
Figueiredo (2010), fala sobre as diversas faces do cuidar, fazendo considerações sobre a
clínica e a cultura. Nos mostra as dimensões do cuidado com o outro e as figuras da
alteridade e dos modos do agente cuidador se apresentar como presença implicada. O
autor argumenta sobre uma forma decisiva do cuidar que não envolve o fazer e coloca o
agente cuidador como presença em reserva. Mostra algumas modalidades da presença,
implicada do cuidado, em que cada uma destas modalidades corresponde a uma figura
da alteridade, um modo do “outro” se apresentar. Começando com a intersubjetividade
transubjetiva, o outro que se apresenta é englobante. Apresenta então o sustentar e o
conter onde. Pode-se identificar duas dimensões dessas funções: a função de holding,
sustentação (Winnicott,1960), garantindo a continuidade, e a função de containing,
continência (Bion,1970), que proporciona as experiências de transformações. Para o
autor, a experiência da continuidade quanto a de transformação e a presença implicada
do outro são importantes e indispensáveis.
Considerações Finais
A partir dos argumentos expostos, consideramos esta discussão pertinente a todos que
estão comprometidos com a clínica, especificamente àqueles que estão em formação na
área da psicologia clínica. A discussão sobre ética e técnica que desenvolvemos neste
artigo, objetivando interrogar o fazer do Psicólogo clínico em sua formação e atuação
ética, é algo que está em pauta nos dias atuais. Compreendemos que, em meio à
multiplicidade de abordagens, pode-se dizer que nenhuma formação psicológica atual
poderia deixar de lado a compreensão psicanalítica. Dentro da psicologia podemos falar
de várias linhas, como a sistêmica, a gestáltica, a cognitiva, a comportamental ou a
fenomenológica – existencial. E dentro da corrente psicanalítica, temos o estilo clássico
freudiano, o lacaniano, o kleiniano, o junguiano e pós- freudiano, entre outros.
Levantamos questões atuais do âmbito da clínica psicológica e seu ethos que define e
constitui o fazer clínico segundo Figueiredo. Foram feitas importantes discussões em
torno da clínica e também sobre a formação do psicólogo clínico. Consideramos que a
atitude ética na clínica é que vai nos direcionar a alteridade e, antes de qualquer
formação, a ética é perpassada por uma concepção de mundo, de como se relacionar
nesse mundo. Daí, então, essa concepção somada à formação acadêmica, a qual tem a
função informativa do conhecimento que é indispensável para o exercício prático do
profissional enquanto agente constituinte do espaço da clínica, direciona esse
profissional com certo saber teórico, técnico e metodológico ao fazer clínico.
Vimos que cada abordagem traz um princípio ético, porém existe um ethos na clínica
que a define. Segundo Figueiredo, o mesmo está comprometido com a escuta do
interditado e a sustentação das tensões e dos conflitos. É uma realidade que o psicólogo
clinico ético deve conhecer e se apropriar com afinco no ofício do fazer psicoterápico.
Penso em uma clínica ética, que é dirigida a alteridade, que se amplia na atitude do
cuidar, como postura única enquanto espaço de instituição do humano e se efetiva na
relação intrínseca do encontro intersubjetivo.
Ainda, penso em uma clínica que reflita sobre ética e que possibilite de forma mais
ampla o convívio, o acolhimento e o reconhecimento do outro, diante do que é
estrangeiro daquilo que nos difere como pessoas, considerando a singularidade subjetiva
de cada um. A Psicologia, embora seja plural em sua diversidade de abordagens, nos
permite pensar sobre algo em comum, o cuidado com o ser humano. Isso acontece no
diálogo com o outro, em que a clínica pode e deve ser um espaço para efetivação do
cuidar. Cuidar este, direcionado através da teoria e técnica de forma ética, considerando
o ser humano em sua dignidade de sujeito e cidadão.