O Oitavo Dia Da Criação
O Oitavo Dia Da Criação
O Oitavo Dia Da Criação
Catorze anos atrás, dois cientistas norte-americanos conseguiram pela primeira vez
transplantar material hereditário de um micróbio para outro, criando assim um
fragmento de vida que nunca antes havia existido. Essa proeza assinala o nascimento
daquilo que em pouco tempo se revelaria um formidável campo de estudos,
experimentos e descobertas - uma revolução tecnológica cujos efeitos se estendem por
vastos horizontes, da Agricultura à Medicina, por exemplo. De fato, mesmo numa era
em que o que não falta são portentosos avanços tecnológicos, poucos se comparam em
alcance e diversidade à Engenharia Genética, como se denomina o conjunto de técnicas
desenvolvidas pelo homem para intervir diretamente no mecanismo de construção da
vida.
"A Engenharia Genética é ainda mais importante do que a tecnologia nuclear", assegura
o professor Crodowaldo Pavan, presidente do Conselho Nacional de Pesquisas (CNPq).
Em 1973, o geneticista Pavan era um dos quinhentos pesquisadores presentes em
Gatlinburg, no montanhoso Estado norte-americano do Tennessee, onde os professores
Stanley Cohen e Hebert Boyer, da Califórnia, anunciaram numa conferência que haviam
transferido genes entre células de organismos diferentes. Depois das explicações um
grupo de cientistas, entre eles o brasileiro Pavan, foi designado para fazer uma primeira
avaliação das conseqüências práticas do feito de Cohen e Boyer.
Não espanta: com o advento da Engenharia Genética, o homem aprendeu mais sobre os
segredos da vida do que em todos os seus cinqüenta mil anos de história; além disso. a
massa de informação acumulada duplica a cada cinco anos na área de Biologia e a cada
dois no campo especifico da Genética. O tiro de largada dessa revolução foi disparado
em 1944, quando o pesquisador Oswald Avery, do Instituto Rockefeller, de Nova
lorque, comprovou pela primeira vez que a matéria-prima da hereditariedade é o DNA -
ácido desoxiribonucleico -, molécula existente nas células de todos os seres, das
bactérias às baleias. Até então o que havia de mais moderno em Genética eram os
trabalhos sobre hereditariedade de autoria do monge Gregor Mendel, publicado em
Brno, na Morávia, no ano de 1865.
Enquanto não se chega lá, os pesquisadores trataram de agir em outra frente de batalha,
comparativamente menos complexa: a produção por Engenharia Genética de
substâncias que antes só eram obtidas em quantidades absolutamente insuficientes para
a procura.
Tudo isso só pôde acontecer depois que a ciência desvendou o papel desempenhado
pelo DNA no jogo da hereditariedade. Pois o DNA é que detém dentro de si o código
genético que orienta as células na tarefa de fabricar as proteínas - as substâncias que dão
as características de todos os seres. A forma do DNA é tão extraordinária como
inconfundível. Trata-se de duas fitas que se enroscam a determinados intervalos como
se construíssem uma dupla hélice - e é assim que se convencionou representar essa
molécula nos modelos desenhados por computador.
O DNA também pode ser comparado a uma escada em caracol. Esse formato é que lhe
permite executar uma singular manobra no processo de reprodução. Quando a célula se
divide, a escada se separa em dois, de baixo para cima, como um zíper defeituoso que se
abre. Cada um dos lados da escada atrai então para si os elementos que lhe faltam (e
estão esparsos na célula), de tal maneira que logo se formam duas escadas de DNA,
réplicas perfeitas da primeira. A estrutura em dupla hélice do DNA foi descoberta em
1953 por dois pesquisadores da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, o norte-
americano James Watson e o inglês Francis Crick. Por isso eles foram contemplados
com o prêmio Nobel em 1962.
Vários anos se passariam, porém, até que os cientistas decifrassem a lógica das
sucessivas contorções do DNA. Isso ocorreu quando se constatou que a escada com a
qual a molécula se parece é formada por seqüências de apenas quatro substâncias
básicas chamadas adenina, citosina, guanina e timina. A grande descoberta consistiu em
perceber que esses degraus químicos não se combinam ao acaso. Ao contrário, a
adenina só forma par com a timina, assim como a citosina com a guanina. Cada uma
dessas combinações constitui o que os geneticistas chamam de pares de bases. A ordem
em que esses pares aparecem seqüenciados e a extensão maior ou menor de cada
seqüência dão sentido à linguagem genética, do mesmo modo como certas combinações
entre as letras do alfabeto produzem palavras compreensiveis e não ajuntamentos sem
nexo. As palavras do código genético são os genes.
Um único gene pode ser constituído por até vinte mil pares de bases. Os seres humanos
possuem algo como quatro bilhões de pares de bases. Os cientistas aprenderam a
identificar, isolar, remover e substituir determinados genes mediante o uso de uma
espécie de bisturis químicos chamados enzimas de restrição, capazes de cortar o DNA
em lugares certos, de modo a forçar o divórcio dos pares de bases. Sem o parceiro
original, cada base fica em principio livre para se associar a outra, com a ajuda de colas
químicas chamadas ligazes. Assim, o gene responsável pela fabricação de insulina na
célula humana é passado para o DNA de uma bactéria, onde continua produzindo a
mesma insulina como se nada tivesse acontecido.
Outra bactéria, Bacilus thuringiensis, foi utilizada pela empresa belga Plant Genetics
Systems, numa ousada tentativa de combater a malária, que, atinge cerca de 200
milhões de pessoas no mundo inteiro. Em vez de buscar uma vacina antimalária por
Engenharia Genética - como faz, por exemplo, o cientista brasileiro Luis Hildebrando
Pereira de Souza, no Instituto Pasteur, de Paris-, os pesquisadores belgas resolveram
recorrer a Engenharia Genética para matar as larvas dos mosquitos transmissores da
malária.
"Para que um câncer localizado dê origem à metástase, isto é, se espalhe para outras
partes do organismo", explica Brentani, "é necessário que a célula cancerosa saiba
reconhecer a parede do vaso sanguíneo por onde irá entrar e depois sair." Já conseguiu
localizar uma proteína da parede externa da célula cancerosa envolvida no processo - e
descobriu que ela também existe na bactéria Staphylococus aureus, agente infeccioso
com alta resistência a antibióticos. Pesquisas como as desenvolvidas por Morel, Colli e
Brentani beneficiaram-se da vertiginosa rapidez com que a Engenharia Genética
automatizou o seu instrumental.
Proezas de 1980 são rotina em 1987. Bisturis e colas química para o transplante de
genes, por exemplo, já estão à venda prontos para uso. Existem máquinas capazes de
fornecer automaticamente o seqüenciamento de qualquer gene que Ihes for dado para
análise. E outras máquinas sintetizam genes ou proteínas, segundo a fórmula fornecida
pelos pesquisadores. Assim, um cientista brasileiro pode mandar por telex uma fórmula
a algum centro no exterior e receber pelo correio tubos de ensaio com a substância
equivalente. A gama de aplicações da Engenharia Genética parece aumentar na mesma
proporção. Na agricultura, já se conseguiu fazer com que as folhas de tabaco produzam
seu próprio inseticida - no caso, uma toxina mortal para uma lagarta que costuma
devastar plantações inteiras.
Mas a criatura mais falada da Engenharia Genética é o porco cor de ferrugem nascido
em novembro de 1986 nos Estados Unidos. Ele descende de um suíno em cujo DNA foi
inserido o gene do hormônio de crescimento de uma vaca. Prova de que a operação foi
bem-sucedida, o porco ferrugem pesa mais ou menos o mesmo que seus semelhantes
naturais - só que com uma porcentagem bem menor de gordura. Em compensação, mal
consegue andar por causa da artrite que faz inchar suas pequenas patas e ainda por cima
é ligeiramente vesgo. Se imitar o pai, não chegará a completar dois anos de vida.
Para os cientistas, o porco transgênico (nome dado aos animais portadores de genes de
outra espécie) apenas confirma as potencialidades da Engenharia Genética. Eles
acreditam que as sucessivas experiências farão surgir animais capazes de crescer
depressa, consumir menos e oferecer mais carne magra por quilo - sem as doenças
deformantes que afligem o porco ferrugem. A fronteira mais promissora da Engenharia
Genética, porém, se localiza na área da chamada diferenciação celular. Apenas
começou-se a explorar o mecanismo pelo qual as células se organizam entre si para
formar um ser completo - ou seja, como elas recebem ordens para se agrupar em ossos,
nervos, músculos, membranas.
A Engenharia Genética não recebe apenas aplausos pelas proezas que realiza. Seus
avanços também provocam contrariedade entre aqueles que a encaram com manifesta
desconfiança e a ela vêm tentando opor-se desde as pesquisas pioneiras no começo dos
anos 70. Escaldados pela história do desenvolvimento da energia nuclear, os adversários
das experiências com a bagagem genética de seres vivos querem que elas sejam
suspensas ou, na melhor das hipóteses, submetidas a estrita regulamentação. Receia-se
que, sob pressão dos interesses comerciais cada vez mais presentes nessa área, os
pesquisadores fiquem menos atentos do que deveriam aos aspectos perigosos de suas
criações.
É inviável, por exemplo, colar metade do DNA de uma moça à metade do DNA de um
peixe e ainda por cima inserir esse DNA híbrido numa célula que viesse a produzir uma
sereia. Pelo mesmo motivo que meia receita de frango ao molho pardo com meia receita
de pudim de ovos não dá nem um frango com ovos nem um pudim ao molho pardo.