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PREPARAÇÃO
Pedro Staite
REVISÃO
Cristiane Pacanowski | Pipa Conteúdos Editoriais Laís Curvão
ILUSTRAÇÃO DE CAPA
Zach Weinersmith
ADAPTAÇÃO
Aline Ribeiro
REVISÃO DE E-BOOK
Mariana Calil
GERAÇÃO DE E-BOOK
Intrínseca
E-ISBN
978-85-510-0334-3
Edição digital: 2018
1ª edição
1. É claro que estamos guardando o dinheiro só para a gente. Mas o sentimento está aí.
SUMÁRIO
Folha de rosto
Créditos
Mídias sociais
Dedicatória
1. Introdução
SEÇÃO 1
O universo, logo, logo
SEÇÃO 2
Coisas, logo, logo
SEÇÃO 3
Você, logo, logo
Agradecimentos
Referências bibliográficas
Sobre os autores
Leia também
1.
Introdução
Esperamos que você confira isso daqui a alguns anos para avaliar nossa
precisão. Por favor, observe que não especificamos um período, portanto as
opções de classificação são “correto” ou “não incorreto”.
Agora que fizemos a primeira rodada de previsões, estamos preparados para
mais algumas. Prevemos que foguetes reutilizáveis reduzirão o custo de
lançamento de foguetes em algo entre 30% e 50% nos próximos vinte anos.
Prevemos que em trinta anos será possível diagnosticar a maioria dos casos de
câncer com um exame de sangue. Prevemos que nanobiomáquinas vão curar a
maioria das doenças genéticas nos próximos cinquenta anos.
Está bem, isso dá um total de onze previsões. Acreditamos que se acertarmos
umas oito temos que ser considerados gênios. Ah, e se alguma previsão do
primeiro grupo se tornar realidade, você poderá escrever reportagens inteligentes
com títulos como “casal que previu o futuro do sequenciamento genético diz que
viagens espaciais serão baratas num futuro próximo”.
Prever o futuro com precisão é difícil. Bem difícil.
Novas tecnologias quase nunca são obra de gênios isolados com uma boa ideia.
À medida que o tempo passa, isso é cada vez mais verdadeiro. Determinada
tecnologia do futuro talvez precise que algumas tecnologias intermediárias se
desenvolvam antes, e muitas delas podem parecer irrelevantes ao serem
descobertas.
Um dispositivo recentemente desenvolvido que discutiremos é chamado de
dispositivo supercondutor de interferência quântica, também conhecido como
SQUID. Esse aparelho, muito sensível, detecta campos magnéticos sutis no
cérebro, uma maneira de analisar os padrões de pensamento das pessoas sem
fazer buracos em seus crânios.
Como conseguimos essa coisa?
Bem, um supercondutor é qualquer material que conduz eletricidade sem
perder nenhuma eletricidade no processo. É diferente de um velho condutor
comum (como o fio de cobre), que é um ótimo transmissor, mas perde um pouco
de eletricidade no caminho.
Temos supercondutores porque, há cerca de duzentos anos, Michael Faraday
estava fazendo alguns objetos de vidro e sem querer transformou um gás em
líquido ao mantê-lo sob pressão num tubo de ensaio. Como não havia TV
naquela época, alguns caras de meados do século XIX ficaram realmente
animados com a ideia de liquefazer gases.
Como se sabe, é mais fácil liquefazer gases a partir do resfriamento do que pela
pressurização. Esse insight levou cientistas a desenvolverem tecnologias de
refrigeração avançadas, que lhes permitiram liquefazer elementos que em geral
são gasosos, como hidrogênio e hélio. E quando temos hidrogênio ou hélio
líquidos, podemos usá-los para resfriar praticamente o que quisermos.
A temperatura do hélio, por exemplo, é de aproximadamente -268ºC no
estado líquido. Se o derramarmos sobre quase qualquer coisa, ele se torna gás e
leva o calor consigo, até a coisa que estamos resfriando ficar também com
aproximadamente -268ºC.6
Cientistas acabaram se perguntando o que acontece com os condutores
quando os resfriamos de fato. Os condutores tendem a aumentar sua eficácia
quando resfriam. Em termos simples, isso acontece porque os condutores são
como canos para os elétrons, mas não são perfeitos. Num fio de cobre, por
exemplo, os átomos de cobre entram no caminho do movimento do elétron.
O que chamamos de “aquecer” é apenas uma agitação rápida num nível
atômico. Quando aquecemos (ou agitamos) átomos num fio de cobre, eles ficam
mais propícios a impedir que os elétrons se movam na direção da corrente, da
mesma forma que é mais difícil seguir pela rua se o cara na sua frente ficar
ziguezagueando. No nível dos átomos, agitar (ou aquecer) torna mais provável
que elétrons batam nos átomos de cobre, aumentando ainda mais a agitação. É
por isso que o carregador do seu laptop fica quente depois de algum tempo de
uso.
Quando colocamos aquele hélio líquido no condutor, a energia de agitação dos
átomos de cobre é transferida para os átomos de hélio, que então voam para
longe. Agora nossos átomos de cobre estão menos agitados e os elétrons
enfrentam muito menos resistência. Quanto mais frios eles ficam, mais
facilmente os elétrons fluem.
Na época houve um debate sobre o que aconteceria se nos aproximássemos de
uma agitação zero. Alguns pensaram que a condutância cessaria, porque nessa
temperatura o movimento seria impossível até para os elétrons. Outros acharam
que a condutância ficaria muito melhor, mas nada de especial aconteceria.
Então os pesquisadores começaram a derramar gases ultrafrios em elementos
metálicos. Aconteceu, de maneira bizarra, que alguns metais se tornaram
condutores perfeitos (ou supercondutores) quando alcançaram certa temperatura
muito baixa. Se o metal fosse mantido frio o bastante para superconduzir, seria
possível colocar a corrente elétrica num circuito e ela ficaria circulando ali para
sempre. Pode parecer um fato científico divertido e bonitinho, mas esse
fenômeno leva a todo tipo de esquisitice! Essa corrente em circuito gerava um
campo magnético. E, com isso, podíamos transformar esses metais frios em ímãs
permanentes, cuja força magnética seria determinada pela quantidade de
corrente.
Mais tarde, nos anos 1960, um cara chamado Brian Josephson (que ganhou o
Prêmio Nobel, mas agora passa os dias em Cambridge defendendo besteiras
meio mágicas, como fusão a frio e “memória da água”) descobriu um arranjo de
supercondutores que permite a detecção de pequenas variações em campos
magnéticos. Esse dispositivo, chamado Junção Josephson, acabou abrindo espaço
para o desenvolvimento do SQUID.
Pois bem. Pense o seguinte: se há duzentos anos alguém chegasse para você e
perguntasse como poderíamos construir um dispositivo para examinar os padrões
cerebrais das pessoas, será que sua resposta seria “Bem, primeiro precisamos
prender um pouco de gás num tubo de ensaio”?
Imaginamos que não. Na verdade, até mesmo o grande passo técnico mais
recente — a Junção Josephson, que, vale repetir, foi descoberta por um homem
que pensa ser possível a água se lembrar do que você pôs nela — foi considerado
impossível do ponto de vista teórico quando proposto pela primeira vez. O
comportamento da Junção Josephson foi explicado posteriormente, a partir de
uma estrutura desenvolvida muito depois da morte de Michael Faraday.
A natureza contingente do desenvolvimento tecnológico é o motivo pelo qual
não temos uma base lunar, embora acreditássemos que ela já existiria hoje em dia.
Mas temos supercomputadores de bolso, o que poucas pessoas conseguiram
prever.7
A mesma dificuldade vale para todas as tecnologias deste livro: a possibilidade
de construir um elevador para o espaço pode depender da perícia dos químicos ao
combinar átomos de carbono para fazer canudinhos. A produção de uma matéria
que assuma qualquer formato pode estar condicionada ao nosso entendimento
sobre o comportamento do cupim. A fabricação de nanorrobôs médicos talvez
dependa de entendermos bem o origami. Ou então pode ser que nada disso
tenha qualquer importância no fim das contas. Não há nada na história que teve
que ser necessariamente como foi.
Sabemos hoje que os gregos antigos podiam criar sistemas de engrenagem
complexos, mas nunca fabricaram um relógio avançado. Os alexandrinos antigos
tinham um motor a vapor rudimentar, mas nunca projetaram um trem. Os
egípcios antigos inventaram há quatro mil anos o banco dobrável, mas nunca
abriram uma loja de móveis.
Tudo isso é para dizer: não sabemos quando qualquer uma dessas coisas vai
acontecer.
Então por que escrever este livro? Porque há coisas incríveis acontecendo todos
os dias, o tempo todo, por toda parte, e a maioria das pessoas não sabe. Há
também indivíduos que se tornam céticos porque imaginavam que a esta altura
teríamos energia de fusão ou viagens de fim de semana a Vênus. Essa decepção
nem sempre se deve a cientistas que fazem promessas exageradas sobre o futuro;
com frequência, livros como este aqui omitem os desafios econômicos e técnicos
que se põem entre nós e o futuro retratado na ficção.
Não sabemos por que quase sempre esses desafios são deixados de fora dos
livros. Será que a história da Apollo 11 seria melhor se chegar à Lua fosse fácil?
Do nosso ponto de vista, parte do que torna a ideia de uma interface cérebro-
computador tão empolgante é que neste momento não temos quase nenhuma
pista sobre como decodificar pensamentos. Há uma fronteira ilimitada de
perguntas e descobertas a serem feitas, glórias a serem conquistadas e heróis a
serem laureados.
Escolhemos dez diferentes campos emergentes para explorarmos com você e
os ordenamos mais ou menos do maior para o menor: do espaço sideral para
usinas de energia experimentais gigantes, passando pelas novas formas de
construir coisas e vivenciar o mundo, indo para o corpo humano até chegar ao
seu cérebro. Sem querer ofender.
Nosso princípio norteador para cada capítulo foi: se você estivesse sentado
num bar e alguém lhe perguntasse “Ei, que negócio é esse de energia de fusão
nuclear?”, qual seria a melhor resposta possível? Argumentaram que não sabemos
como são os bares, mas a intenção é que cada capítulo defina o que é a tecnologia,
em que ponto está neste exato momento, quais são os desafios para sua realização,
de que maneiras ela pode arruinar tudo e como ela pode tornar as coisas
maravilhosas.
Para nós, o progresso científico não é estimulante só porque proporciona novas
coisas para as pessoas. Saber como seria difícil escavar uma mina em um
asteroide ou construir uma casa com um enxame de robôs torna essas coisas mais
interessantes. E isso significa que quando elas enfim acontecerem,8 você
entenderá exatamente como são empolgantes.
Você também entenderá um pouco sobre os estranhos desvios e becos sem
saída em que a ciência e a tecnologia se metem. Ao fim da maioria dos capítulos,
fornecemos uma nota bene sobre alguma novidade esquisita (idiota ou
impressionante) que descobrimos. Algumas vezes, essas seções estão diretamente
relacionadas aos capítulos e outras são apenas esquisitices em que esbarramos
enquanto fazíamos a pesquisa. São realmente estranhas. Como um polvo feito de
pão de milho.
Para todos os capítulos, tivemos que ler muitos livros técnicos e teses e tivemos
que falar com muitas pessoas meio loucas. Algumas eram mais loucas do que
outras, e em geral foram as nossas favoritas. A única experiência unificadora em
toda a pesquisa que fizemos foi que em cada tópico nossas ideias preconcebidas
foram destruídas. Em cada caso, conforme pesquisávamos, descobríamos que não
só não havíamos compreendido a tecnologia em si como não tínhamos entendido
o que impedia seu desenvolvimento. Com frequência, o que parecia complicado
era fácil, mas o que parecia fácil era complicado.
Novas tecnologias são bonitas, mas, assim como a Pietà de Michelangelo ou O
pensador de Rodin, em geral é um terrível pé no saco concebê-las. Queremos que
você entenda o que é a tecnologia e por que o futuro resiste com tanta teimosia
aos nossos melhores esforços.
2. Feito por um grupo de estudantes de políticas públicas da Hamilton College. É, na verdade, baseado em
uma amostragem pequena. Mas, como confirma nossa inclinação, optamos por acreditar nele.
3. Fato divertido: ter diploma de direito foi correlacionado a ser pior em previsão.
4. Apple iCloud caso este livro se saia bem. Amazon Cloud caso se saia mal.
5. É um esporte de verdade, e não surpreende que seja popular na Rússia. O atleta alterna rounds de xadrez e
boxe até perder num deles.
6. Para entender por quê, pense nisso como derramar água fria em uma panela quente. A panela transfere um
pouco de seu calor para a água e, assim, resfria. Você pode resfriá-la mais rápido retirando a água e
derramando mais água fria. A água fria tem mais ou menos 10ºC, então você pode continuar resfriando a
panela até ela atingir 10ºC. Depois disso, a água e a panela ficam com a mesma temperatura, então o calor
não pode mais ir de um lugar para o outro. Seria como tentar se enxugar com uma toalha que está tão
molhada quanto você. Não dá para ficar mais seco sem uma toalha mais seca, e não dá para ficar mais frio
sem um líquido mais frio.
7. Esse tipo de coisa às vezes causa uma angústia excessiva nas pessoas, como na recente capa da MIT
Technology Review, que mostrava o astronauta Buzz Aldrin, que caminhou na Lua, com o título “VOCÊ
PROMETEU COLÔNIAS EM MARTE. EM VEZ DISSO, GANHEI O FACEBOOK”. Mas, para sermos justos, o
estabelecimento de uma colônia em Marte custaria alguns trilhões de dólares, ao passo que o Facebook é de
graça. E vale a pena notar que a escolha do Facebook é um pouco astuciosa. Imagine se tivessem escolhido a
Wikipedia: “VOCÊ PROMETEU COLÔNIAS EM MARTE, MAS O QUE GANHEI FOI APENAS TODO O
CONHECIMENTO HUMANO INDEXADO E DISPONÍVEL GRATUITAMENTE A TODOS NO PLANETA.”
8. Até mesmo enquanto escrevíamos este livro, duas tecnologias aqui presentes deram um grande salto.
Tivemos que atualizar o capítulo sobre acesso barato ao espaço depois que a SpaceX pousou várias vezes
estágios de seu foguete Falcon 9, e também foi preciso incorporar informações mais atualizadas no capítulo
sobre realidade aumentada porque as pessoas ainda falam de Pokémon GO.
SEÇÃO 1
O universo, logo, logo
2.
Você notará imediatamente nesse poema que ele não menciona preço uma vez
sequer. É o tipo de clara omissão técnica feita com frequência na poesia, portanto,
estamos acrescentando mais uma parelha:
E quando perguntei qual era o preço do espaço,
Dei meia-volta, porque, AI, MEU DEUS!
Neste exato momento, enviar meio quilo de algo ao espaço custa 10 mil
dólares.9 Isso dá mais ou menos 2.500 dólares por cheesebúrguer.
É por isso que os seres humanos só estiveram na superfície da Lua em seis
ocasiões, e é por isso que nossos veículos lunares eram finos como papel em
alguns pontos. O fato de termos agora um paradigma de viagem espacial que
teria frustrado todas as esperanças de 1969 não se deve à falta de engenharia ou
de gênios científicos. É porque o custo da viagem ao espaço permaneceu
implacavelmente elevado. Se conseguíssemos uma redução drástica dessa despesa,
teríamos uma ciência espacial melhor, sistemas de comunicação mais eficazes,
acesso a recursos fora do planeta, mais capacidade de controlar nosso clima e, o
melhor de tudo, o sistema solar se abriria à exploração e à colonização.
Para entender por que hoje em dia é tão caro levar coisas ao espaço, precisamos
entender o que estamos olhando quando vemos um foguete.
Um foguete é, basicamente, um tubo de propelente explosivo com um
pouquiiiinho de carga na ponta. Para uma típica missão à Órbita Terrestre Baixa
(LEO, na sigla em inglês; a mais ou menos quinhentos quilômetros de altura, e
aonde a maioria dos lançamentos vai), em termos de massa trata-se de 80% de
combustível, 16% do foguete propriamente dito e 4% de carga (na realidade, os
4% são o máximo, e se o destino for mais distante, é algo mais perto de 1% ou
2%).
Mas quando observamos o custo, as coisas se invertem. O propelente é um
componente desprezível do preço — custa apenas algumas centenas de milhares
de dólares. Portanto, a maior fração dos gastos corresponde ao foguete em si, que
quase sempre é descartado após o uso.
Resumindo: lançar foguetes é realmente caro, e a maior parte do espaço a
bordo é ocupada pelo propelente. Isso nos deixa duas formas para tentarmos
reduzir drasticamente o custo do acesso ao espaço:
É claro que você preferiria a opção 1. Mas vejamos por quê, nesse caso
específico.
Um carro é uma máquina que converte combustível em movimento para a
frente. Se o carro for pesado, é preciso mais combustível para obter certa
quantidade de movimento para a frente. Se o abastecemos regularmente, a maior
parte de seu peso advém do próprio carro, não do combustível. Isso significa que
o combustível que o motor está usando nesse exato momento fornece movimento
para a frente principalmente ao veículo (e a você e sua bagagem), não ao
combustível no tanque.
Na opção 2, você está arrastando um tanque enorme. O peso do combustível
provavelmente é muito maior do que o peso do carro. Sobretudo no começo, você
está usando a maior parte da energia derivada do combustível para mover o
próprio combustível. Portanto, a maior parte da energia do combustível é usada para
mover outro combustível.
O resultado? A quantidade total de combustível necessária é muito maior no
caso 2 do que no caso 1. Seu pequeno trailer, assim como todos os foguetes
espaciais, é feito em sua maior parte de combustível, não de veículo ou carga.
Infelizmente, é um pouco difícil construir postos de gasolina para foguetes.
Então, sem uma grande mudança, em se tratando de viagem espacial, estamos
presos ao cenário 2.
Tudo isso propicia uma matemática irresistível. Se conseguíssemos transformar
o veículo de lançamento em uma unidade recuperável, poderíamos eliminar 90%
do custo do lançamento espacial. Ou, se fosse possível usar apenas três quartos do
combustível, poderíamos acomodar seis vezes mais carga10 dividindo
imediatamente por seis o custo da massa.
O difícil aqui é que estamos lutando contra a física básica. A órbita disponível
mais barata é a LEO. As pessoas com frequência pensam que “órbita” não tem
gravidade. Mas isso está errado. Na verdade, a Estação Espacial Internacional
(que neste momento se encontra na LEO) em geral fica a quatrocentos
quilômetros de altura e está submetida a 90% da gravidade que você experimenta
na Terra. Então, por que os astronautas flutuam como se não houvesse gravidade
alguma? Porque eles estão indo muito, muito, muito rápido. A oito quilômetros
por segundo. Embora sejam puxados para a Terra o tempo todo, eles sempre a
“perdem”.
Pense nisso desta maneira: imagine que você dispara uma bala de canhão do
alto de um arranha-céu. Se você a disparar suavemente, a bala seguirá um pouco
para a frente e em seguida cairá no chão. Se a disparar incrivelmente rápido, ela
voará para o espaço. Mas entre cair perto e ganhar o espaço há muitos cenários
intermediários. Para determinada altura há uma velocidade que é lenta demais
para a bala conseguir sair da Terra, mas rápida o bastante para não se estatelar no
chão. Se estivesse montado nessa bala de canhão, você cairia aos poucos, porque a
gravidade o puxa para baixo. Ao mesmo tempo, como você está indo muito
rápido, poderia ver a curva da Terra. Quando nos movemos em linha reta a partir
de um ponto do globo, a Terra se curva para baixo e se afasta, aumentando nossa
distância da superfície. Nessa velocidade específica, temos dois efeitos que se
contrabalançam: a gravidade puxa você para baixo, mas a velocidade o mantém
no alto. Então continua indo, indo e indo. Você “orbita”.
Embora a LEO seja a órbita mais barata, ainda é bem caro chegar lá. Colocar
um pedação de metal viajando a oito quilômetros por segundo não é uma tarefa
fácil. Se quisermos que as naves espaciais se pareçam com aquelas do cinema, e
não com latas gigantes embrulhadas em papel-alumínio, precisaremos
desenvolver uma maneira mais em conta.
Em que pé estamos agora?
Método 1: foguetes reutilizáveis
Os foguetes reutilizáveis são a melhor aposta para um voo espacial mais barato
a curto prazo. São foguetes tradicionais, mas, em vez de caírem no oceano, como
fazem hoje em dia, eles caem na Terra e aterrissam depois da missão. Isso não
resolve o problema de o foguete ter apenas 4% de carga, mas tem potencial para
reduzir bastante o custo.
Entretanto, existem algumas dificuldades nessa abordagem. É preciso ter
propelente extra a bordo para a fase de aterrissagem, o que reduz a eficiência. O
intuito é carregar a menor quantidade possível de propelente extra, mas isso
complica muito a fase de aterrissagem.
Uma questão crucial é que ninguém sabe ainda quanto custará restaurar um
foguete usado. A parada foi para o espaço, cara! Você não pode simplesmente dar
uma lustrada nela e colocá-la de volta na plataforma de lançamento.
O Ônibus Espacial dos Estados Unidos, criado para ser um veículo de
lançamento reutilizável, acabou saindo mais caro do que um foguete comum
exatamente porque restaurá-lo era muito caro. Há uma discussão atualmente
sobre quem é o culpado — os engenheiros, o Congresso, a Força Aérea, o público
avesso a riscos e outros —, mas o ponto principal é que o programa, em grande
parte, foi encerrado por causa do custo de preparar o ônibus para um novo
lançamento depois de um voo. Foi por isso que, apesar de ter havido gente triste
com a aposentadoria do ônibus, muitos nerds espaciais ficaram felizes por vê-lo ir
embora.
Mas há um motivo para esperar que um veículo de lançamento reutilizável
melhor seja criado. Enquanto escrevíamos este capítulo, a SpaceX se tornou a
primeira empresa a levar uma carga ao espaço com êxito e depois aterrissar parte
de seu foguete.11
Se a empresa puder realmente reduzir o preço, isso poderá se provar a maior
evolução das viagens espaciais em uma geração. Enquanto assistíamos a um
lançamento, um leitor nosso tuitou que, embora tivesse testemunhado o pouso
lunar quando criança, achou o foguete reutilizável ainda mais empolgante. Parece
loucura, mas ele tinha um bom argumento: o pouso na Lua foi certamente a
maior façanha técnica, mas seu custo meio que garantiu a impossibilidade de que
se tornasse corriqueiro. Qual exatamente pode ser a redução do custo é uma
questão de debate. Elon Musk aparentemente alegou que poderia reduzi-lo a um
centésimo do valor. Em um prazo mais curto, a presidente da SpaceX, Gwynne
Shotwell, declarou que o atual Falcon 9 deles deverá ser capaz de oferecer um
desconto de 30%. Mas mesmo que signifiquem apenas uma pequena queda no
preço agora, os foguetes reutilizáveis podem representar também uma via para
maiores economias no futuro. O caminho para Marte poderá ser pavimentado
com pequenos descontos.
Os aviões já voam bem alto. Será que não conseguimos fazê-los ir um pouco
mais alto para que cheguem ao espaço?
Não. Por que você perguntaria isso? Meu Deus...
Se quisermos colocar um satélite em órbita, a parte difícil não é ir bem alto. É
ir bem rápido. Isso exige muito propelente. Mas o uso de um avião espacial
poderia permitir uma redução drástica. Para entender por quê, você precisa
entender o que é propelente.
Se você chamar propelente de “combustível”, um engenheiro da Nasa vai dar
na sua cara com uma TI-83.12 O propelente, na verdade, é uma combinação de
duas coisas: combustível e oxidante. Para haver uma reação de combustão,
precisamos de três materiais: combustível, oxidante e energia. Por exemplo,
quando acendemos uma fogueira num acampamento, o combustível é a madeira,
o oxidante é (você adivinhou) o oxigênio e a energia é um palito de fósforo aceso.
Em um foguete, o combustível e o oxidante estão dentro da nave. A proporção
efetiva entre oxidante e combustível varia de acordo com o foguete e a missão,
mas em geral a maior parte da massa do propelente é oxidante. O oxidante é,
com frequência, oxigênio líquido. Por que carregar todo esse oxigênio líquido se o
foguete está literalmente cercado de oxigênio durante a maior parte da viagem?
A versão resumida é que estamos querendo simplificar. O foguete é uma
maneira brutal de se chegar ao espaço. Você põe tudo de que precisa num grande
tubo e, com uma explosão, abre caminho para o céu. Com um avião, talvez seja
possível melhorar sua eficiência ao tirar o oxidante do ar, em vez de carregá-lo
consigo, mas você está adicionando muito mais complexidade a uma máquina
que já é complicada.
O grande problema do avião espacial é que precisamos de vários tipos de
motor para dar conta de todas as diferentes velocidades e condições que
encontramos na rota para o espaço. Eis as razões:
A maioria dos aviões hoje usa um motor turboélice. É um pouco complicado,
mas o mecanismo básico é simples. Ventiladores sugam ar para dentro de uma
câmara. O ar é comprimido, então temos muito oxigênio (seu oxidante!) em um
espaço pequeno. O combustível é injetado e começa a queimar. O resultado é ar
quente comprimido canalizado para fora através da parte traseira do motor
enquanto mais ar é sugado pela parte dianteira. Agora, temos ar em pressão alta
atrás do motor e uma pressão relativamente baixa na frente. Esse arranjo nos leva
adiante.
Os turboélices começam a dar problema quando nos aproximamos da
velocidade do som, a cerca de 1.235 km/h,13 também conhecida como Mach 1. À
velocidade do som, o ar não consegue circular pelo avião tão rápido quanto se
acumula. Isso cria problemas se a entrada frontal for um ventilador.
Uma solução para vencer esse obstáculo é o chamado pós-combustor. O pós-
combustor pega o oxigênio restante na parte de trás do turboélice, joga mais
combustível nele e o acende. Resumindo: você provoca uma explosão de
combustível pequena e permanente na parte de trás do avião. Com isso, consegue
se aproximar do Mach 1,5, embora não de maneira supereficiente. Mas, depois de
alcançar o Mach 1,5, você pode usar um tipo diferente de motor chamado ramjet.
O ramjet é de uma simplicidade incrível, mas não é necessariamente fácil de
fazer. Basicamente, é um motor turboélice sem as partes móveis, incluindo o
ventilador. Não é necessário um ventilador para comprimir o ar porque sua alta
velocidade está fazendo esse trabalho. Você voa rápido e o ar é comprimido numa
câmara onde ele fica mais lento à medida que você adiciona e queima
combustível. A desvantagem é que, como a velocidade em si é o compressor, não
é possível dar a partida com um ramjet. Só dá para usá-lo quando estiver a cerca
de 1.770 km/h. Sendo assim, num avião espião SR-71, por exemplo, há um
turboélice que muda de forma para se comportar como um ramjet após atingir a
velocidade apropriada.
Depois de ficar muito, muito rápido (mas ainda não o bastante para
permanecer na LEO), você precisa de um ramjet supersônico, ou “scramjet”. O
scramjet é uma máquina ainda mais simples e ainda mais difícil de se construir.
Basicamente, o ar supersônico entra e, junto com o combustível, é aceso
diretamente, sem jamais perder a velocidade. Isso acontece porque o oxigênio
está chegando muito rápido e há o suficiente para se obter uma combustão
contínua sem compressão. Mas não é fácil, por assim dizer, acender uma vela
num vento supersônico. Os scramjets ainda estão em fase experimental, mas
depois de mais ou menos 7.200 km/h14 se tornam a maneira mais eficiente de ir.
Em teoria, podem levar você até o Mach 25, a velocidade orbital. Houve vários
programas de desenvolvimento do scramjet, a maioria deles de caráter militar, e
todos obtiveram sucesso apenas parcial. Nenhum deles chegou nem perto da
velocidade orbital.
Um avião espacial ideal deve ser capaz de usar todos esses tipos de motor em
sequência para chegar ao espaço. Uma vez lá, onde não há oxigênio disponível,
você provavelmente trocaria para um método tradicional de propelente de
foguete. Mas usar oxigênio do ar, e não do tanque a bordo, permite reduzir o uso
de combustível o bastante para poder transportar dez vezes mais carga.
Ah, e como se trata de um avião, ele pode aterrissar depois. Se isso puder ser
feito repetidas vezes, restringindo seus danos, teremos resolvido o problema de
perda de veículo e o de eficiência de combustível.
A parte difícil é que todas essas máquinas precisam funcionar sob condições
extremas. As condições para otimizar um scramjet são tão extremas que só
simulá-las aqui na Terra já é caro.
Uma empresa britânica chamada Reaction Engines está trabalhando num
veículo chamado Skylon, que usa um motor chamado SABRE, sigla em inglês
para Synergetic Air-Breathing Rocket Engine [Motor de Foguete Sinergético
Respirador de Ar]. Estamos supondo que eles inventaram a parte “ABRE”
rapidamente e depois passaram alguns dias decidindo sobre um S. Em resumo,
trata-se de um foguete, mas que absorve oxigênio ambiente como parte de sua
reação de propulsão. O motor é projetado para transitar com eficiência entre um
turboélice, um ramjet e um foguete. É de se esperar que eles não estejam fazendo
uma fase scramjet porque, bem, ninguém sabe realmente como fazer a fase
scramjet.
Esse é um empreendimento caro e complicado, mas a Reaction Engines tem
um financiamento substancial da Agência Espacial Europeia15 e do governo
britânico. Se as coisas forem bem, eles esperam botar um desses aviões avançados
em utilização na próxima década.
Apesar de todos os aspectos negativos, os foguetes têm a virtude da
simplicidade. Um foguete antiquado funciona bem tanto em baixa quanto em
alta velocidade, em atmosfera densa, rarefeita ou em nenhuma atmosfera.
Portanto, ei, que tal experimentarmos algo ainda mais antiquado?
“Uma das ideias mais interessantes que já ouvi era ridícula à primeira vista, está
bem? Muito, muito idiota... Uma pessoa sugeriu: bem, por que não colocamos
um veículo sobre um pula-pula? Quer dizer, uma coisa mecânica que possamos
pressionar, como uma grande mola, e aplicar um pouco mais de força no começo.
Isso parece idiota, mas provavelmente poderíamos obter mais um percentual de
carga útil se fizéssemos algo assim. É brilhante, muito bom mesmo.”
A unidade de força específica é o Yuri, que ganhou esse nome por causa de
Yuri Artsutanov, pioneiro no conceito de elevador espacial, cujo sobrenome pelo
visto era muito difícil de pronunciar. Dependendo da pessoa a quem fizermos a
pergunta, o material ideal para o cabo deve ter de trinta milhões a oitenta
milhões de Yuris. Como referência, o titânio tem cerca de trezentos mil Yuris e o
Kevlar, 2,5 milhões de Yuris. Materiais comuns não funcionarão.
O candidato mais promissor é um material chamado nanotubo de carbono.
Imagine uma molécula feita totalmente de átomos de carbono, mas com um
formato de canudo cuja largura é uma pequena fração da espessura de um fio de
cabelo humano.
Acontece que, se conseguirmos nanotubos de carbono puro, sem nenhuma
imperfeição,18 eles podem chegar a ter algo entre cinquenta ou sessenta milhões
de Yuris, o que significa que podem funcionar como cabo espacial. O problema é
que os nanotubos de carbono são uma descoberta relativamente recente, e nós
ainda os fazemos muito mal. O nanotubo mais longo já criado foi feito em 2013,
rendeu manchetes por toda parte e tinha... menos de meio metro de
comprimento.
É claro que podemos tecer essas fibras juntas, mas quanto menores as peças da
tecelagem, pior é sua força específica e maior a probabilidade de imperfeições.
Um cabo longo e tenso só funcionará se toda a sua extensão for perfeita, e, se seu
cabo romper em algum ponto, alguém no teleférico terá uma tarde bem ruim.
A pergunta a longo prazo é se existe um mercado para fazer materiais cada vez
melhores. De acordo com o dr. Ron Turner, do Niac, “teoricamente, e em termos
de material, o nanotubo de carbono poderia se tornar forte o bastante (...) para
um elevador espacial. No âmbito terrestre, não havia muito mercado após um
certo ponto, então as fibras de nanotubo de carbono não continuaram a crescer
tão fortes quanto um elevador espacial precisaria”.
Mesmo supondo que pudéssemos obter fibras longas o bastante, o sr. Derleth
aponta um problema nos nanotubos de carbono: “O material é muito sensível à
eletricidade e, portanto, se acabar sendo atingido por um relâmpago, isso
desintegrará uma grande parte da fita... O lado bom é que há uma solução para
isso; o ruim é que não se trata de uma solução muito satisfatória,
intelectualmente. Há uma área do oceano Pacífico que nunca registrou
relâmpagos. Portanto, é só colocar seu elevador espacial ali. Essa é a solução.
Agora, se houver uma tempestade, seria muito preocupante.”
Ainda que pudéssemos manter o cabo longe de relâmpagos, precisaríamos nos
preocupar com os detritos. Há muitos objetos se deslocando pelo espaço,
portanto, mesmo que fosse possível se esquivar de coisas grandes, coisas pequenas
poderão desgastar o cabo com o passar do tempo. De acordo com o dr. Turner,
“esse conceito de empreender uma restauração contínua no elevador permanece
sendo um dos maiores desafios, e para o qual ainda não se tem uma boa
resposta”.
Além disso, o elevador espacial poderia se tornar um alvo especialmente bom
para terroristas. O dr. Phil Plait (astrônomo e autor do blog Bad Astronomy)
salienta que a possibilidade de alguém se aproximar para cortá-lo pode não ser
tão remota. “Trata-se de um alvo bem propício para pessoas quererem destruir, e
nem todo mundo é bom. Nós temos inimigos.”
Supomos que muitos de vocês gostariam de saber o que acontece se temos um
cabo no espaço e alguém chega e o corta. Entre as pessoas que entrevistamos,
houve algumas discordâncias sobre quão ruim seria. O dr. Turner e o sr. Van Pelt
acham que um rompimento do cabo do elevador espacial poderia não ser tão
catastrófico assim. Eles observam que grupos tentaram prever o que aconteceria
simulando os resultados decorrentes de rompimentos em diferentes pontos. Em
linhas gerais, é algo assim:
Em qualquer ponto onde o cabo for cortado, o que estiver acima do corte irá
para uma órbita mais alta e o que estiver abaixo cairá em direção à Terra. O que
estiver em órbita mais elevada precisará ser coletado, já que representará um sério
lixo espacial.
Se o corte for em um ponto muito alto, uma grande parte do cabo cairá em
direção à Terra. Se isso acontecer, há várias interações complexas entre gravidade,
atmosfera, movimento da Terra e, possivelmente, alguma carga elétrica apanhada
do vento solar.19
A mecânica fica um pouco complexa, mas, em resumo, o cabo começará a
chicotear para a frente e para trás, aquecendo na atmosfera, até se destroçar.
Como o material é necessariamente leve, é provável que os pedaços não
machuquem ninguém na superfície da Terra. E o risco pode ficar ainda menor se
o cabo se tornar um emaranhado formado por fibras mais finas.
O dr. Plait concorda com algumas dessas particularidades, mas é um pouco
menos otimista em relação às implicações. “Claro, a quilômetros de altura as
coisas podem queimar durante a queda (não que milhares ou milhões de
toneladas de material pegando fogo sobre uma área seja um grande
acontecimento), mas e o que está mais abaixo? Também cai. E há ainda os
detritos do espaço. A maior parte da torre está abaixo da velocidade orbital, então
tudo isso cai na Terra. No entanto, 35 mil quilômetros de sua estrutura cairão no
espaço orbital de satélites que estão na LEO. Eu NÃO fiz os cálculos de
matemática nem de física aqui, mas a menos que alguém me diga como isso não
destruirá centenas ou milhares de ativos no espaço, não estou inclinado a pensar
que um elevador espacial é uma boa ideia.”
Preocupações
O acesso barato mudará para sempre nossa relação com o espaço. Será possível
criar grandes estações espaciais ou mesmo colônias em órbita. Vemos isso como
algo bom, mas que poderia pôr o poder nas mãos de representantes ruins. Uma
ideia surgida na Guerra Fria foi a chamada “vara de Deus”. Basicamente, você
pega um pedaço pesado de metal e o joga do espaço contra um inimigo.
Considerando o peso, a altura e qualquer que seja a velocidade de impacto que se
dê a ela, uma simples haste de metal pode causar tantos danos quanto uma
bomba nuclear. Neste momento, as únicas pessoas que vão ao espaço são
supernerds ultraqualificados — o tipo de gente que é aprovada em testes
psicológicos e está disposta a passar décadas treinando para uma chance de passar
alguns meses no espaço. Se o espaço se tornar mais populoso em geral, podemos
estar nos colocando em uma posição perigosa.
Deixando de lado os terroristas, outra possibilidade assustadora é como
podemos lidar com as ambições de nações poderosas. Exceto pela dissolução
soviética, as fronteiras nacionais do planeta têm sido relativamente estáveis desde
que a guerra mais custosa da história humana terminou, em 1945. As leis do
espaço formalmente aceitas dizem, em essência, que nenhuma nação pode
reivindicar nada lá em cima. Achamos difícil acreditar que um país com um
elevador espacial aceitaria isso. De fato, como veremos no próximo capítulo, os
Estados Unidos já estão fazendo alguns movimentos nessa direção.
Costumamos pensar no universo como algo dividido entre o espaço e “aqui
embaixo”. Mas isso é como uma formiga pensando que a Terra consiste de
“espaço” e “dentro do formigueiro”. É verdade, mas talvez um pouco chauvinista
por parte da formiga. Nosso uso de “espaço” se refere a tudo que existe no cosmos
inteiro fora de um planeta, em um sistema solar, em uma galáxia entre muitas
bilhões.
Se a humanidade obtiver acesso barato ao espaço, é difícil imaginar que não
haverá conflito sobre reivindicações. E, como parece provável, se apenas um país
(ou alguns) tiver acesso primeiro, isso pode criar conflitos na Terra. Em outras
palavras, se a humanidade obtiver acesso barato ao espaço, pode haver uma
repentina disputa política no exato momento em que uma única nação adquirir o
sistema armamentista mais poderoso da história.
Outra preocupação é de ordem ecológica. A curto prazo, ir ao espaço
provavelmente envolverá melhorias paulatinas em veículos que consomem muito
combustível, como aviões espaciais e foguetes. Alguns desses combustíveis são
relativamente inofensivos, enquanto outros são poluentes horríveis. De acordo
com o sr. Van Pelt, os danos ambientais “dependem do tipo de combustível. Por
exemplo, os motores principais do ônibus espacial funcionavam com oxigênio e
hidrogênio líquidos, sendo o escapamento resultante um vapor superaquecido.20
Portanto, no fim, é apenas água saindo desses motores. Mas os propulsores de
foguete de combustível sólido do ônibus (ou qualquer propulsor dessa natureza)
são outra história, e ela não é bonita. E liberar vapor de água numa altitude muito
elevada, como fazia o ônibus, pelo visto pode ser prejudicial também”. Isso não é
nada de mais neste momento porque não lançamos muitos foguetes. Mas se os
lançamentos espaciais se tornarem mais baratos e corriqueiros, os foguetes
reutilizáveis poderão ser um sério risco ambiental.
O ambiente orbital também desperta preocupações. Desde o Sputnik, temos
jogado cada vez mais coisas no espaço. Ele está começando a ficar lotado, com
uma taxa crescente de colisões. Acesso barato ao espaço pode gerar mais lixo
espacial. Dito isso, se os lançamentos espaciais ficarem mais em conta, temos que
ser capazes de investir em algum tipo de veículo de limpeza espacial.
De acordo com o sr. Van Pelt, “isso se torna de fato uma questão econômica,
porque, se você tem seu satélite de telecomunicação que custa centenas de
milhões de dólares e ele é danificado por algum detrito, há um preço real nisso.
Um seguro é feito, mas ele encarece, porque há cada vez mais lixo espacial”.
Em um prazo mais longo, o acesso barato ao espaço tornaria as colonizações
espaciais mais factíveis, o que pode resultar em diferenças genéticas entre
humanos terrestres e não terrestres. O sr. Derleth observa: “Acontece que a
matemática da genética é diferente para populações pequenas e isoladas.
Populações grandes podem ter mais mutações genéticas do que as pequenas, mas
uma população menor pode disseminar mutações para o grupo mais
rapidamente. Portanto, podemos imaginar, se tivéssemos mil pessoas em Marte e
a colônia fosse autossuficiente... bem... é muito caro enviar mais indivíduos,
certo? Então pode não haver muita gente nova chegando, muito menos em um
número relevante. E os colonos teriam bebês — verdadeiros marcianos —, e os
moleques cresceriam com cerca de um terço da gravidade, pouca atmosfera e
ainda menos campo magnético planetário para protegê-los de radiação. Portanto,
é possível que os colonos sofressem muitas mutações genéticas mais depressa, em
virtude da potencial exposição à radiação e por crescerem em um ambiente com
uma fração da gravidade, apesar de serem uma população pequena (...) Em algum
momento, poderia haver ‘humanos de Marte’ e ‘humanos da Terra’, e a sociedade
teria que tentar interpretar o que significa ter dois tipos diferentes de humanos.”
Quer dizer, tecnicamente, já nos sentimos assim em relação às pessoas que
falam durante os filmes. De qualquer forma, argumento aceito.
9. Esse número, na verdade, varia muito e depende de fatores como de que país você está sendo lançado, a
empresa que o leva, o destino e o tamanho do veículo espacial que está fazendo o transporte. Estamos
usando 10 mil dólares por meio quilo como valor estimado em todo o livro. A variação de 9 mil dólares
desse valor, para mais e para menos, abrange todas as estimativas encontradas enquanto pesquisávamos esse
tópico.
10. O combustível corresponde a 80%. Três quartos disso dá 60%. Isso libera 20%. Mas a carga original
ocupava inicialmente 4%. Portanto, você aumentou a carga de 4% para 24%!
11. Os foguetes atuais têm várias seções chamadas “estágios”. Depois que um estágio é utilizado, ele se torna
um peso morto que deixa o veículo espacial mais lento. Então ele é descartado. A SpaceX recuperou o
primeiro estágio propulsor, que é o maior.
12. Perguntamos no Twitter o que um engenheiro aeroespacial provavelmente usaria para bater em alguém
até a morte, e as sugestões mais frequentes foram uma TI-83, uma TI-89, uma TI-30X, uma régua de
cálculo ou um laptop razoavelmente bom com MATLAB instalado.
13. Esse número pode mudar um pouco, já que a velocidade do som depende de coisas como temperatura e
altitude.
14. É como ir de Tóquio a Londres em duas horas, se descontarmos o tempo de aceleração.
15. Caso você esteja se perguntando, o Brexit não deverá interferir nesse programa. A Agência Espacial
Europeia trabalha conjuntamente com a União Europeia, mas já tem membros que não são do bloco
(Noruega e Suíça) e não é controlada por ele.
16. Então por que você não morre quando acelera dentro do carro? Você não está acelerando rápido o
bastante por um tempo longo o bastante. Além disso, seu corpo está muito mais próximo de uma esponja do
que um copo. Seu sistema circulatório resiste bem à mudança de velocidade. Se a aceleração fosse maior e
constante, nesse caso você se assemelharia mais a um copo. É claro que você também pode morrer de
mudanças de velocidade rápidas e repentinas, conhecidas como “acidentes de carro”.
17. O Burj Khalifa, em Dubai, nos Emirados Árabes.
18. Essa “nenhuma imperfeição” é extremamente importante, porque pequenos defeitos nos nanotubos de
carbono podem reduzir a força do cabo de maneira drástica.
19. Vento solar é o termo para a corrente de partículas carregadas que o Sol dispara em todas as direções.
20. Mesmo que os únicos produtos sejam oxigênio e hidrogênio líquidos, ainda é preciso muita energia para
criá-los, armazená-los e transportá-los. Se essas coisas são realizadas por energia renovável, ou pelo reator de
fusão dos nossos sonhos, então o lançamento é, de fato, “limpo”. Se você estiver usando carvão para obter seu
propelente, o problema da poluição permanece, mesmo que não esteja presente no dia do lançamento.
21. Melhor subtítulo da história.
22. Há também um monte de gente comum que provavelmente é maluca. Um projeto chamado Mars One,
que enviaria pessoas a uma viagem só de ida para Marte a fim de integrarem um reality show, recebeu mais
de quatro mil candidatos.
23. Como o HARP provinha da fabricação de armas de artilharia, de início o financiamento do Exército foi
natural. Quando o espaço passou a ser considerado seu próprio domínio tático, o HARP foi se desvirtuando
do projeto do Exército. E, de qualquer modo, a essa altura a Nasa já tinha estabelecido os foguetes como a
melhor maneira de ir para o espaço.
3.
Mineração em asteroides
Revirando o ferro-velho do sistema solar
A Terra já foi muito mais quente. Para encurtar a história, é por isso que você não
pode ter uma casa feita de ouro.
Veja bem, quando se tem uma enorme bola quente derretendo (como a Terra
primordial) no espaço, a gravidade tende a deslocar os elementos pesados (como
ouro e platina) para o centro e, ao mesmo tempo, enviar os elementos mais leves
(como carbono, silício e diversos gases) para a superfície. O processo não é
perfeito, o que em parte explica por que podemos encontrar jazidas de metais
pesados e minérios metálicos perto da superfície. Mas, em geral, a diversão de
verdade é difícil de obter. E, conforme cavamos, encontrar mais passa a ser cada
vez mais difícil.
É aí que a mineração em asteroides começa a parecer interessante. Os
asteroides são basicamente a sucata que entra na formação de um planeta, mas
que nunca se fundiu permanentemente para formar bolas gigantes no espaço. Isso
quer dizer que, ou eles nunca passaram pelo processo de aquecimento em que
todos os metais legais vão para o centro, ou passaram por esse processo apenas
para depois explodir. Então, um pouco além de Marte, há uma pilha gigantesca
de escombros de planetas, com uma vasta riqueza de metais ou outros recursos
que talvez gostássemos de levar para a Terra, ou talvez pudéssemos usar para
construir colônias no espaço.
Se pelo menos pudéssemos encontrar umas pessoas meio malucas, com cabeça
de engenheiro e coração de pioneiro...
Daniel Faber dirige uma empresa chamada Deep Space Industries. Ele é
engenheiro espacial, diretor e presidente da Sociedade Espacial Canadense e
levou a banda larga para a Antártica.
De acordo com o sr. Faber, há enormes recursos em asteroides esperando para
serem explorados: “Existem asteroides feitos totalmente de metal, como aço
inoxidável natural, níquel, ferro e... o menor deles que conhecemos numa órbita
próxima à Terra tem cerca de dois quilômetros de extensão. Ele tem o nome
glorioso de 3554 Amun e contém mais de trinta vezes a quantidade de metal que
a humanidade já extraiu na Terra. E esse é apenas um. Há milhares assim. Esse é
o menor localizado numa órbita próxima à Terra.”
Tem havido pouquíssimas missões em asteroides, então a maior parte de
nossos dados provém de telescópios e do exame de meteoritos. Com base nessas
observações, cientistas dividiram os asteroides em três categorias principais: tipo
C (carbonáceos), tipo R (rochosos) e tipo M (metálicos).
Os asteroides carbonáceos contêm muitas coisas úteis para a saúde humana,
como carbono e água. Alguns asteroides do tipo C podem ter até 20% de água,
em um ou outro estado. A água só terá um grande apelo de venda na Terra
quando os hipsters decidirem que querem coquetéis de asteroides, mas pode ser
bem proveitosa se você pretende estabelecer uma colônia habitada.
Portanto, com toda essa dificuldade, por que estamos falando em mineração
em asteroides? Bem, há algo maior em jogo aqui. Pode ser que não valha a pena
transportar uma carga de ferro gigante por 450 milhões de quilômetros só para
você poder fazer um novo encanamento para seu banheiro. Mas se quisermos
construir uma colônia no espaço que seja mais do que uma pequena bolha
habitada por quase ninguém, precisaremos de recursos. No espaço, a terra valerá
muito mais do que diamante e platina, e será muito mais barato laçar algumas
pedras do espaço do que explodir pedras na Terra.
Segundo a crença de muitos cientistas e engenheiros, levar humanos para
longe da Terra tem um valor intrínseco. Há mistérios e maravilhas lá fora. Há
respostas para perguntas que ainda nem sabemos formular. Pode haver vida
parecida com a nossa ou diferente da nossa, e é difícil dizer qual dessas
possibilidades seria mais espantosa.
Desbravar as estrelas é um grande sonho, mas os pioneiros mais bem-
sucedidos são pessoas práticas. Se quisermos ir além deste nosso pequeno planeta,
será mais barato, mais fácil e mais rápido usar materiais que já estão fora da
atração gravitacional da Terra. Pode ser que o caminho para fora do sistema solar
passe pelo ferro-velho dele.
Em relação a missões reais, várias visitas não tripuladas a asteroides têm sido
feitas pela Nasa, ESA, CNSA e Jaxa, as agências espaciais americana, europeia,
chinesa e japonesa, respectivamente. Uma nave japonesa chamada Hayabusa
conseguiu coletar uma pequena quantidade de poeira de asteroide e retornar com
o material em 2010. A nave sucessora, Hayabusa 2, deverá trazer mais em algum
momento por volta de 2020. Uma missão de certa forma semelhante da Nasa,
chamada OSIRIS-REx, deverá retornar à Terra por volta de 2023.
Há várias missões propostas, inclusive pela Nasa, para capturar um asteroide
inteiro ou até enviar seres humanos a um asteroide próximo à Terra. Até agora,
nenhum desses planos mais extravagantes recebeu financiamento para fazer isso
acontecer.
Preocupações
Uma preocupação importante no momento é entender as particularidades da
lei e da ordem no espaço. Em algum momento, será preciso patrulhar esses
asteroides. Basicamente, teremos um manancial de recursos flutuando no espaço
e, uma vez que surjam tecnologias que facilitem a captura desses corpos celestes e
a extração de suas riquezas, não há dúvida de que acabará havendo crimes
espaciais cometidos por criminosos espaciais. Por mais legal que isso possa
parecer, talvez você não se sinta bem se apontarem uma faca espacial nas suas
costas espaciais.
Com seu nome incrível, o dr. Elvis (ele tem um primeiro nome, mas... por
favor), do Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, afirma: “Um dia,
precisaremos de um esquadrão de geeks do espaço para consertar equipamentos
de mineração espacial de bilhões de dólares. Prevejo que precisaremos também de
xerifes e legistas do espaço, porque recursos raros e valiosos sempre levam a
atividades ‘extralegais’.”
O dr. Elvis também salienta que estaremos deteriorando ambientes intocados
desde o surgimento de nosso sistema solar. Isso é um problema geral de toda a
exploração do espaço, mas nesse caso também estamos planejando explicitamente
destruir o objeto de interesse.
Talvez, como sugere o dr. Elvis — cujo nome é dr. Elvis —, no futuro criemos
um sistema de reservas espaciais para preservar pelo menos uma parte dos
asteroides, mas será preciso lidar também com as questões legais desse assunto.
Existem algumas coisas que só se formam no espaço e não são encontradas na
Terra. Como o que acontece em grande medida com as florestas tropicais
modernas, o risco que corremos é não apenas o de destruir coisas que queremos,
mas o de destruir coisas que nem sequer chegamos a conhecer.
Outra preocupação é a segurança. Mesmo que a humanidade concorde em
permitir a mineração espacial privada, quais são as regras que vão determinar para
onde podemos mover os asteroides?
Se uma tecnologia para movimentar asteroides estivesse amplamente
disponível, pessoas indesejáveis poderiam ter uma arma perigosa nas mãos.
Suspeitamos de que isso seria um risco relativamente baixo, considerando que até
os tiranos mais loucos da história ainda parecem se preocupar com a própria vida.
Mesmo supondo que se poderia tranquilamente deixar um asteroide cair sobre
Washington, D.C., seria difícil prever os resultados para o planeta. É possível que
um grande impacto levantasse poeira suficiente para bloquear o Sol, esfriar a
Terra e destruir um ano de colheitas. Mas o fato de que “Ei, Kim Jong-un não é
tão maluco assim” não serve de consolo.
O maior encontro entre a Terra e um objeto extraterrestre na história
registrada foi o “evento de Tunguska”, em 1908, quando um enorme objeto
celeste (não sabemos se foi um cometa feito quase todo de gelo ou um asteroide
feito quase todo de pedra) explodiu sobre a Rússia rural. Esse objeto tinha
provavelmente 36 metros de diâmetro, e seu poder explosivo teria sido
comparável ao de 185 bombas de Hiroshima.
O meteorito de Tunguska é pequeno em relação a alguns asteroides que
seríamos capazes de trazer para cá.
Energia de fusão
É a energia do Sol, e isso é legal, mas será capaz de fazer minha
torradeira funcionar?
“Existe realmente mais energia na besta retesada?”, você pergunta. SIM. Existe.
Suponha que você apanhou a besta frouxa e a retesada e as colocou
separadamente em tonéis de ácido do mesmo tamanho. Quando cada uma delas
acabar de dissolver, o tonel que desfez a besta retesada estará um pouco mais
quente do que aquele que dissolveu a frouxa.
Sim. Lembra quando você estava entediado na aula de física? Isso foi porque
seu professor não estava dissolvendo bestas.
Ao levar isso em consideração, obter energia mudando a configuração de algo
não parece tão estranho assim. Encontramos situações como essa o tempo todo.
Uma pedra mantida no alto pode quebrar o pé de alguém, enquanto uma no chão
não pode. Uma mola esticada mudará de formato espontaneamente quando for
solta, mas uma frouxa não. Dois ímãs forçados a tocar polo norte com polo norte
vão se repelir quando forem soltos, enquanto dois ímãs com polos opostos se
tocando ficarão ali.
Tudo isso é para dizer que obter energia aproximando dois átomos não é algo
tão estranho à sua experiência diária. O modo como configuramos as partes de
um sistema determina o futuro dele. E às vezes podemos montar um de modo
que ele faça coisas de que os humanos gostam.
Pelo que se vê, uma mudança na configuração de dois átomos pequenos
(hidrogênio) para se transformarem num átomo maior (hélio) libera energia. Para
a maioria das reações de fusão, você usa pelo menos um isótopo de hidrogênio
com um nêutron extra. Falando de modo geral, a energia é liberada porque um
desses nêutrons extras é chutado para longe em alta velocidade depois de que os
isótopos se combinam. Uma vez que temos nêutrons quentes zunindo, podemos
capturar essa energia da mesma maneira que uma velha turbina a vapor funciona:
colocando os nêutrons na água, aquecendo-a até subir vapor e girando a turbina.
Mas espere aí. Por que precisamos de fusão para girar uma turbina? Podemos
fazer isso com carvão, diesel, gás ou vento. É verdade, mas a energia de fusão é
especial porque requer apenas uma pequena quantidade de combustível, e esse
combustível é relativamente abundante.
De acordo com o livro de Garry McCracken Fusion: The Energy of the
Universe, o lítio27 de uma bateria de laptop e o deutério em “meia banheira de
água” podem gerar uma energia de fusão de duzentos mil quilowatts-horas,
equivalente a quarenta toneladas de carvão.
Então por que ainda não temos energia de fusão? Embora seja mais fácil fazer
dois isótopos grandes se fundirem em comparação a seus equivalentes menores,
mais estáveis, o processo ainda é realmente difícil. Isso por causa de algo
chamado barreira de Coulomb, que é uma quantidade enorme de energia (pelo
menos em escala atômica) necessária para pôr dois prótons muito, muito, muito
próximos um do outro (pense nos ímãs de nossa analogia anterior com carros).
Os prótons se repelem. Na verdade, quando se aproximam, a força de repulsão
aumenta. É mais ou menos como quando você tenta fazer dois amigos
socialmente inaptos conversarem numa festa.
Mas quando os prótons ficam muito, muito, muito próximos, uma outra força,
chamada força nuclear forte, entra em ação. Essa força é muito grande em
pequenas distâncias. Supera a repulsão e faz com que os prótons fiquem juntos
(como o engate na analogia dos carros).
Em outras palavras, fundir dois prótons é como fazer dois amigos socialmente
inaptos se casarem. Se você conseguir colocá-los um ao lado do outro, eles podem
compartilhar a opinião de que a segunda edição de Advanced Dungeons &
Dragons é a melhor.28 Eles ficarão tão apaixonados que nunca se separarão. Mas
enquanto não estiverem bem ao lado um do outro, eles nem sequer farão contato
visual.
A energia do Sol é de fusão. Então por que não podemos fazer a mesma coisa
que o Sol, seja lá o que for, num laboratório aqui na Terra? Bem, o Sol tem uma
vantagem: pressão gravitacional extremamente elevada em seu centro, então os
átomos de hidrogênio estão batendo uns nos outros em alta velocidade e a todo
instante. Não sabemos bem quais são as implicações para nossa analogia do
namoro de nerds,29 mas a questão é que essas condições não existem na Terra.
Para conseguir energia de fusão, temos que descobrir uma forma de obter a
força de toda essa gravidade através de algum outro meio que não seja a
gravidade.
CALMA AÍ. Nós já não sabemos fazer bombas de fusão? Não foi isso que
usaram naquele documentário de Bruce Willis sobre explodir um asteroide? Por
que não podemos fazer o seguinte:
A resposta é... na verdade, sim, poderíamos fazer isso. Podemos criar condições
semelhantes às do Sol com uma bomba de fusão. Em essência, o que você faz é
detonar algumas boas e antiquadas bombas atômicas de fissão30 e depois usar a
energia resultante para comprimir uma esfera cheia de hidrogênio. Desse modo,
seu hidrogênio estará batendo em si mesmo bem rápido não por causa da
gravidade, mas por causa de toda a força das bombas atômicas. Alguns eventos de
fusão ocorrem e BUM: energia suficiente para abrir um buraco na atmosfera ou
transformar uma grande parte de um deserto em vidro.
Mas há alguns problemas. Primeiro, o contêiner das bombas provavelmente
não resistiria à explosão, dificultando a captura dessa energia. Segundo, mesmo
que o contêiner resistisse, ele estaria com uma quantidade absurda de radiação.
Terceiro, se o contêiner não fosse perfeito, você poderia enviar uma imensa
nuvem de poeira radioativa para a atmosfera.31 Quarto, a embaixada russa está
ligando, e parece que eles estão um pouco irritados ao telefone.
A geopolítica e as preocupações com segurança excluem a abordagem mais
simples.32 Temos que procurar condições semelhantes ao Sol em outro lugar.
Como, por exemplo, naquela gaiola de metal esférica em cima da sua mesa.
Está bem, talvez não na sua mesa, mas com certeza na mesa de Richard Hull, o
primeiro cientista amador a alcançar a fusão. O sr. Hull coadministra um site na
internet chamado Fusor.net, no qual as pessoas podem aprender a criar e acionar
reatores nucleares de mesa.
Embora o site tenha muitos “fusoneiros” entre seus membros, apenas cerca de
75 deles demonstraram oficialmente uma fusão e, portanto, tiveram a honra de
ingressar no Neutron Club. Um menino chamado Taylor Wilson entrou para o
Neutron Club aos quatorze anos. Portanto, tenha isso em mente quando estiver
tentando decidir se já fez o bastante em sua vida.
Se souber o que está fazendo e tiver acesso a todos os equipamentos
adequados, você pode criar um reator nuclear de mesa por cerca de 3 mil dólares.
É isso mesmo, crianças. Por apenas 10 dólares por dia durante trezentos dias você
poderia ter uma arma de nêutron. Eis como:
Primeiro, vá a uma loja de gaiolas de metal esféricas e adquira uma gaiola de
metal esférica.
Agora, eletrifique essa gaiola de modo que ela tenha uma carga positiva muito
forte.
Dentro da gaiola positivamente carregada, ponha uma gaiola menor com uma
carga negativa muito forte.
Depois de fazer tudo isso, você coloca toda a estrutura numa câmara a vácuo e
adiciona um pouco de gás deutério entre as duas gaiolas. A compra de gás
deutério pode exigir o preenchimento de alguns papéis do Departamento de
Segurança Interna, mas se você não quiser ser posto numa lista, basta entrar na
internet e comprar um pouco de “água pesada”.
Está bem, isso parece a maior fraude do mundo, mas juramos que é verdade.
Água são duas partes de hidrogênio e uma de oxigênio (H2O). Água pesada é a
mesma coisa, só que os hidrogênios são substituídos por deutério (D2O).
Lembre-se, o deutério tem um nêutron extra, então a água, apesar de parecer a
boa e velha água comum, é um pouco mais pesada.
Agora, pegue sua D2O e passe uma corrente elétrica por ela. Isso vai dividi-la
em gás oxigênio e gás deutério. Nesse momento, dê uma olhada pela janela para
se certificar de que o FBI não está na rua. Tudo limpo? Bom. Aqui vai a parte
difícil: você precisa “secar totalmente” o gás, removendo o vapor de água pesada.
Segundo o sr. Hull, isso é bem complicado, já que mesmo uma pequena
quantidade de vapor arruinará sua festa de fusão. Há diferentes maneiras de fazer
isso. Por exemplo, você pode passar o gás por um tubo frio, onde é mais provável
que o vapor se prenda às suas paredes, ou pode passá-lo por algo com muita
superfície de contato para ele se prender, como algodão.
Agora, injete o deutério na gaiola eletrificada. O campo elétrico forte divide o
gás em partes positiva e negativa. Agora você tem pequenos núcleos de deutério,
prontos para esmagar.
A gaiola externa positiva empurra o deutério para o centro e a gaiola interna
negativa puxa-o para o centro. Quando menos se espera, muitas colisões estão
acontecendo.
Você se lembra dos nossos nerds socialmente inaptos? Imagine um quarto. No
centro do quarto estão bonecos raros dos primórdios de Star Wars
(especificamente aqueles com sabres de luz retráteis que foram suspensos em
1978). Nas paredes do quarto há pôsteres de cenas dos filmes O Hobbit que não
estão no livro original. Agora, entre esses pôsteres horríveis, totalmente não
canônicos, e esses bonecos incríveis, super-raros, você joga um monte de nerds.
Todos os nerds correm dos pôsteres nas paredes em direção aos bonecos. A
atração e a repulsão combinadas são tão fortes que eles se jogam bem junto nos
brinquedos, batendo uns nos outros, abraçando-se, involuntariamente discutindo
episódios perdidos de Doctor Who e deixando de ser seus amigos sozinhos e
desajeitados para se tornarem seus amigos que, de tão grudentos, chegam a causar
desconforto.
Da mesma forma, as partículas de deutério entre a gaiola externa positiva
(repelente) e a gaiola interna negativa (atraente) se prendem e se fundem. Viva!33
Mas, espere aí... nós não dissemos antes que a fusão é realmente difícil?
Sim, então o lance é o seguinte: a maioria de nossos amigos socialmente
inaptos não está se casando. Sinto muito. Este casal aqui discorda sobre quem
sabe mais sobre Wolverine. Aquele casal ali simplesmente bateu cabeça e
desmaiou. E o cara de armadura de papelão amarela está “se guardando” para a
Sigourney Weaver.
Da mesma forma, a maioria das partículas de deutério não se funde com êxito.
Algumas batem na gaiola. Outras não atingem partícula alguma. Outras se
acertam com força e resvalam, em vez de se combinarem.
Como há uma quantidade suficiente de partículas juntas, você obterá alguma
fusão, mas será só um benefício da lei das médias. Seu aparelho de fusão de mesa
tem um saldo negativo de energia. Ele consome mais energia do que produz.
A essa altura você pode estar se perguntando sobre os fusoneiros: por que eles
estão fazendo fusão se não vão ganhar energia com isso? Acontece que os
fusoneiros costumam ser de três tipos: os que pensam que resolverão o problema
da fusão e darão ao mundo uma energia limpa e barata; os que estão fazendo o
projeto faça-você-mesmo mais legal da história e os que querem nêutrons para
pesquisas. Por acaso, Richard Hull está no terceiro grupo, passando sua
aposentadoria investigando a natureza do átomo... como qualquer um faria.
E agora chegamos ao ponto principal do problema: podemos fazer a fusão
acontecer usando uma bomba, embora seja difícil demais de controlar. Podemos
fazer a fusão acontecer com uma simples gaiola eletrificada, mas isso não é muito
eficiente. E neste exato momento não temos uma boa maneira de chegar a um
meio-termo.
Existem várias abordagens diferentes para resolver a questão, mas nos
principais experimentos há duas maneiras de agir: explodir todo o seu
combustível de fusão de uma só vez ou confiná-lo num lugar pequeno enquanto
ele aquece.
Explodir, provavelmente com um laser, é bom porque faz com que muitos
eventos de fusão aconteçam de uma vez. Quando eventos de fusão ocorrem em
momentos diferentes, a reação de fusão geral tende a ficar mais lenta. Para
entender, pense em nossos casais de nerds. Se cada casal que se apaixonar der as
mãos e sair correndo feliz, derrubará os nerds que estão chegando, e esse nerds
caídos não terão chance de se fundir com outros.
MagLIF
ITER
Outros projetos
27. O lítio, terceiro elemento na tabela periódica, é dividido para criar trítio em ambiente de laboratório.
28. É.
29. Está bem, espere aí: imagine que Joss Whedon acabou de aparecer no meio da Comic-Con sem nada
para se defender além de uma caixa de spoilers do próximo Star Wars.
30. Fissão é quando um átomo se divide. Quanto átomos grandes, como os de urânio e plutônio, se dividem,
há liberação de energia. No ambiente certo, a divisão de um átomo desses pode levar vários outros a se
dividir, e essas divisões causam ainda mais divisões e assim por diante. Essa reação em cadeia pode ser usada
para gerar energia ou para criar bombas.
31. Veja a nota bene deste capítulo.
32. Pode-se dizer que o imenso gasto também exclui isso. E você provavelmente chegaria à conclusão de que
é melhor haver um monte de burocracia e papelada entre uma empresa de energia e uma ogiva nuclear.
33. O dr. Alex Wellerstein, sobre o qual falaremos mais adiante neste capítulo, sugeriu “cuspir o bebê” como
metáfora para o nêutron. É claro que isso é ridículo.
34. É preciso atingir o combustível de fusão por vários lados, todos de uma vez, para fazer a fusão acontecer.
Então por que usar um laser gigante dividido 192 vezes em vez de 192 pequenos feixes independentes? O
motivo é o timing. É muito mais fácil sincronizar 192 raios do que disparar 192 raios todos de uma vez.
35. O número real é discutível. A NIF define a “energia dentro” como a quantidade de energia que vai
diretamente para dentro do cilindro de ouro, e não como a quantidade de energia necessária para fazer o
disparo. Por esse padrão, eles estão mais próximos de 1/1.000 de ignição.
36. Na verdade, vimos muitas projeções diferentes, algumas chegando a 50 bilhões de dólares.
37. O que significa que ele estuda energia nuclear, e não que ele tem poderes nucleares.
38. Isso não inclui o financiamento americano a colaborações internacionais. O governo dos Estados Unidos
também contribui para o ITER, mas, como você poderia imaginar, alguns políticos americanos não ficam
animados de enviar dinheiro para um projeto científico de orçamento estourado que está sendo construído
na França. Os Estados Unidos continuam fazendo contribuições anuais da ordem de 100 milhões a 200
milhões de dólares, mas deputados já ameaçaram várias vezes suspendê-las, já que o custo tem aumentado.
Até cientistas americanos estão um pouco preocupados com as grandes contribuições ao ITER, porque o
grande gasto externo está impedindo o financiamento de instalações internas.
39. Isso não é garantido. Na verdade, o Greenpeace é conhecido por se opor ao ITER, embora não pelo
motivo que você poderia pensar. Eles acham que deveríamos estar gastando o dinheiro em energias
renováveis modernas, como a solar e a eólica.
40. Imagine viajar por uma estrada durante vinte anos sem reabastecer!
5.
Matéria programável
E se todas as suas coisas pudessem ser qualquer uma de suas
coisas?
Pergunta: por que você usa muito mais o seu computador do que a sua bicicleta?
Resposta: porque você é bizarramente introvertido.
Está bem, mas a outra questão é que a bicicleta meio que só faz uma coisa: anda
para a frente quando você pedala. Já o computador faz muitas coisas e (ainda
mais importante) é capaz de fazer infinitas coisas. Isso porque o computador já é
uma “matéria programável”. Ele pode executar qualquer programa, exibir
qualquer imagem, fazer qualquer som, conectar-se a qualquer dispositivo (bem, se
você conseguir encontrar o cabo e se o Windows não o corrompeu). E esses
programas, sons, imagens etc. não estão permanentemente inseridos no
computador, como numa fotografia, numa gravação ou no mecanismo físico de
um motor a vapor.
É por isso que uma pessoa de 1900 acharia familiar a maioria das coisas que
você tem. Sua vassoura é de plástico, mas se comporta da mesma maneira que a
dela, feita de madeira. Sua máquina de lavar é uma engenhoca inteligente, mas
nada ali é difícil de entender. Seu computador? É aíííí que ela chega à conclusão
de que você é um bruxo.
E se pudéssemos fazer todas as suas coisas serem como o computador? Ou,
pelo menos, por que, nessa era de computação poderosa e materiais sintéticos
avançados, não podemos fazer com que muitas de suas coisas se adaptem aos seus
desejos? Por que os materiais de uma construção não podem responder
automaticamente a mudanças meteorológicas? Por que você não pode mandar
quatro cadeiras se remodelarem e virarem uma mesa? E, pelo amor de Deus, por
que nós mesmos temos que dobrar origamis em vez de só gritar com o papel até
que ele assuma a forma de uma garça? Essas coisas talvez não estejam tão
distantes quanto parecem.
O dr. Erik Demaine, do MIT, explica seu entusiasmo com a matéria
programável: “Para mim, o mais empolgante na matéria programável é a ideia de
fazer aparelhos que podem ter muitas funções. Consigo imaginar minha bicicleta
se transformando numa cadeira quando eu quiser me sentar e não pedalar.
Depois ela se torna meu laptop. Ou meu celular se desdobra e vira um laptop.
Vivemos num mundo computacional em que os softwares são reprogramáveis.
Matéria programável significa fazer a mesma coisa com equipamentos. Se você
quiser adquirir o celular mais moderno, tem que sair e comprar a coisa física. No
futuro, podemos imaginar que uma coisa que já temos pode se reajustar e se
tornar um modelo novo. Esse é o sonho.”
Cientistas, engenheiros e artistas do mundo inteiro estão tentando viabilizar
alguma versão disso. Alguns querem programar a matéria no sentido de projetá-
la para responder às condições ao redor. Outros querem robôs construídos para
tudo o que fazemos. Em seus sonhos mais ambiciosos, esses criadores imaginam
massas de matéria que podem se metamorfosear em praticamente qualquer
formato. Como os computadores e sistemas eletromecânicos estão cada vez
menores e mais eficientes, pode ser que chegue o dia em que você mergulhará a
mão num tanque de líquido cintilante e retirará dali qualquer dispositivo, de uma
chave inglesa ou um celular até um robô de estimação.
Por que queremos isso? Bem, há motivos práticos (aos quais chegaremos), mas
em algum nível suspeitamos de que os seres humanos simplesmente adoram
coisas que viram outras. Pense, por exemplo, na série Transformers. É sobre
formas de vida de planetas distantes com mentes sobre-humanas e biologia
alienígena, travando uma guerra perto do planeta Terra. E por que isso nos
estimula? Porque, além de tudo isso, elas podem se transformar em carros
realmente maneiros.
Materiais programados
Robôs de origami
Casas reconfiguráveis
ROBÔS MODULARES
Se sua casa pode se reconfigurar, por que não suas coisas? Um livro que
lemos44 propõe um cômodo “onde ‘móveis ganham vida’”. Considerando quanto
abusamos do nosso sofá, achamos esse desejo meio questionável. Por outro lado,
se uma mesa com cookies pudesse se aproximar de nós enquanto nos mantemos
inertes e entorpecidos, poderíamos nos dispor a retificar nossos pensamentos.
Uma versão realmente legal disso veio da École Polytechnique Fédérale de
Lausanne (EPFL) e se chama Roombots. Eles são claramente projetados para
tornar as coisas reconfiguráveis no seu aposento.
Os Roombots são basicamente pequenos cubos arredondados que podem
rodar e se atracar uns nos outros. A habilidade de rodar faz com que possam se
mover (seja se revolvendo ou se conectando entre si para formar uma roda
simples). E, uma vez que se atracam, os Roombots podem fazer montagens
grandes e complexas.
O mecanismo de atracação utiliza garras de plástico que se prendem a
atracadouros especialmente projetados. Isso abre a possibilidade de haver paredes
que eles podem subir agarrando-se à superfície de maneira sequenciada. Portanto,
você poderia fazê-los segurar algumas lâmpadas (especialmente projetadas),
andar até o teto e se transformar num candelabro que seguiria você pela casa. Ou,
se não quiser todas as suas coisas feitas de robôs, poderia pegar algumas tábuas de
madeira antigas e entalhar áreas de atracação nelas. Os Roombots poderiam ir até
a madeira, agarrá-la, transformá-la num banco e trazê-lo até você. Mais tarde,
poderiam usar a peça como encosto de cadeira, ou como um púlpito para se
manifestarem contra seu repugnante soberano humano. Ah, você tentará dizer
aos amigos que “foi a cadeira que fez isso!”. Mas quem vai acreditar depois
daquela vez que você pensou ter visto uma mensagem no seu macarrão?
Há muitas utilizações possíveis para blocos móveis e com autoconfiguração,
mas esses pesquisadores estão mais interessados em ajudar idosos e enfermos.
Um uso simples de Roombots é criar móveis que se movimentem e ajustem a
altura e o formato para o usuário.
Esses enxames modulares também são um passo em direção à matéria
universalmente programável. Uma forma de utilizá-los é produzir enxames de
robôs mais autônomos — capazes de cumprir ordens mais gerais. Portanto, em
vez de programar um design e um local específicos, você programaria um
objetivo, que o grupo de módulos executaria por conta própria. O que poderia dar
errado?
Um projeto chamado SWARMORPH45 conta com pequenos robôs munidos
de rodas e atracadouros em suas extremidades circulares. Esses engates permitem
que se conectem lado a lado, mas eles ainda não conseguem subir um no outro.
Em certo sentido, é um projeto mais simples que os Roombots, que podem se
mover em três dimensões. Mas o que torna os robôs SWARMORPH especiais é
que eles podem se movimentar e se organizar da mesma forma que os enxames
de insetos. Não há um controlador central; cada robô é um ator independente.
Sinalizando entre si com pequenas luzes, eles podem coordenar as ações que
desempenham.
Num teste simples, os robôs SWARMORPH foram capazes de atravessar
pontes e obstáculos que nenhum deles conseguiria transpor de maneira
independente. Eis um exemplo de um obstáculo que eles superariam juntos: os
robôs estão numa arena e são solicitados a ir de um lado ao outro. No entanto, há
um abismo no meio. Os robôs ficam se remexendo pela área até um deles
perceber que precisa passar por cima do precipício mas não pode. Ele então se
torna o “robô semente”, no sentido de semear uma mudança na organização. Ele
diz — por meio de luzes em seu chassi — “VENHAM AQUI E
ATRAQUEM!”. Os outros se aproximam do robô semente e veem que apenas
um engate do robô semente está disponível. O primeiro robô a se prender se
torna o novo atracadouro aberto.
Em pouco tempo, temos uma fila indiana de robôs. Nesse formato, os módulos
podem se inclinar até o outro lado do abismo e atravessá-lo. Depois de cruzarem
o obstáculo sem qualquer interferência de um supervisor humano, eles se separam
e prosseguem até o fim da jornada.
Os robôs podem cumprir várias tarefas de maneiras semelhantes, como
conectar-se para percorrer um par de trilhos estreitos. Mas até agora só
concluíram testes controlados em laboratório.
Um outro grupo, chamado SYMBRION, está trabalhando num projeto
parecido que pode funcionar em três dimensões. Cada robô é uma espécie de
cubo com rodas em suas faces. As faces também têm um mecanismo de engate
com uma articulação. Portanto, os robôs podem fazer coisas da mesma forma que
os SWARMORPH, mas com uma amplitude de movimento um pouco maior.
Vídeos do projeto mostram os robôs SYMBRION se juntando e formando
quadrúpedes e serpentes móveis, o que lhes permite se movimentar de diferentes
maneiras para transpor obstáculos.
O SYMBRION terminou seu trabalho de criar quadrúpedes modulares
assustadores em 2013, mas outros engenheiros ainda estão tentando a extinção da
espécie humana a curto prazo.46 Um recente projeto chamado Kilobot (que,
observe, tem apenas uma letra a menos que KILLobot) consiste em 1.024 robôs
minúsculos.
Os Kilobots são bem simples e bem pequenos. Parecem baterias de relógio de
pulso com três perninhas duras e se movem balançando de um lado para o outro.
Assim como em outros enxames, é possível lhes delegar uma tarefa e eles podem
resolver como cumpri-la da maneira exata. Pressagiando um estranho futuro em
que, talvez, robôs minúsculos assumirão a forma de qualquer ferramenta que você
quiser, os Kilobots executaram um algoritmo simples que os reconfigurou,
levando-os a assumir o formato de uma chave inglesa.
Está bem, leva umas seis horas para os milhares de robôs encontrarem o
caminho para o formato certo. E pareceu mais com uma banda marcial de
robozinhos fazendo um formato de chave inglesa do que com alguma coisa
semelhante a uma ferramenta útil. Mas há um caminho muito promissor aqui:
quanto mais robôs houver, mais possibilidades se abrem e mais fácil se torna fazer
um enxame se comportar como uma grande entidade conectada.
A não ser que fosse para acabar com essa farsa perpétua conhecida como
civilização humana, por que você iria querer enxames de robôs autônomos? Em
primeiro lugar, por não haver um grande computador (ou um grande humano)
supervisionando tudo, a necessidade de poder de processamento do computador
diminui. Isso garante robôs mais baratos e talvez mais rápidos. Além disso, robôs
autônomos podem ser mais eficientes porque podem tomar decisões
circunstanciais rápidas. Isso é especialmente importante em ambientes hostis
(como o espaço ou uma área em que ocorreu um desastre), onde haverá situações
imprevistas. Se os robôs podem se comportar mais como formigas do que como
servos programados, basta lhes dar tarefas mais gerais, como “entregar essa
comida nesse local”, que eles podem cumprir com a própria criatividade.
Preocupações
Para quem tiver uma matéria programável em casa, o hackeamento seria uma
pequena preocupação. Talvez você acorde um dia e perceba que o prato fugiu
com a colher. Ter perdido seus pertences já é ruim o bastante, mas agora você está
se perguntando exatamente para onde a faca foi.
Se a matéria se remodela por motivos de engenharia, a possibilidade de
hackers fazerem ajustes sutis é perigosa. Companhias aéreas já estão lidando com
esse tipo de problema, assim como carros conectados à internet. Não está
totalmente claro se a matéria programável causaria perigos desconhecidos ou
simplesmente amplificaria aqueles que já existem.
O dr. Demaine observa que o hackeamento é um problema maior para
softwares e que talvez seja um pouco mais fácil conseguirmos controlar o
hackeamento de hardware. Ele afirma que você poderia ter um simples
mecanismo físico para assegurar que todas as mudanças sejam feitas somente
após a permissão de um ser humano por perto. Isso poderia ser bem simples,
como um botão que diga “reprogramar”.
Mesmo sem hackers, e se sua matéria programável falhar num momento
particularmente ruim? O professor Tibbits observa: “Acho que a maior
[preocupação] ética é que estamos atribuindo poder de escolha aos materiais. Um
exemplo muito específico: se um avião tiver materiais programáveis nas asas,
pode não ser do seu interesse dar liberdade total para permitir que as asas
proponham soluções enquanto você estiver voando. Esse campo traz diversas
preocupações. Temos como nos assegurar disso? Como garantimos que isso vai
acontecer? O que acontece se houver um defeito e o material falhar? Quem é o
culpado por isso quando se atribui poder de escolha aos materiais?”
O campo dos carros autodirigíveis já está lidando com a questão “de quem é a
culpa quando a máquina erra?” No entanto, pelo menos com os carros a margem
para possíveis problemas é bem limitada. Se os objetos pensantes forem ubíquos,
descobrir a culpa será bastante complicado.
Existem também algumas aplicações militares que são assustadoras,
dependendo de você ser ou não o país que controla o enxame programável. No
fim dos anos 2000, a Darpa, Defense Advanced Research Projects Agency
[Agência de Defesa para Projetos de Pesquisa Avançados], realizou um estudo de
dois anos sobre matéria programável e em seguida financiou alguns projetos de
robótica. O objetivo era ter uma ferramenta reconfigurável de estilo militar que
um soldado carregaria no cinto para criar ferramentas e peças de substituição.
Pelo que sabemos, o estudo não gerou muitos frutos, embora em determinado
momento eles estivessem solicitando propostas para um “ChemBot”, que seria
uma espécie de robô mole sem motor. O resultado foi, bem, sinceramente... foi
um tipo de monstruosidade de silicone que parece mais adequada para uma caixa
com a indicação “privado” do que para um campo de batalha. Não é nenhum T-
1000. Mas, ei, um passo de cada vez.
Dito isso, você não precisa de robôs assassinos gigantes para tudo nas Forças
Armadas. Um Balde de Coisas seria um espião perfeito. Imagine se você
colocasse numa sala uma escuta secreta parecida com uma manchinha gosmenta.
E imagine que a gosma possa criar microfones, câmeras e transmissores com
rapidez.
Isso parece ótimo, é claro, mas quanto menor for a matéria programável, mais
fácil será vigiar tudo nos mínimos detalhes. Nos anos 1990, era empolgante poder
pesquisar o clima em qualquer região. Nos anos 2090, talvez você seja capaz de
olhar uma foto de qualquer lugar ao vivo, a partir de qualquer ângulo.
Uma questão mais mundana é como exatamente funcionará o registro de
patentes num mundo onde é possível se fazer o que quiser a partir de uma massa
amorfa de gosma. Se uma pessoa fizer o design de uma nova mesa, será que ela
pode restringir outro indivíduo de dizer ao Balde de Coisas dele para imitar o
projeto?
No futuro de longo prazo, não está totalmente claro como se dará essa questão,
mas talvez seja algo semelhante ao modo como os softwares funcionam em
computadores. O seu computador é uma máquina universal, mas você ainda paga
para organizá-lo como quiser — ou seja, você paga por aplicativos, embora eles
estejam apenas “remodelando” a memória da sua máquina. Pelo menos para
objetos complexos, é de se esperar que o mesmo tipo de arranjo seja válido para a
matéria programável. Sim, você poderia criar o projeto do seu próprio dinossauro
robótico, mas por que se importar quando você pode pagar 20 dólares a uma
empresa? Ou, sim, você poderia baixar ilegalmente um dinossauro robô pirata,
mas será que na era da gosma robótica você quer mesmo se arriscar a pegar um
vírus?
Garantir a segurança pessoal também pode ficar mais complicado. Quem tiver
um Balde de Coisas conseguirá uma faca aonde quer que vá. Para uma matéria
programável muito avançada, talvez o proprietário tenha uma pistola ou uma
bomba. É possível que o Balde de Coisas simplesmente não seja permitido em
aviões, em qualquer hipótese. Seria fácil detectar um material proveniente do
Balde de Coisas? Aí é uma pergunta mais difícil. E, de qualquer modo, a maior
parte do planeta não está segura. Num mundo de matéria programável, um
agente solitário pode baixar um programa para produzir explosivos ou armas
automáticas.
Sendo assim, a impressão em 3D já tem tornado esse tipo de coisa uma
preocupação. Por exemplo, houve tentativas de proibir pistolas impressas em 3D,
mas deram errado. Isso se dá em grande parte porque é mais ou menos
impossível impedir que alguém faça o que quiser na própria casa. Se essa
facilidade de criação de fato resulta em maiores perigos para a sociedade, só
saberemos no futuro.
Ah, e por falar em perigo para a sociedade, talvez alguns de vocês estejam
preocupados com a possibilidade de criarem uma matéria programável que se
autorreproduza, se propague pelo mundo e destrua tudo. Entre as pessoas que
estudam como o mundo poderá acabar,49 isso é chamado de “Cenário da Gosma
Cinza”. A visão implícita é a de um organismo projetado que come tudo e, pelo
visto, cria excrementos cinzentos de aparência um tanto banal. Não temam,
queridos leitores: a maioria dos cientistas acha isso improvável. Podemos fazer
maquininhas e aparelhos que nunca teriam existido, mas não temos como violar
as leis da física. Um pequeno organismo de metal e silício está sujeito às mesmas
restrições evolutivas que as de um organismo mole feito de carbono.
41. É o que nos dizem. Na verdade, somos terríveis em origami, e nossa inaptidão nos deixa com raiva e
confusos.
42. Reivindicamos os direitos sobre Uma tira de intestino muito especial como título de livro infantil.
43. Seu trabalho no campo do origami computacional lhe rendeu um emprego como professor no MIT
antes mesmo de ter idade legal para beber. Mas, ei, a Kelly ainda se sente bem por tentar obter seu PhD aos
31 anos. De qualquer modo, se ela não conseguir, terá idade legal para beber.
44. Architectural Robotics: Ecosystems of Bits, Bytes, and Biology, de Keith Evan Green.
45. Guarde na memória para que você possa xingar esse nome depois da revolta das máquinas.
46. Ex-líder do projeto SYMBRION, o dr. Alan Winfield nos disse: “Estou certo de que vocês
compreendem que esse não era nosso objetivo. Os robôs SYMBRION mal conseguem subir em obstáculos
simples num laboratório, portanto não são uma grande ameaça à humanidade.” Bem, não com essa atitude.
47. Podemos apenas observar como é simpático um importante matemático do MIT usar a expressão “ui”?
48. O dr. Alan Winfield teve a gentileza de nos enviar um vídeo explícito do Robot Baby Project, do dr.
Gusz Eiben, em que robôs se reproduzem. E estamos querendo dizer explícito mesmo. Apreciamos uns bons
vinte segundos de robôs plásticos se esfregando um no outro de maneira erótica enquanto cientistas
discutiam as implicações de uma coisa ou outra. Considerando que os robôs não exatamente pariram
segundo a orientação de seus cuidadores humanos para fabricar uma prole híbrida, pergunta-se que utilidade
teve a trepada robótica. Não estamos reclamando. Só que jamais conseguiremos olhar novamente para
nossos aparelhinhos da mesma forma.
49. SIM! Para quem se interessou, uma dica: há uma boa coleção de ensaios chamada Global Catastrophic
Risks.
50. Na verdade, foi demonstrado que essa mudança na pele não acontece em pessoas que têm perda de
atividade nervosa simpática.
6.
Construção robótica
Faça uma sala de jogos para mim, servo de metal!
Em 1917, Thomas Edison teve uma ótima ideia: em vez de construir uma casa
nova sempre que precisarmos, por que não ter moldes configuráveis dentro dos
quais simplesmente despejamos concreto? Configure. Molde. BAM! Casa nova.
De fato, essas coisas foram construídas, e pelo visto funcionaram
razoavelmente bem, mas a ideia não vingou. Talvez o problema tenha sido que
1917 foi um ano de guerra, então a construção de casas novas não era uma
prioridade. Ou talvez tenha sido porque a ideia de morar numa caixa de concreto
fosse um pouco deprimente.
Uma geração depois, em 1943, Ernst Neufert propôs um conceito chamado
Hausbaumaschine, criado para construir prédios rapidamente colocando uma
fábrica de construção de casas sobre trilhos de trem. Imagine: uma fábrica inteira
se move lentamente pelos trilhos, recebendo matéria-prima e expelindo por trás
construções de cinco andares. Como um verme gigante excretando subúrbios.
Lindo.
Por alguma razão, essa ideia nunca chegou a decolar também. Mas não se sinta
mal. Isso foi em 1943, e Neufert estava no lado mais hitlerista da Segunda
Guerra Mundial. A ideia era estranha demais, mesmo para os anos de decadência
da Alemanha nazista. Além disso, na época era bem difícil conseguir a matéria-
prima necessária para a extrusão de subúrbios.
A Alemanha nazista nunca teve um extrusor de construções, mas algumas
ideias baseadas na Hausbaumaschine foram testadas mais tarde na Alemanha
Oriental. O resultado foram muitas mortes acidentais. Achamos difícil obter
informação suficiente sobre esse episódio histórico, mas pelo visto todas as
tentativas de criar uma máquina geradora de casas foram malsucedidas e
perigosas.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos cresciam
economicamente enquanto a Europa reconstruía sua infraestrutura em
frangalhos. Casas eram necessárias, e bem rápido. Essa foi a época em que a
habitação finalmente começou a tomar emprestadas algumas práticas do setor
automotivo. A construção se industrializou. Os prédios se tornaram menos
customizados e mais dependentes de um conjunto relativamente pequeno de
partes pré-fabricadas. De certa forma, isso foi um passo na direção da ideia da
construção robótica de prédios, mas foi um distanciamento em termos de
customização. Essas casas eram mais fáceis e baratas de construir, mas talvez
tenham perdido o caráter exclusivo e o charme dos métodos de habitação mais
personalizados anteriores à guerra.
Nos anos 1980, fabricantes de todo tipo estavam usando robôs industriais.
Alguns grupos — sobretudo no Japão, onde a mão de obra era muito cara e a
população, relativamente idosa — se perguntaram se era possível tirar os robôs da
fábrica e levá-los para o local da construção.
Os robôs eram capazes de realizar algumas tarefas, tanto perigosas, como
depositar objetos pesados, quanto simples, como finalizar superfícies de concreto.
Isso parece animador, mas análises mostraram que não houve uma redução
substancial no tempo de construção nem no valor das horas dos trabalhadores.
Acontece que fazer um robô que realize trabalhos de construção não é tão difícil
quanto fazer robôs que consigam superar o desempenho de trabalhadores
humanos.
A robótica e a inteligência artificial estão muito mais avançadas do que eram
há apenas algumas décadas. Os softwares e o poder computacional à nossa
disposição são incríveis. Mas, embora o impulso para encontrar uma maneira
melhor de construir prédios exista entre nós há muito tempo, o modo como
construímos casas hoje em dia não é tão diferente daquele de cem anos atrás.
Nesse sentido, a construção moderna está em descompasso com as perspectivas
da contemporaneidade. A vida se tornou cada vez mais customizada, e os
produtos em geral, cada vez mais baratos. No entanto, para a maioria das pessoas,
a habitação é padronizada e está ficando cada vez mais cara.
Mesmo com materiais modernos e métodos de habitação pré-fabricada, quem
quer construir uma casa ainda precisa que uma equipe de trabalhadores
habilitados vá a um local específico e a construa à mão. Isso é estranho. Na
verdade, é bem estranho. Você simplesmente se acostumou a isso.
Dê uma olhada à sua volta — quantos itens você vê que foram montados à
mão, no local, por trabalhadores habilitados? Aquele estrado de cama que você
demorou seis meses para montar não conta. Grande parte das coisas que vemos
foi feita de maneira rápida e barata por um processo de fabricação
computadorizado. Por que não podemos fazer o mesmo com as casas?
O problema é o seguinte: casas são grandes e complicadas. O tipo de moradia
onde a maioria das pessoas quer viver é feito de muitos materiais diferentes que
precisam ser colocados juntos numa certa ordem. Isso também ocorre com outros
bens manufaturados, mas, a não ser que você esteja construindo uma casa muito
pequena, ela precisa ser feita num lugar específico, de acordo com as suas
particularidades. O processo é diferente até mesmo para objetos razoavelmente
complexos, como o seu carro. A fabricação de um carro exige muitas etapas, mas
boa parte delas agora é feita por robôs, e todas em fábricas. Por quê? Porque
carros são pequenos o bastante para caberem em uma fábrica e para serem
transportados para locais distantes, e porque todos os carros de consumo rodam
mais ou menos sobre o mesmo tipo de superfície.
Portanto, diferentemente de todos aqueles objetos fabricados que estão no seu
quarto, a construção não é um processo de simples automatização. Ele exige
máquinas que pensem e interajam com o mundo real.
Graças a recentes avanços em robótica, computação e outras tecnologias, um
pequeno mas crescente número de cientistas e engenheiros acha que as
habitações feitas por robôs talvez sejam finalmente possíveis. Na verdade, não
apenas são possíveis como podem ser muito melhores. A construção robótica
pode aumentar a velocidade do processo, melhorar sua qualidade e reduzir seu
preço.
E, com computadores e robôs fazendo uma parte maior do trabalho (e até do
raciocínio) necessário para levantar estruturas, estreitamos o espaço entre as fases
de projeto e de construção. Dessa forma, a visão de um arquiteto se torna menos
restringida pela natureza da produção fabril. Se algum dia chegarmos a um ponto
em que um arquiteto poderá projetar um prédio e simplesmente dizer às
máquinas para construí-lo, teremos construções mais baratas, melhores e mais
rápidas de casas comuns, e teremos megaestruturas mais incríveis, bonitas e
admiráveis.
Portanto, vamos a elas.
Na verdade, calma aí. Será que podemos, só por um instante, discutir primeiro
como parte da literatura de arquitetura é esquisita? É como se, por um segundo,
alguém falasse sobre os detalhes técnicos de como construir certa fachada de aço
e de repente discorresse com entusiasmo sobre “explorar uma nova materialidade
influenciada”. Em nossa pesquisa, encontramos muitos exemplos confusos desse
discurso artístico estranho, mas de longe nosso favorito é o do dr. Antoine Picon
na edição de maio/junho de 2014 da Architectural Design: “Os movimentos do
nosso corpo são eles próprios baseados nas variadas rotações de nossos
membros.”
Está bem, então, para sermos justos, mais tarde descobrimos que em
arquitetura um “membro” é apenas qualquer parte individual de uma estrutura, e
o autor estava apenas argumentando sobre como os arquitetos costumam mover
elementos de construção de maneira retilínea, e não de maneira rotacional.
Mas a gente não se importa.
Aham. Rolou uma digressão aqui.
Mesmo que de início não seja óbvio como explicar isso, você provavelmente
diria que para a situação 1 existem alguns passos simples: “Pegue o primeiro
dígito do primeiro número, multiplique-o por cada dígito do segundo número da
direita para a esquerda” e assim por diante. Seria meio chato, mas você poderia
anotar um pequeno conjunto de regras que funcionaria.
A situação 2 talvez pareça fácil, até você tentar explicar. Por exemplo, quando
vemos uma foto de um rosto humano, sabemos que “para cima” significa os olhos
estarem acima da boca. É uma boa regra. Bem, a não ser que as pessoas estejam
penduradas de cabeça para baixo. Mas como determinar que elas estão assim?
Bem, talvez olhemos para o horizonte. Ou vejamos como o cabelo está pendendo.
Mas, espere aí, como dizer ao computador o que é cabelo? Como dizer a ele que
a linha reta no fundo não é o horizonte, mas o alto de uma cerca?
Embora a situação 2 praticamente sempre tenha uma resposta clara, o número
de regras que um ser humano usaria para determinar a resposta é enorme. Você
foi treinado pelas dezenas de milhares de horas que passou olhando fotos, então
faz isso com facilidade.52 Mas explicar isso a um computador é bem difícil.
De maneira semelhante, para assentar um tijolo, você não se limita a cobri-lo e
colocá-lo no lugar. Essa tarefa aparentemente simples exige, na verdade, a
avalição de muitas sutilezas, o que em parte explica por que o aprendizado de um
pedreiro demora três anos ou mais para ser concluído. É preciso pôr a quantidade
certa de argamassa sobre uma espátula, depois fazer o movimento certo com a
mão para espalhá-la de modo uniforme sobre o tijolo, depois pressioná-lo no
lugar certo com força suficiente para que ele fique ali, mas não com força demais
para que a argamassa não escape. É preciso fazer tudo isso manejando uma
argamassa cuja viscosidade varia com o passar do tempo até ela secar. Você, como
ser humano, talvez faça tudo isso olhando a cor e o movimento da argamassa,
fazendo pequenas correções durante o processo e sabendo, por experiência
própria, como ela se comporta. Agora tente explicar isso a um robô.
Outro grupo usa um braço robótico para criar juntas em painéis de madeira,
que depois são encaixadas por humanos. Se você não está familiarizado com o
conceito de juntas de madeira, elas consistem em formatos que se engatam e
permitem ligar duas peças de madeira. É como Lego com um toque rústico. É
também muito mais complicado, considerando que há muitas juntas possíveis e a
escolha de qual delas usar é baseada em muitos critérios, como o formato do
produto final e os tipos de madeira utilizados.
A marcenaria é uma habilidade difícil para seres humanos dominarem,
principalmente se você quiser juntar formatos complexos ou usar ângulos
estranhos. De certa forma, um computador faz isso com mais facilidade. Um
grupo do Laboratory for Timber Construction, da EPFL, criou um braço
robótico que pode segurar diversas ferramentas para realizar tanto tarefas
tradicionais quanto incomuns da marcenaria. Isso permite projetos que seriam
difíceis para humanos e deve garantir que fachadas complexas de madeira sejam
construídas rapidamente. Eles utilizaram compensado, mas a técnica tem
potencial para ser usada em qualquer tipo de obra de carpintaria que pode
ocorrer em uma casa. Infelizmente — para nossas fantasias com robôs —, o
sistema ainda exige que no fim pessoas montem as peças cortadas.
Abordagens semelhantes têm sido usadas para moldar materiais duros, como
granito e mármore. Mais uma vez, uma habilidade que seres humanos demoram
anos para adquirir pode ser feita por um braço de robô moderno equipado com a
capacidade de analisar o que está fazendo. Embora criar uma bela estrutura de
mármore seja difícil para seres humanos, triturar uma peça de mármore de acordo
com um modelo em 3D em seu banco de memória é (relativamente) fácil.
O que é bastante animador nesse caso não é só poder ter uma casa
customizada com uma arcada de madeira e um busto de mármore da gente. É
que todos esses processos usam, basicamente, a mesma estrutura: um braço
robótico que segura diversas ferramentas e “vê” o que está fazendo. Em princípio,
todas as técnicas descritas anteriormente (e mais algumas) podem ser feitas com
uma única máquina (com uma variedade de “mãos” possíveis) e um único
software. Seu operário robótico de construção pode trabalhar o carvalho como
um homem do campo, assentar tijolos como um operário de construção da cidade
grande e esculpir em mármore como Michelangelo. Ele também trabalha à noite,
nos fins de semana e feriados, e não questiona seu gosto.
Impressoras 3D gigantes
É provável que você tenha pelo menos um primo bobo (ou um irmão,
chamado Marty) que fica o tempo inteiro imprimindo pequenos objetos
surpreendentemente intrincados em 3D. Por que não imprimir uma casa inteira?
Bem, isso é difícil. Talvez não no nível “imprimir um órgão humano” (como
você verá no capítulo sobre bioimpressão), mas ainda assim difícil. Na verdade,
criar o esqueleto de uma casa já é um desafio. A versão mais conhecida da
impressão em 3D é um dispositivo que aquece o plástico até amolecer e depois o
empurra através de um bico, e nesse ponto ele naturalmente resfria e endurece.
Em seguida, você põe outra camada de plástico por cima da camada endurecida e
vai construindo a partir daí.
Mas talvez você não queira morar numa casa feita de filamentos de plástico.
Eles cheiram mal e provavelmente não são fortes o bastante para a Torre do
Mago de treze andares que você está planejando imprimir em 3D.
Que tal concreto? Ele sai mole e depois endurece. É perfeito!
Mais ou menos.
Assim como no caso do plástico da impressora 3D, não se pode usar qualquer
concreto. É preciso utilizar um concreto (ou uma substância semelhante)
suscetível ao processo da impressão em 3D. Isso significa que, ao ficar pronto, ele
precisa ser mole mas ainda rígido o bastante para que outra camada seja posta
sobre ele em seguida. E, depois que tudo secar, ele precisa ser estável e forte.
Encontrar um material que faça isso é um problema difícil.
Mas é um problema que está sendo resolvido. O dr. Behrokh Khoshnevis, da
Universidade do Sul da Califórnia, criou a Contour Crafting, uma tecnologia que
imprime em 3D casas feitas de um concreto especialmente projetado.
A Contour Crafting é basicamente uma impressora 3D gigantesca e um braço
robótico enorme preso a uma ponte rolante móvel (uma grande estrutura em
forma de U de cabeça para baixo). O braço tem a capacidade de agarrar coisas
que não passam por extrusão, como canos, e colocá-las no lugar. A máquina
constrói camadas e camadas de concreto, acrescentando o encanamento durante o
processo e deixando espaço para janelas e portas.
O dr. Khoshnevis estima que uma casa de 185 m2 pode ser construída por 60%
do custo atual de construção e finalizada em 24 horas. VINTE E QUATRO
HORAS. Pense nisso. Seus vizinhos passam o fim de semana fora. Enquanto
isso, você imprime uma casa no quintal deles e a aluga pelo Airbnb. É bem
melhor pregar essa peça do que aquela de pôr fogo em cocô de cachorro na porta
do vizinho.
Então por que não estamos todos morando em casas impressas em 3D? De
acordo com o dr. Khoshnevis, a lei periga ser um obstáculo maior do que a
tecnologia. “Atualmente, quando uma casa está sendo construída, o município
envia pessoas, inspetores, umas dez ou doze vezes, em diferentes estágios —
fundação, paredes, encanamento, o que for. Quando uma casa pode ser construída
em um dia, como fazer essa inspeção? Você vai parar a obra até que o cara do
município apareça para fiscalizar?”
Os métodos de inspeção modernos são planejados para casas feitas da maneira
padrão, passo a passo. Mas a impressão em 3D não é passo a passo — é camada a
camada. Para aproximar esses dois mundos, o dr. Khoshnevis está trabalhando na
criação de sistemas que tirariam as medidas relevantes durante o processo de
construção, permitindo às agências reguladoras obter seus dados sem retardar a
obra. Por enquanto, porém, essas casas não são para consumo público nos
Estados Unidos.
Na China, onde a inspeção e as exigências para permissão são mais brandas,
uma empresa chamada WinSun usou uma técnica extremamente parecida com a
da Contour Crafting para imprimir casas em 3D. O concreto da WinSun é
parcialmente feito de resíduos reciclados de indústria e construção, portanto há
boas chances de ser mais benéfico ao meio ambiente do que muitas opções de
habitação. A menos que você se importe em morar em resíduos industriais
reciclados.
Mas os resultados são promissores. A WinSun criou dez casas em 24 horas
usando esse método, por um custo de aproximadamente 5 mil dólares por casa,
de acordo com a empresa. Isso é ótimo, mas no momento as paredes são
construídas na fábrica e depois precisam ser enviadas ao local da obra para serem
montadas. Por conta disso, ou é preciso construir as casas perto da fábrica ou as
casas precisam viajar grandes distâncias antes de serem construídas. No entanto,
os resultados são (pelo menos visualmente) bem impressionantes.
As duas abordagens se mostram promissoras, mas ambas exigem máquinas
volumosas e caras. Outro grupo, liderado pelo dr. Steven Keating, tem uma
proposta diferente, que de certa maneira remonta à ideia de Edison de cem anos
atrás.
O dr. Keating fez seu trabalho de PhD no laboratório Mediated Matter, da
dra. Neri Oxman, no MIT. Para ele, a abordagem da ponte rolante gigante com
impressora 3D é interessante, mas inspira preocupações. Não é nem um pouco
fácil mover uma ponte rolante desse tipo. As partes são enormes e precisam ser
montadas no local antes de a obra começar. É mais ou menos como ter que
construir uma casa para poder construir uma casa.
Então ele teve uma ideia: e se você pudesse colocar um enorme braço de robô
ligado a uma impressora 3D na carroceria de uma caminhonete e usá-lo para
imprimir casas?
Um dos problemas das impressoras 3D é que não é possível ir tão rápido
quanto talvez se quisesse, a menos que use materiais de certa forma exóticos.
Então o dr. Keating teve outra ideia: e se você fizesse rapidamente um molde no
qual pudesse derramar o concreto de sempre? Assim você obtém a velocidade e a
customização da impressão em 3D, mas com a força e o custo baixo dos materiais
tradicionais.
Funciona da seguinte maneira: a impressora 3D expele uma espuma de
isolamento leve que seca depressa, de modo que é possível construir camadas
rapidamente sem o risco de desabamento. A impressora deixa uma lacuna na
espuma, dentro da qual você pode derramar o bom e velho concreto comum. É
um processo especialmente bom porque nem ao menos é preciso retirar a espuma
depois, uma vez que ela age como isolante. Você imprime o isolante, enche-o de
concreto, deixa a máquina aparar a borda externa e então simplesmente levanta
uma parede de gesso.
Não é bem um serviço completo como o dr. Khoshnevis propõe, mas tem a
virtude de usar apenas materiais de construção conhecidos. A espuma usada já é
um material de construção certificado.
A caminhonete para construção de casas foi feita como prova de conceito, mas
o dr. Keating e a dra. Oxman tiveram alguns objetivos maiores para a segunda
versão. O dr. Keating fez uma caminhonete autodirigível e capaz de imprimir em
3D enquanto se locomove, portanto ela poderia continuar movendo o bico para
fazer estruturas maiores. Ela tem inteligência para se adaptar às variações do
vento, o que é importante porque agora ela pode manejar uma motosserra. Pode
também construir com uma variedade de materiais, como vidro e água (caso você
esteja imprimindo no Ártico). E, como bônus, ela pode usar energia solar. Isso
não apenas é benéfico ao meio ambiente como pode tornar a caminhonete mais
autônoma.
Eles estão até trabalhando na capacidade de usar materiais dos próprios locais,
dando integridade estrutural ao solo ao combiná-lo com fibras. Pode parecer um
pouco louco, mas é porque você é moderno e mimado. Imagine chegar para um
homem das cavernas e dizer: “Uau, então você usou materiais que estavam à
mão?”
Na visão deles — que estão perto de realizar —, um arquiteto envia um projeto
de habitação para o computador e depois a caminhonete só precisa construí-lo.
Como o sistema deles é muito flexível, o veículo de construção pode encontrar
um local, examinar o ambiente, ajustar o projeto às condições locais, escavar o
lugar, imprimir a estrutura e voltar para casa. De maneira autônoma. Essa
abordagem combina a versatilidade dos braços robóticos com o poder de uma
impressora 3D de larga escala. E isso tudo em cima de uma caminhonete.
Como método geral para fazer coisas, a impressão em 3D traz muitos outros
benefícios secundários à construção; impressoras 3D podem fazer estruturas
complexas cuja criação seria difícil ou cara por meios tradicionais. Isso talvez se
traduza em casas mais baratas, mais bem construídas, com elementos de design
mais bonitos (Gárgulas! Gárgulas para todos!). Por exemplo, pelo menos em
algumas versões de impressão em 3D é possível variar a porosidade do concreto,
usando, assim, menos material e tendo estruturas pesadas ou leves dependendo da
necessidade. Também há margem para criar formatos de difícil execução por
meios tradicionais, como favos de mel.
A capacidade de variar com precisão os materiais dessa maneira é uma coisa
que a impressão em 3D faz hoje em dia e que é difícil ou impossível executar de
outra maneira. A longo prazo, se as moradias impressas em 3D derem certo,
podem surgir novos tipos de construção.
Enxame de robôs
Os cupins são uma grande inspiração para todos nós.
• Dra. Kirstin Petersen
Está bem, então a princípio você gostaria que um robô gigante construísse sua
casa. Isso porque a frase “um robô gigante construiu minha casa” contém o termo
“robô gigante”. Mas uma solução com elementos gigantes pode não ser o
caminho ideal a seguir. Até mesmo um robô (apenas) do tamanho de uma
caminhonete pode ser um trambolho num local de construção. Além disso,
quando se tem um único robô grande que faz tudo, se ele enguiçar você perde sua
capacidade de fazer qualquer coisa.
E se em vez de um pequeno número de robôs grandes tivermos um grande
número de robôs pequenos? No capítulo anterior, concluímos que não teria
problema se enxames de robôs autônomos substituíssem nossas coisas. Então por
que não fazer com que eles construam nossa casa? Os enxames de robôs, assim
como os de insetos (e de humanos, a propósito), podem construir estruturas bem
maiores do que se agissem sozinhos. Com o sistema de ponte rolante da Contour
Crafting, a casa não pode ser mais alta do que a ponte. Os robôs do enxame, por
sua vez, podem continuar se arrastando ou voando e construindo estruturas
muito maiores do que eles mesmos individualmente.
Alguns desses enxames de robôs designados para construção seguem um
exemplo da biologia. Na pesquisa do dr. Justin Werfel, de Harvard, e da dra.
Kirstin Petersen, antes de Harvard e agora na Cornell, os robôs são inspirados
nos cupins.
De acordo com a dra. Petersen, “eles constroem algumas das estruturas mais
altas55 do reino animal, se comparadas ao tamanho dos espécimes. São muitas
ordens de grandeza, milhares de vezes maior do que o indivíduo. Se pudéssemos
fazer isso, centenas de pessoas poderiam construir a Torre Eiffel sem nenhum
croqui coordenado. Isso seria incrível”.
O dr. Werfel e a dra. Petersen colaboraram nesse projeto, mas chegaram até ele
por caminhos muito distintos. O dr. Werfel escreve os programas que especificam
as regras que os robôs seguirão e diz coisas como: “Estamos tentando descobrir,
em essência, o programa que os cupins estão executando.” Ele observa que os
cupins são “supercomplicados”56 e que não sabemos exatamente que regras eles
usam, mas seu trabalho era escrever um programa simples inspirado no que os
cupins podem fazer. Já a dra. Petersen projeta e constrói os robôs inspirados em
cupins e diz coisas como “Os robôs são reconhecíveis porque têm Whegs —
espécies de pernas [legs] com rodas [wheels] que, de uma maneira muito simples,
fazem com que eles subam mais rápido”. Whegs, amigos. Whegs.57
Os robôs whegtrônicos (palavra nossa, não dela) apanham tijolos
especialmente fabricados, levam-nos para o local certo e os largam ali para a
construção de grandes estruturas. Isso já é bem legal, mas o que os torna tão
interessantes é que eles agem de maneira independente. O enxame não tem
nenhuma coordenação central e nenhum membro do grupo tem consciência do
que os outros membros estão fazendo. Cada robô agarra um tijolo e determina
onde colocá-lo com base em um pequeno conjunto de instruções. Em essência, é
o mesmo conceito que discutimos no capítulo anterior sobre o comportamento
dos enxames de robôs, só que com o objetivo específico de construir uma cabana
para você.
Pesquisadores do Instituto de Arquitetura Avançada da Catalunha também
estão criando um enxame de robôs para construção de estruturas. Eles
conceberam os “Miniconstrutores”. São basicamente pequenas impressoras 3D,
do tamanho de um cesto de roupa suja, que depositam em camadas um material
semelhante ao concreto. Imagine tartarugas robôs com bicos para concreto.
Está bem, eles não são totalmente independentes. Não é possível pegar dez
robozinhos e colocar uma betoneira de concreto dentro de cada um. Cada
Miniconstrutor está ligado a uma betoneira de concreto central que os abastece.
Se isso vai contribuir para a sua fantasia de robôs, imagine um robô tentáculo
gigantesco e aterrorizante.
O grande inconveniente de ter um robô tentáculo construindo sua casa58 é que
os tentáculos se enrolam. Imagine esse emaranhado atrás da sua mesa agora e
todos os seus componentes periféricos correndo para lá e para cá, vomitando
concreto. Na atual estrutura dos Miniconstrutores, pelo que sabemos, os
roboticistas precisam correr de um lado para outro a fim de ajudá-los a
desembaraçar uns dos outros.
Achamos esses robôs especialmente interessantes porque eles combinam o
conceito de enxames de robôs de construção com o de impressão em 3D. Além
disso, um tipo de Miniconstrutor pode usar um aspirador para sugar a si mesmo
rumo à lateral de uma estrutura, subir nela e continuar construindo, o que já é
fantástico.
Mas, convenhamos, ter um enxame de robôs de impressão em 3D
independentes construindo uma obra de arte barata que vai lhe servir de moradia
é algo que vai ficar chato depois de um tempo.
Que tal robôs quadricópteros voadores?
O dr. Fabio Gramazio e o dr. Matthias Kohler dirigem um laboratório de
ciência maluca em Zurique, onde robôs constroem belas estruturas e fachadas de
prédios. Um projeto especialmente legal que eles fizeram contou com a
colaboração do dr. Raffaello D’Andrea, cujo foco é produzir exércitos
assustadores de drones voadores. Os drones do projeto apanhavam tijolos
cobertos de um agente aderente e os soltavam, um a um, até formar uma
estrutura. Ok, tudo bem, você ainda não quer morar numa casa feita inteiramente
de tijolos grudentos, mas isso é uma prova de um conceito inicial.
Com uma horda de robôs voadores à disposição, podemos fazê-los depositar
precisamente cada tijolo, formando estruturas complexas e padrões interessantes.
No entanto, para fazer isso é preciso ter um sistema de câmeras que captura
movimentos e observa os drones durante a construção, ordenando o que fazer.
Isso não é problema num laboratório, mas pode ser meio difícil de levar para fora.
Uma virtude do paradigma do enxame é que os robôs individuais são
relativamente descartáveis. Portanto, se um trabalho é perigoso (por exemplo,
fazer uma construção logo após um terremoto, ou num ambiente perigoso, como
Nova Jersey), um grande número de robozinhos pode ser uma escolha melhor do
que humanos ou grandes máquinas de construção.
Talvez no futuro uma combinação de robôs voadores e terrestres apareça no
seu jardim como gafanhotos, deixando para você um belo coreto antes de seguir
em frente.
Preocupações
Para simplificar, vamos supor que os robôs não façam nada pior do que os
humanos. É apenas questão de conveniência — o dr. Steven Keating observa que
uma habitação feita por robôs pode ser mais segura, desde que se possam integrar
ao processo sensores que tirem medidas constantemente enquanto a construção é
levantada e assegurem que nenhum erro tenha sido cometido.
Por falar em humanos, vários deles poderão ficar sem trabalho. De acordo com
o Bureau of Labor Statistics, o ramo da construção civil já perdeu mais de 830
mil empregos entre 2004 e 2014, e grande parte dessa perda provavelmente está
ligada à demanda reduzida durante a recessão. Embora o Bureau of Labor
Statistics esteja projetando um ganho de cerca de 790 mil empregos de 2014 a
2024, não se sabe bem como os robôs em locais de trabalho impactarão esse
número. Prever o que acontecerá é, bem, complicado.59
Anteriormente falamos sobre SAM e sobre como ele poderia colaborar com
um ser humano para fazer o trabalho de assentamento de tijolos que três
humanos executariam. O impacto de SAM sobre o campo da construção poderia
se dar de muitas maneiras. Em geral, se empresas podem produzir o mesmo, só
que com menos trabalhadores, isso não quer dizer que o número total de
trabalhadores será menor. Por quê? Porque quando o preço de um bem cai, com
frequência compramos muito mais. As roupas são um excelente exemplo. A
Revolução Industrial tornou as peças mais baratas, mas respondemos a isso
comprando muito mais roupas.
Se SAM elimina dois trabalhadores toda vez que chega a um canteiro de
obras, ainda assim pode haver mais trabalhadores no geral. Isso aconteceria se
todos nós nos víssemos de repente capazes de pagar por casas maiores ou por
mais casas, ou se empresas começarem a comprar mais itens complementares,
como fachadas de tijolos, uma vez que SAM derrubou os preços de construção.
Isso teria um efeito cascata sobre outras indústrias. Casas maiores precisam de
mais energia e têm mais eletrodomésticos. Como pessoas modernas que somos,
detestamos cômodos que não estejam lotados de coisas que talvez nem usemos.
Mas, mesmo que haja esse cenário meio cor-de-rosa, isso não garante que
estaremos todos em uma situação melhor. Mais consumo significa que todos nós
ainda temos empregos, mas a distribuição de renda pode mudar. O assistente de
SAM pode ter poucas habilidades e receber pouco, enquanto um engenheiro de
robótica recém-contratado em São Francisco vai receber um salário enorme.
O dr. Noah Smith, colunista de economia do Bloomberg View, nos diz: “O
verdadeiro perigo da ‘ascensão dos robôs’ não é que eles tomarão todos os nossos
empregos, mas que causarão uma desigualdade que vai aumentar de maneira
constante.”
Se a construção robótica é boa ou ruim para o cidadão médio, isso dependerá
das leis do país desse indivíduo e dos padrões de consumo de seus companheiros
cidadãos. É difícil prever as duas coisas.
De um jeito ou de outro, pode ser que os efeitos dos robôs sobre os empregos
em construção civil passem despercebidos por muito tempo. De acordo com o dr.
Bryan Caplan, “os negócios atuais demoram a adotar novas tecnologias. Em vez
disso, com frequência precisamos esperar o surgimento e o crescimento de novas
empresas que levam ideias pioneiras a sério. No fim, a inovação sempre vence,
mas o processo de absorção pode durar décadas”.
Se os trabalhos do setor de construção realmente sumirem, devemos considerar
a possibilidade de que as vagas de emprego que vierem depois (como construir os
robôs) sejam melhores. O trabalho na construção civil não é dos mais seguros. Na
verdade, é um dos trabalhos menos seguros dos Estados Unidos. De acordo com
o Bureau of Labor Statistics, só no país norte-americano novecentas pessoas
desse setor morreram de fatalidades relacionadas ao trabalho em 2014.
O desperdício é outro risco em potencial. Em grande medida, nós todos não
moramos em casas de mais de quatrocentos metros quadrados porque elas são
realmente caras. Se o custo fosse reduzido em uma ordem de grandeza, é possível
que as pessoas começassem a morar em casas muito maiores e que exigissem
muito mais energia.
Conforme mencionado anteriormente, um dos autores deste livro gostaria de
morar numa Torre do Mago de treze andares. Atualmente, os dois maiores
obstáculos são o custo e o fato de a esposa dele não ter a menor graça. Se um dos
dois pudesse ser eliminado, o processo avançaria, apesar do extremo desperdício
de utilizar um aquecedor em uma estrutura fina e alta durante todo o inverno.
Sendo assim, em princípio a construção robótica poderia ser uma maneira mais
ecológica de fazer as coisas. Com partes pré-fabricadas, poderíamos usar um
sólido pedaço de concreto em que uma peça menos densa, ou mesmo oca,
serviria. Alguns métodos de impressão em 3D permitem selecionar exatamente a
quantidade de material a ser usada para determinada necessidade, o que poderia
garantir um uso muito menor e de um modo que não comprometa qualquer
integridade estrutural. Usar menos material seria bom porque a produção de
concreto é uma fonte significativa de emissão de carbono.
De fato, algumas pessoas estão trabalhando em maneiras bioinspiradas de usar
menos concreto, mas sem perder a força. De acordo com o dr. Keating: “Se
examinar um osso ou uma palmeira, você verá um gradiente de densidade ali
dentro. O osso é muito mais aberto e menos denso por dentro e muito mais
denso por fora. Se você observar uma palmeira, é a mesma coisa. Começamos a
perguntar: será que conseguiríamos fazer isso com concreto? Por que não
podemos ter um gradiente de densidade radial como o de ossos e árvores?
Fizemos alguns testes de material iniciais e verificamos que daria para
economizar uma quantidade razoável de concreto, algo entre 10% e 15%, e
manter as mesmas cargas fletoras. Desde que mantivéssemos a mesma capacidade
de lidar com as forças de cisalhamento, poderíamos economizar muito material.”
É claro que os humanos não são totalmente racionais em relação a essas coisas.
Receber a informação de que algo é “benéfico ao meio ambiente” talvez nos leve
a consumir muito mais essa coisa, ao passo que apresentações mais honestas,
como “prejudicará menos a natureza do que a marca mais popular”, nos
lembrariam de que seria melhor manter o consumo baixo e comprar produtos
benéficos ao meio ambiente.
Mas digamos que você tivesse uma impressora 3D a bordo no espaço. Pelo
menos a princípio você poderia fazer uma variedade maior de alimentos e eles
ocupariam o menor espaço e teriam o menor peso possíveis. Conforme já
mencionamos nos capítulos sobre o espaço, o envio de coisas para a órbita custa
em torno de 22 mil dólares por quilo. Portanto, se você enviar uma maçã, cada
semente dela custa 20 dólares. Seria bom não desperdiçar. Além disso, se toda a
comida fosse impressa em 3D a partir de insumos simples, seria possível ter um
perfeito conhecimento sobre quais nutrientes exatamente estão indo para cada
astronauta, o que poderia permitir uma ciência divertida.
Em um plano mais terreno, soubemos de um projeto de Jeroen Domburg de
desenhar estruturas em 3D dentro de doses de gelatina com vodca, chamadas de
Jell-O shots. Um amigo dele estava preparando Jell-O shots para uma festa de
aniversário muito elegante e o sr. Domburg notou que havia bolhas na gelatina.
Ele percebeu que podia injetar coisas numa dose e o material injetado ficaria no
lugar. Por exemplo, você poderia desenhar todos os lados de um cubo movendo
uma agulha de seringa e injetando seu conteúdo.
O amigo achou que fazer isso à mão exigiria muito tempo. Como a preguiça é
a mãe da invenção, o sr. Domburg montou uma máquina que usa uma seringa de
tinta comestível para desenhar estruturas em 3D dentro de doses de gelatina com
vodca. Até agora, ele quase sempre fez imagens bonitinhas, como cubos e espirais.
Sugerimos respeitosamente que haveria algum benefício social se esse dispositivo
fosse usado para desenhar palavras como “PARE” ou “PARE AGORA”.
Realidade aumentada
Uma alternativa para consertar a realidade
Seu chefe vai até o seu cubículo para gritar com você por alguma coisa. Você sabe
que não pode impedi-lo, então se acomoda para ouvi-lo sem prestar muita
atenção durante dez minutos. Então se lembra de que tem uma telinha de
computador embutida em suas lentes de contato.
Você pisca. Seu chefe fica confuso por um instante, mas continua a reclamar.
Diante dos seus olhos, o mundo se transforma. Palmeiras brotam ao fundo. A luz
diminui suavemente. Um delicado pássaro com um belo canto pousa no cabelo
ridículo que cobre a careca do seu chefe também ridículo.
Um gerador de moléculas no seu nariz libera um odor de brisa do oceano, e um
par de minúsculas caixas de som nos seus ouvidos reproduz o farfalhar de ondas
batendo. A caixinha do ouvido direito emite o som ligeiramente antes da caixa da
esquerda, e você olha sobre seu ombro direito para ver o Pacífico azul.
O processador em cima da mesa detecta a voz do seu chefe e converte o que
ele está dizendo, seja o que for, numa seleção das últimas notícias do esporte, que
você escuta relaxadamente enquanto a brisa do mar roça as palmeiras. Justo
quando o seu chefe, na vida real, pergunta se você pretende fazer seu trabalho
pelo menos uma vez na vida, um apresentador diz que o seu time do coração
perdeu de novo. “NÃO!”, você grita. “NÃO? POR QUÊ?!”
Felizmente, quando você chegar à sua mansão (aparentemente) gigantesca de
18 m2, sua esposa virtual não o julga por você ter sido demitido do 14o emprego
no mesmo ano. Você põe uma fina cobertura de polímeros em cima da língua,
apanha uma proteína de soja na despensa e decide que hoje à noite ela terá gosto
de kobe beef.
É assim que a realidade poderia ser com um pequeno aumento.
A grande ideia da realidade aumentada (RA) é sobrepor elementos virtuais no
mundo real. É mais ou menos como acrescentar uma pequena mágica ao
universo. É diferente da realidade virtual (RV), porque ela bloqueia toda a
realidade real. Uma forma de pensar nesse assunto é visualizar a si mesmo como
um cérebro conectado a vários sensores para coisas como paladar, tato, visão,
movimento, equilíbrio etc. É assim que os pesquisadores de RA nos enxergam,
então estamos livres para fazer isso também.
Todos esses sensores estão absorvendo informações do ambiente à sua volta de
maneira constante. Num sistema de RV completo, esses sensores estão 100%
ocupados por dados falsos criados por computador. Portanto, você está em pé
numa sala minúscula, mas seus sensores lhe dizem que você foi transportado para
o período Cretáceo e um tiranossauro está indo em sua direção. Num sistema de
RA, esses sensores estão apenas parcialmente ocupados por dados falsos.
Portanto, você está no meio de um shopping de verdade e o T. Rex está se
preparando para ir até você assim que terminar de comer o pretzel dele.
No atual momento, quase todos nós ajustamos os sensores visuais (às vezes
chamados de “olhos”) por motivos que abordaremos mais adiante. A adição de
objetos virtuais e informações ao seu sentido visual tem todo tipo de
aplicabilidade. Em qualquer situação em que você ainda queira interagir com a
realidade, só que recebendo mais informações (como um combate, uma cirurgia
ou uma construção), a RA pode ser muito útil. Se aperfeiçoada, pode significar
melhores resultados em campos como esses, demandando menos treinamento.
Em outras palavras, serviços mais baratos e melhores. Além disso, você vai poder
mentir para si mesmo sobre sua vida de maneira mais eficaz do que nunca.
Com o lançamento do Pokémon GO, a RA de repente se tornou lugar-
comum. Não vamos nos aprofundar muito nisso, já que provavelmente não faz
muito tempo desde que você largou livros como este numa prateleira para jogar.
Mas vemos o Pokémon GO como um passo inicial numa tecnologia que tem
outras aplicações além de jogos.
Seus autores estão num grupo que chamamos de A Geração Mais Triste —
jovens o bastante para saber o que é Pokémon, mas velhos o bastante para ficar
confusos e perplexos com a popularidade do jogo. Sendo assim, a RA promete
fazer fantasias de todos os tipos virarem realidade. E, não, nem todas elas têm
cunho sexual. Algumas são sobre vingança ou enriquecimento.
Você poderia alcançar essa RA de várias maneiras e, considerando o número de
sentidos que temos, um sistema de RA perfeito será um tanto complexo.
Atualmente, o método mais comum é usar alguns meios (normalmente um tablet
ou um celular, neste exato momento) para projetar nos seus olhos uma imagem
que está “em registro” com a realidade.
Registro quer dizer simplesmente que o virtual está cooperando com o real.
Por exemplo, se você tiver um coelho em RA na sala, não vai querer que ele fique
correndo para lá e para cá. Ou, se o coelho ficar de um lado para outro na
bagunça da sua casa, você vai preferir que ele pareça ter se machucado.
Isso é muito mais complexo do que pode parecer de início. Imagine que você
adquiriu um headset que projeta RA nos seus olhos. Você olha para uma mesa e
ele projeta uma carta de seu marido imaginário, Brad Pitt, dizendo “Eu amo
você”. Claro, você programou sua RA para lhe deixar essa carta hoje, mas, assim
como um marido que só se lembra de seu aniversário depois de ser avisado na
noite anterior, você ainda assim aprecia o fato de Brad Pitt RA ter lhe deixado
um bilhete.
Quando você vira a cabeça para a esquerda, a carta de Brad precisa ir para a
direita. Ela também tem que mudar o aparente ângulo voltado para você para
corresponder à mesa real. Se estiver ligeiramente fora, a carta vai ficar meio
estranha, a fidelidade será perdida e você se lembrará de que o que está de fato
em cima da mesa é uma ordem de restrição.
Tornar tudo isso realidade é um desafio extremamente difícil, que exige um
ótimo hardware, um ótimo software e uma ótima compreensão do
funcionamento da visão e da cognição humanas.
O hardware está avançando bem. A máquina mais antiga que poderia ser
considerada de realidade aumentada foi criada por Morton Heilig em 1962 e
chamada de Sensorama. Essa máquina era puramente mecânica, não havia um
computador programável envolvido. Enquanto um dispositivo moderno teria um
programa que saberia liberar o cheiro de árvores quando o usuário entrasse em
seu pomar virtual, esse dispositivo tinha cheiros que eram desencadeados de
maneira simples alguns minutos depois que um vídeo começava, correspondendo
ao momento em que o vídeo estava mostrando um pomar.
O Sensorama exibia vídeos através de pequenos portais oculares, enquanto
gerava vento, sons, vibrações e liberava odores químicos, dando ao indivíduo a
sensação de pilotar uma motocicleta, por exemplo. Qualquer um perguntaria por
que você simplesmente não compraria a maldita moto, mas Heilig estava olhando
para o futuro. Na patente que registrou, ele discutia as aplicações para as Forças
Armadas, o entretenimento, a indústria e a educação, que são exatamente os
tópicos discutidos com mais frequência como aplicações para as pesquisas de RA
hoje em dia.
Alguns de vocês talvez se lembrem de que os famosos headsets de realidade
virtual pareciam finalmente estar chegando nos anos 1990, quando computadores
e monitores ficaram mais baratos. Se isso não aconteceu na época, por que
aconteceria agora ou no futuro? Bem, aqueles sistemas dos anos 1990 tinham
problemas. Eram absurdamente caros, as simulações eram bem ruins e, bem...
eles tinham uma tendência a fazer o usuário vomitar. Vomitar é, de fato, um
problema geral dos sistemas de RA e RV. Uma teoria atual sobre o enjoo do
movimento sugere que quando você não sente que está se movendo, mas vê que
está se movendo, seu cérebro conclui que você foi envenenado. Daí a vontade de
correr para o banheiro mais próximo.
O problema do enjoo do movimento fica ainda mais agudo quando a máquina
que cria a realidade falsa é um computador pessoal de 1993. Se você está usando
um headset e vira a cabeça, mas a realidade leva mais de um segundo inteiro para
virar também, seus olhos podem não acreditar que aquilo é real, mas seu
estômago com certeza acredita.
Como a maioria das tendências da década de 1990, a RV foi sabiamente
engavetada. Isso representou um revés para as pessoas interessadas em RA, que
esperavam que os populares headsets de realidade virtual barateassem as
tecnologias relevantes.
Mas, assim como Kelly fez com a maior parte da chamada “música dos anos
1990”, alguns cientistas perseveraram na RA, na esperança de um renascimento.
E, diferentemente de Kelly, eles encontram bons motivos para ter esperança.
Hoje, praticamente todo mundo usa um computador em forma de telefone. Na
verdade, ele é um pouco melhor do que isso. Um smartphone típico não tem
apenas um computador — ele pode tirar fotos, fazer vídeos, detectar a própria
orientação e a gravidade, determinar a posição dele na face da Terra e outras
coisas ótimas. Essas capacidades de detecção são especialmente úteis quando se
tenta sobrepor uma realidade falsa à realidade verdadeira. Além disso, o
smartphone não está isolado como um computador dos anos 1990. Ele pode falar
com outros computadores que têm muito mais memória e processamento.
De certa forma por coincidência, hoje andamos com muitos equipamentos que
um pesquisador de RA gostaria que usássemos. O truque, então, passa a ser obter
o software certo.
Um método primitivo de acrescentar objetos virtuais à vida real era o
“marcador fiducial”. Basicamente, o marcador fiducial é um objeto colocado na
realidade que é fácil para um computador reconhecer de modo visual. Basta
pensar algo como o QR code, hoje em dia muito comum. Suponha que você tem
uma mesa com um código desses no meio. Para simplificar, imaginemos que você
esteja usando um headset de realidade aumentada que projete imagens nos seus
olhos. As câmeras dele veem o código e determinam duas coisas: que o padrão é
um código para “ponha um vaso aqui” e que você está olhando para um QR code
de um ângulo específico.
Quando você se movimenta, o headset detecta a mudança de orientação do
QR code e ajusta o vaso de acordo. Se isso funciona direito, você percebe um vaso
acomodado em cima da mesa, mesmo que você caminhe, pule ou se abaixe. Em
outras palavras, o marcador fiducial serve como uma simples ponte entre a
realidade aumentada e a realidade verdadeira.
As pesquisas de RA atuais vão além dos tradicionais marcadores fiduciais. Na
verdade, talvez como um sinal do rápido progresso, fomos informados de que o
termo “marcador fiducial” deixou de ser apropriado, apesar de ser usado em textos
de apenas alguns anos atrás que encontramos.
Hoje em dia, os programas já têm inteligência para descobrir sozinhos onde
colocar objetos, embora marcadores de vários tipos ainda sejam úteis, porque
fornecem rapidamente muitas informações ao computador.
No entanto, os marcadores têm problemas. Por exemplo, eles podem ser
bloqueados visualmente. Isso não é problema para um vaso de verdade porque...
bem... o vaso ainda está ali, mesmo que você não esteja olhando. Mas imagine
que você se abaixa para que seus olhos fiquem na altura do tampo da mesa e olha
para cima. Do seu ângulo, você deveria conseguir ver o vaso, mas o headset não
consegue ver o marcador. O headset conclui que o vaso não existe mais. Isso é
ruim porque, de modo geral, a maioria de nós gostaria que a realidade
continuasse existindo quando ninguém estivesse olhando.
Dá para resolver esse problema com uma câmera extra ou marcadores
adicionais que orientam o headset, porém, quanto mais coisas forem necessárias,
mais complicada se torna a experiência de RA. Fazer com que a interação entre
os mundos real e virtual seja sutil é crucial para que a experiência funcione.
Uma ótima ideia em RA é a de que você poderia caminhar numa floresta e ter
sua experiência ampliada por conhecimentos sobre a ecologia e a história locais.
Por exemplo, se você passar por uma sequoia-gigante, talvez o computador lhe
diga o que é uma sequoia-gigante. Ao se aproximar, você vê que há uma
samambaia crescendo numa árvore e que ela está cheia de vespas. Seu headset
exibe informações sobre essas coisas também. Ele também lhe diz que, aliás, uma
batalha da Guerra Civil aconteceu nessa floresta em 1864 e lhe oferece a opção
de ver uma reencenação virtual sobreposta na área.
Tudo isso é formidável, mas arruinaria o ânimo (e seria difícil de organizar) se
fosse preciso colocar um QR code em cada objeto pelo qual o usuário poderia se
interessar.
Portanto, uma grande área das pesquisas atuais é entender como usar
marcadores de ambiente comuns para determinar todas as coisas sobre as quais
um QR code poderia lhe dizer. Assim, em vez de pôr marcadores por toda a
Torre Eiffel, você teria um dispositivo que reconhece a Torre Eiffel inteira.
“Calma aí”, você diz. “Vou usar meu GPS. Ele sabe onde está a Torre Eiffel.”
Não. Não vai funcionar. O GPS só diz onde você está sobre a superfície da Terra,
e a precisão dele chega, aproximadamente, a um metro. Uma boa RA exige mais
precisão do que isso. E a precisão do GPS é ainda pior quando se mede elevação.
Então você tenta ativar um guia turístico virtual em Edimburgo, mas ele só
aparece três metros acima. Você olha para cima e de repente deseja que ele não
estivesse usando um traje escocês tradicional.
Mas o GPS é um bom ponto de partida. Ele pode ser capaz de dizer a seu
computador que você está em certo parque ou perto de determinado lago. E
sabemos que o computador deve ser capaz de lhe dizer exatamente onde você está
a partir de pistas visuais. Afinal, isso é basicamente o que os humanos fazem para
se orientar. Quem está perdido num bosque tenta encontrar uma árvore com
aparência distinta ou ver em que direção está um grande ponto de referência
distante. A princípio, um computador pode fazer a mesma coisa. Mas, embora
um humano possa determinar com razoável rapidez o que é “distinto”, é difícil
explicar o conceito de distinção a uma máquina.
Uma abordagem é a seguinte: imagine que você esteja caminhando perto do
edifício Empire State. Seu computador sabe mais ou menos onde você está, mas,
para projetar um gorila gigante no edifício, precisa saber suas exatas coordenadas
espaciais e para onde você está olhando. Então, para mapear seu campo de visão,
ele tira uma foto. Em seguida, divide essa foto em seções. Ao procurar variações
de intensidade, ele decide quais partes são interessantes e quais não são.
Por exemplo, se o computador pega um quadrado que é todo céu,
provavelmente não há variação nenhuma. Isso diz ao computador que esse ponto
não é “interessante”. Por outro lado, se ele pegar uma parte com uma janela,
haverá luzes, áreas de sombra e formas geométricas. Isso talvez seja interessante.
Então o computador compara essa imagem com uma base de dados de outras
imagens, que (graças ao GPS) são tidas como pontos de referência próximos.
Fazendo isso repetidas vezes conforme você se movimenta, o computador acaba
se assegurando de sua posição exata, bem como da orientação da câmera dele.
Pode parecer um método estranhamente artificial, porém é mais ou menos o que
você também faz para se localizar. Quando estamos perdidos, não usamos o céu
diurno como referência para nossa posição porque um grande espaço azul não
fornece muita informação específica sobre onde estamos. Poderíamos usar o céu
noturno como referência, porque as estrelas e a posição delas no céu contêm
informações sobre nossa localização. Não utilizamos o chão como referência
quando tentamos nos orientar, mas levamos em conta a nossa distância em
relação a um prédio distinto. Você está tão acostumado aos lugares aonde vai com
frequência que faz tudo isso de forma automática, mas tente lembrar como seu
cérebro resolveu as coisas da última vez que você voltou para sua cidade natal
depois de passar muito tempo fora.
Parte do problema dessa abordagem é que ela exige muita computação e uma
quantidade enorme de imagens de referência para comparar com suas fotos
“interessantes”. Então cientistas estão trabalhando em outras soluções para
simplificar o processo.
A dra. Caitlin Fisher, do Augmented Reality Lab, da Universidade de York,
sugeriu que pode haver um caminho mais fácil a seguir, pelo menos para algumas
aplicações. “Os artistas”, diz ela, “usam uma realidade misturada que evita o
problema do registro. Você pode ter imagens que podem apenas flutuar ou estar
no céu, ou pequenas imagens no chão. O problema do registro é urgente, mas não
é preciso superá-lo em todas as boas experiências de realidade aumentada (...)
Acho que um dos motivos pelos quais percebemos que muitos projetos iniciais
envolvem fantasmas ou espíritos é que não é preciso tê-los perfeitamente
registrados no mundo real para, ainda assim, garantir uma experiência muito boa.
A coisa pode estar flutuando [e] as pessoas não necessariamente vão dizer ‘ah,
que malfeito”, elas vão falar ‘uau, é um fantasma’”. Não cremos que estamos
virtualmente cercados por fantasmas, mas pode ser divertido pôr à prova crianças
inocentes.
Esse é o tipo de coisa boa para projetos mais artísticos, mas, por exemplo, se
estiver usando um aplicativo de RA para fazer uma cirurgia, não pode dispor de
marcadores de incisão virtuais que se distanciem muito do ponto certo.
Uma forma de obter uma detecção de localização melhor sem fazer seu
computador chorar é ter sensores melhores. Uma tecnologia chamada LiDAR
(light + radar = LiDAR) rebate luzes de laser em objetos e depois analisa o
reflexo. A LiDAR pode gerar modelos em 3D precisos do ambiente, exatamente
o que esperaríamos ter para fazer uma experiência de realidade aumentada. Em
vez de comparar um universo de imagens em 2D cheias de falhas, obtemos o
contorno dos prédios locais e o comparamos com um único arquivo em 3D.
Parece ótimo! O problema é que, historicamente, isso é supercaro. Do tipo que é
usado apenas em iniciativas enormes e dispendiosas do governo.
Mas com o passar do tempo o custo diminuiu. Na verdade, um dos motivos
pelos quais os carros autônomos estão começando a chegar ao mercado é que
você pode adquirir um sistema LiDAR decente para sua van por apenas alguns
milhares de dólares. O inconveniente é que os mais leves ainda pesam entre cinco
e dez quilos.
Ainda assim, a tecnologia para RA visual está avançando bem. “Mas”, você
intervém, “e os meus outros sentidos? QUERO OUVIR UM CANTO DE
PASSARINHO QUANDO EU VIRAR ESTA PÁGINA!”
Bem, antes de tudo, pare de gritar. Que infantilidade. Em segundo lugar, bem,
a maioria das pesquisas atuais é sobre tecnologia visual. Os humanos estão
realmente dando uma olhada nisso.
No entanto, alguns cientistas e engenheiros estão trabalhando em tecnologias
de áudio, cheiro e tato.
O áudio é relativamente simples se comparado ao vídeo, mas apresenta suas
próprias dificuldades. Imagine que você queira simular o som de um carro
passando. Há três grandes questões: a primeira é que o som precisa atingir um
ouvido antes do outro, dando uma sensação de localização do carro. A segunda é
que o som precisa mudar de tom e intensidade, passando a impressão de
movimento. A terceira, e é aí que tudo realmente se complica, é que o som do
carro deve (literalmente) refletir o ambiente onde ele está. Portanto, se você
estiver num cânion, os sons do carro devem fazer eco. Se estiver num campo, não
devem. Isso nos leva de volta a muitas questões discutidas para vídeo: para uma
RA melhor, é necessário ter mais informação e computação.
O cheiro é bem complicado. Com luz e som, há componentes elementares
simples. Para produzir qualquer cor, você só precisa de comprimentos variados de
ondas de luz. Para produzir qualquer som, só precisa da forma de onda e do
volume certos. Os cheiros são bem mais diversos e complexos. Mesmo que você
tivesse um enorme conjunto de cheiros pré-carregados, nem sempre é possível
misturá-los para produzir algo novo. Por exemplo, “cheiro de maçã” e “cheiro de
casca de torta” juntos não são exatamente iguais a cheiro de “torta de maçã”.
Em princípio, você poderia ter uma máquina que customizasse moléculas
manufaturadas rapidamente e borrifasse-as no ar. Existem, de fato, máquinas que
podem gerar moléculas feitas por encomenda. Mas hoje em dia esse processo é
caríssimo, usado para propósitos industriais. E, embora a RA visual e talvez a
auditiva possam ter muitas aplicações claras, não é tão clara assim a utilidade que
os cheiros virtuais teriam.
O sentido do tato é um pouco mais ativo como área de pesquisa, mas o
progresso nessa área é ainda bem limitado. Grande parte das pesquisas de hoje
em dia é sobre uma “caneta tátil”, que você possa usar para “tocar” objetos
virtuais. A ideia básica é usar um headset para ver uma coisa virtual e ter uma
caneta conectada a um computador que sabe onde esse negócio virtual está. Se
você tenta furar o objeto virtual com a caneta, a máquina não deixa. Se você
arrastar a caneta pela superfície, ela oscila, então os dedos que a seguram têm a
sensação de que arrastaram uma caneta por uma superfície texturizada. Está bem,
não é tão legal quanto ter um feedback de tato ao dar um soco virtual na cara do
Hitler, mas esfaquear com uma caneta chega em segundo lugar por pouco. Além
disso, tem algumas aplicações reais, como treinar para uma cirurgia ou para fazer
esculturas digitais.
Em que pé estamos agora?
Muitas fontes que consultamos sobre esse tópico foram escritas entre 2010 e
2014. As mais recentes tendem a ficar bem animadas com o potencial do Google
Glass de mudar tudo à nossa volta. Ops!
Em geral, há um consenso de que o Google Glass fracassou porque quando as
pessoas veem você usando um, elas querem dar um soco na sua cara. Não, é
verdade. Por exemplo, em 2013, o CEO do Meetup.com disse exatamente o
seguinte a repórteres do Business Insider: “Google Glass? Pode ter certeza de que
vou dar um soco na cara de quem estiver usando Google Glasses.”
Uma característica preferível no futuro da RA é, portanto, um visor que não
leve a pessoa a tomar um soco na cara dado por milionários da tecnologia. O
truque aí pode ser a miniaturização.
A Innovega é uma empresa que está trabalhando em lentes de contato de RA.
No entanto, as lentes de contato não fazem todo o trabalho sozinhas. Na verdade,
é preciso usar um par de óculos especiais sobre as lentes de contato. O lado
positivo é que, diferentemente do Google Glass, parece realmente um par de
óculos.
Em geral, os sensores e os sistemas de computação estão ficando mais baratos,
mais rápidos e menores. Isso abre um terreno fértil para projetos experimentais,
que são muitos.
O dr. Mark Billinghurst, atualmente na Universidade de Canterbury, propôs
um conceito chamado “livro mágico”. A ideia é que as imagens de um livro
funcionem como uma máquina de RA para aprimorar a experiência. Um grupo
da Universidade de Nebraska criou um “livro mágico” chamado Ethnobotany
Study Book [Livro de Estudos de Etnobotânica], com pequenos desenhos em
preto e branco de plantas locais. Quem olhasse um desenho através da máquina
de RA veria uma versão virtual da planta saindo na página.63
O dr. Jonathan Ventura, da Universidade do Colorado, criou um programa de
realidade aumentada quando era estudante de PhD na Universidade da
Califórnia em Santa Barbara (UCSB). Era um programa feito para funcionar ao
ar livre, que permitia acrescentar elementos como espaçonaves e árvores à
percepção do campus da universidade. De acordo com o dr. Ventura, “montei um
sistema em que eu mapeava, por exemplo, o campus da UCSB com muitas
imagens e basicamente criava um modelo em 3D do campus. Então eu podia
pegar um iPad, erguê-lo, tirar uma foto dos arredores, combiná-la com o modelo
e então descobrir exatamente onde o aparelho estava”.
Para nós, o trecho “elementos como espaçonaves ou árvores” significa
“espaçonaves”. O dr. Ventura é um pouco mais pragmático. Ele observa que
programas como esse poderiam ser ferramentas muito úteis para paisagistas, que
conseguiriam projetar virtualmente um ambiente e mostrá-lo ao cliente antes de
iniciar a construção.
O dr. Gerhard Schall, da Graz University of Technology, criou um sistema de
RA em que trabalhadores de manutenção podem obter uma “visão em raio X” da
infraestrutura da cidade. Por exemplo, eles podem olhar para a rua e ver os
sistemas de eletricidade e encanamento subterrâneos. Sistemas como esse têm
potencial para serem aplicados em muitas áreas, não apenas para a manutenção
como também para o socorro em desastres.
Tendo uma projeção virtual de como se espera que as coisas sejam, um
socorrista seria capaz de avaliar os danos com mais rapidez. Por exemplo, um
indicador para decidir se um prédio está muito danificado é o “deslocamento
entre andares”. Ou seja, numa escala que vai do edifício Empire State à Torre de
Pisa, quanto estamos ferrados? Determinar a inclinação de um prédio é meio
difícil, sobretudo depois de um terremoto, quando os equipamentos são escassos
e o tempo para avaliar cada edifício é limitado. O sistema de RA proposto pelo
dr. Suyang Dong projetaria sobre uma construção danificada a aparência que ela
deveria ter, permitindo aos inspetores fazer uma avaliação rápida e precisa.
Uma ideia na qual vários grupos têm trabalhado é uma “interface de espelho
virtual”. Sabe aquele medo que você tinha quando era criança de olhar no espelho
e ver outra pessoa dentro dele? E se pudéssemos ter isso de verdade? O conceito
existe desde os anos 1990 como uma versão relativamente simples de RA, já que
só é preciso projetar através do espelho e saber como os elementos da sua casa
estão distribuídos. A ideia, além do fato de ser ótima, é que você poderia ter um
ajudante ou bicho de estimação virtual que “mora” no espelho. Então o espelho
age como uma espécie de janela para uma realidade aumentada. Pessoalmente,
achamos a ideia um tanto assustadora. Não existe um mundo em que você passa
pelo espelho a caminho do banheiro à noite, vê pelo reflexo um cara sentado no
sofá e pensa: Tudo bem.
Convenhamos, é bem provável que os ajudantes serão uns amores. Pelo menos
até eles nos traírem na Revolta dos Robôs de 2027.
O Fisher Lab (lembra-se da senhora dos fantasmas?) explora o uso da RA para
contar histórias. Por exemplo, como a RA pode ser usada para fazer filmes nos
quais conseguimos entrar? Ou como utilizar a RA para dar vida a lugares e
personagens históricos? Imagine passar por lugares ao longo da Underground
Railroad64 [Ferrovia Subterrânea] vendo atores virtuais contando histórias sobre
seu cativeiro como escravos e sua fuga. Imagine visitar o local da Batalha da
Floresta de Belleau e ver a ofensiva de 1918 diante de seus olhos. Ou imagine
visitar o Coliseu e ver o rosto contorcido do gladiador enquanto Nero não
demonstra nenhuma piedade.
A dra. Fisher também dá as melhores festas de aniversário infantis da história,
o que inclui chapéus seletores ao estilo Harry Porter em RA, fadas voando sobre
pedras no jardim e pó de fada sendo colocado nas mãos das crianças. Ela observa,
porém, que a imaginação infantil provavelmente não precisa de aumento: “Acho
que crianças pequenas não precisam de realidade aumentada tanto quanto nós
precisamos para voltar a pensar como crianças pequenas. Acho que há práticas
incríveis e alegres que poderíamos adotar. Nesse pequeno nível, acho que isso por
si só poderia tornar nossas vidas maravilhosas.”
Preocupações
É possível que a esta altura lhe tenha ocorrido que ter todos os humanos
equipados com uma gama de sensores constantemente ativos se comunicando
com servidores centralizados pode, talvez, suscitar alguns problemas de
privacidade.
Lemos sobre um software chamado Recognizr, que detecta os traços de
pessoas, transforma o rosto delas em modelos em 3D e depois as reconhece. Por
ora, o Recognizr é opt-in. A ideia em muitos softwares desse tipo é trazer a mídia
social para a vida real. Há um belo potencial aqui — imagine que você vai para o
trabalho e pequenos visores acima da cabeça de seus colegas lhe dão informações
do tipo: se aquele é o dia do aniversário de algum deles ou se eles acabaram de
voltar de uma viagem. O aspecto negativo é que todas as preocupações com
privacidade na mídia social acabam entrando na vida real também. Se muita
gente tiver um software de rastreamento de rosto, por mais dispersados que os
dados estejam, uma pessoa mal-intencionada poderia reconstituir todos os
lugares aonde você foi durante o dia e talvez até dar bons palpites sobre seu
estado emocional.
Vai piorar. Lembre-se, a perfeita máquina de RA não apenas rastreia e
armazena dados visuais. Ela escaneia tudo em 3D. Ela cheira. Ouve. Uma grande
parte do comércio moderno conta com empresas que têm acesso a uma
quantidade enorme de dados. É por isso que a Amazon e o Google podem lhe
dizer o que você quer antes que você saiba. Mas como será que nos sentimos em
relação a um mundo no qual uma câmera termal detecta que você está um pouco
quente e suando e faz um pop-up de um anúncio da nova bebida gelada de sei lá
quais frutas do Starbucks? Ou talvez um scanner de rosto tenha notado que você
está fazendo muitas caretas em determinado dia e recomende: “Pergunte a seu
médico sobre Zoloft.”
Até as boas qualidades da mídia social carregam consequências estranhas
quando levadas para a vida real. Com a RA, seu chefe “sabe” que é seu aniversário,
ou que seu casamento acabou recentemente, ou qual é o seu programa de TV
favorito. Ele sabe tudo isso porque tem óculos de RA sutis, que projetam dados
de seus perfis na internet acima da sua cabeça. Isso é uma preocupação por dois
motivos: primeiro, porque está, de certa forma, redefinindo o que significa “saber”
algo. A essa altura, todos nós estamos acostumados à ideia de que fulana se
lembra do seu aniversário porque o Facebook disse a ela, mas, e se for mais do
que apenas aniversários? Há algo de perturbador num mundo onde grande parte
do conhecimento prático de alguém sobre você é externalizado e projetado num
visor. E quem não tiver óculos de RA viverá uma tremenda assimetria de
informações em relação às pessoas que têm.
Como a assimetria de informações é um assunto importante numa guerra (em
especial numa guerra moderna), uma ideia é dar esse tipo de software a tropas de
paz. Suponha que o trabalho de um soldado é policiar uma vila. Seria de muita
valia se ele tivesse óculos que pudessem reconhecer rostos e mostrar estatísticas
em seu visor. Agora ele é um soldado que se lembra do nome e sabe as
necessidades de cada morador da vila, sem contar religião, política e círculos de
amizade. Será que isso torna o soldado menos ou mais empático? E,
independentemente do efeito sobre o militar, como os moradores da vila se
sentem?
Um tópico com o qual nos deparamos várias vezes em nossa pesquisa é a
noção de “realidade diminuída”. A intenção é que certas vezes o indivíduo
gostaria de receber menos dados sensoriais reais. Em alguma medida, a RV de
imersão total faz isto: bloqueia por completo a realidade real. A RA é mais que
uma mistura. Em princípio, você deve ser capaz de girar uma maçaneta entre a
realidade total e a virtualidade total. Com certeza há bons usos para esse tipo de
coisa — pessoas com distúrbios de ansiedade ou distúrbios desencadeados por
trauma podem desejar atenuar certos tipos de experiência sensorial. Mas a
realidade diminuída talvez adquira um sentido sinistro em contextos nos quais é
preciso fazer escolhas difíceis. Por exemplo, será que você poderia bloquear
mendigos em seu caminho para o trabalho? Ou será que um soldado numa zona
de combate poderia bloquear a emoção no rosto de combatentes inimigos?
Uma noção fundamental da RA é que seus usuários devem ter acesso a uma
enorme quantidade de dados sobre o mundo. Isso se dá sobretudo em RAs muito
avançadas, em que todo tipo de modificação é feito no mundo. Considere o
simples caso de uma experiência de RA em que todos os esquilos estão
constantemente atirando abelhas pelos olhos. Não basta um computador capaz
de reconhecer esquilos e rastrear o movimento deles em relação aos seus; para
realmente completar a ilusão, você deve, de vez em quando, ver abelhas saindo de
trás de uma árvore ou de uma cerca, por exemplo. É preciso ter bons sensores
para fazer isso, ou câmeras de algum tipo por todo o lugar. Em outras palavras,
uma experiência de imersão maior num mundo de RA exige mais dados sobre a
realidade. Se a RA se tornar popular, poderá levar a uma pressão sobre o
consumidor por cada vez menos privacidade. E, independentemente de como os
consumidores vão se sentir, haverá muito mais informação nas mãos de
corporações e governos.
O dr. Alan Craig, da Universidade de Illinois em Urbana-Champaign,
apontou outra preocupação: quem assume o controle sobre o que é projetado, e
onde? Por exemplo, vamos supor que você tenha uma loja. Alguém num sistema
de realidade aumentada muito popular faz um grafite em sua parede: “O dono
dessa loja é otário e sem-vergonha.” Vamos partir do pressuposto de que isso não
seja verdade. Você tem o direito de “remover” isso do mundo aumentado? Afinal,
isso não está tocando nada que você tem.
Enquanto terminávamos este livro, a preocupação do dr. Craig deixou de ser
hipotética. Um dos ginásios do Pokémon GO (um lugar aonde o jogador vai para
obter itens gratuitos) foi parar em um Museu do Holocausto, e o museu teve que
pedir aos jogadores que, por favor, parassem de jogar num museu cujo propósito é
homenagear as vítimas do Holocausto.
Posteriormente, pessoas estavam procurando Pokémons em Auschwitz. De
início, nós nos perguntamos se aquilo era um pequeno descuido por parte dos
memoriais do Holocausto. Depois vimos um artigo no The Telegraph intitulado
“Hiroshima se irrita com Pokémon em Parque Memorial da Paz”. Então... pelo
menos os ofensores atacam os dois lados.
O dr. Craig observou que a RA pode ser hackeada. Portanto, se e quando o
Pokémon GO resolvesse essa questão em que um Squirtle está violando a
santidade dos mortos, pessoas mal-intencionadas ainda poderiam criar
problemas. Também poderiam trazer perigo. E se você estiver usando óculos de
RA enquanto dirige e um hacker enviar um pterodáctilo dando um rasante em
direção a seu carro, levando você a se desviar por reflexo? Seria incrível, claro, mas
provavelmente você estaria morto. Se a RA é onipresente, sua percepção da
realidade é hackeável, bem como a percepção das pessoas e dos grupos à sua
volta.
Por fim, será que isso chega a um ponto em que perdemos de vista o que é
artificial e o que é verdade? O dr. Craig disse que os filmes atualmente são uma
mistura de imagens reais e imagens geradas por computador, e com frequência
são tão bem-feitos que não conseguimos distinguir a realidade da ilusão. Pode a
RA ficar tão refinada que um dia andaremos por aí sem saber quais aspectos do
nosso ambiente fazem parte do mundo real e quais são apenas projeções? Isso
tem importância?
63. Se você estiver curioso para saber como seria isso, adivinha só? Você está lendo um livro mágico NESTE
EXATO MOMENTO. Acesse http://www.SoonishBook.com [em inglês] para baixar um aplicativo grátis
que fará uma estrutura familiar sair virtualmente da capa.
64. Rede de rotas e abrigos clandestinos existente nos Estados Unidos entre os séculos XVIII e XIX usada
pelos escravos afro-americanos que fugiam dos estados escravocratas com a ajuda de abolicionistas. (N. da.
E.)
65. De acordo com o dr. David White, que teve a gentileza de ler nossos trechos sobre muco, “as vias aéreas
produzem em torno de dois a três litros de muco a cada 24 horas. A maior parte é engolida e serve para
ajudar no revestimento de muco do intestino”.
66. Há um bocado de trabalhos científicos sérios a respeito. Um estudo (White et al., BioMedical
Engineering OnLine 2015, 14, p. 38) é um complexo modelo matemático do nariz, que usou uma máquina de
ressonância magnética. E dizia: “Esse modelo considera as duas complexas cavidades nasais uma série (k) de
tubos de diâmetro hidráulico variado alinhados...”
67. Eccles, European Respiratory Journal 1996, 9, pp. 371-376.
68. Se algum de vocês está lendo isto com o nariz entupido, pedimos desculpas.
8.
Biologia sintética
É mais ou menos como Frankenstein, só que o monstro passa o livro
inteiro fazendo remédios e insumos industriais obedientemente
DNA
Em todos os organismos multicelulares (como cogumelos e humanos), as
células têm em seu interior uma porção distinta chamada núcleo. Dentro do
núcleo há moléculas muito longas chamadas DNA. Pense nele como uma escada
de mão feita de corda, especialmente comprida, que se retorce e assume um
formato de saca-rolha. Essa é a famosa “dupla hélice”.
Os “degraus” da escada de mão são compostos por duas moléculas pequenas
(uma de cada lado) que se encaixam uma na outra, como uma mão numa luva.
Bem, talvez devêssemos dizer uma mão numa luva ou um pé num sapato, já que
essa combinação se dá de duas maneiras. Essas pequenas moléculas são chamadas
de bases, das quais existem quatro tipos, abreviados como T, A, C e G. A base T
sempre se casa com a A (mão na luva), e a C sempre se casa com a G (pé no
sapato).
O resultado é que, se rasgasse a escada em espiral, arrancando mãos de luvas e
pés de sapatos, você veria duas cordas compridas de bases, uma de cada lado. Se
você as lesse em ordem, do começo ao fim, seria algo como
“AAGCTAACTACACGTTACTG”, só que muito mais longo. Tipo 150
milhões de vezes maior em humanos. Essas letras codificam a maior parte das
informações de que seu corpo precisa para fazer tudo o que você faz.
Então que diabo isso significa? Quase tudo que acontece no seu corpo é feito
por proteínas. As pessoas geralmente pensam em proteínas como aquilo que você
come quando dá uma mordida num frango, mas a palavra “proteína” se refere a
uma imensa categoria de moléculas que funcionam como pequenas máquinas
para executar praticamente todas as tarefas no seu corpo. O DNA é, por assim
dizer, a biblioteca de como fazer proteínas.70
Agora visualize a escada de DNA se abrindo e cada degrau se dividindo ao
meio e virando uma longa corda de bases T, A, G e C. Sobre essa superfície
recém-aberta se forma uma nova molécula chamada RNA, que é uma espécie de
molécula-espelho para a superfície de DNA sobre a qual ele se forma. Sendo
assim, se determinado seguimento de DNA diz “AGCT”, o RNA forma
“TCGA”.71 Ou, para continuar nossa metáfora, mão se torna luva, sapato se
torna pé e vice-versa.
Essa nova peça de RNA (conhecida como RNA mensageiro) é o
transportador da informação genética. Ele deixa o núcleo e segue para o restante
da célula. Ali, encontra-se com uma estrutura chamada ribossomo, que “lê” o
código do RNA em blocos de três letras, como “AAA”, “GCT” ou “CAT”. No
ribossomo, cada “palavra” de três letras se torna uma espécie de ponto adesivo
para um aminoácido específico. Aminoácidos são as moléculas que as células
usam para construir suas máquinas de proteína.
Outro tipo de RNA (RNA transportador) leva os aminoácidos para o
ribossomo, colando-os aos pontos adesivos apropriados. Cada aminoácido é,
então, ligado quimicamente ao aminoácido ao lado, formando uma longa cadeia.
Quando se juntam numa determinada ordem, esses aminoácidos se dobram e
assumem formatos complexos que permitem às proteínas circular, iniciar reações
químicas e realizar todo tipo de truque necessário para que você continue a fazer
coisas como comer batata frita ou gritar diante do telejornal.
Ok, isso está um pouco confuso. Vamos usar uma analogia.
Pense em seu DNA como a biblioteca de informações sobre como fazer
máquinas. Nessa analogia, se você abrisse um livro do DNA numa página
qualquer ele poderia dizer algo como “ATNUJ, ALUVLÁV, RARAP, ETNEL,
OBUT, ETNEL, OBUT, RAGIL, ALUVLÁV, LENA, ETNEL...” e assim por
diante ao longo de muitos milhares de páginas.
Parece uma linguagem sem sentido. Mas faça uma cópia espelhada usando o
Silly Putty72 e você obtém “LENTE, ANEL, VÁLVULA, LIGAR, TUBO,
LENTE, TUBO, LENTE, PARAR, VÁLVULA, JUNTA”. Ainda está meio
confuso, mas parece fazer algum sentido.
Agora, observe que há um trecho sensato no meio: “LIGAR, TUBO, LENTE,
TUBO, LENTE, PARAR.” Ao montar essas combinações na ordem prescrita,
você obtém um telescópio. Esse é, por assim dizer, o código para telescópio.
Mas telescópios são sem graça. Vamos supor que você esteja tentando fazer
algo legal. Por exemplo, um dos projetos recentes de Zach foi a criação do
primeiro monóculo descartável do mundo. Kelly acha o projeto uma idiotice, mas
ela está errada.73
Em algum lugar da biblioteca de DNA, há uma seção de monóculos que,
quando copiada em espelho, diz “LIGAR, ANEL, LENTE, CORRENTE,
EMBALAGEM, PARAR”. Uma cópia em Silly Putty é feita e levada para fora
da biblioteca.
Por que sair da biblioteca antes de fazer o monóculo? Por muitos motivos, mas
um dos maiores é que uma loja de máquinas dentro da biblioteca não é o ideal.
Se você danificar a cópia em Silly Putty da seção “como fazer um monóculo
descartável”, é só voltar à biblioteca de DNA e pressionar o Silly Putty de novo.
E se você quiser fazer muitos monóculos descartáveis de uma vez, vai querer fazer
muitas cópias e enviá-las para várias fábricas diferentes. Se o livro original for
danificado, a fabricação de novas máquinas será impossível. Você talvez faça
cópias incorretas que não funcionarão. Na pior das hipóteses, poderá fazer
máquinas que “funcionam” mas fazem algo muito ruim. Algo como “LIGAR,
ANEL, GASOLINA, LENTE, CORRENTE, FOGO, PARAR”.
De qualquer modo, depois que a cópia em Silly Putty estiver fora da biblioteca,
ela vai para a montagem, vulgo ribossomo. O pessoal da montagem pega cada
palavra em Silly Putty e passa cola nelas. Em seguida, o motoboy que entrega as
partes (o RNA transportador) traz as peças e cola cada uma delas na palavra
referente. Depois que todas as partes estão coladas corretamente, o Silly Putty
pode ser jogado fora ou usado para fazer mais máquinas. Se tudo der certo, o
resultado será um monóculo descartável finalizado ou uma frota inteira de
monóculos descartáveis, se foram feitas muitas cópias.
Da mesma forma, o DNA se abre, cópias em RNA são feitas e essas cópias
deixam o núcleo para ir até os ribossomos, onde as proteínas são montadas.
Trata-se de uma ideia simplificada de como o DNA faz o seu negócio, mas o
processo real pode ser bem mais complexo, envolvendo circuitos em feedback e
combinação de pedaços de código separados para fazer uma única máquina.
“Calma aí!”, você diz. “Quando falam de DNA, as pessoas sempre mencionam
os genes.” Onde eles se encaixam? Bem, acontece que, para os cientistas,
identificar um “gene” é um pouco difícil. Ou pelo menos é difícil defini-lo com
precisão. Não que isso seja grande coisa. Por exemplo, você não reclama da
economia toda hora? Então. Agora defina a economia.
Um gene é como um pedaço do DNA que parece fazer algo específico, que
não necessariamente a gente saiba o que é. Um exemplo simples seria o gene do
tipo sanguíneo. Todo mundo tem uma seção do DNA que, por meio do processo
mencionado, determina o seu tipo sanguíneo. Pessoas diferentes têm tipos
sanguíneos diferentes, é claro, mas isso é apenas um reflexo do fato de que os
genes do tipo sanguíneo têm códigos distintos. Pessoas do tipo B e do tipo A têm
um “gene de tipo sanguíneo”, mas os códigos específicos desse gene variam um
pouco.
Dito isso, a maioria das características que identificamos em um organismo
não é determinada por apenas um gene. Na verdade, as características de gene
único (ou “monogênicas) são bem raras.74 Mesmo características simples, como
cor do cabelo e cor dos olhos, são produtos de muitos genes diferentes.
Por que é assim? Bem, lembre-se de que todo esse sistema não foi criado por
ninguém. É fruto de bilhões de anos de evolução. Se os humanos o tivessem
construído, talvez cada característica fosse produzida por um pedaço específico
do DNA, da mesma maneira que cada parte de um computador é um módulo
separado. Mas estamos presos à história da evolução.
Então, por exemplo, você pode encontrar um gene chamado “GÊNIO”, que
torna 15% maior a probabilidade de seu hospedeiro humano gostar da elegante
conveniência de um monóculo descartável. Isso não garante que essa característica
rara, valiosa e absolutamente civilizada estará presente na pessoa — simplesmente
a torna mais provável. Conjugado a outros genes, GÊNIO pode aumentar para
quase 100% a probabilidade do comportamento de ter um monóculo descartável,
mas se os outros genes se opuserem a GÊNIO, o infeliz indivíduo poderá ser
destituído de um senso de aparato ocular certo. Ou isso pode ser mais
complicado — se você tiver o gene A e o gene B mas não o C, o efeito é um, mas
se tiver A e C mas não D, o efeito é outro.
Em geral, determinado gene com frequência só conta uma pequena parte da
história.
Para o propósito deste livro, o importante é perceber que a biologia, em seu
nível mais básico, é um pouco como um sótão bagunçado. Se tirarmos uma coisa
daqui, podemos derrubar algo ali. Isso significa que se você quer reproduzir, por
exemplo, gado com chifres gigantes, a maneira mais fácil tem sido encontrar um
touro com chifres grandes e uma vaca cujo pai tenha chifres grandes, tocar para
eles uma musiquinha relaxante e esperar a natureza seguir o seu curso.75
Esse método funciona bem, sobretudo se não é você que faz o trabalho de...
vamos chamar de concierge. Mas, para o pretenso cientista louco, a complexidade
do DNA (sem falar no seu tamanho diminuto) impôs limites sobre o quanto e
com que rapidez podemos mudar a biologia. Os humanos não estão por aí há
muito tempo. Pouquíssimas espécies foram alteradas para especificamente fazer
coisas de que gostamos. Conseguimos controlar a levedura que transforma açúcar
em birita, mas por que não uma levedura que transforma açúcar em, digamos,
combustível de avião? As duas são substâncias químicas, certo? O DNA tem um
pedaço que diz para fazer certa substância química — será que não podemos
mudar esse pedaço de código para transformá-lo em outra coisa?
Essa é a promessa da biologia sintética. Se conseguirmos criar novos pedaços
de DNA e inseri-los onde quisermos num organismo, teremos criado uma
biologia que nunca teria existido. Máquinas moleculares que podem transformar
células de câncer em células normais. Organismos que causam pestes ajudando a
exterminar a própria espécie. Ou até mesmo apenas organismos de escopo geral à
espera de instruções. Isso é vida feita por encomenda.
Combatendo doenças
Os seres humanos conseguiram eliminar, ou pelo menos controlar, muitas
doenças. Outras, como a malária, têm se mostrado extremamente resistentes. A
Organização Mundial da Saúde estima que em 2015 houve 214 milhões de casos
de malária, que resultaram em 438 mil mortes. Trata-se de uma grande melhora
em relação a vinte anos atrás, mas há um longo caminho pela frente. Um
tratamento particularmente bom se dá com uma substância química chamada
artemisinina.
A artemisinina é um composto extraído da planta chinesa Artemisia annua.
Medicamentos à base de artemisinina estão entre os melhores tratamentos que
temos contra malária, mas, como todo entusiasta da artemísia chinesa sabe, o
cultivo de uma quantidade suficiente da planta é caro e exige tempo. Isso é ainda
pior no caso da malária, porque a maioria das vítimas da doença vive na África
Subsaariana, uma região economicamente pobre.
A disponibilidade da artemísia chinesa tem variado radicalmente ao longo do
tempo, provocando grandes flutuações de preço. Por exemplo, o preço era de 300
dólares por quilo em 2003, 1.100 dólares em 2005, 200 dólares em 2007 e 900
dólares em 2011. Quando os preços caem, os agricultores param de cultivar a
planta. Isso provoca escassez, o que aumenta o preço de novo. E a última coisa
que você vai querer é uma escassez de medicamentos contra a malária. Um dos
motivos pelos quais não conseguimos sair desse ciclo é que as plantas demoram a
crescer. Encontrar uma maneira rápida de prover artemisinina de maneira
confiável reduziria o preço médio, ou pelo menos manteria o preço e a oferta do
medicamento mais estáveis.
O dr. Chris Paddon, da Amyris, Inc., e o dr. Jay Keasling, da Universidade da
Califórnia em Berkeley, queriam produzir um organismo simples para criar esse
remédio, então se voltaram para o melhor amigo do homem: Saccharomyces
cerevisiae, vulgo levedura de cerveja. O pequeno fungo que transforma açúcar em
bebida alcoólica.77
O desafio é que não dá para fazer apenas artemisinina. Se você acha
“artemisinina” difícil de pronunciar, observe o nome químico:
(3R,5aS,6R,8aS,9R,12S,12aR)-Octa-hidro-3,6,9-trimetil-3,12-epoxi-12H-
pirano[4,3-j]-1,2-benzodiazepina-10(3H)-um.
Para conseguir um pouco desse negócio, é preciso gerar várias substâncias
químicas diferentes que reajam entre si na sequência certa. Ao longo de
aproximadamente uma década, o grupo do dr. Paddon e do dr. Keasling trabalhou
em todo tipo de etapa química, alterando o DNA da levedura de modo a gerar as
substâncias químicas certas para as reações certas na ordem certa. Só nos últimos
anos eles enfim produziram uma levedura de cerveja modificada que cospe o
ácido artemisínico, que se transforma em artemisinina com facilidade.
Isso funciona bem, mas o medicamento está tendo dificuldade para competir
no mercado. Aconteceu de a nova tecnologia chegar ao mercado justo quando a
artemisinina estava com um preço especialmente baixo, então, no momento, o
antigo método está solapando a levedura modificada especial. Não estamos certos
sobre quem é o provável perdedor nesse caso, mas é uma boa lição sobre como as
mudanças tecnológicas envolvem tanto a realidade de mercado quanto a
inteligência científica.
De qualquer modo, a malária já está desenvolvendo resistência a medicamentos
à base de artemisinina em algumas regiões. Muito obrigado, evolução. Portanto, e
se pudéssemos, antes de tudo, usar a biologia sintética para impedir as pessoas de
contrair malária?
Os mosquitos que carregam a malária e a transmitem para os humanos com
frequência se tornam resistentes a pesticidas. Mosquitos se reproduzem depressa,
então cada geração tem muitas chances de produzir mutantes capazes de derrotar
as melhores armas da humanidade. Poderíamos vencer essa corrida armamentista
da seguinte forma:
A fêmea do mosquito só acasala uma vez. E se pudéssemos enganá-la e fazê-la
acasalar com um macho estéril? Isso resultaria em menos bebês mosquitos
bonitinhos78 e, por sua vez, em menos transmissão de malária. Uma estratégia
inicial para esterilizar os mosquitos machos foi expô-los a radiação. Isso de fato
funcionou, mas, bem... acontece que quando você expõe um cara a uma dose
enorme de radiação, isso aumenta as chances de ele dormir sozinho.
Mais tarde, tornou-se possível fazer mudanças genéticas diretas em mosquitos,
e cientistas fizeram um pequeno adendo ao código genético do mosquito. Os
exemplares com esse gene adicionado precisam do antibiótico tetraciclina, senão
morrem. Eles recebem tetraciclina ao nascer e saem para acasalar. Em seguida,
gerarão filhotes que morrerão sem tetraciclina. Esses filhotes não têm um
cientista por perto para lhes dar o batismo de antibiótico, então eles morrem
antes de gerarem outra leva de mosquitos.
Está bem, então isso funciona a curto prazo, mas é muito caro. Quando se
introduz um gene que faz com que todos os seus descendentes morram, esse gene
não dura muito tempo numa população. Os mosquitos se recuperam em algumas
gerações. Ou seja, para manter as populações de mosquito baixas, é preciso
continuar introduzindo com cuidado mosquitos geneticamente manipulados
várias e várias vezes.
A não ser que você tenha um direcionamento gênico. Eis como isso funciona:
Quando mamãe e papai se amam muito, eles apagam as luzes e combinam seus
DNAs. Se tudo der absurdamente errado, terão um bebê. Agora, imagine que
haja um único gene que determina a cor dos pelos do nariz.79 Mamãe lhe dá um
gene para pelos de nariz pretos e papai lhe dá um gene para pelos laranja
vibrante. No futuro, você produzirá filhos cuja cor dos pelos do nariz é
influenciada pelos genes recebidos de sua mãe e seu pai.
Mas agora suponha que o gene dos pelos laranja de seu pai não era um gene
comum. Além de codificar os pelos de nariz, ele também destrói o gene dos pelos
de nariz do parceiro. Quando isso acontece, o DNA conserta o gene destruído
copiando o gene dos pelos laranja de nariz. Então agora você tem dois genes de
pelos laranja de nariz do papai e nenhum gene de pelos pretos da mamãe.
O que acontece? Bem, sem dúvida você acaba tendo pelos laranja no nariz.
Mas então... algo mais sinistro e mais laranja acontece. Todos os seus irmãos
também têm pelos de nariz laranja. E também todos os seus filhos. E os filhos
deles! O gene “direciona” o caminho dele por toda a população. Isso acontece
mesmo que os pelos laranja vibrante (inexplicavelmente) tornem você menos
sensual. Pode ser que você tenha menos filhos, seu esquisitão de nariz alaranjado,
mas todos eles terão o gene egoísta.
Quando seu cachorro entra em casa correndo, ele não tem como lhe dizer que
estava rolando na lama e comendo esquilos. De algum modo, você sabe. O corpo
do cachorro guarda um registro do passeio do dia em seu cheiro e sua aparência.
Alguns cientistas se perguntaram se o mesmo poderia acontecer com as bactérias.
Isso seria útil, porque você poderia enviar a bactéria para um passeio mágico pelo
seu trato digestivo. Elas montariam um pequeno álbum de recortes da viagem e
depois o dariam ao seu provedor médico quando... emergirem. Não é a imagem
mais encantadora, mas seria melhor do que o atual método de enfiar uma câmera
ali dentro.
A dra. Pamela Silver e seu laboratório na Harvard Medical School tiveram
uma ideia: seria possível criar um mecanismo sintético que capturasse
informações dentro do DNA de uma bactéria para que recuperássemos depois?
Basicamente, seria possível fazer com que bactérias “observem” o ambiente e
depois mudá-las de algum modo que leve você a saber o que elas viram? A
resposta é sim. Dãã.
O conceito é o seguinte: duas células do mesmo tipo, com o mesmo DNA
inicial, podem ter variações adquiridas no ambiente. Por exemplo, talvez haja
moléculas presas ao DNA delas que mudam a maneira como ele codifica as
coisas, ou pode haver algum tipo de circuito de feedback químico que resulta
numa expressão maior ou menor de determinado gene. E, em alguns casos, uma
célula pode transmitir para seus filhotes as alterações que adquiriu.
Essas mudanças, se persistirem de uma forma que se possa decifrar, poderiam
nos contar sobre o que a célula bacteriana “viu” em sua viagem. O problema é que
as bactérias não são naturalmente destinadas a esse propósito. Elas são mais ou
menos como o cachorro de antes — se ele correu até a casa do vizinho,
desenvolveu inteligência de repente, matou o vizinho por dinheiro, jogou pôquer
pela internet, perdeu tudo num blefe que deu errado, ficou com raiva e perdeu a
inteligência, depois correu na lama e voltou para casa, bem... tudo o que você verá
é a lama no carpete.
No cachorro dá para amarrar uma câmera. Na bactéria, não. Ela é pequena
demais, e, de qualquer modo, o Sol não brilha por onde ela vai.
No DNA, pode-se encontrar uma espécie de circuito químico80 em que ele
cria uma molécula e esta diz a ele para fazer isso de novo. Seria como se você
fizesse um sinal com os dizeres: “QUANDO LER ESTE SINAL, FAÇA UMA CÓPIA DELE
E DEPOIS A LEIA.” Ao ser desencadeado, o circuito fica produzindo sinais para
sempre.
Em princípio, esse circuito químico deveria ser capaz de funcionar como a
memória. Para continuar com a analogia do sinal, vamos supor que você tivesse
um programa mental que funcionasse mais ou menos assim: “Quando sua calça
cair, faça um sinal que diga ‘QUANDO LER ESTE SINAL, FAÇA UMA CÓPIA DELE E
DEPOIS A LEIA’.” Se mais tarde víssemos você fazendo sinais sem parar, teríamos
condições de concluir que sua calça provavelmente caiu, e sem precisarmos fazer
as observações necessárias.
O DNA funciona de maneira semelhante: quando o circuito é ligado, ele
simplesmente continua. E o circuito ativo será transmitido por gerações de
linhagens de células, pelo menos por tempo suficiente para você recuperar
informações úteis nele.
O laboratório da dra. Silver já fez isso. Eles criaram circuitos de DNA sintético
que são inseridos no material genético da bactéria. Quando a bactéria
experimenta certas condições, seus circuitos são ativados. Como os circuitos são
concebidos de maneira sintética, é preciso decidir quais são as substâncias
químicas que eles estão criando. Isso significa que é possível decidir por uma
substância química que seja facilmente detectável. Ao brilhar quando exposta a
certos tipos de luz, por exemplo.
Para dar uma ideia de por que isso pode ser útil: células tumorais com
frequência sofrem uma privação reincidente de oxigênio, porque crescem tão
rápido que não obtêm um suprimento de sangue suficiente. Acontece que a
privação repetida de oxigênio produz um sinal químico detectável nas células
tumorais. Então a ideia da dra. Silver é colocar células de memória programável
dentro do corpo de alguém e mais tarde checá-las para ver se elas detectaram
áreas com níveis baixos de oxigênio. Se detectarem, é possível que elas tenham
encontrado tumores sólidos.
Esse método ainda está em fase inicial, mas as aplicações clínicas poderiam ser
incríveis. Com um método geral para criar sensores programáveis do tamanho de
células, a porta está aberta para pesquisadores programarem células a fim de
detectar todo tipo de coisa.
Combinando isso com outro trabalho que a dra. Silver fez, tudo fica realmente
interessante. Por exemplo, ela e seus colegas publicaram um estudo em 2016 com
o título “A Tunable Protein Piston that Breaks Membranes to Release
Encapsulated Cargo” [Um Pistão de Proteína Sintonizável que Quebra
Membranas para Liberar Carga Encapsulada]. Ou seja, podem-se programar
bactérias não apenas para encontrar problemas, mas para proporcionar
tratamento.
Esse método teria utilidades que vão desde o envio de medicamentos a um
câncer até um tratamento para síndrome do intestino irritável. Ele também é
direcionado. Atualmente, se tiver uma inflamação no estômago, você toma um
remédio via oral, liberando uma substância química em todo o corpo, cuja maior
parte está saudável. Em tese, é possível criar um tipo de bactéria que se liga ao
remédio até ele detectar a assinatura química para inflamação. Se esse método
puder ser generalizado, como sugere o trabalho da dra. Silver, talvez todo tipo de
remédio possa ser entregue diretamente ao alvo relevante, maximizando a eficácia
e minimizando os efeitos colaterais.
Combustíveis
As células são provavelmente os melhores químicos que existem.
• Dra. Pamela Silver
Monitoramento ambiental
Todas essas coisas são ótimas, mas também são difíceis. Existem maneiras de
modificar a genética desde os anos 1970, mas os métodos são difíceis, caros e
demorados. Ou pelo menos era isso que acontecia. Nos últimos anos, entrou em
cena um novo método que promete mudar tudo.
Um grupo liderado pela dra. Jennifer Doudna, da Universidade da Califórnia
em Berkeley (e do Howard Hughes Medical Institute), e pela dra. Emmanuelle
Charpentier, do Max Planck Institute for Infection Biology, descobriu uma
maneira de produzir tesouras moleculares, graças a uma peculiaridade no modo
como os sistemas imunológicos bacterianos funcionam. Em bactérias, o sistema é
chamado de CRISPR-Cas9. Caso não tenha adivinhado, esse primeiro acrônimo
é uma abreviação de “clustered regularly interspaced short palindromic repeats”
[repetições palindrômicas curtas agrupadas e regularmente interespaçadas].
Uma bactéria natural não tem um armazenamento de memória no mesmo
sentido que você tem. Ela não pode ver, ouvir nem pensar. Mas as bactérias são
capazes de combater vírus que já tenham encontrado alguma vez. De algum
modo, elas se “lembram” dos vírus e os atacam.
Funciona da seguinte maneira: ao infectar uma bactéria, um vírus injeta
pedacinhos de material genético através da parede celular dela. Esses pedacinhos
tentam assumir o comando da maquinaria da célula a fim de produzir mais
partículas de vírus. Mas a bactéria tem uma proteína, chamada Cas, que pode
combater o vírus. Quando é bem-sucedida, a Cas pega parte do material genético
do vírus derrotado e o acrescenta a uma seção especial do DNA da célula
bacteriana. Isso fornece à bactéria uma maneira de se lembrar do vírus.
Mais tarde, quando esbarra no mesmo vírus, essa bactéria o “reconhece” usando
o código armazenado e, então, corta a proteína do vírus no lugar reconhecido. As
bactérias não estão cortando o lugar reconhecido por terem um senso de justiça
poética — é que quando alguma coisa as ataca, cortá-la em pedaços é uma boa
defesa. Mas o resultado é uma ferramenta útil para os seres humanos — a Cas
sempre corta num determinado local genético. Uma tesoura molecular direcionada.
E aqui vai a parte bonitinha: numa célula saudável, quando o DNA é cortado,
ele tenta consertar a si mesmo juntando de novo as duas pontas. Antes de o
conserto acontecer, é possível inserir novas moléculas que couberem na lacuna. O
DNA se cura sozinho e BAM! Você acabou de introduzir de maneira seletiva um
novo código no DNA de uma célula no lugar de sua escolha. E isso numa célula
viva.
Os grupos de laboratório do dr. Feng Zhang, do MIT, e do dr. George Church
desenvolveram métodos de usar a CRISPR-Cas9 em camundongos e humanos.
Então, desde mais ou menos 2013, é possível circular dentro de células de todo
tipo de organismo, cortando DNA e colando DNA indiscriminadamente. O que
podemos fazer? Brincar de Deus? Sitiar o antigo vale da Natureza com os
canhões de ferro da Ciência?! Não ligue se fizermos isso!
É claro que, como nos diz a história do Jardim do Éden, quando brincamos de
Deus com organismos preexistentes, eles nem sempre se comportam de maneira
correta. Enquanto não pudermos fazer organismos internamente do zero, temos
que mexer com o DNA que está dentro das criaturas que a natureza fez. Mas não
precisamos jogar limpo com a natureza.
O dr. J. Craig Venter ficou conhecido por uma disputa com os Institutos
Nacionais de Saúde, do dr. Francis Collins, para decifrar o genoma humano.
Hoje, ele está fazendo coisas mais importantes. Só para dar uma ideia do dr.
Venter, certa vez ele respondeu ao tema de discussão “Com o quê ‘devemos’ nos
preocupar?” com um artigo que começava assim: “Como cientista, otimista, ateu e
macho alfa, não me preocupo.”
Entenda, esse é exatamente o tipo de pessoa que você vai escalar se precisar de
alguém para brincar de Deus. Ele trabalha num lugar que por acaso se chama J.
Craig Venter Institute. Afora o fato de ser destemidamente alfa ao máximo o dia
inteiro e todos os dias, a equipe do dr. Venter está trabalhando na criação do
organismo mais simples possível.
A ideia deles é que, com um organismo simples ao extremo, deve ser
relativamente fácil dizer o que acontecerá quando o DNA dele for alterado. Você
terá uma espécie de tela em branco para novos genes, então os cientistas
conseguirão descobrir muito mais depressa o efeito das mudanças que fizerem.
Eles começaram com um organismo chamado Mycoplasma genitalium, assim
nomeado porque é encontrado nos tratos genital e urinário dos humanos. Além
de estar em local conveniente, esse organismo tem um genoma extremamente
curto. De início, eles removeram e descartaram cada vez mais genes para ver o
que era essencial para a sobrevivência. Às vezes a perda de um gene matava o
organismo, mas às vezes não. Depois de muito trabalho, e depois de
(infelizmente) trocarem para uma espécie com um nome menos divertido,87 eles
chegaram a um organismo com apenas 473 genes.88 Os humanos, em
comparação, têm cerca de vinte mil genes. O grupo de Venter batizou o novo
organismo de Mycoplasma laboratorium.
O dr. Venter é ateu, mas, se por via das dúvidas houver um Deus a quem irritar,
ele chamou a mais recente versão desse organismo de Syn 3.0, em referência à
deusa nórdica guardiã dos portões, responsável por decidir quem entra ou não.
Investidores interessados em exclusividade já estão se inscrevendo para ver o que
o Syn pode fazer por eles.
Para aqueles que não se animam tanto com a criação de uma forma de vida
patenteada por um gênio reservado, há também uma abordagem popular da
biologia sintética.
Um concurso chamado iGEM (International Genetically Engineered
Machine) é realizado anualmente e põe frente a frente estudantes (inclusive do
ensino médio!) para ver quem consegue apresentar o organismo criado por
engenharia genética com mais potencial. Em 2015, as equipes criaram (entre
outros projetos) um biossensor que funcionava em qualquer iPhone e detectava
contaminação por metais pesados e drogas de estupro; um organismo que secreta
substâncias químicas para ajustar o ponto de congelamento da água estando
imerso nela; um teste barato e rápido para determinar se um câncer teve
metástase; e um biossensor que mensura a pureza da heroína.
As equipes também põem todas as “partes” que elas criam no “Registro de
Partes Padrão de Biologia”, que está disponível gratuitamente e também pode
receber contribuições de pessoas que não participaram do iGEM. Em outras
palavras, um Lego de biologia de código aberto. As pessoas podem encomendar
essas partes e fazer pesquisas de biologia sintética se tiverem o equipamento, cuja
disponibilidade está se tornando cada vez maior em espaços de “biohackers”.
Portanto, seu vizinho pode ser o próximo indivíduo a resolver nossa crise
energética, ou a curar uma doença, ou a escrever “me dê um chute” na sua pele
com substâncias químicas bioluminescentes. Se você morasse perto do MIT, isso
provavelmente já aconteceria, mas em breve poderá ser uma experiência para
todos aproveitarem.
Preocupações
Mexer com a linguagem da vida. O que poderia dar errado? Um mantra inicial
da internet era “a informação quer ser livre”. Isso soa bem, mas temos um
problema se a informação for sobre produzir varíola a partir do zero.
Em última análise, a biologia sintética deve dar aos humanos o poder de ter
organismos feitos por encomenda. À medida que a tecnologia se torna barata, a
capacidade de trazer de volta doenças para as quais já não nos vacinamos pode se
tornar algo que você conseguiria fazer no seu computador de mesa.
Pense na varíola: depois de 1980, paramos de vacinar porque a doença havia
praticamente sumido.89 A varíola pode ter matado meio bilhão de pessoas no
século XX, e a maioria dos indivíduos atualmente não tem imunidade a ela. Se a
biologia sintética ficasse fácil, o que impediria um biólogo malévolo (ou um geek
com raiva) de trazê-la de volta?
Uma possibilidade ainda mais assustadora é a de uma doença como a varíola
ser modificada para se espalhar mais depressa e ser mais letal. Um biohacker
poderia, em tese, criar a doença de modo que ela resistisse a todos os tratamentos
conhecidos. Também sabemos que algumas doenças afetam o comportamento
humano. Por exemplo, as vacinas contra gripe aparentemente tornam os seres
humanos mais sociáveis, talvez em decorrência da doença. Um criador de doenças
poderia produzir alterações comportamentais na sociedade por meio de um
patógeno sutil.
No momento, as empresas que produzem DNA por encomenda se mantêm de
olho nos pedidos feitos pelos clientes. Mas, conforme os sintetizadores de DNA
ficam cada vez mais baratos, será que isso viria a ser um tipo de coisa que se
poderia fazer em casa? A melhor hipótese é a de que o poder de criar doenças
venha junto com o poder de combatê-las. Mas a prevenção, de alguma maneira,
deve ser melhor do que uma corrida armamentista em que os seres humanos são
o campo de batalha. Outro consolo pouco satisfatório é que o bioterrorismo é
raro, provavelmente por ser difícil controlá-lo. O terrorismo, por definição, serve
aos objetivos políticos do autor do ataque, mas serve ao interesse de muito pouca
gente a criação de uma forma de vida que poderia infectar e matar com facilidade
seu próprio povo.
Medicina de precisão
Tudo o que há de errado especificamente com você — uma
abordagem estatística
Doenças genéticas
O rápido avanço da tecnologia de leitura de genes faz com que o seu genoma
sequenciado seja relativamente barato — na ordem de milhares de dólares,
quando já custou dezenas de milhões. Mas diagnosticar um problema não é a
mesma coisa que o sanar.
É especialmente difícil solucionar distúrbios genéticos. Ao contrário do que se
costuma afirmar na mídia, não dá para “editar o DNA de uma pessoa” da mesma
forma que se edita um documento. Quase todas as células do seu corpo contêm
fitas de DNA. Para alterar seu genoma, você teria que modificar todas as suas
células, ou pelo menos todas as suas células que são relevantes para a sua doença.
Por exemplo, a fibrose cística é um distúrbio genético em que o corpo produz
muito muco espesso em órgãos internos. Muco espesso nos pulmões é tão ruim
quanto parece: aumenta o risco de infecções e dificulta a respiração.
Outro problema é muco no pâncreas. É uma condição terrível, pois dificulta
muito a absorção de nutrientes. Antigamente, um diagnóstico de fibrose cística
significava que era improvável sobreviver muito além dos vinte anos. Avanços
levaram pacientes a viver mais de trinta ou quarenta anos, mas todos esses
avanços são formas de tratar o problema do muco, não o reparar em sua raiz
genética.
Parte da dificuldade é que não existe apenas uma fibrose cística. O acúmulo de
muco que torna a doença identificável para os médicos pode ser resultado de
qualquer mutação genética entre muitas opções.
Um medicamento chamado ivacaftor foi desenvolvido recentemente para lidar
com uma variante genética específica da fibrose cística. A mutação específica que
o medicamento tem como alvo é encontrada em apenas 5% das vítimas de fibrose
cística. Na medicina, conforme ela é praticada hoje em dia, isso não é bom. Mas
no paradigma da medicina de precisão, a ideia é que com o passar do tempo
consigamos um tratamento que tenha como alvo cada mutação possível. Então,
quando você nasce, identificamos seu problema genético e sabemos exatamente o
tratamento a ser usado. Com isso, você não apenas recebe o tratamento certo
como evita alguns tratamentos errados e com certeza desagradáveis.
Mas, num nível mais profundo, isso ainda é apenas lidar com o problema de
forma paliativa. E se pudéssemos consertar o código danificado em todas as
células certas?
No capítulo anterior, discutimos uma nova técnica de edição de genes chamada
CRISPR-Cas9. Ela permite aos cientistas consertar de fato as mutações que
estão causando fibrose cística nos pacientes. Caso você já tenha alcançado a
façanha de esquecer o que a CRISPR faz, a versão resumida é que agora
podemos cortar e substituir partes do DNA em células. Em princípio, isso nos
levaria a cortar e consertar qualquer mutação que estiver causando fibrose cística
numa pessoa viva.
A CRISPR já funcionou em pedaços de tecido intestinal em laboratório, o que
dá uma ideia de como é divertido o trabalho em um lugar desses. Descobrir como
aplicar a técnica em pacientes de verdade ainda é um grande obstáculo, e
cientistas temem que possamos bagunçar outras partes do genoma ao tentarmos
reparar as mutações. Ao editar um trilhão de células de uma vez, o ideal é não ter
muitas surpresas.
Mas o legal da CRISPR é que se trata de uma ferramenta geral para resolver
distúrbios genéticos. Qualquer doença causada por uma ou mais mutações
genéticas seria vulnerável a esse método de editar genes específicos. Se a
CRISPR acabar sendo uma bala de prata para problemas de gene, seria possível
dispará-la contra a doença de Huntington, anemia falciforme, doença de
Alzheimer e outras.
DIAGNÓSTICO
É difícil matar células de câncer pelo mesmo motivo que será difícil matar
androides secretos na Revolta dos Robôs de 2027: eles se parecem com a gente.
Uma célula de câncer é uma célula que estragou; que deveria ter servido a uma
função útil do corpo, mas que nasceu com — ou adquiriu — um estranho
conjunto de mutações que a faz gerar cópias de si mesma repetidamente, em vez
de fazer seu trabalho. No caso de um tumor sólido, o paciente basicamente tem
uma nação de células ruins morando e se reproduzindo em seu corpo.
Células mutantes, incluindo as cancerosas, nascem no corpo o tempo todo. Em
geral, o sistema imunológico mira nelas e as elimina. O problema é que de vez
em quando o indivíduo adquire uma célula muito rara, que se reproduz sem
controle e escapa do sistema imunológico, seja evitando a detecção ou
convencendo as células imunológicas a não a matar.
Então, até receber um diagnóstico de câncer, a pessoa já está com células muito
perigosas no corpo. Nesse momento, a medicina precisa entrar onde o sistema
imunológico falhou. Mas descobrir um câncer pode ser difícil.
Historicamente, a leucemia é um dos cânceres de detecção mais fácil, porque é
transportado pelo sangue e deixa um acúmulo de glóbulos brancos que o
denuncia.96 Os tumores sólidos, sobretudo os pequenos, podem ser muito mais
furtivos. É por isso que os médicos pedem a pacientes que façam exames de
mama regularmente — mesmo tumores rígidos podem ser sutis quando estão
escondidos num corpo humano mole.
O diagnóstico precoce é mais do que mera conveniência. Muitos dos cânceres
mais mortais são perigosos não por serem especialmente agressivos, mas porque
só causam sintomas sutis, até que já é tarde demais para detê-los.
De acordo com o Instituto Nacional do Câncer, a chance de sobreviver por
cinco anos com câncer de pulmão é de 55% se ele for detectado logo no início.
Mas a maioria das pessoas não recebe o diagnóstico tão cedo assim. Mais da
metade dos pacientes de câncer de pulmão só recebe o diagnóstico quando a
doença já entrou em metástase,97 e a essa altura o índice de sobrevivência de
cinco anos é de mais ou menos 5%.
Portanto, queremos encontrar o câncer o mais cedo possível.98 E acontece que
a leucemia não é o único câncer que deixa um biomarcador no sangue. Todos os
tipos podem ser detectados por meio da busca por pequenas moléculas chamadas
microRNAs.
No capítulo anterior, demos uma explicação resumida de como o DNA cria
proteínas, mas mencionamos que o verdadeiro processo pode ser mais
complicado. O microRNA adiciona um pouco mais de complexidade ao caso.
O microRNA ainda não é perfeitamente compreendido, mas um papel
importante que ele parece ter é na chamada expressão gênica. Pense nisso da
seguinte maneira: imagine que você tem um gene que é um código para nariz
vermelho brilhante. Conforme dissemos, “código para” não é uma boa expressão
para tal, portanto sejamos mais específicos: seu DNA codifica uma proteína que
automaticamente vai para a ponta do seu nariz e lhe confere um brilho vermelho.
A intensidade do vermelho no nariz depende de quantas proteínas são criadas. O
microRNA pode fazer ajustes aqui. Vamos supor que a sua receita genética para
essa proteína imaginária termine normalmente com “repita isso dez vezes”. Essas
“dez vezes” podem ser ajustadas para mais ou para menos pelo microRNA, dando
a você ou um nariz claro e triste ou um nariz rubro e vibrante.
Está bem, então está claro, mas e daí? De modo muito conveniente para a
medicina, essas pequenas moléculas de microRNA podem ser encontradas na
corrente sanguínea. Pedacinhos específicos ou concentrações alteradas delas
podem nos dizer não apenas quais são os cânceres que o paciente pode ter como
em que estágio esses cânceres estão.
Por exemplo, um estudo verificou que os níveis de quatro microRNAs
específicos indicavam fortemente se alguém com adenocarcinoma de pulmão
tinha probabilidade de viver muito (mais de quatro anos em média) ou pouco
(pouco mais de nove meses). Informações como essas podem ajudar pacientes e
médicos a decidir o grau de agressividade a ser usada para combater o câncer e a
tomar decisões sobre como viver o tempo de vida restante.
Em princípio, sabendo qual microRNA está em seu sangue (e talvez alguns
outros fluidos), podemos fazer uma espécie de leitura sobre quais doenças seu
corpo carrega. Novas proteínas são criadas em resposta a praticamente qualquer
coisa que seu corpo faz, então isso seria uma fonte de informação incrível sobre
exatamente qual é a sua maior disfunção.
Entretanto, descobrir o que há de errado com você não é uma tarefa fácil. Da
próxima vez que estiver procurando algo para ler, considere o miRBase, a base de
dados sobre microRNA (mirbase.org), que, no momento em que estamos
escrevendo este capítulo, está rastreando cerca de duas mil moléculas desse tipo.
Outra molécula que desperta interesse é chamada de ctDNA, abreviatura de
“circulating tumor DNA” [DNA tumoral circulante]. Trata-se de uma descoberta
muito recente, e tem um ótimo potencial para o diagnóstico de câncer. Em
termos simples, quando o paciente tem alguns tipos de tumor sólido, uma
pequena parte do DNA deles pode entrar em sua corrente sanguínea.
Isso não é bom para o paciente, mas é muito útil para o médico dele por duas
razões: torna muito mais fácil detectar os tumores sólidos e mostra que uma
análise genética de um câncer conhecido pode ser feita sem a necessidade de
realizar uma cirurgia invasiva.
Um estudo recente mostrou que se o paciente tem um carcinoma de pulmão
de células não pequenas no estágio 1, podemos detectá-lo 50% das vezes por
meio do ctDNA. Quando o paciente chega ao estágio 2, o câncer se deslocou dos
pulmões para os nódulos linfáticos, mas não teve metástase em outros órgãos.
Geralmente, só descobrimos essa doença no estágio 3 ou 4, quando a
probabilidade de sobrevivência por cinco anos é significativamente mais baixa.
Mas mesmo que dê para encontrar as assinaturas de câncer do ctDNA e do
microRNA, ainda pode ser difícil obter toda a história da doença.
Costumamos nos referir ao câncer tendo em vista o local onde ele é
encontrado — câncer de fígado, câncer ósseo, câncer no cérebro —, mas essa não
é a maneira mais útil de descrevê-lo. Dois tipos de câncer de mama podem provir
de mutações completamente diferentes. Um deles pode ser mortal e o outro é
razoavelmente controlável.
Para tornar as coisas mais complexas, o câncer não para de sofrer mutação uma
vez que existe. Como as células do câncer continuam a sofrer mutação, uma
espécie de sobrevivência dos mais aptos acontece no corpo. Os resultados podem
ser tumores não apenas perigosos, mas também geneticamente diversos.
A diversidade da genética do câncer num único corpo pode tornar o
tratamento extremamente difícil; mesmo que tenhamos uma substância química
que faça os tumores encolherem, pode ser que estejamos reduzindo apenas um
subconjunto do tipo de célula. Então, ao encolher um tumor, talvez tenhamos
matado apenas certo tipo de célula que era vulnerável. Mais tarde, o câncer pode
voltar ainda mais agressivo.
Pior, com a quimioterapia ou radioterapia, pode ter havido outras mutações no
processo. E isso sem falar que passar por esses tratamentos com frequência é
realmente ruim, em parte porque eles não têm como alvo apenas as células do
câncer. Por exemplo, o alvo dos tratamentos de quimioterapia são células que
estão se dividindo rápido demais. Mas algumas células suas, como as do
revestimento do estômago, devem se dividir rapidamente. É como reduzir a
maldade em toda a cidade eliminando todo mundo que tem bigode preto e
longo. Claro, você está se livrando principalmente dos vilões, mas também está
matando aquele hipster simpático que faz o melhor café da cidade. É um negócio
que vale a pena? Talvez. Mas não uma experiência agradável.
Para derrotar o câncer, você precisa descobrir o tratamento certo logo no início
e, assim, não dar tempo ao câncer para que ele tenha muitas mutações. Isso pode
significar fazer exames de sangue anuais para a detecção precoce do câncer e
determinar as mutações que ele carrega. Isso é importante, porque assim é
possível escolher o tratamento certo. Escolher o tratamento errado não é apenas
doloroso; é perigoso. É preferível saber quais são todas as mutações relevantes
para poder fazer o coquetel de medicamentos certo para tratá-las.
TRATAMENTO
Um dos motivos pelos quais as células cancerígenas são tão perigosas é que elas
escapam do seu sistema imunológico. Seria mais ou menos como se houvesse
robôs assassinos à solta sem nenhuma consciência, mas com a habilidade de
imitar humanos. E se pudéssemos treinar a polícia para reconhecer essas
criaturas? Tipo, ei, aquele cara que fica dizendo “afirmativo, humano” e trabalha
como lobista — talvez devêssemos ficar de olho nele.
Da mesma forma, e se pudéssemos ensinar seu sistema imunológico a mirar e
matar células de câncer furtivas?
Funciona assim: você pega um pouco de sangue do seu paciente e encontra ali
células imunológicas chamadas células T. As células T que nos interessam são de
um tipo que reconhece estruturas sobre a superfície de células, chamadas
antígenos. Observando que tipo de antígeno a célula tem, uma célula T decide se
ela precisa morrer.
Se soubermos quais antígenos suas células de câncer têm, poderemos ensinar
suas células T a atacá-los.
Por que as células T? Deixemos que a dra. Marcela Maus, da Harvard Medical
School e do Massachusetts General Hospital, explique: “Há duas coisas que
tornam as células T muito especiais em se tratando de imunoterapia (...) Elas
têm a capacidade de matar outras células e têm memória. São células de vida
muito longa. E depois que viram uma coisa pela primeira vez, elas a reconhecem
rápido na segunda e a eliminam mais rápido ainda.”
Uma modificação genética especialmente bem-sucedida foi ensinar células T a
ir atrás de uma molécula conhecida como CD19, encontrada num tipo de
glóbulo branco chamado célula B. A leucemia e o linfoma com frequência matam
por causa da superprodução desses glóbulos brancos.
Um problema dessa abordagem é que as células T com frequência acabam
matando todas as células B, incluindo as que não são cancerosas. As células B
também fazem parte do sistema imunológico, então a morte de todas as células B
de uma pessoa pode deixá-la imunocomprometida por um período. Não é a
melhor coisa do mundo, mas, em geral, combater uma infecção é preferível a
combater um câncer sanguíneo.
Mas e quando matar todas as células de um tipo potencial não é uma opção
para determinado tumor? Derrotar um tumor cerebral matando todas as células
cerebrais é, em alguma medida, uma vitória pírrica.
A dra. Maus tem uma abordagem mais sutil. Ela faz as células T atacarem um
antígeno que atende por um nome encantador: variante III do receptor do fator
de crescimento epidérmico. Passaremos a chamá-lo pelo fácil acrônimo
EGFRvIII. Nenhuma célula cerebral normal tem EGFRvIII, mas algumas
células tumorais têm. Portanto, se você for “sortudo” o bastante para ter um
tumor com esse receptor específico, as células T poderão ser programadas para
encontrá-lo e matá-lo em particular.
A pesquisa da dra. Maus está em fase inicial, mas há esperança de que no
futuro a imunoterapia prove ser um bom método para atacar precisamente
muitos tipos de tumores sólidos.
MONITORAMENTO
Se o tratamento funciona, o câncer entra em remissão. Mas, a essa altura, ainda
assim é necessário ser monitorado pelo resto da vida. Na verdade, ser “curado” de
câncer é um indicador muito bom de risco de câncer no futuro. Técnicas de
medicina de precisão oferecem maneiras de fazer um trabalho de monitoramento
melhor nesses pacientes.
Por exemplo, se o câncer do paciente está em remissão, ainda podemos vigiar o
ctDNA para garantir que ele não esteja retornando de forma sutil. Temos
também como analisar de maneira contínua o genótipo desse ctDNA para vigiar
mutações ou uma mudança na prevalência de certo tipo. Se a assinatura do
ctDNA começar de repente a indicar tipos mais agressivos de câncer, isso
mudaria a abordagem médica mais desejável.
Essa nova tecnologia está melhorando depressa, e agora encontramos ctDNA
em fezes, urina e outros fluidos. Talvez consigamos em breve fazer um trabalho
muito melhor de monitorar você em relação ao câncer, e poderemos fazer isso
cutucando o seu cocô, e não o seu corpo.
O metaboloma
Nas seções anteriores, grande parte do que falamos foi sobre câncer e
problemas genéticos. É porque essas doenças estão entre as mais difíceis de
combater, e só agora estamos começando a ter vitórias significativas. Mas as
técnicas de medicina de precisão devem ser aplicadas a praticamente qualquer
coisa.
Por exemplo, o estresse e a hipertensão podem causar uma doença chamada
hipertrofia cardíaca, que é um perigoso espessamento dos músculos do coração.
Essa condição traz riscos como fadiga, dor de cabeça e morte repentina.
Considerando que os músculos do coração são feitos de proteína, talvez não seja
nenhuma surpresa haver uma assinatura de microRNA para a hipertrofia
cardíaca. De fato, existem inúmeras assinaturas de MicroRNA para várias
modalidades dessa doença. O exame do microRNA no sangue pode nos dar uma
maneira não invasiva de determinar com exatidão o tipo de hipertrofia cardíaca
que você está enfrentando.
Em outras palavras, talvez sejamos capazes de prever que seu coração vai falhar.
Ao levar em conta que a doença cardíaca é o assassino número um no mundo,
ficar de olho seria bem-vindo.
Essa capacidade de monitorar em profundidade substâncias químicas
transportadas pelo sangue também pode ser útil para pacientes que estão fazendo
tratamentos perigosos. Vamos supor que tenhamos um paciente com um
histórico de doença cardíaca e que precisa de um regime de quimioterapia contra
um câncer. Há um risco elevado de insuficiência cardíaca, e quando o paciente
estiver tendo um ataque cardíaco poderá ser tarde demais. Com uma análise do
microRNA, você monitoraria os efeitos da quimioterapia sobre os músculos
cardíacos mais ou menos em tempo real e depois tomaria decisões de acordo com
isso.
Outros estudos recentes mostraram que existe uma assinatura de microRNA
para derrame cerebral. Há também assinaturas de microRNA que revelam como
está o cérebro de um paciente que se recupera de um derrame.
Biomarcadores moleculares nos trazem informações sobre outras doenças,
como as doenças de Crohn, Alzheimer e até que tipo de gripe a pessoa pode ter.
Na verdade, se você for ao Google Scholar e digitar “perfil de microRNA”,
encontrará um grande número de estudos publicados nos últimos anos que
mostram haver assinaturas para praticamente todas as doenças, de câncer de
próstata a depressão. E não só podemos detectar muitas doenças como dizer, com
frequência, quais delas são mais prováveis.
Alguns pesquisadores querem saber não apenas o quadro molecular ou o
quadro clínico, mas também o comportamental. Basicamente, eles querem o tipo
de informação que um stalker bizarro saberia sobre você — a que canais de TV
você está assistindo, que sites você acessa na internet. Essas informações nos
dariam uma pista sobre se você está sofrendo ou não de alguns tipos de doença.
Por exemplo, o dr. Andrew Reece, de Harvard, e o dr. Christopher Danforth, da
Universidade de Vermont, constataram que poderiam prever se um indivíduo
estava deprimido com base na cor e no brilho das fotos que ele postava no
Instagram. As fotos postadas no Instagram por usuários deprimidos tendiam a
ter mais azuis e cinza, e geralmente eram mais escuras do que as fotos postadas
por usuários sem depressão. Acrescentar essas informações de larga escala ao
nosso conjunto de biomarcadores mais sutis pode resultar em categorização e
tratamento melhores de transtornos psiquiátricos.
Pode ser até que esse tipo de monitoramento de atividade (quando feito em
grandes grupos de pessoas) encontre novos e surpreendentes padrões
correlacionados a distúrbios mentais. Talvez você ache que tem ansiedade por ser
desajeitado, mas na verdade é porque está verificando a todo instante como seus
amigos estão se portando no Facebook.
É um pouco mais fácil diagnosticar uma obsessão por redes sociais do que uma
pequena alteração num pedacinho específico do código genético, mas não
necessariamente você sabe dessa informação para compartilhar com o médico.
Indivíduos e grupos podem ter todo tipo de comportamento cuja importância
clínica não tenha sido detectada. À medida que a computação vestível se torna
mais popular, pode ser que você seja capaz de apresentar um quadro mais
completo (e mais honesto) a seu médico. Imagine um futuro glorioso em que
você vai ao dentista e mantém uma conversa simpática com ele até o computador
do seu relógio denunciar a verdade sobre a frequência com que você usa o fio
dental.
Está bem, temos aqui alguns problemas de privacidade. No entanto, é possível
que ter um quadro preciso sobre você — desde o que está lendo e quanto se
exercita até algumas moléculas em sua urina — seja a maneira através da qual um
dia detectaremos os problemas de saúde que você tem e preveremos os que você
pode adquirir.
Preocupações
Um grande problema é e continuará sendo o custo. O ivacaftor, aquele
tratamento para fibrose cística que mencionamos anteriormente, só será usado
por alguns milhares de pessoas nos Estados Unidos. Provavelmente não se terá
nenhuma economia de escala, porque esse tratamento custa cerca de 300 mil
dólares por ano. A não ser que alcancemos os métodos baratos e extremamente
generalizados de preparação de medicamentos, será difícil reduzir o custo de um
produto com tão poucos consumidores.
Outra preocupação é a de como todos esses dados afetarão a psicologia
humana. Sabe aquele seu tio hipocondríaco esquisito? Vamos supor que ele agora
tenha uma quantidade de dados enciclopédica sobre o próprio corpo e tenha
provas de que está sofrendo em 47 indicadores. Sim. Imagine que agora aquela
conversa inconveniente de Natal é baseada em dados.
E depois tem a privacidade. Para saber mais sobre esse problema, conversamos
com a dra. Kirstin Matthews e o dr. Daniel Wagner, da Rice University. A gente
gosta deles. Eles tentam ensinar ética a jovens de 22 anos, o que mostra que têm
senso de humor.
De acordo com a dra. Matthews, “para que a medicina de precisão funcione e
seja de fato útil, é preciso conectar sua genética com seus registros, ou seja, tudo o
que aconteceu com você durante toda a sua vida, sejam lesões, ambientes ou
coisas que aconteceram por causa dos antecedentes genéticos (...) Depois que isso
acontece já não há mais nenhum anonimato”.
Então agora funcionários ou empresas que vendem plano de saúde podem
descobrir quem você é e descobrir se é provável ou não que você sofra de um
distúrbio mental ou tenha uma doença debilitante. Mesmo que esses grupos não
tenham acesso a informações sobre saúde, eles seriam capazes de ligar alguns
pontos sobre sua saúde mental simplesmente analisando sua presença nas redes
sociais. O mesmo grupo que conseguiu ver depressão em sua seleção de fotos no
Instagram também detectou depressão ou transtorno do estresse pós-traumático
analisando postagens no Twitter. Essa análise previu resultados clínicos meses
antes dos diagnósticos oficiais. Seu comportamento público pode revelar
informações privadas sobre sua saúde.
Conceitos como seguro de vida e plano de saúde só funcionam porque é difícil
saber de antemão quem adoecerá ou morrerá e em que momento. Talvez você
não pense sobre isso com frequência, mas o seguro é realmente uma ferramenta
matemática. Se mil cônjuges têm seguro de vida, a cada ano alguns morrerão
inesperadamente. As pessoas que perdem seus cônjuges cedo recebem mais
dinheiro do que gastam em seguro. Aquelas cujos cônjuges vivem até uma idade
avançada pagam mais do que recebem, mas conseguem manter seus cônjuges por
mais tempo, o que (espera-se) compensa a perda de dinheiro. Basicamente, os
que têm sorte sustentam os que não têm.
Conforme a medicina se torna cada vez mais personalizada, esse sistema se
torna cada vez menos sustentável. Talvez chegue um tempo em que todas as
pessoas com seguro terão que ser genotipadas. As com genótipo favorável
pagarão menos pelo seguro, enquanto as que tiverem genótipo desfavorável
pagarão mais. Os que têm sorte terão mais sorte e os que têm azar terão mais
azar.
Para reduzir esse risco, o Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei contra
Discriminação Baseada em Informação Genética, de 2008, que tornou esse tipo
de discriminação ilegal. Os empregadores não podem demitir o funcionário por
ele ter uma predisposição genética para algum problema de saúde. Nem a
seguradora pode negar uma cobertura por esse motivo. Mas todos nós vamos ter
que lidar com o fato de viver numa sociedade com extremo conhecimento
médico. “Não se trata de proteger os dados”, diz o dr. Wagner, “mas de proteger
as pessoas das implicações dos dados”. Por exemplo, se você tiver uma
predisposição genética à agressão, será que há empregos para os quais não deveria
ter permissão? E as pessoas à sua volta têm o direito de saber?
92. E outros pacientes recebem diagnóstico de mononucleose quando na verdade têm outra coisa. Soubemos
do caso de uma pessoa que recebeu várias vezes o diagnóstico de mononucleose durante um período de
quatro meses até descobrir que tinha sífilis secundária. Ops!
93. Ok, é bem mais complexo do que achávamos que fosse até mesmo cinquenta anos atrás. Mas, com poder
tecnológico e pesquisadores inteligentes, deveremos obter um mapa cada vez melhor do panorama das
doenças humanas e de como abordá-lo.
94. Esse sufixo é de certa forma útil, embora com frequência seja usado com exagero, porque ser um “-
omicista” soa bem. O dr. Jonathan Eisen, da Universidade da Califórnia em Davis, mantém até uma seção
em seu site na internet, The Tree of Life, para “ômicas ruins”, como nutrimetabonoma, fermentoma e (para
aqueles com tendência mística) conscientoma.
95. O primeiro está errado sobre indivíduos, o segundo está errado sobre grupos.
96. Na verdade, a palavra “leucemia” deriva de palavras gregas que significam “sangue branco”.
97. A metástase acontece quando pedacinhos do câncer se desprendem do tumor original e dão início a
tumores em outros lugares.
98. Há uma nuance aqui. Tecnicamente, você quer detectar o câncer o mais depressa possível, mas também
quer saber o nível de agressão do câncer no futuro. Por exemplo, alguns cânceres de próstata crescem tão
lentamente que é provável que a pessoa morra de causas naturais antes de o câncer se tornar um problema.
Se você sabe que o câncer não vai matá-lo no tempo de vida que lhe resta, pode ser que escolha evitar o
tratamento desagradável, que oferece risco de impotência e incontinência. Alguns médicos temem que todos
esses dados levem a um tratamento excessivo.
99. Não mastigue vidro.
100. Não estava.
101. Note que isso significa que a aquisição dos seus dados genômicos pode revelar verdades desagradáveis.
Por exemplo, você pode descobrir que seu pai biológico não é o homem que o criou.
102. O Personal Genome Project agora é parte da Open Humans Foundation. No OpenHumans.org você
pode obter muitos dados (por exemplo, dados de movimento por meio do FitBit e dados de microbioma
pelo μBiome) e depois compartilhá-los com pesquisadores no site.
10.
Bioimpressão
Por que parar na sétima margarita se você pode simplesmente
imprimir um fígado novo?
Você pega um tubo cheio de biotinta e aplica pressão para expulsá-la por um
bico. Um braço controlado por computador move o bico para o lugar certo no
momento apropriado enquanto você constrói suas camadas de biotinta. É um
bom caminho a seguir porque as células podem ser delicadas e você as espreme
de maneira mais ou menos suave. No entanto, qualquer tecnologia que usa a
extrusão gera problemas de controle de fluxo e de obstrução da cabeça de
impressão. Como receptor de um coração, você provavelmente não ia querer ver
um técnico de medicina gritando “Mas CANCELEI o pedido de impressão, seu
desgraçado!”, enquanto puxa um pedaço de tecido preso.
Outro problema é a velocidade. São células sendo impressas, e elas tendem a
estourar quando são apertadas com muita força. Isso limita a quantidade de
pressão que se pode aplicar e, por conseguinte, a rapidez do processo. Ir devagar é
um problema, porque as células não vivem para sempre e correm o risco de se
deslocar depois de colocadas no lugar.
Podemos tentar usar menos células e mais grude estrutural na biotinta, mas
isso significa que aquilo que estiver sendo impresso ficará mais próximo de uma
gelatina de carne do que, bem, de carne.
Considere isso da seguinte maneira: você quer entregar tomates ao seu vizinho
em alta velocidade, mas seu único método é dispará-los através de um cano. Você
põe os tomates em suspenso em uma gelatina para protegê-los, mas se atirar com
muita força os tomates em gelatina, eles vão estourar quando baterem na parede
do vizinho. Na verdade, só para fazê-los voar a essa velocidade você teria que
aumentar a pressão dentro do tubo, o que provavelmente já esmagaria alguns
tomates mais fracos.
O mesmo acontece com as células em gel. Para sistemas como esse, geralmente
há um conflito entre a densidade das células no gel e a velocidade em que a
biotinta pode ser expulsa.
Então por que não usamos lasers?
A LIFT, acrônimo em inglês para “transferência induzida por laser”, funciona
mais ou menos como aquele fogo causado por óleo quente em frigideira. Na
verdade, não. Sabe quando dizem que não se deve jogar água em uma panela de
óleo pegando fogo?
Trata-se basicamente de uma poça de óleo com a camada de cima queimando.
Quando você joga uma xícara de água ali dentro, duas coisas acontecem:
primeiro, como o óleo é menos denso do que a água, as chamas sobem em vez de
descerem, então ele não apaga. Segundo, a água ferve a 100ºC, enquanto o óleo
ferve a mais ou menos 315ºC. Portanto, é quase como se fosse um balão cujo
revestimento é feito de óleo em chamas e cujo interior é água expandindo com
extrema rapidez. O resultado é uma enorme explosão, com partículas de óleo em
chamas disparando em todas as direções, queimando sua casa e arruinando a
panqueca de sábado.
A LIFT é assim, mas em uma pequena escala e altamente controlada. Temos
um prato transparente sobre o qual usamos a biotinta. Disparamos, então, um
laser por trás dele. Isso faz uma pequena bolha de vapor estourar na biotinta.
Como resultado, um pontinho de biotinta é ejetado e aterrissa em um prato
receptor, deixando uma lacuna na biotinta pintada.
Disparando laser dessa maneira repetidamente, podemos desenhar padrões
complexos de pontos de biotinta. Se acrescentarmos cada vez mais camadas
desses pontos, construiremos um formato em 3D, assim como no método da
pistola de confeiteiro. Pontos de biotinta talvez não pareçam o método ideal, mas
se você os fizer pequenos o bastante e em quantidade suficiente, vai ser como se
fossem pixels em uma tela. Todos os pedacinhos se juntam para fazer um grande
e contínuo todo.
Retornando à nossa analogia com tomate e gelatina, seria como se os tomates
esmagados estivessem pendurados em uma superfície plana e você aquecesse
partes da superfície para disparar gosma de tomate para baixo de forma explosiva.
Desde que o método de disparo não estoure os tomates, você pode enviá-los
praticamente com a rapidez que quiser. Ou pelo menos com uma rapidez que o
permita acrescentar gelatina de reposição à superfície onde eles estão pendurados.
Pode parecer uma maneira excessivamente complexa de fazer coisas, mas tem
muitas virtudes: não há bico para ficar entupido, os resultados são muito precisos
e é possível regulá-los para exercer a pressão certa de modo a não estourar muitas
células. Com isso, dá para imprimir tão rápido quanto seu laser conseguir se
mover sobre a superfície.
Agora que você se familiarizou com os métodos que usam biotinta, podemos
falar um pouco mais sobre de que é feita essa substância. Há muitos acertos
necessários para tornar a sua biotinta pronta para imprimir na maioria dos
sistemas. Para entender por quê, imagine que você está tentando fazer cookies
impressos em 3D.106 Mesmo que tenha equipamento para imprimir em 3D uma
gororoba de cookie, não dá para simplesmente pegar uma massa de cookie
comprada em uma loja e enfiá-la na pistola de confeiteiro da sua impressora 3D.
A massa corre o risco de quebrar, então você terá que adicionar uma substância
química emulsificante. Pedaços poderão ficar presos, e isso vai obrigá-lo a
remover gotas de chocolate, nozes e passas. Talvez a massa não fique homogênea,
o que resultaria em cookies feios, então é preciso batê-la como um louco antes de
colocá-la ali dentro. Quando terminar de fazer isso, você conseguirá uma massa
de cookie que pode ser espremida perfeitamente, mas com aparência e sabor
horríveis. O principal objetivo de imprimir um cookie é obter um cookie gostoso.
Mas acrescentando todas essas outras restrições, fica muito, muito mais difícil
alcançar esse objetivo.
De maneira semelhante, adicionar coisas à biotinta para fazê-la imprimir bem
pode reduzir a capacidade da impressora de formar um órgão perfeito.
Provavelmente você precisará que ela se encontre em um bom estado gelatinoso
para que seja bem expelida e proteja as células, então você acrescenta alginato.
Talvez você queira que a biotinta não evapore tão depressa, então acrescenta
glicerina. Ou prefira que ela tenha padrões em espiral totalmente doces, então
acrescenta sachê de suco em pó.
Seja lá o que for adicionado, o problema é que nenhuma dessas coisas existe
em um fígado real. Portanto, os aditivos não podem ser tóxicos e precisam ir
embora depois de desempenharem a função à qual foram destinados. E, quando
forem eliminados, eles têm que deixar para trás o tipo certo de estrutura.
Alguns grupos descobriram uma maneira de bioimprimir sem uma parte
dessas substâncias auxiliares da biotinta, contando, em vez disso, com a
capacidade da célula de produzir por conta própria muitos desses compostos
depois de ser impressa. Porém, aditivos como o alginato ainda são muito comuns.
Uma biotinta não é suficiente, mesmo supondo que você tenha uma perfeita.
Nem de longe é o bastante. Determinado órgão pode ter dez ou mais tipos de
célula, cada um deles mais diferenciado dependendo do propósito a que serve.
Será necessário ter tintas diferentes. Usar combinações diferentes nas tintas.
Fazer tratamentos diferentes a serem aplicados à biotinta depois que ela for
disparada. Por exemplo, e se você quiser acrescentar uma substância química
específica, ou atingi-la com radiação ultravioleta, ou aquecê-la levemente? Ou se
quiser tudo isso em ordens e intensidades variadas? Para aumentar a dor de
cabeça, a impressão é feita sobre uma tela molhada, e as biotintas podem começar
a vazar.
Como se já não fosse suficiente, um sério problema nesse campo é o software.
A impressão em 3D teve início nos anos 1980. O tipo de arquivo em 3D mais
comum é o STL, originalmente criado para lidar apenas com superfícies de
objetos em 3D. No caso do seu fígado novo, talvez seja importante para você que
haja coisas dentro dele. Cientistas de bioimpressão criaram formas de contornar
isso, bem como novos tipos de arquivo, mas ainda não há uma estrutura eficiente
e consensual. Enquanto não houver, estamos presos nos anos 1980.
Está bem, então a bioimpressão será realmente difícil. Mas a boa notícia é que
isso parece ser um problema solucionável. Cientistas já estão fazendo progressos,
e à medida que computadores, impressoras 3D e o nosso conhecimento sobre
órgãos avançam, nós nos aproximamos cada vez mais de fazê-la funcionar.
Preocupações
Achamos importante tentar identificar os perigos das tecnologias que
descrevemos, mas, francamente, é difícil encontrar problemas éticos em órgãos
sintéticos e em sua capacidade de tirar milhares de pessoas das listas de espera
por órgãos. Se há preocupações, elas tendem a ser variantes específicas de
problemas que concernem a toda a biotecnologia.
Por exemplo, é provável que os ricos venham a ter acesso privilegiado a mais e
melhores órgãos, sobretudo no começo. Mas, graças ao turismo médico, isso já
acontece. No momento, a máquina que imprime o órgão é o corpo de uma pessoa
pobre.
Como a lei de patentes funcionaria é outra questão importante, mas não
exclusiva da bioimpressão. Vamos supor que o Apple iFígado seja bem melhor do
que o Microsoft X-Fígado. Por quanto tempo a Apple deveria ter o direito de
manter seu produto patenteado?
As variadas questões éticas das células-tronco podem surgir da impressão de
órgãos, mas pelo menos até agora não parecem ser um grande dilema moral. A
maioria das preocupações éticas com as células-tronco está associada ao uso de
células-tronco embrionárias. Mas as células-tronco com maior probabilidade de
serem usadas em bioimpressoras são as pluripotentes, que são como as células
embrionárias mas derivadas de pacientes.
Algumas preocupações podem ser exclusivas da bioimpressão, mas não nos
parecem tão graves. Por exemplo, uma preocupação é a de que órgãos impressos
possam adquirir bactérias durante o processo de impressão. Teoricamente, essas
bactérias poderiam ser de tipos que jamais chegariam, digamos, ao fígado.
Portanto é possível, embora talvez improvável, que órgãos impressos em 3D
introduzam novas doenças no corpo. Mas, assim como uma técnica cirúrgica
asséptica deve manter as bactérias fora do corpo durante a operação, as técnicas
assépticas em um laboratório de bioimpressão devem manter as bactérias fora dos
órgãos impressos.
Há também uma preocupação social: o que economistas chamam de “risco
moral”. A ideia é que, se você põe pessoas em situações em que elas podem se
comportar mal, provavelmente você observará maus comportamentos. Um
exemplo, que já virou clássico, é o de um banqueiro que pode receber um resgate
financeiro se as coisas forem mal para seu banco, então ele faz empréstimos
estúpidos.
Da mesma forma, se não estiver preocupado com nenhum órgão seu, você
pode começar a adotar comportamentos mais arriscados em relação a sexo,
drogas e cheesebúrgueres. Talvez em um futuro distante isso venha a ser um
problema, mas não nos parece provável. A cirurgia de fígado não é exatamente
uma diversão, tampouco uma pechincha. E o processo de perceber que você
precisa de um transplante de fígado geralmente também não é agradável.
Resumindo: se os banqueiros tiverem que abrir cavidades em seus corpos para
receber um resgate financeiro, pode ser que eles pensem duas vezes antes de fazer
outro empréstimo arriscado. Sua vez de jogar, Congresso.
Historicamente, quais mercados são mais movidos por dinheiro e quais são
aqueles mais movidos por combinação é uma questão sociológica, com diferentes
culturas solucionando isso à sua própria maneira. O dr. Alvin Roth (ganhador do
Prêmio Nobel e autor de Como funcionam os mercados), de Stanford, invoca o
conceito de “repugnância” para explicar por que muitos mercados são movidos
pela combinação.
Por razões culturais, e talvez biológicas, muitas transações são consideradas,
hummm, repugnantes quando dinheiro entra em jogo. Adotar uma criança é bom.
Comprar uma criança é estranho. Apaixonar-se é bom. Pagar por amor é
estranho (na história moderna). Outras questões estão entre uma coisa e outra:
pagar por sexo é aceitável em algumas culturas e abominável em outras. Em
certas culturas, assistência médica é algo que se compra, e em outras é um direito
do cidadão.
Na maioria das culturas, trocar dinheiro por um órgão é repugnante. Doar um
órgão é sinal de grandeza. Negociar um órgão se insere entre uma coisa e outra.
Torna-se útil, se seu objetivo é tirar pessoas de listas de espera.
O dr. Roth estuda mercados de matching, e um de seus grandes sucessos tem
sido o planejamento de mercados avançados de permuta de órgãos.
Para entender como funcionam os mercados de permuta de órgãos, imagine
como funcionariam as transações se não existisse dinheiro, mas houvesse um site
que combinasse pessoas que querem coisas. Vamos supor que você tenha um
cesto de milho e queira negociá-lo por uma sessão de ortodontia. Se houver um
ortodontista que queira milho, você está feito.
Mas, se não houver, uma opção é introduzir uma terceira pessoa. Vamos
chamá-la de Alice. Você tem algo que Alice quer, e Alice tem algo que o
ortodontista quer: você dá o milho para Alice. Alice dá luvas cirúrgicas ao
ortodontista. O ortodontista lhe dá uma consulta.
Esse circuito de transações é chamado de “ciclo”. Os ciclos não parecem bons
só porque são bonitos. Em um circuito completo, cada pessoa deu algo e recebeu
algo. Em outras palavras, supondo que cada transação tenha sido voluntária,
ninguém se ferrou.
Isso talvez lhe soe como uma armadilha: cada vez que quiser comprar alguma
coisa, você precisa encontrar um ciclo de transações. Você basicamente está
dependendo da capacidade do computador para descobrir uma coincidência
bizarra sempre que quiser algo. Mas se houver participantes o bastante no
sistema e alta capacidade computacional, teremos “coincidências” mais do que
suficientes para fazer qualquer transação que você queira.
Agora imagine que o assunto seja órgãos e você precise de um rim. Você tem
um irmão que quer lhe dar um rim, mas calha de vocês dois não serem
compatíveis por causa do tipo sanguíneo. Nesse meio-tempo, dois outros irmãos
em outro lugar estão na mesma situação. E, em uma dupla coincidência, cada um
que precisa de um rim é compatível com o irmão do outro que está disposto a
doar!
Você concorda com a permuta. Normalmente, um estranho não desistiria
simplesmente de um órgão. Mas nesse caso ele está fazendo isso para obter um
rim para o irmão. Todo mundo sai ganhando.
Bem, não é uma situação muito agradável, mas pelo menos Barbie e Bill não
estão piores do que no início do processo. Bill ainda tem dois rins, então eles
podem se empenhar para ingressar em outro ciclo de modo a conseguir um rim
para Barbie. Alice continua casada com um imbecil egoísta, mas pelo menos ela
tem um rim.
Na prática real, voltar atrás é mais um problema teórico do que qualquer outra
coisa. De acordo com o dr. Roth, o rompimento de ligações acontece apenas 2%
das vezes e “os 2% incluem não apenas pessoas que se acovardam e mudam de
ideia, mas também aquelas que, quando comparecem, não podem doar porque
algo acontece”.
O bom é que, no momento em que temos uma Sally Santinha, podemos tentar
montar uma cadeia de doações superlonga, em que cada par receptor concorda
em doar a outro par.
A princípio, a cadeia pode se estender até alguém trapacear ou algo dar errado.
Assim, algumas pessoas obtêm rins, e elas não precisam passar por operações
simultâneas. E, da perspectiva de um doador altruísta, você não está apenas
doando um órgão: está iniciando toda uma cadeia de permutas de rins! A
extensão média de uma cadeia nos Estados Unidos é de cinco pares, mas cadeias
com mais de setenta já foram criadas. Portanto, uma Sally Santinha pode mudar
muitas vidas.
Há, no entanto, algumas limitações. Embora pessoas necessitem de muitos
tipos de órgão, os mercados de combinação lidam quase que exclusivamente com
rins. Isso porque as cirurgias para permuta de rins têm risco razoavelmente baixo.
O transplante de fígado, por exemplo, é muito mais perigoso do que o de rim.
De acordo com o dr. Roth, algo dá seriamente errado em uma a cada cem
doações de fígado, ao passo que em doações de rim essa taxa vai para uma a cada
cinco mil. Portanto, ainda que os transplantes de fígado sejam possíveis e de fato
aconteçam, os de rim são muito mais comuns.
Alguns leitores podem estar se perguntando por que não fazemos logo um
mercado de órgãos regido pelo dinheiro. Estejam certos de que todos os outros
leitores estão mentalmente olhando de cara feia para vocês agora. Na verdade,
eles acham sua ideia repugnante.
Entretanto, a noção de mercados para venda de órgãos é bem estudada, e de
fato isso existe legalmente no Irã. Existe também ilegalmente em inúmeros
lugares. Não queremos nos aprofundar aqui, portanto, em vez disso, vamos
propor um experimento de raciocínio baseado em algumas ideias do dr. Roth:
No momento, se você tira alguém da hemodiálise por meio de um transplante
de rim, a economia em assistência médica (com frequência oferecida por um
serviço público) é de aproximadamente 1,25 milhão de dólares. Isso significa que
uma pessoa poderia receber 1 milhão de dólares por um rim e o sistema ainda
faria uma enorme economia. E isso nem sequer leva em conta a imensa melhora
na qualidade de vida da pessoa que sai da hemodiálise.
Além disso, doadores poderiam receber um tratamento especial, como uma
posição mais elevada na lista se um dia precisarem de um novo rim. O dr. Roth
propõe até um tratamento social especial a esses doadores, como melhores
assentos em aviões ou um distintivo de honra que eles usariam, mais ou menos
como os veteranos de guerra são tratados hoje.
Agora, vamos supor que a transação também se torne menos repugnante por
ser feita de forma indireta. Ou seja, uma pessoa rica não pode simplesmente
apontar para uma pessoa pobre e dizer “me dá”. Os vendedores de órgãos seriam
tratados da mesma maneira que os doadores de órgãos altruístas, exceto por
receberem algum dinheiro e vantagens. Seus órgãos ainda seriam dados a pessoas
que precisassem mais, de acordo com os critérios usados em hospitais.
Em outras palavras, um mercado de órgãos não precisa ser como aquele nos
seus pesadelos. Poderia ser um sistema em que uma pessoa receberia muito
dinheiro, estima social e lugar garantido no topo da lista de doações — e ao
mesmo tempo salvando vidas e poupando o dinheiro de todos.
Talvez agora você esteja se sentindo um pouco desconfortável. Simplesmente
com uma pequena estruturação de mercado, e em virtude de uma grande
compensação em dinheiro, o sistema parece cada vez menos repugnante. Um
ponto importante que deve ser sempre considerado ao se pensar em mercados é
se um novo sistema, por mais desagradável que seja, é melhor ou pior do que o
sistema atual. Um mecanismo regulador para a troca legal de dinheiro por órgãos
poderia soar grotesco, mas será que é pior do que milhares de pessoas morrendo
enquanto estão em uma lista de espera?
Não temos uma resposta para o que é certo em relação a esses mercados. A
longo prazo, esperamos que órgãos sintéticos sejam viáveis e, em seguida, fiquem
baratos. A curto prazo, a sociedade terá que fazer o melhor para repartir os
recursos escassos da maneira mais ética e eficiente possível.
103. Por acaso, se você mora nos Estados Unidos, há uma política de doação de órgãos opt-in, o que significa
que sua configuração-padrão é a de que, se você morrer sem ter expressado a intenção de doar, seus órgãos
morrerão com você. Considerando que você não pode levá-los aonde quer que vá, incentivamos você a
expressar sua intenção, desde que isso não viole seus princípios éticos.
104. Isso, na verdade, é um dilema sério para os hospitais. Considerando a escassez da oferta de fígados,
alguns hospitais têm preocupações acerca de tratar pacientes com danos autoinfligidos no fígado. O
raciocínio tem duas partes: primeiro, os pacientes que danificaram o próprio corpo poderiam ser
considerados menos merecedores de ajuda do que aqueles que vieram por uma necessidade “honesta”.
Segundo, os pacientes alcoólatras podem ter uma probabilidade maior de danificar o novo órgão
transplantado e acabar voltando à lista. Como avaliar com exatidão esses problemas é difícil, mas muitos
hospitais têm uma regra de “seis meses de abstinência” para pacientes de transplante de fígado, tentando
eliminar os violadores.
105. Para nós, os desajeitados, talvez um original formato de conchinha na extremidade de um dos palitinhos
e um original conjunto de quatro dentinhos de garfo na extremidade do outro.
106. Isso já tem sido feito. Não tivemos o privilégio de experimentá-los, mas eles têm uma aparência
razoável.
107. Não havíamos pensado em como essa frase soaria estranha quando a fizemos.
108. Se isso já parece totalmente louco, por favor, não deixe de ler a nota bene deste capítulo.
109. Está bem, uns 150 gramas, mas mesmo assim.
11.
Interfaces cérebro-computador
Porque depois de quatro bilhões de anos de evolução você ainda
não consegue lembrar onde deixou as chaves
Ler o cérebro envolve descobrir os pensamentos que uma pessoa está tendo e
as ações que está realizando. Por exemplo: que palavras a pessoa está imaginando?
Como ela está se sentindo? Ela está pensando em mexer os pés? Está realmente
mexendo os pés? Esse é o aspecto mais bem estudado das interfaces cérebro-
computador, em parte porque é comparativamente fácil. É mais ou menos assim:
somos muito bons em observar o que um grupo de formigas faz em um
formigueiro (isto é, em ler o comportamento delas), mas para nós seria muito
difícil levar as formigas a fazer algo totalmente novo, como soletrar a palavra “OI”
(isto é, escrever o comportamento delas). Se quisermos ser capazes de mudar o
cérebro, descobrir como ele funciona é o primeiro passo.
Quando tentamos interagir com um cérebro, estamos de certa forma na
posição de cientistas trabalhando com um computador alienígena. Não temos
exatamente um cabo USB. Mesmo que tivéssemos, não há entrada para ele. E
mesmo que houvesse, não sabemos como as informações estão codificadas. Não
de maneira exata, pelo menos. Mas sabemos que o cérebro emite certos sinais e
que eles se correlacionam com o que a mente está fazendo.
Há dois tipos principais de sinal que nos interessam: o elétrico e o metabólico.
SINAIS ELÉTRICOS
Seu cérebro está cheio de um tipo de célula chamado neurônio. As pontas
desses neurônios tocam umas nas outras e, por conseguinte, eles são descritos
com frequência como se fossem a fiação do cérebro. Um dos modos principais
pelos quais os neurônios se comunicam é através de eletricidade. Eles são capazes
de armazenar uma pequena quantidade de carga, que podem depois descarregar
(ou seja, “disparar”) para enviar um sinal aos vizinhos. Uma porção de neurônios
disparando em certo padrão são os pensamentos. Quando você pensa Estou prestes
a ver um desenho de uma torta que dança, é porque um grupo específico de
neurônios está disparando em um padrão específico.
Para nossa conveniência, nós, humanos modernos, temos todo tipo de aparelho
para medir a atividade elétrica. Então, apontamos esses dispositivos para o
cérebro e tentamos descobrir o que você está pensando de acordo com o ruído
elétrico detectado.
SINAIS METABÓLICOS
Metabolismo é um daqueles termos que você tem certeza de que entende, mas
se atrapalharia com as palavras se tivesse que o definir. Na verdade, até na ciência
esse é um termo bem amplo. Mas basicamente significa que uma substância
química é alterada de alguma maneira útil. Por exemplo, a glicose é um açúcar
convertido em uma substância química chamada ATP, usada para acionar muitas
reações no seu corpo. Ou talvez você esteja familiarizado com o etanol, uma
substância química que pode ser metabolizada em más escolhas na vida.
Como resultam em mudanças químicas, os processos metabólicos deixam um
efeito que podemos detectar. Se dez caras entram em uma casa carregando
plantas de aparência curiosa e alguns equipamentos de hidropônica, e depois vão
embora de mãos vazias, você deduz que algo está sendo cultivado no porão. Da
mesma forma, no cérebro, quando vemos sangue oxigenado indo para uma região
e, depois, sangue desoxigenado saindo dali, podemos palpitar que aquela região
do cérebro está ativa para alguma coisa.
É claro que, mesmo que recebamos sinais cerebrais contundentes, ainda não
estamos exatamente lendo o cérebro. Posso pegar um livro em espanhol e
pronunciar as palavras, mas isso não faz de mim alguém que domina o idioma. Se
queremos ler o seu cérebro (e pôr esses sinais em uso), precisamos de uma
maneira de traduzir. Podemos fazer isso por correlação.
Por exemplo, vamos supor que certo grupo de neurônios acenda com sinais
elétricos toda vez que você vê uma torta dançante filosoficamente materialista.
Se isso acontece, podemos presumir com segurança que esses grupos de
neurônios têm a ver com a resolução da angústia existencial. E com tortas. De
maneira mais realista, se certos grupos de neurônios acendem sempre que você
mexe o braço direito, provavelmente estamos detectando a assinatura elétrica do
seu cérebro dizendo ao seu braço para se mexer. Esse tipo de informação é
especialmente útil para criar próteses. Também é possível detectar qualidades
mais sutis, como se você está calmo ou agitado, feliz ou triste e focado ou
disperso.
Agora, vamos explorar algumas formas através das quais já podemos ler o
cérebro. Como uma cortesia ao leitor suscetível, organizamos esta seção do
menos para o mais invasivo. Isto deve lhe dar a chance de, por assim dizer, chegar
à Terra do Cérebro.
Isso é ruim por dois motivos. Primeiro, para pesquisadores, confunde os dados,
espalhando-os através do tempo. Tipo, talvez depois de ver a torta dançante que
transcendeu a moral do rebanho, você também se lembre de uma torta que sua avó
fazia. Isso dá início a um sinal metabólico diferente enquanto o primeiro está
enfraquecendo, o que dificulta dizer qual é qual.
Segundo, para um usuário da interface cérebro-computador, isso é um atraso
gigantesco. Imagine que você está tentando fazer com que uma mão robótica
mova um frasco de queijo em spray na direção da sua boca. Um atraso que varie
de três a trinta segundos será um problema sério, a menos que você queira fazer
uma barba de queijo.
Está bem, então essas são todas as maneiras comuns e simpáticas de se ler o
cérebro. Mas e se usássemos uma abordagem mais direta?
Atualizando o cérebro
Será que podemos atualizar um cérebro? Quer dizer, seu cérebro tem alguns
problemas sérios. Lembra aquela coisa constrangedora que você fez no ensino
médio? Lembra? Por que você se lembra daquilo, mas não consegue recordar as
três leis da termodinâmica?111
Está bem, não chegamos ao ponto em que podemos aumentar seu QI, dar a
você uma memória melhor ou aprimorar sua capacidade de dizer não a mais um
martíni de maçã. Mas, conforme discutimos a seguir, pode ser que sejamos
capazes de mitigar problemas realmente sérios e amplificar coisas boas que seu
cérebro já faz bem. E talvez (talvez) possamos melhorar sua capacidade de
aprender novas habilidades.
Uma tecnologia para reparar esses problemas se chama estimulação cerebral
profunda. Essa técnica seria como uma versão muito mais direcionada da terapia
de choque elétrico. Em um sistema típico, um eletrodo é implantado
cirurgicamente no cérebro e conectado a uma bateria colocada sob a pele.
Basicamente, eles colocam uma varinha no seu cérebro, e ela contém um
eletrodo na ponta, acionado por uma bateria. Quando ativado, o eletrodo envia
uma dose de eletricidade de alta frequência para a área em torno dele. Para dar
um exemplo de sua provável utilidade, considere alguém que está prestes a ter
uma convulsão. Grosso modo, uma convulsão começa em uma pequena região do
cérebro e se move para fora daí, de uma forma que com frequência é comparada
ao surgimento de uma tempestade. Não se sabe muito bem por que isso acontece,
mas, com um pouco de eletricidade, o estimulador cerebral profundo parece
ajudar a deter a tempestade antes que ela possa aumentar e se tornar uma
convulsão completa.
Esse método de estimulação está razoavelmente bem estabelecido para vários
tratamentos, uma vez que o utilizamos há algum tempo. Conversamos com a dra.
Aysegul Gunduz, da Universidade da Flórida, que explicou sua experiência com
estimuladores cerebrais profundos da seguinte maneira: “Quando comecei a
trabalhar com estimulação cerebral profunda, percebi que, ah, meu Deus, estão de
fato implantando [estimuladores cerebrais profundos] e mandando essas pessoas
de volta para casa. Isso é realmente aprovado. O curioso é que ainda não
percebemos como a estimulação cerebral profunda melhora os sintomas dessas
doenças.”
É isso mesmo: a maior parte do que sabemos sobre como esse método de
varinha elétrica na cabeça funciona é por tentativa e erro. Talvez, caro leitor, sua
reação aqui seja: “O QUÊ, MEU DEUS? TENTATIVA E ERRO?!”
Bem, sim, tentativa e erro não é o método empírico ideal quando se trata de
enfiar um eletrodo no fundo do crânio de um paciente. Mas há um problema de
ética aqui.
A estimulação cerebral profunda não é algo que seu médico vai fazer quando
você chegar com um resfriado ao consultório dele. Geralmente é usada em
pessoas com problemas sérios (tais como convulsões quase constantes ou
depressão com tendências suicidas) que não respondem a tratamentos
convencionais. Para esses pacientes, os potenciais benefícios compensam o custo
potencial da estimulação cerebral profunda. No entanto, cérebros humanos não
vêm com manuais perfeitos, então aprendemos enquanto fazemos e, geralmente,
o conhecimento provém desses pacientes.
E ainda assim esse método parece ser útil para uma gama cada vez maior de
doenças. Por exemplo, a dra. Gunduz está tentando usar a estimulação cerebral
profunda para tratar o “congelamento de marcha”, uma incapacidade temporária
em pacientes de Parkinson, e para interromper e impedir tiques em pacientes
com síndrome de Tourette.
Pode soar um pouco esquisito, mas o procedimento hoje em dia é
razoavelmente comum e tem suas virtudes. Esse sistema simples parece ter uma
longevidade alta, durando décadas em pacientes.112 Além disso, quanto mais
usamos essa técnica, mais perto chegamos de entender por que ela funciona.
Outra virtude, pelo menos se comparada a medicamentos ou métodos
psiquiátricos, é que a estimulação tem efeito mais ou menos imediato após a
cirurgia. Isso não é pouca coisa para uma pessoa com condições cerebrais graves.
Também facilita, a princípio, saber se o procedimento funcionou mesmo, o que é
o tipo de coisa pelo qual você talvez se interesse em se tratando de choques
voluntários no cérebro.
Uma empresa chamada NeuroPace criou um dispositivo chamado Sistema
RNS, que usa implantes no estilo ECoG para monitorar o cérebro para a
chegada de convulsões. O dispositivo, tão pequeno que não dá para saber se um
paciente o está usando, emite pulsos direcionados quando a tempestade elétrica
da epilepsia começa.
O Sistema RNS não funciona para todo mundo e precisa de uma substituição
de bateria pelo menos a cada cinco anos, o que exige uma cirurgia no cérebro.
Além disso, diferentemente do estimulador cerebral profundo, com sua relativa
simplicidade, checagens de segurança por tela podem acionar o Sistema RNS.
Choques elétricos indesejados e repentinos no cérebro provavelmente pioram em
10% as verificações de segurança em aeroportos.
Outros pesquisadores estão tentando um método menos invasivo chamado
estimulação magnética transcranial. É, de certa forma, semelhante à estimulação
cerebral profunda, só que usa campos magnéticos fortes e (isso é legal) não exige
que seja feito um buraco na cabeça da pessoa. Até agora, o método se mostrou
útil para alívio de dor e, possivelmente, para depressão. Assim como a
estimulação cerebral profunda, esse processo ainda é uma ferramenta um pouco
brusca. Cientistas identificam uma área associada ao problema e em seguida
lançam um campo magnético ali. Até agora, parece trazer alguns resultados
benéficos, mas os estudos continuam.
Mas digamos que você não queira solucionar um problema — sua vontade é
tornar um cérebro saudável melhor. Isso é fácil. Faça exercícios, alimente-se bem,
reduza o estresse e estude mais.
Não, é brincadeira. Será que podemos melhorar seu cérebro preguiçoso com
computadores? A resposta é talvez.
Entramos em contato com o dr. Eric Leuthardt, da Universidade de
Washington. Ele é neurocirurgião e neurocientista porque, você sabe, não dá para
investir toda a sua energia em uma área só.
Ele acha que as tecnologias para melhorar o cérebro seguirão uma trajetória
semelhante à da cirurgia plástica.
Antes de mais nada, nem tão cedo vamos fazer um upload de Shakespeare,
cálculo ou kung fu para o seu cérebro. Acontece que esse tipo de coisa é
incrivelmente difícil, em grande parte porque a memória não funciona como
achamos que funciona. Resumindo: quando o indivíduo experimenta alguma
coisa, um padrão é criado em seus neurônios. Quando ele se lembra dessa coisa,
há, por assim dizer, um replay desse padrão. Se seu cérebro tivesse sido projetado
por um humano para, convenientemente, carregar um arquivo de kung fu, todas
as suas lembranças ficariam armazenadas em uma parte específica do cérebro, de
preferência com porta USB. Para a nossa inconveniência, a natureza não
desenvolveu seu crânio para receber periféricos.
Ah, e a outra coisa é que você já pode escrever para o cérebro, seu preguiçoso.
Na verdade, você acabou de escrever em seu cérebro “ei, este livro acabou de me
chamar de preguiçoso”. Ouvir, cheirar, ver, tocar — todos os sentidos são
maneiras de escrever para o cérebro.
Bem, isso é a realidade para a maioria das pessoas. Para algumas delas (e para
muita gente mais velha) esses mecanismos de escrita enguiçam. Não somos
especialistas em escrita de cérebro, mas sabemos como usar máquinas para
reparar algumas fiações antigas. Existem duas tecnologias importantes que
podem pelo menos consertar visões e audições enguiçadas.
É possível restaurar a visão usando os chamados fosfenos, lampejos do que
parece ser uma luz e os quais você percebe mesmo que luz alguma tenha entrado
em seus olhos. Isso acontece com frequência quando as pessoas sofrem uma
pressão repentina sobre seus globos oculares. Por exemplo, um dos autores deste
livro, que não será identificado, gosta de fazer esse negócio de chegar por trás de
sua esposa, Kelly, e (delicadamente) pressionar os olhos dela, gritando: “Fosfenos!
Fosfenos!” Ela com certeza adora a dança repentina de luz percebida diante dos
olhos.
Acontece que você pode obter o mesmo efeito com a eletricidade. Então
cientistas descobriram como implantar um dispositivo na órbita do olho de um
cego que, em essência, cria um conjunto de pixels usando fosfenos. Não é
exatamente ver, mas é bom o suficiente para que a pessoa tenha uma percepção
aproximada de um rosto. Em um caso, uma pessoa até conseguiu dirigir em um
estacionamento vazio.
A audição também pode ser restaurada por meio de um dispositivo chamado
implante coclear. Talvez você já tenha ouvido falar disso e imagine que se trata
simplesmente de algum tipo de aparelho auditivo muito bom. Na verdade, é um
tipo de aparelho auditivo totalmente diferente. Funciona assim: um pequeno
microfone é colocado perto do ouvido. Ele recebe o som, que vai para um
receptor colocado sob a pele do paciente. O receptor faz o melhor possível para
filtrar os ruídos relevantes (por exemplo, a voz da pessoa que está falando com
você, e não a música que está tocando no fundo) e em seguida traduz o resultado
em sinais elétricos, que são enviados através do crânio para o ouvido interno.
Dessa maneira, pacientes que antes não tinham audição alguma são capazes de
ouvir alguma coisa. Embora exija treinamento, os pacientes acabam conseguindo
ouvir razoavelmente bem. Escutamos simulações daquilo que os pacientes com
implante coclear ouvem e elas nos soaram mais ou menos como uma gravação de
baixa qualidade em fita cassete. O que, na verdade, é bem impressionante.
Existe outro desenvolvimento interessante em escrita de cérebro, que é
provavelmente o que há de mais próximo em relação a ensinar a você kung fu
instantaneamente. Chama-se prótese hipocampal, e alguns grupos estão
trabalhando nisso de modo a ajudar em casos de doenças de formação de
memória, como Alzheimer e demência.
Quando uma memória é criada, ela segue para uma parte do cérebro chamada
hipocampo. Ali, ela pode deixar de ser uma memória de curto prazo e ser
convertida em memória de longo prazo. Quando esse processo é interrompido,
produzir novas memórias de longo prazo pode ser difícil. É por isso que sua
bisavó se lembra de detalhes de quando era uma menininha, mas esquece
completamente que hoje é o aniversário dela.
O objetivo é que esse dispositivo intercepte os sinais do cérebro destinados à
memória de longo prazo que seriam interrompidos pela neurodegeneração. Os
sinais são processados e em seguida enviados para o lugar certo, para que se
tornem, de fato, memórias.
Pode parecer que estamos escrevendo diretamente para o cérebro, mas eis a
armadilha: não sabemos o que estamos escrevendo. Estamos apenas processando
e passando adiante. O principal pesquisador dessa área, o dr. Theodore Berger, da
Universidade do Sul da Califórnia, comparou isso a traduzir do francês para o
espanhol sem falar nenhuma das duas línguas.
Inserir memórias para um armazenamento de longo prazo sem “falar a língua”
seria bastante conveniente, já que poderia exprimir o potencial de registrar
lembranças de um cérebro e escrevê-las em outro. Mas, por enquanto, muitos não
creem que o processo de memória seja simples o bastante para possibilitar isso.
Preocupações
Ah, garoto, é fácil ter preocupações com modificações no cérebro.
Para iniciantes, o cérebro não é uma máquina simples, então não é uma
questão simples fazer atualizações. Por exemplo, há algumas evidências de que
camundongos criados por engenharia genética para ter memórias melhores são
também mais suscetíveis a dores crônicas. É possível que qualquer modificação
na maneira como o cérebro funciona tenha consequências indesejadas.
E mesmo que as consequências indesejadas sejam conhecidas, a competição
pode levar pessoas a modificações cerebrais. Um em cada quatro pesquisadores
acadêmicos admite usar medicamentos para melhorar o cérebro. Além da
possibilidade de causar efeitos na saúde deles individualmente, esse
comportamento cria uma dinâmica social perigosa. Se uma pessoa usa
anfetaminas para produzir trabalhos num ritmo mais rápido, todos os outros
estarão disputando bons trabalhos com o cara da anfetamina.
Esse problema ainda não foi aprofundado, em parte porque ainda não está
claro se os medicamentos para modificação cerebral disponíveis garantem uma
grande vantagem para os usuários. A moça no fim do corredor que só precisa
dormir duas horas por noite é provavelmente mais produtiva do que você, mas
não é dez vezes mais produtiva. Se novas tecnologias começarem a criar
diferenças intelectuais mais profundas, muitas pessoas seriam mais ou menos
obrigadas a virar usuárias.
Não são apenas os trabalhadores altamente qualificados que poderiam estar em
risco na era da interface cérebro-computador. Pense o seguinte: que direito seu
empregador tem sobre os dados que estão inseridos em você? Se seu implante lhe
permite ser rastreado, será que a empresa pode rastreá-lo enquanto você trabalha?
Uma empresa que lida com público já tem algum direito de pedir aos
funcionários que estejam de bom humor. Se o bom humor é modulado no nível
neural, será que a empresa tem o direito de saber o que o implante está fazendo?
Já foi sugerido que seria benéfico aos funcionários o uso de uma máquina que
detectasse lapsos no foco no trabalho e fornecesse algum tipo de estímulo. Isso
aumentaria a segurança no local de trabalho, mas não sabemos bem como nos
sentimos em relação a forçar funcionários de uma fábrica a ter dispositivos
cerebrais eletrônicos para aumentar o foco.
Inserir capacidade computacional também cria sérias preocupações com
privacidade. Se o indivíduo tem um equipamento médico no corpo, é provável
que o dispositivo contenha alguma maneira sem fio de se comunicar com o
mundo externo. Isso oferece um risco de hackeamento. No caso dos implantes de
cérebro, hackear poderia significar muitas coisas. Em implantes sérios, um hacker
poderia ser capaz de matar ou traumatizar uma pessoa de maneira remota. De
forma mais sutil, acessando um estimulador cerebral profundo, por exemplo, um
hacker poderia controlar seu humor ou mesmo aspectos de sua personalidade.
Via de regra, uma pergunta que poderia ser feita é que direitos as pessoas têm
sobre a computação inserida em você. Por exemplo, se você está fazendo uma
prova para entrar na faculdade e tem uma interface que lhe permite falar com o
dicionário, será que os responsáveis pela prova têm o direito de saber? E se você
sempre tiver esse implante, será que essa pergunta é relevante?
Um aspecto socialmente desconfortável da modificação cerebral é o que pode
acontecer com grupos não típicos. Os cegos e os surdos têm suas próprias
comunidades e, no caso dos surdos, sua própria linguagem. Se implantes neurais
podem dar visão e audição às pessoas, isso pode significar o fim (ou pelo menos a
diminuição) de comunidades com perspectivas únicas que existem há muito
tempo. Na verdade, muitos membros da comunidade de surdos se manifestaram
contra os implantes cocleares justamente por esse motivo.
Agora em um viés mais sinistro: e se comportamentos considerados
indesejáveis por razões culturais fossem modificados? Está bem, todos nós
conhecemos pessoas que poderiam usar algum modificador de comportamento.
Mas considere que essa tecnologia venha necessariamente a existir em algum
momento, com todos os problemas de sua época.
A homossexualidade já não é considerada uma patologia, mas não foi o caso
durante a maior parte da história. Em 1972, o dr. Robert Heath realizou
experimentos em um homossexual preocupado, em uma tentativa de induzir a
heterossexualidade via EEG e estimulação elétrica. Hoje, alterando o cérebro,
podemos extinguir características que mais tarde seriam consideradas valiosas ou
moralmente benignas.
Isso nos leva à preocupação mais geral em relação a interfaces cérebro-
computador: serão elas o fim da humanidade conforme a conhecemos? Se você
pegasse um recém-nascido de dez mil anos atrás e o trouxesse para o presente,
não há motivo para crer que ele teria algum problema de adaptação. O hardware
básico do cérebro humano é o mesmo desde que o Homo sapiens existe. Com uma
interface cérebro-computador, seria a primeira vez que mexeríamos nisso. E a
primeira vez que tentarmos mexer nesse pequeno computador carnudo entre
nossas orelhas será necessariamente nosso esforço mais desajeitado.
Ganhar a capacidade de modificar nossos cérebros fomenta um estranho
circuito. Podemos modificar nossos cérebros para ficarmos mais inteligentes, o
que significa que faremos melhores interfaces cérebro-computador, o que
significa que podemos ficar ainda mais inteligentes e assim por diante. Muito em
breve todos nós seremos ultracérebros desincorporados e com a razão perfeita, o
que é meio chato, porque aí vamos deixar de gostar de séries bobinhas de TV.
Conclusão
Ainda demora, ou O cemitério dos Capítulos Perdidos
Antes de escrevermos este livro, éramos aquelas pessoas que liam livros cujo
objetivo é tornar a ciência acessível e reclamavam de pequenas imprecisões — o
equivalente nerd do entusiasta de nacho que fica cuspindo insultos da
arquibancada em uma partida de futebol. Quando o simpático pessoal da
Penguin aceitou nossa proposta, foi como se os salgadinhos tivessem sido
arrancados das nossas mãos e, você sabe, substituídos por seja lá qual for o
equipamento que os jogadores de futebol usam.
O orgulho nerd estava em risco.
Fizemos o melhor possível para atingir a combinação certa de informação e
humor, mas nosso maior temor ao escrever este livro era de que alguém nos
chamasse de “imprecisos”. Ou, como nós, idiotas, dizemos, “a palavra proibida”.
Mas, em virtude da imensa quantidade de informação que tentamos reunir (e da
quantidade ainda maior de informação que precisou ser condensada ou
descartada), é totalmente possível que tenhamos inserido alguma coisa um pouco
errada em algum lugar.
Portanto, se por acaso você notar um erro factual, por favor, nos informe. A
melhor maneira é você dizer aos amigos e familiares que está tirando umas férias
longas e entrará em contato e, então, vir à nossa casa e descer a escada até o porão
escuro. Lá embaixo tem alguns aperitivos, nós prometemos.
Quando começamos a imaginar este livro, a ideia era dar uma rápida espiada
em um monte de tecnologias emergentes. Mais ou menos como uns petiscos, só
que para meganerds. Conforme avançávamos, passamos a achar que não
poderíamos trazer nada de novo se nos limitássemos a capítulos pequeninos.
Sinceramente, se você quiser uma breve visão geral de qualquer um dos tópicos
deste livro, a Wikipédia é uma fonte razoável de consulta. Queríamos trazer mais
profundidade, mais detalhes esquisitos e mais daquelas histórias estranhas com as
quais você depara quando está falando com cientistas malucos ou lendo
documentos obscuros. Mais ou menos como uns petiscos, só que para meganerds
com, digamos, apetites maiores.
A maioria dos tópicos originais foi extirpada no começo, enquanto
aumentávamos os capítulos. Alguns foram reunidos em capítulos únicos sobre
assuntos mais abrangentes. Mas tivemos alguns capítulos que cultivamos,
apreciamos e no fim das contas tivemos que deixar de lado.
Como conclusão para este livro, pensamos em deixar esses tópicos saírem
brevemente do purgatório de uma pasta no Google Drive para aproveitar um
momento de sol antes da escuridão eterna.
Apresentamos: O Cemitério dos Capítulos Perdidos.
Saindo do cemitério
Se você é jovem e está lendo este livro, muitas dessas revoluções propostas
poderão acontecer durante sua vida. Ou seja, você pode ser uma parte delas se
estiver disposto a trabalhar para isso. A maioria das pessoas com as quais
conversamos para este livro não é famosa — são acadêmicos que trabalham,
como Kelly, ou pensadores que se aprofundam e sondam, também como Kelly.
Entre em contato com eles! Em qualquer dia, o acadêmico típico é uma pessoa
levemente solitária que trabalha em um escritório cinza. O amor deles pode ser
comprado com cookies. Baratos. Aquele segundo pacotinho de biscoito de
chocolate na sua dispensa pode ser o que levará você a Marte em 2050.
Esperamos que, diferentemente de tantos livros, não tenhamos tentado lhe
vender uma filosofia da futurologia ou uma visão do futuro. Em nosso modo de
pensar, isso provavelmente é impossível e com certeza desnecessário. Já é
animador saber que, neste exato momento, pessoas muito mais inteligentes do
que nós estão trabalhando em como sondar seus pensamentos um neurônio de
cada vez ou como extrair minerais alienígenas distantes.
Em O mensageiro: The Go-Between, L. P. Hartley escreve que “o passado é um
país estrangeiro”. Se isso é verdade, o futuro também é um país estrangeiro.
Estamos em uma pequena e isolada nação chamada Presente, e até onde talvez
pensemos que podemos ver, no fim das contas a curva do futuro dobra e desce,
deixando-nos apenas a faixa estreita do horizonte.
Mas que horizonte!
118. Se não está claro por quê, pergunte a si mesmo: você recebe mais luz na cara de uma lâmpada que está a
três metros de distância ou de uma que está a trinta centímetros?
119. É claro que algumas tecnologias do nosso capítulo sobre acesso barato ao espaço dimininuiriam esse
problema.
120. Uma solução poderia ser construir os painéis no espaço. O dr. Elvis (de quem você se recorda do
capítulo de mineração em asteroides) salientou que muitas coisas necessárias para se fazer painéis solares
podem ser encontradas em asteroides, portanto você poderia juntar materiais deles, fazer os painéis no
espaço e depois transportá-los para a órbita da Terra. Isso parece um caminho um tanto tortuoso de fazer o
seu negócio, mas pode ser que um dia seja possível.
121. Na cidade de Amado, Arizona. População: 295.
122. Na cidade de Holbrook, Arizona. População 5.053.
123. Para os detalhistas: estamos ignorando as perdas decorrentes da transmissão de energia do Saara para,
digamos, o Canadá. Dito isso, na realidade os painéis solares estão espalhados por todos os lugares. Só
estamos sendo um pouco dramáticos para reforçar nosso argumento.
124. Um forte argumento contra o nosso aqui é que essa transmissão sem perda significaria que qualquer
usina de energia poderia transmitir para qualquer receptor, já que o comprimento da linha não é um
problema. Isso seria especialmente bom para as energias renováveis, que com frequência estão em áreas
isoladas, como desertos.
125. Essa palavra não existe.
126. Termo para o ímã flutuando, e não para a coisa de tentarmos convencer John Oliver de que ele nos ama.
127. Por favor, John, nos dê uma chance.
128. Na verdade, haverá muito pouca fricção, a não ser que a área em torno seja um vácuo perfeito.
129. A propósito, contribuindo para nossa florescente compreensão de que todos os cientistas, inclusive
aqueles que trabalham com efeitos quânticos macroscópicos, são totalmente humanos, ela mencionou que na
esquecível comédia de 1989 Cegos, Surdos e Loucos, de Richard Pryor/Gene Wilder, há uma reviravolta no
fim envolvendo uma moeda que é, na verdade, um supercondutor a temperatura ambiente. Ela pediu
desculpas pelo spoiler. Tarde demais, dra. Vishik.
130. O dr. Aaronson teve a gentileza de conversar longamente conosco diversas vezes. Seu blog, Shtetl-
Optimized, é um encanto. Outro homem que nos forneceu seu tempo foi o dr. Jonathan Dowling, que
escreveu um livro incrível e de certa forma subestimado chamado Schrödinger’s Killer App. Esses dois
pesquisadores são (contra toda a justiça do multiverso) pessoas agradáveis, cientistas brilhantes e escritores
maravilhosos.
131. Ainda não existem computadores quânticos práticos, mas há algumas estruturas muito pequenas que
funcionam! Dito isso, os resultados em si são significativamente menos interessantes do que o fato de eles
terem sido alcançados a partir de bits quânticos. Por enquanto podemos usar a computação quântica para
provar que os fatores primos de 21 são 3 e 7.
132. A designação como versão canhota ou destra de uma molécula depende de como a luz polarizada faz
uma rotação ao passar através dela.
133. Porque um de nós é parasitologista.
Agradecimentos
Buracos negros
Stephen Hawking
Elon Musk
Ashlee Vance