0104 4060 Er 34 69 61 PDF

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 16

DOI: 10.1590/0104-4060.

57231

As relações étnico-raciais na Literatura


Infantil e Juvenil1
Ethnic-racial relations in children’s and
young adult literature

Débora Cristina de Araujo*

RESUMO

Este artigo reúne a síntese dos resultados de pesquisas sobre a produção


literária infantil e juvenil na dimensão das relações étnico-raciais. Foram ao
todo 13 estudos em nível de mestrado e doutorado, captados no levantamento
para o projeto “Educação das Relações Étnico-Raciais: o estado da arte”.
Trata-se de pesquisas da pós-graduação em Educação, desenvolvidas entre
os anos 2003 a 2014. Por meio da análise predominantemente qualitativa, foi
possível estabelecer duas categorias: a “análise literária”, reunindo os estudos
que investigaram uma ou mais obras de um mesmo autor e cuja característica
em comum é a interface com contextos históricos e sociológicos, em especial
do passado; e a “escolarização da literatura”, agrupando as pesquisas que, no
contexto escolar, investigaram a presença, leitura e interpretação de obras
literárias infantis e juvenis. Desta segunda categoria, novas subdivisões
foram definidas a partir de elementos característicos próprios. Os dados
quantitativos possibilitaram identificar os locais predominantes de produção
acadêmica com tais temáticas, bem como os anos mais produtivos no campo.
Via de regra, os estudos indicaram um consenso sobre mudanças, ainda que
diminutas, na representação de personagens negras a partir de publicações
literárias mais recentes, embora negras e negros ainda sejam minoria como
personagens no universo literário infantil e juvenil de modo geral. E entre

1  Este artigo é parte do resultado da pesquisa que compôs o projeto “Educação das Relações
Étnico-Raciais: o estado da arte”, financiado pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES), Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
Fundação Araucária de Apoio do Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná e Secretaria
de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC).
*
Universidade Federal do Espírito Santo. Centro de Educação. Vitória, Espírito Santo, Brasil.
E-mail: debora.c.araujo@ufes.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8442-3366

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018 61


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

as lacunas identificadas por este levantamento está o pouco investimento de


estudos na recepção da leitura literária, em especial com crianças pequenas.
Palavras-chave: Literatura Infantil e Juvenil. Personagens negras. Teses e
dissertações. Escolarização da literatura.

ABSTRACT
This article brings together the synthesis of research results on children’s and
young people’s literary production in the dimension of ethnic-racial relations.
A total of 13 master’s and doctoral studies were identified, captured in the
survey for the project “Education of Ethnic-Racial Relations: The State of
Art”. These are postgraduate research in education, developed between 2003
and 2014. Through the predominantly qualitative analysis, it was possible
to establish two categories: the “literary analysis”, which brought together
studies that investigated one or more works of the same author and whose
characteristic in common is the interface with historical and sociological
contexts, especially of the past; and the “schooling of literature”, grouping
the researches that, in the school context, investigated the presence, reading
and interpretation of children’s and juvenile literary works. From this second
category, new subdivisions were defined by means of their own characteristic
elements. The quantitative data allowed to identify the predominant places of
academic production with such themes, as well as the most productive years
in the field. As a rule, the studies have indicated a consensus about changes,
albeit diminutive, in the representation of black characters from more recent
literary publications, although blacks are still a minority as characters in
the literary universe for children and youth in general. And among the gaps
identified by this survey is the little investment of studies in the reception
of literary reading, especially with small children.
Keywords: Children and Youth Literature. Black characters. Theses and
Dissertations. Schooling of literature.

Reflexões iniciais

Desde o surgimento do gênero literário endereçado à infância e juventude


brasileira, denominado neste texto de Literatura Infantil e Juvenil (LIJ), vem
sendo empreendida uma busca por produções que tenham assumido a valori-
zação e o reconhecimento da diversidade humana como elemento agregador à
qualidade artística de suas obras. Assim, tais estudos consideram que entre os

62 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

critérios que definem a qualidade estético-literária de um livro está, portanto, o


reconhecimento e a afirmação dos grupos humanos em sua diversidade cultural,
social, étnica e racial.
Se antes essa busca era assumida por poucas pesquisadoras e pesquisa-
dores, hoje já não se pode mais afirmar isso. Uma prova são os estudos que
serão apresentados neste texto que e, embora com características nem sempre
convergentes sobre os resultados, são investigações que intentaram, cada uma
à sua maneira, analisar como a Literatura Infantil e Juvenil vem representando
os grupos humanos, em especial uma significativa parcela da população que foi
histórica e simbolicamente estigmatizada por sua origem africana.
Mas nem todos os estudos, sobretudo os referenciais da teoria literária,
convergem sobre o reconhecimento do nível de importância de personagens ne-
gras2 nesse gênero literário. Tais divergências acionam elementos significativos
acerca das formas de interpretação do racismo na sociedade brasileira. Um grupo
hegemônico da teoria literária clássica tende a identificar, em fases anteriores da
LIJ, um avanço na representação de personagens negras, por reconhecerem que
nos primórdios dessa produção literária não havia sequer tais representações.
Por outro lado, um número crescente de estudos e de autoras vem apontando
que mesmo em períodos considerados como “vanguardistas” (por visibilizarem
personagens negras), as condições de estereotipia e inferioridade se mantiveram.
E é possível caracterizar essa dicotomia tomando algumas autoras re-
ferenciais: Nely Novaes Coelho, Fúlvia Rosemberg, Maria Cristina Soares
Gouvêa e Maria Anória de Jesus Oliveira. Coelho (1990) propôs uma “divisão
histórico-literária” desse gênero literário no Brasil, tomando Monteiro Lobato
como marco. Para tanto, a autora estabeleceu três grandes fases: a primeira,
chamada de “Precursora ou pré-lobatiana”, que vai de 1808 a 1919, e que tem
como principal característica a presença de narrativas orais de origem europeia
com forte tendência ao moralismo, ao nacionalismo e ao didatismo; a segunda
fase foi denominada de “Moderna ou período lobatiano”, entre as décadas de
1920 a 1970, cujas características relacionam-se à presença do maravilhoso e
da desmistificação da moral tradicional e da verdade individual; já a terceira
fase, chamada pela autora de “Pós-Moderna ou período pós-lobatiano”, seria a
literatura produzida na contemporaneidade (desde 1970), em que predomina-
riam o experimentalismo com a linguagem e com a imagem por meio de uma
literatura inquietante e questionadora das convenções e valores da sociedade.
Embora essas três fases sejam importantes demarcadores, para Oliveira,
M.A.J. (2010) há objeções quando, por exemplo, a análise de Coelho não inclui

2  Neste artigo, o vocábulo “personagem” será generalizado no feminino, como era a origem
etimológica dessa palavra. Nas citações, será mantido conforme a grafia adotada pela autora ou autor.

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018 63


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

o racismo como categoria componente da produção literária em cada uma das


fases ou quando, em outra proposta de divisão da literatura entre Tradicional e
Novo, ao tematizar o Tradicional, tal autora correlacione o processo de escravi-
zação da população negra no Brasil a uma “força indispensável ao progresso de
qualquer grupo social” (COELHO, 2000, p. 23). Para Oliveira, M.A.J. (2010,
p. 52), em nota de rodapé no 48:

Apesar de Coelho se referir à escravização humana como ‘um processo


de Injustiça Humana e Social que até os nossos tempos não pode ser
totalmente extirpada’, antes, porém, sendo a ‘raça branca a vencedora’,
ao que diríamos, beneficiada social e economicamente até a atualidade
(MOORE, 2007), ela, por outro lado, a entende como a ‘força indispen-
sável ao progresso de qualquer grupo social’. Essa afirmação mereceria
maiores explanações ou, no mínimo, a problematização do sistema atroz
que ceifou a vida de um contingente incalculável de pessoas negras e
ameríndias ao longo de quase quatro séculos, desencadeando uma série
de complexidades e desigualdades até os dias de hoje. O racismo é um
deles. Tanto é que no limiar do século XXI discutimos, ainda, a urgência
da reparação social para com os grupos sociais vilipendiados e usurpados
de suas terras: os descendentes de africanos e os ameríndios (OLIVEIRA,
M.A.J., 2010, p. 52).

A ideia de tradição em Coelho é retomada sob outra perspectiva: para


ressaltar a atuação dessa tradição a fim de “expressar um olhar preconceituoso
e inferiorizado face ao segmento negro, recortando-se e privilegiando a ideia de
‘vencidos’ pelo segmento branco, preterindo-se as resistências, as lutas, conquis-
tas” (OLIVEIRA, M.A.J., 2010, p. 53). Assim, a literatura endereçada ao público
infantil e juvenil estaria marcadamente, desde seus primórdios, comprometida
com a perpetuação de relações de dominação racial, tendo a população negra
como coadjuvante da história desse gênero literário.
E tal processo se manteve nas demais fases. Observando a segunda fase,
chamada Moderna, tomo a argumentação de Gouvêa (2005) como alerta para
o fato de que o aumento de personagens negras nas tramas nada se relacionou
com maior qualidade no tratamento direcionado a elas. Pelo contrário, estigmas
e estereótipos foram criados ou reforçados. Destaca-se, por exemplo, a recor-
rência de personagens negras idosas, mulheres e homens, sendo retratadas/os
como “contadoras/es de histórias”, “agentes socializadores das crianças brancas,
numa posição de servidão que revela a continuidade com o modelo escravocrata”
(GOUVÊA, 2005, p. 84) ou, ainda, como “pretos e pretas velhas”, detentores/as

64 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

de um saber mítico, fazendo “sobreviver suas tradições, como as práticas re-


ligiosas, vistas como feitiçaria pelos personagens brancos” (GOUVÊA, 2005,
p. 86). Nessa caracterização, por vezes o velho ou a velha tinham seu intelecto
associado à criança pequena, “como se ambos estivessem no mesmo nível de
desenvolvimento cognitivo” (GOUVÊA, 2005, p. 87). Mas não somente como
velhos é que as personagens negras se faziam presentes de modo estereotipado
nas tramas: era, sobretudo, por meio do corpo animalizado.

Fica clara uma animalização do negro, na medida em que a descrição do


seu corpo colocava-o entre o corpo animal e o corpo do homem branco. Os
textos, na verdade, reproduziam uma representação que, historicamente,
fez-se presente no campo científico, ao final do século XIX, que situava
o negro, no interior da cadeia evolutiva, num patamar entre o homem
branco e as demais espécies [...] (GOUVÊA, 2005, p. 88).

Oliveira, M.A.J. (2010) não nega a condição da população negra na socie-


dade brasileira da época, em um período ainda muito recente desde o término
da escravização oficial. Contudo, interroga sobre a cristalização desse momento
histórico na literatura endereçada à criança.

Então, se Coelho compreende que a literatura infantil refletiu ‘uma situa-


ção social concreta’, a escravização, cabe não esquecer que tal literatura
priorizou o ponto de vista do grupo hegemônico. Desse modo, cristalizou
um olhar sobre os escravizados, sobretudo, como seres passiveis à comi-
seração e passivos, sem reação contra o sistema opressor. (OLIVEIRA,
M.A.J., 2010, p. 55).

A autora questiona, nesse panorama, não só a recorrência de narrativas que


rememoram crueldades e suplícios contra personagens negras – semelhantes ao
período da escravização –, mas também “a ausência de outros pontos de vista,
afinal, não podemos esquecer que as resistências negras, naquela conjuntura
escravagista, consistiram em variadas maneiras de se rebelar e reagir contra o
sistema opressor” (OLIVEIRA, M.A.J., 2010, p. 55-56).
E tomando a perspectiva de Rosemberg (1985) como outro referencial ana-
lítico do período, mesmo na transição entre a segunda e a terceira fase – chamada
de Pós-Moderna, por Coelho (mas, concordando com Oliveira aqui também será

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018 65


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

chamada de Contemporânea) –, as condições de representação das personagens


negras pouco mudaram. Em uma pesquisa que reuniu análise de 168 livros en-
dereçados a crianças e jovens e editados entre 1955 e 1975, entre as principais
características identificadas destacam-se: associação do ser negro com castigo
e com feiura; associação, pela cor, com maldade, tragédia, sujeira, escravidão;
correlação de personagens negras com profissões socialmente desvalorizadas;
personagens brancas apresentadas como representante da espécie; a mulher
negra presa ao estereótipo de empregada doméstica (ROSEMBERG, 1985).
Assim, constata Oliveira, M.A.J. (2010, p. 57), que tanto na primeira,
segunda ou no limiar da fase contemporânea, “tomando como base a demar-
cação temporal de Coelho (2003), [a Literatura Infantil e Juvenil] não deixou
de reforçar a inferiorização do segmento negro e a valoração do branco na
literatura infanto-juvenil”.
E desse panorama, complexo e dicotômico brevemente aqui apresenta-
do, muitas das pesquisas a seguir se ampararam para analisar contextos mais
recentes da produção literária infantil e juvenil e sua interface com as relações
étnico-raciais, em especial entre os grupos negro e branco. São estudos em
nível de mestrado e de doutorado captados no projeto “Educação das Relações
Étnico-Raciais: o estado da arte”, que visou realizar uma ampla investigação do
conhecimento produzido no Brasil sobre Educação das Relações Étnico-Raciais
(ERER) no período de 2003 a 2014. Trata-se de 13 teses e dissertações do cam-
po da Educação que investiram o olhar sobre a Literatura Infantil e Juvenil na
dimensão das relações étnico-raciais3.

O campo stricto sensu da LIJ e as relações étnico-raciais

Dadas as características das três teses e das 10 dissertações que compõem


o corpus de análise deste estudo, foi possível organizá-las em duas grandes
categorias: “análise literária” e “escolarização da leitura”. A segunda delas
apresenta, por sua vez, particularidades que levaram a subdivisões, conforme
será apresentado no decorrer desta seção. É importante ressaltar que alguns
dos estudos terão menor destaque conforme se afastem da Literatura Infantil
e Juvenil. São pesquisas que ficaram no limitar deste gênero ao tematizarem

3  No estudo completo da categoria Literatura Infantil e Juvenil do Projeto “Educação das


Relações Étnico-Raciais: o estado da arte”, também foram captados 27 artigos que, em função dos
limites deste artigo, não serão apresentados aqui.

66 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

obras que eventualmente ocupam o universo de leitura juvenil, mas que, na sua
produção original, eram endereçadas ao público adulto; além disso, apresentam
uma interface com contextos históricos e sociológicos, em especial do passado.
Apenas nos casos em que a obra com tal característica estiver contextualizada
no ambiente escolar – portanto, escolarizada – terá uma apresentação com
maiores detalhes.
Na “análise literária” encontram-se estudos que focalizaram um ou mais
obras de um mesmo autor, como é o caso do estudo de Fernanda de Jesus Fer-
reira (2012) que investigou, em livros, discursos e cartas de José de Alencar,
suas posições públicas acerca da escolarização de escravizados. Na imersão
analítica sobre os textos do autor, Ferreira (2012) identificou dicotomias entre
as reflexões acionadas nas obras e nos demais documentos:

Em relação aos escravizados, o autor revela, em seus discursos políticos,


que havia necessidade de educá-los, mas os meios para tal empreendi-
mento não passavam pelas conformações do conhecimento das letras,
ironicamente possível em Machado de Assis. Já em sua obra literária,
Alencar demonstra a partir do enredo e do desfecho das personagens
escravas na história, que a sociedade não tinha proposta alguma para os
escravizados futuramente se integrarem como ‘cidadãos inteligentes’.
(FERREIRA, 2012, p. 151).

Com a mesma característica, de investigação de um autor, nesse caso de


Lima Barreto, desenvolveu-se a pesquisa de Jomar Ricardo da Silva (2007),
cujo objetivo foi de compreender “através de indícios presentes na obra deste
escritor, como se efetivava a educação das mulheres, no início do século XX,
para a consecução da diferenciação histórica das relações de gênero” (SILVA,
2007, p. 8). Por meio da análise de contos e romances desse escritor, Silva (2007)
identificou que o engajamento de Lima Barreto para questões sociais de modo
geral também se refletiu nas questões de gênero, evidenciando sua capacidade
analítica dos problemas contemporâneos.
Um estudo em particular, de Lilian Cavalcanti Fernandes Vieira (2012),
analisou a questão da identidade e cultura de matriz africana por meio da obra
de um autor afro-caribenho: Derek Walcott. E, ainda, outro estudo classificado
nesta categoria diferenciou-se dos demais: a tese de Roselete Fagundes de Aviz
de Souza (2012) que, embora tenha analisado obras de autores e autoras negras
africanas ou da diáspora (Zora Neale Hurston, Paulina Chiziane, Ungulani Ba
Ka Khossa), teve como objetivo investigar elementos subjetivos que envolvem
reflexões literárias, culturais, filosóficas e estéticas.

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018 67


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

Já o estudo de Luciana Araujo Figueiredo (2010) teve como objetivo


analisar como as relações entre crianças negras e não negras foram construídas
ao longo do tempo no Brasil, via obras literárias. Para tanto, a autora analisou
10 livros de Literatura ou de Sociologia publicados em diversos períodos da
história do Brasil. Em seus resultados, Figueiredo identificou que na produção
contemporânea houve um aumento na qualidade das representações de criança
negra, com a valorização de traços e símbolos da cultura negra e melhor trato
de temáticas envolvendo o racismo e o preconceito. Sua interpretação é que tal
produção, em comparação com as obras mais antigas, seja influência das lutas
sociais por representações sociais mais positivas.
Na “escolarização da literatura”, maior das duas categorias, encontram-se
estudos que se relacionam com o processo de imersão de obras literárias no con-
texto escolar. A expressão que intitula tal categoria nasce da proposição de Magda
Soares (2006, p. 21) de que a literatura “ao se tornar ‘saber escolar’, se escolariza”.
No entanto, concordando com a asseveração da autora, é necessário atenção aos
modos pelos quais tal processo de escolarização se opera para que, ao transpor a
produção literária para o ambiente escolar, ela não se desfigure, desvirtue ou falseie
(SOARES, 2006). E, nesse sentido, as pesquisas aqui classificadas refletiram sobre
tal problemática e acrescentaram elementos acerca da qualidade estético-literária a
partir da diversidade étnico-racial. Para tais estudos não é possível considerar que
uma obra literária dotada de preconceitos ou estereótipos raciais contribua para a
ampliação de referenciais literários, artísticos e culturais do público leitor. Todos
alertaram, em maior ou menor medida, que a valorização de matrizes literárias
para além do cânone (que na LIJ é essencialmente monocultural) é base para a
formação de qualquer leitor. E nessa busca, algumas pesquisas investiram em
evidenciar o racismo presente nas obras canônicas, outra em propor obras que
tematizam a cultura africana e afro-brasileira em perspectivas positivas, e ainda
outras que analisaram os contextos de recepção de leituras de obras por parte
do público leitor. Estamos diante, portanto, de uma nova divisão da categoria
“escolarização da literatura”, conforme será discutido na próxima seção.

A literatura escolarizada

O primeiro grupo dessa categoria de escolarização da literatura reúne es-


tudos que investigaram em acervos (de bibliotecas escolares e/ou programas de
distribuição de livros) como personagens negras são representadas. O estudo de
Oliveira (2003), por exemplo, analisou 12 títulos de “autores consagrados” que

68 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

foram publicados entre 1979 a 1989, com o objetivo de apresentar categorias


analíticas que evidenciem a caracterização das personagens negras em tais obras
e verificar se houve inovações de modo que houvesse um rompimento com a
estereotipia anteriormente captada por pesquisas como a de Rosemberg (1985).
A autora identificou inovações no período analisado, pelo fato de personagens
negras assumirem em maior recorrência o protagonismo dos enredos, “com o
propósito de denunciar a pobreza, o preconceito racial, e em enaltecer os seus
traços físicos” (OLIVEIRA, 2003, p. 10). Contudo, as estratégias utilizadas
na construção de tais personagens acabaram por reificar estereótipos, já que a
maioria delas foi associada à pobreza, com trajetórias de abandono ou orfandade,
experienciando situações de violência física ou verbal ou, ainda, enaltecidas
“pelos atributos físicos e/ou intelectuais, com vista à democracia racial” (OLI-
VEIRA, 2003, p. 10). Apenas uma das obras de sua amostra, “A cor da ternura”,
de Geni Guimarães, conseguiu romper com esse ciclo de estereótipos e dar “um
salto de qualidade ao exprimir o universo imerso em fantasia e ludicidade da
protagonista” (OLIVEIRA, 2003, p. 10).
A pesquisa de Ana Carolina Lopes Venâncio (2009) investigou um acervo
de 20 obras do Programa Nacional de Biblioteca da Escola (PNBE) de 2008
voltada para estudantes do 1º ao 5º ano do Ensino Fundamental. O objetivo
da autora foi analisar, com base nos eixos de idade, gênero, raça e relativos
à deficiência, como “a literatura infanto-juvenil pode, ao criar personagens e
dotá-los de características e atributos, tanto atuar de forma a promover a diver-
sidade como manter modelos e padrões de humanidade que venham a reforçar
estigmas e preconceitos” (VENÂNCIO, 2009, p. 12). Os resultados indicaram
quantitativamente que houve uma diminuição na dicotomia de relações de subor-
dinação entre personagens negras e brancas nas ilustrações, mas prevalecendo
de forma explícita ou velada, relações de subordinação nas tramas. Além disso,
a ideia de diversidade proposta pelos livros do acervo acentuou hierarquias so-
bre o “personagem, branco, sem deficiência” (VENÂNCIO, 2009, p. vi) como
representante da espécie nos contextos dos livros analisados.
E o estudo de Veridiana Cintia de Oliveira (2010), também investigando o
PNBE de 2008 (mas destinado à educação infantil), teve como objetivo “analisar
como estão configuradas as relações entre brancos e negros na literatura infanto-
-juvenil distribuída pelo PNBE em 2008 para Educação Infantil” (OLIVEIRA,
V.C., 2010, p. 11). A autora constatou em seus resultados que embora tenha sido
possível identificar, ainda que em baixa frequência, um aumento de represen-
tação positiva de negras/os, personagens brancas continuam sendo mais bem
elaboradas e aparecem mais vezes nas narrativas, gerando o “estabelecimento
da manutenção do seu grupo como norma social e pressupondo inclusive, que
os leitores presumidos sejam também brancos” (OLIVEIRA, 2010, p. viii).

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018 69


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

Também investigando a literatura destinada à educação infantil, a pesquisa


de Gilmara Aparecida Guedes dos Santos Dadie (2013) analisou o protagonismo
negro no acervo de uma biblioteca de uma escola de educação infantil (EMEI)
em São Paulo. A autora investigou livros oriundos do PNBE e de aquisições
por parte da própria prefeitura de São Paulo. Com 1.500 títulos disponíveis no
acervo, apenas 33 livros tinham tal característica. Assim, a pesquisa constatou
sub-representatividade em ambas as distribuições de livros, além de estereótipos
em relação a personagens negras, bem como manifestações explícitas e implícitas
de preconceito. Mas também foi possível identificar várias obras que abordaram
positivamente valores culturais e estéticos africanos e afro-brasileiros.
Apenas uma pesquisa representa outro grupo identificado nessa catego-
ria: que investiga como obras literárias podem conter referenciais positivos do
ponto de vista da representação de personagens negras e ou da construção da
identidade negra. Trata-se da pesquisa de Lucilene Costa e Silva (2012), cujo
objetivo foi investigar representações sociais positivas em obras com temática
africana e afro-brasileira, “em busca de novos referenciais estéticos e culturais
para a construção da identidade da menina negra” (SILVA, 2012, p. xii). Por
meio da análise de conteúdo e de categorias relacionadas com a corporeidade,
a cultura afro-brasileira, a religião dos orixás e a questão de gênero, a autora
investigou três livros publicados nas duas últimas décadas: “Betina”, de Nilma
Lino Gomes; “Omo-Obá: histórias de princesas”, de Kiusam de Oliveira; e
“Núbia rumo ao Egito”, de Maria Aparecida Silva Bento. Sua constatação foi
de que as obras analisadas reúnem um conjunto de elementos positivos acerca
da menina negra nas narrativas o que pode contribuir, no espaço escolar, para
o fortalecimento da identidade de meninas negras leitoras. O cabelo foi um
marcador de destaque nos textos por centralizar ou problematizar a discussão
sobre a identidade negra feminina.
E, ainda, outro grupo investigou, em contextos escolares, a recepção da
leitura de obras com personagens negras. Foi o caso da pesquisa em que ana-
lisei os discursos de crianças e professoras, produzidos com base em leituras
de obras literárias com personagens negras, em turmas de 4ª série4 do Ensino
Fundamental em duas escolas de Curitiba - PR (ARAUJO, 2010). A análise do
contexto sócio-histórico da produção literária infantil e juvenil brasileira por
meio do PNBE e dos acervos disponíveis nas bibliotecas das escolas e salas de
aula, bem como e, sobretudo, da gravação de aulas de leitura, possibilitaram a
constatação de que a ideologia racista operou nos estágios de produção, difusão
e principalmente recepção da leitura das obras literárias. No entanto, ao lado

4  Nas duas escolas onde essa pesquisa aconteceu, a nomenclatura das turmas ainda não era
de 5º ano, como previam as mudanças na legislação educacional.

70 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

dos limites no processo de mediação da leitura por parte de uma professora,


também foram identificados avanços no trato de questões sobre estética e cultura
africana, já que a alteridade estimulada pelo discurso da professora possibilitou
às crianças ferramentas para a produção de interpretações mais positivas acerca
das personagens negras.
Também neste mesmo grupo está a pesquisa de Juliana Maria C. F. Winter
(2012), cuja investigação incidiu sobre práticas pedagógicas e o trato com a li-
teratura. Seu objetivo foi analisar “como o emprego da literatura infanto-juvenil
na perspectiva da Lei 10.639/2003, pode favorecer práticas pedagógicas que
estabeleçam o diálogo e a reflexão sobre a discriminação racial e a diversidade
cultural na sala de leitura” (WINTER, 2012, p. xiii). A autora analisou entre-
vistas com estudantes e professora da sala de leitura, e realizou de observações
das aulas e análise de documentos de uma escola municipal de Petrópolis – RJ.
E em tal investigação, Winter constatou que a escola promove ações de valo-
rização da diversidade cultural. Sobretudo a postura pedagógica da professora
investigada foi destacada pela autora, pois teria sido responsável por produzir
posicionamentos críticos por parte das/os estudantes.
Divergindo da autora, no entanto, foi possível observar em seu estudo uma
tendência de supervalorização das práticas pedagógicas da escola por meio,
sobretudo, das ações desenvolvidas pela professora da turma investigada. Nas
passagens em que estudantes comentam as leituras literárias com temática afri-
cana ou afro-brasileira, alguns discursos evidenciaram muitos limites da escola
no encaminhamento de casos de discriminação racial e fragilidade pedagógica no
trato de temáticas relacionadas à cultura africana. Muitas vezes, essa fragilidade
incorreu em uma tendência de exotizar elementos culturais presentes nos livros
selecionados para as aulas.
Também compondo o grupo de pesquisas que investigaram a recepção
da leitura, mas destoando dos demais que direcionaram suas investigações
para crianças do Ensino Fundamental, a pesquisa de João Martos Rosa (2013)
foi desenvolvida com estudantes de 3º ano do Ensino Médio de uma escola
estadual, localizada em um município do interior do Mato Grosso do Sul. Teve
como objetivo analisar quais representações as/os estudantes faziam da obra
O mulato, de Aluísio de Azevedo e que tipo de identidades negras podem ser
construídas ao lerem tal romance. Rosa (2013) identificou que os estudantes
negros do grupo participante da pesquisa tenderam a não se declararem negros
em função das representações sociais típicas que incidem sobre seus perten-
cimentos étnico-raciais. E isso se refletiu nas interpretações que fizeram do
livro lido: não se identificaram com o protagonista da obra, pois, além de ser
negro, seu desfecho na trama sugeriu que sua vida não foi bem-sucedida. Os
discursos oscilaram entre o mito da democracia racial e a culpabilização do

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018 71


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

próprio negro pela discriminação sofrida. Mas também houve uma tendência
de identificar a sociedade, a cultura e a mídia pela reprodução de discrimina-
ções via veiculação de imagens negativas, contribuindo para a discriminação
racial e para a estratégia do negro de não se assumir como tal. Por outro lado,
o autor também reconheceu que a literatura trabalhada em sala de aula pode
estimular reflexões mais críticas sobre a temática racial e fortalecer, desde que
com esse objetivo e tendo professoras e professores preparados, a construção
de identidades negras positivas.
E observando os dados quantitativos acerca das pesquisas aqui elencadas,
constata-se, no período delimitado de 2003 a 2014, o ano predominante da produ-
ção como sendo 2012, com cinco pesquisas: duas teses (VIEIRA; SOUZA) e três
dissertações (FERREIRA; WINTER; SILVA). Em 2010 foram três dissertações
(ARAUJO; OLIVEIRA, V.C.; FIGUEIREDO) e em 2013 mais duas (DADIE;
ROSA). Nos demais anos, foram defendidas apenas uma tese (SILVA, 2007) ou
uma dissertação por ano (OLIVEIRA, 2003; VENÂNCIO, 2009).
As regiões brasileiras de onde provieram as teses e dissertações foram:
Centro-Oeste, Nordeste e Sudeste, com três trabalhos cada, e Sul, com quatro.
No que se refere às instituições, da Universidade Federal do Paraná procedeu o
maior número de trabalhos: Venâncio (2009), Araujo (2010) e Oliveira (2010),
sendo todas dissertações e orientadas pelo mesmo docente. Em seguida está a
Universidade de São Paulo com duas dissertações (FERREIRA, 2012; DADIE,
2013), tendo diferentes orientadoras. As demais instituições que tiveram apenas
um trabalho cada uma foram: uma dissertação pela Universidade do Estado da
Bahia (OLIVEIRA, 2003), uma tese pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (SILVA, 2007), uma dissertação pela Universidade Federal da Grande
Dourados (FIGUEIREDO, 2010), uma tese pela Universidade Federal do Ceará
(VIEIRA, 2012) e outra pela Universidade Federal de Santa Catarina (SOUZA,
2012); uma dissertação pela Universidade Católica de Petrópolis (WINTER,
2012), uma pela Universidade de Brasília (SILVA, 2012) e uma pela Universi-
dade Católica de Brasília (ROSA, 2013). Entre os trabalhos catalogados nessa
categoria, somente a dissertação de Oliveira (2003) teve co-orientação.

Considerações finais

De modo geral, os resultados sobre a literatura (excetuando-se os textos


e autores de época) apontam para mudanças, ainda que diminutas, na repre-
sentação de personagens negras, com menos tendência a estereótipos raciais

72 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

(VENÂNCIO, 2009; OLIVEIRA, 2010) e valorização da estética negra (FI-


GUEIREDO, 2010). No entanto, no universo geral dos acervos, ainda se pode
categorizar as personagens negras em condições de sub-representação, além de
uma reiteração da branquidade normativa (VENÂNCIO, 2009; OLIVEIRA,
V.C., 2010) operando tanto na melhor elaboração de personagens brancas, como
na pressuposição de leitoras e leitores brancos. Também foi possível observar,
pelos resultados das pesquisas, que quanto mais antiga seja a obra, maiores são
as chances de conter estereótipos negativos e racismo implícito ou explícito.
Tal resultado foi demonstrado especialmente por Oliveira (2003) ao identificar
que, embora em obras publicadas entre 1979-1989 tenha havido inovação ao se
atribuir o papel principal a personagens negras, tal procedimento incorreu por
outro lado na reificação de representações estereotipadas por meio da associação
de protagonistas à miséria, à violência, a contextos de humilhação ou exotizados
por seus atributos físicos.
Outro resultado negativo foi constatado por Araujo (2010) e relaciona-se à
artificialidade no encaminhamento de práticas de leitura de obras com temática
afro-brasileira e africana, reiterando uma ainda dificuldade em transposição do
discurso legal (da legislação para a Educação das Relações Étnico-Raciais) para
as práticas pedagógicas. Por outro lado, o empenho de professoras/es – ainda
que em minoria nas escolas – em desenvolver práticas de leitura com temáticas
da diversidade étnico-racial têm promovido reflexões sobre culturas africanas
e da diáspora (WINTER, 2012; ARAUJO, 2010).
Outro estudo em particular (SOUZA, 2012) evidenciou a necessidade de
ampliação dos referenciais literários e culturais para a produção de autoras/es
negras/es em outros países, como Moçambique e Estados Unidos, como forma
de identificação de características comuns aos povos da diáspora: a oralidade,
a musicalidade e a valorização da tradição, por exemplo.
Em relação aos estudos da categoria “análise literária”, por terem objetos
de pesquisa diversificados e muitos deles analisando contextos históricos do
passado (em especial a transição entre o século XIX e XX), não é possível
identificar resultados em comum. Enquanto Ferreira (2012) reconheceu dubie-
dade na postura pública de José Alencar, que ora defendia a escolarização de
escravizados e ora reiterava a omissão e despreocupação das elites brasileiras
com o tema, Silva (2007) evidenciou o quanto o engajamento social de Lima
Barreto não se restringiu à temática racial, mas também à condição da mulher
e de outros grupos minoritários.
Um elemento emergente que se realçou em algumas pesquisas é a consta-
tação de que se, as políticas públicas não assumem tal demanda, o impacto na
escola tem sido bastante significativo: no contexto de sala de aula, sobretudo no
tocante à recepção da leitura de obras com temáticas africanas e afro-brasileiras,

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018 73


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

por parte de estudantes predominaram resultados negativos já que a maioria das


pesquisas identificou resistência e aversão a personagens negras, realçando o
papel que as formas simbólicas como a literatura exercem na formação iden-
titária dos grupos sociais (ARAUJO, 2010; WINTER, 2012; ROSA, 2013). E
esse contexto evidenciou outro elemento emergente nas teses e dissertações: a
necessidade de que o trabalho com literatura seja precedido de formação ade-
quada de mediadoras/es de leitura, em especial professoras e professores, pois
o acúmulo de conhecimentos e estratégias para o enfrentamento do racismo no
discurso pedagógico (que é produzido também por estudantes) possibilitará um
campo mais propício de recepção da literatura para além do cânone.
Como consequência, mudanças nas representações sociais poderão ocor-
rer, embora fique evidente que toda a problemática em torno do racismo nas
representações sociais não se restrinja ao campo literário, mas pode ser um
início de um processo de efetiva democratização que se iniciaria pela literatura.
E ao mesmo tempo em que se revela como emergente, o processo de recepção
da leitura de obras literárias por parte de estudantes apresenta-se como uma
lacuna no campo de modo geral, pois, como demonstrado neste texto, apenas
três dissertações investigaram em contextos escolares a recepção da leitura de
obras e as práticas pedagógicas decorrentes ou não de tais leituras. A grande
maioria fez análises endógenas, ou seja, o livro pelo livro.
Mais do que evidenciar o racismo, o estereótipo, estigmatização ou a
valorização da cultura africana e afro-brasileira ou, ainda, a beleza estética e
literária nos enredos e nas ilustrações, o que os resultados dessas poucas pes-
quisas demonstraram é a necessidade de investigação de como o público leitor,
principalmente em formação, interpreta tais obras e quais as possibilidades de
ampliação dos referenciais de mundo. Acrescenta-se o caso da educação infantil
que pouco foi considerada, tanto nas análises sobre o livro como, de modo algum,
na recepção por parte das crianças. Quais são as crianças que protagonizam as
obras destinadas à criança pequena? E como as crianças pequenas leem as obras
literárias? Essas questões unem-se a outras oriundas dos estudos da infância e
que vêm denunciando a omissão das pesquisas acadêmicas sobre as vozes das
crianças pequenas.
Outra lacuna dos estudos em nível de mestrado e doutorado é a biblioteca
(da escola ou não) e sua relação com as obras literárias com temática africana ou
afro-brasileira. Foi constatado brevemente por Venâncio (2009) e Araujo (2010),
por exemplo, que é uma prática presente em algumas escolas manter livros
novos guardados. Como ficam, então, os livros com temáticas da diversidade?
Onde ficam e quem os lê? Da mesma forma, não houve estudos que investi-
garam como se dá (e se há) formação para bibliotecárias/os e mediadoras/es

74 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

de leitura sobre temas concernentes à Educação das Relações Étnico-Raciais e,


por extensão, à literatura não canônica.
Além disso, em relação às categorias gerais do projeto “Educação das
Relações Étnico-Raciais: o estado da arte”, foram apenas 13 estudos que inves-
tiram pesquisa sobre LIJ, demonstrando o baixo investimento acadêmico em
pesquisas sobre as relações étnico-raciais na literatura para crianças e jovens.
Torna-se preponderante uma ampliação do campo e para outras perspectivas,
sob o risco de os estudos sobre a produção literária infantil e juvenil tornarem-se
estagnados no apontamento para soluções.

REFERÊNCIAS

ARAUJO, D. C. de. Relações raciais, discurso e literatura infanto-juvenil. 2010. Dis-


sertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, 2010.
COELHO, N. N. Literatura infantil: teoria, análise, didática. São Paulo: Moderna, 2000.
COELHO, N. N. Dicionário crítico da literatura infantil e juvenil brasileira. 5. ed. rev.
atual. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2006.
DADIE, G. A. G. dos S. Personagens negros, protagonistas nos livros da educação
infantil: estudo do acervo de uma escola de educação infantil do município de São
Paulo. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de São Paulo, 2013.
FERREIRA, F. de J. “A redenção do corpo e da alma”: a representação literária da edu-
cação dos escravizados em José de Alencar (1850-1875). 2012. Dissertação (Mestrado
em Educação) - Universidade de São Paulo, 2012.
FIGUEIREDO, L. A. A criança negra na literatura brasileira: uma leitura educativa.
2010. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade Federal da Grande Dourados,
2010.
GOUVÊA, M. C. S. Imagens do negro na literatura infantil brasileira: análise historio-
gráfica. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 1, p. 77-89, jan./abr. 2005.
OLIVEIRA, M. A. de J. Negros personagens nas narrativas literárias infanto-juvenis
brasileiras: 1979-1989. 2003. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade do
Estado da Bahia, 2003.
OLIVEIRA, M. A. de J. Personagens Negros na Literatura Infanto-Juvenil no Brasil
e em Moçambique (2000-2007): entrelaçadas vozes tecendo negritudes. 2010. Tese
(Doutorado em Letras) - Universidade Federal da Paraíba, 2010.

Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018 75


ARAUJO, D. C. de. As relações étnico-raciais na Literatura Infantil e Juvenil

OLIVEIRA, V. C. de S. de. Educação das relações étnico-raciais e estratégias ideoló-


gicas no acervo do PNBE 2008 para educação infantil. 2011. Dissertação (Mestrado
em Educação) - Universidade Federal do Paraná, 2011.
ROSA, J. M. Representações de negros produzidas por alunos, mediadas pela leitura da
obra “O Mulato”. 2013. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Católica
de Brasília, 2013.
ROSEMBERG, F. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Global, 1985. (Teses; 11).
SILVA, J. R. da. A educação da mulher em Lima Barreto. 2007. Tese (Doutorado em
Educação) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2007.
SILVA, L. C. E. Meninas negras na literatura infantojuvenil: escritoras negras contam ou-
tra história. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade de Brasília, 2012.
SOARES, M. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In: EVANGELISTA, A.
A. M.; BRANDÃO, H. M. B.; MACHADO, M. Z. V. (Org.). Escolarização da leitura
literária: o jogo do livro infantil e juvenil. 2. ed., 2. reimp. Belo Horizonte: Autêntica,
2006. p. 17-48. (Linguagem e Educação).
SOUZA, R. F. de A. de. Khilá (des)encontros da voz na travessia Brasil – Moçambique.
2012. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Santa Catarina, 2012.
VENÂNCIO, A. C. L. Literatura infanto-juvenil e diversidade. 2009. Dissertação (Mes-
trado em Educação) - Universidade Federal do Paraná, 2009.
VIEIRA, L. C. F. Omeros: vozes de identidade cultura em Derek Walcott. 2012. Tese
(Doutorado em Educação) - Universidade Federal do Ceará, 2012.
WINTER, J. M. C. F. Griot na escola: o emprego da literatura africana e afro-brasileira
em uma sala de leitura. 2012. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade
Católica de Petrópolis, 2012.

Texto recebido em 29 de dezembro de 2017.


Texto aprovado em 30 de dezembro de 2017.

76 Educar em Revista, Curitiba, Brasil, v. 34, n. 69, p. 61-76, maio/jun. 2018

Você também pode gostar