A Disciplina Do Amor
A Disciplina Do Amor
A Disciplina Do Amor
Fagundes
Telles
A Disciplina
do Amor
Memória e Ficção
[2010]
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Sumário
Nota da Autora 9
A Disciplina do Amor 11
almofada, apenas olhando. Quando se cansasse de olhar,
recolheria as patas no calor do peito assim como o chinês
antigo recolhia as mãos nas mangas do quimono. Elegante.
Calmo. E mergulharia no sono sem sonhos, gato sonha me-
nos do que o cachorro que até dormindo parece mais com
o homem. Outro ponto discutível: dando gargalhadas? Mas
gato não dá gargalhadas, é o cachorro que ri abanando o
rabo naquele jeito natural de manifestar alegria. Os meus
cachorros — e tive tantos — chegavam mesmo a rolar de rir,
a boca arreganhada até o último dente. O gato apenas sorri
no ligeiro movimento de baixar as orelhas e apertar um pou-
co os olhos como se os ferisse a luz, esse o sorriso do gato.
Secreto. E distante. Nem melhor nem pior do que o cachorro
mas diferente. Fingido? Não, porque ele nem se dá ao tra-
balho de fingir. Preguiçoso, isso sim. Caviloso. Essa palavra
saiu de moda mas deveria voltar porque não existe defini-
ção melhor para um felino. E para certas pessoas que falam
pouco e olham muito. Cavilosidade sugere cuidado, afinal,
cave é aquele recôncavo onde o vinho fica envelhecendo em
silêncio, no escuro. Na cave o gato se esconde solitário, por-
que sabe do perigo das aproximações. Mas o cachorro, esse
se revela e se expõe com inocência, Aqui estou!
Tenho
um Gato
e o telhado diminuiu, onde estão aqueles espaçosos telhados
nos quais eles ficavam tomando sol, caçando passarinho e
amando? Os ratos em plena circulação mas e os gatos?!
Pois aquele que entrou de repente era um gato de telha-
do, as manchas amarelas e pretas no fundo branco do pelo
curto. Um visitante da noite? Estendi a mão para acariciá-lo
mas cabeça de gato não é cabeça de cachorro — primeira li-
ção que ele deu ao recuar com uma soberba que me espan-
tou. A conquista do gato é difícil, embrulhada, não tem isso
de amor repentino: mais um movimento de aproximação e
ele fugiria ventando.
Antes de sair a minha mãe tinha deixado na cozinha um
copo de leite com açúcar. Em silêncio, calmamente, fui bus-
car o leite, despejei-o numa tigela e deixei-a diante do gato.
Voltei para minha cadeira para continuar lendo o romance
antigo e agora em voz baixa, ele devia preferir o silêncio. Ele
ou ela? Sexo de gato não é assim tão nítido como sexo de ca-
chorro, leva um tempo para a descoberta do sexo e da idade.
Gato ou gata vai se chamar Iracema, resolvi. E voltei a aten-
ção para o livro, A casa é sua, avisei. Então ouvi aquele ruí-
do delicado, ele afundara o focinho na tigela e bebia o leite
mas não como os cachorros bebem, com sofreguidão, es-
pirrando as gotas em redor: o gato é discreto. Há que amá-lo
discretamente, pensei e fiquei sorrindo. Tenho um gato.
“Tudo passa sobre a Terra!” estava escrito no romance
que achei triste. Olhei para a outra Iracema que já fazia em
silêncio a sua delicada toalete. Apanhei uma almofada e
deixei-a assim próxima, Também você vai passar, Iracema?!
perguntei em voz baixa. Não sabia ainda que ela permane-
ceria infinita na memória da minha finitude.