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teoriA DA LiterAturA i

Prof.a Elaine Hoffmann


Prof. Tiago Hermano Breunig

2017
Copyright © UNIASSELVI 2017

Elaboração:
Profa. Elaine Hoffmann
Prof. Tiago Hermano Breunig

Revisão, Diagramação e Produção:


Centro Universitário Leonardo da Vinci – UNIASSELVI

Ficha catalográfica elaborada na fonte pela Biblioteca Dante Alighieri


UNIASSELVI – Indaial.

372.64
H699t Hoffmann, Elaine

Teoria da literatua I / Elaine Hoffmann; Tiago Hermano


Breunig. Indaial : UNIASSELVI, 2017.

232 p. : il.

ISBN 978-85-515-0104-7

1.Literatura – Estudo e Ensino.


I. Centro Universitário Leonardo Da Vinci.

Impresso por:
Apresentação
Caros acadêmicos, a disciplina de Teoria da Literatura I leva-nos a
um olhar mais aguçado sobre o material escrito. Quando somos instigados a
responder o que é um texto literário, geralmente a primeira resposta que nos
vem à mente é a de que a literatura deve demonstrar o belo, deve ser valorizada
por suas características estéticas. Essa resposta é verdadeira, mas, como vamos
estudar, há ainda muitas outras funções exercidas por essa nobre arte.

Neste momento, quando deixamos de ser apenas apreciadores para


sermos estudiosos da literatura, cabe-nos descobrir a fórmula da beleza e
senti-la ainda mais bela por perceber as sutilezas das quais ela é feita.

Desde já, advertimos que analisar a literatura está longe da construção


de opiniões comuns, há diferentes perspectivas assumidas por grandes
estudiosos da área. Como você irá perceber, a confusão já começa com a
pergunta: o que é literatura? As respostas são muitas, talvez nenhuma errônea,
mas também nenhuma completa ou definitiva, por isso, temos conceitos e
não definições.

Quando estudamos a literatura, desmontamos suas peças e procuramos


entender como tudo se encaixa, e a dimensão de sua beleza se eleva. Quando
fazemos isso nos transportamos a outro mundo. Somos Alice através do espelho!

Bem-vindos!

Prof.a Elaine Hoffmann


Prof. Tiago Hermano Breunig

III
NOTA

Você já me conhece das outras disciplinas? Não? É calouro? Enfim, tanto


para você que está chegando agora à UNIASSELVI quanto para você que já é veterano, há
novidades em nosso material.

Na Educação a Distância, o livro impresso, entregue a todos os acadêmicos desde 2005, é


o material base da disciplina. A partir de 2017, nossos livros estão de visual novo, com um
formato mais prático, que cabe na bolsa e facilita a leitura.

O conteúdo continua na íntegra, mas a estrutura interna foi aperfeiçoada com nova
diagramação no texto, aproveitando ao máximo o espaço da página, o que também
contribui para diminuir a extração de árvores para produção de folhas de papel, por exemplo.

Assim, a UNIASSELVI, preocupando-se com o impacto de nossas ações sobre o ambiente,


apresenta também este livro no formato digital. Assim, você, acadêmico, tem a possibilidade
de estudá-lo com versatilidade nas telas do celular, tablet ou computador.
 
Eu mesmo, UNI, ganhei um novo layout, você me verá frequentemente e surgirei para
apresentar dicas de vídeos e outras fontes de conhecimento que complementam o assunto
em questão.

Todos esses ajustes foram pensados a partir de relatos que recebemos nas pesquisas
institucionais sobre os materiais impressos, para que você, nossa maior prioridade, possa
continuar seus estudos com um material de qualidade.

Aproveito o momento para convidá-lo para um bate-papo sobre o Exame Nacional de


Desempenho de Estudantes – ENADE.
 
Bons estudos!

IV
V
VI
Sumário
UNIDADE 1 – LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?......................................................................... 1

TÓPICO 1 – LITERATURA E SEUS CONCEITOS............................................................................ 3


1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 3
2 COMO A LITERATURA ACONTECE............................................................................................... 3
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 9
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 10

TÓPICO 2 – NOÇÕES DE ARTE E CULTURA.................................................................................. 11


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 11
2 A ARTE..................................................................................................................................................... 11
3 A CULTURA............................................................................................................................................ 14
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 16
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 17

TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES DA LITERATURA.................................................................................. 19


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 19
2 IDENTIFICAÇÃO DAS FUNÇÕES DA LITERATURA................................................................ 19
2.1 FUNÇÃO ESTÉTICA....................................................................................................................... 20
2.2 FUNÇÃO COGNITIVA.................................................................................................................... 22
2.3 FUNÇÃO POLÍTICO-SOCIAL OU ENGAJADA........................................................................ 23
2.4 FUNÇÃO PRAGMÁTICA............................................................................................................... 26
2.5 FUNÇÃO CATÁRTICA................................................................................................................... 27
2.6 FUNÇÃO LÚDICA........................................................................................................................... 29
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 30
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 31

TÓPICO 4 – O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO.......................................................... 35


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 35
2 A FORMAÇÃO DO CÂNONE............................................................................................................ 36
3 AFINAL, O QUE É UM CLÁSSICO?................................................................................................. 37
RESUMO DO TÓPICO 4........................................................................................................................ 40
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 41

TÓPICO 5 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO................................................... 43


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 43
2 GÊNERO LÍRICO (POESIA)............................................................................................................... 43
3 GÊNERO NARRATIVO....................................................................................................................... 49
4 GÊNERO DRAMÁTICO...................................................................................................................... 57
LEITURA COMPLEMENTAR................................................................................................................ 63
RESUMO DO TÓPICO 5........................................................................................................................ 67
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 69

VII
UNIDADE 2 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO...................................... 71

TÓPICO 1 – A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS.................................................................. 73


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 73
2 A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS: CONTEXTUALIZAÇÃO E
PROBLEMATIZAÇÃO......................................................................................................................... 73
2.1 A APLICABILIDADE DA TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS HOJE.............................. 81
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 87
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 88

TÓPICO 2 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS.......................................................................................... 89


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 89
2 O GÊNERO DRAMÁTICO E O GÊNERO LÍRICO........................................................................ 89
3 O TEXTO DRAMÁTICO: ORIGEM E EVOLUÇÃO...................................................................... 96
3.1 BREVE PANORAMA DO TEATRO AO LONGO DOS TEMPOS............................................. 96
3.2 OS TIPOS DE TEATRO.................................................................................................................... 105
4 O TEXTO POÉTICO: CARACTERÍSTICAS.................................................................................... 106
4.1 A ESTRUTURA DO POEMA.......................................................................................................... 112
4.2 O VERSO ........................................................................................................................................... 116
4.2.1 A rima........................................................................................................................................ 118
4.2.2 Metrificação e escansão . ........................................................................................................ 120
4.2.3 Poemas: formas fixas e visuais............................................................................................... 122
4.2.4 Método de análise e interpretação de poemas.................................................................... 130
RESUMO DO TÓPICO 2........................................................................................................................ 137
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 138

TÓPICO 3 – LITERATURA DE CORDEL............................................................................................ 139


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 139
2 LITERATURA DE CORDEL................................................................................................................ 139
RESUMO DO TÓPICO 3........................................................................................................................ 144
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 145

UNIDADE 3 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO......................................... 147

TÓPICO 1 – O GÊNERO ÉPICO............................................................................................................ 149


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 149
2 O GÊNERO NARRATIVO E AS RELAÇÕES DA LITERATURA COM OUTRAS ÁREAS
DO CONHECIMENTO........................................................................................................................ 150
2.1 GÊNERO ÉPICO............................................................................................................................... 154
2.1.1 A origem do gênero épico...................................................................................................... 154
2.1.2 Características do gênero épico............................................................................................. 156
2.1.3 A trajetória das epopeias........................................................................................................ 163
RESUMO DO TÓPICO 1........................................................................................................................ 175
AUTOATIVIDADE.................................................................................................................................. 176

TÓPICO 2 – O GÊNERO NARRATIVO............................................................................................... 177


1 INTRODUÇÃO...................................................................................................................................... 177
2 O GÊNERO NARRATIVO................................................................................................................... 178
2.1 CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO NARRATIVO..................................................................... 180
2.2 OS TIPOS DE NARRATIVAS.......................................................................................................... 182
2.3 OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA NARRATIVA: ENREDO, PERSONAGEM,
TEMPO, ESPAÇO E NARRADOR................................................................................................. 186

VIII
RESUMO DO TÓPICO 2......................................................................................................................205
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................206

TÓPICO 3 – LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE......209


1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................................209
2 LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE..........................210
LEITURA COMPLEMENTAR..............................................................................................................216
RESUMO DO TÓPICO 3......................................................................................................................225
AUTOATIVIDADE................................................................................................................................226

REFERÊNCIAS........................................................................................................................................227

IX
X
UNIDADE 1

LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade, você será capaz de:

• analisar criticamente os conceitos de literatura e os meios de onde eles


surgem;

• compreender algumas noções de arte e cultura e suas implicâncias na


construção literária;

• identificar as diferentes funções da literatura;

• reconhecer as condições de produção dos cânones/clássicos e suas


implicações sócio-temporais;

• distinguir a estrutura e semântica dos diferentes gêneros literários.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em cinco tópicos. Ao final de cada um deles você
encontrará autoatividades que auxiliarão no seu aprendizado.

TÓPICO 1 – LITERATURA E SEUS CONCEITOS

TÓPICO 2 – NOÇÕES DE ARTE E CULTURA

TÓPICO 3 – AS FUNÇÕES DA LITERATURA

TÓPICO 4 – O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO

TÓPICO 5 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

1
2
UNIDADE 1
TÓPICO 1

LITERATURA E SEUS CONCEITOS

1 INTRODUÇÃO
“Só se pode chamar ciência ao conjunto de receitas que funcionam sempre.
Todo o resto é literatura”. Paul Valéry

Conceituar o que é Literatura não é tarefa fácil. Desse termo advêm


conceitos que estão implicados por questões sociais e históricas. Tal conceito
pode ser bastante amplo e abarca os conhecimentos dos indivíduos sobre vários
ramos do saber (matemática, filosofia, história...). Podemos observar que o uso da
palavra literatura de forma genérica, abrangendo escritos de várias áreas, ainda é
bastante corrente, fala-se em literatura do direito, da medicina, entre outras.

A ideia de literatura como uma arte específica, tal como a música, a pintura,
a arquitetura etc., historicamente, ainda é recente. Atualmente, incorpora o sentido
de fenômeno estético e produção artística. Surge, então, um entendimento da
palavra literatura como referente a textos imaginativos e criativos em oposição
aos textos de caráter científico.

Nesse viés, poderíamos definir literatura como a expressão da criatividade


humana. Não há para ela fórmula exata, é fruto da imaginação, ainda que possa
ser baseada na realidade.

2 COMO A LITERATURA ACONTECE


A grande diferença entre ciência e literatura é que a primeira exige um grau
elevado de racionalidade e busca a comprovação dos fenômenos da natureza, do
funcionamento do corpo humano ou da sociedade etc. Já a literatura pode basear-
se em fenômenos da natureza e da sociedade, abre espaço para a subjetividade,
para a criação do impossível dentro dos limites do racional, criando mundos
paralelos ao que conhecemos.

No excerto a seguir, Alice estava em um dia normal como tantos outros,


na chatice da rotina. Por certo, não teríamos motivação para ler sobre uma tarde
rotineira da vida real, mas é aí que aparecem os elementos mágicos. Na história,
Alice é um ser real ou vê-se como tal, mas que descobre um mundo fantástico,
criativo. Numa compreensão de literatura como textos de aspecto imaginativo,
este certamente é um texto literário. Baseia-se em aspectos da realidade, mas
transcende-os, levando o leitor a conhecer um mundo diferente.

3
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Assim, meditava com seus botões (tanto quanto podia, porque o calor
aquele dia era tal que ela se sentia sonolenta e entorpecida) se o prazer de
fazer uma guirlanda de margaridas valeria o esforço de levantar-se e colher as
margaridas, quando de repente um coelho branco com olhos rosados passou
correndo perto dela.

Não havia nada de tão notável nisso; nem Alice achou tão estranho ouvir
o Coelho murmurar para si mesmo, “Ai, meu Deus! Ai, meu Deus! Estou muito
atrasado!” (quando pensou nisso, bem mais tarde, ocorreu-lhe que deveria ter
estranhado; porém, naquele momento, tudo lhe pareceu perfeitamente natural).

Mas quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, deu uma


olhada nele e acelerou o passo, Alice ergueu-se, porque lhe passou pela cabeça
que nunca em sua vida tinha visto um coelho de colete e muito menos com
relógio dentro do bolso. Então, ardendo de curiosidade, ela correu atrás dele
campo afora, chegando justamente a tempo de vê-lo sumir numa grande toca
sob a cerca.

No instante seguinte, Alice entrou na toca atrás dele, sem ao menos


pensar em como é que iria sair dali depois.

A toca do coelho, no começo, alongava-se como um túnel, mas de


repente abria-se como um poço, tão de repente que Alice não teve um segundo
sequer para pensar em parar, antes de se ver caindo no que parecia ser um
buraco muito fundo. (CARROL, 2000, p. 19)

Há outras correntes que compreendem a literatura como o processo


de interação entre obra, autor e receptor/leitor. O que é ou não literário nessa
perspectiva se definiria por meio da recepção. Dessa forma, o texto já não diz tudo,
nem seu autor é o dono de um sentido para ele, o leitor tem sido considerado peça
fundamental no processo de leitura. Assim, o conceito do que é ou não é literário
é bastante subjetivo, certo? Como descreve Orlandi (1993, p. 9), “há um leitor
virtual inscrito no texto. Um leitor que é constituído no próprio ato da escrita. Em
termos que chamamos de ‘formações imaginárias’”. A esse fenômeno, Marques
(2003) chama “leitor imaginário”. Vamos pensar juntos. Se, no ato da escrita, existe
na mente do criador um leitor virtual, que interfere na construção do texto, seria
este uma espécie também de autor? Barthes (1988, p. 68) menciona que “todo
texto é escrito eternamente aqui e agora”. Compreende-se por essa afirmação
uma concepção do conceito de literatura como produto da recepção, ou seja, o
texto se reconstrói eternamente no processo dialógico. Cada leitura é implicada
por processos sociais e históricos que fazem parte da formação de quem escreve
e do leitor em questão.

4
TÓPICO 1 | LITERATURA E SEUS CONCEITOS

Machado de Assis demonstra de maneira clara e consciente em seu trabalho


essa relação com o seu interlocutor, estabelecendo com o leitor um diálogo aberto.
Observe: “Morri de pneumonia; mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, que
uma ideia grandiosa e útil, a causa da minha morte, é possível que o leitor me não
creia, e, todavia, é verdade. Vou expor-lhe sumariamente caso”.

NOTA

Quanto à citação acima, a mesma foi retirada de e-book kindle e não dispõe
de numeração de páginas e editora.

Para demonstrar a complexidade da ideia de autoria que foi surgindo, o


filósofo Michel Foucault demonstrava-se bastante liberal quanto a questões de
apropriação das palavras. Segundo Cascais e Miranda (1992, p. 6), para ele, “a
única solução, a única lei sobre a edição, a única lei sobre o livro que gostaria de
ver instaurada seria a da proibição de utilizar duas vezes o nome de autor, para
que cada livro seja lido por si mesmo”. O autor promovia aulas no Collège de
France e nunca se importou que as mesmas fossem gravadas, o que é condizente
com o seu pensamento de não apropriação das ideias.

Ironicamente, logo após a sua morte, e contradizendo seus princípios, as


aulas outrora gravadas foram publicadas sob seu nome, o que certamente garante
a elas um valor simbólico dado pelo renome do filósofo. Ao mesmo tempo em
que, nessa perspectiva da recepção, seria o leitor quem definiria as melhores
obras literárias, está ele também sujeito às leis de mercado, às grifes de que fala
Bourdieu em “A Produção da Crença”.

A definição do que é ou não literatura varia de acordo com o tempo e o


espaço e, conforme Zappone e Wielewicki (2014), está implicada nas coerções das
instituições e do mercado. Assim, a literatura é definida por uma comunidade
(professores universitários, críticos literários, mercado editorial, escola) que
determina os critérios para se reconhecer o texto como literário. As autoras ainda
alertam que instituições como a escola, as universidades e a crítica especializada,
além de formarem uma comunidade que define critérios para reconhecer o texto
como literário, definem também as leituras possíveis para os textos literários, ou
seja, formam uma comunidade interpretativa. É a partir das instituições escolares
e acadêmicas que, de maneira geral, adquirimos uma consciência sobre quais
obras são consideradas literatura e quais não o são. São as instituições que nos
inculcam noções sobre o que considerar literatura e o que considerar boa ou má
literatura. O interessante é que a própria literatura pode demonstrar essa relação
das instituições com a palavra escrita. Exemplo disso está no excerto de um conto
intitulado “Um Encontro”, de James Joyce, publicado pela primeira vez em 1914:

5
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Certo dia, o padre Butler nos examinava sobre quatro páginas de


história romana e o desajeitado Leo Dillon foi surpreendido com um
exemplar do The Halpenny Marvel. — Esta página ou esta outra?
Agora, Dillon, vamos! O dia mal... Vamos! Mal amanhecera o dia...
Estudou isto? Que tem aí no bolso? Nossos corações dispararam
quando Leo Dillon entregou-lhe o folhetim e nós todos assumimos um
ar inocente. Padre Butler virou as páginas, franzindo o cenho. — Que
porcaria é esta? — perguntou ele. — O Chefe Apache! É isto que você
lê ao invés de estudar história romana? Que eu não encontre mais esta
maldita droga no colégio. O indivíduo que escreveu isto, suponho, é
um desses pobres-diabos que escrevem para ter com que pagar sua
bebida. Surpreende-me que um menino como você, educado, leia
tais tolices. Compreenderia se se tratasse de... de alunos da Escola
Nacional (JOYCE, 2003, p. 18).

No excerto acima fica claro que, para o padre há textos que são considerados
literatura e outros que não o são. Ao entendermos a literatura como “formações
imaginárias”, Orlandi (1993) observa que é necessário compreender que estamos
em um terreno movediço, visto que, bem como observa Barthes (1988), o texto
é escrito sempre aqui e agora. Junto aos conceitos que podemos depreender
acerca do que é literatura, observamos, também, vários pré-conceitos que estão
imbricados pelos costumes sociais e temporais. Afinal, como observamos no
excerto do conto de James Joyce, há textos que historicamente e dentro de um
espaço determinado não são considerados. Julgando-se, nesse exemplo, não só a
obra quanto o seu escritor e leitor.

Como observa Hoffmann (2014), muitas vezes, o único conceito capaz de


distinguir um clássico da literatura de outras obras é a efemeridade. Considera-
se, nesse aspecto, o clássico como a literatura aceita e propagada por “classes/
instituições”, sejam elas as escolas, sejam as academias, que fazem valer o nome
de alguns autores e obras ao longo do tempo.

Nesse aspecto, Pierre Bourdieu (2004) aponta que a literatura, bem como
outros bens de consumo, adquire uma grife, um conceito ou moda que são
suscetíveis conforme o tempo e os anseios do mercado. Daí as obras que vendem
milhares de exemplares (muita gente lendo a mesma coisa), o que gera um capital
tanto financeiro para as editoras quanto um capital social, que serve de espaço para
a discussão entre membros detentores das mesmas leituras, mas são substituídas
constantemente por outras novas obras. Porém, é complicado pensar que, por si só,
os denominados clássicos estão além das leis de consumo. Eles continuam porque
existem instituições que mantêm o seu status ao longo dos tempos, na condição de
textos de estudo obrigatório. Seu consumo não se dá em quantidade tão grande
quando as obras que chamamos best-sellers, mas é permanente.

“Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de


Almeida, e “A Mão e a Luva”, de Machado de Assis, hoje são considerados
grandes ícones da literatura, mas surgiram como folhetins de entretenimento
cotidiano e numa linguagem sempre preocupada em interagir com o seu
leitor. Esses, geralmente membros de uma elite burguesa, portanto difundiam
valores de acordo com esse público.

6
TÓPICO 1 | LITERATURA E SEUS CONCEITOS

Nessa perspectiva, compreende-se que a definição entre o que é ou não


literatura entra e sai de moda conforme a estação, ou seja, é efêmero, afinal torna-
se difícil estabelecer critérios imutáveis aplicados a todas as obras. Já as obras
tidas como clássicas, podemos compará-las ao “pretinho básico”, visto que a
permanência de sua elegância está garantida ao longo dos tempos pelos críticos
e pelas instituições.

Compreendemos aqui que a literatura como arte é capaz de levar o


homem a vivenciar experiências e emoções, aquela capaz de emocionar ou
mesmo provocar o seu leitor, ou seja, deverá existir uma identificação entre a obra
e o seu leitor. Quando isso não acontece entre a obra literária e os seus críticos,
possivelmente ela será desclassificada, como observamos no excerto de James
Joyce, anteriormente citado. Assim, a definição de literatura passa pelo crivo: é
arte para quem?

Dessa forma, o escritor deve estabelecer um diálogo estético e crítico com


a realidade, mas deve também ser um criador de mundos imaginários, trazendo
à tona os sonhos e frustrações das pessoas do seu tempo, levando-as a uma
produção de sentidos do texto das formas mais diversas, indo além das linhas, do
dito explícito, fazendo conexões entre arte e realidade.

Para encerrar este tópico, podemos concluir que a literatura como arte é
um clássico, ou seja, aquela que permanece na memória com o passar do tempo.
No entanto, Ítalo Calvino (2002, p. 10) aborda que “Os clássicos são livros que
exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e
também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como
inconsciente coletivo ou individual”. Nesse viés, podemos apontar ainda que
aquilo que é literatura pode ser um consenso, mas também cada um de nós pode
ter aquelas obras que consideramos literatura de forma individual, à revelia do
senso comum. Como vimos, há certa dificuldade em distinguir a literatura de
conceitos valorativos.

NOTA

Mimetizando-se tem sentido de: adaptando-se à mente como se sempre


estivesse ali.

7
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

A literatura faz parte do produto geral do trabalho humano, isto é,


da cultura. E a cultura de um povo são suas realizações, em diversos
sentidos, como as ciências e as artes. É um conjunto socialmente
herdado, que de certo modo determina a vida do indivíduo
(SAMUEL,1985, p. 7).

São as relações humanas que formam nossa cultura, é através do contato


com o outro que nos transformamos naquilo que somos, na maneira como agimos,
como construímos nossas crenças, definimos características de linguagem, modo
de vestir etc.

Consideramos que todas as criações humanas que visam expressar o


mundo de modo sensível, através de recursos das artes plásticas, da linguística,
da sonoridade, todas essas formas de exprimir emoções e percepções são arte. É
pela arte que expressamos a nossa cultura. Por isso, estudar e compreender a arte
e a cultura é um exercício de autocompreensão.

8
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A princípio, o termo literatura abarca o conteúdo das mais variadas áreas:


direito, astronomia, medicina etc. Com o passar do tempo surge o conceito de
literatura como expressão artística da oralidade e da escrita.

• A literatura distingue-se da ciência, apesar de que, como ela, pode basear-


se em fenômenos naturais ou sociais, transcende os limites da realidade/
racionalidade, acrescentando criativamente à ficção e à fantasia.

• Algumas correntes consideram a literatura como o processo interativo entre


autor, texto e leitor, compreendendo que o sentido não está pronto no texto
imóvel, mas constrói-se dialogicamente.

• Compreender o leitor como construtor de sentidos remete-nos à teoria da


morte do autor, defendida por Roland Barthes, já que os sentidos do texto,
nessa perspectiva, estariam sendo construídos sempre e continuamente pelo
ato da leitura.

• O conceito do que é literatura varia de acordo com o tempo e o espaço e


qualquer tentativa de consenso tende a ser frustrada.

• Os conceitos que aprendemos sobre literatura normalmente são construídos


por instituições acadêmicas e críticos da área. Porém, existe um conflito entre
o que se considera boa literatura pelas instituições e o que se considera boa
literatura sob a ótica do consumidor dos produtos editoriais contemporâneos,
especialmente os best-sellers.

9
AUTOATIVIDADE

1 Leia o texto a seguir:

Sabemos que o reino das palavras é farto. Elas brotam de nosso


pensamento de maneira natural, não temos a preocupação de elaborar o que
dizemos ou até mesmo escrevemos.
As palavras, contudo, podem ultrapassar seus limites de significação.
Podendo, assim, conquistar novos espaços e passar novas possibilidades de
perceber a realidade.
O caminho que a literatura percorre é este. O artista sente, escolhe e manipula
as palavras, as organiza para que produzam um efeito que vá além da sua
significação objetiva, procurando aproximá-las do imaginário (DANTAS, 2017).

Com base nesse texto, podemos afirmar que:

a) ( ) A literatura é pautada sempre na realidade.


b) ( ) No texto literário, o sentido – a interpretação construída –, diferentemente
dos textos não literários, é subjetiva, conta com a imaginação do escritor
e leitor.
c) ( ) O texto literário afasta-se da realidade, não busca nela inspiração, pois
assim seria tomado por simplório.
d) ( ) O texto literário geralmente tem caráter objetivo e sai do pensamento
do seu criador de forma espontânea, sem uma preocupação com a
forma de sua elaboração.

10
UNIDADE 1
TÓPICO 2

NOÇÕES DE ARTE E CULTURA

1 INTRODUÇÃO
Podemos entender cultura como o cultivo da mente humana e as práticas
que dela advêm. Estas estão ligadas à sociedade em que se insere e sua história.
O termo culturas, no plural, refere-se ao fato de que em diferentes espaços os
indivíduos desenvolvem culturas singulares, o que as distingue das demais.
Dessa forma, a identidade de cada indivíduo se desenvolve em relação à cultura
a que está exposto e às suas experiências particulares.

A literatura, bem como outras artes, está implicada pela cultura e esta é
capaz de criar mundos, no plural. Ao falar de arte não há como dissociá-la da
cultura na qual ela nasce. Porém, a cultura não é estática, visto que, com o tempo
mudam-se os valores, os costumes, a maneira que cada sociedade tem de ver o
mundo e de organizar a vida.

Assim também a arte há de renovar-se constantemente e, apesar de


nascida dentro de cultura específica, que por sua vez dialoga com outras culturas,
é produto do pensamento do artista, que tem uma identidade própria, tornando
cada obra de arte singular.

A arte representa a sociedade e a cultura, expressa maneiras de contemplar


o mundo, mas o recria de acordo com a forma de expressar de seu criador. A arte,
antes de tudo, está ligada à estética, à contemplação, mas muitas vezes mostra-se
crítica, subversiva e desafiadora, trazendo-nos o desafio nem sempre tranquilo de
ver e pensar além.

2 A ARTE
"A ciência descreve as coisas como são; a arte como são sentidas, como se
sente que são". Fernando Pessoa

A palavra arte deriva do latim ars ou artis, que significa maneira de ser ou
de agir, habilidade. Na cultura greco-romana possuía o sentido de ofício. Nesse
aspecto, a arte está ligada ao fazer, construir manualmente. A ela também se atribui
o sentido de conhecimento, visão ou contemplação. Nesse sentido, não se coloca
como arte apenas o aspecto exterior, mas um sentido próprio de visão da realidade.

11
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Compreende-se, assim, a arte como o espaço de fazer, de conceber o


conhecimento e produzir uma visão possível, mas não única. Valores estéticos,
criação e atividades humanas estão implicados em determinados períodos
históricos, diferentes culturas sociais ou mesmo interpretações individuais.

Se, por um lado pode parecer difícil dar uma explicação incontestável
sobre o que é arte, por outro, se nos pedem para dar exemplos de artistas ou
obras artísticas, certamente lembraremos alguns itens que de maneira geral
compreendem-se como tal: o romance Dom Quixote de Cervantes, as pinturas
Mona Lisa de Leonardo da Vinci ou Abaporu de Tarsila do Amaral etc. Explicar o
porquê essas obras são arte é mais complexo.

Podemos entender por arte manifestações da atividade humana que nos


trazem sentimentos de admiração, reflexão da realidade etc. Podemos dizer,
ainda, que a interpretação da arte consiste no entendimento do que é belo, do que
nos faz ver novas perspectivas da realidade. Nesse aspecto, perceber a arte seria
mais interessante que a definir.

No entanto, a própria arte e seus artistas podem trazer desafios a esse


entendimento e aí voltamos à pergunta: Isso é arte?! Jorge Coli (1995) exemplifica
um desses desafios ao mencionar Marcel Duchamp, que leva à exposição um
mictório igual a tantos outros, sem nenhuma mudança estética, levando apenas
sua assinatura. Seria essa uma crítica à arte que aceita como tal quaisquer criações
existentes sob a assinatura de um artista já consagrado?

FIGURA 1 - MICTÓRIO

FONTE: Marcel Duchamp (1917)

12
TÓPICO 2 | NOÇÕES DE ARTE E CULTURA

O artista faz o mesmo com outros objetos do cotidiano, como rodas de


bicicleta ou garrafas, incitando o público a pensar que um objeto é artístico
simplesmente porque deslocado de seu ambiente cotidiano para um espaço
destinado às obras de arte e aceito como tal. O que poderia ser compreendido
como uma crítica daquilo que se considera cultura ou um questionamento de
valores continua exposto como arte.

Sob esse viés, podemos interpretar que a atitude dos “detentores da


dita alta cultura” estariam tão submissos quanto os consumidores comuns de
determinada marca de roupa ou calçado, atribuindo-lhes um valor agregado pelo
seu nome? Algo que já não se pode mais ser questionado? Por outro lado, tal
objeto, convertido em peça de museu, torna-se peça de contemplação e provoca
sentimentos específicos. Estaria aí seu estatuto de arte? Ou antiarte, que ganha
outros adeptos?

Assim como a valorização de textos, pinturas, músicas etc., dá-se pelas


condições de recepção da arte, existem as condições culturais, estéticas específicas
de um dado espaço institucional ou social etc. Dessa forma, não conseguimos
aqui definir um conceito unânime do que vem a ser arte. Se Mona Lisa é uma arte
maior que Duchamp ou não. Estes são conceitos movediços e cada um tem seu
espaço próprio.

Adorno (1997) explica que a arte em si não tem utilidade, logo não se
pode comparar com um utensílio. Ela não pode ter uma finalidade, pois é já uma
finalidade em si mesma. Só objetos são definidos não pelo que são, mas para o
que servem. A arte seria o espaço da liberdade, não visa a nada além de si mesma.

O autor ressalta, ainda, que o valor de comércio de dada arte não tem
relação com o valor estético, visto que o valor de uma obra de arte é inestimável.
Tampouco saber se um artista ganha muito dinheiro corresponde ao valor de sua
arte e sim a um valor de mercado.

Sobre isso, Pierre Bourdieu, em “A Produção da Crença” (2004), menciona


que a arte tem um capital simbólico, ou seja, o valor que se atribui em termos de
cultura ao detentor de uma obra; um valor social, que permite ao possuidor e
consumidor de determinadas obras circular em determinados meios sociais, e o
capital material, medido em dinheiro, vale mais que aquele que possui trabalhos
mais valorizados pela crítica, sendo que os nomes dos autores ou obras funcionam
mesmo como uma grife.

Daí possamos talvez inferir que o exemplo do mictório de Marcel Duchamp


foi retirado da sua condição de objeto e não tem mais serventia, resta-lhe o papel
de arte, acentuado pela assinatura (marca) do artista.

Parece-nos bastante complexa essa discussão, não? Mas temos até aqui
uma boa reflexão a fazer.

13
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

3 A CULTURA
A cultura é a própria identidade nascida na história, que ao mesmo
tempo nos singulariza e nos torna eternos. É índice e reconhecimento da
diversidade. Campomori

A palavra cultura surge no século XV com o entendimento de cultivo da terra,


daí o fato de hoje usarmos palavras como agricultura, floricultura, suinocultura etc.
No século XVI, cultura passa a referir-se também ao cultivo da mente humana,
afirmando-se que somente alguns indivíduos, classes ou grupos sociais têm mentes
e maneiras cultivadas e que somente alguns possuem nível elevado de cultura e
civilização. Já a palavra culturas, no plural, refere-se a diferentes modos de vida,
valores e significados compartilhados por grupos distintos.

A cultura está intrinsecamente ligada à comunicação humana, ao uso de


linguagens, visto que o homem vive em comunidade e é preciso que exista uma
língua e uma cultura semelhantes para que possam interagir.

As diferentes linguagens é que distinguem uma sociedade das demais.


É através da linguagem que o homem consegue acumular os conhecimentos
e transmiti-los às próximas gerações. Essa linguagem, por sua vez, está em
constante mutação, porque está relacionada com as atividades sociais e se adéqua
às necessidades que vão surgindo. Está ligada à forma de enxergar o mundo,
de encarar as dificuldades e as alegrias. A cultura é que determina os hábitos
particulares de um povo. Nesse sentido, não há, como muitas vezes ouvimos, povo
sem cultura. O que há são culturas mais ou menos valorizadas em determinados
espaços sociais.

É através da literatura como elemento cultural que se desfaz a ideologia


de homem como objeto, instrumento para funcionalidades práticas, para dar
espaço ao homem como momento do espírito humano, como ser cultural. É a
percepção do homem por si mesmo. A literatura trabalha para o desenvolvimento
de conceitos interiores, do espírito humano, para os estímulos artísticos. É através
do conhecimento da literatura e de outras artes que compreendemos tanto a
nossa cultura quanto nos tornamos mais sensíveis às culturas alheias. Por meio
da literatura compreendemos a visão de sociedade de outras épocas e de outros
povos. É por meio da literatura que nos detemos por mais tempo a contemplar
uma obra e a pensar nas culturas nela descritas ou expostas.

A literatura é uma das artes capazes de mostrar e estudar a cultura de um


povo, ou mesmo a construção de dadas culturas. Mesmo que talvez o conceito mais
comum sobre literatura esteja ligado à arte por ela mesma, também encontramos
várias outras funções da literatura. Sobre isso, trataremos no próximo tópico.

14
TÓPICO 2 | NOÇÕES DE ARTE E CULTURA

DICAS

SUGESTÃO DE FILME: O SORRISO de Mona Lisa. Direção de Mike Newell.


Produção de Revolution Studios e Columbia Pictures. 2003.
O filme é protagonizado por Julia Roberts, no papel de Katherine Watson, uma professora
de História da Arte muito empolgada por conseguir uma vaga para lecionar em Wellesley.
Porém, logo percebe o tamanho do desafio que teria de enfrentar. Na primeira aula, ao fazer
uma introdução da história da arte, conforme foi passando slides com obras, suas alunas
sabiam o nome de todas elas, de quando datavam e já tinham até as suas interpretações. O
que deixa a protagonista meio sem chão.
Isso porque tinham lido todo o livro destinado à disciplina, talvez justamente para pôr a
nova professora numa saia justa. Daí por diante, Katherine muda a estratégia e desafia suas
alunas a interpretar outras obras de arte, que não aquelas previstas no livro didático, instiga
as estudantes a construírem seus entendimentos. A arte que se estuda institucionalmente
costuma ser arte conforme os critérios de quem? Mas aí entra em jogo o papel da direção da
escola que questiona os métodos da professora por priorizar o ensino de obras “clássicas”.
Além do conceito de arte, o filme abrange também questões culturais, especialmente sobre
a vida e o papel social das mulheres nos anos 50. O que esperar delas? É um drama que
vale a pena você conhecer e que certamente conseguirá fazer um link com o que estamos
estudando sobre arte e cultura.

15
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• A arte é amplamente entendida como representação estética, singular da


realidade e da criatividade humana. Está ligada a períodos históricos e às
sociedades em que se insere, mas é produto do fazer/da atividade humana
e como tal cada obra será singular, produto de uma mente individual. Não
conseguimos ter uma definição fechada do que vem a ser arte, de maneira que
se torna mais fácil identificá-la do que a definir.

• Como vimos com o exemplo de Marcel Duchamp, corre-se o risco de o produto


confundir-se com a assinatura de um artista consagrado, de forma a identificar
quaisquer objetos como arte. É dessa forma que o conceito de arte se confunde
com o conceito de grife/marca.

• Por cultura compreendemos o fazer humano, suas práticas em relação à


sociedade em que se insere. Diferentes culturas representam diferentes
realidades e formas de ver o mundo, e a arte é a expressão da cultura, porém
reconstruída sob a ótica particular do artista.

16
AUTOATIVIDADE

1 O conceito de arte está ligado ao trabalho humano que provoca admiração,


seja por sua beleza ou criatividade. Há uma corrente que defende que, apesar
de ser fruto do trabalho humano, a arte tem uma finalidade em si mesma
enquanto objeto artístico e, portanto, não pode comparar-se a um utensílio.
Não há uma definição conclusiva sobre o que é arte, logo a mesma está sujeita
às condições de aceitação da crítica e do público. Observamos que, às vezes,
o nome do artista ganha renome e logo tudo que venha da ação dele acaba
sendo considerado arte, ou seja, acontece com a arte o mesmo que acontece
com quaisquer produtos de consumo em massa: a marca do sabão em pó,
da calça jeans, do tênis etc. Dessa forma, muitas vezes, o nome do artista
ou o espaço em que se localiza determinado objeto simplesmente acaba por
defini-lo como arte, mas essa é uma questão que gera muita discussão.

Sobre isso, assinale V (verdadeiro) ou F (falso) para cada uma das


alternativas a seguir.

( ) Qualquer objeto deslocado do seu espaço original para um espaço artístico


torna-se arte e ninguém discute isso.
( ) Segundo o que estudamos, a arte, assim como a roupa ou outros produtos,
estão sujeitos a ter no nome do seu autor um efeito de marca, grife.
( ) Para Adorno, a arte em si não tem utilidade, logo não se pode comparar
com um utensílio.
( ) Geralmente um objeto é determinado como arte por um grupo de pessoas
que o aceitam como tal, mas não é possível dar um conceito fechado sobre
o que é ou não é arte.

A sequência correta é:

a) ( ) V,V,V,V
b) ( ) F,F,F,F
c) ( ) F,V,F,V
d) ( ) F,V,V,V

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18
UNIDADE 1
TÓPICO 3

AS FUNÇÕES DA LITERATURA

1 INTRODUÇÃO
Assim como a arte pode ter um conceito mais comum, que está ligado
ao belo, à apreciação, essa é, também, uma das definições mais recorrentes de
literatura, sendo que, nesse viés, a literatura não teria outro compromisso além
do estético. Essa é a primeira função da literatura, a estética. Seria assim a
contemplação do belo.

No entanto, a literatura também pode ser pragmática; atende a anseios


ideológicos de determinados grupos; atua como forma de protesto à política e
à sociedade; informa, de maneira particular, ativando sentimentos e sensações;
funciona como catarse, de forma a purificar o espírito do autor e do leitor.

São essas as funções da literatura e, de acordo com o descrito acima, são


nomeadas como: função cognitiva, político-social, pragmática, catártica e lúdica.
Veremos com mais detalhes cada uma delas a seguir.

2 IDENTIFICAÇÃO DAS FUNÇÕES DA LITERATURA


Assim como outras formas de arte, a literatura tem o intuito de mobilizar
sentimentos e sensações através da palavra, não se trata apenas de usá-la como
meio de comunicação, embora também o faça. Enquanto outros textos têm uma
finalidade talvez mais objetiva, a arte literária permite transpor o mundo do nosso
cotidiano sem dele se perder, permitindo-se à subjetividade dos textos de caráter
conotativo, ou seja, que adquirem uma interpretação polissêmica.

Apesar disso, a literatura está ligada à sociedade que representa, afinal,


os escritores são cidadãos de um meio social específico. Dessa forma, é comum
ouvirmos que o artista recria a realidade, tornando-a mais interessante e, por
vezes, mágica ou mística.

O que vamos observar a seguir é que a literatura não tem uma finalidade
específica, porém não é ingênua, nem vaga, não acontece simplesmente ao acaso,
ela exerce várias funções em relação ao público leitor que vai desde a contemplação
da beleza à emotividade e à mobilização política e social.
19
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

NOTA

Conotativo: que tem sentido figurado, diferente daquele dicionarizado, quando


uma palavra ou expressão adquire novos sentidos.
Polissêmica: que pode ter diferentes sentidos conforme o contexto e os sujeitos envolvidos
(nesse caso, escritor/leitor/sociedade).

2.1 FUNÇÃO ESTÉTICA


Podemos afirmar que esta talvez seja a mais representativa das funções
da literatura, visto que se encontra mesmo no cerne daquilo que a maioria dos
conceitos aponta sobre o que vem a ser arte e literatura. Como identificamos
neste material, ao falar sobre a literatura e seus conceitos, ela tem o sentido de
fenômeno estético e produção artística. É o fazer estético, criativo, que difere o
texto literário do científico, jornalístico etc.

Não é apenas o tema que toca o leitor, mas principalmente a maneira


como ele é retratado, a maneira como ele interpela o seu público, os sentimentos
e emoções que desperta. Não se trata apenas de dizer, mas principalmente a
maneira como é dito.

A capacidade de apreciar o belo, o bonito e as sensações que sentimos em


contato com a obra literária se relacionam ao emprego adequado da metrificação,
do ritmo, da rima, das figuras de linguagem, da articulação de personagens,
estruturação do enredo etc.

Olavo Bilac, poeta brasileiro que muito se esmerou em utilizar técnicas


perfeitas na produção de sua literatura, expressa seu ideal de escritor no poema
Profissão de fé, comparando o trabalho do poeta à produção de uma joia.

Invejo o ourives quando escrevo:


Imito o amor
Com que ele, em ouro, o alto relevo
Faz de uma flor.
Por isso, corre, por servir-me,
Sobre o papel
A pena como em prata firme
Corre o cinzel.
Torce, aprimora, alteia, lima
A frase: e, enfim,

20
TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

No verso de ouro engasta a rima


Como um rubi.
Quero que a estrofe cristalina
Dobrada ao jeito
Do ourives saia da oficina
Sem defeito:
Assim procedo. Minha pena
Segue esta norma,
Por te servir, Deusa serena,
Serena Forma!

Nota-se a preocupação estética tanto pelas palavras do poeta quanto pela


apresentação das rimas e da estrutura do poema em questão.

Vinícius de Moraes escreveu sonetos, sempre se preocupando com as


características formais. O soneto, por natureza, deve sempre ser composto por
duas estrofes de quatro versos (quartetos) e duas estrofes de três versos (tercetos),
se não for assim, não será um soneto.

Além disso, o escritor traz a seus poemas melodia, rima e métrica perfeita.
O que nos leva a compreender: existe uma preocupação com a forma, prevista pela
função estética. Você pode notar que aqui fazemos a escanção de cada verso do poema
(divisão em sílabas poéticas), de maneira que se observa mesmo uma preocupação
matemática do poeta ao fazer cada verso com o mesmo número de sílabas.

Soneto de Fidelidade

De/ tu/do ao/ meu/ a/mor/ se/rei/ a/ten/to


An/tes/ e /com/ tal /ze/lo, e/ sem/pre, e/ tan/to
Que/ mes/mo em/ fa/ce/ do/ mai/or/ en/can/to
De/le /se en/can/te /mais/ meu/ pen/sa/men/to
Que/ro/ vi/vê/-lo em/ ca/da/ vão/ mo/men/to
E em/ seu/ lou/vor/ hei/ de es/pa/lhar/ meu/ can/to
E/ rir/ meu/ ri/so e/ de/rra/mar/ meu/ pran/to
Ao/ seu/ pe/sar/ ou/ seu/ con/ten/ta/men/to
E as/sim/ quan/do/ mais/ tar/de/ me/ pro/cu/re
Quem/ sa/be a/ mor/te, an/gús/tia/ de/ quem/ vi/ve
Quem/ sa/be a/ so/li/dão/, fim/ de/ quem/ a/ma
Eu/ pos/sa/ me/ di/zer/ do a/mor (que/ ti/ve):
Que/ não/ se/ja i/mor/tal,/ pos/to /que é/ cha/ma
Mas/ que/ se/ja in/fi/ni/to en/quan/to/ du/re

Vinícius de Moraes

21
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Veja que as rimas são as mesmas em cada verso das duas primeiras estrofes
e se intercalam na penúltima e última estrofe. Quanto à métrica, temos um soneto
decassílabo, ou seja, todos os versos têm dez sílabas poéticas, que não são contadas
como na divisão de sílabas de palavras para outros fins. As sílabas poéticas fazem-se
de acordo com a sonoridade, de maneira que, por vezes, a sílaba final de uma palavra
aglutina-se à inicial de outra, geralmente isso acontece quando há encontro de vogais.

Isso pode parecer um pouco complexo agora, mas não se preocupe, as


regras de metrificação serão estudadas na segunda unidade deste material. Nesse
momento, as trouxemos com o intuito de exemplificar o seu uso como uma das
regras estruturais com vistas à estética literária.

Apesar de a preocupação estética estar no cerne da produção literária, os


textos podem ter funções práticas, como informar e fazer perceber o conhecimento.
É o que veremos a seguir ao tratar da função cognitiva.

2.2 FUNÇÃO COGNITIVA


Entende-se por função cognitiva aquela em que o escritor descreve a
percepção do conhecimento de maneira particular, a forma pessoal como visualiza
o mundo ao seu redor é o espaço em que razão e emoção se fundem.

Leia o poema a seguir e observe que, além das características do gênero


poesia, como o ritmo e sonoridade, a informação transmitida faz parte do
cotidiano, porém o texto literário está impregnado da emoção, da percepção
pessoal de uma dada realidade. O poema informa uma realidade a partir do
ponto de vista do eu lírico.

O bicho

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,


Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,


Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.

Manuel Bandeira

Analisemos agora uma reportagem que trata do mesmo tema:


22
TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

Homem cata comida no lixo perto de local de reunião da Rio+20

Ele contou que recolhe restos de carne crua para alimentar a família.
Sem trabalho, ele mora nas ruas do Rio de Janeiro há oito anos.

Um homem foi visto catando comida no lixo em frente ao prédio onde


ocorria uma reunião sobre segurança alimentar da Rio+20. O flagrante foi
feito bem em frente ao Centro de Convenções Sul América, a Cidade Nova, no
Centro do Rio de Janeiro, durante uma reportagem para o Globo Rural, nesta
sexta-feira (22).

Como mostrou o RJTV, Luciano da Silva, de 26 anos, contou que há oito


anos mora nas ruas e depende dos restos de comida para sobreviver. O que ele
cata no lixo serve de alimento para toda a família. Como não trabalha, ele diz
que costuma pegar no lixo pedaços de carne crua e de comida pronta.

O flagrante foi feito no dia em que o documento final da Rio+20 foi


divulgado. Entre os temas tratados está justamente a erradicação da pobreza.

FONTE: HOMEM CATA COMIDA NO LIXO PERTO DE LOCAL DE REUNIÃO DA RIO+20. Rio de


Janeiro, 22 jun. 2012. Disponível em: <http://g1.globo.com/natureza/rio20/noticia/2012/06/
homem-cata-comida-no-lixo-perto-de-local-de-reuniao-da-rio20.html>. Acesso em: 23 abr. 2017.

Nesse último texto, o tema é bastante semelhante ao do poema de Manuel


Bandeira, porém é escrito de maneira impessoal, tem caráter comunicativo e não
explora aspectos emotivos. Poderíamos ainda dizer, segundo algumas definições
de literatura, que essa característica de sobriedade e imparcialidade diante da
informação categoriza esse segundo texto como não literário.

Tanto o poema quanto a reportagem têm caráter informativo, porém


o primeiro imprime uma marca pessoal e podemos até dizer que, além disso,
caminha para uma crítica social. Este aspecto, aliás, é trabalhado pela função
político-social ou engajada, sobre a qual trataremos a seguir.

2.3 FUNÇÃO POLÍTICO-SOCIAL OU ENGAJADA


Compreende-se como aquela que trata de problemáticas características de
determinado contexto espaçotemporal. Conforme Paviani (2003, p. 85), “a arte em
sua suprema determinação é um passado. No momento atual cabe antecedência
à reflexão”. Ou seja, nessa perspectiva, a arte como função social deve prevalecer
à perspectiva de existência da arte pela arte. Segundo ele, Hegel afirmava que
“A ciência da arte é muito mais necessária em nossa época do que em outras nas
quais a arte chegava por si mesma a obter inteira satisfação” (PAVIANI, 2003, p.
85). Contemporaneamente, a arte e a literatura adquirem o espaço de discussão
político-social, retrata as carências da sociedade atual.
23
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

O poema O bicho, que usamos para tratar da função cognitiva, ao mesmo


tempo que explicita uma realidade de maneira pessoal, traz uma crítica social a
respeito das desigualdades sociais, de forma que, além da função cognitiva, traz
também a função de literatura engajada. Um autor brasileiro de bastante destaque
nesse aspecto é Ferreira Gullar, definido por Costa (2017, p. 58) como escritor que
tem “autenticidade temática pelo engajamento político-social; na verdade, um
letal ‘punhal de fina lâmina’ quando ativista verbal, o que lhe garante lugar de
destaque na poesia brasileira”.

Leia o poema a seguir e observe nele a função de que estamos falando.

Não há vagas

O preço do feijão
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
a luz
o telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açúcar
do pão
O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.
Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras
– porque o poema, senhores,
está fechado:
“não há vagas”
Só cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema, senhores,
não fede
nem cheira.

Ferreira Gullar

24
TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

E
IMPORTANT

As obras costumam ter direitos autorais até 70 anos após a morte de seu autor.
Ferreira Gullar faleceu em 2016. Porém, segundo Ana Beatriz Nunes Barbosa
(2017), “há usos que são permitidos, MESMO NO CASO DE OBRA PROTEGIDA. Seriam estes
casos os das chamadas limitações ao direito autoral:
[...]
• A citação em livros, jornais, revistas ou qualquer outro meio de comunicação, de passagens
de qualquer obra, para fins de estudo, crítica ou polêmica, na medida justificada para o fim a
atingir, indicando-se o nome do autor e a origem da obra.
• A reprodução, em quaisquer obras, de pequenos trechos de obras preexistentes, de qualquer
natureza ou de obra integral, quando de artes plásticas, sempre que a reprodução em si não
seja o objetivo principal da obra nova e que não prejudique a exploração normal da obra
reproduzida nem cause prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores.

Observação da autora deste material: Esse critério também é utilizado em outras obras que
constam neste estudo, onde poemas são citadas na íntegra para fins de entendimento e
análise, mas não obras completas dos autores. É muito importante saber distinguir o que
é a utilização necessária para fins de estudo do simples plágio (cópia, sem o resguardo da
autoria). Este último constitui crime.

Publicado em 1963, o poema acima retrata problemas sociais e econômicos


do país que, por ironia, continuam muitíssimo atuais, como o custo de vida,
o desemprego, a falta de espaço e importância para a poesia, como o autor
demonstra através da metalinguagem do poema referindo-se a ele mesmo. Afinal,
nesse contexto, o poema “não fede nem cheira”. Podemos compreender a palavra
poema como a beleza da vida e, num contexto social em que falta às pessoas o
básico para sua subsistência e o seu tempo é ocupado com a mera sobrevivência,
não há espaço para interpretar o belo ou se ocupar da arte.

Outros autores, como Castro Alves, já apresentavam uma poesia engajada


em Navio Negreiro, por exemplo. Veja o trecho a seguir:

E ri-se a orquestra irônica, estridente...


E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!
No entanto o capitão manda a manobra,

25
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

E após fitando o céu que se desdobra,


Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!..."

Castro Alves, também conhecido como o poeta dos escravos, retrata nesse
poema a dor dos negros durante as viagens marítimas, e vai brincando entre essa
dor (chora, de raiva delira, enlouquece) e elementos “lúdicos” (como a dança, a
risada, a canção...). Uma combinação sarcástica e cruel, retratando uma realidade
em que alguns seres humanos são torturados e têm suas vidas anuladas em prol
do conforto alheio. Da maneira como está configurado, faz uma crítica feroz a
essa realidade e esse jogo entre a dor e o riso que nos mostra a loucura de tal
situação. O mesmo poema foi musicado por Caetano Veloso e Maria Bethânia e
enaltece, além do problema representado pela poesia, toda a sua rima e melodia.
Vale a pena conferir.

Ao falar a respeito de literatura engajada, é nítido que o conceito de arte


como expressão do belo não se desfaz da função estética, mas agrega nova função
relacionada à crítica, ou seja, a literatura adquire caráter prático. Sobre isso, vamos
tratar ao abordar a função pragmática da literatura.

2.4 FUNÇÃO PRAGMÁTICA


Também conhecida como utilitária, passa pelo viés de uma literatura que
busca outro fim além da estética, busca um fim não artístico, não sendo valorizada
por si mesma apenas, mas pela sua finalidade. Analisa-se aqui a capacidade que
a arte tem de pregar uma ideologia. Observamos isso desde o período romântico,
em que a obra Iracema, de José de Alencar, tem um pano de fundo histórico, a
começar pelo próprio título, que é um anagrama da palavra América. O romance
conta ao mesmo tempo a história de amor entre Iracema e o europeu Martim.
Dessa união nasce Moacir, que, filho de índia e europeu, representa a formação
da identidade nacional. Outros aspectos, como a valorização da natureza e
celebração das características brasileiras, elementos típicos do período romântico,
são ideologias inculcadas pela obra. Esta representa ainda a chegada do branco
como a quebra de harmonia existente nas comunidades indígenas, representada
pelos conflitos causados pela presença de Martim.

No modernismo observamos também algumas ideologias trazidas pela


arte. Prega-se a ideologia de uma cultura nova, a ruptura com o que é estrangeiro
para dar espaço a elementos nacionais, à valorização da cultura brasileira. Essa
ruptura, porém, não se dá completamente.

26
TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

Passamos a descrever o nacional, mas após “devorar” os conceitos


europeus, especialmente das artes de vanguarda, daí o conceito de antropofagismo.
“Devora-se o outro”, deglute-se, “vomita-se”, restando dele apenas a forma, mas
trazendo a valorização dos temas nacionais, ideologia pregada pela arte. Marcou
esse período a frase de Oswald de Andrade: “Tupi or not tupi, that is the question”.
Cultivar ou não o nacional. Porém, a brincadeira de substituir o tupi pelo verbo
to be (ser) joga justamente com essa questão de construir uma ideologia nacional,
mas sobre uma concepção artística europeia.

Trouxemos aqui apenas exemplos de quando essa função lúdica ocorre,


porém acontece em quaisquer textos ou obras de arte que busquem inculcar no
público determinada ideologia.

Retomando o termo “vomitar”, compreendemos que esse ato equivale a


uma “limpeza do organismo”, uma forma de pôr para fora o que está a incomodar.
Em sentido semelhante surge a função catártica da literatura, que se refere não
a detritos humanos, mas à expurgação (purificação) de sentimentos e emoções
através da literatura.

2.5 FUNÇÃO CATÁRTICA


Conforme o Dicionário Priberam (2017), a palavra catarse foi utilizada por
Aristóteles como a purificação sentida pelos espectadores durante e após uma
representação dramática. Também apresenta os sentidos de libertação de emoção
ou sentimento que sofreu repressão.

Quando a literatura provoca esses efeitos, ela estará exercendo a função


catártica. Alguns escritores sentem a catarse durante a escrita, bem como o leitor
ou espectador de uma determinada obra escrita ou cinematográfica pode ter esse
sentimento de catarse/purificação emocional, sentindo alívio de suas tensões e
frustrações, identificando-se com determinado personagem e suas ações.

Giacon (s.d., p. 6) observa que “nas peças teatrais e no cinema essa função
atinge seu grau máximo pelo uso de visão e audição, contudo nos textos literários
é necessário que o escritor faça o leitor percorrer um caminho tortuoso até o
conflito para atingir o máximo do grau catártico de uma obra”.

Um conto, por exemplo, de maneira geral é composto pela apresentação


do enredo, conflito, busca pela solução desse conflito, clímax e desfecho. O clímax
é o ponto alto do conto, momento de maior tensão, quando ficamos numa grande
expectativa para saber o desfecho. Se compararmos a uma telenovela, esse seria
justamente o ponto em que acaba o capítulo e tem-se de esperar pelo próximo
capítulo, no dia seguinte. O desfecho é quando o conflito se resolve, “a justiça é
feita”. O clímax é o momento de maior tensão para a personagem e também para
o espectador ou leitor, já no desfecho ocorre o alívio, a descarga de toda tensão.

27
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

A Cartomante, de Machado de Assis, conta a história do casal Vilela e


Rita e seu amigo, Camilo. Rita e Camilo são amantes e este receia que Vilela tenha
descoberto o caso porque o chamou à sua casa para uma conversa. O caminho de
Camilo até a residência do casal é de extrema tensão, o leitor acompanha o drama
psicológico do personagem durante todo o percurso. O clímax se dá no momento
em que Vilela recebe Camilo e o leva até uma sala, onde se dá o desfecho da situação.
O clímax cria o ápice de tensão, que é liberada com o desfecho trágico do conto.

A função catártica também pode ser identificada quando o autor


descarrega no texto os sentimentos guardados, talvez em busca de alívio. É o que
se pode perceber em Versos Íntimos, de Augusto dos Anjos.

Versos Íntimos

Vês! Ninguém assistiu ao formidável 


Enterro de sua última quimera. 
Somente a Ingratidão – esta pantera – 
Foi tua companheira inseparável! 

Acostuma-te à lama que te espera! 


O homem, que, nesta terra miserável, 
Mora, entre feras, sente inevitável 
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro! 


O beijo, amigo, é a véspera do escarro, 
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se alguém causa inda pena a tua chaga, 


Apedreja essa mão vil que te afaga, 
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos

NOTA

quimera = esperança
Escarro = Matéria viscosa expelida pela boca depois dos esforços da expectoração.
Chaga = pancada ou ferida
Afaga = acaricia
Escarra = O ato de expelir pela boca matéria viscosa.

28
TÓPICO 3 | AS FUNÇÕES DA LITERATURA

É possível interpretar que no poema o autor coloca todo o seu rancor,


sua decepção e descrença em relação ao mundo e às pessoas e, possivelmente, o
desejo de uma contrapartida, como forma de vingança representada pelos dois
últimos versos. A função catártica aparece de forma bastante nítida no poema.

Assim como a literatura provoca no leitor momentos onde há certo


“descarrego de emoções”, exercendo seu caráter catártico, pode também ter
uma função lúdica, quando se apresenta como uma forma de jogo, de prazer e
entretenimento, como ocorre com a função lúdica.

2.6 FUNÇÃO LÚDICA


Conforme Giacon (s.d.), o autor escreve por prazer, seja como forma de
trabalho, seja como forma de passatempo. Há uma ligação entre escritor e leitor,
visto que o segundo também encontra o prazer na fruição da leitura, ou seja,
ainda que a interação de ambos com o texto não aconteça simultaneamente,
ocorre entre eles um pacto.

Essa função da literatura fica bastante explícita em alguns textos de


Machado de Assis, quando este estabelece um diálogo aberto com seu leitor,
chamando-o à reflexão sobre o texto. Temos a seguir um excerto de Memórias
Póstumas de Brás Cubas, que exemplifica bem o caso.

Era fixa a minha ideia, fixa como... Não me ocorre nada que seja assaz fixo
nesse mundo: talvez a lua, talvez as pirâmides do Egito, talvez a finada
dieta germânica. Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar,
veja e não esteja aí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à
parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a anedota à
reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho que faz muito bem.

NOTA

O exemplar do livro utilizado para a citação acima está em e-book Kindle e, por
esse motivo, não possui data de publicação e numeração de páginas.

Este é um exemplo nítido de autor que literalmente dialoga com o leitor


como se ele estivesse à sua frente, supondo o que pensa e prevendo suas reações.
Em outros textos, Machado convida seu leitor a ser um leitor ruminante, ou seja,
rumina suas leituras, reflete a respeito delas.

As funções da literatura que abordamos são as mais recorrentes nos


materiais de Teoria literária, no entanto, alguns autores podem trazer também
outras funções ou, ainda, diferentes nomenclaturas.
29
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura exerce distintas funções. Retomamos a seguir cada uma delas de


forma breve.

o Função estética: é a responsável pelo mais recorrente dos conceitos de arte,


que é a representação do belo, daquilo que é digno de contemplação, está
ligada aos aspectos formais considerados ideais a cada gênero.

o Função cognitiva: descreve o conhecimento de forma particular, fundindo


razão e emoção. Tem caráter informativo, mas apresenta uma visão particular
sobre um fato ou situação, apelando para a emotividade.

o Função político-social ou engajada: preocupa-se com as problemáticas


políticas e sociais, assumindo uma posição crítica e, por vezes, até militante.

o Função pragmática: compreende que a literatura não é apenas produto da


estética, mas deve ser utilitária. Vai além da arte e, por vezes, pode servir a
ideologias específicas.

o Função catártica: tem a capacidade de provocar no autor e no leitor a libertação


de sentimentos ou emoções reprimidas, causando um efeito de purificação.

o Função lúdica: Geralmente é representada por textos em que há um


diálogo explícito entre escritor e leitor. O prazer do autor no ato da escrita
é visível ao leitor.

30
AUTOATIVIDADE

1 A literatura é conhecida como a arte da palavra e, como tal, funciona como


instrumento de comunicação e interação social. Há uma concepção de
que o papel primordial da literatura é estético, porém observamos que ela
vai além da mera contemplação e assume outras funções, como o lazer e
o entretenimento, informação, reflexão, conhecimento, cultura, ou ainda,
traz questionamentos políticos e denúncia de fatos sociais.

Com base nesse contexto, relacione as colunas de forma a indicar as


características adequadas a cada função da literatura.

I- Função estética
II- Função cognitiva
III- Função político-social ou engajada
IV- Função pragmática
V- Função catártica
VI- Função lúdica

( ) Comumente é representada por textos em que há um diálogo explícito


entre escritor e leitor. São textos em que o prazer do autor no ato da
escrita é perceptível.
( ) Provoca no leitor o sentimento de libertação de uma emoção ou
sentimento reprimido, causando a purificação, alívio das tensões.
( ) A literatura, de acordo com essa função, tem um caráter utilitário.
Deve ir além da arte e, por vezes, pode mesmo trabalhar a favor de
determinadas ideologias.
( ) Trata de problemáticas de determinado contexto social, ou seja, traz
uma discussão sobre fatos políticos e sociais.
( ) Descreve o conhecimento de forma particular, pessoal, fundindo razão
e emoção, ou seja, tem caráter informativo, mas apresenta uma visão
emotiva e particular.
( ) Está no fundamento daquilo que se considera arte e tem o sentido de
fenômeno do belo e da produção artística.

As características de cada função da linguagem são apontadas


corretamente na seguinte ordem:

a) ( ) VI, V, IV, III, II, I


b) ( ) V, VI, IV, III, II, I
c) ( ) I, II, III, IV, V, VI
d) ( ) VI, I, V, II, IV, III

31
2 Leia os poemas seguir e responda qual função da literatura está mais
presente em cada um deles.

POEMA 1

Psicologia de um vencido

Eu, filho do carbono e do amoníaco,


Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco, 
Este ambiente me causa repugnância... 
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia 
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —


Que o sangue podre das carnificinas 
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los, 


E há-de deixar-me apenas os cabelos, 
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos

a) ( ) Função estética
b) ( ) Função Cognitiva
c) ( ) Função Político-social ou Engajada
d) ( ) Função Pragmática
e) ( ) Função Catártica
f) ( ) Função Lúdica

POEMA 2

Quando o português chegou


Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.

Oswald de Andrade

32
a) ( ) Função estética
b) ( ) Função Cognitiva
c) ( ) Função Político-social ou Engajada
d) ( ) Função Pragmática
e) ( ) Função Catártica
f) ( ) Função Lúdica

POEMA 3

“Sete quedas por mim passaram,


e todas sete se esvaíram.
Cessa o estrondo das cachoeiras, e com ele
a memória dos índios, pulverizada,
já não desperta o mínimo arrepio.
Aos mortos espanhóis, aos mortos bandeirantes,
aos apagados fogos
de Ciudad Real de Guaira vão juntar-se
os sete fantasmas das águas assassinadas
por mão do homem, dono do planeta”.

Carlos Drummond de Andrade

a) ( ) Função estética
b) ( ) Função Cognitiva
c) ( ) Função Político-social ou Engajada
d) ( ) Função Pragmática
e) ( ) Função Catártica
f) ( ) Função Lúdica

33
34
UNIDADE 1
TÓPICO 4

O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Para falarmos sobre cânone, primeiramente é necessário que você
compreenda o significado dessa palavra. O cânone literário é entendido como
um conjunto de autores e obras considerados exemplos de literatura ideal. Para
que uma obra seja considerada um cânone é necessário que alguém a eleja como
tal. Por que na escola estudamos determinadas obras e outras não? Você já
deve ter observado que para cada período/escola literária estudada no Ensino
Médio, por exemplo, há algumas obras que são referência. Nelas encontramos as
características específicas da escola literária em questão.

Ao falarmos sobre os conceitos de literatura, no início desta unidade,


também pincelamos um pouquinho sobre a questão dos clássicos. Essa palavra
tem sentido semelhante a cânone, visto que se refere a obras que se impõem como
modelos de uma escola literária. Neste estudo, tomaremos as palavras clássico e
cânone como sinônimos. Os clássicos são tomados como referência para o ensino
nas instituições escolares e acadêmicas.

Porém, para que existam as obras denominadas clássicas, deve haver uma
organização para tal. É o que veremos a seguir.

UNI

A palavra clássico vem de classe, justamente por se referir aos livros lidos
nas salas de aula. O Dicionário Priberam (2017) define clássico como: 1. Que é de estilo
impecável. 2. Próprio para servir nas aulas. 3. Que de há muito é habitual; inveterado no uso.

35
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

2 A FORMAÇÃO DO CÂNONE
Uma história da literatura, de maneira geral, está preocupada em
relacionar história e literatura. Textos que fogem aos padrões estabelecidos, muito
provavelmente não se destacarão ou até mesmo serão ignorados no processo de
canonização. Há estudiosos que comentam que em todas as épocas temos não uma
história da literatura, mas uma delas apenas representa o ápice que é canonizado.

Contemporaneamente, muitos analistas da literatura opõem-se a


essa maneira de se estabelecer o cânone, pois está fundamentada numa visão
universalizante, na qual os valores das obras são definidos conforme a ideologia
das classes dominantes, não contemplando a diversidade humana. Há aqueles
que defendem que a categoria de uma obra literária não deve ser resultado das
condições históricas ou sociais. Nessa concepção, a classificação das obras deveria
funcionar de acordo com a recepção, de como elas tocam o leitor e adquirem fama
suficiente para ficarem na memória. Essa concepção parece interessante, mas sem
regras específicas torna-se bem mais complexo estabelecer um cânone que sirva
de referência para o estudo da literatura.

Nesse momento, você deve estar pensando que talvez muitas das obras
estudadas na escola como clássicas diziam pouco a você, a linguagem parecia
distante e, por isso, não provocavam o interesse para a leitura. Seria mais honesto
canonizar as obras que alcançassem fama entre o público leitor? Considerando
essa possibilidade, o cânone estaria desligado das instituições?

Não se trata de considerar que apenas os críticos estariam capacitados a


qualificar as boas obras, pois mesmo entre eles não há consenso. Márcia de Abreu
(2006) comenta que escritores populares costumam provocar o desprezo da crítica.
Cita como exemplo Jorge Amado, visto que parte da crítica o considera um “autor
com deficiências”. Porém, certamente você conhece algumas obras desse autor.
Se não as leu, já ouviu falar de Tieta; Gabriela, Cravo e Canela; entre outras. Essas
obras tiveram também adaptações para a TV e contaram com grande público de
leitores e espectadores, tanto no Brasil quanto no exterior.

Seria implicância? Não, apenas não há unanimidade. Abreu (2006)


exemplifica comentando as opiniões de dois especialistas em literatura da
Unicamp, atuantes no Departamento de Teoria Literária com mestrado e
doutorado na área, logo, têm boa formação a esse respeito. O primeiro, Paulo
Franchetti, opina que as obras de Jorge Amado são “murais coloridos e animados,
mas sem profundidade”. Marisa Lajolo, porém, apresenta uma visão bastante
aprovadora sobre os textos de Amado e comenta ainda que graças a ele o nosso
povo aprendeu a ler literatura brasileira. A autora aponta a produção de Jorge
Amado como importante para a cultura nacional e esse seria o motivo que o
levou a ser conhecido em todo o mundo. Para ela, Jorge Amado seria merecedor
de um Nobel de Literatura.

36
TÓPICO 4 | O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO

3 AFINAL, O QUE É UM CLÁSSICO?


A despeito disso, Calvino (2002, p. 10), em “Por que ler os clássicos?”,
traz vários conceitos sobre o que seria um clássico, dentre eles destacamos o
seguinte: “Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando
se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da
memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual”. Nessa
perspectiva podemos considerar impossível uma definição universalizante de
cânones literários, de maneira que cada um de nós pode ter nossos clássicos
individuais que podem coincidir com outras opiniões ou não. Segundo o autor,
“O ‘seu’ clássico é aquele que não pode ser-lhe indiferente e que serve para definir
a você mesmo em relação e talvez em contraste com ele” (CALVINO, 2002, p. 13).

Assim, podemos dizer que o trabalho da escola em fazer-nos conhecer


uma lista de livros canonizados seria inútil? Você deve estar se perguntando: por
que então fui obrigado a estudar tantas obras, cujo contexto e linguagem me são
tão distantes? Bom, antes de tudo, é preciso considerar que essas obras carregam
consigo as marcas de uma sociedade distinta da atual, com valores e costumes
diferentes, logo, no mínimo, nos ajudará a compreender a sociedade em outros
tempos, mas acima de tudo nos propiciará um entendimento dessa sociedade, a
partir do momento em que estamos e em relação à sociedade atual.

No entanto, cabe a cada um de nós eleger também os nossos clássicos individuais,


aqueles com que por algum motivo nos identificamos, independentemente de ser
também o clássico de outras pessoas ou não. Isso não desfaz o trabalho realizado
pelas instituições de ensino ao colocar algumas leituras como obrigatórias.

Os clássicos não são lidos por dever ou por respeito, mas só por amor.
Exceto na escola: a escola deve fazer com que você conheça bem ou mal
um certo número de clássicos dentre os quais (ou em relação aos quais)
você poderá reconhecer os “seus” clássicos. A escola é obrigada a dar-lhe
instrumentos para efetuar uma opção: mas as escolhas que contam são
aquelas que ocorrem fora e depois da escola (CALVINO, 2002, p. 16).

Quando se fala nas leituras que fizemos, devemos considerar ainda


que pode ser difícil expor as suas leituras particulares de maneira honesta,
principalmente quando se está em espaços institucionalizados, que têm um
conceito rígido sobre quais leituras merecem ser consagradas e um juízo das
pessoas a partir do que elas leem.

As leituras que fazemos e sobre as quais falamos compõem nossa imagem


social, formam nossa identidade tal como a maneira como nos vestimos. “O que
quase todos aprendem é o que devem dizer sobre determinados livros e autores,
independentemente de seu verdadeiro gosto pessoal” (ABREU, 2006, p. 19).

37
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Algo semelhante também é constatado por Hoffmann (2014), quando em


sua dissertação de mestrado pede a estudantes do sétimo semestre do curso de
Letras que contem sua trajetória como leitores, desde a primeira experiência de
leitura que têm em mente até aquele momento. Não foram raros, por exemplo,
os depoimentos de acadêmicos que indicaram a leitura de Paulo Coelho como
uma referência em sua formação, mas observam que ao atingirem a maturidade,
na universidade, não suportavam mais as obras de tal autor. Outros, porém,
assumem uma postura de enfrentamento mencionando, por exemplo, que “Nessa
época, por iniciativa própria, eu li aquele que acredito ter sido o meu primeiro
livro, O Alquimista (Paulo Coelho)” (HOFFMANN, 2014, p. 85).

Observamos nesse depoimento certa provocação ao dizer “por iniciativa


própria”, talvez considerando o trabalho da escola pouco frutífero quanto à
formação do leitor. As obras de Paulo Coelho durante muito tempo foram alvo
de críticas severas nas universidades, apesar de serem muito vendidas em todo o
mundo. Como explicar isso? Cabe apenas concluir que o conceito de cânone nas
instituições de ensino, definido por especialistas, difere do conceito do público
em geral. Por conta do destaque desse autor nas mídias e nas volumosas vendas,
por ironia, hoje ele é membro da Academia Brasileira de Letras.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), “o conceito


de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura. Paulo Coelho, não.
Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno” (BRASIL, 2000, p. 16).
Logo adiante, na mesma página, o documento define o atual ensino de literatura
como “aula de expressão em que o aluno não pode se expressar”. Dessa forma, o
documento abre uma brecha importante para uma nova concepção do ensino de
literatura nas escolas e para a definição do que são clássicos, pois não faria mais
sentido estudar a língua e a literatura “divorciadas” do contexto social vivido.
Temos aí uma nova concepção para a formação de uma lista de clássicos que dê
voz aos estudantes e ao público geral e não apenas aos especialistas da área.

Sobre os clássicos, aqueles tradicionalmente privilegiados nas escolas e


universidades, fechamos esse item com as palavras de Calvino (2002, p. 16) sobre
o porquê ler os clássicos. “A única razão que se pode apresentar é que ler os
clássicos é melhor que não ler os clássicos”.

DICAS

Se você gosta de um bom filme, indicamos alguns bastante interessantes que


tratam de poesia ou sobre poetas. Dentre eles, o mais conhecido e famoso, A Sociedade dos
Poetas Mortos, cujo enredo conta a história de um professor que faz com que seus alunos
vejam a vida de outra forma a partir da leitura dos grandes poetas da língua inglesa. O filme

38
TÓPICO 4 | O CÂNONE LITERÁRIO E SUA FORMAÇÃO

intitulado Poesia narra a vida de uma senhora que se inscreve em um curso de poesia, o
que a faz notar o mundo de maneira diferente. Howl conta a biografia do poeta americano
Alen Ginsberg. O Carteiro e o Poeta, um livro clássico de Pablo Neruda adaptado ao cinema
por Michael Radford. E para fechar essas indicações com muita classe, temos Vinícius, um
documentário sobre a vida de um dos maiores poetas brasileiros.

39
RESUMO DO TÓPICO 4
Neste tópico, você aprendeu que:

• O cânone é definido como as obras que representam determinada escola literária,


servem de modelo. Adotamos neste material as palavras cânone e clássico como
sinônimos. A palavra clássico se refere a classe, às obras consideradas exemplo
para o ensino de literatura nas escolas e academias. Dessa forma, a história da
literatura apresenta apenas o ápice do que foi canonizado, ignorando todas as
demais obras que não foram consideradas modelos ideais.

• Contemporaneamente, alguns críticos defendem a ideia de que os cânones


deveriam ser eleitos de acordo com a receptividade do público leitor.

• Mesmo entre os críticos não há consenso entre o que é uma literatura de


qualidade. Vimos a esse respeito o exemplo da pesquisa sobre Jorge Amado,
em que foram questionados um professor e uma professora com formação
semelhante e que trabalham no mesmo departamento de uma universidade.
O primeiro define Amado como “um autor com deficiências”. Já a professora
comenta que o autor seria digno do Prêmio Nobel de Literatura.

• Os PCN abrem uma brecha para uma nova concepção de ensino de literatura
no Ensino Médio, alegando que não há conexão entre as obras e a realidade do
estudante. Segundo esse documento, a língua e a literatura ensinadas na escola
estão divorciadas do contexto social.

40
AUTOATIVIDADE

1 Mesmo entre os críticos de literatura não há consenso sobre o que se considera


uma boa obra ou não. Exemplo disso é que Márcia de Abreu (2006), ao falar
sobre Jorge Amado, conversa com dois doutores em literatura da Unicamp
e, enquanto um deles critica a obra de Amado, definindo-o como um “autor
com deficiências”, outra comenta que o autor seria merecedor do Nobel de
Literatura. Sobre isso, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

( ) Os dois doutores em Teoria da Literatura consultados por Márcia de Abreu,


Marisa Lajolo e Paulo Franchetti, afirmam que a obra de Jorge Amado
perde em qualidade estética pelo anseio de tornar-se muito populista.
( ) Enquanto Marisa Lajolo considera Jorge Amado digno do Prêmio Nobel
de Literatura, Paulo Franchetti o considera um autor com deficiências.
( ) Regina Zilberman, também entrevistada por Márcia de Abreu, como vimos
no texto acima, considera Jorge Amado um autor populista, por isso sua
obra perde em qualidade, com o objetivo de alcançar um público em massa.
( ) Márcia de Abreu entrevista dois doutores em Literatura da Unicamp. Paulo
Franchetti define as obras de Amado como murais coloridos, mas sem
profundidade. Já Marisa Lajolo defende que graças a este autor o nosso
povo aprendeu a ler literatura brasileira, e aponta ainda a sua produção
como importante para a cultura nacional e que graças a suas características
tornou-se conhecido em todo o mundo.

Sobre as afirmações acima, podemos considerar correta a seguinte ordem:

a) ( ) V, V, V,V
b) ( ) F, F, F,F
c) ( ) F, V, V, F
d) ( ) F, V, F, V

41
42
UNIDADE 1
TÓPICO 5

OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

1 INTRODUÇÃO
Tradicionalmente, a literatura exerce uma dupla função, serve como
expressão artística e também como meio de transmitir conhecimentos. Começou
a existir através da oralidade com o objetivo de perpetuar as histórias e a cultura
para as gerações seguintes. Assim, podemos dizer que a literatura é o reflexo do
que somos, de nossas aspirações, e está sempre relacionada com as características
sociais e históricas de cada época. Retrata o homem em seu caráter mais subjetivo.

Desde o século V a.C. há uma divisão da literatura em gêneros, feita, pela


primeira vez, por Aristóteles em seu livro Obra Poética. São eles: o gênero lírico,
gênero épico ou narrativo e gênero dramático. Cada um desses gêneros é dividido
em subgêneros, que vamos estudar na sequência.

2 GÊNERO LÍRICO (POESIA)


O gênero lírico retrata sentimentos e emoções, através do eu-lírico ou
sujeito-lírico que expressa reflexões pessoais. Nesse gênero predomina o tempo
presente e o eu-lírico expressa em palavras o que sente naquele momento, ou seja,
centra-se no mundo interior, subjetivo.

A organização dos textos privilegia efeitos sonoros, ritmo, semântica e


musicalidade. Na sua origem, eram usados instrumentos de sopro e de corda.
Aliás, a palavra lírico faz referência ao instrumento musical chamado lira, muito
popular naquela época. A exposição das composições costumava ser apresentada
sob o som da lira ou da flauta. A musicalidade era considerada fonte de inspiração
e criatividade de todo o sentimentalismo característico do gênero.

43
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Passando da oralidade à escrita são mantidos recursos como a repetição


de versos (refrão), palavras e fonemas, aspectos que revelam a proximidade entre
poesia e musicalidade. Você já deve ter ouvido músicas provenientes de poemas,
o que comprova essa proximidade. Observe a seguir o poema “Amor é fogo que
arde sem se ver”, de Luis Vaz de Camões. Dele vamos depreender algumas das
características do gênero lírico.

Amor é fogo que arde sem se ver,


é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer.

É um não querer mais que bem querer;


é um andar solitário entre a gente;
é nunca contentar-se de contente;
é um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade;


é servir a quem vence, o vencedor;
é ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor


nos corações humanos amizade,
se tão contrário a si é o mesmo Amor?

No que se refere à musicalidade podemos observar a repetição de ideias,


sendo que da primeira à terceira estrofe, todos os versos trazem uma definição
de amor. Nos mesmos versos ocorre a repetição de palavras, no caso o verbo É,
que introduz cada verso. Há um esquema de rimas bem definido, de forma que
nas duas primeiras estrofes o primeiro verso rima com o quarto e segundo com
o terceiro. Já nas duas últimas estrofes a rima se dá entre o primeiro e o terceiro
verso, o segundo verso da terceira estrofe rima com o segundo da quarta estrofe.
Esses elementos garantem a musicalidade do poema. Prova disso é a compilação
desse poema com um texto bíblico (Epístola de São Paulo aos Coríntios), feita pela
banda Legião Urbana, na música Montecastelo. A música é bastante difundida,
mas se você ainda não conhece, vale a pena conferir.

Outras características do gênero lírico, observáveis no poema de Camões,


são a exposição dos sentimentos e emoções do eu-lírico, o uso do tempo presente
e a reflexão do mundo interior/subjetivo.

O gênero lírico se subdivide em quatro subgêneros: elegia, ode, écloga


e soneto.

44
TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

a) Elegia: Conforme Soares (2007, p. 32), elegia vem do grego elegeía, que se
refere a cantos de luto e tristeza ou “talvez à transcrição helênica do vocábulo
armênio (elegn, elegneay) que significava ‘bambu’ ou ‘flauta de bambu’, já que
esta acompanhava os cantos lutuosos”. O tema da elegia, de maneira geral, é a
tristeza e o pranto pela morte de um amigo ou pessoa ilustre ou mesmo a dor
por conta de um amor não correspondido ou interrompido. Seria o poema de
Camões exposto acima uma elegia?

Leia com atenção o poema a seguir, de Fagundes Varela, e observe os


aspectos típicos da elegia.

Cântico do Calvário

À memória de meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863

Eras na vida a pomba predileta


Que sobre um mar de angústias conduzia
O ramo da esperança. Eras a estrela
Que entre as névoas do inverno cintilava
Apontando o caminho ao pegureiro.
Eras a messe de um dourado estio.
Eras o idílio de um amor sublime.
Eras a glória, a inspiração, a pátria,
O porvir de teu pai! - Ah! no entanto,
Pomba, - varou-te a flecha do destino!
Astro, - engoliu-te o temporal do norte!
Teto, - caíste!- Crença, já não vives!
Correi, correi, oh! lágrimas saudosas,
Legado acerbo da ventura extinta,
Dúbios archotes que a tremer clareiam
A lousa fria de um sonhar que é morto!

NOTA

Algumas palavras não são comuns em nosso contexto. Então vamos aos
seus significados
.
Pegureiro = guardador de gado, relativo a pastor.
Messe = ceifa, colheita, aquisição, conquista.
Idílio = poesia de assunto pastoril.
Acerbo = que tem sabor áspero, amargo, duro, árduo.
Archotes = haste em que uma das extremidades é acesa para iluminar.

45
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Há no poema uma aproximação do eu-lírico com o objeto, através do uso


de metáforas (“Eras na vida a pomba predileta”, “O ramo da esperança”, “Eras o
idílio” etc.) que compõem uma beleza dramática e comovente.

a) Ode: do grego oidê, que significa canto. São poemas compostos para serem
cantados, geralmente são compostos por quartetos e têm métrica variada. Os
hinos são exemplos de ode. Diferentemente da elegia, apresenta temas variados,
subdividindo a ode em pindáricas, que exaltam homens e acontecimentos ilustres;
as sacras, que exaltam a religiosidade; as filosóficas, que tratam de assuntos
filosóficos e meditativos; as sáficas, que tratam de assuntos morais; as báquicas,
que celebram os prazeres da mesa. De maneira que esses poemas apresentam
métrica variada. A poetisa Safo e os poetas Alceu e Anacreonte foram os primeiros
a compor odes. A seguir você pode conferir algumas dessas características no
poema de Álvaro de Campos, pseudônimo de Fernando Pessoa.

SAUDAÇÃO A WALT WHITMAN

Portugal-Infinito, onze de junho de mil novecentos e quinze...


Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
De aqui, de Portugal, todas as épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu irmão em Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo disperso,
Grande pederasta roçando-te contra a diversidade das coisas
Sexualizado pelas pedras, pelas árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de tudo,
Meu grande herói entrando pela Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e aos berros saudando Deus!

NOTA

Pederasta = conforme o Dicionário Aurélio, significa homossexualismo masculino.


Pinotes = salto, coice, pirueta, pulo.

Como você pode notar, esse poema exalta a festividade, a sensualidade e


mesmo a orgia. Por isso, apesar de não falar dos prazeres da mesa como o nome
sugere, fazendo uma referência a Baco, Deus do vinho, podemos classificá-lo
como uma ode báquica.

A seguir, temos um excerto de Ode Triunfal, de Álvaro de Campos,


pseudônimo de Fernando Pessoa.

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

Dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica


Tenho febre e escrevo.
Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,
Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.
Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!
Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!
Em fúria fora e dentro de mim,
Por todos os meus nervos dissecados fora,
Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!
Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,
De vos ouvir demasiadamente de perto,
E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso
De expressão de todas as minhas sensações,
Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

O poema pode ser definido como um canto de louvor à modernidade. Você


pode notar ainda a onomatopeia r-r-r-r-r-r-r que reproduz o som das máquinas,
representa o ritmo acelerado de sociedade industrializada, sobre os excessos que
não respeitam o ritmo das pessoas, causando mesmo, como o poeta diz, febre,
ranger de dentes, fúria, enfim, uma perda da paz. O ritmo do poema transmite
ao leitor um sentimento de fúria, velocidade, evoluindo para o cansaço frente
aos excessos da sociedade industrializada. A crítica à sociedade industrializada
é uma das características do romantismo, período do qual Fernando Pessoa faz
parte. OdeTriunfal pode ser classificado como uma ode filosófica, pois medita a
respeito da industrialização, uma realidade da sociedade da época.

a) Écloga: poema pastoril, bucólico, cujas emoções são representadas por


elementos da natureza. Esse estilo de composição é característico do arcadismo.
Exemplificamos com um trecho do poema de Tomás Antônio Gonzaga.

Marília de Dirceu

Enquanto pasta, alegre, o manso gado,


Minha bela Marília, nos sentemos
À sombra deste cedro levantado.
Um pouco meditemos
Na regular beleza,
Que em tudo quanto vive, nos descobre
A sábia natureza [...]

Repara como, cheia de ternura,


Entre as asas ao filho essa ave aquenta
Como aquela esgravata a terra dura,
E os seus assim sustenta,
Como se encoleriza,
E salta sem receio a todo o vulto
Que junto deles pisa.
[...]
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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

d) Soneto: bastante popular ainda na contemporaneidade, sua forma mais


recorrente é a composição por dois quartetos (estrofes com quatro versos) e dois
tercetos (estrofes com três versos). O nome soneto provém do italiano sonetto
que significa melodia/canção. Quando composto por dois quartetos e dois
tercetos é classificado como petrarqueano, visto ser a forma escolhida pelo poeta
Petrarca, mas passou a servir de modelo para poetas de várias nacionalidades.
O esquema de rimas costuma funcionar dessa forma: ABAB/ABAB/CCD/CCD,
ABBA/ABAB/CDC/DCD ou com algumas variações. Procure observar essa
forma e esquema de rimas no soneto de Vinícius de Moraes a seguir.

Soneto de Separação

De repente do riso fez-se o pranto A


Silencioso e branco como a bruma B
E das bocas unidas fez-se a espuma B
E das mãos espalmadas fez-se o espanto. A

De repente da calma fez-se o vento A


Que dos olhos desfez a última chama B
E da paixão fez-se o pressentimento A
E do momento imóvel fez-se o drama. B

De repente, não mais que de repente C


Fez-se de triste o que se fez amante D
E de sozinho o que se fez contente. C

Fez-se do amigo próximo o distante D


Fez-se da vida uma aventura errante D
De repente, não mais que de repente C

Quando o soneto é estruturado em três quadras e um dístico (estrofe


com dois versos) é chamado de soneto inglês ou soneto shakespeariano. Apesar
do nome, essa forma foi adotada inicialmente por Fernando Pessoa. Observe o
soneto escrito por Manuel Bandeira.

Soneto inglês nº 1

Quando a morte cerrar meus olhos duros


- Duros de tantos vãos padecimentos,
Que pensarão teus peitos imaturos
Da minha dor de todos os momentos?

Vejo-te agora alheia, e tão distante:


Mais que distante - isenta. E bem prevejo,
Desde já bem prevejo o exato instante
Em que de outro será não teu desejo,

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

Que o não terás, porém teu abandono,


Tua nudez! Um dia hei de ir embora
Adormecer no derradeiro sono.
Um dia chorarás... Que importa? Chora.

Então eu sentirei muito mais perto


De mim feliz, teu coração incerto.

Resultado desses dois modelos surge o soneto spencerista, com a mesma


forma do soneto inglês, mas com um esquema de rimas que entrelaça as três
quadras. Exemplo dessa forma é o poema de Mário de Andrade.

Aceitarás o amor como eu o encaro?...

Aceitarás o amor como eu o encaro?... A


Azul bem leve, um nimbo, suavemente B
Guarda-te a imagem, como um anteparo A
Contra estes móveis de banal presente. B

Tudo o que há de melhor e de mais raro A


Vive em teu corpo nu de adolescente, B
A perna assim jogada e o braço, o claro A
Olhar preso no meu, perdidamente. B

Não exijas mais nada. C


Não desejo também mais nada, C
só te olhar, enquanto a realidade é simples, D
e isto apenas. E

Que grandeza... a evasão total do pejo F


Que nasce das imperfeições. G
O encanto que nasce das adorações serenas. E

Como você pode observar, as duas primeiras estrofes estão entrelaçadas pelas
rimas, e nas estrofes finais, a rima se dá entre os últimos versos de cada uma delas.

3 GÊNERO NARRATIVO
Como o nome sugere, narrativo refere-se a narrar, ou seja, contar histórias
com personagens que se envolvem em uma ação que acontece em determinado
tempo e lugar. Funções cumpridas pelos contos, romances, fábulas, crônicas e
pelas epopeias, sobre as quais veremos a seguir.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

A epopeia, por exemplo, é uma narração longa, que pode ser escrita tanto
em prosa como em versos, nesta última possibilidade carrega ainda características
da poesia. Conforme Soares (2007, p. 39), a epopeia é:

uma longa narrativa literária de caráter heroico, grandioso e de


interesse nacional e social, ela apresenta, juntamente com todos os
elementos narrativos (o narrador, o narratário, personagens, tema,
enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno
de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis e deuses,
podendo-se apresentar em prosa [...] ou em verso.

A Ilíada e a Odisseia são consideradas os dois maiores poemas épicos da


história, considerados como marcos da narrativa ocidental. A primeira conta a
história da guerra de Troia, cujo estopim foi o rapto de Helena, esposa do rei de
Esparta. Os cantos descrevem feitos heroicos, especialmente de Aquiles, filho de
um Deus com uma mortal, que demonstra nas batalhas toda a sua fúria.

Já a narrativa da Odisseia dedica-se ao retorno de Ulisses, que durante


muitos anos afrontou perigos na terra e no mar, antes de poder retornar ao seu
reino, Ítaca. Pode-se dizer que o mar foi o seu principal adversário. Em busca do
retorno ao lar e à sua amada Penélope, o mar insistiu em o levar a terras muito
exóticas. Só depois de muitos anos de esforços conseguiu retornar ao seu lar.

DICAS

: Assista aos filmes:


TROIA. Direção de Wolfgang Petersen. Roteiro: David Benioff. 2004.
A ODISSEIA. Direção de Andrei Konchalovsky. 1997.

Outro exemplo interessante é Os Lusíadas, de Camões. A escrita acontece


na terceira pessoa, de forma que o escritor deve manter distanciamento dos fatos,
pois estes representam acontecimentos do passado. Você é capaz de perceber
essas características no excerto a seguir?

As armas e os barões assinalados,


Que da ocidental praia Lusitana,
Por mares nunca de antes navegados,
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados,
Mais do que prometia a força humana,

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

E entre gente remota edificaram


Novo Reino, que tanto sublimaram;
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis, que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas

NOTA

Taprobana aqui refere-se a um nome de lugar.

Observa-se, nesse excerto, a bravura e os feitos heroicos de personagens


que enfrentam o desconhecido a partir de mares nunca antes navegados em
nome da fé e do império. Uma história é contada em forma de verso, no caso, a
história da viagem de Vasco da Gama às Índias, sendo o personagem principal/
herói Vasco da Gama, que é símbolo da bravura que representa o povo lusitano.
Diferente da epopeia, o romance é escrito em prosa.

O romance surge na Idade Média, com os romances de cavalaria, narrando


fatos fictícios sem compromisso em representar acontecimentos passados. Assume
diferentes características, conforme o período literário. No Renascimento trata de
temas pastoris e sentimentais, no Barroco retrata aventuras confusas e complexas.
A narrativa moderna inicia com a escrita de Dom Quixote, de Cervantes. Aqui
passa a apresentar, de maneira cômica, uma crítica aos costumes e abre espaço
para a análise psicológica, representando através do personagem principal uma
realidade fantástica, ou melhor, uma realidade alternativa em relação àquela que
as demais pessoas costumam enxergar.

O gênero romance é composto por enredo, espaço, personagens, tempo


e ponto de vista da narrativa. Quanto à sua estrutura, apresenta um núcleo ou
história principal que se relaciona a vários núcleos secundários, quer dizer,
histórias que acontecem paralelamente à principal.

51
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

FIGURA 2 – ESTRUTURA DO ROMANCE E DA NOVELA

FONTE: A autora

Para ficar mais claro, você pode comparar a estrutura do romance à


estrutura das telenovelas. Nelas temos uma história principal e, ao redor e ligadas
a ela, histórias que acontecem simultaneamente.

O enredo do romance se constitui pelo encadeamento dos fatos narrados,


ou seja, trata-se do conteúdo no qual a narrativa se constrói. Já a trama é a sequência
dos fatos, os acontecimentos vividos pelos personagens no desenrolar da história.

O enredo se desenvolve de forma que o leitor conheça o ambiente e


as personagens, logo se desenrolam os primeiros conflitos. O caminho para a
resolução dos conflitos leva-nos ao clímax, que, como já mencionamos neste
material, é o ponto de maior tensão e, quando se trata de uma telenovela, é o
momento em que, geralmente, acaba o capítulo, deixando-nos ansiosos pelo
desfecho, que é a maneira como se resolve o conflito. Esses elementos são comuns
ao romance, à novela e também ao conto.

A narrativa, tanto do romance quanto do conto ou da novela, se organiza


no fluxo do tempo, que pode ser linear, ou seja, quando o tempo, o espaço e os
personagens são apresentados de maneira cronológica, onde podemos perceber
facilmente começo, meio e fim da narrativa.

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

A narrativa não linear desenvolve-se de maneira descontinuada, com


saltos, antecipações, retrospectivas, há ruptura no tempo e no espaço em que as
ações são apresentadas na narrativa. Exemplificamos com dois excertos do conto
A Cartomante, de Machado de Assis.

Hamlet observa a Horácio que há mais coisas no céu e na terra do que


sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço
Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na
véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.

— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba
que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe
dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora
gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as
cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me
esquecesse, mas que não era verdade...

— Errou! interrompeu Camilo, rindo.

Esse primeiro excerto é composto pelos primeiros parágrafos do


conto. Você pode notar que Camilo e Rita demonstram ser bons conhecidos e
conversam tranquilamente numa tarde qualquer. Porém, como você verá no
trecho a seguir, somente já no final da primeira página é que Vilela apresenta
sua esposa Rita a Camilo.

— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina


como meu marido é seu amigo, falava sempre do senhor.

Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras.

Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não


desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos
cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava
trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vinte e seis. Entretanto, o porte grave
de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um
ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os
óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos.
Nem experiência, nem intuição.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Que você se sinta convidado a essa leitura que lhe permitirá perceber os
efeitos da não linearidade na narrativa, o que, nesse caso especificamente, faz
com que o leitor conheça o amor clandestino entre Rita e Camilo, enquanto o
suspense da narrativa é construído na tensão que se dá até o momento em que
Vilela descobre a traição, e o desfecho do conto. Além de apreciar a técnica, você
terá uma boa leitura.

Para compreendermos como funciona a narrativa linear, basta observamos


que os fatos são contados exatamente na ordem em que acontecem. É o caso, por
exemplo, dos contos infantis de Cinderela, Branca de Neve e outros.

Quando falamos em tempo na narrativa, não podemos nos esquecer do


tempo psicológico, este é imaterial, não é marcado pelo relógio, flui na mente
das personagens. “Transmite a sensação experimentada durante o tempo em
que o fato ocorreu: a personagem pode ter passado por situações que pareceram
extremamente longas, mas que, na realidade, duraram apenas alguns minutos.
O tempo psicológico é produto de uma experiência interior, não mensurável
mecanicamente, mas subjetivamente” (BIAGI, 2013, s.p.). Em Alice no País das
Maravilhas, de Lewis Carroll, a menina pergunta ao coelho: Quanto tempo dura
o que é eterno? Ao que o coelho responde: às vezes apenas um segundo.

O espaço, também chamado de cenário, é o conjunto de elementos que


compõem a paisagem onde se desenvolve a trama. É muito importante, pois está
diretamente ligado à trama e ao tempo. Por exemplo, no trecho a seguir, de Vidas
Secas, de Graciliano Ramos, observamos o quanto o cenário define o enredo: “A
caatinga estendia-se, de um vermelho indeciso salpicado de manchas brancas
que eram ossadas. O voo negro dos urubus fazia círculos altos em redor de bichos
moribundos”.

NOTA

A citação acima é retirada de material em e-book. Não apresenta data de


publicação, nem numeração de páginas. Disponível em: <http://www.lettere.uniroma1.it/
sites/default/files/528/GRACILIANO-RAMOS-Vidas-secas-livro-completo.pdf>. Acesso em:
29 abr. 2017.

Quanto ao ponto de vista, a narrativa apresenta três tipos de narradores: o


narrador-personagem, cuja escrita está em primeira pessoa, visto que ele também
participa da história. Veja no excerto do conto a seguir:

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

Édipo, tu que reinas em minha pátria, bem vês esta multidão prosternada
diante dos altares de teu palácio; aqui há gente de toda a condição: crianças que
mal podem caminhar, jovens na força da vida, e velhos curvados pela idade,
como eu, sacerdote de Júpiter (SÓFOCLES, s.d.).

No excerto acima o narrador participa da história e fala a respeito da


situação presenciada por ele e seu interlocutor.

Já o narrador-observador conta a narrativa em terceira pessoa, observa


tudo de fora, sem dela participar, por isso é imparcial e conhece das personagens
apenas o que é observável.

Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa


deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre
o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a
cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos
arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a
ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas,
que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus
olhos (KAFKA, s.d., p. 2).

Como você pôde notar, acima são descritas todas as características da


personagem que havia se transformado em inseto, o narrador-observador só poderá
conhecer os sentimentos da personagem quando estes são externados por ela.

Já o narrador-onisciente conta a história em terceira pessoa, com algumas


intromissões em primeira. Diferente do narrador-observador, ele conhece o
íntimo das personagens, inclusive suas emoções e pensamentos. Temos aqui um
trecho de Vidas Secas, de Graciliano Ramos:

A sensação que experimentava não diferia muito da que tinha tido ao ser
preso. Era como se as mãos e os braços da multidão fossem agarrá-lo, subjugá-
lo, espremê-lo num canto de parede. Olhou as caras em redor. Evidentemente
as criaturas que se juntavam ali não o viam, mas Fabiano sentia-se rodeado de
inimigos, temia envolver-se em questões e acabar mal a noite. Soprava e esforçava-
se inutilmente por abanar-se com o chapéu. Difícil mover-se, estava amarrado.

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

O narrador-onisciente descreve os sentimentos de Fabiano como se fossem


dele mesmo, aproveitando cada detalhe.

E
IMPORTANT

Você já ouviu falar no site Domínio Público? Pois então, lá você pode acessar
várias obras que já não dispõem mais de direitos autorais, na íntegra, e sem custos. Foi deste
site que retiramos os excertos utilizados para exemplificar os tipos de narrador estudados:
Édipo Rei, de Sófocles; A Metamorfose, de Franz Kafka, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Por isso não conseguimos precisar ano de publicação ou numeração de páginas.
Esta é uma ótima maneira de ter acesso a vários clássicos. Disponível em: <http://www.
dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2198>.
Acesso em: 30 maio 2017.

O conto, assim como o romance, é composto por tema, enredo, conflito,


clímax e desfecho, mas representa apenas um flagrante, um episódio singular.
É formado por apenas um núcleo narrativo, ou seja, não há histórias paralelas
ligadas ao núcleo narrativo. Compare a imagem a seguir com aquela que
representa a composição do romance.

FIGURA 3 – ESTRUTURA DO CONTO

FONTE: A autora

Sugerimos a leitura do conto “Amor”, de Clarice Lispector. Nele você


poderá analisar como o conto representa um flagrante de um momento específico,
o resultado de um trabalho minucioso de seleção por parte do escritor, de forma a
retratar os momentos mais significativos, concentrados na narrativa.

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

A novela, quanto à estrutura, assemelha-se ao romance, sendo estruturada


por um núcleo principal e núcleos secundários ligados a ele. Conforme Soares
(2007), representa um meio-termo entre o conto e o romance. É menor que este
último, mas tem todos os elementos estruturais dele, porém em menor quantidade.
O clímax, como exemplificamos anteriormente, acontece com mais frequência
como forma de prender a atenção do público leitor ou espectador, criando uma
expectativa para a continuidade da narrativa. Na novela a narrativa acontece de
forma mais acelerada que no romance, com predomínio de cenas de ação que dão
dinamicidade à trama. Isso favorece o predomínio da narrativa desenvolvida por
diálogos, o que também acontece nos textos dramáticos. Sobre esse gênero, aliás,
comentaremos na sequência.

DICAS

Sobre a produção do gênero narrativo, sugerimos os filmes a seguir:


ENCONTRANDO FORRESTER. Direção de Gus van Sant. Roteiro: Mike Rich. Música: Bill
Brown. Alemanha, 2000. (76 min.), color. Legendado.
MAIS ESTRANHO QUE A FICÇÃO. Direção de Marc Forster. Roteiro: Zach Helm. Música: Britt
Daniel, Brian Reitzell. 2007. (113 min.), color. Legendado.

4 GÊNERO DRAMÁTICO
A origem do gênero dramático vem de dráo, que significa fazer/ação.
No século IV a.C., na Grécia antiga, o teatro apareceu como resultado de uma
transformação dos hinos cantados em honra ao Deus Dionísio, deus do vinho e
das festas. Nesse período também era comum a representação de comédias que
satirizavam o comportamento humano e os costumes. Uma das características do
teatro é que ele acontece por si mesmo, o enredo se desenrola a partir de diálogos
sem a interferência de narrador. O desenrolar da narrativa procura desenvolver a
expectativa do público até o desfecho da peça.

Em algumas peças dramáticas a tensão é extravasada pelo riso. O drama da


vida do personagem, por mais complexo que seja, encontra fuga na comicidade.
Muitas vezes, representa uma sátira de problemas sociais ou situações individuais,
ou seja, funciona como uma crítica de costumes. Nessa linha, sugerimos que
você leia o Auto da Compadecida, de Ariano Suassuna, escrito em 1955 e encenado
pela primeira vez 1956. Esse texto foi adaptado para a TV e exibido em quatro
capítulos em 1998. Foi encenado por Selton Mello, fazendo o papel de Chicó;
Matheus Nachtergaele, o papel de João Grilo, e Fernanda Montenegro, numa
curta passagem, representando Nossa Senhora, e Lima Duarte, no papel de Padre.

57
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Confira a seguir um trecho dessa peça para entender melhor as


características do gênero.

CHICÓ, depois de estender-lhe o punho fechado.


Padre João!
JOÃO GRILO
Padre João! Padre João!
PADRE, aparecendo na igreja
Que há, que gritaria é essa?
Fala afetadamente com aquela pronúncia e aquele estilo que Leon Bloy
chamava “sarcedotais”.
CHICÓ
Mandaram o senhor avisar para o senhor não sair, porque vem uma
pessoa aqui trazer um cachorro que está se ultimando para o senhor benzer.
PADRE
Para eu benzer?
CHICÓ
Sim.
PADRE, com desprezo.
Um cachorro?
CHICÓ
Sim.
PADRE
Que maluquice! Que besteira!
JOÃO GRILO
Cansei de dizer a ele que o senhor não benzia. Benze porque benze, vim
com ele.
PADRE
Não benzo de jeito nenhum
CHICÓ
Mas, padre, não vejo nada de mal em se benzer o bicho.
JOÃO GRILO
No dia em que chegou o motor novo do major Antônio Morais o senhor
não o benzeu?
PADRE
Motor é diferente, é uma coisa que todo mundo benze. Cachorro é que eu
nunca ouvi falar.
CHICÓ
Eu acho cachorro uma coisa muito melhor que motor.
PADRE
É, mas quem vai ficar engraçado sou eu, benzendo o cachorro. Benzer
motor é fácil, todo mundo faz isso, mas benzer cachorro?
JOÃO GRILO
É, Chicó, o padre tem razão. Quem vai ficar engraçado é ele e uma coisa é
benzer o motor do major Antônio Morais e outra o cachorro do major Antônio Morais.
PADRE, mão em concha no ouvido.
Como?

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

JOÃO GRILO
Eu disse que uma coisa era o motor e outra o cachorro do major Antônio
Morais.
PADRE
O dono do cachorro de quem vocês estão falando é Antônio Morais?
JOÃO GRILO
É, eu não queria vir, com medo de que o senhor se zangasse, mas o major
é rico e poderoso e eu trabalho na mina dele. Com medo de perder meu emprego,
fui forçado a obedecer, mas disse a Chicó: o padre vai se zangar.
PADRE, desfazendo-se em sorrisos.
Zangar nada, João! Quem é um ministro de Deus para ter direito de
se zangar? Falei por falar, mas também vocês não tinham dito de quem era o
cachorro!
JOÃO GRILO, cortante.
Quer dizer que benze, não é?
PADRE, a Chicó.
Você, o que é que acha?
CHICÓ
Eu não acho nada demais.
PADRE
Nem eu. Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus.
JOÃO GRILO
Então fica tudo na paz do senhor, com cachorro benzido e todo mundo
satisfeito.
PADRE
Digam ao major que venha. Estou esperando.
Entra na igreja.
CHICÓ
Que invenção foi essa de dizer que o cachorro era do major Antônio Morais?
JOÃO GRILO
Era o único jeito de o padre prometer que benzia. Tem medo da riqueza do
major que se pela. Não viu a diferença? Antes era “Que maluquice, que besteira!”,
agora “Não vejo mal nenhum em se abençoar as criaturas de Deus!”
CHICÓ
Isso não vai dar certo. Você já começa com suas coisas, João. E havia
necessidade de inventar que era empregado de Antônio Morais?
JOÃO GRILO
Meu filho, empregado do major e empregado do amigo do major é quase
a mesma coisa. O padeiro vive dizendo que é amigo do homem, de modo que a
diferença é muito pouca. Além disso, eu podia perfeitamente ter sido mandado
pelo major, porque o filho dele está doente e pode até precisar do padre.
CHICÓ
João, deixe de agouro com o menino, que isso pode se virar por cima de você.
JOÃO GRILO
E você deixe de conversa. Nunca vi homem mais mole do que você, Chicó.
O padeiro mandou você arranjar o padre para benzer o cachorro e eu arranjei sem
ter sido mandado. Que é que você quer mais? (SUASSUNA, 1989, p. 31).

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UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Como você pode notar, não há no texto um narrador, toda a história fica
clara através das falas dos personagens. Como o texto é feito para ser encenado, há
ora ou outra, em itálico, alguma instrução sobre como o ator deve agir. A introdução
das falas, ao contrário de outras narrativas, onde se usa o verbo dicendi e são
introduzidas por travessão, aqui são sempre indicadas pelo nome do personagem.

Quanto ao conteúdo, temos uma sátira dos costumes da igreja e sua relação
com as pessoas financeiramente mais abonadas da sociedade, ou seja, aquelas das
quais a instituição pode usufruir de patrocínios. A elas são abertas exceções. A
seguir, comentamos sobre um tipo específico de gênero dramático, a tragédia.

a) Tragédia

Trata-se de uma forma dramática que surgiu no século IV a.C. Entre


as suas características representativas está a crise de valores e o choque entre
o racional e o mítico. Conforme Soares (2007), o nome tragédia vem de tragos
(bode) e ethos (caráter). Esse costuma ser o carma do herói da tragédia, ele é
confrontado entre o seu caráter e o seu destino, vivendo num mundo trágico, em
tensão com a organização social, jurídica e moral da sociedade da época.

A desgraça do herói se dá quando este vivencia o desequilíbrio, um valor


negativo que o coloca em erro inconscientemente, o que estará vinculado ao seu
destino e que acaba por destruir o seu mundo. A trajetória do herói apresenta
os mesmos elementos comuns a outros textos narrativos, o enredo, o conflito, o
clímax e o desfecho. O clímax é o ápice do conflito, que se encaminha para um
desfecho catastrófico.

Uma história que representa bem essas características é Édipo Rei, de


Sófocles. Ao nascer, um profeta previu que Édipo mataria o próprio pai e se casaria
com a própria mãe. O menino cresceu com pais adotivos e, ao saber da profecia
afastou-se deles, mas durante sua trajetória, sem conhecer os pais biológicos, a
profecia se concretiza, o que o leva à loucura.

Sugerimos também obras como Romeu e Julieta, Hamlet e Otelo, de


Shakespeare. Você pode fazer a leitura ou também encontrá-las em versões
adaptadas ao cinema.

b) Comédia

Conforme Soares (2007), vem do grego komoidía e tem relação com os


festejos populares. Os atores das peças de comédia não eram bem aceitos na
cidade, então andavam de uma aldeia para outra. Essa forma dramática costumava
ser atribuída a homens considerados de pouca sabedoria, cujas peças usavam do
ridículo para produzir o riso fácil.

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TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

Muito comuns na era medieval eram os autos. Estes tinham como


características textos que traziam à tona personagens-tipo, ou seja, personagens
que representavam não uma pessoa especificamente, mas tipos sociais, como um
comerciante ou um homem burguês, por exemplo. Apesar de se tratar de textos
teatrais, eram compostos em versos, com diálogos irônicos e linguagem popular.
Gil Vicente é considerado o maior nome do humanismo português. Acompanhe
a seguir um excerto do Auto da Lusitânia, de sua autoria .

Entra Todo o Mundo, homem como rico mercador, e faz que anda
buscando alguma coisa que se lhe perdeu; e logo após ele um homem, vestido
como pobre. Este se chama Ninguém, e diz:

- Que andas tu aí buscando?


Todo o Mundo
- Mil cousas ando a buscar:
delas não posso achar
porém ando perfiando,
por quão bom é perfiar.
Ninguém
- Como hás nome, cavaleiro?
Todo o Mundo
- Eu hei nome Todo o Mundo,
e meu tempo inteiro
sempre é buscar dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém
- Eu hei nome Ninguém,
e busco a consciência
(Berzebu para Dinato)
- Esta é boa experiência!
Dinato, escreve isto bem.
Dinato
- Que escreverei, companheiro?
Berzebu
- que Ninguém busca consciência
e Todo o Mundo dinheiro.
(Ninguém para Todo o Mundo)
- E agora que buscas lá?
Todo o Mundo
- Busco honra muito grande.
Ninguém
- E eu virtude, que Deus mande
Que tope co ela já.
(Berzebu para Dinato)
- Outra adição nos acude:
escreve aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo,

61
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

e Ninguém busca virtude.


Ninguém
- Buscas outro mor bem qu’esse?
Todo o Mundo
- Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu fizesse.
Ninguém
- E eu quem me repreendesse
em cada cousa que errasse.
(Berzebu para Dinato)
- Escreve mais
Dinato
- Que tens sabido?
Berzebu
- Que quer um extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido. [...]
(Todo o Mundo para Ninguém)
- E mais queria o paraíso,
Sem mo ninguém estorvar.
Ninguém:
- Eu ponho-me a pagar
Quanto devo pera isso.
(Berzebu para Dinato)
- Escreve com muito aviso.
Dinato
- Que escreverei?
Berzebu
- Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso,
e Ninguém paga o que deve.
(VICENTE, 1965, p. 452)

São perceptíveis no auto algumas características como os personagens-tipo


representados por Todo o Mundo e Ninguém, que escritos com maiúscula vão
brincando com o duplo sentido das mensagens. O texto joga o tempo todo com os
sentidos dos ditos de forma irônica, numa crítica aos costumes da sociedade da época.

Também é representativa desse gênero a farsa, podemos citar como


exemplo A Megera Domada, de Shakespeare. A trama se desenrola entre Katherina,
que tem fama de mulher de personalidade difícil, e seu pretendente Petrúquio,
que vivem em pé de guerra. Esta obra foi adaptada para a televisão com o título
O Cravo e a Rosa e talvez até você a tenha assistido.

A comédia é um gênero dramático que costuma trabalhar com o


imprevisível e a surpresa, e tem como matéria-prima os jogos de palavras, o
exagero, as formas estereotipadas, o humor e a ironia.

62
TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

c) Drama

A palavra drama refere-se de maneira geral a gênero dramático ou sinônimo


de peça teatral, mas aqui nos referimos ao hibridismo da tragédia com a comédia.

Essa forma teatral surge no século XVIII e, aos poucos, vai abandonando
os temas históricos, os famosos dramas de capa e espada, e passa a privilegiar um
teatro de atualidades, cuja obra inaugural é A Dama das Camélias, de Alexandre
Dumas Filho. Os curiosos podem ler o livro ou mesmo conhecer a versão
cinematográfica que se encontra facilmente on-line.

Contemporaneamente, entende-se drama em contraste à comédia, são


entendidas como peças de caráter sério ou mesmo solene.

Dentro do drama, ainda temos a tragicomédia, que mescla o cômico e o


trágico, característica do século XV ao XVII, e o melodrama, em que predomina o
sentimentalismo exagerado e, às vezes, patético.

Como você pôde acompanhar, os gêneros textuais se subdividem em


subgêneros, que são o narrativo, o épico e o dramático, e estes ainda se subdividem
novamente conforme características peculiares e o momento e espaço em que
se desenvolvem e, às vezes, se interpenetram. É interessante perceber que
independente das classificações dadas a cada um deles, numa tentativa incessante
de conseguir entendê-los, de maneira geral, buscam contar a vida e alma humana. E
se podemos dizer que a arte imita a vida, podemos dizer: a arte a faz também mais
significativa, interpretando-a e brincando com ela da maneira como geralmente
não costumamos ousar. Talvez por isso, buscamos entender a arte como o objeto
dialógico que é e, quem sabe, através dela, entender a nós mesmos.

LEITURA COMPLEMENTAR

TEORIA E SENSO COMUM

Um balanço, um mapa da teoria literária seria, entretanto, concebível? E


de que forma? Não seria esse um projeto abortado se, como afirma Paul de Man,
“o principal interesse teórico da teoria literária consiste na impossibilidade de sua
definição?” A teoria não poderia, então, ser apreendida senão graças a uma teoria
negativa, segundo o modelo desse Deus escondido do qual somente uma teologia
negativa pode falar. Isso significa situar o horizonte alto demais, ou longe demais as
afinidades, aliás reais, entre teoria literária e niilismo. A teoria não pode se reduzir a
uma técnica nem a uma pedagogia — ela vende sua alma nos vade-mécum de capas
coloridas expostas nas vitrinas das livrarias do Quartier Latin —, mas isso não é
motivo para fazer dela uma metafísica nem uma mística. Não a tratemos como
uma religião. A teoria literária não teria senão um “interesse teórico?” Não, se estou
certo ao sugerir que ela é também, essencialmente, crítica, opositiva ou polêmica.

63
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

Porque não é do lado teórico ou teológico, nem do lado prático ou


pedagógico, que a teoria me parece principalmente interessante e autêntica, mas
pelo combate feroz e vivificante que empreende contra as ideias preconcebidas
dos estudos literários, e pela resistência igualmente determinada que as ideias
preconcebidas lhe opõem. Esperaríamos, talvez, de um balanço da teoria literária,
que depois de ter prestado uma rápida homenagem às teorias literárias antigas,
medievais e clássicas desde Aristóteles até Batteux, sem esquecer uma passagem
pelas poéticas não ocidentais, arrolasse as diferentes escolas que compartilharam
a atenção teórica no século XX. [...] Inúmeros manuais são assim: ocupam
os professores e tranquilizam os estudantes. Mas esclarecem um lado muito
acessório da teoria. Ou até mesmo a deformam, pervertem-na; porque o que a
caracteriza, na verdade, é justamente o contrário do ecletismo, é seu engajamento,
sua vis polemica, assim como os impasses a que esta última a leva sem que ela se
dê conta. Os teóricos dão a impressão, muitas vezes, de fazer críticas sensatas
contra a posição de seus adversários, mas visto que estes, confortados por sua
boa consciência de sempre, não renunciam e continuam a matraquear, os teóricos
se põem também eles a falar alto, defendem suas próprias teses, ou antíteses, até
o absurdo, e, assim, anulam-se a si mesmos diante de seus rivais encantados de
se verem justificados pela extravagância da posição adversária. Basta deixar falar
um teórico e contentar-se em interrompê-lo com um “Ah!” um pouco debochado,
para vê-lo desmoronar diante de nossos olhos!

Quando entrei no sexto ano do pequeno liceu Condorcet, nosso velho


professor de latim-francês, que era também prefeito de sua cidadezinha na
Bretanha, perguntava-nos a cada texto de nossa antologia: “Como vocês
compreendem essa passagem? O que o autor quis dizer? Onde está a beleza
do verso ou da prosa? Em que a visão do autor é original? Que lição podemos
tirar daí?” Acreditamos, durante um tempo, que a teoria da literatura tivesse
banido para sempre essas questões lancinantes, mas as respostas passam e as
perguntas permanecem. Estas são mais ou menos as mesmas. Há algumas que
não cessam de se repetir de geração em geração. Colocavam-se antes da teoria,
já se colocavam antes da história literária, e se colocam ainda depois da teoria,
de maneira quase idêntica. A tal ponto que nos perguntamos se existe uma
história da crítica literária, como existe uma história da filosofia ou da linguística,
pontuada de criações de conceitos, como o cogito ou o complemento. Na crítica,
os paradigmas não morrem nunca, juntam-se uns aos outros, coexistem mais ou
menos pacificamente e jogam indefinidamente com as mesmas noções — noções
que pertencem à linguagem popular. Esse é um dos motivos, talvez o principal
motivo, da sensação de repetição que se experimenta, inevitavelmente, diante de
um quadro histórico da crítica literária: nada de novo sob o sol. Em teoria, passa-
se o tempo tentando apagar termos de uso corrente: literatura, autor, intenção,
sentido, interpretação, representação, conteúdo, fundo, valor, originalidade,
história, influência, período, estilo etc. É o que se fez também, durante muito
tempo, em lógica: recortava-se na linguagem cotidiana uma região linguística

64
TÓPICO 5 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS E SUA FORMAÇÃO

dotada de verdade. Mas a lógica formalizou-se depois. A teoria literária não


conseguiu desembaraçar-se da linguagem corrente sobre a literatura, a dos ledores
e dos amadores. Assim, quando a teoria se afasta, as velhas noções ressurgem
intocadas. É por serem “naturais” ou “sensatas” que nunca não escapamos dela
realmente? Ou, como pensa de Man, é porque só desejamos resistir à teoria,
porque a teoria faz mal, contraria nossas ilusões sobre a língua e a subjetividade?
Poderíamos dizer, hoje, que quase ninguém foi tocado pela teoria, o que talvez
seja mais confortável.

Então, não restaria mais nada, ou apenas a pequena pedagogia que descrevi?
Não inteiramente. Na fase áurea, por volta de 1970, a teoria era um contradiscurso
que punha em questão as premissas da crítica tradicional. Objetividade, gosto
e clareza, Barthes assim resumia, em Critique et Verité [Crítica da Verdade], em
1966, ano mágico, os dogmas do “suposto crítico” universitário, o qual ele queria
substituir por uma “ciência da literatura”. Há teoria quando as premissas do
discurso corrente sobre a literatura não são mais aceitas como evidentes, quando
são questionadas, expostas como construções históricas, como convenções. Em
seu começo, também a história literária se fundava numa teoria, em nome da qual
eliminou do ensino literário a velha retórica, mas essa teoria perdeu-se e edulcorou-
se à medida que a história literária foi se identificando com a instituição escolar e
universitária. O apelo à teoria é, por definição, opositivo, até mesmo subversivo
e insurrecto, mas a fatalidade da teoria é a de ser transformada em método pela
instituição acadêmica, de ser recuperada, como dizíamos. Vinte anos depois, o que
surpreende, talvez mais que o conflito violento entre a história e a teoria literária, é
a semelhança das perguntas levantadas por uma e por outra nos seus primórdios
entusiastas, sobretudo esta, sempre a mesma: “O que é literatura?”.

Permanência das perguntas, contradição e fragilidade das respostas:


daí resulta que é sempre pertinente partir das noções populares que a teoria
quis anular, as mesmas que voltaram quando a teoria se enfraqueceu, a fim de
não só tentar rever as respostas opositivas que ela propôs, mas também tentar
compreender por que essas respostas não resolveram de uma vez por todas as
velhas perguntas. Talvez porque a teoria, à custa de sua luta contra a Hidra de
Lerna, tenha levado seus argumentos longe demais e eles tenham se voltado
contra ela? A cada ano, diante de novos estudantes, é preciso recomeçar com
as mesmas figuras de bom senso e clichês irreprimíveis, com o mesmo pequeno
número de enigmas ou de lugares comuns que balizam o discurso corrente sobre
a literatura. Examinei alguns, os mais resistentes, porque é em torno deles que se
pode construir uma apresentação simpática da teoria literária como todo o vigor
de sua justa cólera, da mesma maneira como ela os combateu — em vão.

FONTE: COMPAGNON, Antoine. Teoria e Senso Comum. In: O Demônio da Teoria: literatura e
senso comum. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.

65
UNIDADE 1 | LITERATURA: QUE ARTE É ESSA?

NOTA

Niilismo: redução ao nada; aniquilamento; não existência. Concepção que


considera que os valores e crenças tradicionais são infundados e que não há sentido, nem
utilidade na existência.

Edulcorou-se: de edulcorar: tornar-se doce ao paladar ou tornar-se manso, suave.

Hidra de Lerna: animal da mitologia grega, filho dos monstros Tifão e Equidna. Tinha o corpo
de dragão e sete cabeças de serpente, seu hálito era venenoso e, uma vez cortadas, as
cabeças podiam se regenerar rapidamente.

66
RESUMO DO TÓPICO 5
Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura exerce a função de expressão artística e transmissão de


conhecimentos. Tradicionalmente, é dividida em gêneros.

o Gênero Lírico: retrata sentimentos e emoções através do eu-lírico. A palavra


lírico vem do instrumento musical lira, que geralmente acompanhava as
composições poéticas. Esse gênero privilegia aspectos formais do texto, bem
como a musicalidade, o ritmo, a rima e a semântica. Subdivide-se em:

a) Elegia: refere-se a cantos de tristeza e luto pela morte de uma pessoa querida
ou a tristeza de um amor não correspondido ou interrompido.

b) Ode: poemas compostos para serem cantados, geralmente formados por


quartetos, mas com métrica variada. São hinos que se subdividem em:
pindáricas, que exaltam homens de conhecimentos ilustres; as sacras, que
exaltam a religiosidade; as filosóficas, que tratam de assuntos meditativos; as
sáficas, que se preocupam com a moralidade; e as báquicas, que exaltam os
prazeres da boa comida e bebida.

c) Écogla: as emoções são representadas por temas da natureza. São poemas


pastoris e bucólicos.

d) Soneto: a forma do soneto mais conhecida contemporaneamente é composta


por dois quartetos (duas estrofes com quatro versos) e dois tercetos (duas
estrofes com três versos). Porém, tradicionalmente são contemplados os dísticos
(estrofes com dois versos) e o spencerista, com três quadras que se entrelaçam.

o Gênero Narrativo: refere-se ao ato de narrar, contar histórias. Subdivide-se em:

a) Epopeia: narração longa, escrita em prosa ou verso.

b) Romance: apresenta um núcleo narrativo principal, mas tem vários núcleos


secundários que estão interligados entre si e ao núcleo principal.

c) Conto: mais breve que o romance, pois apresenta apenas um núcleo narrativo.

d) Novela: assemelha-se ao romance, sendo estruturada por um núcleo principal


e núcleos secundários a ele ligados. Representa um meio-termo entre o conto e
o romance, pois, em extensão, é menor que este último e maior que o primeiro
e apresenta os mesmos elementos estruturais.

67
o Gênero Dramático: representado pelo teatro que surgiu como resultado de
uma transformação dos hinos cantados em honra ao Deus Dionísio. Também
é representado por comédias que satirizam o comportamento humano e os
costumes. Subdivide-se em:

a) Tragédia: representa a crise de valores e o choque entre o racional e o mítico.


Costuma apresentar a desgraça do herói que vive em desequilíbrio, confrontado
entre o caráter e o destino.

b) Comédia: está relacionada aos festejos populares, as peças não eram bem
aceitas nas cidades, por isso costumavam ser apresentadas em aldeias. Um dos
tipos de comédia muito comum são os autos.

c) Drama: formado pelo hibridismo da comédia e da tragédia. A princípio trata de


temas históricos, mas depois passa a privilegiar temas que retratam aspectos da
sociedade. A obra inaugural é A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas Filho.

68
AUTOATIVIDADE

1 Dentre os textos do gênero lírico que estudamos, como podemos classificar


o poema a seguir?

Soneto 23

Como no palco o ator que é imperfeito


Faz mal o seu papel só por temor,
Ou quem, por ter repleto de ódio o peito
Vê o coração quebrar-se num tremor,

Em mim, por timidez, fica omitido


O rito mais solene da paixão;
E o meu amor eu vejo enfraquecido,
Vergado pela própria dimensão.

Seja meu livro então minha eloquência,


Arauto mudo do que diz meu peito,
Que implora amor e busca recompensa

Mais que a língua que mais o tenha feito.


Saiba ler o que escreve o amor calado:
Ouvir com os olhos é do amor o fado.

William Shakespeare

a) ( ) Elegia
b) ( ) Soneto
c) ( ) Écogla

2 Como observamos, os gêneros conto, romance e novela têm caraterísticas
semelhantes, visto que narram uma história real. Porém, há alguns
elementos que assemelham entre esses gêneros e outros que os distanciam.
Dessa forma, assinale V (verdadeiro) ou F (falso).

( ) O romance, assim como a novela, é constituído por vários núcleos


narrativos, sendo um deles o núcleo principal e os outros núcleos
secundários que a ele se interligam.
( ) O conto geralmente tem apenas um núcleo narrativo, por isso é mais breve
e apresenta um recorte temporal menor.

69
( ) O clímax é o momento de maior tensão da narrativa, mas não está presente
no conto.
( ) A estrutura do conto é composta por enredo, conflito, clímax e desfecho.

Assinale a ordem correta:

a) ( ) V, V, F, V
b) ( ) F, F, F, F
c) ( ) V, F, V, F
d) ( ) V, V, V, F

70
UNIDADE 2

OS GÊNEROS LITERÁRIOS:
DRAMÁTICO E LÍRICO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade, você será capaz de:

• compreender os conceitos de gênero e de poética;

• compreender e contextualizar criticamente a teoria dos gêneros literários;

• reconhecer a historicidade da classificação das obras a partir da teoria dos


gêneros literários;

• entender a importância da antiga teoria dos gêneros literários para a


moderna teoria da literatura;

• identificar a especificidade dos gêneros dramático e lírico na antiguidade


e na modernidade;

• conhecer a literatura de cordel.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada um deles, você
terá atividades que vão ajudá-lo a refletir sobre os assuntos abordados.

TÓPICO 1 – A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

TÓPICO 2 – OS GÊNEROS LITERÁRIOS

TÓPICO 3 – LITERATURA DE CORDEL

71
72
UNIDADE 2
TÓPICO 1

A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

1 INTRODUÇÃO
Na primeira unidade do livro de Teoria da Literatura I você viu que,
desde a Antiguidade, a literatura se divide em gêneros literários, quais sejam,
o gênero lírico, o gênero dramático e o gênero épico ou narrativo. A teoria
dos gêneros literários, mais do que um importante intento de classificação da
literatura, designa uma forma de ver o mundo. Assim, podemos, por exemplo,
atribuir o adjetivo épico ou dramático a um jogo de futebol, não é verdade?
Nesta unidade, estudaremos mais detidamente os gêneros dramático e lírico, ou
seja, o teatro e o poema, respectivamente, com o objetivo de compreendermos a
especificidade de ambos os gêneros literários e nos capacitarmos, ao final, para
diferenciar cada gênero. Para tanto, consideramos importante contextualizarmos
e problematizarmos a teoria dos gêneros literários, considerando as principais
transformações ocorridas nas artes e na teoria da literatura desde a Antiguidade.
Iniciaremos esta unidade com a contextualização e problematização da teoria
para, em seguida, estudarmos o gênero dramático e, finalmente, o gênero lírico.

Seja bem-vindo!

2 A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS: CONTEXTUALIZAÇÃO


E PROBLEMATIZAÇÃO
Como você viu na primeira unidade, a classificação dos gêneros literários
remonta à Antiguidade. A esse respeito, ao observar que a tendência para
classificar as obras “literárias surge com as manifestações poéticas mais remotas”,
Angélica Soares (2007, p. 7) conclui: “Assim, pode-se contar a história da teoria
dos gêneros literários no Ocidente, a partir da Antiguidade greco-romana”.

73
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Antes ainda da classificação dos gêneros literários proposta por Platão e


Aristóteles, com a divisão tripartida da literatura nos gêneros dramático, lírico e
épico, a literatura sugere uma teoria da literatura ao problematizar, em si e por si
mesma, sua natureza, sua função e seus efeitos. A literatura, como lembra Roberto
Acízelo de Souza (1987, p. 8), “é um produto cultural que surge com a própria
civilização ocidental, pelo fato de que textos literários figuram entre os indícios
mais remotos da existência histórica dessa civilização”. As questões propostas na
e pela literatura seriam retomadas e aprofundadas com o surgimento recente da
teoria da literatura como disciplina, que retorna aos ensinamentos de Aristóteles.

Roberto Acízelo de Souza (1987, p. 8) constata que os poemas épicos Ilíada


e Odisseia, de Homero, trazem em si as primeiras considerações da literatura
como objeto a ser esclarecido: “o que problematiza pela primeira vez a literatura
é a própria literatura”, conclui o autor. Afinal, neles “há passagens em que a ação
narrada enseja considerações sobre a função e a natureza da poesia, bem como
sobre o poder do discurso”. Com o intuito de demonstrar como a literatura se
problematiza, Roberto Acízelo de Souza (1987, p. 9) cita a Odisseia:

Ulisses exclamou: “Demódocos, [...] contas muito bem o destino dos


aqueus [...] como se ali tivesses estado, ou ouvido de alguém que
esteve. Agora, muda de tom e conta o ardil do cavalo de madeira
[...] Depois, se contares bem a história, declararei sem demora a todo
mundo que Zeus foi generoso contigo e inspirou teu canto”.

E conclui que o “trecho em apreço encerra uma teoria relativa à literatura,


propondo uma explicação para sua origem, natureza e função”. A seguir, o autor
procura descrever essa teoria:

a origem da literatura é o ensinamento dos deuses; sua natureza consiste


em ser uma narrativa dotada de especial poder de encantamento; sua
função é reconstituir com fidelidade as ações dos heróis, decorrendo
dessa tríplice determinação a elevada consideração de que o poeta
desfruta na comunidade (SOUZA, 1987, p. 10).

TURO S
ESTUDOS FU

Na próxima unidade, dedicada ao gênero épico, você conhecerá um pouco


mais dos poemas épicos de Homero, Ilíada e Odisseia.

74
TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

Com Platão e Aristóteles, portanto, cujas contribuições confirmam


a necessidade de se problematizar a literatura, a teoria dos gêneros literários,
proposta por ambos, contribui para o desenvolvimento da problematização
da literatura, com contornos mais definidos. Souza (1987, p. 13) esquematiza
resumidamente, e em termos de descritivismo e normativismo, os estudos da
literatura desde as teorias de Platão e Aristóteles. Observe:

1) Em Platão e Aristóteles predomina, apesar de colocações normativas,


o descritivismo.
2) ainda na Antiguidade, depois da época clássica o tom normativo se
impõe, tanto entre os gregos quanto entre os latinos.
3) na Idade Média, o normativismo persiste, tanto pela retórica, quanto
pelo aparecimento da chamada gaia ciência, arte ou técnica de compor
versos segundo a prática dos poetas ligados ao lirismo de origem
provençal, florescente no período que se estende do século XI ao XIII.
4) do século XV ao XVIII ocorre a redescoberta da Poética, exacerbando
a atitude normativa.
5) a partir do século XIX, a consolidação do Romantismo faz ruir a
preceptística consagrada pelo Classicismo moderno.

Como você pode ver, desde a origem, na época clássica da Antiguidade,


da teoria dos gêneros literários, caracterizada pelo descritivismo, predominaria o
normativismo, com a exceção do que posteriormente os historiadores da literatura
e das artes em geral identificariam e nomeariam como Barroco. A hegemonia do
normativismo, como demonstra Roberto Acízelo de Souza, termina apenas com a
consolidação do Romantismo no século XIX.

NOTA

O descritivismo, aqui, consiste em descrever as obras. O normativismo,


por sua vez, consiste em prescrever leis e normas a serem seguidas pelos autores na
composição das obras.

Curiosamente, em Aristóteles, o conceito de “gênero” parece tratar da


origem das diferentes espécies de gêneros enquanto estabilização de uma forma,
entrevendo, no entanto, a possibilidade de transformações. Observe, por exemplo,
a passagem da Poética em que Aristóteles (2008, p. 44) analisa a origem da tragédia:

Tendo surgido, portanto, no início, da improvisação – tanto a tragédia


como a comédia, uma a partir dos autores de ditirambos, outra dos
autores dos cantos fálicos, cantos estes que têm aceitação, ainda hoje,
em muitas cidades –, a tragédia evoluiu pouco a pouco, ao mesmo
tempo que se desenvolvia tudo o que lhe era inerente. Após sofrer
muitas alterações, a tragédia se estabilizou quando atingiu a sua
natureza própria.

75
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Apesar de a concepção de “gênero” em Aristóteles entrever transformações,


o que contribui para que a sua exposição seja predominantemente descritiva,
como nota Roberto Acízelo de Souza, as poéticas posteriores, embora embasadas
teoricamente nos ensinamentos de Aristóteles, conceberiam, em geral, os gêneros
literários como formas fixas, de forma predominantemente prescritiva, impondo
leis e normas a serem seguidas pelos autores. Podemos pressupor que a razão
para a fixação das formas se encontre em Platão, que, compreendendo a arte
como representação da natureza, infere que transformações nas artes abalariam
“as mais altas leis da cidade” (PLATÃO, 2001, p. 169). A ideia de gênero de Platão
pode ser comparada, assim, com aquela de Ideia, ou seja, uma forma original e
universal de que as obras seriam o particular. Quanto ao conceito de “gênero”,
Angélica Soares (2007, p. 7) esclarece que:

A denominação de gêneros literários, para os diferentes grupamentos


das obras literárias, fica mais clara se lembrarmos que gênero (do latim
genus-eris) significa tempo de nascimento, origem, classe, espécie,
geração. E o que se vem fazendo, através dos tempos, é filiar cada obra
literária a uma classe ou espécie; ou ainda, é mostrar como certo tempo
de nascimento e certa origem geram uma nova modalidade literária.

A palavra "poética", por sua vez, é de origem grega e abrevia a expressão


poietikè téchne, como explica Emil Staiger (1975, p. 95). Em “Conceitos fundamentais
da poética”, o germanista Emil Staiger (1975, p. 96) resume o que se compreendia
antigamente por poética: “a Poética ensina em que consiste a essência da poesia;
ordena os modelos existentes e com isso cria o problema do gênero; orienta
os inexperientes que pretendem ocupar-se com a atividade poética”. O autor
observa, a seguir, que “somente depois de Gottsched é que começa a abalar-se
na Ciência da Poesia a crença no ensinamento”, desde que a poesia não é mais,
como era para o escritor, crítico e dramaturgo alemão do século XVIII, Johann
Christoph Gottsched, “imitação da natureza e dos modelos existentes, e sim uma
atividade criadora”.

O abalo na teoria dos gêneros literários, constatada por Staiger, decorre da


concepção moderna do tempo, ou seja, da concepção de história, que corresponde
ao reconhecimento do estatuto histórico das formas artísticas, que transparece,
por exemplo, no surgimento do romance. Essa é a compreensão de gênero de
Georg Lukács (1955 apud ROSENFELD, 2014, p. 32), por exemplo, ao analisar a
historicidade das formas dos gêneros literários, constatando que “as formas dos
gêneros não são arbitrárias. Emanam, ao contrário, em cada caso, da determinação
concreta do respectivo estado social e histórico. Seu caráter e peculiaridade são
determinados pela maior ou menor capacidade de exprimir os traços essenciais
de dada fase histórica”. A esse respeito, Anatol Rosenfeld (2014, p. 32) prefere
dizer que o uso dos gêneros “adapta-se em grande medida à situação histórico-
social e, concomitantemente, à temática proposta pela respectiva época”. As
consequências desse processo para a poética e para a teoria dos gêneros literários
são analisadas por Staiger (1975, p. 4):

76
TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

De há muito Poética não mais significa ensinamentos práticos para


habilitar leigos a escrever corretamente poesia, obras épicas e dramas.
Mas um ranço da conceituação mais antiga impregna ainda ensaios de
hoje, quando estes parecem ver realizada em modelos de poemas, obras
épicas ou dramas, a essência do lírico, épico e dramático. Essa maneira
de enfocar o problema se apresenta como herança da antiguidade.
Naqueles tempos, cada gênero literário era representado por um
pequeno número de obras. Era lírica toda poesia que se assemelhasse
em composição, extensão e principalmente na métrica às criações dos
autores líricos considerados clássicos, Alcman, Estesídoro, Alceu,
Safo, Ibico, Anacreonte, Simônides, Baquílides e Píndaro. Os romanos
podiam, assim, classificar Horácio como lírico, mas não Catulo, já que
este escolhera outros pés métricos. Mas da antiguidade até hoje, os
modelos multiplicaram-se indefinidamente. A Poética encontrará,
portanto, dificuldades quase insuperáveis, e, caso solucionadas, de
muito pouco proveito, se continuar procurando classificar todos os
exemplos isolados. A Poética teria — para continuarmos dentro do
gênero lírico — que comparar baladas, canções, hinos, odes, sonetos e
epigramas entre si, percorrer sua evolução durante um ou dois milênios
consecutivos, e descobrir o que há de comum entre essas composições,
chegando então, finalmente, a um conceito global do que seria o
gênero lírico. Mas um conceito que tenha validez geral será, por outro
lado, vazio de significação. Além disso, no momento em que surgir
um novo artista lírico com um modelo inédito, o conceito perderá sua
validade. Por estas razões, a possibilidade de uma arte poética tem
sido muitas vezes contestada. Fala-se das vantagens de se poder seguir
"sem preconceitos" as transformações históricas, e despreza-se, assim,
todo o tipo de sistematização tornada dogma.
Essa renúncia à Poética é compreensível, enquanto esta mantenha
a pretensão de catalogar em compartimentos estanques todas as
poesias, composições épicas e dramas existentes. A individualidade
de cada poesia exigiria tantas divisões quantas poesias existam — e
isso tornaria supérflua qualquer tentativa de ordenação.
Se desacreditamos da possibilidade de determinar a essência da poesia
lírica, da composição épica ou do drama, não nos parece, porém, fora
de propósito uma definição do lírico, do épico e do dramático.

Staiger constata as dificuldades geradas pela classificação das obras


literárias a partir do modelo tripartido proveniente da Antiguidade, dificuldades
potencializadas pela multiplicação dos modelos desde a Antiguidade, e admite
a inutilidade da antiga conceituação para a classificação das obras literárias, mas
não rejeita, como podemos ver ao final da citação, a definição do lírico, do épico
e do dramático, que, para ele, não se aplica necessariamente a obras literárias
classificadas como poemas, epopeias ou dramas, respectivamente, maneira de
enfocar o problema que Staiger compreende como “herança da antiguidade”,
mas, antes, designa o que ele chama a “essência do lírico, épico e dramático”.
Assim, sugere uma distinção dos substantivos, a Lírica, a Épica e o Drama, e dos
adjetivos, lírico, épico, dramático, e recusa a possibilidade de “pureza” de gênero:

não vamos de antemão concluir que possa existir em parte alguma


obra que seja puramente lírica, épica ou dramática. Nossos estudos,
ao contrário, levam-nos à conclusão de que qualquer obra autêntica
participa em diferentes graus e modos dos três gêneros literários, e de
que essa diferença de participação vai explicar a grande multiplicidade
de tipos já realizados historicamente (STAIGER, 1975, p. 5).

77
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Staiger conclui que podemos julgar (mas não valorar, uma vez que
acredita que o valor não se aplica a uma consideração dos gêneros) as obras a
partir da perspectiva dos gêneros literários, ou seja, da divisão tripartida em
lírico, épico e dramático. Desde que a consolidação do Romantismo faz ruir os
preceitos das poéticas clássicas, como vimos com Roberto Acízelo de Souza, os
valores românticos, como a originalidade e liberdade de criação literária, abalam
“a crença nos modelos”, confirma Staiger (1975, p. 97): “Se a Poética quer respeitar
tal sentimento, vê-se mais uma vez frente ao problema de diferenciar gênero
e modelos, e de não prejudicar a liberdade do poeta, ao delimitar os gêneros
separadamente”.

Diante da multiplicação e da hibridização dos gêneros, valorizadas desde


o Romantismo, Staiger (1975, p. 97-98) valida a interpretação de obras literárias
individuais em detrimento das prescrições de gêneros literários das poéticas
clássicas: “A este ponto já é compreensível se uma pesquisa histórica refuta toda
e qualquer Poética e limita-se, como se diz, ‘sem pressupostos’ à interpretação de
cada obra”. Confirmando, como vimos, não rejeitar a definição do lírico, do épico
e do dramático, afirma: “sinto a necessidade de esclarecer uma certa confusão
de conceitos, que ainda parece existir aqui. Formamos do substantivo ‘drama’,
o adjetivo ‘dramático’”. E, diante dessa “confusão babilônica!”, como se refere
à confusão conceitual entre os substantivos e os adjetivos relativos aos gêneros
literários, conclui: “Os conceitos é que aí estão inteiramente desordenados, como
restos da antiga Poética que perdeu seu alicerce”.

Neste ponto de sua argumentação, Staiger (1975, p. 98) propõe uma


diferenciação entre os substantivos, usados para classificar as obras literárias
conforme suas características formais, e os adjetivos:

Se observarmos minuciosamente, aquela confusão de conceitos


dissipa-se com facilidade. Os substantivos Épica, Lírica e Drama são
usados em geral como terminologia para o ramo a que pertence
uma obra poética considerada, globalmente, segundo características
formais determinadas. [...] Diferente à conotação dos adjetivos lírico,
épico, dramático. Um trecho lírico não é apenas qualquer poema,
qualquer exposição em monólogo de um estado. Mas fica nitidamente
expresso que esta exposição em monólogo de um estado seja lírica, ao
contrário de outras que não o são tão nitidamente.

Como você pode perceber, para Staiger, diferentemente dos substantivos


Épica, Lírica e Drama, os adjetivos lírico, épico e dramático não são totalizantes,
não se propõem a classificar definitivamente e como um todo uma obra literária
ou um conjunto de obras literárias. Antes, eles designam qualidades que fazem
parte de uma determinada obra, independentemente de sua classificação segundo
o modelo tripartido, e com isso conservam sua força e sua importância para a
teoria da literatura:

78
TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

Lírico, épico, dramático, não são, portanto, nomes de ramos em que se


pode vir a colocar obras poéticas. Os ramos, as classes, multiplicaram-
se desde a antiguidade incalculavelmente. Os nomes Lírica, Épica,
Drama não bastam de modo algum para designá-los. Os adjetivos
lírico, épico, dramático, ao contrário, conservam-se como nomes de
qualidades simples, das quais uma obra determinada pode participar
ou não. Por isso eles funcionam como termo designativo de uma
obra, qualquer que seja seu ramo. Podemos falar de baladas líricas,
romances dramáticos, elegias e hinos épicos (STAIGER, 1975, p. 98).

Finalmente, Staiger (1975, p. 99) faz considerações a respeito das


consequências de sua distinção para a Poética e, por conseguinte, para o
julgamento das obras literárias:

O que advém daí para a Poética? Tornou-se sem sentido descrever todos
os ramos nos quais se quer colocar as obras poéticas. Isso ensinou-nos
a roda de Petersen. Mas não é sem sentido lançar a questão da essência
do lírico, épico e dramático, pois essas qualidades são simples e não
deixam perturbar sua aparência serena pelas fulgurações e oscilações
do caráter de cada composição poética.

Staiger (1975) admite, portanto, a validade dos adjetivos lírico, épico,


dramático provenientes da antiga teoria dos gêneros literários, compreendidos
como qualidades simples de determinadas obras literárias. No Brasil, a distinção
entre substantivos e adjetivos relativos aos gêneros literários proposta por Emil
Staiger contribuiria para a separação entre o “significado substantivo dos gêneros”
e o “significado adjetivo dos gêneros” sugerida por Anatol Rosenfeld. Para o
crítico e teórico alemão, exilado no Brasil, a acepção “substantiva” dos gêneros
literários se associa à estrutura dos gêneros literários, de modo que classifica as
obras que se enquadram em determinadas características reconhecidas como
pertencentes a um dado gênero literário. No exemplo de Rosenfeld (2014, p. 17):

Pertencerá à Lírica todo poema de extensão menor, na medida


em que nele não se cristalizarem personagens nítidos e em que, ao
contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir
seu próprio estado de alma. Fará parte da Épica toda obra – poema ou
não – de extensão maior, em que um narrador apresentar personagens
envolvidos em situações ou eventos, pertencerá à Dramática toda obra
dialogada em que atuarem os próprios personagens sem serem, em
geral, apresentados por um narrador.

TURO S
ESTUDOS FU

Na Leitura Complementar, ao final da Unidade 3, você encontrará mais a respeito


de Anatol Rosenfeld, os gêneros literários e a distinção entre os significados substantivos e
adjetivos relativos aos gêneros literários.

79
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Assim, cada gênero literário comporta diferentes espécies. Na Dramática, por


exemplo, “se integrariam, como espécies, a tragédia, a comédia, a farsa, a tragicomédia
etc.” (ROSENFELD, 2014, p. 18) Ao reconhecer, no entanto, as dificuldades de
classificação de certas obras literárias, Rosenfeld (2014, p. 18) conclui:

Tais exceções, contudo, apenas confirmam que todas as classificações


são, em certa medida, artificiais, não diminuem, porém, a necessidade
de estabelecê-las para organizar, em linhas gerais, a multiplicidade
dos fenômenos literários e comparar obras dentro de um contexto de
tradição e renovação.

A acepção “adjetiva”, por sua vez, “refere-se a traços estilísticos de que uma
obra pode ser imbuída em grau maior ou menor, qualquer que seja o seu gênero
(no sentido substantivo)” (ROSENFELD, 2014, p. 18). Aqui, os “traços estilísticos”,
conforme a expressão de Anatol Rosenfeld, não se diferenciam da “qualidade” das
obras literárias. Assim, segundo Rosenfeld (2014, p. 18), “poderíamos falar, no caso,
de um drama (substantivo) lírico (adjetivo)”, por exemplo.

Assim como Staiger, Rosenfeld reconhece os problemas da antiga teoria


dos gêneros literários e, como ele, não rejeita absolutamente o uso da classificação
das obras pelos gêneros literários (um exemplo da validade da teoria dos gêneros
literários é sua importante análise do moderno “teatro épico” de Bertold Brecht),
reconhecendo, inclusive, outras razões para a adoção da teoria dos gêneros literários:

Por mais que a teoria dos três gêneros, categorias ou arquiformas


literárias, tenha sido combatida, ela se mantém, em essência, inabalada.
Evidentemente ela é, até certo ponto, artificial como toda a conceituação
científica. Estabelece um esquema a que a realidade literária multiforme,
na sua grande variedade histórica, nem sempre corresponde. Tampouco
deve ela ser entendida como um sistema de normas a que os autores
teriam de ajustar a sua atividade a fim de produzirem obras líricas puras,
obras épicas puras ou obras dramáticas puras. A pureza em matéria de
literatura não é necessariamente um valor positivo. Ademais, não existe
pureza de gêneros em sentido absoluto.
Ainda assim, o uso da classificação de obras literárias por gêneros
parece ser indispensável, simplesmente pela necessidade de toda
ciência de introduzir certa ordem na multiplicidade dos fenômenos.
Há, no entanto, razões mais profundas para a adoção do sistema de
gêneros. A maneira pela qual é comunicado o mundo imaginário
pressupõe certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente,
a atitude exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros
manifestam-se, sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes
em face do mundo (ROSENFELD, 2014, p. 16-17).

80
TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

2.1 A APLICABILIDADE DA TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS


HOJE
Voltemos algumas linhas... Você percebeu que Anatol Rosenfeld defende
a necessidade das classificações dos gêneros literários, de forma aparentemente
contraditória, para “comparar obras dentro de um contexto de tradição e
renovação”? Dizemos “contraditória” porque, como vimos, a teoria dos gêneros
literários tendeu para a fixação prescritiva dos modelos propostos pelos gêneros
literários, contrariando a renovação das obras literárias. Contra o prescritivismo
dos gêneros literários, no entanto, a arte respondeu se renovando em diálogo
com a tradição, a exemplo da querela entre os antigos e os modernos a partir
do século XV, do teatro de Shakespeare, do questionamento romântico das
formas fixas e da defesa da hibridização de gêneros nos séculos XVIII e XIX, do
modernismo dos séculos XIX e XX, das vanguardas artísticas do século XX ou
da arte contemporânea. Portanto, compreender a significação de determinadas
obras literárias e de arte em geral requer, muitas vezes, conhecer a teoria dos
gêneros literários.

Tomemos um exemplo do modernismo brasileiro. Observe o texto abaixo:

Tragédia brasileira
 
Misael, funcionário da Fazenda, com 63 anos de idade, conheceu
Maria Elvira na Lapa – prostituída, com sífilis, dermite nos dedos, uma aliança
empenhada e os dentes em petição de miséria. Misael tirou Maria Elvira da
vida, instalou-a num sobrado no Estácio, pagou médico, dentista, manicura…
Dava tudo quanto ela queria.

Quando Maria Elvira se apanhou de boca bonita, arranjou logo um


namorado. Misael não queria escândalo. Podia dar uma surra, um tiro, uma
facada. Não fez nada disso: mudou de casa.

Viveram três anos assim.

Toda vez que Maria Elvira arranjava namorado, Misael mudava de casa.

Os amantes moraram no Estácio, Rocha, Catete, Rua General Pedra,


Olaria, Ramos, Bonsucesso, Vila Isabel, Rua Marquês de Sapucaí, Niterói,
Encantado, Rua Clapp, outra vez no Estácio, Todos os Santos, Catumbi,
Lavradio, Boca do Mato, Inválidos…

Por fim, na Rua da Constituição, onde Misael, privado de sentidos e


de inteligência, matou-a com seis tiros, e a polícia foi encontrá-la caída em
decúbito dorsal, vestida de organdi azul.

81
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Como você o classificaria? É um texto em prosa ou em verso? É um


poema? É lírico? É épico? O texto pode ser classificado segundo os critérios da
teoria dos gêneros literários? A teoria dos gêneros literários pode contribuir para
a compreensão do texto?

Você observou o título do texto? Não? Observe que uma espécie da


Dramática, a tragédia, designa o texto como uma forma de classificação. É
dramático? É uma tragédia? O texto tem as características atribuídas à tragédia?
Tem diálogo? As personagens são nobres, por exemplo, como preceitua
Aristóteles? Não? O que isso implica?

Não pretendemos responder essas perguntas agora. Podemos antecipar,


desde logo, que todas essas perguntas podem contribuir para a compreensão dos
sentidos produzidos pela leitura do texto que, como você deve ter percebido, é
um poema de Manuel Bandeira (2009). O poeta modernista publicou “Tragédia
brasileira” no livro “Estrela da manhã”, de 1936, no poema podemos identificar
um projeto semelhante ao que o poeta desenvolveu antes em “Poema tirado de
uma notícia de jornal”, publicado em “Libertinagem”, de 1930:

Poema tirado de uma notícia de jornal


 
João Gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia
num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.

E esse texto, como você o classificaria? É um poema? É uma notícia? O


que, a rigor, define se o texto é um poema ou uma notícia, supondo que o poeta
realmente tenha tirado o poema de uma notícia de jornal? São elementos internos
constitutivos da organização textual? São elementos da conjuntura externa que
delimitam o modo de ler, tais como o suporte do texto, o seu modo de circulação,
o consenso a seu respeito definido por instituições literárias, como a crítica, a
academia etc.? A rigor, podemos dizer, com Jonathan Culler (1999), que, para
classificar um texto como literário, podemos compreender a literatura como: a)
linguagem com propriedades específicas; e b) como produto de convenções e um
certo tipo de atenção suscitada pela especificidade do texto literário. Jonathan
Culler conclui que devemos nos movimentar entre uma compreensão e outra,
como comprova o poema de Manuel Bandeira (2009).

82
TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

Por meio de formas evidentemente diferentes, os dois poemas, ao se


apropriarem de elementos da linguagem jornalística, instauram uma certa
instabilidade de gênero, uma tensão entre os discursos e as esferas poética e
jornalística, que compromete as hierarquias, de forma, de tema, de classe etc.,
previstas na antiga teoria dos gêneros literários. É justamente isso que motiva que
Luiz Costa Lima (1968), por exemplo, identifique na poesia de Manuel Bandeira
um “realismo coloquial”, ou que Davi Arrigucci Jr. (1990 e 2000) insista no
“sublime” na poesia de Manuel Bandeira, que parece sintetizar seu projeto poético
de libertação estética, como diria Alfredo Bosi (2013), em um poema cujo título
remete, não por acaso, à poética no sentido das regras, leis ou normas prescritas
pelas poéticas e retóricas clássicas, contra as quais o poema notadamente se
insurge, reivindicando sua própria poética:

Poética

Estou farto do lirismo bem comportado


Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário o cunho
vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras, sobretudo os barbarismos universais
Todas as construções, sobretudo, as sintaxes de exceção
Todos os ritmos, sobretudo, os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de cossenos secretário do amante exemplar com
cem modelos de cartas e as diferentes maneiras de agradar às mulheres etc.
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare

- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.

83
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Seja como for, os poemas de Manuel Bandeira (2009) requerem, para


compreender sua significação, conhecimento da teoria dos gêneros literários e de
suas implicações, que aprofundaremos adiante ao analisarmos mais detidamente
cada gênero literário. E os gêneros literários, ao mesmo tempo, contribuem para a
significação dos poemas, no ato de sua leitura, na medida em que fazem parte dos
conhecimentos prévios históricos e literários dos leitores, previstos pelo autor.

Nesse sentido, Hans Robert Jauss afirma que a convenção de gênero


evoca um horizonte de expectativas, por parte do leitor, inclusive para destruir
suas expectativas, não apenas com propósito crítico, mas para produzir efeitos
poéticos. Essa evocação e destruição do horizonte de expectativas, por meio da
convenção de gênero, como objetivação de sistemas histórico-literários, podemos
identificar nos poemas de Manuel Bandeira (2009). Vejamos, resumidamente,
como a teoria da recepção de Jauss ajuda a compreender a produção de sentidos
no ato de leitura, e qual o papel dos gêneros literários nesse processo.

Jauss (1994, p. 28) procura delimitar a possibilidade de uma disposição


dos leitores diante de uma obra, disposição que tanto antecede a reação e a
compreensão da obra pelo leitor quanto a possibilita:

Assim como em toda experiência real, também na experiência


literária que dá a conhecer pela primeira vez uma obra até então
desconhecida há um “saber prévio, ele próprio um momento dessa
experiência, com base no qual o novo de que tomamos conhecimento
faz-se experienciável, ou seja, legível, por assim dizer, num contexto
experiencial” (BUCK, 1967, p. 56). Ademais, a obra que surge não
se apresenta como novidade absoluta num espaço vazio, mas, por
intermédio de avisos, sinais visíveis e invisíveis, traços familiares
ou indicações implícitas, predispõe o público para recebê-la de uma
maneira bastante definida. Ela desperta a lembrança do já lido,
enseja logo de início expectativas quanto a “meio e fim”, conduz o
leitor a determinada postura emocional e, com tudo isso, antecipa um
horizonte geral da compreensão vinculado, ao qual se pode, então
– e não antes disso –, colocar a questão acerca da subjetividade da
interpretação e do gosto dos diversos leitores ou camadas de leitores.

A seguir, Jauss, numa perspectiva que conjuga a tradição da literatura


e a ruptura da tradição constitutiva dessa mesma tradição, evoca o conceito de
“horizonte de expectativas” que, como você pode perceber, Jauss (1994, p. 28)
relaciona com a “convenção do gênero”:

O caso ideal para a objetivação de tais sistemas histórico-literários


de referência é o daquelas obras que, primeiramente, graças a uma
convenção do gênero, do estilo ou da forma, evocam propositadamente
um marcado horizonte de expectativas em seus leitores para, depois,
destruí-lo passo a passo – procedimento que pode não servir apenas a
um propósito crítico, mas produzir ele próprio efeitos poéticos.

84
TÓPICO 1 | A TEORIA DOS GÊNEROS LITERÁRIOS

Jauss reitera a participação de uma convenção do gênero na possibilidade


da objetivação do horizonte de expectativas dos leitores, pois o gênero constitui
um dos fatores que pressupõem a “predisposição específica do público com a
qual um autor conta para determinada obra”. Assim, Jauss (1994, p. 29) elenca
os fatores a partir dos quais se pode pressupor a predisposição dos leitores a
uma obra, priorizando, como você pode ver, justamente o gênero como um dos
saberes prévios que torna a leitura de uma obra compreensível:

em primeiro lugar, a partir de normas conhecidas ou da poética


imanente ao gênero; em segundo, da relação implícita com obras
conhecidas do contexto histórico-literário; e, em terceiro lugar, da
oposição entre ficção e realidade, entre função poética e a função
prática da linguagem, oposição esta que, para o leitor que reflete, faz-se
sempre presente durante a leitura, como possibilidade de comparação.

A respeito da retomada dos gêneros literários pela estética da recepção,


de Jauss – que, como observa Luiz Costa Lima (1983 apud SOARES, 2007, p.
20), orienta-se pela “ideia de situação na qual um certo discurso funciona, i. é,
é reconhecido como literário”, exigindo do leitor uma “entrada ativa, através da
interpretação que suplementa o esquema trazido pela obra” –, Angélica Soares
(2007, p. 20) constata:

Com base nessa orientação geral, Hans Robert Jauss, tomando do


linguista romeno Eugênio Coseriu a noção de norma e de Wolf-Dieter
Stempel a de situação discursiva, volta-se, em ensaio de 1970, para
os gêneros literários, ressaltando que toda obra está vinculada a um
conjunto de informações e a uma situação especial de apreensão e, por
isso, pertence a um gênero, na medida em que admite um horizonte de
expectativas, isto é, alguns conhecimentos prévios que conduziriam
à sua leitura. Os gêneros formariam as redundâncias necessárias à
recepção e à situação da obra e apresentariam marcas variáveis, não
totalmente conscientes, que serviriam de orientação à leitura e à
produção. A descrição de um texto literário seria, portanto, sempre
histórica e guiada “pelo conhecimento das expectativas com que são
recebidas e/ou produzidas”.

Para a estética da recepção, de Jauss, portanto, a obra literária se vincula,


como observa Angélica Soares, a um conjunto de informações e a uma situação
de apreensão, que correspondem à objetivação de um sistema histórico-literário
que torna a obra legível, pelos conhecimentos prévios dos leitores ou, em outras
palavras, o horizonte de expectativas para o qual contribui o “repertório” do
leitor, na nomenclatura de Wolfgang Iser, fundador da teoria do efeito, que
complementa a estética da recepção. Assim, os gêneros exercem um papel
fundamental tanto na produção quanto na recepção de uma obra literária.

85
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Nesse sentido, e confirmando a relevância do estudo da teoria dos gêneros


literários, Angélica Soares (2007, p. 21-22) traz algumas considerações que
julgamos importante retomar antes de nos dedicarmos ao estudo individualizado
dos gêneros literários:

um assunto tão presente nos estudos literários de todas as épocas


não pode ser negado, ou simplesmente ignorado. Parece-nos mais
adequado, mantendo-nos atentos às futuras contribuições, que nos
procuremos situar hoje, através de algumas diretrizes oriundas das
teorias mais avançadas na questão dos gêneros, a saber:
Mesmo levando em conta características genéricas, que vêm
apresentando as obras no transcurso da história literária, nunca se
deve descrever um gênero aprioristicamente, sem considerar os modos
concretos de recepção dos textos, evitando, assim, que a caracterização
prévia dos gêneros aja de forma arbitrária sobre a atuação do receptor.
a) Os traços dos gêneros estão em constante transformação; portanto,
no ato de leitura, devemos conduzir abertamente pelas mudanças
e não por características fixas. Faz-se necessário atentarmos para
as expectativas criadas pela própria obra. Não podemos esquecer,
porém, que o posicionamento do escritor em seus textos, mesmo
quando oposto ao que ele pensa esperar do leitor com relação
ao gênero, decorre justamente de traços que vêm caracterizando
historicamente os gêneros, em uma determinada cultura [...].
b) Assim, é tão relevante termos consciência de que diferentes leituras
possam ser feitas por diferentes comunidades de receptores,
quanto considerarmos que, no âmbito de nossa tradição cultural,
mesmo apresentando-se a obra como uma desestruturação total
dos gêneros ou como dissolução da própria ideia de gênero, essa
desestruturação ou a dissolução se processam a partir da existência
de um conjunto de obras, que vieram contribuindo para a formação
do nosso horizonte de expectativas e do próprio poeta.
c) Mais importante que identificar um traço isolado na obra, nos
parece ser observarmos como cada traço se relaciona com outros
da mesma obra, para que então ele seja reconhecido como lírico,
narrativo ou dramático.
d) A teoria dos gêneros é vista como meio auxiliar que, entre outros,
nos leva ao conhecimento do literário, mas nunca deve ser usada
para valorização e julgamento da obra. Por outro lado, o fato de um
texto apresentar características dos gêneros, por si só, não nos leva
a localizá-lo na literatura.

ATENCAO

Não devemos confundir, especialmente em situações de ensino, os gêneros


literários com os gêneros discursivos nem com os gêneros textuais, que você estudou ou
estudará em outras disciplinas.

86
RESUMO DO TÓPICO 1
Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura, desde o seu surgimento, problematiza a si mesma, antecipando a


função da teoria da literatura.

• O antigo conceito de gênero significa origem e se presta a classificar as obras


literárias segundo espécies.

• O antigo conceito de poética se relaciona com o ensinamento das leis e normas


de composição conforme a teoria dos gêneros literários.

• A classificação das obras a partir da teoria dos gêneros literários deve ser
contextualizada historicamente.

• Apesar de sua historicidade, a antiga teoria dos gêneros literários tem


importância fundamental para a moderna teoria da literatura.

87
AUTOATIVIDADE

Você leu neste tópico o “Poema tirado de uma notícia de jornal”, de


Manuel Bandeira. O poema, como sugere o título, foi, de fato, “tirado de uma
notícia de jornal”, veiculada no jornal Beira-Mar de 25 de dezembro de 1925.
Reflita sobre a especificidade da linguagem do poema e da notícia de jornal
de onde o poema foi tirado:

88
UNIDADE 2 TÓPICO 2

OS GÊNEROS LITERÁRIOS

1 INTRODUÇÃO
No Tópico 1, você viu uma contextualização da teoria dos gêneros
literários, apresentados aqui em uma perspectiva histórica e crítica. A partir deste
tópico você irá aprofundar os estudos sobre os gêneros literários analisando,
individualmente, cada um deles.

Neste tópico, estudaremos o gênero dramático e o gênero lírico,


respectivamente, iniciando por uma comparação com o intuito de identificarmos
suas particularidades e por uma breve explanação da teoria dos gêneros literários
na Antiguidade.

A seguir, veremos detidamente o texto dramático e o texto poético.


Estudaremos resumidamente a história e os tipos de teatro e, por fim, as
características do poema, tais como estrutura, verso, rima, metro, finalizando
com um estudo sobre as formas e a interpretação de poemas.

Ao final deste tópico você estará ambientado com os gêneros dramático e


lírico, os quais incluem os textos dramático e poético.

Vamos lá?

2 O GÊNERO DRAMÁTICO E O GÊNERO LÍRICO


Agora iremos nos dedicar, finalmente, ao estudo individualizado dos
gêneros literários. Para tanto, iniciaremos nossos estudos diferenciando o gênero
dramático e o gênero lírico. Comecemos pelo gênero dramático. Observe, a
seguir, fragmentos da tragédia “Édipo Rei”, datada de 430 a.C., de Sófocles (496
a.C. – 406 a.C.):

89
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

ARAUTO
Vós, que tanto respeito mereceis
neste país, ainda mais chorarei
pelas coisas que haveis de ver e ouvir,
se, como patriotas bem-nascidos,
ainda prezais a nossa dinastia!
As águas dos rios todos da terra
talvez não bastem para lavar a imundície
desta casa – tamanhos são os males
já mostrados, e os mais que há de mostrar,
premeditados, não ocasionais...
Quem se fere a si mesmo, sofre mais!

CORIFEU
O que sabemos já nos dá muito a chorar.
Que nova catástrofes anuncias?

ARAUTO
É breve o que ides ouvir
e breve o que eu vou dizer:
Nossa rainha Jocasta está morta!

CORIFEU
Pobre mulher! – Como se deu a morte?

ARAUTO
Por suas próprias mãos... O horror do quadro,
a vós, que o não vistes, será poupado;
mas eu, que o vi, dele não posso me esquecer!

Como você pode ver, nesse fragmento, o arauto, o mensageiro


encarregado das proclamações oficiais, anuncia ao povo de Tebas a morte da
rainha, dialogando com o corifeu, o chefe do coro. A seguir, com o intuito de
poupar os espectadores do horror da visão do que sucedeu, o arauto narra como
a rainha Jocasta se enforcou, enlouquecida pelos acontecimentos que afetam o
reino de Tebas, e o ato punitivo do rei, seu filho e seu marido, que fura os olhos:
“ele arrancou os alfinetes de ouro da roupa da rainha, levantou-os e os enterrou
nos olhos, imprecando: ‘Olhos meus, não verei mais esta culpa e esta vergonha,
nunca mais vereis quem não deveríeis ter visto nunca, e para todo o sempre só
vereis as trevas’”. Em seguida, o rei volta para a cena lamentando seu destino:

ÉDIPO
Ai de mim! Ai de mim! Pobre de mim!
Onde estou eu? Para que fui nascer?
A minha voz espalha-se, por onde?
Ah, meu destino, aonde queres chegar?

90
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

CORO
A um ponto tão terrível de ver
quanto de escutar!

A seguir, o rei abandona Tebas, deixando o poder a seu tio e cunhado


Creonte, cena que encerra a tragédia com o comentário do coro:

CORO
Concidadãos de Tebas, pátria nossa,
olhai bem: Édipo, decifrador
de intrincados enigmas, entre os homens
o de maior poder – aí está!
Quem, no país, não lhe invejava a sorte?
E agora, vede em que mar de tormento
ele se afunda! Por essa razão,
enquanto uma pessoa não deixar
esta vida sem conhecer a dor,
não se pode dizer que foi
feliz.

FIGURA 4 - ÉDIPO REI

FONTE: Rudolph Tegner. Oedipe Roi. Disponível em: <http://www.


rudolphtegner.dk>. Acesso em: 19 jul. 2017.

91
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Vejamos agora o gênero lírico. Observe abaixo o poema de Safo de Lesbos


(620 a.C. – 570 a.C.), reconhecida como a maior poetisa lírica da Antiguidade:

A lua já se pôs,
as Plêiades também:
meia-noite; foge o tempo,
e estou deitada sozinha.

NOTA

Safo de Lesbos (620 a.C. – 570 a.C.) foi uma poetisa grega, membro da
aristocracia. Faz parte dos nove poetas líricos do período arcaico.

FIGURA 5 - SAFO DE LESBOS

FONTE: Disponível em: <https://goo.gl/jNYKKZ>. Acesso em: 4 ago. 2017.

Comparando os exemplos de gênero dramático e de gênero lírico


acima, como você diferenciaria um do outro? Como vimos, a classificação dos
gêneros literários remonta à Antiguidade, mais exatamente à divisão proposta
por Platão e Aristóteles a partir de exemplos como esses, que antecedem a
República, de Platão, e a Poética, de Aristóteles. Vejamos, então, como eles se
diferenciam um do outro.

Na República, Platão, por meio do diálogo entre Sócrates e Adimanto,


diferencia três gêneros de narrativa. Depois de definir a lírica como “narração pelo
próprio poeta” sem imitação, Platão (2001, p. 112) afirma que “existe também uma
espécie de narrativa oposta a esta [narrativa sem imitação], quando se retiram as
palavras do poeta no meio das falas, e permanece apenas o diálogo”. Com isso,
Platão caracteriza a dramática, ou seja, o teatro, que compreende a tragédia e a
comédia, propondo a primeira diferenciação entre o gênero dramático e o gênero

92
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

lírico, que estudaremos nesta unidade. E, finalmente, a épica, que estudaremos


na próxima unidade, consiste, para Platão (2001, p. 110), em um gênero misto,
pois na epopeia “é o próprio poeta que fala”, mas, em determinados momentos, o
personagem fala “como se fosse ele mesmo”, momentos estes em que o poeta “faz
um discurso como se se tratasse de outra pessoa”. Resumindo o diálogo entre
Sócrates e Adimanto, Platão (2001, p. 112) conclui:

na poesia e na prosa existem três gêneros de narrativas. Uma,


inteiramente imitativa, que, como tu dizes, é adequada à tragédia
e à comédia; outra, de narração pelo próprio poeta, encontrada
principalmente nos ditirambos; e, finalmente, uma terceira, formada
da combinação das duas precedentes, utilizada na epopeia e em
muitos outros gêneros.

Podemos, portanto, resumir esquematicamente a divisão de gêneros


literários proposta por Platão desta forma:

QUADRO 1 - GÊNEROS LITERÁRIOS SEGUNDO PLATÃO


Gêneros literários segundo Platão
Lírica Dramática Épica
Não imitativa Imitativa Mista
Voz do poeta Voz dos personagens Voz do poeta intercalada com
a voz dos personagens

FONTE: O autor

Ao resumir as ideias de Platão, reconhecendo em sua obra as primeiras


considerações do pensamento ocidental sobre os gêneros literários, Angélica
Soares (2007, p. 9) escreve:

Platão (cerca de 428 a.C. - cerca de 347 a.C.), no livro III da República
(394 a.C.), nos deixou a primeira referência, no pensamento ocidental,
aos gêneros literários: a comédia e a tragédia se constroem inteiramente
por imitação, os ditirambos apenas pela exposição do poeta e a epopeia
pela combinação dos dois processos.

Para Aristóteles (2008, p. 37), diferentemente de Platão, “são todas, vistas


em conjunto, imitações”, diferenciando-se, contudo, quanto aos meios, os objetos
e os modos de imitar. Quanto ao modo, Aristóteles (2008, p. 40-41) constata que:
“Com os mesmos meios podem imitar-se os mesmos objetos, ora narrando – seja
tomando outra personalidade como faz Homero, seja mantendo a sua identidade
sem alteração – ora representando todos em movimento e em atuação”.

Podemos resumir esquematicamente a divisão de gêneros literários proposta


por Aristóteles quanto aos modos, meios e objetos de imitação desta forma:

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

QUADRO 2 - GÊNEROS LITERÁRIOS SEGUNDO ARISTÓTELES


Gêneros literários segundo Aristóteles
Narrativo Dramático
Lírica Épica Tragédia e Comédia
Imitativa Imitativa Imitativa
Modo
Voz do poeta intercalada com
Voz do poeta Voz dos personagens
a voz dos personagens
Meio
Palavra, harmonia e ritmo Palavra Palavra e encenação
Objeto
Representa o homem melhor
Representa o homem pior (?) Representa o homem melhor
(tragédia) ou pior (comédia)

FONTE: O autor

Seguindo Platão e Aristóteles, podemos dizer que a principal diferenciação


entre o gênero dramático e o gênero lírico se encontra na forma particular de
enunciação de cada gênero. Enquanto o gênero lírico se caracteriza pela voz do
eu lírico, como aprofundaremos a seguir, o gênero dramático se caracteriza pelo
discurso direto dos personagens, representados por atores. Etimologicamente,
drama designa ação, como explica Massaud Moisés (1999, p. 161):

A princípio, como sugere a etimologia, o vocábulo designava


simplesmente a ação. E como a ação se afigurava exclusiva do teatro,
passou a conter um significado específico. Aristóteles, na Poética
(tr. de Eudoro de Sousa, s.d., 1448 a 28), distingue a imitação, ou
mimese, “na forma narrativa” daquela em que as “pessoas agem
e obram diretamente”, ou seja, em que se processa a imitação da
ação. Ao segundo tipo confere o apelativo de drama. Portanto, em
sentido amplo, a qualquer peça destinada a representar-se caberia
análoga denominação.

O drama equivale, portanto, ao teatro, fundamentado na transposição de


uma ação por meio da atuação de atores, que representam personagens, sem a
intermediação de um narrador. Assim, como simplifica Anatol Rosenfeld (2014,
p. 28), ao drama pertencem obras que apresentam a “imitação por personagens
em ação diante de nós”, os quais “fazem aparecer e agir as próprias personagens”.

Unindo palavra e imagem, texto e palco, o teatro conforma a encenação,


produzida geralmente a partir do texto dramático, o qual constitui mais
especificamente o nosso objeto de interesse, de modo que separaremos, para os
nossos fins, o texto e a encenação.

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Essa separação é prevista desde Aristóteles (2008, p. 51): “o espetáculo, se é


certo que atrai os espíritos, é, contudo, o mais desprovido de arte e o mais alheio à
poética. É que o efeito da tragédia subsiste mesmo sem os concursos e os atores”.
Da mesma maneira, ao definir o “dramático”, Emil Staiger (1975, p. 61) recorre a
uma separação entre “dramático” e “teatral”, relacionada com a encenação:

“Teatral" e "dramático" não significam, portanto, o mesmo. Contudo,


a negação de interdependência dos dois conceitos viria contrariar
toda a terminologia tradicional. Seria, então, aconselhável explicar
essa relação dizendo que o dramático não tem que ser compreendido
a partir de sua adaptação ao palco, e sim que a instituição histórica
do palco decorre da essência do estilo dramático? Um enfoque
fenomenológico só permite essa interpretação. O palco foi, realmente,
criado segundo o espírito da obra dramática, como único instrumento
que se adaptava ao novo gênero poético. Mas uma vez existente, esse
mesmo instrumento pode servir a outras formas de criação e tem sido
utilizado das maneiras mais diversas através dos tempos.

A encenação, o aspecto visual do drama, inaugura, como explica Jean-


Pierre Vernant, um novo gênero literário, o gênero dramático:

Antes dela, temos a poesia épica (Homero, Hesíodo) e a poesia lírica.


Mas essa poesia é uma obra de pura audição: o poema não é feito para
ser lido, mas escutado, nas recepções privadas ou nas grandes festas de
Delfos ou de Olímpia. Ele canta os grandes feitos dos heróis lendários.
Com a tragédia, estamos diante de algo completamente diferente:
um espetáculo. São os mesmos personagens, os mesmos relatos, os
mesmos mitos; mas enquanto o poeta épico cantava as façanhas do
herói, com a tragédia o público vê o herói em cena, realizando suas
façanhas.
E isso muda tudo. Os heróis estão lá, diante da multidão, em carne e
osso, como se estivessem vivos. Quando o ateniense do século V vê
Agamenon, Clitemnestra ou Orestes caminharem sobre o palco, ele
sabe que se trata do que chamaremos mais tarde de “ilusão teatral”.
Ele compreende, evidentemente, que é um espetáculo montado,
organizado, com problemas de perspectiva e de cenário que se colocam
desde o início. A tragédia pressupõe e ao mesmo tempo fabrica a
consciência do fictício (VERNANT, 2005, p. 5).

Apesar do impacto da encenação, manteremos nossa atenção no texto


dramático, que compreende um texto principal, constituído pelas falas das
personagens em discurso direto, e um texto secundário, constituído, por sua vez,
pelas orientações para a encenação, as quais são chamadas rubricas ou didascálias.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

3 O TEXTO DRAMÁTICO: ORIGEM E EVOLUÇÃO


Agora, iremos nos dedicar ao estudo do texto dramático, analisando sua
origem e sua evolução. Vimos que o texto e a encenação podem ser separados
e que essa separação é prevista desde Aristóteles, que valoriza, como vimos, o
texto dramático em relação ao palco, no qual a encenação se produz a partir do
texto dramático.

Para tanto, estudaremos desde as formas antigas do teatro, como a


tragédia e a comédia, ao teatro moderno, privilegiando o teatro de Shakespeare,
considerado o maior dramaturgo de todos os tempos. E, finalmente, estudaremos
resumidamente alguns tipos de teatro.

3.1 BREVE PANORAMA DO TEATRO AO LONGO DOS


TEMPOS
O teatro, em sua forma mais primitiva, consiste em ritos coletivos de
celebração ou luto, que se transformam tanto em mimetismo quanto em rituais
formalizados, baseados em mitos. O teatro surge na Antiguidade grega, com o
ditirambo, como relata Roland Barthes, demonstrando, portanto, uma origem
comum entre o gênero dramático e o gênero lírico.

Cerca de final do século VII a.C., o culto de Dionísio originara,


principalmente na região de Coríntia e de Sicion, na região dórica, um
gênero muito florescente, semirreligioso, semiliterário, constituído
por coros e danças, o ditirambo. Esse teria sido introduzido na Ática,
cerca de 550 anos antes de Cristo, por um poeta lírico, Téspis, que
organizava representações ditirâmbicas pelas aldeias, transportando
seu material numa carroça e recrutando os coros no próprio local.
Uns dizem que foi Téspis quem criou a tragédia ao inventar o
primeiro ator; outros dizem que foi o seu sucessor, Frínico. O novo
drama recebeu rapidamente a consagração da cidade, tendo sido
dominado por uma instituição verdadeiramente cívica: a competição.
O primeiro concurso ateniense de tragédia teria tido lugar em 538,
sob o domínio de Pisístrato, que desejava enfeitar a sua tirania com
festas e cultos. A continuação é conhecida: o teatro instala-se num
local consagrado a Dionísio, que ficará para sempre como patrono
do gênero. Grandes poetas (seria melhor dizer grandes criadores de
teatro), quase contemporâneos uns dos outros, dão à representação
dramática a sua estrutura adulta, o seu sentido histórico profundo.
Este desenvolvimento coincide com o triunfo da democracia, a
hegemonia de Atenas, o nascimento da História e a estatuária de
Fídias: é o século V, o século de Péricles, o século clássico. Depois,
do século IV até o fim da época alexandrina, salvo algumas
ressurgências de gênio das quais sabemos pouca coisa (Menandro e
comédia nova), é o declínio: mediocridade das obras, desaparecidas
por causa disso, abandono progressivo da estrutura coral, que foi a
estrutura específica do teatro grego (BARTHES, 1984, p. 61).

96
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Posteriormente, ao protagonista introduzido por Téspis, como nota


Barthes, Ésquilo incluiria um antagonista, e Sófocles, um tritagonista. Aristóteles
(2008) confirma que a tragédia e a comédia surgiram da improvisação, procedendo,
respectivamente, dos autores de ditirambos e dos cantos fálicos. Sua forma se
fixaria com as adaptações de Ésquilo e de Sófocles:

O primeiro a mudar o número de atores de um para dois foi Ésquilo,


que também diminuiu as partes do coro e fez com que a parte falada
tivesse um papel predominante. Sófocles aumentou o número de atores
para três e introduziu a cenografia (ARISTÓTELES, 2008, p. 44-45).

Assim, a função das personagens se torna gradualmente mais importante


na mesma medida em que diminui a do coro, formado por cerca de 10 a 15
cidadãos atenienses, desempenhando um papel de mediação, conforme a função
social de debate que o teatro cumpria na Antiguidade. Aristóteles (2008, p. 47-48)
define a tragédia como “imitação de uma ação elevada e completa, dotada de
extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das
partes, que se serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do
temor, provoca a purificação de tais paixões”.

NOTA

A purificação das paixões, mencionada por Aristóteles, é denominada catarse


(katharsis).

FIGURA 6 – MÁSCARAS TEATRAIS

FONTE: Disponível em: <http://mosqueteirasliterarias.comunidades.net/o-desenvolvimento-


intelectual>. Acesso em: 27 ago. 2017.

O trágico, por sua vez, se caracteriza pela unidade entre salvação e


aniquilamento que, como sugere Peter Szondi, perpassa a tragédia de Édipo Rei,
de que vimos alguns fragmentos. Afinal, Édipo tenta tomar o destino, tarefa dos
deuses, em suas mãos, ultrapassando a medida do humano:

97
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

O trágico perpassa a tessitura de Édipo Rei como em nenhuma outra


peça. Seja qual for a passagem do destino do herói em que se fixe a
atenção, nela se encontra aquela unidade de salvação e aniquilamento
que constitui um traço fundamental de todo trágico. Pois não é
o aniquilamento que é trágico, mas o fato de a salvação tornar-se
aniquilamento; não é no declínio do herói que se cumpre a tragicidade,
mas no fato de o homem sucumbir no caminho que tomou justamente
para fugir da ruína (SZONDI, 2004, p. 89).

Não se trata, no entanto, de condenar Édipo, mas, como constata Jean-Pierre


Vernant, de mostrar as dificuldades para compreender o que é o homem em suas
relações com o universo ambíguo: “A tragédia é uma forma dessa interrogação
sobre o homem e o mundo, sobre o justo e o verdadeiro. Ela exprime uma
profunda ambiguidade” (VERNANT, 2005, p. 5). Para Vernant, a validade atual
da tragédia grega, em detrimento do mundo da cultura grega que se distanciou
de nós, se encontra na invenção do homem angustiado, o homem trágico, que
questiona seus atos, compreendendo mais tarde que fez algo diferente do que
acreditava fazer, e que se torna novamente legível ao homem moderno.

Aristóteles (2008, p. 40), ao identificar os objetos de imitação da arte,


estipula o que diferencia a tragédia e a comédia: “a tragédia se distingue da
comédia neste aspecto: esta quer representar os homens inferiores, aquela,
superiores aos da realidade”. Adiante, Aristóteles (2008, p. 45-46) explica:

A comédia é, como dissemos, uma imitação de caracteres inferiores,


não contudo em toda a sua vileza, mas apenas na parte do vício que
é ridícula. O ridículo é um defeito e uma deformação nem dolorosa
nem destruidora, tal como, por exemplo, a máscara cômica é feia e
deformada, mas não exprime dor.

Portanto, enquanto a tragédia é uma “imitação, com palavras e ajuda de


metro, de caracteres virtuosos” (ARISTÓTELES, 2008, p. 46-47), como vimos,
a comédia, segundo Aristóteles, imita os maus costumes e trata de “histórias
e enredos com um sentido geral”. A comédia surge cerca de cinquenta anos
depois da tragédia, em 486 a.C., pois, uma vez que satiriza instituições, políticos,
filósofos e poetas, necessita de liberdade de expressão, que seria conquistada
com a democracia ateniense, consolidada no século V a.C. Sua linguagem,
diferentemente da tragédia, se caracteriza pela coloquialidade e pelo emprego de
expressões baixas e populares.

Vejamos um exemplo. Abaixo temos um fragmento da comédia Lisístrata


(411 a.C.), de Aristófanes (444 a.C. – 385 a.C.), que trata de uma greve de sexo
liderada pela ateniense Lisístrata para acabar com a guerra do Peloponeso, que
durava anos e anos, convencendo as mulheres de Atenas e Esparta a evitarem
seus maridos enquanto não assinassem um tratado de paz. Nesta passagem, um
embaixador de Esparta entra seguido por um ministro do governo ateniense:

98
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Embaixador – Onde é o Senado de Atenas? Ou então onde estão os


ministros? Tenho novidades a dizer.
Ministro – Quem é você? Um homem ou um saca-rolhas?
Embaixador – Sou embaixador, meu caro. Estou chegando de Esparta
para tratar de paz.
Ministro – Mas você vem tratar de paz com essa lança apontada para nós?
Embaixador – Isto não é lança...
Ministro – Então por que sua roupa está repuxada na frente, a certa
altura? Será um tumor que cresceu durante a viagem?
Embaixador – (à parte) Esse homem está maluco!
Ministro – (levantando a túnica do embaixador) Não é tumor, não!
Não adianta disfarçar!
Embaixador – Que negócio é esse? Chega de maluquices!
Ministro – (virando de costas para o público e levantando a túnica) Veja!
Ministro – (virando também de costas para o público e levantando
a túnica) Veja também! Já percebi tudo! Pode dizer a verdade. Como vão as
coisas lá em Esparta?
Embaixador – Esparta inteira está parada. Nossos aliados também.
Precisamos urgentemente de nossas mulheres.
Ministro – Qual é causa dessa... doença? Algum castigo divino?
Embaixador – Não. Foi Lampito quem começou. Depois todas as
mulheres, como se fossem uma só, aderiram a essa greve de sexo.
Ministro – E como vocês estão passando?
Embaixador – Mal. Andamos até meio caídos para frente, pois não
aguentamos o peso da... lança. E as mulheres não se comovem: só acabarão a
greve quando for votada a paz em toda a Grécia.
Ministro – Então é uma greve geral das mulheres. Agora estou
entendendo! Pois vá dizer já a seu governo que nos envie representantes com
plenos poderes para negociar a paz! E eu vou já à Assembleia tratar da eleição
de nossos delegados à conferência da paz, depois de mostrar aos deputados
o... que você já viu.

Você percebeu como a comédia satiriza a guerra, os soldados e mesmo


os homens? Percebeu que as personagens representam todo tipo de homem? E
sem a dignidade e valores heroicos da tragédia? Percebeu a linguagem utilizada?
Os jogos de linguagem, o duplo sentido, em passagens como: “Mal! Andamos
até meio caídos para a frente, pois não aguentamos mais o peso da... lança”?
Observe ainda a inversão dos lugares sociais ocupados por homens e mulheres,
o deslocamento do alto e do baixo que, mais do que efeito de comicidade, critica
social e politicamente a situação, rebaixando ridiculamente os detentores do
poder de uma democracia decadente.

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UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Lisístrata, de Aristófanes, é uma das últimas comédias antigas, do final da


democracia ateniense, contexto exposto por Junito Brandão (1984, p. 91):

Estamos em 405 a.C. O sonho de um império ateniense começou


a desmoronar-se com a aziaga expedição da Sicília em 417 a.C.;
a derrota de Egos Pótamos, em outubro de 405 a.C., pôs fim à
quimera e colocou as tropas espartanas na Acrópole de Atenas.
Estava terminada a fratricida Guerra do Peloponeso. A democracia
foi substituída pelo terror dos Trinta Tiranos. Felizmente, estes
duraram pouco e a democracia meio cambaleante foi restabelecida.
O demônio do Norte, todavia, Filipe da Macedônia, espalhava
a cizânia entre as cidades gregas e com a derrota dos atenienses
e tebanos em Queroneia, em 338 a.C., começou a hegemonia
macedônica. É bem verdade que, com a morte de Alexandre
Magno, em 323 a.C., Atenas, apoiada em Demóstenes, ainda tentou
uma reação. Era tarde demais. As tropas do general macedônio
Antípater esmagaram os gregos em Crânon. Era o fim político
da Grécia. O filho de Antípater, Cassandro, impôs a Atenas uma
ditadura aristocrática sob a tutela de Demétrio de Falero.

A seguir, com Menandro, inicia a comédia nova, que, diferentemente da


antiga, privilegia, sem a presença do coro, a comédia de costumes e da vida privada.

Com o cristianismo, o teatro foi minorado e, posteriormente, retomado


pela Igreja, com o intuito doutrinário de representar a ressurreição de Cristo.
Como observa Anatol Rosenfeld (2014, p. 43), “o teatro medieval se origina no
rito religioso, mais de perto na missa cristã, embora precedendo-o e subsistindo
ao lado dele existissem espetáculos de origens e tendências tanto pagãs como
profanas”. Ainda segundo Rosenfeld (2014, p. 45), gradualmente a dramatização
se emancipa do rito religioso: “o drama litúrgico já não é apresentado por clérigos
e sim por cidadãos da cidade e a ‘peça’ abandona a igreja e deixa de ser um
prolongamento do ofício religioso”. Consequentemente, “ao fim da Idade Média
surge o Mistério, já totalmente separado da igreja e apresentado em plena cidade”.

A dramaturgia medieval se caracteriza pela fusão do elevado e do popular,


que, como constata Erich Auerbach (2004), define o cristianismo, contrariando a
teoria antiga que prescrevia que “os estilos sublime (elevado) e humilde (baixo)
tinham de permanecer rigorosamente separados”. Rosenfeld (2014, p. 46) nota
que “essa mistura de estilos, ligada à fusão das camadas sociais nas peças, é
impossível na tragédia clássica”. A ampliação do estilo revela, segundo o autor, a
ampliação social, com a inclusão de personagens de diversas origens e posições,
introduzindo no mistério variadas visões de mundo.

100
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

No Renascimento, com a concepção da perspectiva, surge o palco


italiano, que propicia aos espectadores a noção de profundidade e perspectiva:
“Tudo é projetado a partir dele; o indivíduo, seu caráter e psicologia, tornam-
se o eixo do mundo. Para aumentar o efeito perspectívico, acentua-se a
tendência de separar palco e plateia – separação indispensável para aumentar
a ilusão” (ROSENFELD, 2014, p. 54). O Renascimento redescobre a “Poética”,
de Aristóteles, como atesta Rosenfeld (2014, p. 55): “a partir do século XVI
a Poética de Aristóteles torna-se uma espécie de fetiche estético e as regras
levam, particularmente em França, a uma arte de rara perfeição”. No século
seguinte, A arte poética (1674), de Nicolas Boileau-Despréaux (1636-1711),
exemplifica o impacto da poética clássica, tanto de Aristóteles, quanto de
Pseudo Longino e sua teoria do sublime, e de Horácio (65 a.C. – 8 a.C.), que,
com sua regra da unidade de tom proposta em Ars Poetica ou Epistola ad Pisones
(19 a.C.), prescreve a separação rígida dos gêneros. Vejamos um fragmento da
“A arte poética”:

Nós, que a razão engaja às suas regras, queremos que a ação


se desenvolva com arte: em um lugar, em um dia, um único fato
acabado, mantenha até o fim o teatro repleto. [...] Nunca ofereça
algo de inacreditável ao espectador [...]. O senhor inventa uma nova
personagem? Que ela, em tudo, se mostre de acordo consigo mesma
e que seja até o fim tal qual foi vista no início. [...] O cômico, inimigo
dos suspiros e das lágrimas, não admite dores trágicas, em seus
versos; mas seu emprego não consiste em ir, numa praça pública,
encantar o populacho, com palavras sujas e baixas (BOILEAU-
DESPRÉAUX, 1979, p. 41-54).

Você percebeu que, em seus conselhos, Boileau retoma princípios como a


unidade de ação, a verossimilhança e a unidade de tom? O Renascimento perpetua
prescritivamente, portanto, as concepções da poética clássica, especialmente a
separação entre os gêneros e estilos.

No Barroco, no entanto, os recursos criados no Renascimento para


conquistar e dominar a realidade terrena são mobilizados, como nota Richard
Alewyn (1959 apud ROSENFELD, 2014, p. 59), para obter o efeito oposto: não
para “emprestar realidade à aparência e sim para transformar a própria realidade
em aparência”. Com isso, a ilusão de realidade produzida pelo teatro, pela
representação teatral, simboliza a ilusão da vida profana:

Toda a vida e realidade se tornam sonho e engano. O teatro, na sua


íntegra, passa a ser símbolo do mundo. [...] Todo o Barroco ecoa o
sermão da fugacidade deste mundo enganador. Tudo é máscara
e disfarce. A imensa sensualidade do teatro barroco ensina-nos a
lição de que o mundo dos sentidos é irreal como o teatro. Face ao
mundo, porém, o teatro tem a honestidade de confessar-se teatro
(ROSENFELD, 2014, p. 59).

101
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Para tanto, o teatro barroco desobedece às regras aristotélicas. Da mesma


maneira, o teatro de William Shakespeare (1564-1616), atualmente reconhecido
como o maior dramaturgo do mundo, envolve comédias, tragédias e tragicomédias,
fusão entre tragédia e comédia, rompendo as regras clássicas. Shakespeare funde
o trágico e o cômico, a linguagem refinada e a vulgar, os assuntos elevados e os
grotescos, como evidencia Erich Auerbach (2004, p. 280-281):

O trágico e o cômico, o sublime e o baixo estão entrelaçados


estreitamente na maioria das peças que, pelo seu caráter de conjunto,
são trágicas, sendo que para tanto trabalham em conjunto diversos
métodos. Enredos trágicos, nos quais ocorrem ações capitais ou
públicas ou outros acontecimentos trágicos, alternam com cenas
cômicas populares ou gaiatas que estão ligadas ao enredo principal,
por vezes estreitamente, por vezes um pouco mais frouxamente; ou,
nas próprias cenas trágicas aparecem, ao lado dos heróis, bufões ou
outros tipos cômicos, que acompanham, interrompem e comentam
à sua maneira as ações, os sofrimentos e as falas das personagens
principais; ou, finalmente, muitas personagens trágicas têm em
si próprias a tendência para a quebra de estilos cômica, realista ou
amargamente grotesca.

O teatro de Shakespeare se diferencia do teatro da Antiguidade em muitos


outros aspectos, incluindo a estrutura da peça, dividida agora em cenas e atos, a
complexificação da ação e das personagens, com a ampliação do ambiente e do
tempo representados, da encenação e da produção, paralelamente a um gradual
processo de emancipação do teatro promovido pela comercialização de ingressos
e profissionalização do teatro. A esse respeito, Emil Staiger (1975, p. 70) constata
que “no tempo de Shakespeare desconhecem-se ainda os bastidores. Mesmo
assim ele modifica a cena à vontade e estende a ação por semanas ou até meses”,
o que seria aprimorado no drama moderno, observa Staiger, com os bastidores,
que permitiriam “modificar-se a cena à vontade”, concluindo que “com isso
acreditou-se poder destruir a antiga lei das três unidades, segundo o exemplo de
Shakespeare”.

Escrita em versos, a poesia de Shakespeare permanece intimamente


relacionada com a ação, de modo que a linguagem tem um papel fundamental.
A ampliação do teatro shakespeariano em relação ao grego, como vimos, deriva,
segundo Erich Auerbach, de uma nova concepção de homem, destino e mundo:

A Shakespeare e a muitos dos contemporâneos repugna desligar


radicalmente do contexto geral dos acontecimentos uma única
viragem do destino que atinja somente poucas pessoas, tal como o
fizeram os poetas trágicos da Antiguidade, e no que os seus imitadores
dos séculos XVI e XVII chegaram, às vezes, a superá-los; este processo
isolante, explicável a partir de pressupostos culturais, míticos e técnicos
do teatro antigo, contraria um conceito do concerto universal, mágico
e polifônico, que surgia no Renascimento. O teatro de Shakespeare não
apresenta golpes isolados do destino, que quase sempre caem de cima,
e cujas consequências se resolvem entre poucas personagens, enquanto
que o mundo circundante fica limitado a outras poucas, absolutamente
necessárias para a prossecução do enredo (AUERBACH, 2004, p. 287).

102
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Em virtude de suas rupturas com as regras clássicas, com classicismo do


século XVI e, portanto, com a unidade de tom que proibia hibridismos, o teatro
de Shakespeare seria valorizado pelo romantismo. Como demonstra Anatol
Rosenfeld (2014, p. 63): “A luta contra os cânones clássicos da dramaturgia
rigorosa iniciou-se no século XVIII, na fase do pré-romantismo alemão. Ela
travou-se sobretudo contra a tragédia clássica francesa, à qual foi oposta à obra
de Shakespeare como modelo supremo”.

De fato, no século XVIII, com o movimento pré-romântico alemão Sturm


und Drang e com a concepção de historicidade, a hibridização de gêneros se
torna relevante, a exemplo de Lessing em “Dramaturgia de Hamburgo”, de
1769. Lessing admite a “mistura dos gêneros” em nome do efeito da obra, como
ocorre em Shakespeare: “quando um gênio, em virtude de intuitos mais altos, faz
confluir vários gêneros em uma e mesma obra, que então se esqueça o manual
e examine apenas se atingiu a esses intuitos mais altos”, escreve Lessing (1769
apud ROSENFELD, 2014, p. 65), referindo-se ao efeito de catarse.

Shakespeare é novamente invocado no famoso "Prefácio" de Cromwell,


de Victor Hugo, de 1827: “Eis-nos chegando à sumidade poética dos tempos
modernos. Shakespeare é o drama, e o drama, que funde sob um mesmo alento o
grotesco e o sublime, o terrível e o bufo, a tragédia e a comédia, o drama é o caráter
próprio da terceira época da poesia, da literatura atual”, escreve Victor Hugo
(2007, p. 40) no prefácio conhecido também como “Do grotesco e do sublime”.
Para Hugo (2007, p. 46), o drama deriva da duplicidade do homem, a composição
de dois seres conferida pelo cristianismo, ou seja, um perecível e o outro imortal,
um carnal e o outro etéreo. O caráter do drama, conclui Hugo, é o real, que resulta
da combinação do sublime e do grotesco, de modo que a poesia completa estaria
na harmonia dos contrários. Assim, Hugo (2007, p. 64) critica efusivamente as
regras do classicismo:

Destruamos as teorias, as poéticas e os sistemas. Derrubemos este velho


gesso que mascara a fachada da arte! Não há regras nem modelos;
ou antes, não há outras regras senão as leis gerais da natureza que
planam sobre toda a arte, e as leis especiais que, para cada composição,
resultadas das condições de existência próprias para cada assunto.

Com as reações provocadas por Hugo em “Do grotesco e do sublime”,


referência da estética romântica, o teatro não poderia continuar sendo o mesmo.
Podemos resumir seus princípios fundamentais em:

● mistura de gêneros
● rejeição das regras
● recusa da imitação dos modelos
● liberdade na arte

103
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

A respeito de seu impacto para o drama, Anatol Rosenfeld (2014, p. 70-


71) observa que “o prefácio de Cromwell é de relevância duradoura e continua
ainda hoje atual. Ao lado do combate às regras e da exaltação de Shakespeare é
de importância o realce dado à categoria do grotesco”. A seguir, Rosenfeld (2014,
p. 71) avalia a sua influência para o teatro moderno:

Não é preciso salientar o impacto violentamente anticlássico que se


anuncia nesta teoria do grotesco, da fusão do trágico e do cômico,
verdadeira justificação estética do feio e do disforme. Tais ideias não só
iriam ter amplo futuro na vanguarda teatral, de Jarry a Ionesco – toda
ela antiaristotélica –, mas manifestam-se também no expressionismo,
inspirado nas próprias fontes pré-românticas da literatura alemã.
Semelhantes concepções iriam influir ainda no teatro épico de Claudel
e de Brecht, particularmente com o fito de suspender a ilusão e apoiar o
teor didático. Pois o grotesco tende a criar “efeitos de distanciamento”,
tornando estranho o que nos parece familiar.

Imbuído da concepção de historicidade, relativamente recente, Hugo


reivindica a modernidade da arte, diferenciando a arte moderna e a arte antiga.
Ainda que estivesse se referindo ao romantismo, a concepção de moderno,
baseado na união do grotesco e do sublime, na complexidade, na variedade de
formas, persiste na ideia de modernidade proposta posteriormente por Charles
Baudelaire. A modernidade e, por extensão, o teatro moderno se caracteriza
pela valorização do presente e da realidade complexa, fragmentada do homem
moderno, personagem do drama moderno, que reflete as transformações
profundas na sociedade, como as revoluções liberais e a Revolução Industrial,
que estimulam profundas transformações no teatro, incluindo o surgimento da
figura do diretor.

É precisamente este o contexto de dramaturgos como: George Buechner


(1813-1837), com sua representação de um mundo vazio e absurdo habitado pela
solidão do homem moderno; Henrik Ibsen (1828-1906), com seu teatro social, que,
criticando a sociedade burguesa, inaugura o teatro realista moderno; Máximo
Gorki (1868-1936) e o teatro realista e naturalista engajado; Anton Tchekhov
(1860-1904) que, radicalizando e superando o naturalismo, faz do drama a falta de
acontecimentos, da ação a inação de seus protagonistas; Constantin Stanislavski
(1863-1938) com suas contribuições para a encenação e atuação moderna; August
Strindberg (1849-1912) com a subjetivação radical da dramaturgia que origina o
teatro expressionista, consolidado por Reinhold Sorge (1892-1916), Georg Kaiser
(1878-1945), Ernst Toller (1893-1939), com o teor confessional de protagonistas
sozinhos diante de um mundo adverso; o teatro social de Erwin Piscator (1893-
1966) e de Bertold Brecht (1989-1956), com seu efeito de distanciamento; Antonin
Artaud (1896-1948) com seu teatro surrealista e suas contribuições fundamentais
para a linguagem do teatro; Samuel Beckett (1906-1989) com seu teatro do
absurdo, caracterizado por sua visão pessimista do humano, e assim por diante.

104
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

3.2 OS TIPOS DE TEATRO


Vimos antes dois tipos de teatro que existem desde a Antiguidade
clássica, a tragédia e a comédia, e um tipo que resulta da hibridização de ambas,
a tragicomédia. Vejamos agora outros tipos principais de teatro.

• Auto: tipo de teatro originado na Era Medieval, na Espanha, composto


geralmente de apenas um ato. Predominantemente religiosos, os autos
apresentam uma intenção moralizadora, como comprovam os autos de Gil
Vicente, um dos principais expoentes de autos em nosso idioma.
• Commedia dell’arte: tipo de teatro popular de origem italiana caracterizado
pela improvisação, comicidade e emprego de personagens fixos, tais como o
Arlequim, a Colombina, o Polichinelo, entre outros.
• Ditirambo: tipo de teatro de origem grega, formado por um grande coro e um
corifeu (solista), que dialoga com o coro, homenageando o deus Dioniso.
• Entremés: tipo de teatro de um ato realizado nos intervalos de uma obra teatral
principal. Caracterizada pela comicidade e brevidade, representava classes
sociais populares em situações grotescas e absurdas.
• Farsa: tipo de teatro burlesco e popular que satirizava, por meio de personagens
e situações caricatas, problemas da vida comum sem preocupação com o
questionamento de valores.
• Pantomima: tipo de teatro gestual de origem grega, muito cultuado pelos
romanos. Apenas um ator mascarado representa todos os papéis.
• Milagres: tipo de teatro religioso medieval, atualmente extinto, que retratava a
vida da Virgem Maria, de Cristo ou de santos do cristianismo.
• Mistérios: tipo de teatro religioso medieval que tematizava festividades
religiosas descritas nas escrituras, tais como o Natal, a Paixão, a Ressurreição
etc. As representações podiam se estender por dias.
• Monólogo: tipo de teatro em que um personagem discursa sozinho, expondo,
de forma ordenada, pensamentos e emoções, em geral psicologicamente
profundos e relacionados a conflitos.
• Moralidades: tipo de teatro religioso medieval que debatia o comportamento
e o destino humano, utilizando, para tanto, personagens que tipificavam
alegoricamente os pecados capitais, as virtudes etc., com a intenção de
transmitir lições morais e religiosas.
• Ópera: tipo de teatro musicado de origem italiana, cantado e acompanhado
por orquestra, empregando recursos teatrais como cenografia e atuação.

105
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

• Sottie: tipo de teatro breve de origem francesa que satirizava a vida do tempo,
por meio de personagens que simbolizavam alegoricamente tipos como o
parvo, o truão e o bobo, em funções invertidas da realidade, com objetivo de
entreter, empregando estruturas textuais complexas com metro e rima.
• Teatro de fantoches: teatro de bonecos ou de marionetes, manipulados pelos
atores.
• Teatro de revista: tipo de teatro popular caracterizado pela heterogeneidade e
apelo, recorrendo, para tanto, a acrobacias e apresentações musicais e sensuais.
• Teatro de sombras: tipo de teatro de origem oriental, proveniente da China, o
teatro de sombras utiliza a projeção de sombras como personagens.

Elencamos acima alguns dos principais tipos de teatro, aos quais podemos
acrescentar tipos tradicionais de teatro oriental, como o Noh e o Kabuki, de origem
japonesa, bem como tipos de teatro moderno, como o teatro do absurdo, criado por
Ionesco, e representado por dramaturgos como Samuel Beckett, Jean Genet, Antonin
Artaud, entre outros, ou o teatro do oprimido, criado pelo brasileiro Augusto Boal.
Atualmente, as performances representam um tipo de teatro, com suas peculiaridades,
assim como diferentes tipos de teatro de rua, apresentados publicamente.

DICAS

Assista ao filme Poderosa Afrodite (1995), de Woody Allen, para observar a


intertextualidade com a tragédia Édipo Rei, de Sófocles.

4 O TEXTO POÉTICO: CARACTERÍSTICAS


Observe o texto que segue:

Sobre todos os cumes


quietude
Em todas as árvores mal percebes
um alento.
Os pássaros emudecem na floresta
Esperas só um pouco, breve
Tu também descansarás.

106
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Você certamente não hesitou em reconhecer o texto como um poema, não


é? De fato, é um poema do poeta romântico alemão Johann Wolfgang von Goethe,
intitulado “Canção noturna do viandante”, escrito em 1780.

O que, afinal, caracteriza o texto poético como poético? Talvez sejamos


inclinados a responder logo: o verso! A diferença entre a prosa e o verso basta
para caracterizar o texto poético? Se assim fosse, o que faríamos com os poemas
em prosa inaugurados, na modernidade, pelo poeta Charles Baudelaire, por
exemplo? E, bem antes disso, o que seriam dos textos de medicina e física que, na
Antiguidade clássica, eram escritos em versos? Seriam eles poéticos? Essa questão
foi colocada por Aristóteles (2008, p. 38-39):

As pessoas, juntando ao nome do metro a palavra poeta, chamam


a uns poetas elegíacos e a outros poetas épicos, não os designando
poetas pela imitação, mas pela semelhança do metro. E, se escrevem
alguma obra em verso sobre Medicina ou sobre Física, costumam
designá-los igualmente por poetas. Ora, nada há de comum entre
Homero e Empédocles a não ser o metro; por isso será justo chamar a
um poeta e a outro naturalista, em vez de poeta.

Podemos dizer que a reflexão de Aristóteles a respeito do poeta e do uso,


por sua parte, do verso provoca o surgimento do conceito de poeticidade, ou seja,
da qualidade que define o texto poético como poético. Essa questão continua,
ainda hoje, sem resolução.

Por ora, podemos estender o mesmo questionamento que propusemos


ao “poético” ao conceito de “lírico”. É o que faz Emil Staiger (1975, p. 100), como
você pode ver:

se a essência do lírico determina-se a partir das canções do Romantismo
e de Goethe, qual o lugar de Keats, Petrarca, Baudelaire, Gôngora,
Hölderlin? Não serão eles poetas, tão líricos como Eichendorff? Não
serão talvez maiores líricos que o autor do Romantismo burguês? Essa
objeção abriga um emaranhado de mal-entendidos. Quero examiná-
los por ordem.
A expressão "poeta lírico" que surge aqui é capciosa. Quem é poeta
lírico? Um poeta que compôs obras líricas ou um poeta que criou
Lírica? Sem dúvida alguma, o que criou Lírica. [...] Lírica, pois,
significa aqui novamente aquele ramo genérico dentro do qual
podem-se colocar poemas, um compartimento grande e espaçoso, já
que todas as poesias, mesmo as que se classificam em sub-ramos, nele
são colocadas. A expressão "lírico", ao contrário, justamente não nos
serve como conceito coletivo.

Como podemos perceber, Emil Staiger repete, de certa forma, a pergunta


de Aristóteles. Se o filósofo grego se pergunta “quem é o poeta”, o germanista
complementa: “quem é o poeta lírico?”. Como vimos antes, o que Emil Staiger chama
de “essência” do lírico pode ser traduzido como a qualidade que caracteriza um
determinado texto como “lírico”. O adjetivo “lírico” se aplica aos poemas, de modo
que “o crítico literário sempre terá que lançar mão daquela qualidade que desde o

107
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

tempo de Herder é imprescindível em nossa profissão: um sentimento espontâneo


para a qualidade histórico-individual da obra” (STAIGER, 1975, p. 103). Pode-se
estender a outros substantivos. Tanto que a Emil Staiger (1975, p. 105), ao aproximá-lo
da “essência do homem” que se manifesta nos “domínios da criação poética”, afirma
que a contribuição dos gêneros literários estaria na “visão de mundo” do poeta e, por
extensão, em “parte daquilo que o homem pode ser em absoluto”.

Por outro lado, o substantivo “Lírica” serve como “conceito coletivo”,


“aquele ramo genérico dentro do qual podem-se colocar poemas”, como afirma Emil
Staiger. E o poeta lírico seria, simplesmente, o poeta “que criou Lírica”. Retomando a
sua distinção entre adjetivos e substantivos, que vimos antes e que seria apropriada
por Anatol Rosenfeld, Emil Staiger (1975, p. 103) simplifica: “Coloquemos para
os substantivos as expressões correspondentes que evitarão também aqui uma
confusão; portanto, para Epopeia "uma narrativa longa em versos", para Drama
"peça teatral", para Lírica ou Poesia "poemas de pequena extensão"”.

E como, além da “pequena extensão” dos poemas, a poética antiga define a


poesia lírica? Desde a Antiguidade, os cantos líricos, acompanhados então pela lira
ou pela flauta, expressam, em geral e convencionalmente, os sentimentos individuais,
subjetivos do poeta ou, mais propriamente, do eu lírico. Essa individualidade e
subjetividade da poesia lírica, que não deve ser confundida com a individualidade
e subjetividade do autor, se apoia no tipo de enunciação descrito, como você viu,
desde Platão e Aristóteles, como lírico: Platão o define como “narração pelo próprio
poeta”, e Aristóteles afirma que, nele, se preserva “a sua identidade sem alteração”.
Na verdade, Aristóteles não trata especificamente da lírica (e sua Poética não
chegou até nós completa), mas se refere ao que compreendemos por lírica, como
observa Anatol Rosenfeld (2014, p. 16), ao diferenciar duas formas de narrar, uma
em que se introduz uma terceira pessoa (a épica), e outra em que se insinua o autor,
sem que intervenha outro personagem (a lírica). Reproduzindo essa compreensão
de poesia lírica, G. W. F. Hegel, por exemplo, subordina a lírica à subjetividade,
afirmando que ela “exprime apenas os sentimentos interiores da alma” (HEGEL,
2010, p. 383). Ao entender que a poesia lírica “tem por conteúdo o subjetivo, o
mundo interior, a alma agitada por sentimentos, alma que, em vez de agir, persiste
na sua interioridade e não pode por consequência ter por forma e por fim senão
a expansão do sujeito, a sua expressão” (HEGEL, 2010, p. 436), o filósofo alemão
restringe o lirismo ao homem individual:

O lirismo restringe-se ao homem individual e, consequentemente, às


situações e aos objetos particulares. O conteúdo da poesia lírica é, pois,
a maneira como a qual a alma com seus juízos subjetivos, alegrias e
admirações, dores e sensações, toma consciência de si própria no seio
deste conteúdo (HEGEL, 2010, p. 512-513).

Como caracterizar o gênero lírico, então? Em geral, reproduzindo o consenso,


uma voz central exprime um estado de alma e o traduz em versos. Trata-se da
expressão de emoções e disposições psíquicas. “A lírica tende a ser”, como resume
Rosenfeld (2014, p. 22), “a plasmação imediata das vivências intensas de um Eu no
encontro com o mundo, sem que se interponham eventos distendidos no tempo”.

108
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Anatol Rosenfeld (2014, p. 23) constata, evidentemente embasado em


Emil Staiger (1975), que “prevalecerá a fusão da alma que canta com o mundo,
não havendo distância entre sujeito e objeto”. Aquilo que se inscreve no poema se
encontra, como nota Rosenfeld, arrancado da sucessão temporal, permanecendo
à margem e acima do fluir do tempo, como um momento inalterável, como
presença intemporal.

Ao analisar o poema de Goethe que vimos acima, Emil Staiger (1975, p.


21) constata que “no estilo lírico não se dá a ‘re’-produção linguística de um fato.
Não se pode aceitar que na ‘Canção noturna de um viandante’ estivesse de um
lado o clima do crepúsculo e do outro a língua com todos os seus sons, pronta a
ser aplicada. Antes, é a própria noite que soa como língua. O poeta não ‘realiza’
coisa alguma”. “O valor dos versos líricos é justamente essa unidade entre a
significação das palavras e sua música”, conclui Staiger (1975, p. 22), que ressalta
insistentemente os seguintes aspectos na lírica moderna:

● a unidade entre a música das palavras e de sua significação;


● a atuação imediata do lírico sem necessidade de compreensão;
● renúncia à coerência gramatical, lógica e formal.

Emil Staiger (1975, p. 59) observa que na lírica não há oposição entre
sujeito e objeto, constatando o “um-no-outro lírico” em que a individualidade se
dissolve. “O que se dá é que ‘interno’ e ‘externo’, ‘subjetivo’ e ‘objetivo’ não estão
absolutamente diversificados em poesia lírica”, de modo que “não nos sentimos
como individualidade, como pessoa ou ser historicamente localizado”, afirma
Staiger (1975, p. 63), para quem no poeta lírico “os contornos do eu, da própria
existência, não são firmemente delineados” (STAIGER, 1975, p. 66).

Ora, mas não vimos que o lírico se caracteriza justamente pela


individualidade e subjetividade do eu? Na verdade, Emil Staiger não foi o primeiro
a problematizar essa concepção de lirismo. Antes dele, Friedrich Nietzsche (1992,
p. 43) retoma a definição de “poeta lírico” enquanto “aquele que sempre diz ‘eu’”
e questiona: “não é ele o primeiro artista a ser chamado de subjetivo, o verdadeiro
não artista?”. Nietzsche lembra, então, que o poeta lírico

se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco, totalmente um só com o


Uno primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse
Uno primordial em forma de música [...] agora porém esta música
se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do sonho,
sob a influência apolínea do sonho. [...] O artista já renunciou à sua
subjetividade no processo dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua
unidade com o coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna
sensível aquela contradição e aquela dor primordiais, juntamente com
o prazer primigênio da aparência. O “eu” do lírico soa, portanto, a
partir do abismo do ser: sua “subjetividade”, no sentido dos estetas
modernos, é uma ilusão (NIETZSCHE, 1992, p. 44).

109
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

NOTA

Em Nietzsche, o apolíneo, referente ao deus grego Apolo, contrasta com o


dionisíaco, referente ao deus grego Dionísio. Enquanto o primeiro se relaciona com as artes
figuradas e com a individualidade, o segundo se relaciona com a arte não figurada da música
e com a coletividade.

Você percebeu que Nietzsche, assim como Emil Staiger, depois dele, questiona
a individualidade e a subjetividade do eu lírico? E que o associa à música? Com isso,
Nietzsche não busca simplesmente recordar a origem do lirismo, que sabemos estar
relacionada com a lira e, portanto, com a música, mas evidenciar que, por força da
“música dionisíaca e, portanto, da música em geral”, o eu lírico se caracteriza por um
“desprendimento de si próprio” ou, numa palavra, pela “desindividuação”.

A poesia moderna, ao acentuar a musicalidade da poesia, acentua, ao


mesmo tempo, o processo de “desindividuação” que caracteriza o lirismo. Não
devemos, portanto, insistir na busca da individualidade e da subjetividade do
eu, quando mais do poeta, na poesia moderna, como sugere, por exemplo, Vitor
Manuel de Aguiar e Silva ao concluir que a imitação ou representação entra
em colapso quando o artista resolve se retirar do mundo e buscar a si mesmo,
por entender que “ao lírico é impossível exilar-se de si mesmo, alhear-se da sua
interioridade a fim de se outrar” (SILVA, 1976, p. 230). Devemos lembrar que
o contexto do Romantismo e do Simbolismo coincide com a consolidação do
capitalismo no mundo ocidental e, consequentemente, com a exacerbação do
individualismo, fundamentado na concepção cartesiana de sujeito.

Em vez de simplesmente reiterar o individualismo que insistentemente


se associa ao lirismo, parece mais certo, portanto, concluir que a acentuação da
musicalidade da poesia ressoa a “desindividuação” de que fala Nietzsche ou a
“desintegração do eu” de que fala Staiger ao se referir ao sentimento de dissolução
da individualidade. E, de fato, a poesia não cessa de dar exemplos de “exilar-se
de si mesmo”, contrariando a conclusão de Vitor Manuel de Aguiar e Silva, como
comprova a famosa frase do poeta simbolista Arthur Rimbaud: “eu é um outro”.

Nesse sentido, Hugo Friedrich, analisando justamente as relações entre


o Romantismo e a poesia moderna em “Estrutura da lírica moderna”, define a
lírica moderna pela despersonalização, ou seja, a separação de poesia e pessoa.
Segundo Friedrich (1978, p. 36-37), “com Baudelaire começa a despersonalização
da lírica moderna, pelo menos no sentido de que a palavra lírica já não nasce da
unidade de poesia e pessoa empírica, como haviam pretendido os românticos,
em contraste com a lírica de muitos séculos anteriores”. Para Hugo Friedrich
(1978, p. 35), o problema específico de Baudelaire é “a possibilidade da poesia na
civilização comercializada e dominada pela técnica”, problema aprofundado por
Theodor W. Adorno, como veremos.
110
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Um ano depois da publicação de “Estrutura da lírica moderna”, de


Hugo Friedrich, Theodor W. Adorno (2003, p. 71), partidário do conceito de
estranhamento, desfamilizarização ou distanciamento, retoma os mesmos versos
de “Canção noturna do viandante”, de Goethe, comentados por Emil Staiger.

Este poema certamente deve sua grandeza ao fato de que não fala de
nada alienado e perturbador, de que, nele próprio, o desassossego do
objeto não é contraposto ao sujeito: pelo contrário, o poema reverbera
o desassossego do próprio sujeito. É prometida uma segunda
imediaticidade: o que é humano, a própria linguagem, aparece como
se fosse ainda uma vez a criação, enquanto tudo o que vem de fora se
extingue no eco da alma.

NOTA

O conceito de estranhamento (ostranenie) é fundamental para o Formalismo


Russo, em que se relaciona com a proposta formalista de definir a literariedade (literaturnost).
O conceito aparece em “A arte como procedimento”, do formalista russo Victor Chklovski,
enquanto um efeito de desautomatização da percepção provocado pela arte.

Você percebeu que Adorno reitera a ideia de uma fusão entre sujeito e
objeto? A argumentação de Adorno pretende repensar a relação entre a poesia
e a sociedade a partir dos pressupostos que acabamos de ver. Para tanto, e a
partir do “primado da linguagem” que caracteriza a literatura e o seu efeito
de estranhamento, Adorno contraria o consenso que compreende a lírica como
incapaz de “reconhecer o poder de socialização” (ADORNO, 2003, p. 65-66).

A “palavra lírica representa o ser-em-si da linguagem contra sua servidão no


reino dos fins”, afirma Adorno (2003, p. 88-89). A incomunicabilidade da linguagem
da poesia estabelece, portanto, a mediação com a sociedade justamente por meio
do seu distanciamento, que Adorno compreende como uma reação ao processo de
reificação ou coisificação provocado pelos modos de produção capitalista:

A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas


é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação das
mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era
Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força
dominante da vida (ADORNO, 2003, p. 69).

Você percebeu como Adorno relaciona poesia lírica e sociedade? Como


identifica na linguagem da poesia lírica uma questão eminentemente social?
Podemos dizer que a poesia lírica, por meio da linguagem, que constitui tanto
a poesia quanto o homem enquanto ser de linguagem, devolve ao homem sua
humanidade ao reagir contra sua reificação.

111
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Vejamos, agora, mais de perto a linguagem da poesia lírica.

4.1 A ESTRUTURA DO POEMA


A estrutura do poema, formada de unidades concretas e significativas que
estudaremos a seguir, comporta, enquanto produto de linguagem, um aspecto
de sentido, seja em sua conotação sensorial, seja em sua conotação intelectual.
Veremos como se estabelece a relação entre a significação e a estrutura, que
implica, por si mesma, uma relação, neste caso, entre as partes constitutivas do
poema. A estrutura do poema, portanto, imprime uma forma a uma significação
que depende inteiramente da estrutura do poema. Jean Cohen (1978, p. 34), ao
constatar que a relação constitutiva da estrutura ou da forma do poema consiste
em uma relação de significados, conclui: “poderemos falar de uma forma do
sentido”. O fundamental aqui diz respeito ao fato de que, no poema, a forma
e o sentido se interpenetram indistintamente, de modo que a poeticidade,
segundo Jean Cohen, numa perspectiva formalista, depende da expressividade
da linguagem estruturada como poema.

NOTA

A poeticidade é a qualidade daquilo que é considerado poético.

Observe o famoso soneto de Camões:

Amor é fogo que arde sem se ver;


É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;


É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganhe em se perder;

É querer estar preso por vontade;


É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor


Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
112
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Para compreendermos a relação entre a forma e os sentidos e a função


fundamental da estrutura na produção de sentidos na leitura do poema,
acompanhemos as observações iniciais de Antonio Candido a respeito do poema
de Camões:

Trata-se de um soneto. Significativo: adoção de um instrumento


expressivo italiano (ou fixado e explorado pelos italianos), apto pela
sua estrutura a exprimir uma dialética; isto é, no caso, uma forma
ordenada e progressiva de argumentação. Há certa analogia entre a
marcha do soneto e a de certo tipo de raciocínio lógico em voga ainda
ao tempo de Camões: o silogismo. Em geral, contém uma proposição
ou uma série de proposições (ou algo que se pode assimilar a ela) e
uma conclusão (ou algo que se pode a ela assimilar).
Este soneto obedece ao modelo clássico. É composto em decassílabos e
obedece ao esquema de rimas ABBA, ABBA, CDC, DCD. Isto permite
a divisão do tema e a constituição de uma rica unidade sonora, na qual
a familiaridade dos sons e a passagem dum sistema de rimas a outro
ajuda ao mesmo tempo o envolvimento da sensibilidade e a clareza da
exposição poética (proposição, conclusões).
O decassílabo, como aqui aparece, é de invenção italiana, embora
exista com outros ritmos na poesia de outras línguas. Verso capaz de
conter uma emissão sonora prolongada, e bastante variado para se
ajustar ao conteúdo.
Este soneto apresenta uma particularidade: a proposição é feita
por uma justaposição de conceitos nos dois primeiros quartetos,
estendendo-se ao primeiro terceto. Só no último tem lugar a conclusão
(que é uma consequência do exposto), que de ordinário principia no
anterior.
Quanto à estrutura rítmica, notar que na parte propositiva (11 versos),
todos os versos têm cesura da 6ª sílaba, permitindo um destaque de
2 membros, o primeiro dos quais exprime a primeira parte de uma
antítese, exprimindo o segundo a segunda parte. Vemos aqui a função
lógica ou psicológica da métrica, ao ajustar-se à marcha intelectual e
afetiva do poema.
Note-se ainda que o poeta recorre discretamente à aliteração, isto é,
à frequência num ou mais versos das mesmas consoantes, formando
uma determinada constante sonora, ou antes, um efeito sonoro
particular:
r no primeiro verso; t no terceiro e sétimo; d no quarto; v no décimo etc.
(CANDIDO, 1994, p. 20-21).

Você percebeu como Antonio Candido articula cada parte do poema


procurando analisar sua estrutura, passando da parte ao todo e do todo para
a parte? E como relaciona a estrutura formada pelas partes com os sentidos do
poema, tanto cognitivos quanto afetivos? O efeito do poema, produzido no ato da
leitura, depende, portanto, de sua estrutura, como podemos perceber.

113
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Vejamos agora como Antonio Candido, complementando as observações


anteriores, interpreta o poema de Camões, primeiramente em seu “aspecto
expressivo formal” e, a seguir, em seu “aspecto expressivo existencial”. Na
interpretação do que chama “aspecto expressivo formal”, Antonio Candido
(1994, p. 21-22) analisa:

Evidentemente se trata de um poema construído em torno de


antíteses, organizadas longitudinalmente em forma simétrica, por
efeito da cesura significativa, dando nítida impressão de estrutura
bilateral regular, ordenada em torno de uma tensão dialética. São duas
séries de membros que se opõem, prolongando durante 11 versos um
movimento de entrechoque.
Esta estrutura geral é movimentada por uma progressão constante do
argumento poético, manifestada:
1º pelo efeito de acúmulo das imagens, que acabam criando uma
atmosfera de antítese;
2º pela abstração progressiva das categorias gramaticais básicas que
são no caso vocábulos-chave do ponto de vista poético. Assim é que
temos sucessivamente uma área de substantivos, uma área de verbos
substantivados e uma área de verbos.
Substantivos: 1ª estrofe: fogo, ferida, contentamento, dor.
Verbos substantivados: 2ª estrofe: um querer, um andar (solitário pode
ser substantivo ou adjetivo, aliás; dupla leitura possível). Transição no
terceiro verso que prepara a passagem para a área seguinte verbal (/
um/ nunca contentar-se).
Verbos: 3ª estrofe, e já fim da segunda: querer estar, servir, ter.
Trata-se de um nítido processo de abstração, que revela a passagem
do estado passivo do sujeito poético à sua ação, intensificando a sua
força emocional.
Ainda sob este aspecto, note-se na área dos substantivos a evolução
da causa material – fogo – para a consequência material imediata e
apenas metaforicamente material – ferida – e dela para a consequência
imaterial mediata – contentamento e dor, que são estados da
sensibilidade.
Na última estrofe, a cesura não divide o verso, há transposição
(enjambement), e todo o terceto se apresenta como unidade expressiva
coesa e ininterrupta, pela presença de uma consequência lógico-
poética, sob a forma de interrogação. Esta interrogação exprime a
perplexidade do poeta e permite transitar à nossa segunda parte
(CANDIDO, 1994, p. 21-22).

NOTA

Enjambement é um termo francês, traduzido como encavalgamento, que


denomina o desalinhamento da estrutura métrica e sintática entre um verso e outro.

114
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Você percebeu como Antonio Candido aproveita as observações iniciais


sobre o poema, articulando as partes e o todo, numa interpretação formal, ou seja,
encerrada na organização interna da linguagem do poema? Vejamos agora como a
interpretação do “aspecto expressivo formal” se desdobra numa interpretação do
“aspecto expressivo existencial”, a segunda parte a que se refere Antonio Candido:

Este soneto exprime, sob aparente rigidez lógica, uma densa e dramática
tensão existencial; é o encerramento de uma profunda experiência
humana, baseada na perplexidade ante o caráter contraditório (bilateral,
para usar a expressão aplicada à forma estrutural do soneto) da vida
humana. A vida é contraditória, e como os poetas não cansam de
lembrar, amor e ódio, prazer e dor, alegria e tristeza, andam juntos. [...]
No soneto de Camões há uma rebeldia apenas retórica, sob a
perplexidade do último terceto. Mas no corpo dialético do poema
reponta uma aceitação das duas metades da vida, pelo conhecimento
do seu caráter inevitável. A profunda experiência de um homem que
viveu guerras, prisão, vícios, gozos do espírito, leva-o a esta análise que
reconhece a divisão da unidade. E a própria conclusão perplexa do fim
é o reconhecimento de que a unidade se sobrepõe afinal à divisão do ser
no plano da experiência humana total. O amor é tudo o que vimos, e ele
é aspiração de plenitude graças à qual o nosso ser se organiza e se sente
existir. Grande mistério – sugere o poeta – que sendo tão aparentemente
oposto à unidade do ser, ele seja um unificador dos seres (na medida
em que é amizade).
A simetria antitética perfeitamente regular exprime a presença de uma
ordem no caos. O espírito unifica no plano da arte as contradições da
vida, não as destruindo, mas integrando-as (CANDIDO, 1994, p. 22-23).

Você percebeu como a interpretação formal do poema concorre para


uma interpretação dos sentidos do poema, de modo que a forma e os sentidos
se integram na estrutura do poema? Antonio Candido (1994, p. 23) conclui sua
interpretação sugerindo a possibilidade de “representar graficamente o soneto de
Camões, levando em conta a estrutura antitética das três primeiras estrofes, cortadas
verticalmente pela cesura na 6ª sílaba, e o ritmo unificador da estrofe final”:

Observe que Candido ilustra a estrutura antitética das três primeiras


estrofes, cortadas verticalmente pela cesura na 6ª sílaba, com dois retângulos na
vertical, e o ritmo unificador da estrofe final com o retângulo na horizontal.

Vejamos agora mais detidamente alguns dos conceitos empregados por


Antonio Candido, os quais constituem a metalinguagem que contribui para a
explicação de um poema.
115
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

4.2 O VERSO
O verso ordena em uma unidade um grupo de unidades menores, exigindo
uma continuação correspondente, que constitui a estrofe e, finalmente, o poema.
Por isso, Antonio Candido (1994, p. 60) considera o verso a “unidade do poema”. E,
mais do que uma unidade sonora e musical, uma unidade significativa, razão pela
qual Antonio Candido privilegia as palavras como unidades constitutivas do verso:

São estas as unidades significativas, que cortamos em partes,


desarticulamos, emendamos, apenas para analisar os fenômenos
do metro e do ritmo, isto é, os fenômenos que constituem a sua
realidade sonora. Se o fizemos, foi porque em poesia o significado se
constrói em grande parte por meio dos elementos sonoros, e assim
vimos como a lei da sonoridade, o ritmo, é a própria alma do verso
(CANDIDO, 1994, p. 59).

Conforme Rogério Chociay (1974, p. 1), o termo tem origem no latim


versus, que significa voltar, retornar, e, tendo assumido conotações como linha,
sulco, fileira, entre outras, a palavra designou a linha do poema: “qual o sulco
do arado, ela volta sempre sobre si mesma”. Jean Cohen (1978, p. 47), por sua
vez, confirma que “todo verso é ‘versus’, ou seja, retorno. Por oposição à prosa
(‘prorsus’) que avança linearmente, o verso volta sempre sobre si mesmo”.

Os versos recebem diferentes denominações:

a) agudos, graves ou esdrúxulos: versos terminados em palavras oxítonas,


paroxítonas e proparoxítonas, respectivamente;
b) brancos: versos metrificados sem rima;
c) livres: versos livres de regras quanto à metrificação, ritmo e rima.

Quanto ao número de sílabas, os versos são classificados em:

a) monossílabos: versos de uma sílaba


b) dissílabos: versos de duas sílabas
c) trissílabos: versos de três sílabas
d) tetrassílabos: versos de quatro sílabas
e) pentassílabos ou redondilha menor: versos de cinco sílabas
f) hexassílabos ou heroico menor: versos de seis sílabas
g) heptassílabos ou redondilha maior: versos de sete sílabas
h) octassílabos: versos de oito sílabas
i) eneassílabos: versos de nove sílabas
j) decassílabos: versos de dez sílabas, divididos em:

o heroico: com acento basicamente em 6-10

Ex.: Es | can | da | lo | as | men | te | per | fu | ma | do (Olavo Bilac)


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

116
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

o sáfico: com acento basicamente em 4-10

Ex.: So | no | ra | men | te, | lu | mi | no | sa | men | te (Cruz e Sousa)


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

k) hendecassílabos ou verso de arte maior: versos de 11 sílabas


l) dodecassílabos ou alexandrinos: versos de 12 sílabas

Outros conceitos importantes para o estudo do verso são:

a) cesura: pausa no interior do verso, separando, por meio dos acentos, o verso
em partes:

A | mor | é | fo | go | que ar | de | sem | se | ver |


6

b) enjambement ou cavalgamento: quebra da sintaxe e, por conseguinte, do sentido


de um verso, continuada no verso seguinte, produzindo um efeito de quebra e
continuidade. Jean Cohen (1978, p. 31) o define como “uma discordância entre
o metro e a sintaxe” ou ainda “por uma relação interna entre som e sentido”:

Quando olho para mim não me percebo.


Tenho tanto a mania de sentir
Que me extravio às vezes ao sair
Das próprias sensações que eu recebo.
(Álvaro de Campos)

Os versos, ordenados em uma unidade maior, formam uma estrofe. A


estrofe consiste, portanto, no conjunto demarcado de versos, separado de outras
estrofes. As estrofes são denominadas conforme a quantidade de versos:

a) dístico: estrofe de dois versos


b) terceto: estrofe de três versos
c) quarteto ou quadra: estrofe de quatro versos
d) quinteto ou quintilha: estrofe de cinco versos
e) sexteto ou sextilha: estrofe de seis versos
f) sétima ou septilha: estrofe de sete versos
g) oitava: estrofe de oito versos
h) nona ou novena: estrofe de nove versos
i) décima: estrofe de dez versos

Um grupo de versos que se repete ao longo do poema recebe o nome


de refrão.

117
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

4.2.1 A rima
A rima se define como a homofonia, ou reiteração de fonemas, geralmente
ao final dos versos (rima externa ou final), constituindo o principal efeito de
sonoridade do verso. A rima pode ocorrer ainda no interior dos versos (rima
interna ou interior). Segundo Antonio Candido (1994, p. 39), a decadência da
métrica quantitativa contribuiu para o aparecimento da rima nas literaturas latinas:
“Toda a história do verso português se fez sob a égide da rima, embora desde o
Renascimento haja voltado a prática do verso branco dos clássicos latinos”.

Os tipos de rima mais importantes a distinguir são as rimas consoantes (ou


soantes) e as rimas toantes. Na explicação de Antonio Candido (1994, p. 40), “na
rima consoante, há concordância de todos os fonemas a partir da vogal tônica”.

Frescura das sereias e do orvalho,


Dos brancos pés dos pequeninos,
Voz das manhãs cantando pelos sinos,
Rosa mais alta no mais alto galho
(Manuel Bandeira)

Podemos dizer, grosso modo, que ocorre uma identidade sonora na rima
consoante, ao passo que na rima toante, aproximação. Ainda segundo Antonio
Candido (1994, p. 40), “na rima toante, há concordância das vogais tônicas, ou
das vogais tônicas e outra, ou outras vogais átonas que a seguem”. Em suma,
enquanto na rima consoante ocorre a repetição de vogais e consoantes, na rima
toante apenas as vogais se repetem:

Se vem por círculos na viagem


Pernambuco – Todos os Foras.
Se vem numa espiral
da coisa à sua memória.
(João Cabral de Melo Neto)

Existem, evidentemente, outros tipos de rima. Sânzio de Azevedo (1997)


enumera outros tipos de rima segundo sua natureza: atenuada, ampliada, idêntica,
composta, quebrada, rica, pobre, exótica, figurada, imperfeita e aparentemente
imperfeita. Entre os tipos enumerados, destacamos as rimas ricas e pobres.

A rima rica consiste na combinação de palavras de classes gramaticais


diferentes:

Esquece o tempo. O tempo não existe. (verbo)


Acende a chama às límpidas lanternas. (substantivo)
Nossas almas, a ansiar no mundo triste, (adjetivo)
São de uma mesma idade: são eternas. (adjetivo)
(Tasso da Silveira)

118
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

A rima pobre, por sua vez, compreende palavras da mesma classe


gramatical.

As rimas são ainda classificadas segundo sua posição ou distribuição


nas estrofes do poema. Para representar os esquemas da disposição das rimas,
utilizamos as letras do alfabeto. A rima emparelhada, por exemplo:

Ouço e fito com um certo assombro o azul, envolto (A)


N’uma bruma sutil. Corta a atmosfera solto (A)
Um pássaro noturno. O luar, o luar, não vem (B)
Às giestas em flor... e ela tarda também!... (B)
De novo escuto e fito o azul... somente a treva (C)
Mais aumenta no bosque e no céu mais se eleva! (C)
(Luís Murat)

Como podemos ver, aparece aos pares, representamos com o esquema


AABBCC. A rima cruzada ou alternada, por sua vez, segue o esquema ABAB:

Minha desgraça, não, não é ser poeta, (A)


Nem na terra de amor não ter um eco, (B)
É meu anjo de Deus, o meu planeta (A)
Tratar-me como trata-se um boneco (B)
(Álvares de Azevedo)

As rimas opostas ou interpoladas seguem o esquema ABBA, e a rima


encadeada, o esquema ABA/BCB/CDC:

Sei de uma criatura antiga e formidável, (A)


Que a si mesma devora os membros e as entranhas, (B)
Com a sofreguidão da fome insaciável. (A)

Habita juntamente os vales e as montanhas; (B)


E no mar, que se rasga, à maneira de abismo, (C)
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas. (B)

Traz impresso na fronte o obscuro despotismo; (C)


Cada olhar que despede, acerbo e mavioso, (D)
Parece uma expansão de amor e de egoísmo. (C)
(Machado de Assis)

Outros tipos de rima segundo sua posição, conforme Sânzio de Azevedo


(1997), são a rima contínua, a leonina, a coroada, a distanciada, a misturada, a
repetida e a redobrada. E, finalmente, quando os versos metrificados não rimam,
são chamados versos brancos.

119
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

4.2.2 Metrificação e escansão


A metrificação, ou seja, o conjunto de normas que regem a estrutura dos
versos regulares, empregada entre os gregos e romanos, na Antiguidade, obedecia
ao sistema quantitativo. O sistema quantitativo se baseia na quantidade de pés,
ou seja, a combinação de sílabas breves ( U ) e longas ( - ) ordenadas, no verso,
numa sucessão que produz um ritmo. Como observa Sânzio de Azevedo (1997, p.
11-12), “há pés de duas, de três, e mesmo de quatro sílabas. Em Latim, as sílabas
são, como foi dito, breves e longas, o que corresponde, não muito rigorosamente,
às átonas e tônicas do Português, respectivamente”.

Observe este verso de Virgílio, que introduz a Eneida, e que consiste em


um hexâmetro, ou seja, um verso de seis pés ou unidades métricas:

Arma virumque cano, Troiae qui primus ab oris

- UU | - UU | - UU | - UU | - UU | - UU

No verso, traduzido por Carlos Alberto Nunes como “As armas canto e o
varão que fugindo das plagas de Tróia”, podemos identificar seis dátilos ( - UU ).
Geralmente, os versos se compunham de um mesmo pé. Um hexâmetro composto
de seis dátilos, por exemplo, seria, assim, denominado hexâmetro datílico.

Os principais pés do sistema quantitativo são:

a) Troqueu: | - U |
b) Jambo: | U - |
c) Dátilo: | - UU |
d) Anapesto: | UU - |
e) Péonio primo: | - UUU |
f) Péonio quarto: | UUU - |

Os versos neolatinos, como observa Antonio Candido (1994, p. 48),


“não correspondem de modo algum ao princípio de regularidade da métrica
quantitativa”. Afinal, ainda segundo Antonio Candido (1994, p. 39), “o
afrouxamento da métrica quantitativa deu lugar ao aparecimento da métrica
rítmica, baseada na sucessão das sílabas, com acentos tônicos distribuídos em
algumas delas”:

Quando eu te fujo e me desvio cauto


4 8 10

Ne verso de Casimiro de Abreu acima, por exemplo, temos 10 sílabas


poéticas, com acentos tônicos na quarta, oitava e décima sílabas. Antonio Candido
(1994, p. 51) diferencia o metro, ou seja, o número de sílabas poéticas, do ritmo, o

120
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

número de segmentos rítmicos. A distribuição das sílabas tônicas de modo diverso


nos versos resulta, assim, em diversas combinações de ritmo. Antonio Candido
(1994) sugere que a um esquema silábico ou métrico – ES ou EM – correspondem
diferentes esquemas rítmicos – ER. No exemplo acima, por exemplo, temos: ES –
10 ER – 4, 8, 10.

Para analisarmos o metro e o ritmo dos versos de um poema, precisamos


realizar a escansão dos versos. A escansão consiste na contagem das sílabas poéticas:

Quan | do eu | te | fu | jo e | me | des | vi | o | cau | to


1 2 3 4 5 6 7 8 9 10

Como você pode perceber, ao escandirmos um verso, a contagem das


sílabas para na última sílaba tônica ( | cau | ), e não corresponde à contagem das
sílabas gramaticais, a exemplo da segunda sílaba poética ( | do eu | ) e da quinta (
| jo e | ), em que ocorre o que podemos chamar, segundo Rogério Chociay (1974),
de processos de acomodação. No exemplo, ocorre a sinalefa, ou seja, a fusão ou
contração de duas ou mais vogais intervocabulares.

Os processos de acomodação podem ser divididos em silábicos e acentuais.


Os principais processos de acomodação silábicos são:

a) Eclipse
b) Sinérese
c) Sinalefa
d) Diérese
e) Dialefa
f) Aférese
g) Síncope

E os principais processos de acomodação acentual são:

a) Sístole
b) Diástole

Podemos acrescentar ainda alguns casos especiais de acomodação:

a) Anacruse
b) Sinafia
c) Compensação

121
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

4.2.3 Poemas: formas fixas e visuais


A organização das unidades concretas e significativas que estudamos, tais
como verso, metro, ritmo, rima, estrofe, na unidade do poema configura a sua forma.

A mais importante forma fixa de poema é o soneto, que, como você viu
no exemplo de Camões, é formado por dois quartetos e dois tercetos, geralmente
seguindo o esquema de rimas ABBA ABBA CDC DCD, sendo composto em
versos decassílabos ou alexandrinos. Quanto ao soneto, Sânzio de Azevedo (1997,
p. 191) esclarece:

Apesar das divergências que sua origem tem suscitado, parece


realmente “ter tido ele por berço a Itália ou, com mais precisão, a
Sicília”, no dizer de Cruz Filho. Consagrado por Petrarca na Itália, foi
introduzido em Portugal por Sá de Miranda. Composto de 14 versos,
distribuídos em dois quartetos e dois tercetos, seu esquema rimático
tem variado com o tempo. No soneto de Camões, é invariável o dos
quartetos, em ABBA / ABBA; mas os tercetos podem ser em CDC /
DCD, CDE / CDE e até CDC / CDC.

O soneto inglês apresenta algumas alterações em relação ao italiano, sendo


formado por três quadras com rimas próprias e um dístico com rima emparelhada.
Ainda segundo Sânzio de Azevedo (1997, p. 207), “o soneto inglês, praticado
por Shakespeare, segue a fórmula estabelecida por Wyatt e Howard (Duque de
Surrey), introdutores desse tipo de poema na Inglaterra: são três quartetos e um
dístico, na disposição ABAB/CDCD/EFEF / GG”. Sânzio de Azevedo exemplifica
o soneto inglês com um poema do brasileiro Manuel Bandeira:

Aceitar o castigo imerecido,


Não por fraqueza, mas por altivez,
No tormento mais fundo o teu gemido
Trocar num grito de ódio a quem o fez.
As delícias da carne e pensamento
Com o instinto da espécie nos engana
Sobpor ao generoso sentimento
De uma afeição mais simplesmente humana.
Não tremer de esperança nem de espanto.
Nada pedir nem desejar, senão
A coragem de ser um novo santo
Sem fé num mundo além do mundo. E então,
Morrer sem uma lágrima, que a vida
Não vale a pena e a dor de ser vivida.

Os tipos de poema podem se definir pelo tema ou pela forma, como o soneto.
Em geral, os tipos caracterizados pelo tema compreendem uma determinada
forma. As principais formas fixas são: ode, trioleto, sextina, epigrama, balada,
rondó, rondel, madrigal, écloga, idílio, pastoral, elegia, epitalâmio, glosa, haicai,
entre outras. Eis um exemplo de haicai:
122
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

HORA DE TER SAUDADE

Houve aquele tempo...


(E agora, que a chuva chora,
Ouve aquele tempo!)
(Guilherme de Almeida)

Observe agora como a poetisa Ana Cristina Cesar recorre a diferentes tipos
de poema em seu poema em versos livres “Primeira lição”, que consiste, como
explica Maria Lucia de Barros Camargo (2003, p. 248), em “uma ‘aula básica’
sobre o que é a poesia lírica”, estruturada em “‘versos’ desprovidos de lirismo”:
 
Os gêneros de poesia são: lírico, satírico, didático, épico, ligeiro.
O gênero lírico compreende o lirismo.
Lirismo é a tradução de um sentimento subjetivo, sincero e pessoal.
É a linguagem do coração, do amor.
O lirismo é assim denominado porque em outros tempos os
versos sentimentais eram declamados ao som da lira.
O lirismo pode ser:
a) Elegíaco, quando trata de assuntos tristes, quase sempre a morte.
b) Bucólico, quando versa sobre assuntos campestres.
c) Erótico, quando versa sobre o amor.
O lirismo elegíaco compreende a elegia, a nênia, a endecha, o epitáfio e o
epicédio.
Elegia é uma poesia que trata de assuntos tristes.
Nênia é uma poesia em homenagem a uma pessoa morta.
Era declamada junto à fogueira onde o cadáver era incinerado.
Endecha é uma poesia que revela as dores do coração.
Epitáfio é um pequeno verso gravado em pedras tumulares.
Epicédio é uma poesia onde o poeta relata a vida de uma pessoa morta.

O poema de Ana Cristina Cesar não obedece evidentemente a uma forma


fixa, mas nos oferece não apenas o conhecimento de alguns tipos de poema,
como a possibilidade de retomar o assunto sobre o lirismo, especialmente a
impessoalidade que caracteriza a enumeração dos tipos de poema que constitui
a lição ou “anti-lição”, como prefere Camargo (2003, p. 249), ao constatar que o
poema “mostra onde não está o lirismo”.

A mesma anulação da subjetividade que se manifesta na “Primeira lição”


de Ana Cristina Cesar pode ser identificada nas formas visuais dos poemas
modernos. A esse respeito, Heloisa Buarque de Hollanda (2004, p. 44) constata
que “para o poema racional da vanguarda a tematização de problemas pessoais
está interditada”. Diante do horizonte técnico da sociedade industrial, dos novos
padrões da comunicação não verbal, da linguagem publicitária, do outdoor, do
cartaz, o poema deve livrar-se da “alienação metafórica”, para ser projetado
como um “objeto em e por si mesmo, não um intérprete de objetos exteriores e/
ou sensações mais ou menos subjetivas”.
123
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

A colocação da linguagem em primeiro plano na projeção do poema como


“objeto em e por si mesmo”, como assinala o “Plano piloto para poesia concreta”,
citado por Heloisa Buarque de Hollanda (2004), remonta, na modernidade, ao
poema “Um lance de dados”, do poeta francês Stéphane Mallarmé.

FIGURA 7 - UM LANCE DE DADOS, DE STÉPHANE MALLARMÉ

FONTE: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS,


Haroldo de. Mallarmé. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 1991, p. 117

A disposição das palavras no papel, o interesse pelo branco do papel em


contraste com a grafia das palavras, que confere um aspecto visual ao poema,
é justificada por Mallarmé por uma aproximação com a música. Em “Um lance
de dados”, Mallarmé (1990, p. 152) identifica no concerto, mais precisamente, na
forma da sinfonia, meios que julga provirem da literatura, e os retoma.

Essa aproximação, aparentemente controversa, entre o aspecto visual e o


sonoro ou musical da poesia moderna é confirmada por Vitor Manuel de Aguiar
e Silva (1976, p. 61): “Esta participação da fisicidade dos vocábulos aproxima
a arte literária da música e adquiriu um relevo particular com o movimento
simbolista, quando a poesia, no dizer de Valéry, quis ‘retomar à Música a
sua riqueza’”. Compreendida como representação de si mesma e como uma
arte de sensação imediata, como observa Clement Greenberg (2001), a música
constituiria o modelo para as artes de vanguarda na problematização de seus
campos de atividade e no questionamento da racionalidade positivista. Assim,
as vanguardas do século XX reduziriam a poesia a propriedades materiais,
sonoras ou visuais, da linguagem verbal da poesia.

124
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

FIGURA 8 - L’AMIRAL CHERCHE UNE MAISON À LOUER

FONTE: Disponível em: <http://a403.idata.over-blog.com/800x513/2/41/57/89/Dada--04/CV007L-


amiral.cherche.png>. Acesso em: 30 jun. 2017

O poema simultâneo dos dadaístas Richard Huelsenbeck, Tristan Tzara


e Marcel Janko, por exemplo, dispõe os textos, como você pode ver acima, ao
modo de partituras musicais em uma grade. A poesia sonora de Hugo Ball, Raoul
Hausmann e Kurt Schwitters, por sua vez, reduz o poema a propriedades sonoras
e visuais das palavras, a exemplo do poema sonoro “Ursonate”, de Kurt Schwitters.

FIGURA 9 - URSONATE

FONTE: Disponível em: <https://tandtprojects.cah.ucf.edu/~amandah/dig6836/


soundpoem/soundindex.php>. Acesso em: 30 jun. 2017.

125
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

O fragmento acima é a introdução do poema “Ursonate”, que pode ser


traduzido como “Protosonata”, sendo a sonata uma forma musical fixa. Você
consegue compreender os versos do poema? Se não consegue, não se trata de
uma questão idiomática. Você pode ser alemão, como o poeta, ou dominar a
língua alemã, e continuará sem compreender, pois as letras dispostas no poema
não formam palavras em idioma algum. São signos sonoros sem sentido lógico-
racional. Isso não significa, no entanto, que o poema não produza sentido,
sobretudo se considerarmos o contexto de produção, a aproximação entre poesia
e música, as experimentações das vanguardas que provocavam o público e o gosto
do público por meio do choque, bem como confrontavam o racionalismo que não
podia mais se sustentar com os acontecimentos, como as grandes guerras.

O impacto do contexto de produção das vanguardas poéticas do início do


século XX transparece ainda nos poemas predominantemente visuais, a exemplo
deste caligrama de Guillaume Apollinaire. Os caligramas consistem em imagens
formadas pela disposição das palavras que, neste caso, criticam a invasão da
França pelas tropas alemãs.

FIGURA 10 - CALIGRAMA DE APOLLINAIRE

FONTE: Disponível em: <https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Guillaume_


Apollinaire_Calligramme.JPG>. Acesso em: 30 jun. 2017

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TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

No Brasil, o interesse pelo aspecto visual do poema culmina no Concretismo


e sua teoria do fim do verso. Formado em 1952, em São Paulo, o Concretismo
foi integrado por Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari e,
posteriormente, por Ronaldo Azeredo e José Lino Grünewald. O Concretismo
declara o fim do verso como unidade rítmico-formal do poema, reconhecendo o
espaço como agente estrutural.

poesia concreta: produto de uma evolução crítica de formas, dando por


encerrado o ciclo histórico do verso (unidade rítmico-formal), a poesia
concreta começa por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente
estrutural. Espaço qualificado: estrutura espaciotemporal, em vez de
desenvolvimento meramente temporístico-linear (TELES, 1982, p. 403).

Com isso, o poema não se desenvolve de maneira apenas temporal e linear,


dialogando com a comunicação não verbal. Como explicam os poetas concretistas
Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos no “Plano piloto para
poesia concreta”, o manifesto do Concretismo publicado em 1958:

o poema concreto, usando o sistema fonético (dígitos) e uma sintaxe


analógica, cria uma área linguística específica – “verbivocovisual”
– que participa das vantagens da comunicação não verbal, sem
abdicar das virtualidades da palavra. Com o poema concreto ocorre
o fenômeno da metacomunicação: coincidência e simultaneidade da
comunicação verbal e não verbal, com a nota de que se trata de uma
comunicação de formas, de uma estrutura-conteúdo, não da usual
comunicação de mensagens (TELES, 1982, p. 404).

Assim, o concretismo termina por retirar qualquer sinal de subjetividade


do “eu” lírico da poesia, como confirma, como vimos antes, a interdição de
“problemas pessoais” constatada por Heloisa Buarque de Hollanda (2004). O
legado de Mallarmé para as formas visuais da poesia, como sugerimos antes,
pode ser confirmado tanto nesta passagem do “Plano piloto para poesia concreta”:
“precursores: mallarmé (un coup de dés, 1897): o primeiro salto qualitativo:
“subdivisions prismatiques de l’idée”; espaço (“blancs”) e recursos tipográficos
como elementos substantivos da composição” (TELES, 1982, p. 403), quanto neste
poema do concretista Augusto de Campos.

127
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

FIGURA 11 - TVGRAMA 1 (TOMBEAU DE MALLARMÉ), DE AUGUSTO DE CAMPOS

FONTE: Disponível em: <http://www.musarara.com.br/wp-content/uploads/2012/03/


TVGRAMA-1-copy.jpg>. Acesso em: 30 jun. 2017.

Este outro poema concreto de Augusto de Campos recorda o caligrama,


que vimos anteriormente, de Apollinaire, igualmente citado no “Plano piloto
para poesia concreta” como precursor de uma compreensão sintético-ideográfica
em detrimento de lógica-discursiva.

FIGURA 12 - 2ª VIA, DE AUGUSTO DE CAMPOS

FONTE: Disponível em: <http://saopaulosao.com.br/nossas-pessoas/1566-


augusto-de-campos-ganha-sua-maior-mostra-individual-no-sesc-
pomp%C3%A9ia.html>. Acesso em: 30 jun. 2017.

128
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

O poema-processo radicaliza as sugestões visuais e não discursivas do


concretismo, explorando principalmente signos visuais ou signos não verbais.
Ao dialogar com outras artes, especialmente visuais, o poema-processo resulta
num poema para ser visto mais do que para ser lido. Seus principais autores são:
Álvaro de Sá, Neide Sá, Moacy Cirne, Wlademir Dias-Pino.

FIGURA 13 - POEMA PROCESSO DE FALVES SILVA

FONTE: Disponível em: <http://www.poemaprocesso.com.br/poetas.


php?poeta=25&i=4&alfaini=c&alfafim=g>. Acesso em: 30 jun. 2017.

O Poema-práxis, por sua vez, retoma, embora não reconstitua


completamente, a linearidade do verso, mas como uma “intensidade significativa
que no contexto do poema limita-se a si mesma”, conforme explica Mário Chamie
(1962 apud HOLLANDA, 2004, p. 52). Aqui, como nos poemas concretos, não há
lugar para a subjetividade de um eu lírico, como podemos ver nesta estrofe:

Cova,
e não se espanta.
Plantio; fé e safra sofre o homem
de morte
e morre: rês, rés de fome
Cava.

Segundo Heloisa Buarque de Hollanda (2004, p. 53), “o poema é como


se fosse sua área, que transparece como tal, sem a intervenção da subjetividade
do poeta”. O manifesto didático do Poema-práxis, publicado em 1962 por Mário
Chamie, ilumina o papel da falta de intervenção da subjetividade constatada por
Heloisa Buarque de Hollanda: “a história caminha para um coletivismo total.
Nessa coletivização, o indivíduo, como tal, conta cada vez menos e, enquanto
integrante de uma sociedade, conta cada vez mais”. Com isso, Mário Chamie
(1962 apud HOLLANDA, 2004, p. 49) propõe a literatura práxis como “fazer
histórico”. Portanto, a despeito ou justamente em função do desaparecimento
da subjetividade do eu lírico no poema, é um aspecto do lirismo propriamente
que se manifesta aqui, como vimos antes ao tratarmos da desindividuação e da
despersonalização, e que aqui tem sua função social explorada explicitamente.
129
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

4.2.4 Método de análise e interpretação de poemas


Vimos antes um excelente exemplo de interpretação de poemas, em que
Antonio Candido articula a estrutura e a significação do poema, articulação
reiterada pela interpretação do “aspecto expressivo formal” e do “aspecto
expressivo existencial”.

Analisar um poema requer, como nota Antonio Candido (2002, p. 7), “ler
infatigavelmente o texto analisado”, “como sempre preconizou a velha explication
de texte dos franceses”. Para tanto, Candido não rejeita a intuição, suscitada pela
multiplicação das leituras. Analisar um poema requer ainda um tratamento
adequado àsua natureza, ou seja, respeitar a sua especificidade, considerando
alguns pressupostos comuns:

um destes pressupostos é que os significados são complexos e


oscilantes. Outro, que o texto é uma espécie de fórmula, onde o autor
combina consciente e inconscientemente elementos de vários tipos. Por
isso, na medida em que se estruturam, isto é, são reelaborados numa
síntese própria, estes elementos só podem ser considerados externos
ou internos por facilidade de expressão (CANDIDO, 2002, p. 6).

Como podemos ver, Antonio Candido toma os elementos externos e


internos como interdependentes, do mesmo modo que a forma e os sentidos do
poema, como vimos antes. Afinal, a interpretação de um poema implica o conceito
de estrutura como correlação das partes, a qual atua, por fim, na estratificação dos
significados. Ao analisar e interpretar um poema, devemos, portanto, considerar os
elementos constitutivos do poema, como a forma, a sonoridade, o ritmo, o metro,
o verso, entre outros, e compreender, como sugere Antonio Candido, a estrutura
formada pelos elementos do poema de forma articulada com os significados.

Vejamos um exemplo a partir do poema “A valsa”, de Casimiro de Abreu:

Tu, ontem,
Na dança
Que cansa,
Voavas
Co’as faces
Em rosas
Formosas
De vivo,
Lascivo
Carmim;
Na valsa
Tão falsa,
Corrias,
Fugias,
Ardente,

130
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Contente,
Tranquila,
Serena,
Sem pena
De mim!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues,
Não mintas…
— Eu vi!…

Valsavas:
— Teus belos
Cabelos,
Já soltos,
Revoltos,
Saltavam,
Voavam,
Brincavam
No colo
Que é meu;
E os olhos
Escuros
Tão puros,
Os olhos
Perjuros
Volvias,
Tremias,
Sorrias,
P’ra outro
Não eu!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…

131
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

— Não negues,
Não mintas…
— Eu vi!…

Meu Deus!
Eras bela
Donzela,
Valsando,
Sorrindo,
Fugindo,
Qual silfo
Risonho
Que em sonho
Nos vem!
Mas esse
Sorriso
Tão liso
Que tinhas
Nos lábios
De rosa,
Formosa,
Tu davas,
Mandavas
A quem?!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!…

Calado,
Sozinho,
Mesquinho,
Em zelos
Ardendo,
Eu vi-te
Correndo
Tão falsa
Na valsa
Veloz!

132
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Eu triste
Vi tudo!
Mas mudo
Não tive
Nas galas
Das salas,
Nem falas,
Nem cantos,
Nem prantos,
Nem voz!

Quem dera
Que sintas
As dores
De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!…

Na valsa
Cansaste; 
Ficaste
Prostrada,
Turbada!
Pensavas,
Cismavas,
E estavas
Tão pálida
Então;
Qual pálida
Rosa
Mimosa
No vale
Do vento
Cruento
Batida,
Caída
Sem vida.
No chão!

Quem dera
Que sintas
As dores

133
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

De amores
Que louco
Senti!
Quem dera
Que sintas!…
— Não negues,
Não mintas,..
— Eu vi!…

Inicialmente, podemos perceber que o poema, publicado em 1859 por


Casimiro de Abreu, poeta da segunda geração do romantismo brasileiro, não
obedece a uma forma fixa, conforme uma premissa do Romantismo. Sua estrutura,
no entanto, segue um padrão, sendo formada por cinco estrofes de vinte versos
intercaladas por refrãos, formados, por sua vez, por onze versos.

A sonoridade do poema pode ser identificada em elementos como a rima,


a aliteração e a assonância. Observe os primeiros versos:

Tu, ontem, (A)


Na dança (B)
Que cansa, (B)
Voavas (C)

Note a homogeneidade sonora produzida pela reiteração de sons das


consoantes e das vogais. A rima se manifesta predominantemente em pares, com
destaque para a rima entre versos 10 e 20 que produz uma simetria, dividindo, de
certa forma, a estrofe em duas partes:

Tu, ontem, na dança que cansa, voavas co’as faces em rosas formosas de
vivo, lascivo carmim;
Na valsa tão falsa, corrias, fugias, ardente, contente, tranquila, serena, sem
pena de mim!

O efeito mais interessante, e importante, para pensarmos a relação entre


forma e significação, deriva do ritmo do poema. Como vimos, para analisarmos o
metro e o ritmo dos versos de um poema, precisamos realizar a escansão dos versos:

Tu, | on | tem,
1 2
Na | dan | ça
1 2

Seguindo as orientações de Antonio Candido, temos EM – 2 e ER – 2,


mas o fundamental neste poema é o resultado do ritmo, ou seja, da regularidade
produzida pela acentuação dos versos que, neste caso, reproduzem o ritmo de
uma valsa. O efeito do ritmo de valsa resulta da leitura sucessiva dos versos, que
pode ser melhor representado se recorrermos ao sistema quantitativo:
134
TÓPICO 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS

Tu, ontem,
U - U
Na dança
U - U

Note que a sucessão de pés anfíbracos ( U – U ), formados por uma longa


entre duas breves, reproduz o ritmo ternário da valsa. O ritmo funciona como
uma figura de fundo, como a valsa que soa na sala em que ocorre o acontecimento
expresso pelo eu lírico.

Nesse sentido, podemos identificar processos de acomodação, a exemplo


da ectlipse (Co’as | fa | ces), utilizados para manter a unidade de metro e ritmo.
Analisemos, agora, o processo de acomodação que ocorre na última estrofe:

Qual | pá | li | da
1      2       
Ro | sa
1
Mi | mo | sa
1      2

Nessa parte ocorre uma sinafia, ou seja, o deslocamento da última sílaba


átona de um verso para o verso seguinte, formado por uma sílaba a menos. A sinafia
gera, aqui, um descompasso entre o metro e o ritmo: o metro sofre uma alteração,
ao passo que o ritmo (da leitura, ao menos) permanece o mesmo. A sinafia tem,
portanto, uma função fundamental no poema: a quebra da regularidade dos pés
(representação da ordenação regulada das unidades de tempo) remete aos pés
(ou passos) da dançarina, comparada, a seguir, a uma rosa “caída / sem vida /
no chão”. Assim, a estrutura e a significação do poema coincidem, na medida
em que um elemento formal da poesia – os pés – contribui para a significação
produzida pelo poema, de modo que, aqui, de certa forma, o poema remete a si
mesmo. O efeito produzido pelo poema condiz com a disposição das palavras no
papel, de modo que a forma reflete graficamente o sentido: a quebra do pé.

Considerando os elementos articulados na estrutura e na estratificação


dos significados do poema, releia agora o poema de Casimiro de Abreu e
proponha uma interpretação. Para tanto, considere que, como leitores, temos
apenas a perspectiva do eu lírico que, insistimos, não se confunde com o poeta
e que, numa primeira leitura, parece reclamar um amor não correspondido. Se
lermos “infatigavelmente o texto analisado”, como sugere Antonio Candido,
percebemos que a significação do poema ultrapassa a primeira leitura. Para essa
tarefa, sugerimos algumas perguntas: estaria o poema circunscrito ao salão?
Seria o salão uma representação, temporalmente condensada, da vida? Teria a
dançarina morrido? Ou apenas caído com o ritmo vertiginoso da valsa? Para
responder a essa pergunta, considere o vocabulário da última estrofe, a exemplo
da palavra “cruento”. Teria o eu lírico matado a dançarina? Não é o que parece

135
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

sugerir a última estrofe, sobretudo se considerarmos o refrão, que repete como


uma ideia fixa: “quem dera que sintas as dores...”? Teria ela realmente caído ou
morrido ou tudo é uma projeção da imaginação do eu lírico? Não é o próprio
refrão, mais uma vez, que nos permite pensar que tudo se trata de imaginação?

Para finalizarmos nossa discussão sobre a interpretação de poemas,


centrada tanto no “aspecto expressivo formal” quanto no “aspecto expressivo
existencial”, como sugere Antonio Candido, vejamos algumas considerações de
Emil Staiger que nos permitem retomar o problema dos gêneros literários. “Como
concorre a Poética para a interpretação de cada obra?”, pergunta-se Emil Staiger
(1975, p. 103), que responde:

Basta examinar de que modo cada poema participa de cada um dos


três gêneros aqui abordados. Isso seria certo do ponto de vista da
Poética que afirma que a divisão tripartida baseia-se na linguagem:
assim, a essência da obra de arte literária esgotar-se-ia na divisão
tripartida. Entretanto, isto é pura teoria que na vida não tem utilidade.
O modo como uma obra poética oscila entre épico, lírico e dramático,
o modo como a tensão desenvolve-se, e em seguida equilibra-se, é tão
extraordinariamente delicado, que toda mera aplicação de conceitos
rígidos tende de antemão a fracassar. O crítico literário sempre terá
que lançar mão daquela qualidade que desde o tempo de Herder é
imprescindível em nossa profissão: um sentimento espontâneo para a
qualidade histórico-individual da obra.

Ao constatar a inutilidade da simples aplicação da divisão tripartida da teoria


dos gêneros literários aos poemas, Emil Staiger (1975, p. 105) salva a teoria dos gêneros
literários deslocando a teoria para uma questão propriamente humana:

A “Poética” se anuncia como uma contribuição da Ciência da Literatura


para o problema da Antropologia Geral, quer dizer, ela esforça-se para
provar como a essência do homem aparece nos domínios da criação
poética. Por isso mesmo ela não nega, e sim acentua com grande ênfase
que a validade dos conceitos de gênero não se limita à Literatura, que
se trata aí de uma nomenclatura provinda da Ciência da Literatura
para atualidades generalizadas do Homem. Toda a problematização
aparelha-se para a questão: que é o Homem?

Ao afirmar que o homem se forma a partir da ideia que faz de si mesmo,


Emil Staiger (1975, p. 105) explica: “Ao darmos respostas exatas à pergunta ‘o
que é o homem?’, decidimo-nos por determinadas possibilidades. Situamo-nos,
percebemo-nos em determinada perspectiva. E, portanto, se pode dizer que em
cada sistema, em cada ‘visão do mundo’ de um poeta, realiza-se parte daquilo
que o homem pode ser em absoluto”. Afinal, para o germanista, “o homem é algo
que o mais cedo possível terá que superar a si mesmo, ou voltando à intimidade
muda, ou fracassando tragicamente, num esforço supremo e último do elemento
dramático” (STAIGER, 1975, p. 106).

136
RESUMO DO TÓPICO 2
Neste tópico, você aprendeu que:

• O gênero dramático se diferencia do gênero lírico pelo modo de enunciação e


pelo modo, meio e objeto de imitação.

• Os gêneros dramático e lírico surgem na Antiguidade grega a partir do


ditirambo.

• A tragédia e a comédia se diferenciam pelos objetos de imitação, superior e


inferior, respectivamente.

• A dramaturgia medieval se caracteriza pela fusão entre o superior e o inferior,


contrariando a separação prescrita pela antiga teoria dos gêneros literários.

• O teatro de Shakespeare funde o trágico e o cômico, e o teatro moderno,


reconhecendo Shakespeare como modelo, critica as regras do classicismo.

• O gênero lírico se associa convencionalmente com a subjetividade, e a


subjetividade da lírica deve ser relativizada diante da desindividuação que a
caracteriza.

• A lírica moderna se caracteriza pela unidade entre a música das palavras e


de sua significação, pela atuação imediata do lírico sem necessidade de
compreensão e pela renúncia à coerência gramatical, lógica e formal.

• A forma e os sentidos do poema se interpenetram, e sua análise e interpretação


dependem de elementos como estrutura, verso, rima, metrificação e escansão.

137
AUTOATIVIDADE

Você leu, no decorrer do tópico, o poema “Primeira lição”, de Ana


Cristina Cesar. Considerando que o poema se intitula “Primeira lição”, reflita,
com base nas discussões a respeito do lirismo, sobre os sentidos do poema,
retomando os assuntos abordados anteriormente, tais como gênero, forma e
subjetividade. Em seguida, leia a citação abaixo e disserte suas conclusões.

Temos uma imitação de um “mau” texto didático. Mas há um


elemento irônico que se instaura a partir da contradição entre o tema
tratado (o lirismo associado à morte) e o tratamento dado ao tema.
Nada mais anti-lírico e impessoal do que uma série de definições
que podem ser traduzidas numa abstrata sentença matemática: x
é y. Nada mais anti-lírico que um conjunto de assertivas que se
organiza segundo a lógica classificatória que parte do geral para
o particular, em subdivisões sucessivas e marcadas rigidamente
por itens, a, b, c, apresentados, contudo, como “poesia”. Mas tal
efeito irônico introduz um rasgo de verdade: a tensão entre a forma
e o sentido acentua a distância entre a matéria lírica que deseja
uma forma e a confissão informe próxima do grito. E a forma se
faz exatamente no insistente retorno da proposição assertiva, que
constrói um ritmo geral monótono, quase uma ladainha. Nela, o
tema da morte, insistentemente tratado nas sucessivas escolhas,
para concluir com a ambiguidade entre vida e morte nos dois
últimos versos, aponta para a morte do próprio lirismo sufocada
na “Lição”. Ou seja, a primeira lição de lirismo é uma anti-lição:
mostra onde não está o lirismo (CAMARGO, 2003, p. 249).

138
UNIDADE 2
TÓPICO 3

LITERATURA DE CORDEL

1 INTRODUÇÃO
No Tópico 2 você aprofundou os estudos sobre os gêneros literários
analisando, individualmente, o gênero dramático e o gênero lírico. Neste terceiro
tópico você irá estudar a literatura de cordel, sua história e suas características.

Como veremos, embora a literatura de cordel surja na Europa durante


o Renascimento, adquire por aqui uma feição bem brasileira, especialmente
representativa do nordeste brasileiro, onde chegou primeiro por meio dos
portugueses.

E apesar de ser denominada pelo modo como eram expostos os folhetos,


como veremos a seguir, a literatura de cordel pode ser identificada por elementos
textuais que a caracterizam, os quais estudaremos resumidamente agora.

Vamos lá?

2 LITERATURA DE CORDEL
A literatura de cordel remonta ao Renascimento, quando o surgimento
da imprensa na Europa permitiu a impressão de relatos orais dos trovadores
medievais em folhetos. O nome se origina do modo como tradicionalmente os
folhetos impressos eram expostos, pendurados em cordas, para comercialização
em Portugal. Por mediação dos colonizadores portugueses, a literatura de cordel
chegou ao Brasil como manifestação oral, mais exatamente na Bahia, de onde
migrou para outros estados do Nordeste.

No Brasil, os folhetos de literatura de cordel, cuja impressão seria posterior


ao aparecimento da imprensa, autorizada apenas com a vinda da Corte, em 1808,
adquirem uma identidade singular. A produção seriada de folhetos de literatura de
cordel brasileira inicia em 1893, com a publicação dos poemas do cordelista Leandro
Gomes de Barros, considerado o precursor da literatura de cordel no Brasil.

139
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

Como manifestação de poesia popular, a literatura de cordel se caracteriza


por uma linguagem informal, estruturada em diferentes modalidades de estrofes
e de versos, compondo um poema de extensão relativamente grande. Geralmente,
transmite uma opinião sobre um tema social ou cotidiano, criticando a realidade
e as condições de vida do povo nordestino, com o emprego, para tanto, de ironia
e de sarcasmo. Os temas tratam, em geral, de assuntos cotidianos, lendas, eventos
historicamente significativos etc., mas não são restritos, de modo que qualquer
assunto pode ser tematizado pela literatura de cordel. Vendidos em feiras, os
folhetos de literatura de cordel se tornaram, inclusive, uma fonte de informação
para a população nordestina.

Os folhetos de literatura de cordel geralmente são ilustrados com


xilogravuras, ou seja, uma ilustração produzida com madeira esculpida e, em
seguida, impressa no papel. Os poemas, por sua vez, são estruturados por estrofes
caracterizadas por um esquema de rimas e metro regulares. As estrofes mais
comuns na literatura de cordel são de dez versos (décima), oito versos (oitava ou
quadrão), seis versos (sextilha) e quatro versos (quadra).

FIGURA 14 - XILOGRAVURA

FONTE: Disponível em: <http://www.tvsinopse.kinghost.net/art/x/xilogravura.htm>.


Acesso em: 20 jul. 2017.

DICAS

Caso queira pesquisar mais sobre a xilogravura, visite o site do Museu Casa da
Xilogravura: <http://www.casadaxilogravura.com.br>.

140
TÓPICO 3 | LITERATURA DE CORDEL

Vejamos um exemplo de uma sextilha retirada do cordel “A vida de Pedro


Cem”, de autoria de Leandro Gomes de Barros, cujos direitos foram comprados
pelo editor e poeta João Martins de Athayde, que o publicou em seu nome:

Vou narrar agora um fato


Que há cinco séculos se deu
De um grande capitalista
Do continente europeu
Fortuna como aquela
Ainda não apareceu

Como podemos perceber, as rimas obedecem ao esquema ABCBDB. O


poema soma 79 sextilhas formadas por redondilhas maiores, modalidade de
verso muito popular na poesia brasileira.

Quanto ao tema, o poema trata de um avarento que acumula uma grande


fortuna. Um dia, um sonho anuncia a Pedro Cem a perda de toda a sua fortuna.
Ao acordar, acreditando que o sonho tinha se cumprido como uma profecia, sai
vagando pelo mundo implorando caridade:

Eu tive tanta fortuna,


Não socorri a ninguém,
E todos que me pediram
Eu nunca dei um vintém,
Hoje eu preciso pedir,
Não há quem me dê também!

Ao final, Pedro Cem morre sem nada: “Ontem teve, hoje não tem”, resume
o verso final do cordel. O tema deriva de uma antiga lenda portuguesa adaptada
a diferentes registros, incluindo a literatura de cordel portuguesa e brasileira
(NOGUEIRA, 2010, p. 18-19). A respeito da adaptação de Leandro Gomes de
Barros, Carlos Nogueira (2010, p. 24) afirma:

A estrutura de cada estrofe permite criar um efeito de naturalidade


estética que transporta o leitor para o interior do texto e da história. A
articulação de unidades semânticas organizadas em seis versos origina
um circuito que se renova em andamentos cuja transparência estética
e comunicativa sugere que a palavra diz e organiza o mundo (no
princípio era o verbo). A assimilação original da lenda enquanto texto
sancionado pela escrita “Diz a história onde li/ o todo desse passado/
que Pedro Cem nunca deu/ uma esmola a um desgraçado/ não olhava
para um pobre/ nem falava com criado” (BARROS, 2004, p. 2) dá-se
nesse circuito instaurado pelos valores estético e ético da palavra.

141
UNIDADE 2 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: DRAMÁTICO E LÍRICO

O aspecto religioso e de valoração da palavra presente na lenda e,


especialmente, no poema, constatado por Carlos Nogueira, confere ao cordel um
feitio moralizante, de modo que se configura como uma lição. Como observa ainda
Carlos Nogueira (2010, p. 27), o personagem Pedro Cem ultrapassa os folhetos de
literatura de cordel, atravessada pela “sensibilidade do catolicismo tradicional”,
e se projeta entre os cantadores, transformado em “texto oral e memorial”, como
exemplo negativo de um ser ganancioso.

FIGURA 15 - LITERATURA DE CORDEL

FONTE: João Martins de Athayde. Disponível em: <http://d


ocvirt.com/docreader.net/docreader.aspx?bib=CordelFCR
B&pasta=&pesq=a%20vida%20de%20pedro%20cem>.
Acesso em: 30 jun. 2017.

Vejamos, por fim, um exemplo de estrofes de dez versos redondilhos


maiores do mesmo cordelista brasileiro:

Se eu soubesse que esse mundo


Estava tão corrompido
Eu tinha feito uma greve
Porem não tinha nascido
Minha mãi não me dizia
A queda da monarchia
Eu nasci foi enganado
Pra viver n'este mundo
Magro, trapilho, corcundo,
Alem de tudo sellado.
Assim mesmo meu avô
Quando eu pegava a chorar,
Elle dizia não chore

142
TÓPICO 3 | LITERATURA DE CORDEL

O tempo vai melhorar.


Eu de tolo acreditava
Por innocente esperava
Ainda me sentar n'um throno
Vovó para me distrahir
Dizia tempo ha de vir
Que dinheiro não tem dono.

DICAS

Barbosa oferece um acervo on-line com folhetos digitalizados de literatura de


cordel brasileira. Visite! <http://www.casaruibarbosa.gov.br/cordel/>.

NOTA

Em 1988 foi fundada a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, sediada na


cidade do Rio de Janeiro, com a finalidade de promover o cordel. Acesse: <http://www.ablc.
com.br/>.

143
RESUMO DO TÓPICO 3
Neste tópico, você aprendeu que:

• A literatura de cordel é uma manifestação de poesia popular proveniente da


Europa que remonta ao Renascimento.

• Seu nome se origina do modo como os folhetos eram expostos, pendurados em


cordas.

• Os folhetos de literatura de cordel geralmente são ilustrados com xilogravuras.

• A literatura de cordel se caracteriza por uma linguagem informal e transmite


uma opinião sobre um tema social ou cotidiano, criticando a realidade e as
condições de vida.

• A literatura de cordel consiste em poemas de extensão relativamente grande,


estruturados em diferentes modalidades de estrofes e de versos.

144
AUTOATIVIDADE

Você leu acima um fragmento de um poema do cordelista Leandro


Gomes de Barros chamado “As misérias da época”:

Se eu soubesse que esse mundo
Estava tão corrompido...

Retome a leitura do fragmento do poema ou pesquise e leia o poema


integral e reflita sobre a atualidade do tema abordado pelo cordelista brasileiro
nos primeiros anos do século XX.

145
146
UNIDADE 3

OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E


NARRATIVO

OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM
A partir desta unidade você será capaz de:

• Identificar A Especificidade Dos Gêneros Épico E Narrativo;

• Compreender A Relação Entre O Gênero Épico E O Gênero Narrativo;

• Reconhecer As Relações Entre A Literatura E Outras Áreas Do


Conhecimento;

• Compreender As Relações Da Literatura Com A História E A Sociedade.

PLANO DE ESTUDOS
Esta unidade está dividida em três tópicos. Ao final de cada um deles, você
terá atividades que vão ajudá-lo a refletir sobre os assuntos abordados.

TÓPICO 1 – O GÊNERO ÉPICO

TÓPICO 2 – O GÊNERO NARRATIVO

TÓPICO 3 – LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A


SOCIEDADE

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UNIDADE 3
TÓPICO 1

O GÊNERO ÉPICO 

1 INTRODUÇÃO
Você viu na primeira unidade do livro de Teoria da Literatura I que,
desde a Antiguidade, a literatura se divide em gêneros literários, quais sejam: o
gênero lírico, o gênero dramático e o gênero épico ou narrativo. Nesta unidade,
estudaremos mais detidamente os gêneros épico e narrativo.

Todos vivemos envoltos em narrativas, sejam elas reais ou ficcionais.


Como afirma Antonio Candido (2004, p. 174), não há povo e não há homem que
possa viver sem fabulação e, assim, a criação ficcional “está presente em cada um
de nós”.

Nesta unidade, você conhecerá mais sobre a narrativa, a começar pelo


mais antigo gênero narrativo. O gênero épico, caracterizado pela presença de
narrador e de personagens, narrava, misturando eventos históricos e mitológicos,
os mitos de fundação das nações na Antiguidade. A seguir, você conhecerá os
modernos gêneros narrativos, que herdaram características do gênero épico,
especialmente a disposição para a totalidade, pluralidade ou variedade, o que
explica a consolidação e valorização da prosa narrativa na modernidade.

Neste tópico, você estudará as relações da literatura, em especial da


narrativa, com outras áreas do conhecimento, e o gênero épico, suas características
e a trajetória das epopeias. Ao final deste tópico, você estará ambientado com as
relações da literatura com outras áreas do conhecimento e com o gênero épico.

Seja bem-vindo!

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2 O GÊNERO NARRATIVO E AS RELAÇÕES DA LITERATURA


COM OUTRAS ÁREAS DO CONHECIMENTO
A literatura constitui uma atividade plural que, para se manifestar
em sua especificidade, assimila uma diversidade de áreas do conhecimento,
especialmente, mas não exclusivamente, os gêneros narrativos. Roland Barthes
(2010, p. 18) acentua esse aspecto da literatura, sustentando nele uma defesa da
literatura diante das outras disciplinas:

A literatura assume muitos saberes. Num romance como Robinson


Crusoé, há um saber histórico, geográfico, social (colonial), técnico,
botânico, antropológico (Robinson passa da natureza à cultura).
Se, por não sei que excesso do socialismo ou de barbárie, todas as
nossas disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto numa, é
a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão
presentes no monumento literário.

Barthes evidencia a relação da literatura com outras áreas do conhecimento,


e imediatamente escreve:

É nesse sentido que se pode dizer que a literatura, quaisquer que


sejam as escolas em nome das quais ela se declara, é absolutamente,
categoricamente realista: ela é a realidade, isto é, o próprio fulgor do
real. Entretanto, e nisso verdadeiramente enciclopédica, a literatura
faz girar os saberes, não fixa, não fetichiza nenhum deles; ela lhes dá
um lugar indireto, e esse indireto é precioso (BARTHES, 2010, p. 18).

“Verdadeiramente enciclopédica, a literatura faz girar os saberes”, afirma


Barthes (2010, p. 18), confirmando o fato de que “todas as ciências estão presentes
no monumento literário”, e dinamicamente. E mais: “ela é a realidade”, advoga
Barthes, sem reduzir a literatura ao realismo de um Zola, por exemplo, que, como
Barthes, entretanto, acreditava que “as obras-primas do romance contemporâneo
dizem muito mais sobre o homem e sobre a natureza do que graves obras de
Filosofia, de História e de Crítica” (COMPAGNON, 2012, p. 7-8). Afinal, a literatura
abrange, de fato, muitos conhecimentos, especialmente sobre a vida, o homem e o
mundo. Como confirma Antoine Compagnon (2012, p. 8), “exercício de reflexão
e experiência de escrita, a literatura responde a um projeto de conhecimento do
homem e do mundo. Um ensaio de Montaigne, uma tragédia de Racine, um
poema de Baudelaire, o romance de Proust nos ensinam mais sobre a vida do que
longos tratados científicos”.

A abrangência da literatura em suas relações com outras áreas do


conhecimento se revela mais profunda no gênero narrativo, cujas possibilidades
de representação seriam aprimoradas pelo romance. Afinal, o romance representa
a “vida cotidiana no seu condicionamento às circunstâncias históricas”, conforme
Erich Auerbach (2009, p. 499) se refere a Stendhal e Balzac, o que culminaria, ainda
segundo Auerbach (2009, p. 500) no “realismo moderno, que se desenvolveu desde
então em formas cada vez mais ricas, correspondendo à realidade em constante
mutação e ampliação da nossa vida”.

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TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

NOTA

Honoré de Balzac (1799-1850) foi um escritor francês, considerado o fundador


do Realismo. Escreveu “A mulher de trinta anos”, “Ilusões perdidas”, entre outras obras.
Émile Zola (1840- 1902) foi um escritor francês, considerado criador e representante mais
expressivo do Naturalismo. Escreveu “Germinal”, entre outras. Stendhal (1783-1842) foi um
escritor francês. Escreveu “O vermelho e o negro”, entre outras.

A esse respeito, Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976, p. 111-112)


compreende que “a literatura se afirma como meio privilegiado de exploração e
de conhecimento, não apenas da realidade exterior, mas da realidade interior, do
eu profundo que as convenções sociais mascaram”.

Conforme Silva (1976, p. 260), desde que o romance se afirma, a partir


do Romantismo, como uma forma valorizada, “apta a exprimir os multiformes
aspectos do homem e do mundo”, transforma-se “em penetrante e, por vezes,
despudorada análise das paixões e dos sentimentos humanos”. “O romance
assimilara sincreticamente diversos gêneros literários, desde o ensaio e as
memórias até à crônica de viagens; incorporara múltiplos registros literários,
revelando-se apto para a representação da vida cotidiana”, explica Silva (1976,
p. 261), que elenca diferentes classificações que comprovam a abrangência do
romance e, por conseguinte, suas relações com outras áreas do conhecimento:
romance psicológico, romance histórico, romance poético e simbólico, romance
de análise e crítica da realidade social contemporânea etc.

Silva (1976, p. 262) constata que “o século XIX constitui inegavelmente o


período mais esplendoroso da história do romance”, quando “o romance domina
a cena literária” e, “com os realistas e naturalistas, em geral, a obra romanesca
aspira à exatidão da monografia, de estudo científico dos temperamentos e dos
meios sociais”.

Depois, no declinar do século XIX e nos primeiros anos do século XX,


começa a processar-se a crise e a metamorfose do romance moderno,
relativamente aos modelos, tidos como “clássicos”, do século XIX:
aparecem os romances de análise psicológica de Marcel Proust e de
Virginia Woolf; James Joyce cria os seus grandes romances de dimensões
míticas, construídos em torno das recorrências dos arquétipos (Ulisses
e Finnegans Wake), Kafka dá a conhecer os seus romances simbólicos
e alegóricos. Renovam-se os temas, exploram-se novos domínios do
indivíduo e da sociedade, modificam-se profundamente as técnicas de
narrar, de construir a intriga, de apresentar as personagens. Sucedem-
se o romance neorrealista, o romance existencialista, o nouveau roman.
O romance não cessa, enfim, de revestir novas formas e de exprimir
novos conteúdos numa singular manifestação da perene inquietude
estética e espiritual do homem (SILVA, 1976, p. 263).

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

As “possibilidades expressivas” (SILVA, 1976, p. 263) do romance e, em


geral, do gênero narrativo, contribuem para a caracterização da narrativa como
totalidade, pluralidade, variedade etc., e como correspondência com a realidade,
como compreende Auerbach, em suas múltiplas dimensões da vida cotidiana.
Assim, ao romance se associa a disposição para a totalidade de que trata Georg
Lukács (2000), as pluralidades constatadas por Mikhail Bakhtin (2002, p. 73), ao
afirmar que “o romance, tomado como um conjunto, caracteriza-se como um
fenômeno, pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal”, ou o “realismo formal” a que
corresponde a “forma romance” como reflexo do “realismo filosófico”, segundo
Ian Watt (1990). Na narrativa se condensam, portanto, como uma disposição para
a totalidade e para a realidade, outras áreas do conhecimento, como a psicologia,
a psicanálise, a história, a filosofia, a sociologia, a economia, a antropologia, a
linguística etc.

Diante da multiplicidade compreendida pela literatura, constituindo,


enquanto um saber multidimensional, uma estrutura plural que requer estabelecer
relações com outros saberes, uma cooperação pluridisciplinar, a teoria da literatura
assume um aspecto interdisciplinar, condizente com a interdisciplinaridade
constitutiva da literatura:

A Teoria Literária assume um caráter interdisciplinar porque assimila os


conhecimentos de ciências afins tais como a sociologia, a antropologia,
a linguística, a história, a psicanálise, todas voltadas igualmente para
manifestações do ser e do fazer humanos. Este inter-relacionamento
amplia e enriquece o estudo da Literatura. [...] A crítica, qualquer que
seja a via de acesso escolhida (sociológica, psicológica, linguística...),
não pode descartar-se de sua dupla feição: enquanto crítica obedecerá
a um rigor, que lhe é garantido pelo método de abordagem e, enquanto
literária, incluirá literariamente o sentido que, na literatura, ultrapassa
o campo do conhecimento com o qual se articulou, na construção do
modelo de leitura (SOARES, 1984, p. 90-91).

Nesse sentido, e corroborando com Soares (1984), Jonathan Culler (1997)


constata que, apesar de ser um legado de teorias críticas formalistas e imanentistas,
focadas na leitura cerrada do texto literário, a teoria literária seguiu outro
rumo: os trabalhos de teoria literária estão intimamente relacionados a outros
textos, dentro de um domínio ainda não nomeado, mas muitas vezes chamado
“teoria”, para resumir, uma vez que seu objeto não é explicitamente a literatura.
A heterogeneidade da “teoria” extrapola a moldura disciplinar dentro da qual
seriam normalmente avaliados: “o que caracteriza os membros desse gênero é
sua capacidade de funcionar não como demonstrações dentro dos parâmetros de
uma disciplina, mas como redescrições que desafiam as fronteiras disciplinares”,
afirma Culler (1997, p. 15), reconhecendo que não há limites aos assuntos que os
trabalhos de teoria possam abordar.

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TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

A razão para isso, segundo Culler, não é nenhuma novidade para nós:
“a literatura”, afirma Culler (1997, p. 17), “tem como matéria toda a experiência
humana e, particularmente, a ordenação, interpretação e articulação da
experiência”. Afinal, como vimos, a literatura analisa as relações humanas, ou
manifestações da psique humana, ou os efeitos das condições materiais sobre a
experiência individual, de modo que a abrangência da literatura possibilita que
qualquer teoria seja levada para a teoria literária, abrangendo questões mais gerais
da racionalidade, da autorreflexão e da significação. Portanto, e não apenas por
suas relações com outros conhecimentos, mas por constituir um conhecimento
singular, “é o conhecimento literário que se nos impõe defender”, como proclama
Compagnon (2012, p. 9) repetindo Barthes (2010).

O mesmo Jonathan Culler que identifica a heterogeneidade da “teoria”


em virtude das suas relações com outras áreas do conhecimento afirma o seguinte
a respeito da narrativa, nosso objeto de estudo neste tópico:

Finalmente, a questão básica para a teoria no domínio da narrativa é


essa: a narrativa é uma forma fundamental de conhecimento (dando
conhecimento do mundo através de sua busca de sentido) ou é uma
estrutura retórica que distorce tanto quanto revela? A narrativa é uma
fonte de conhecimento ou de ilusão? O conhecimento que ela parece
apresentar é um conhecimento que é o efeito do desejo? (CULLER,
1999, p. 94).

Culler (1999, p. 94), enfim, pergunta ainda se “os efeitos esclarecedores e


consoladores das narrativas são ilusórios” e pondera:

Para responder a essas perguntas precisaríamos tanto de conhecimento


do mundo que seja independente das narrativas quanto de alguma
base para considerar esse conhecimento mais autorizado do que o que
as narrativas proporcionam. Mas se existe ou não esse conhecimento
autorizado separado da narrativa é precisamente o que está em
questão na pergunta a respeito de se a narrativa é ou não uma fonte
de conhecimento ou de ilusão. Portanto, parece provável que não
possamos responder a essa pergunta, se é que, de fato, ela tem uma
resposta. Ao invés disso, devemos ficar nos movendo para lá e para
cá entre a consciência da narrativa como uma estrutura retórica que
produz a ilusão de perspicácia e um estudo da narrativa como o
principal tipo de busca de sentido à nossa disposição. Afinal de contas,
mesmo a exposição da narrativa como retórica tem a estrutura de uma
narrativa: é uma história em que nossa ilusão inicial cede à crua luz
da verdade e emergimos mais tristes, mas mais sábios; desiludidos,
mas depurados. Paramos de dançar em círculos e contemplamos o
segredo. Assim diz a história (CULLER, 1999, p. 94).

A se guiar pelo exposto, parece que não temos muitas alternativas às


narrativas, em outras palavras: não temos como sair das narrativas. E essa é uma
boa razão para estudarmos a narrativa, não é verdade? Justamente a isso nos
propomos nesta unidade, iniciando pelo gênero épico.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2.1 GÊNERO ÉPICO


O mais antigo gênero narrativo, o gênero épico se caracteriza pela presença
de narrador e de personagens. Misturando eventos históricos e mitológicos, narra
os mitos de fundação das nações na Antiguidade, legando aos modernos gêneros
narrativos a disposição para a totalidade, pluralidade ou variedade, como veremos.

2.1.1 A origem do gênero épico


A origem da literatura ocidental se encontra intimamente relacionada com
as epopeias de Homero e, portanto, com a origem do gênero épico. Como observa
Angélica Soares (2007, p. 39): “A forma épica de narrar [...] tem nas epopeias de
Homero (meados do século IX a.C.) – a Ilíada e a Odisseia – as suas primeiras
manifestações. Nelas situam-se também as fontes do gênero narrativo”.

NOTA

Homero: Poeta épico da Grécia antiga, a quem se atribui a autoria das epopeias
Ilíada e Odisseia.

FONTE: Disponível em: <http://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiageral/importancia-


dos-poemas-homero-na-educacao-grega.htm>. Acesso em: 10 out. 2017.

154
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

Aristóteles, que considera a epopeia como uma das artes mais elevadas,
julga Homero o modelo a ser buscado. “Digno de louvor por muitos motivos”
(ARISTÓTELES, 2008, p. 94). Homero “era o maior autor de obras elevadas”
para Aristóteles (2008, p. 44), que, ao se referir aos elementos constitutivos da
epopeia, afirma: “Tudo isso Homero usou em primeiro lugar e na perfeição.
Assim, na verdade, compôs ele cada um dos seus poemas: a Ilíada, simples e de
sofrimento, e a Odisseia, complexa (com reconhecimentos ao longo de todo o
poema) e de caráter. E, além disso, superou todos na elocução e no pensamento”
(ARISTÓTELES, 2008, p. 93). A esse respeito, Paulo Martins (2009, p. 91) corrobora
o julgamento de Aristóteles:

Realmente, não há como negar que as epopeias homéricas – Ilíada


e Odisseia – como frutos e flores de uma civilização são marcos
incontestes do mundo grego, afinal, até mesmo Platão, séculos depois
da composição desses dois poemas, afirmara, tratando de Homero em
seu livro A República, que “este poeta ensinou a Grécia”.

Ao confirmar a importância das epopeias de Homero, retomando,


inclusive, uma passagem em que Platão, antes de Aristóteles, afirma que Homero
“ensinou a Grécia”, Paulo Martins assinala um aspecto importante do gênero
épico, ou seja, a sua função de narração mítica e histórica da fundação das antigas
civilizações. Martins (2009, p. 91) observa ainda: “Se o poeta grego é o cerne da
civilização helênica, também o seria para os romanos e, por consequência, para
nós, ocidentais”. E, ao constatar o legado da poesia grega homérica para toda a
tradição ocidental do gênero épico, Martins evidencia nas epopeias de Homero
uma “característica importante e diferenciada”, qual seja, a oralidade:
Isto é, aquela poesia foi composta entre os séculos IX e VIII a.C.
e transmitida oralmente por cantores (os aedos) antes de ser
consignada pela escrita a partir do século VII a.C. Tal propriedade é
importantíssima, pois determina características formais no poema,
a saber: as repetições sistemáticas, a presença de epítetos (aspectos
exemplares das personagens), as formulações lapidares que percorrem
os milhares de versos das obras. Assim, se por um lado Homero
é semelhante a Camões, por outro ele se distancia gravemente do
mesmo, uma vez que o meio pelo qual seus poemas são transmitidos
era diverso: o primeiro pela voz; o segundo, pela escrita (MARTINS,
2009, p. 91).

Em suas origens, portanto, o gênero épico era transmitido oralmente,


o que, como constata Martins, tem implicações formais. Vejamos, então, mais
detidamente as características do gênero épico.

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

NOTA

A Ilíada narra a conquista de Ílion ou Troia, na Guerra de Troia, motivada pela


ira de Aquiles. Um dos personagens, o grego Odisseu ou Ulisses, é o protagonista da
Odisseia. A Odisseia, por sua vez, narra a acidentada viagem de Ulisses de volta para casa
ao fim da guerra.

2.1.2 Características do gênero épico


As características do gênero épico, como vimos breve e antecipadamente
na unidade anterior, foram primeiramente descritas por Platão e Aristóteles.
Relembremos: a épica, para Platão (2001, p. 110), é um gênero misto, pois
na epopeia “é o próprio poeta que fala”, mas, em determinados momentos, o
personagem fala “como se fosse ele mesmo”, momentos estes em que o poeta
“faz um discurso como se se tratasse de outra pessoa”. Como podemos perceber,
Platão constata, portanto, no gênero épico uma mistura dos outros dois gêneros
literários, o gênero lírico, em que “é o próprio poeta que fala”, e o gênero
dramático, em que o personagem fala “como se fosse ele mesmo”. E com isso
Platão (2001, p. 112) conclui que a epopeia é “formada da combinação das duas
precedentes”, escreve se referindo aos gêneros lírico e dramático.

Vejamos um exemplo de Homero, em que Platão se fundamenta para


caracterizar o gênero épico. Observe este fragmento do Livro 1, da Odisseia, na
tradução portuguesa de Manuel Odorico Mendes:

NOTA

Manuel Odorico Mendes (1799-1864) foi um tradutor e poeta brasileiro,


conhecido por ser autor das primeiras traduções portuguesas em versos das obras de
Homero e Virgílio, sendo precursor da moderna tradução criativa.

FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Odorico_Mendes>. Acesso em: 10 out. 2017.

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TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

Da guerra e do mar sevo recolhidos


Os que eram salvos, um por seu consorte
Calipso, ninfa augusta, apetecendo,
Separava-o da esposa em cava gruta.
O céu, porém, traçou, volvendo-se anos,
De Ítaca reduzi-lo ao seio amigo,
Onde novos trabalhos o aguardavam:
De Ulisses condoíam-se as deidades;
Mas, sempre infenso, obstava-lhe Netuno,
Este era entre os Etíopes longínquos,
Do oriente e ocidente últimos homens,
Num de touros e ovelhas sacrifício
A deleitar-se; e estavam já no alcáçar
Do Olimpo os habitantes em concílio.
O soberano, a recordar Egisto
Do Agamenônio Orestes imolado,
Principia: “Os mortais ah! nos imputam,
Os males seus, que ao fado e à própria incúria
Devem somente. Contra o fado mesmo,
Do porvir não cuidoso, há pouco Egisto,
Em seu regresso o Atrida assassinando,
Esposou-lhe a mulher, bem que enviado
O Argicida sutil o dissuadisse:
— De o matar foge e poluir seu leito;
Senão, tem de vingá-lo, adolescente
Sendo investido no seu reino Orestes. —
Mercúrio o amoestou, mas surdo Egisto,
Os delitos por junto expia agora”.
A quem Minerva: “Sumo pai Satúrnio,
Jaz com razão punido esse perverso;
Todo que o imitar, com ele acabe!
Mas a aflição de Ulisses me compunge,
Que, há tanto longe dos amenos lares,
Em ilha está circúnflua e nemorosa,
Lá no embigo do mar; onde é retido
Pela filha de Atlante onisciente,
Que o salso abismo sonda, o peso atura
Das colunas que a terra e o céu demarcam.
A deusa com blandícias o acarinha;
De Ítaca ele saudoso, o pátrio fumo
Ver deseja e morrer. Não te comoves?
Irritou-te faltando, em sua amada
E em Troia, com ofertas e holocaustos?”
E o Junta-nuvens: “Que proferes, filha,
Do encerro dessa boca? eu deslembrar-me
Do mortal mais sisudo, o mais devoto,
Aos celícolas pio e dadivoso!

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UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Da terra o abarcador é quem o avexa,


Por ter do olho privado a Polifemo,
O mor Ciclope, que, num antro unida
A Netuno, pariu Toosa, estirpe
De Fórcis deus do pego insemeável.
O Enosigeu d’então lhe poupa a vida,
Mas de Ítaca o arreda. Provejamos
Na vinda sua; aplaque-se Netuno:
Só contra todos contender não pode”.
A Olhicerúlea: “Ó padre, ó rei supremo,
Se vos praz que à família torne Ulisses,
Da ínsula Ogígia à ninfa emadeixada
Mercúrio o intime, o herói prudente parta.
A Ítaca baixo a confortar o filho:
Os comantes Argeus convoque ousado;
Suste aos vorazes procos a carnagem
De flexípedes bois e ovelhas pingues.
Dali, na Esparta e na arenosa Pilos,
Do amado genitor se informe e indague,
E entre humanos obtenha ilustre fama” (HOMERO, 2009b, p. 13-14).

Você percebeu, neste fragmento da epopeia e, portanto, do gênero épico, a


mistura dos outros dois gêneros literários de que fala Platão? Note que nos primeiros
versos “é o próprio poeta que fala”, como diria Platão. Em passagens como:

Da guerra e do mar sevo recolhidos


Os que eram salvos, um por seu consorte
Calipso, ninfa augusta, apetecendo,
Separava-o da esposa em cava gruta (HOMERO, 2009b, p. 13).

Temos, portanto, um narrador que narra as ações dos personagens da


epopeia. Por outro lado, em passagens como:

Do Olimpo os habitantes em concílio.


O soberano, a recordar Egisto
Do Agamenônio Orestes imolado,
Principia: “Os mortais ah! nos imputam,
Os males seus, que ao fado e à própria incúria
Devem somente... (HOMERO, 2009b, p. 13).

O narrador deixa o personagem falar, de modo que o personagem fala


“como se fosse ele mesmo”, como diria Platão. A partir do momento em que
“o soberano [...] principia”, dizendo “Os mortais ah! nos imputam”, o narrador
desaparece para deixar falar o personagem. O mesmo ocorre, a seguir, com o
Argicida, com Minerva, com o Junta-nuvens, que dialoga, inclusive, com Minerva:
“Que proferes, filha, do encerro dessa boca?”, e assim por diante.

158
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

NOTA

As epopeias de Homero receberam diversas adaptações para o cinema. Troia


(EUA, 2004), dirigido por Wolfgang Petersen, A ira de Aquiles (Itália, 1962), dirigido por Marino
Girolami, A Guerra de Troia (Itália, 1961), dirigido por Giorgio Ferroni, e Helena de Troia (EUA,
1956), dirigido por Robert Wise, são adaptações da Ilíada.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-47357/>; <http://


www.benitomovieposter.com/catalog/lira-di-achille-p-124149.html?language=en>; <https://
www.allmovie.com/movie/la-guerra-di-troia-v114510>; <http://dvdtonyrocha.blogspot.com.
br/2015/03/filmes-epico-hercules-e-maciste.html>. Acesso em: 10 out. 2017.

O seriado A Odisseia (1997), dirigido por Andrei Konchalovsky, e o filme Ulisses (Itália, 1954),
dirigido por Mario Camerini, são inspirados, por sua vez, em Odisseia.

FONTE: Disponível em: <http://www.adorocinema.com/filmes/filme-206991/


creditos/>; <http://www.cliografia.com/2013/09/16/ulysses-o-filme/>. Acesso em:
10 out. 2017.

159
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Ao descrever o gênero épico, Aristóteles (2008), por sua vez, afirma que
a epopeia imita com palavras em verso. Adiante, Aristóteles (2008, p. 47) reitera
esse aspecto, associando a epopeia com a narrativa, ao observar que a epopeia se
caracteriza por “ter um metro uniforme e por ser uma narrativa”. E ao comparar
a epopeia e a tragédia, constata:
A epopeia tem uma característica particular muito importante para
aumentar a extensão, uma vez que, na tragédia, não é possível imitar
muitas partes da ação que se desenrolam ao mesmo tempo, mas
apenas a parte representada em cena pelos atores. Em contrapartida,
na epopeia, por ser uma narração, é possível apresentar muitas
ações realizadas simultaneamente, através das quais, desde que
sejam apropriadas ao assunto, se aumenta a elevação do poema. Este
privilégio contribui, assim, para dar grandiosidade, proporcionar uma
mudança ao ouvinte e introduzir variedade com episódios diversos
(ARISTÓTELES, 2008, p. 93-94).

Como podemos ver, Aristóteles identifica na epopeia a possibilidade de


apresentar “muitas ações realizadas simultaneamente”, justamente por meio da
narração. A vantagem da epopeia se encontra, portanto, na sua “variedade”, de
modo que o épico, para Aristóteles, define-se pela pluralidade: “por épico entendo
com pluralidade de histórias”, explica Aristóteles (2008, p. 76).

ATENCAO

O aspecto da variedade ou da pluralidade caracteriza aqui a epopeia como


narração fundamental, como veremos adiante, à futura compreensão do romance, forma
narrativa, enquanto totalidade.

Com relação ao modo de imitar, como diria Aristóteles, da epopeia, Anatol


Rosenfeld (2014) observa que o que caracteriza o gênero épico é fundamentalmente
a presença de um narrador, que, ao comunicar um evento passado, estabelece
uma distância entre o narrador e o mundo narrado: “É sobretudo fundamental
na narração o desdobramento em sujeito (narrador) e objeto (mundo narrado)”,
conclui Rosenfeld (2014, p. 25). No entanto, Aristóteles menciona ainda a extensão
da epopeia, característica retomada por Emil Staiger (1975) para diferenciar o
substantivo epopeia do adjetivo épica: “E o que se dá com a epopeia?”, pergunta
Staiger (1975, p. 97), que responde: “Denomina-se epopeia uma longa narrativa
em versos. Toda longa narrativa em versos é épica? Não!”. A questão colocada
por Staiger, diferenciando a epopeia e a épica, interessa na medida em que aponta
para a especificidade dos gêneros narrativos, que estudaremos a seguir, como
o romance, que se considera uma transformação da epopeia, permanecendo
associada com a épica:

160
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

Por outro lado, chamamos também o romance de obra épica, embora


ele não seja nenhuma narrativa em versos e também nenhuma epopeia
propriamente. Aqui há uma situação de impasse. Uma epopeia é
uma narrativa em versos. Nem toda narrativa em versos é épica. Um
romance não é uma narrativa em versos, portanto não é uma epopeia,
mas é ainda assim uma obra épica (STAIGER, 1975, p. 97-98).

Essa distinção seria analisada por Hegel, que fundamentaria, por sua
vez, a teoria do romance de György Lukács e, por extensão, uma infinidade de
autores que teorizam o romance, como Mikhail Bakhtin, Erich Auerbach, Ian Watt,
Antonio Candido, Roberto Schwarz, Franco Moretti, entre outros, considerando o
aspecto da variedade ou pluralidade, constatado desde Aristóteles, que permite
compreender a complexidade da realidade. Aprofundaremos essa questão
adiante, quando estudarmos os gêneros narrativos. Por ora, concentremos
nossa atenção nas características da epopeia clássica. O que, então, caracteriza a
epopeia, ao lado dos aspectos que vimos, associados com o modo de narração?
Para respondermos a essa questão, vejamos como Massaud Moisés resume as
demais características do gênero épico:

A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene,


especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se
a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que
o lendário se forme ou/e permita que o poeta lhe acrescente com
liberdade o produto da sua fantasia; o protagonista da ação há de ser
um herói de superior força física e psíquica, embora de constituição
simples, instintivo, natural; o amor pode inserir-se na trama heroica,
mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo,
complementar harmonicamente as façanhas de guerra (MOISÉS, 1999,
p. 184).

Essas são, portanto, as principais características da epopeia clássica que,


além de conter um narrador e personagens que se enunciam em discurso direto,
ser uma narrativa longa, escrita em versos, apresenta, como observa Moisés, um
caráter elevado e solene, assunto bélico, heróis subordinados, em sua ação, a
deuses e forças sobrenaturais, em que acontecimentos históricos se misturam com
a mitologia. Angélica Soares (2007, p. 39), por sua vez, resume as características
da epopeia desta forma:

Sendo a epopeia uma longa narrativa literária de caráter heroico,


grandioso e de interesse nacional e social, ela apresenta, juntamente com
todos os elementos narrativos (o narrador, o narratário, personagens,
tema, enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em
torno de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis e
deuses, podendo se apresentar em prosa (como as canções de gesta
medievais) ou em verso (como Os lusíadas).

Você percebeu que, como observa Soares, a epopeia apresenta os


elementos narrativos, como narrador, narratário, personagens, tema, enredo,
espaço e tempo? Estudaremos a seguir os elementos que os gêneros narrativos
herdaram da epopeia. Vejamos agora como se estruturam as epopeias clássicas:

161
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Do ponto de vista da estrutura, o poema épico se desdobraria em três


partes autônomas: a proposição, ou seja, o apelo aos deuses para que
auxiliem o poeta na sua empreitada criadora; a narração, parte central
e mais extensa, que contém o relato minucioso da ação executada pelo
herói; a narração deve obedecer a uma sequência lógica; entretanto,
à ordem cronológica seria preferível a artificial, que surpreende a
ação em meio (in media res); o epílogo, fecho da ação, deve guardar
um imprevisto, mas ser verossímil e coerente, além de conter um final
feliz (MOISÉS, 1999, p. 184).

Massaud Moisés divide a estrutura da epopeia, como podemos ver, em


três partes: a proposição, a narração e o epílogo. A essas três partes, Angélica
Soares (ano, p. 39) inclui outras duas: “Toda epopeia deveria constituir-se de
cinco partes”, afirma a autora. Assim, a estrutura da epopeia pode ser organizada,
conforme Soares, desta forma:

1) Proposição
2) Invocação
3) Dedicatória
4) Narração
5) Remate, epílogo ou desfecho

Com relação à estrutura, destaquemos a proposição ou, como explica


Moisés (1999, p. 184), “o apelo aos deuses para que auxiliem o poeta na sua
empreitada criadora”, pois ela pode contribuir para compreendermos a trajetória
das epopeias que estudaremos a seguir. Observe os primeiros versos da Ilíada,
de Homero, que compõem a proposição da epopeia, na tradução em versos de
Manuel Odorico Mendes:

Canta-me, ó deusa, do Peleio Aquiles


A ira tenaz, que, lutuosa aos Gregos,
Verdes no Orco lançou mil fortes almas,
Corpos de heróis a cães e abutres pasto:
Lei foi de Jove, em rixa ao discordarem
O de homens chefe e o Mirmidon divino (HOMERO, 2009a, p. 65).

Note que o poeta invoca a deusa, solicitando que cante “do Peleio Aquiles
a ira tenaz”, ou seja, que inspire o poeta em sua criação sobre a ira ou a luta de
Aquiles. Na proposição, o poeta revela, como podemos ver, o tema da epopeia,
neste caso, a Guerra de Troia ou, mais propriamente, as ações heroicas de Aquiles
na Guerra de Troia.

Observe agora os primeiros versos da Odisseia, de Homero:

Canta, ó Musa, o varão que astucioso,


Rasa Ílion santa, errou de clima em clima,
Viu de muitas nações costumes vários.
Mil transes padeceu no equóreo ponto,
Por segurar a vida e aos seus a volta;
162
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

Baldo afã! pereceram, tendo insanos


Ao claro Hiperiônio os bois comido,
Que não quis para a pátria alumiá-los.
Tudo, ó prole Dial, me aponta e lembra (HOMERO, 2009b, p. 13).

Note, agora, que na proposição da Odisseia o poeta solicita que a Musa, a
entidade da mitologia grega que inspira a criação, cante “o varão que astucioso,
rasa Ílion santa, errou”, ou seja, que cante “tudo”, “aponta e lembra”, pede o
poeta, sobre o homem, o “varão”, Ulisses e sua viagem de retorno à ilha de Ítaca,
sua casa, e a Penélope, sua esposa, depois de finda a Guerra de Troia. Vejamos,
finalmente, como as proposições das duas epopeias de Homero podem contribuir
para compreendermos a trajetória das epopeias.

2.1.3 A trajetória das epopeias


Vimos que as epopeias de Homero, a Ilíada e a Odisseia, originam o gênero
épico. E vimos que suas proposições revelam o tema de cada epopeia, a luta de
Aquiles e a viagem de Ulisses, respectivamente. Observe agora a proposição da
Eneida, de Virgílio, na tradução em verso de Manuel Odorico Mendes:

NOTA

Virgílio (70 – 19 a.C.): poeta nacional do Império Romano, considerado o


maior dos poetas latinos, iniciou em 29 a.C. a escrita da epopeia Eneida por solicitação de
Augusto, tendo trabalhado nela por 10 anos. Como autor de poesia lírica, escreveu Bucólicas
e Geórgicas.

FONTE: Disponível em: <https://sites.google.com/site/literaturalatinansn/la-poesia/


poesia-epica/virgilio>. Acesso em: 10 out. 2017.

163
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Eu, que entoava na delgada avena


Rudes canções, e egresso das florestas,
Fiz que as vizinhas lavras contentassem
A avidez do colono, empresa grata
Aos aldeões; de Marte ora as horríveis
Armas canto, à Itália e de Lavino às praias
Trouxe-o primeiro fado. Em mar e em terra
Muito o agitou violenta mão suprema,
E o lembrado rancor da seva Juno;
Muito em guerras sofreu, na Ausônia quando
Funda a cidade e lhe introduz os deuses:
Donde a nação latina e albanos padres,
E os muros vêm da sublimada Roma.

Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,


Ou por que mágoa a soberana deia
Compeliu na piedade o herói famoso
A lances tais passar, volver tais casos.
Pois tantas iras em celestes peitos! (VIRGÍLIO, 2005, p. 15).

Você percebeu que o poeta canta as “armas” e o “fado” de Eneias, o troiano


que “funda a cidade” de Roma, a “nação latina”? Comparemos a tradução em
versos com a tradução em prosa de Tassilo Orpheu Spalding:

Canto os combates e o herói que, por primeiro, fugindo do destino,


veio das plagas de Troia para a Itália e para as praias de Lavínio. Longo
tempo foi o joguete, sobre a terra e sobre o mar, do poder dos deuses
superiores, por causa da ira da cruel Juno; durante muito tempo,
também, sofreu os males da guerra, antes de fundar uma cidade e de
transportar seus deuses para o Lácio: daí surgiu a raça latina e os pais
albanos e as muralhas da soberba Roma (VIRGÍLIO, 1985, p. 11).

Você pode encontrar ainda a tradução em versos no metro original da


Eneida, de Virgílio, de Carlos Alberto Nunes, de que se seguem os primeiros versos:

As armas canto e o varão que, fugindo das plagas de Troia


por injunções do Destino, instalou-se na Itália primeiro
e de Lavínio nas praias. A impulso dos deuses por muito
tempo nos mares e em terras vagou sob as iras de Juno,
guerras sem fim sustentou para as bases lançar da Cidade
e ao Lácio os deuses trazer — o começo da gente latina,
dos pais albanos primevos e os muros de Roma altanados (VIRGÍLIO,
1983, p. 9).

164
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

Observe que a Eneida, de Virgílio, narra a história da viagem de Eneias,


príncipe troiano salvo da guerra para fundar a nova Troia, ou seja, Roma, e das
lutas que travou no Lácio, região da Itália Central na qual Roma foi fundada.
Como esclarece Zélia de Almeida Cardoso (1989, p. 20):

Compondo-se de doze cantos, ou livros, num total de 9.826 versos,


a Eneida é, a um tempo, um poema mitológico e histórico. A lenda
narrada no correr do texto – a história da acidentada viagem de Eneias,
príncipe troiano salvo da guerra para fundar a nova Troia, e das duras
lutas que travou no Lácio – é mero pretexto para a exaltação de Roma
e de Augusto, para a valorização do romano e de seus feitos remotos e
recentes, para a demonstração de vasta erudição em todas as áreas do
conhecimento, para a sugestão de uma linha filosófica que sintetiza,
praticamente, as correntes de pensamento então difundidas em Roma.
Baseando-se nas epopeias homéricas, mas utilizando-se de várias
outras fontes – os trágicos gregos, a lírica alexandrina, a história
e a epopeia latinas –, Virgílio compôs um texto em que se aliam
a grandeza da poesia da Grécia clássica e a sofisticação das formas
literárias modernas, desenvolvidas no requinte do ambiente cultural
de Alexandria.

NOTA

Augusto (63 a.C. – 14 d.C.): fundador do Império Romano e seu primeiro


imperador, reinou entre 27 a.C. – 14 d.C.

FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ot%C3%A1vio_Augusto>.


Acesso em: 10 out. 2017.

165
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Assim, a Eneida, conforme os preceitos clássicos da imitação (imitatio) e


emulação (aemulatio), consiste em um decalque das epopeias de Homero, Ilíada e
Odisseia e, portanto, uma contaminação (contaminatio) daquelas epopeias. Desse
modo, dos doze cantos, seis imitam e emulam a Odisseia, e outros seis, a Ilíada.
Como podemos perceber, se a Odisseia narra a viagem de Ulisses e a Ilíada a luta
de Aquiles, como vimos, o primeiro verso da Eneida anuncia a contaminação das
epopeias de Homero: “Arma vir um que cano, Troia e qui primus ab oris...”.

Da mesma maneira que, conforme o princípio da imitação e da emulação,


Virgílio se espelha em Homero, o poeta latino se torna modelo no Baixo Império,
na Idade Média e na Renascença, como o comprovam os mais famosos épicos
modernos, “A Divina Comédia”, de Dante Alighieri (1265-1321), e “Os Lusíadas”,
de Luís Vaz de Camões (1524-1580), ambos influenciados pela Eneida, de Virgílio.
Observe as seguintes estrofes de A Divina Comédia, de Dante:

Quando ao vale eu já ia baquear-me


Alguém fraco de voz diviso perto,
Que após largo silêncio quer falar-me.

Tanto que o vejo nesse grão deserto,


- “Tem compaixão de mim” – bradei transido –
“Quem quer que sejas, sombra ou homem certo!”

“Homem não sou” tornou-me – “mas hei sido,


Pais lombardos eu tive; sempre amada
Mântua lhes foi; haviam lá nascido.

“Nasci de Júlio em era retardada,


Vivi em Roma sob o bom Augusto,
Quando em deuses havia a crença errada.

“Poeta, decantei feitos do justo


Filho de Anquíses, que de Tróia veio,
Depois que Ílion soberbo foi combusto.

“Mas por que tornas da tristeza ao meio?


Por que não vais ao deleitoso monte,
Que o prazer todo encerra no seu seio?”

“- Oh! Virgílio, tu és aquela fonte


Donde em rio caudal brota a eloquência?”
Falei, curvando vergonhoso a fronte. –

“Ó dos poetas lustre, honra, eminência!


Valham-me o longo estudo, o amor profundo
Com que em teu livro procurei ciência!

166
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

“És meu mestre, o modelo sem segundo;


Unicamente és tu que hás-me ensinado;
O belo estilo que honra-me no mundo” (ALIGHIERI, 2003, p. 20-21).

NOTA

Dante Alighieri (1265-1321) foi um escritor e poeta florentino. Considerado o


primeiro e maior poeta italiano.

FONTE: Disponível em: <https://www.pinterest.co.kr/goth/dante-alighieri/>. Acesso


em: 10 out. 2017.

Você percebeu como o poeta se refere a Virgílio como um modelo, como


uma influência? Em suas palavras, como uma “fonte donde em rio caudal brota
a eloquência”? Como o poeta reconhece em Virgílio um “mestre, o modelo sem
segundo”? Observe agora as primeiras estrofes de Os Lusíadas, de Camões:

As armas e os Barões assinalados


Que da Ocidental praia Lusitana
Por mares nunca de antes navegados
Passaram ainda além da Taprobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana,
E entre gente remota edificaram
Novo Reino, que tanto sublimaram;

E também as memórias gloriosas


Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valorosos
Se vão da lei da Morte libertando,
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.

167
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Cessem do sábio Grego e do Troiano


As navegações grandes que fizeram;
Cale-se de Alexandro e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram;
Que eu canto o peito ilustre Lusitano,
A quem Netuno e Marte obedeceram.
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se levanta (CAMÕES, 1979, p. 29-31).

NOTA

Luís Vaz de Camões (1524-1580) foi um poeta português. Escreveu poesia épica,
lírica e dramática. Considerado um dos maiores escritores da tradição ocidental.

FONTE: Disponível em: <http://simoesdealmeida.weebly.com/escultura.html>.


Acesso em: 10 out. 2017.

Apesar de Camões conclamar que “Cessem do sábio Grego e do Troiano


as navegações grandes que fizeram” e reiterar: “Cesse tudo o que a Musa antiga
canta, que outro valor mais alto se levanta”, como uma forma de exaltação da
nacionalidade portuguesa e da empresa colonialista de Portugal, você notou que
os primeiros versos de Os Lusíadas praticamente repetem os primeiros versos da
Eneida, de Virgílio?

168
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

É ainda a Eneida, de Virgílio, que, no século XVIII, veremos figurar na


epígrafe de O Uraguai (1769), de Basílio da Gama (1740-1795), epopeia colonial
do Arcadismo brasileiro:

At specus, et Caci detecta apparuit ingens


Regia et umbrosae penitus patuere cavernae
O texto latino narra o momento em que se conta para Eneias
como  Hércules  matou o  gigante  Caco, que oprimia os povos nativos da
Arcádia. Traduzidos:

Mas a caverna, e o imenso reino de Caco apareceu


descoberto, e o sombrio inferno se abriu por completo

Os versos de Virgílio permitem compreender, em confronto com a epopeia


de Basílio da Gama, o sentido da epígrafe enquanto metáfora da opressão dos
povos indígenas, uma vez que O Uraguai narra a disputa entre índios, jesuítas e
europeus nos Sete Povos das Missões, no Rio Grande do Sul. Vejamos os primeiros
versos de O Uraguai:

Fumam ainda nas desertas praias


Lagos de sangue tépidos e impuros
Em que ondeiam cadáveres despidos,
Pasto de corvos. Dura inda nos vales
O rouco som da irada artilheria.
MUSA, honremos o Herói que o povo rude
Subjugou do Uraguai, e no seu sangue
Dos decretos reais lavou a afronta.
Ai tanto custas, ambição de império!

Observe o tom de denúncia contra a ambição imperial: “Ai tanto custas,


ambição de império!”, lamenta o poeta diante dos horrores da guerra que
descreve. A epopeia O Uraguai, de Basílio da Gama, como explica Angélica
Soares (2007, p. 38-39):

É um poema épico, composto em cinco cantos (conjuntos de estrofes)


de versos brancos e estrofação livre, no qual é narrada a expedição
de espanhóis e portugueses contra os índios e jesuítas habitantes da
Colônia de Sete Povos das Missões, do Uruguai. Segundo o Tratado de
Madri, de 1750, aquele território deveria passar a pertencer a Portugal,
em troca da Colônia do Santíssimo Sacramento, possessão portuguesa
situada em domínios espanhóis. Como os índios e os jesuítas se
recusassem a ser súditos portugueses, Portugal e Espanha, em 1752,
iniciam a expedição de conquista. O poema de Basílio da Gama versa
sobre a última fase desse fato histórico.

169
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

A outra famosa epopeia do Arcadismo brasileiro é Caramuru (1781), de


Frei Santa Rita Durão (1722-1784), cuja primeira estrofe do primeiro canto, que
apresenta a proposição da epopeia, evidencia a imitação e emulação das epopeias
latinas, deixando entrever ecos da Eneida e de Os Lusíadas:

De um varão em mil casos agitado,


Que as praias discorrendo do Ocidente,
Descobriu o Recôncavo afamado
Da capital brasílica potente:
Do Filho do Trovão denominado,
Que o peito domar soube à fera gente;
O valor cantarei na adversa sorte,
Pois só conheço herói quem nela é forte.

A respeito do poema épico de Frei Santa Rita Durão, Antonio Candido


(2002, p. 8) observa que:

O Caramuru pode ser considerado uma epopeia do tipo que se


chamaria hoje colonialista, porque glorifica métodos e ideologias que
censuramos até no passado. Mas que ainda são aceitos recomendados
e praticados pelos amigos da ordem a todo preço, entre os quais
se alinharia o nosso velho Durão, que era filho de um repressor de
quilombos e hoje talvez se situasse entre os reacionários, com todo o
seu talento, cultura e paixão.

Tendo identificado a posição socioideológica do autor de Caramuru,


Frei Santa Rita Durão, Candido (2002, p. 8) constata a diferença entre as duas
epopeias brasileiras mencionadas: “Como sabemos, o Caramuru é uma resposta
ao O Uraguai, cujo pombalismo ilustrado estava mais perto daquilo que no
tempo era progresso. Mesmo sendo progresso de déspota esclarecido, useiro da
brutalidade e do arbítrio” (CANDIDO, 2002, p. 8). O autor ainda descreve Frei
Santa Rita Durão como um “poeta da guerra e da imposição cultural”, ao passo
que Basílio da Gama, segundo Candido, “não simpatiza” com a guerra que narra,
“lamentando a necessidade cruel da razão de Estado”:

Como se sabe, a finalidade expressa do Caramuru é descrever o início da


colonização da Bahia, por obra sobretudo de Diogo Álvares Correia e sua
mulher, Paraguaçu. Simultaneamente, há um desígnio mais
importante para o poeta: a redenção do índio pela conversão. Mas na
perspectiva de hoje o resultado final se traduz no choque das culturas,
que caracteriza o processo colonizador, justificado pelos dois desígnios
(CANDIDO, 2002, p. 11-12).

170
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

DICAS

Caramuru, personagem histórico batizado Diogo Álvares Correia (1475-1557),


um náufrago português que viveu entre os índios brasileiros, e que é o protagonista do
poema épico de Frei Santa Rita Durão, é o personagem do filme de comédia “Caramuru – A
invenção do Brasil” (2001), dirigido por Guel Arraes.

FONTE: Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Caramuru_-_A_Inven%C3%A7%C3%A3o_


do_Brasil>. Acesso em: 10 out. 2017.

Podemos, portanto, identificar nas epopeias coloniais brasileiras as


características da poesia épica elencadas por Moisés (1999, p. 184), tais como
o tema bélico, os acontecimentos históricos, o heroísmo, bem como o “caráter
heroico, grandioso e de interesse nacional e social”, confirmado por Soares
(2007), como vimos antes. Essas características da poesia épica, associadas com
a sua função de exaltação nacional e imperial, nesse caso, da empresa colonial
portuguesa, são relativizadas por Antonio Candido ao mesmo tempo que
reconhece nelas uma contribuição para a configuração da literatura brasileira
por meio da incorporação de peculiaridades locais, como o nativismo e o que,
posteriormente, com o Romantismo, seria denominado indianismo. Podemos
perceber a perspectiva de Antonio Candido nesta passagem a respeito do trecho
que denomina “Sono de Paraguaçu”, de Caramuru:

Este trecho exemplifica uma das contribuições dos poetas daquele tempo
para a configuração da nossa literatura: inserir as peculiaridades
locais num sistema expressivo tradicional, que as incorporasse à
civilização colonizadora. Foi o que fizeram o Uraguai e o Caramuru.
O índio e a natureza, tratados literariamente, importavam numa
espécie de integração do mundo americano à expressão culta das
fontes civilizadoras, sublimando o esmagamento das culturas locais.
Ao mesmo tempo importavam em renovar os símbolos cansados
da tradição de origem clássica, levando ao patrimônio comum da
literatura ocidental a perspectiva de um temário novo e uma nova
forma (CANDIDO, 2002, p. 17).

171
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

O Romantismo, a propósito, desempenha um papel importante na


trajetória do gênero épico, uma vez que, como observa Vitor Manuel de Aguiar
e Silva (1976, p. 260), “quando o romantismo se revela nas literaturas europeias,
já o romance conquistara, por direito próprio, a sua alforria e já era lícito falar de
uma tradição romanesca”:

Com o romantismo, por conseguinte, a narrativa romanesca afirma-


se decisivamente como uma grande forma literária, apta a exprimir
os multiformes aspectos do homem e do mundo: quer como romance
psicológico, confissão e análise das almas [...], quer como romance
histórico, ressurreição e interpretação de épocas pretéritas [...], quer
como romance poético e simbólico [...], quer como romance de análise
e crítica da realidade social contemporânea (SILVA, 1976, p. 261).

É justamente nesse contexto que G. W. F. Hegel (2010, p. 490), ao propor


uma evolução histórica do gênero épico, compreende o romance, que denomina
como a “epopeia burguesa moderna”, como uma ramificação do gênero épico. O
que define o “caráter épico”, o “tom épico”, em conformidade com a variedade
e pluralidade constatada por Aristóteles, como vimos antes, é a “totalidade”, ou
seja, o épico apresenta “uma esfera definida da vida real, com os aspectos, as
direções, os acontecimentos, os deveres etc. que comporta”, retirando seus temas
“da natureza e da vida humana”, de modo a promover uma “união mais estreita
da poesia com a realidade”: “É portanto o conjunto da concepção do mundo e
da vida de uma nação que, apresentado sob a forma objetiva dos acontecimentos
reais, constitui o conteúdo e determina a forma do épico propriamente dito”,
conclui Hegel (2010, p. 442-443).

Assim, Hegel (2010, p. 450) resume a obra épica como “uma ação cujas
ramificações se confundem com a totalidade da sua época e da vida nacional;
portanto, uma ação que só pode ser concebida mergulhada no seio de um mundo
amplo e que comporta, por conseguinte, a descrição de toda a realidade de que
faz parte”. Como podemos perceber, para Hegel (2010, p. 477), a obra épica se
caracteriza, pois, por uma “multiplicidade” subordinada a uma “unidade concreta”,
uma vez que “o conteúdo de uma obra épica é o todo de um mundo em que se
realiza uma ação individual”, e são as transformações sociais que, diminuindo a
extensão da ação individual, inviabilizariam a epopeia no mundo moderno:

As condições da vida moral, os laços familiares, a solidariedade do


povo, enquanto nação, na guerra e na paz, devem já existir, e ter
mesmo atingido um certo grau de desenvolvimento, sem ter ainda
assumido inteiramente a forma de preceitos, deveres e leis de caráter
geral desprovidos de toda a particularidade subjetiva e mantendo a
sua autoridade perante a vontade individual. Pelo contrário, são o
sentimento do direito e da justiça, a moralidade dos costumes, a alma e
o caráter que devem estar na origem de tudo e servir de suporte à vida
familiar, social e política, antes que ela tenha adquirido a forma de uma
realidade prosaica, capaz de se opor à maneira de pensar e sentir dos
indivíduos. Uma constituição demasiado sólida do Estado, com leis
minuciosamente elaboradas, com uma justiça presente por toda parte,
uma administração bem organizada, com ministérios, chancelarias,
polícia etc., não pode ministrar temas compatíveis com a poesia épica.

172
TÓPICO 1 | O GÊNERO ÉPICO 

É certo que as condições da moralidade e do direito devem estar bem


consolidadas, mas só pelos próprios indivíduos ativos e pelo seu
caráter, e não de um modo geral e sob uma forma que pretende ter
em si mesma a sua justaposição. Assim encontramos na poesia épica
não só a identidade substancial da vida e da atividade objetivas, mas
também a liberdade nas manifestações desta vida e desta atividade,
liberdade que as faz parecer uma emanação da vontade subjetiva dos
indivíduos (HEGEL, 2010, p. 450-451).

Com a “organização do Estado moderno” e “as maneiras de pensar


individuais”, segundo Hegel, não há lugar para o herói tipicamente épico. No
entanto, a “totalidade”, que unifica a variedade e multiplicidade da realidade
representada, o aspecto regular e unificado da epopeia que depende, segundo
Hegel (2010, p. 490), da “visão total do mundo”, permanece nos gêneros
narrativos. Afinal, a “objetividade” do gênero épico se estende a outros “gêneros
secundários”, enquanto “ramificações” do gênero épico, a exemplo do romance,
a “epopeia burguesa moderna”, nas palavras de Hegel (2010, p. 490). Segundo
Hegel (2010, p. 492), no romance “vemos reaparecer a riqueza e a variedade de
interesses, de estado, de caracteres, de condições de vida, assim como todo o
plano de fundo de um mundo total e a descrição épica de acontecimentos”. O
romance descreve, como a epopeia, “uma visão total do mundo e da vida”, mas
pressupõe “uma realidade já prosaica”.

Essa perspectiva que, como vimos antes, influencia a teoria do romance


de Lukács, é assinalada por Angélica Soares (2007, p. 42):

A epopeia que, segundo Lukács, corresponde a um tempo anterior


ao da consciência individual e, portanto, voltado para o destino de
uma coletividade, não se manteve em nossa época, que se caracteriza
sobretudo pelo individualismo e pelo investimento nos domínios do
inconsciente humano. O sentido do épico, no entanto, se manifesta
toda vez que se tem a intenção de abarcar a multiplicidade dinâmica
da realidade em uma só obra, criando-se uma unidade.

Nesse sentido, Hegel (2010, p. 509) identifica o épico nos tempos modernos
não mais na epopeia:

Se pretendemos encontrar nos tempos modernos obras


verdadeiramente épicas, devemos procurá-las numa esfera diferente
da epopeia propriamente dita. O estado do mundo moderno é, com
efeito, de tal prosaísmo que o opõe uma recusa absoluta às condições
que, segundo nós, a verdadeira poesia épica deve preencher.
 
Por isso, como sugere Hegel (2010, p. 509), “a poesia épica, renunciando
aos grandes acontecimentos nacionais, refugiou-se na esfera mais estreita e
limitada dos acontecimentos domésticos, no campo e nas pequenas cidades,
para nela encontrar temas próprios para uma exposição épica”. E, finalmente,
Hegel (2010, p. 510) conclui constatando que “nas outras esferas da vida nacional
e social dos nossos dias abriu-se um campo ilimitado, no domínio épico, para o
romance, o conto e a novela”.

173
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

NOTA

No romance moderno, o Ulisses, de James Joyce, indica um sintoma do


processo descrito por Hegel. O romance de Joyce recria a epopeia Odisseia, de Homero,
condensando as aventuras de Ulisses em algumas horas da vida do agente de publicidade
Leopold Bloom, protagonista de Ulisses.

174
RESUMO DO TÓPICO 1

Neste tópico, você aprendeu que:

• O gênero épico surge na Antiguidade grega com as epopeias de Homero.

• O gênero épico se caracteriza pela narração, definida pela enunciação de um


narrador e de personagens.

• O gênero épico se caracteriza por sua longa extensão e pelo caráter elevado e
solene.

• O gênero épico narra temas heroicos, míticos e históricos, que representam os


mitos de fundação das nações.

• A epopeia se estrutura em proposição, invocação, dedicatória, narração e


remate, ou simplesmente em proposição, narração e epílogo.

• O épico compreende a complexidade do mundo e da vida que narra, tendo


legado essa característica aos gêneros narrativos, especialmente o romance.

175
AUTOATIVIDADE

1 Assista ao filme Terra estrangeira (1996), dirigido por Walter Salles e Daniela
Thomas, e reflita sobre a permanência intertextual de elementos narrativos,
tais como motivos, imagens e temas provenientes das epopeias, como
as viagens, o retorno para casa, os navios como metáforas das nações, a
expansão imperial, a colonização e a exploração e assim por diante. Qual o
significado de tais elementos a partir de sua perspectiva?

2 “A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene,


especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a
acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que o lendário
se forme ou/e permita que o poeta lhe acrescente com liberdade o produto
da sua fantasia; o protagonista da ação há de ser um herói de superior força
física e psíquica, embora de constituição simples, instintivo, natural; o amor
pode inserir-se na trama heroica, mas em forma de episódios isolados; e,
sendo terno e magnânimo, complementar harmonicamente as façanhas de
guerra” (MOISÉS, 1999, p. 184).

Considerando as explicações do texto acima, avalie os fragmentos a


seguir que se configuram como poesia épica:

I- Musa, as causas me aponta, o ofenso nume,/ Ou por que mágoa a soberana


deia/ Compeliu na piedade o herói famoso/ A lances tais passar, volver tais
casos./ Pois tantas iras em celestes peitos!
II- Eu agora — que desfecho! / Já nem penso mais em ti… / Mas será que nunca
deixo/ De lembrar que te esqueci?
III- Canta, ó Musa, o varão que astucioso,/ Rasa Ílion santa, errou de clima em
clima,/ Viu de muitas nações costumes vários.
IV- Na planície avermelhada os juazeiros alargavam duas manchas verdes.
Os infelizes tinham caminhado o dia inteiro, estavam cansados e famintos.
Ordinariamente andavam pouco, mas como haviam repousado bastante
na areia do rio seco, a viagem progredira bem três léguas. Fazia horas que
procuravam uma sombra. A folhagem dos juazeiros apareceu longe, através
dos galhos pelados da catinga rala.
V- As armas e os Barões assinalados/ Que da Ocidental praia Lusitana/ Por
mares nunca de antes navegados/ Passaram ainda além da Taprobana,/ Em
perigos e guerras esforçados/ Mais do que prometia a força humana,/ E entre
gente remota edificaram / Novo Reino, que tanto sublimaram.

São poemas épicos os fragmentos em:

a) ( ) I e II
b) ( ) II e IV
c) ( ) I, III e V
d) ( ) II, IV e V
e) ( ) III e IV
176
UNIDADE 3
TÓPICO 2

O GÊNERO NARRATIVO

1 INTRODUÇÃO
No Tópico 1, você viu que a literatura se constitui como um campo
privilegiado para a compreensão da realidade, especialmente porque estabelece
relações com diferentes campos do conhecimento. E que o gênero narrativo
se revela como um gênero apropriado para tanto, na medida em que permite
representar ou apresentar a complexidade da realidade pela variedade ou
pluralidade que o caracteriza.

Você viu ainda que o gênero épico, que origina, se não equivale ao gênero
narrativo, se caracteriza pela narração, ou seja, pela enunciação de um narrador e
de personagens, compreendendo a complexidade do mundo e da vida que narra,
característica possibilitada justamente pela narração, como já notava Aristóteles,
e que é transmitida ao gênero narrativo.

A partir deste segundo tópico você irá se aprofundar no gênero narrativo,


estudando suas características, seus tipos, como o romance, o conto, a novela e
a crônica, e os seus elementos constitutivos, como enredo, personagem, tempo,
espaço e, finalmente, narrador. Ao final deste tópico, você estará ambientado com
o gênero narrativo.

Vamos lá?

177
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2 O GÊNERO NARRATIVO
O gênero narrativo, que, etimologicamente, remete ao ato de narrar
acontecimentos reais ou ficcionais, consiste em uma ramificação do gênero épico,
sendo, no entanto, escrito em prosa. A prosa, genericamente entendida como oposta
ao verso, como nota Marjorie Boulton (1968 apud MOISÉS, 1999, p. 418), apresenta,
a partir de uma sistematização tradicional, a narrativa, distinta da demonstrativa,
como um tipo que compreende a prosa de ficção. A partir de outra sistematização
igualmente tradicional, a prosa se divide em cinco modalidades segundo sua
função, entre as quais a narrativa, compreendida igualmente como prosa de ficção.

A distinção entre prosa e poesia, contudo, apresenta problemas, como


demonstra Umberto Eco, ao procurar diferenciar modelos de prosa e de
poesia, concluindo que “os modelos, inclusive os de modalidade poética e de
modalidade prosaica, são exatamente modelos, e se realizam depois, de maneira
combinada dentro de contextos chamados poesia ou prosa de acordo com a
absoluta predominância, não a exclusividade, de um dos dois” (ECO, 1989, p.
248). Da mesma maneira que a definição de prosa, a definição da narrativa impõe
dificuldades, como observa Gérard Genette (2008, p. 265):
Caso se aceite, por convenção, permanecer no domínio da expressão
literária, definir-se-á sem dificuldade a narrativa como a representação
de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou
fictícios, por meio da linguagem e, mais particularmente, da linguagem
escrita. Esta definição positiva (e corrente) tem o mérito da evidência
e da simplicidade; seu inconveniente principal é talvez, justamente,
encerrar-se e encerrar-nos na evidência, mascarar aos nossos olhos aquilo
que precisamente, no ser mesmo da narrativa, constitui um problema e
dificuldade, apagando de certo modo as fronteiras do seu exercício, as
condições de sua existência. Definir positivamente a narrativa é acreditar,
talvez perigosamente, na ideia e no sentimento de que a narrativa
é evidente, de que nada é mais natural do que contar uma história ou
arrumar um conjunto de ações em um mito, um conto, uma epopeia, um
romance. A evolução da literatura e a consciência literária terão tido, entre
outras felizes consequências, a de chamar a atenção, bem ao contrário,
sobre o aspecto singular, artificial e problemático do ato narrativo.

Ao contestar a naturalidade da narrativa, Genette (2008, p. 266) incita


“a reconhecer os limites de certo modo negativos da narrativa, a considerar
os principais jogos de oposição por meio dos quais a narrativa se define” em
oposição aos demais discursos que circulam socialmente, especialmente aqueles
que reivindicam uma condição de verdade natural.

Genette (2008, p. 284) conclui conjeturando que “talvez a narrativa”,


na “singularidade negativa” em que a reconhece, represente “uma coisa do
passado”, que julga preciso considerar “antes que tenha desertado completamente
nosso horizonte”. A questão de Genette recorda a questão colocada antes por
Walter Benjamin (1994, p. 197) ao constatar que “a arte de narrar está em vias
de extinção”. Para Benjamin (1994, p. 198), a “fonte a que recorrem todos os
narradores”, ou seja, “a experiência que passa de pessoa a pessoa” está “em

178
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

baixa”, mas Benjamin se refere a uma modalidade de narração que preserva uma
relação com as “histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos”,
cujos tipos arcaicos são representados, conforme Benjamin (1994, p. 198-199), pelo
“camponês sedentário” e pelo “marinheiro comerciante”: “A arte de narrar está
definhando porque a sabedoria – o lado épico da verdade – está em extinção”,
postula Benjamin (1994, p. 200-201).

Sem lamentos e sem nostalgias, Benjamin (1994, p. 201) afirma que “esse
processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao
mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido
concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas”. Esse
processo resulta no surgimento do romance que, na perspectiva de Benjamin, se
diferencia das demais formas narrativas por não manter relações com a tradição oral:

O primeiro indício da evolução que vai culminar na morte da narrativa


é o surgimento do romance no início do período moderno. O que separa
o romance da narrativa (e da epopeia no sentido estrito) é que ele está
essencialmente vinculado ao livro. A difusão do romance só se torna
possível com a invenção da imprensa. A tradição oral, patrimônio da
poesia épica, tem uma natureza fundamentalmente distinta da que
caracteriza o romance. O que distingue o romance de todas as outras
formas de prosa – contos de fada, lendas e mesmo novelas – é que
ele nem precede da tradição oral nem a alimenta. Ele se distingue,
especialmente, da narrativa. O narrador retira da experiência o que ele
conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora
as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes. O romancista
segrega-se. A origem do romance é o indivíduo isolado, que não pode
mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes
e que não recebe conselhos nem sabe dá-los (BENJAMIN, 1994, p. 201).

Ao preservar, portanto, a relação entre o gênero épico e o gênero narrativo,


Benjamin diferencia o romance da narrativa justamente por estar vinculado ao
seu suporte escrito, o livro, possibilitado pela invenção da imprensa, enquanto
o gênero narrativo permaneceria associado com a tradição oral. “Devemos
imaginar a transformação das formas épicas segundo ritmos comparáveis aos que
presidiram à transformação da crosta terrestre no decorrer dos milênios”, compara
Benjamin (1994, p. 202), reiterando que “poucas formas de comunicação humana
evoluíram mais lentamente”. Assim, o romance, embora compreendido como uma
forma narrativa, se distinguiria dela, segundo Benjamin, pelas particularidades das
condições de produção que refletem na escrita do romance tal como se consolida com
a ascensão da burguesia: “O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade,
precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos
favoráveis a seu florescimento” (BENJAMIN, 1994, p. 202).

Apesar de suas particularidades, convencionalmente, o romance constitui


uma forma do gênero narrativo, e talvez a forma mais representativa da
modernidade. Vejamos agora as características do gênero narrativo, os principais
tipos de narrativa e os elementos constitutivos da narrativa.

179
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2.1 CARACTERÍSTICAS DO GÊNERO NARRATIVO


Vimos antes que as epopeias de Homero representam as “primeiras
manifestações” da “forma épica de narrar”, e que “nelas situam-se também as fontes
do gênero narrativo” (SOARES, 2007, p. 39). Vimos ainda que, ao analisar as epopeias
de Homero, Aristóteles destaca a narração e a imitação do discurso dos personagens
pelo narrador, bem como a possibilidade de apresentar “muitas ações realizadas
simultaneamente” (ARISTÓTELES, 2008, p. 94), justamente por meio da narração.

Vejamos agora como essas características permanecem no gênero


narrativo, analisando, para tanto, um fragmento de um conhecido romance:

Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no


trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu.
Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da Lua e dos ministros,
e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que
não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado,
fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a
leitura e metesse os versos no bolso.

– Continue, disse eu acordando.


– Já acabei, murmurou ele.
– São muito bonitos.

Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou
do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios,
e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos
meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou.
Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por
graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: "Dom Casmurro, domingo vou
jantar com você”. – "Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma
da Renânia; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns
quinze dias comigo”. – "Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso
do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe
chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça”.

Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles
lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom
veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando!
Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro
daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo
que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá
cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores;
alguns nem tanto.

FONTE: ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.


br/download/texto/ua000194.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

180
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

Como podemos perceber, temos o relato de um evento situado


temporalmente e espacialmente, relatado da perspectiva de um narrador, que,
neste caso, consiste em um personagem que narra em primeira pessoa, mas que
apresenta, ao mesmo tempo, os discursos das personagens. Na narração, os tipos
de discurso consistem na forma como o narrador apresenta os enunciados dos
personagens, de forma direta, indireta ou ambas. Assim, temos:

Discurso direto: apresentação direta e integral do enunciado das


personagens por meio da transcrição da fala demarcada por sinais de pontuação
e verbos de elocução. Exemplo:

– Continue, disse eu acordando.


– Já acabei, murmurou ele.
– São muito bonitos.

Discurso indireto: apresentação indireta do enunciado das personagens,


de modo que o narrador intermedeia a fala, reproduzida em seu discurso.
Exemplo:

Capitu um dia notou a diferença, dizendo que os dela eram mais bonitos
que os meus; eu, depois de certa hesitação, disse-lhe que eram como a pessoa que
sonhava... Fez-se cor de pitanga.

Discurso indireto livre: apresentação do enunciado ou do pensamento


das personagens por meio de sua inserção no discurso do narrador, de modo
que, como que fundindo discurso direto e indireto, parece se confundir com o
discurso das personagens. Exemplo:

Minha mãe foi achá-lo à beira do poço, e intimou-lhe que vivesse. Que
maluquice era aquela de parecer que ia ficar desgraçado, por causa de uma
gratificação menor, e perder um emprego interino? Não, senhor, devia ser
homem, pai de família, imitar a mulher e a filha...

O gênero narrativo se caracteriza, portanto, pelo relato, por parte de um


narrador (ou mais de um), de fatos reais ou ficcionais, organizados discursivamente
a partir de elementos que desempenham funções primordiais na narração, tais
como enredo, personagem, tempo, espaço e narrador, os quais estudaremos
adiante. Antes de estudarmos os elementos constitutivos da narrativa, vejamos
os seus principais tipos.

181
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2.2 OS TIPOS DE NARRATIVAS


O gênero narrativo se subdivide em diferentes tipos de narrativa, entre os
quais se destacam o romance, a novela, o conto e a crônica.

O romance

Jacques Gaillard (1997) situa o surgimento do romance na Antiguidade, em


um texto que, como afirma, foi esquecido pela teoria do romance, apesar de apresentar
aspectos recorrentemente associados com o romance, como o realismo cotidiano:

O Satiricon de Petrônio é, pelo que se pode observar, o primeiro texto


ao qual se pode dar o nome de “romance” na história da literatura.
Os teóricos do gênero – Lukács, por exemplo – não levaram em conta,
como tampouco os romances gregos (sem dúvida, posteriores), o que
é um grave erro, posto que toda uma tendência do romance/novela do
século XVII, por exemplo, se inspira abertamente nestes textos antigos.
Diremos para recordar que novela picaresca implica, por definição,
histórias de bandidos, e os romances antigos, latinos ou gregos, fazem
desta violência um dos motores da intriga; do mesmo modo, conferem
às mulheres (e à relação amorosa ou hostil, entre homens e mulheres)
um papel que não existia na historiografia, mas que alcançará grande
fortuna no romance do futuro. Poderíamos citar muitos outros indícios
aqui (GAILLARD, 1997, p. 88).

Confirmando a acusação de Gaillard, Angélica Soares reitera a compreensão


dos historiadores da literatura que situam o surgimento do romance depois da
Antiguidade:
Não tendo existido na Antiguidade, essa forma narrativa aparece
na Idade Média, com o romance de cavalaria, já como ficção sem
nenhum compromisso com o relato de fatos históricos passados.
No Renascimento, aparece como romance pastoril e sentimental,
logo seguido pelo romance barroco, de aventuras complicadas e
inverossímeis, bem diferente do romance picaresco, da mesma época.
Li, no entanto, em D. Quixote, de Cervantes, que podemos localizar
o nascimento da narrativa moderna que, apresentando constantes
transformações, vem se impondo fortemente, desde o século XIX,
quando — quase sempre publicada em folhetins — se caracterizou
sobretudo pela crítica de costumes ou pela temática histórica. Estas
chegam até nossos dias, juntamente com as narrativas que, nos moldes
impressionistas, são calcadas no fluxo de consciência e nas análises
psicológicas, ou as que optam por uma forma de realismo maravilhoso
ou de ficção-ensaio (SOARES, 2007, p. 42-43).

Independentemente do fato de historiadores da literatura divergirem


em relação ao surgimento do romance, o romance, como nota Soares (2007, p.
42), representa:

a forma narrativa que, embora sem nenhuma relação genética com


a epopeia (como nos demonstram as teses mais avançadas), a ela
equivale nos tempos modernos. E, ao contrário da epopeia, como
forma representativa do mundo burguês, volta-se para o homem
como indivíduo.

182
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

Cândida Vilares Gancho (2002, p. 7) resume o romance como: “Uma


narrativa longa, que envolve um número considerável de personagens (em relação
à novela e ao conto), maior número de conflitos, tempo e espaço mais dilatados”.
Ao confirmar que “este tipo de narrativa consagrou-se sobretudo no século XIX,
assumindo o papel de refletir a sociedade burguesa”, Gancho (2002, p. 7) observa:
“Podemos classificar o romance quanto à sua temática. Os tipos mais conhecidos
são de amor, de aventura, policial, ficção científica, psicológico, pornográfico etc.”.

Exemplo: Alguns exemplos de romances da literatura brasileira são:


Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida; Memórias
Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis; Grande Sertão: veredas, de
Guimarães Rosa, entre muitos outros.

A novela

Proveniente da literatura narrativa medieval, a novela designa uma


“narrativa curta, sem estrutura complicada, avessa a longas descrições” (SILVA,
1976, p. 252-253). Resumidamente, a novela consiste em uma narrativa de
extensão mediana, situada entre o romance e o conto e que, como o conto, “tende
para a conclusão”, como afirma Boris Eikhenbaum (1978 apud GOTLIB, 2006, p.
41). Nesse sentido, Nádia Battella Gotlib (2006, p. 16) observa: “Para alguns, a
novela vem do italiano novella, ou seja, pequenas estórias. Em Bocaccio, a novella
era breve, não mais de dez páginas, se opondo ao romance medieval, forma mais
longa e difusa, que desenvolvia uma intriga amorosa completa”.

A novela, como explica Jolles (1972 apud SILVA, 1976, p. 253), caracteriza-
se por “contar um fato ou um incidente impressionantes, de tal modo que se
tivesse a sensação de um acontecimento real e que esse incidente nos parecesse
mais importante do que as personagens que o vivem”. Conforme resume Gancho
(2002, p. 7-8), a novela:

é um romance mais curto, isto é, tem um número menor de personagens,


conflitos e espaços, ou os tem em igual número ao romance, com
a diferença de que a ação no tempo é mais veloz na novela. Difere
em muito da novela de TV, a qual tem uma série de casos (intrigas)
paralelos e uma infinidade de momentos de clímax.

Exemplo: Um bom exemplo de novela na literatura brasileira é O alienista,


de Machado de Assis.

183
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

O conto

O conto consiste em uma narrativa curta que, em geral, gira em torno de


apenas um conflito, com poucos personagens. Conforme explica Cândida Vilares
Gancho (2002, p. 8):

É uma narrativa mais curta, que tem como característica central


condensar conflito, tempo, espaço e reduzir o número de personagens.
O conto é um tipo de narrativa tradicional, isto é, já adotado por
muitos autores nos séculos XVI e XVII, como Cervantes e Voltaire,
mas que hoje é muito apreciado por autores e leitores, ainda que
tenha adquirido características diferentes, por exemplo, deixar de
lado a intenção moralizante e adotar o fantástico ou o psicológico para
elaborar o enredo.

Ao teorizar o conto em sua situação narrativa, ao lado do romance


e da novela, Nádia Battella Gotlib (2006) lembra que a necessidade de contar,
que fundamenta os diferentes tipos narrativos, antecede a necessidade de sua
explicação, de modo que “enumerar as fases da evolução do conto seria percorrer
a nossa própria história” (GOTLIB, 2006, p. 7).

Embora o início do contar estória seja impossível de se localizar e


permaneça como hipótese que nos leva aos tempos remotíssimos,
ainda não marcados pela tradição escrita, há fases de evolução dos
modos de se contarem estórias. Para alguns, os contos egípcios – Os
contos dos mágicos – são os mais antigos: devem ter aparecido por
volta de 4000 anos antes de Cristo (GOTLIB, 2006, p. 7).

Ao constatar uma transição no século XIV, Gotlib (2006, p. 8-9) apresenta


um resumo da história do conto enquanto registro escrito:

Se o conto transmitido oralmente ganhara o registro escrito, agora vai


afirmando a sua categoria estética. Os contos eróticos de Bocaccio,
no seu Decameron (1350), são traduzidos para tantas outras línguas e
rompem com o moralismo didático: o contador procura elaboração
artística sem perder, contudo, o tom da narrativa oral. E conserva o
recurso das estórias de moldura: são todas unidas pelo fato de serem
contadas por alguém a alguém. E os Canterbury tales (1386), de Chaucer,
são contados numa estalagem por viajantes em peregrinação.
Posteriormente, o século XVI mostra o Héptameron (1558), de
Marguerite de Navarre. E no século XVII surgem as Novelas ejemplares
(1613), de Cervantes. No fim do século surgem os registros de contos
por Charles Perrault: Histoires ou contes du temps passé, com o subtítulo
de “Contes de ma mère Loye”, conhecidos como Contos da mãe Gansa.
Se o século XVIII exibe um La Fontaine, exímio no contar fábulas, no
século XIX o conto se desenvolve estimulado pelo apego à cultura
medieval, pela pesquisa do popular e do folclórico, pela acentuada
expansão da imprensa, que permite a publicação dos contos nas
inúmeras revistas e jornais. Este é o momento de criação do conto
moderno quando, ao lado de um Grimm que registra contos e inicia
o seu estudo comparado, um Edgar Allan Poe se afirma enquanto
contista e teórico do conto.

184
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

Portanto, enquanto a força do contar estórias se faz, permanecendo,


necessária e vigorosa, através dos séculos, paralelamente uma outra
história se monta: a que tenta explicitar a história destas estórias,
problematizando a questão deste modo de narrar — um modo de
narrar caracterizado, em princípio, pela própria natureza desta
narrativa: a de simplesmente contar estórias.

O conto se caracteriza, portanto, pela economia de estilo e de extensão,


com destaque, em geral, para a conclusão. Em poucas palavras, “é uma forma
breve”, resume Gotlib (2006, p. 83), que se constrói “economizando meios
narrativos, mediante contração de impulsos, condensação de recursos, tensão das
fibras do narrar”.

Exemplo: Alguns contistas da literatura brasileira são: Rubem Fonseca,


Machado de Assis, Clarice Lispector, Mário de Andrade, Dalton Trevisan, entre
muitos outros. Para conhecer mais sobre contos brasileiros, sugerimos a antologia
“Os cem melhores contos brasileiros do século”, organizada por Italo Moriconi.

A crônica

A crônica consiste em uma narrativa breve que tem por objetivo comentar
algo do cotidiano, a partir da perspectiva pessoal do cronista. Segundo Gancho
(2002, p. 8): “Por se tratar de um texto híbrido, nem sempre apresenta uma
narrativa completa; uma crônica pode contar, comentar, descrever, analisar. De
qualquer forma, as características distintivas da crônica são: texto curto, leve, que
geralmente aborda temas do cotidiano”.

Soares (2007, p. 64) situa a ruptura entre o sentido de crônica “no início
da era cristã”, quando o termo designava “uma relação de acontecimentos
organizada cronologicamente, sem nenhuma participação do cronista”, e no
século XIX, quando “a crônica já apresenta um trabalho literário que a aproxima
do conto e do poema, impondo-se, porém, como uma forma especial, porque não
se permite classificar como aqueles”. Soares (2007, p. 64-65) explica:

Ligada ao tempo (chrónos), ou melhor, ao seu tempo, a crônica o


atravessa por ser um registro poético e muitas vezes irônico, através do
que se capta o imaginário coletivo em suas manifestações cotidianas.
Polimórfica, ela se utiliza afetivamente do diálogo, do monólogo,
da alegoria, da confissão, da entrevista, do verso, da resenha, de
personalidades reais, de personagens ficcionais..., afastando-se
sempre da mera reprodução de fatos. E enquanto literatura, ela capta
poeticamente o instante, perenizando-o.
Conscientemente fragmentária (e essa é a sua força), pois não pretende
captar a totalidade dos fatos, a crônica vem se impondo nos quadros da
literatura brasileira, cultivada que foi por um Machado de Assis (ainda
quando era conhecida como "folhetim"), Olavo Bilac e João do Rio.
Sobressaem-se, entre os cronistas mais recentes, Carlos Drummond de
Andrade, Eneida, Millôr Fernandes, Fernando Sabino, Paulo Mendes
Campos, Rubem Braga, Sérgio Porto.

185
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Exemplo: Alguns cronistas da literatura brasileira são: Rubem Braga, Luis


Fernando Verissimo, Nelson Rodrigues, Mário de Andrade, Fernando Sabino,
Lygia Fagundes Telles, Clarice Lispector, entre muitos outros. Para conhecer
mais sobre crônicas brasileiras, sugerimos a antologia “As cem melhores crônicas
brasileiras”, organizada por Joaquim Ferreira dos Santos.

Vejamos agora os elementos constitutivos da narrativa.

2.3 OS ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA NARRATIVA:


ENREDO, PERSONAGEM, TEMPO, ESPAÇO E NARRADOR
As narrativas, como vimos, se estruturam sobre elementos que a
constituem, e que se relacionam entre si, de modo que, como observa Tzvetan
Todorov (2008, p. 230), “o sentido de cada elemento da obra equivale ao conjunto
de suas relações com os outros”.

Estudaremos agora os elementos constitutivos da narrativa, ou seja,


enredo, personagem, tempo, espaço e, finalmente, narrador. Para tanto, leiamos
o conto “Desenredo”, de João Guimarães Rosa:

Desenredo

Do narrador a seus ouvintes:

– Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da


cerveja. Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão
dormir, e Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta
observação, a Jó Joaquim apareceu.

Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada.
Sorriram-se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor.
Enfim, entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tingida a vela e
vento. Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.

Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias


são a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme
o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo
abismo é navegável a barquinhos de papel.

Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo


só retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam
eles de enorme milagre. O inebriado engano.

186
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas.


Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais
lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a
ferira, leviano modo.

Jó Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e


foi para o decúbito dorsal, por dores, frios, calores, quiçá lágrimas, devolvido
ao barro, entre o inefável e o infando. Imaginara-a jamais a ter o pé em três
estribos; chegou a maldizer de seus próprios e gratos abusufrutos. Reteve-se
de vê-la. Proibia-se de ser pseudopersonagem, em lance de tão vermelha e
preta amplitude.

Ela – longe – sempre ou ao máximo mais formosa, já sarada e sã. Ele


exercitava-se a aguentar-se, nas defeituosas emoções.

Enquanto, ora, as coisas amaduravam. Todo fim é impossível? Azarado


fugitivo, e como à Providência praz, o marido faleceu, afogado ou de tifo. O
tempo é engenhoso.

Soube-o logo Jó Joaquim, em seu franciscanato, dolorido mas já


medicado. Vai, pois, com a amada se encontrou – ela sutil como uma colher de
chá, grude de engodos, o firme fascínio. Nela acreditou, num abrir e não fechar
de ouvidos. Daí, de repente, casaram-se. Alegres, sim, para feliz escândalo
popular, por que forma fosse.

Mas.

Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem e


parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios.

Da vez, Jó Joaquim foi quem a deparou, em péssima hora: traído e


traidora. De amor não a matou, que não era para truz de tigre ou leão.
Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito poeta e homem. E viajou
fugida a mulher, a desconhecido destino.

Tudo aplaudiu e reprovou o povo, repartido. Pelo fato, Jó Joaquim


sentiu-se histórico, quase criminoso, reincidente. Triste, pois que tão calado.
Suas lágrimas corriam atrás dela, como formiguinhas brancas. Mas, no frágio
da barca, de novo respeitado, quieto. Vá-se a camisa, que não o dela dentro.
Era o seu um amor meditado, à prova de remorsos. Dedicou-se a endireitar-se.

Mais.

187
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

No decorrer e comenos, Jó Joaquim entrou sensível a aplicar-se, a


progressivo, jeitoso afã. A bonança nada tem a ver com a tempestade. Crível?
Sábio foi Ulisses, que começou por se fazer de louco. Desejava ele, Jó Joaquim,
a felicidade – ideia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, à conta inteira.
Incrível? É de notar que o ar vem do ar. De sofrer e amar, a gente não se desfaz.
Ele queria apenas os arquétipos, platonizava. Ela era um aroma.

Nunca tivera ela amantes! Não um. Não dois. Disse-se e dizia isso Jó
Joaquim. Reportava a lenda a embustes, falsas lérias escabrosas. Cumpria-lhe
descaluniá-la, obrigava-se por tudo. Trouxe à boca-de-cana do mundo, de
caso raso, o que fora tão claro como água suja. Demonstrando-o, amatemático,
contrário ao público pensamento e à lógica, desde que Aristóteles a fundou. O
que não era fácil como refritar almôndegas. Sem malícia, com paciência, sem
insistência, principalmente.

O ponto está em que o soube, de tal arte: por antipesquisa, acronologia


miúda, conversinhas escudadas, remendados testemunhos. Jó Joaquim,
genial, operava o passado – plástico e contraditório rascunho. Criava nova,
transformada realidade, mais alta. Mais certa?

Celebrava-a, ufanático, tendo-a por justa e averiguada, com convicção


manifesta. Haja o absoluto amar – e qualquer causa se irrefuta.

Pois, produziu efeito. Surtiu bem. Sumiram-se os pontos das reticências,


o tempo secou o assunto. Total o transato desmanchava-se, a anterior evidência
e seu nevoeiro. O real e válido, na árvore, é a reta que vai para cima, todos já
acreditavam, Jó Joaquim primeiro que todos.

Mesmo a mulher, até, por fim. Chegou-lhe lá a notícia, onde se achava,


em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura. Veio sem culpa.
Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento.

Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó Joaquim e Vilíria retomaram-


se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua útil vida.

E pôs-se a fábula em ata.


FONTE: ROSA, João Guimarães. Tutameia (Terceiras Estórias). 9. ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2009, p. 72-75.

Vejamos agora em que consiste cada um dos elementos constitutivos da


narrativa.

188
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

Enredo

Você percebeu que o conto é constituído de uma sequência de ações? Tais


como: a) o encontro entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; b) o caso amoroso
entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; c) o flagra do marido de Livíria,
Rivília ou Irlívia com um outro amante; d) a morte do marido; e) o casamento
entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou Irlívia; f) o novo flagra de uma traição
de Livíria, Rivília ou Irlívia; g) a separação de Jó Joaquim e Livíria, Rivília ou
Irlívia; h) o perdão de Jó Joaquim; i) a recriação do passado pelo protagonista; j)
e, finalmente, a reconciliação? Você percebeu que todas essas ações são realizadas
por personagens? E que as ações dos personagens são contadas por um narrador?

Pois bem, o enredo consiste no resultado da ação das personagens,


apresentada por meio do discurso narrativo, ou seja, do modo como o narrador
organiza os acontecimentos. A essa combinação das ações Aristóteles chamou
“fábula”, isto é, enredo, dividindo a ação simplesmente em princípio, meio e fim.
O “enredo é a imitação da ação, entendendo aqui por enredo a estruturação dos
acontecimentos”, explica Aristóteles (2008, p. 48), que divide o enredo em partes:
as peripécias e os reconhecimentos, estruturados em nó e desenlace: “Entendo por
nó o que vai desde o princípio até o momento imediatamente antes da mudança
para a felicidade ou para a infelicidade, e por desenlace, o que vai desde o início
desta mudança até o fim” (ARISTÓTELES, 2008, p. 74).

Nas narrativas tradicionais, representativas do momento em que a prosa


se consagra como uma forma privilegiada, frequentemente o enredo se divide em:

1) Apresentação, exposição ou situação inicial


2) Complicação
3) Clímax
4) Epílogo, desfecho ou desenlace

Na apresentação ou situação inicial, o narrador apresenta os elementos da


narrativa, como as personagens, o espaço e o tempo do enredo, uma determinada
situação historicamente situada e caracterizada geralmente pela estabilidade,
com os elementos e personagens em harmonia; na complicação, por motivação de
um fato que provoca uma transformação na situação apresentada, a estabilidade
ou harmonia inicial se quebra com o desencadeamento de conflitos que geram a
tensão; no clímax, a complicação do enredo atinge o seu ponto culminante, que
exige uma resolução; e o epílogo ou desfecho, finalmente, constitui a situação
final, decorrente das transformações provenientes das ações, informando o
destino das personagens.

189
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

ATENCAO

O conflito, como você pode presumir, exerce um papel fundamental na


narrativa, constituindo o elemento estruturador que a move. Vejamos, portanto, como
Gancho (2002, p. 11) define o conflito: “Conflito é qualquer componente da história
(personagens, fatos, ambientes, ideias, emoções) que se opõe a outro, criando uma tensão
que organiza os fatos da história e prende a atenção do leitor”.

Vejamos agora em “Desenredo” como o narrador de Guimarães Rosa


organiza o enredo: 1) A apresentação, em que o narrador apresenta a situação
inicial e os elementos da narrativa, como as personagens, pode ser identificada
nos parágrafos iniciais:

Do narrador a seus ouvintes:


- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja.
Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e
Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó
Joaquim apareceu.
Antes bonita, olhos de viva mosca, morena mel e pão. Aliás, casada. Sorriram-
se, viram-se. Era infinitamente maio e Jó Joaquim pegou o amor. Enfim,
entenderam-se. Voando o mais em ímpeto de nau tingida a vela e vento. Mas
muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas.
Porque o marido se fazia notório, na valentia com ciúme; e as aldeias são
a alheia vigilância. Então ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o
clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo é mundo. Todo
abismo é navegável a barquinhos de papel.
Não se via quando e como se viam. Jó Joaquim, além disso, existindo só
retraído, minuciosamente. Esperar é reconhecer-se incompleto. Dependiam eles
de enorme milagre. O inebriado engano.

Observe que o narrador apresenta as personagens, Jó Joaquim, Livíria,


Rivília ou Irlívia e seu marido, e a situação inicial da narrativa, ou seja, o caso entre
Jó Joaquim, Livíria, Rivília ou Irlívia. Essa situação, apesar do marido valente e
ciumento, caracteriza-se por certa estabilidade, garantida pela clandestinidade de
seu amor: “Todo abismo é navegável a barquinhos de papel”, comenta o narrador,
que antecipa, sugestivamente, uma possibilidade de transformação na situação:
“Dependiam eles de enorme milagre. O inebriado engano”.

Essa possibilidade, no entanto, não se confirma, e temos, então, 2) a


complicação: Até que – deu-se o desmastreio. O trágico não vem a conta-gotas.
Apanhara o marido a mulher: com outro, um terceiro... Sem mais cá nem mais
lá, mediante revólver, assustou-a e matou-o. Diz-se, também, que de leve a ferira,
leviano modo.

190
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

Note que o narrador, didaticamente, revela a complicação ao afirmar: “Até


que – deu-se o desmastreio”, ou seja, o contratempo. A complicação se desenvolve
com o flagra da traição de Livíria, Rivília ou Irlívia com um outro amante, não Jó
Joaquim, que, sabendo do ocorrido, afasta-se da amante. A complicação se estende
até o clímax da narrativa, compreendendo o flagra e o consequente afastamento
dos amantes, a morte do marido, que parece condizer com o “enorme milagre”
de que dependiam os amantes e, finalmente, o casamento entre os amantes.
3) O clímax ocorre com o flagra de Jó Joaquim da traição de Livíria, Rivília ou
Irlívia: Mas. Sempre vem imprevisível o abominoso? Ou: os tempos se seguem
e parafraseiam-se. Deu-se a entrada dos demônios. Da vez, Jó Joaquim foi quem
a deparou, em péssima hora: traído e traidora. De amor não a matou, que não
era para truz de tigre ou leão. Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito
poeta e homem. E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino.

O clímax compreende o flagra e a expulsão da esposa, que foge para


um “desconhecido destino”, e “Mais”, complementa o narrador, em evidente
contraste com a conjunção adversativa “Mas” que introduz o clímax: Jó Joaquim,
como Ulisses, herói da epopeia homérica, que “começou por se fazer de louco”,
redime a mulher e, desejando a felicidade, reinventa sua história: “Nunca tivera
ela amantes!”. Operando o passado, como afirma o narrador, Jó Joaquim “criava
nova, transformada realidade”, o que explica o título do conto: “desenredo”.
A referência à astúcia de Ulisses igualmente se explica: Penélope, esposa de
Ulisses, que esperava o marido retornar da Guerra de Troia e, contra a pressão
dos pretendentes para um novo casamento, prometeu que costuraria um
tapete e que, se seu marido não retornasse antes de finalizar o tapete, casaria
com um pretendente. Crente no retorno do marido, Penélope, para retardar o
cumprimento da promessa, costurava durante o dia e descosturava durante a
noite: “desenredo”.

O clímax encerra com a resolução, ou seja, a reconciliação do casal,


consolidado com o retorno de Livíria, Rivília ou Irlívia: “Chegou-lhe lá a notícia,
onde se achava, em ignota, defendida, perfeita distância. Soube-se nua e pura.
Veio sem culpa. Voltou, com dengos e fofos de bandeira ao vento”.

E, por fim, 4) o epílogo: Três vezes passa perto da gente a felicidade. Jó


Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor
de sua útil vida. E pôs-se a fábula em ata.

Como podemos perceber, no epílogo, o narrador informa o destino das


personagens ao leitor, propondo um jogo de palavras: “E pôs-se a fábula em
ata”, ou seja, a “fábula”, a combinação das ações que, em Aristóteles, compõem
o enredo, adquire estatuto oficial de “ata”, palavra que, designando um registro
escrito, deriva etimologicamente de ação.

191
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Com o surgimento dos estudos da narratologia, ou seja, da teoria da


narratividade, iniciada ou aprimorada pelos formalistas russos, os formalistas
russos propõem a decomposição do enredo em motivos e funções narrativas, e a
distinção entre dois planos, um dos acontecimentos considerados em si mesmos,
outro dos acontecimentos tal como apresentados literariamente na narrativa.
Nesse sentido, o formalista russo Boris Tomachevski, por exemplo, diferencia
“fábula” e “trama”. A esse respeito, Tzvetan Todorov (2008, p. 221) confirma que
“são os formalistas russos que primeiro isolaram estas duas noções que chamaram
fábula (‘o que efetivamente ocorreu’) e assunto (‘a maneira pela qual o leitor toma
conhecimento disto’)”.

A “fábula” denomina o conjunto de acontecimentos ligados entre


si que são comunicados no decorrer da obra, isto é, os fatos organizados
e disponibilizados cronologicamente em sua ordem natural, segundo sua
causalidade. A “trama” denomina, por sua vez, os acontecimentos conforme sua
organização e disponibilização na narração, segundo a intenção do autor ou do
narrador. Em outras palavras, a trama designa a representação particular dos
acontecimentos ordenados de acordo com a construção discursiva da narração,
por meio de recursos narrativos, tais como suspense, digressões, lacunas,
intervalos, retrocessos, entre outros. Como explica Todorov (2008, p. 220-221):

Em nível mais geral, a obra literária tem dois aspectos: ela é ao mesmo
tempo uma história e um discurso. Ela é história, no sentido em que
evoca uma certa realidade, acontecimentos que teriam ocorrido,
personagens que, deste ponto de vista, se confundem com os da vida
real. Esta mesma história poderia ter-nos sido relatada por outros
meios; por um filme, por exemplo; ou poder-se-ia tê-la ouvido pela
narrativa oral de uma testemunha, sem que fosse expressa em um
livro. Mas a obra é, ao mesmo tempo, discurso: existe um narrador que
relata a história; há diante dele um leitor que a percebe. Neste nível,
não são os acontecimentos relatados que contam, mas a maneira pela
qual o narrador nos fez conhecê-los.

A distinção entre “fábula” e “trama” proposta por Tomachevski seria


reformulada por diversos autores a partir de diversos conceitos para denominar,
grosso modo, o “o que” e o “como” da narrativa: “história” e “discurso”, para
Émile Benveniste e Tzvetan Todorov; “ficção” e “narração”, para Jean Ricardou;
“diegese” e “narração”, para Maurice-Jean Lefebve; “história” e “narração”, para
Gérard Genette. Genette (2008), no entanto, observa que, na literatura, o ato de
narração produz simultaneamente uma história e uma narração, de modo que sua
separação pode ser concebida apenas teoricamente. Corroborando a observação
de Genette, Angélica Soares (2007, p. 44) afirma:

Se, por um lado, devemos reconhecer a eficácia teórica dessas propostas,


por outro, não podemos esquecer que, sendo o romance obra de ficção e,
portanto, de desrealização da realidade, a diegese ou a fábula já devem
ser entendidas como categorias literárias, não existindo antes da obra na
forma como a deduzimos do discurso narrativo.

192
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

Todorov (2008, p. 221) reitera que “os dois aspectos, a história e o discurso,
são todos os dois igualmente literários”.

Ao lado da narração, os gêneros narrativos apresentam descrições. Como


confirma Genette (2008, p. 272):

Toda narrativa comporta com efeito, embora intimamente misturadas


e em proporções muito variáveis, de um lado representações de ações
e acontecimentos, que constituem a narração propriamente dita, e de
outro lado, representações de objetos e personagens, que são o fato
daquilo que se denomina hoje a descrição.

As descrições desempenham um papel fundamental na narrativa,


especialmente nos romances realistas e naturalistas, em que a descrição exerce
uma função importante. Genette (2008, p. 273) observa, a respeito da relação entre
narração e descrição, que “existem gêneros narrativos, como a epopeia, o conto,
a novela, o romance, em que a descrição pode ocupar um lugar muito grande, e
mesmo materialmente maior, sem cessar de ser, como por vocação, um simples
auxiliar da narrativa”. Nesse sentido, Genette (2008, p. 274) constata que não
existem “gêneros descritivos”, e reconhece a dificuldade de imaginar “uma obra
em que a narrativa se comportaria como auxiliar da descrição”.

Ao analisar o estudo das relações entre o narrativo e o descritivo, ou


seja, as funções da descrição na “economia geral da narrativa”, Genette (2008, p.
274) percebe duas funções distintas: uma “de ordem decorativa”, compreendida
como um ornamento do discurso; outra “de ordem simultaneamente explicativa
e simbólica”.

A segunda função da descrição pode ser observada, afirma Genette (2008,


p. 274), na tradição do gênero romanesco, especialmente realista: “os retratos
físicos, as descrições de roupas e móveis tendem, em Balzac, e seus sucessores
realistas, a revelar e ao mesmo tempo justificar a psicologia dos personagens, dos
quais são ao mesmo tempo signo, causa e efeito”. Genette (2008, p. 275) conclui,
por fim, que:

É necessário observar enfim que todas as diferenças que separam


descrição e narração são diferenças de conteúdo, que não têm
propriamente existência semiológica: a narração liga-se a ações ou
acontecimentos considerados como processos puros, e por isso mesmo
acentua o aspecto temporal e dramático da narrativa; a descrição, ao
contrário, uma vez que se demora sobre objetos e seres considerados
em sua simultaneidade, e encara os processos eles mesmos como
espetáculos, parece suspender o curso do tempo e contribui para
espalhar a narrativa no espaço. Estes dois tipos de discurso podem,
portanto, aparecer como exprimindo duas atitudes antiéticas diante
do mundo e da existência, uma mais ativa, a outra mais contemplativa.

193
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Observe que Genette identifica na narração e na descrição “duas atitudes


antiéticas diante do mundo e da existência”, a primeira “mais ativa”, e a segunda
“mais contemplativa”. A partir de uma perspectiva semelhante, Georg Lukács
(1965) estabelece, em seu ensaio “Narrar ou descrever?”, um contraste entre
os dois métodos empregados na representação artística no romance moderno,
procurando “saber como e por que a descrição [...] chegou a se tornar um
princípio fundamental da composição”. Contrapondo a narração e a descrição,
Lukács compreende os dois métodos como alternativas em que “vivemos” os
acontecimentos representados, por um lado, ou “observamos” os acontecimentos
representados, por outro: participar ou observar, respectivamente.

NOTA

Georg Lukács (1885-1971) foi um intelectual húngaro e um dos mais influentes


críticos literários do século XX. Para Lukács, em “Narrar ou descrever?”, narrar e descrever
correspondem a “duas posições socialmente necessárias, assumidas pelos escritores em
dois sucessivos períodos do capitalismo”. Ao contrário de Scott, Balzac e Tolstoi, Flaubert
e Zola escreveriam numa sociedade burguesa concretizada, em cujo seio se tornam seus
observadores e críticos, simultaneamente a “escritores no sentido da divisão capitalista do
trabalho”, pois “é o momento em que o livro se transforma completamente em mercadoria
e o escritor em vendedor da referida mercadoria”.

FONTE: Disponível em: <http://www.joseferreira.com.br/blogs/filosofia/e-books/e-


book-prolegomenos-para-uma-ontologia-do-ser-social-georg-lukacs/>. Acesso em:
10 out. 2017.

194
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

DICAS

Caso queira aprofundar seus estudos em relação ao papel da descrição no


romance moderno, indicamos a obra de Franco Moretti (1950).

FONTE: Disponível em: <https://www.kcl.ac.uk/artshums/depts/complit/


newsrecords/2016-17/franco-moretti-seminar-series-2017.aspx>. Acesso em: 10 out. 2017.

Na obra de Moretti (2009), a questão lukácsiana de saber como e por


que a descrição chegou a se tornar um princípio fundamental da composição se
relaciona com o estudo dos “enchimentos” na narrativa. Segundo Moretti (2009),
o enchimento se firmou porque oferecia um tipo de prazer narrativo compatível
com a nova regularidade da vida burguesa. O enchimento seria uma tentativa
de racionalizar o romance e desencantar o universo narrativo, absorvendo um
processo que se inicia nas esferas da economia e da administração. Quanto ao
estilo descritivo do século XIX, Moretti afirma que se os conteúdos das diversas
descrições podem ser neutros, a forma da descrição, contrariamente, persegue
um projeto que nada tem de neutro e que é particularmente típico do ethos da
Restauração: deter a história. Cada técnica, portanto, mantém certa independência,
captura uma parcela distinta da realidade circunstante e transmite sua mensagem
ideológica específica. Surge daí uma estrutura compósita, que distribui as índoles
da classe dominante europeia em níveis distintos do texto, conseguindo fazer que
se correspondam: ao capitalismo o plano da narrativa, com o ritmo regular do seu
novo presente; ao conservadorismo político as pausas descritivas.

Personagem

Vimos que as ações da narrativa são realizadas por personagens. As


personagens, portanto, são os agentes da ação da narrativa ficcional e, enquanto
tal, constituem seres de linguagem. Conforme explica Gancho (2002, p. 14): “A
personagem ou o personagem é um ser fictício que é responsável pelo desempenho
do enredo; em outras palavras, é quem faz a ação. Por mais real que pareça, o
personagem é sempre invenção, mesmo quando se constata que determinados
personagens são baseados em pessoas reais”.

195
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Em virtude da relação entre personagem e ação, A. J. Greimas prefere


denominar as personagens de atores. E, preocupado em definir a função das
personagens na narrativa, enquanto agentes da ação que promovem as situações
e transformações da narrativa, propõe um modelo de seis funções que denomina
actantes: sujeito-objeto, destinador-destinatário, adjuvante-oponente. Podemos
assim resumir as funções das personagens a seis tipos que se combinam na narrativa:

1) Protagonista: condutor da ação, o personagem principal.


2) Antagonista: oponente, o opositor do protagonista de cuja oposição ao
protagonista resulta o conflito central.
3) Objeto: fim visado pelo protagonista, representa o interesse do protagonista e
do antagonista.
4) Destinador: personagem que influencia decisivamente a destinação do objeto,
dirigindo a ação e a resolvendo.
5) Destinatário: beneficiado, personagem que recebe o objeto, o resultado final da
ação, e que geralmente condiz com o protagonista.
6) Adjuvante: personagem auxiliar, que oferece uma contribuição a algum dos
agentes na busca de seus fins.

Conforme a tipologia proposta por Souriau, no conto de Guimarães Rosa,


Jó Joaquim, que, como observa o narrador, “proibia-se de ser pseudopersonagem”,
exerce a função de protagonista, de personagem principal, e Livíria, Rivília
ou Irlívia, de objeto, por exemplo. O seu marido, por sua vez, representa o
antagonista, e assim por diante.

O protagonista ou o personagem principal pode ser classificado como


herói ou anti-herói. Na explicação de Gancho (2002, p. 14), herói “é o protagonista
com características superiores às de seu grupo”, ao passo que o anti-herói “é o
protagonista que tem características iguais ou inferiores às de seu grupo, mas que
por algum motivo está na posição de herói, só que sem competência para tanto”.
Podemos denominar como secundárias as personagens “menos importantes na
história, isto é, que têm uma participação menor ou menos frequente no enredo;
podem desempenhar papel de ajudantes do protagonista ou do antagonista, de
confidentes, enfim, de figurantes” (GANCHO, 2002, p. 16).

A partir de outra abordagem, Foster (1969) sugere diferenciar as


personagens em dois tipos designados: personagens planas ou personagens
redondas. Na terminologia de Foster, temos, portanto:

1) personagens planas: personagens simples, que conservam seu comportamento


uniformemente, sem surpreender o leitor com imprevisibilidades.
Correspondem aos chamados “tipos” ou “caricaturas”;
2) personagens redondas: personagens profundas, complexas, que evoluem
no decorrer da narrativa, com transformações e revelações graduais de sua
identidade, apresentando uma caracterização elaborada e nunca definitiva.

196
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

Nessa perspectiva, o protagonista do conto “Desenredo”, de Guimarães


Rosa, se classifica como uma personagem redonda, considerando as transformações
e revelações de sua identidade desde que conheceu Livíria, Rivília ou Irlívia: “Jó
Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja. Tinha-o
para não ser célebre. Com elas quem pode, porém?”. O comportamento de Jó
Joaquim se caracteriza pela imprevisibilidade de suas ações, como confirma o
narrador em passagens como: “Expulsou-a apenas, apostrofando-se, como inédito
poeta e homem”. Da mesma maneira que se apostrofa a si mesmo e se revela em
seu ineditismo, a personagem reinventa o seu passado, conforme a profundidade
e complexidade que se atribui a personagens redondas.

A respeito do papel exercido pelas personagens na literatura ocidental,


Todorov (2008, p. 230) afirma: “Nesta literatura, o personagem parece-nos
representar um papel de primeira ordem e é a partir dele que se organizam
os outros elementos da narrativa”. Nesse sentido, reconhecendo a função das
personagens na organização dos elementos da narrativa que estamos estudando,
Soares (2007, p. 49) observa: “Tão importante quanto caracterizar as personagens
é buscar a funcionalidade dos seus caracteres”, conforme vimos acima ao
definirmos os tipos de personagens segundo suas funções no enredo.

Vimos que personagens planas podem corresponder a “tipos” ou


“caricaturas”. Vejamos, portanto, como se definem:

Tipo: “é um personagem reconhecido por características típicas,


invariáveis, quer sejam elas morais, sociais, econômicas ou de qualquer outra
ordem. Tipo seria o jornalista, o estudante, a dona de casa, a solteirona etc.”
(GANCHO, 2002, p. 16). Exemplos de tipos são os personagens de “O pagador
de promessas”, de Dias Gomes, alguns identificados por sua função: Repórter,
Minha Tia, Padre Olavo, Bonitão etc.

Caricatura: “é um personagem reconhecido por características fixas


e ridículas. Geralmente é um personagem presente em histórias de humor”
(GANCHO, 2002, p. 17). Exemplos de caricaturas são os personagens de
“Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manuel Antônio de Almeida.

Tempo

Enquanto um fator humano importante na percepção de si mesmo e da


realidade, o tempo, evidentemente, tem implicações na narrativa ficcional. Afinal,
a narrativa se desenvolve no fluxo do tempo, seja o tempo da diegese ou da ficção
(o contexto temporal ou epocal), seja o tempo do discurso e da leitura, que, assim
como as ações representadas na narrativa, exigem tempo para se desenvolver.

197
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

O tempo da diegese se relaciona com a duração das ações narradas,


correspondendo a uma sucessão temporal apontada, na narração, por meio de
indicadores temporais das ações, tais como datas, estações do ano, eventos etc. O
tempo do discurso, por sua vez, corresponde ao tempo da narração propriamente
dita das ações, estando condicionado a um processo de seleção por parte do
narrador. Como nota Todorov (2008, p. 242):

O problema da apresentação do tempo na narrativa impõe-se por


causa de uma dessemelhança entre a temporalidade da história e a do
discurso. O tempo do discurso é, em um certo sentido, um tempo linear,
enquanto o tempo da história é pluridimensional. Na história, muitos
acontecimentos podem se desenrolar ao mesmo tempo; mas o discurso
deve obrigatoriamente colocá-los um em seguida ao outro; uma figura
complexa encontra-se projetada sobre uma linha reta. É daí que vem
a necessidade de romper a sucessão “natural” dos acontecimentos
mesmo se o autor desejava segui-la mais de perto. Mas a maior parte
do tempo o autor não tenta encontrar esta sucessão “natural” porque
utiliza a deformação temporal para certos fins estéticos.

O tempo da diegese do conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, por


exemplo, equivale ao tempo natural das ações que, como vimos, compõem
cronologicamente o enredo, desde o encontro entre Jó Joaquim e Livíria, Rivília
ou Irlívia até sua reconciliação final, o que evidentemente dura mais do que o
tempo do discurso, condensado pela seleção do narrador, constituindo uma
anisocronia, na terminologia de Gerard Gennete. As indicações da sucessão do
tempo da diegese do conto se manifestam tanto por meio dos tempos verbais
quanto de expressões como “até que”, “enquanto, ora, as coisas amaduravam”,
“daí, de repente”, “no decorrer e comenos”, e assim por diante. O tempo exerce
um papel fundamental no conto, como demonstra o narrador ao afirmar, por
exemplo, que “o tempo é engenhoso”, que “os tempos se seguem e parafraseiam-
se” ou que “o tempo secou o assunto”. Como podemos perceber, a diegese
comporta, geralmente, um tempo de ordem pessoal, um tempo subjetivo ou
vivencial, relacionado com a percepção das personagens ou do narrador, um
tempo interno que constitui um tipo de tempo diferente do tempo externo, o qual
pode ser objetivamente mensurado. Assim, podemos diferenciar, nas narrativas,
dois tipos de tempo:

1) Tempo cronológico: é o nome que se dá ao tempo que transcorre


na ordem natural dos fatos no enredo, isto é, do começo para o
final. Está, portanto, ligado ao enredo linear (que não altera a
ordem em que os fatos ocorreram); chama-se cronológico porque é
mensurável em horas, dias, meses, anos, séculos.
2) Tempo psicológico: é o nome que se dá ao tempo que transcorre
numa ordem determinada pelo desejo ou pela imaginação do
narrador ou dos personagens, isto é, altera a ordem natural dos
acontecimentos. Está, portanto, ligado ao enredo não linear (no
qual os acontecimentos estão fora da ordem natural) (GANCHO,
2002, p. 21).

198
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

NOTA

Genette (2008) diferencia isocronia e anisocronia, conceitos com os quais


designa a relação entre o tempo da diegese e o tempo do discurso em termos de duração.
Assim, a isocronia denomina a conformidade entre a duração da diegese e a do discurso,
ao passo que a anisocronia, a inconformidade entre a duração da diegese e a do discurso.

Quanto ao tempo do discurso, os seus desacordos com o tempo da


diegese em termos de ordem das ações se denomina anacronias. A anacronia
constitui um recurso tradicional da narração, a exemplo do “in medias res” e
do “in ultimas res”, que designam narrativas que iniciam no meio e no final da
diegese, respectivamente. Compondo narrativas temporalmente deslocadas da
narrativa em que se inserem, as anacronias podem apontar para o passado, as
denominadas analepses, ou para o futuro, as denominadas prolepses.

Espaço

O espaço consiste na ambientação da narração ou da ação das personagens,


a paisagem que pode ser exterior (espaço físico) ou interior (espaço psicológico).
A ambientação desempenha um papel fundamental na narração, e sua função se
evidencia especialmente nos romances realistas e naturalistas, que, influenciados
pelas ideias deterministas do positivismo, partem do pressuposto de que o
ambiente influencia o homem. Como explica Gancho (2002, p. 23): “o espaço tem
como funções principais situar as ações dos personagens e estabelecer com eles
uma interação, quer influenciando suas atitudes, pensamentos ou emoções, quer
sofrendo eventuais transformações provocadas pelos personagens”.

Gancho (2002, p. 24) elenca algumas funções do ambiente na narrativa, tais


como: situar os personagens nas condições em que vivem, projetar os conflitos
vividos pelos personagens, estar em conflito com os personagens e indicar o
andamento do enredo.

No conto “Desenredo”, de Guimarães Rosa, por exemplo, embora o


narrador se prive de delimitar espacialmente os fatos narrados, seja por meio
da localização espacial, seja por meio de descrições, podemos identificar o
ambiente de narração, presumivelmente um bar, como sugerimos a seguir, e o
ambiente narrado como um ambiente povoado, uma vez que a opinião do povo
constitui um dos conflitos principais do conto, contra o qual atua o protagonista.
Outras referenciações espaciais aparecem em passagens como: “E viajou fugida
a mulher, a desconhecido destino”, que, mesmo sem identificar o lugar, situa o
leitor em relação ao distanciamento espacial da personagem: “Chegou-lhe lá a
notícia, onde se achava”.

199
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Narrador

O narrador consiste na voz que narra e que pode, eventualmente, ser um


personagem, mas jamais deve ser confundido com o autor, pois, enquanto um
elemento do enredo, representa uma criação do autor.

No conto de Guimarães Rosa, o autor o anuncia na primeira frase: “Do


narrador a seus ouvintes”. Sua narração, ao apresentar o protagonista, revela, ao
mesmo tempo, informações sobre o narrador:

- Jó Joaquim, cliente, era quieto, respeitado, bom como o cheiro da cerveja.


Tinha-o para não ser célebre. Com elas quem pode, porém? Foi Adão dormir, e
Eva nascer. Chamando-se Livíria, Rivília ou Irlívia, a que, nesta observação, a Jó
Joaquim apareceu.

Se o protagonista é, como informa o narrador, um “cliente”, cujo caráter


compara com o “cheiro da cerveja”, podemos presumir que o narrador é um dono
ou um atendente de um bar, que conta a história de Jó Joaquim a seus clientes, e
que o bar é o espaço da narração, uma narração de caráter oral, como confirma o
autor ao se referir os narratários do narrador como “ouvintes”. Podemos ainda
perceber que o narrador não é onisciente: “Diz-se, também, que de leve a ferira,
leviano modo”, afirma o narrador, como quem conhece a história que narra de
outras fontes, desconhecidas: “Diz-se”. Da mesma maneira, o narrador demonstra
não saber ao certo o nome da personagem: “Chamando-se Livíria, Rivília ou
Irlívia”, afirma, concluindo sua narração com um quarto nome, diferente dos
três primeiros: “Jó Joaquim e Vilíria retomaram-se, e conviveram, convolados, o
verdadeiro e melhor de sua útil vida”.

O narrador pode ser identificado e classificado pelo pronome pessoal que


utiliza na narração, ou seja, primeira pessoa ou terceira pessoa. Vejamos como, a
partir da tipologia proposta por Norman Friedman, Gancho (2002, p. 27) explica
os tipos de narrador se apoiando em pronomes pessoais:

Terceira pessoa: é o narrador que está fora dos fatos narrados, portanto
seu ponto de vista tende a ser mais imparcial. O narrador em terceira
pessoa é conhecido também pelo nome de narrador observador, e suas
características principais são:
a) onisciência: o narrador sabe tudo sobre a história;
b) onipresença: o narrador está presente em todos os lugares da
história.

200
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

NOTA

Embora preponderem indiscutivelmente narrativas em primeira ou em terceira


pessoa, existe a chamada narrativa em segunda pessoa, introduzida por Michel Butor, com o
romance La modification, de 1957, e empregada por muitos novelistas e contistas.

Gancho (2002) elenca duas variantes de narrador em terceira pessoa:


o narrador “intruso”, ou seja, o narrador que dialoga com o leitor ou julga
diretamente o comportamento das personagens. E o narrador “parcial”, ou seja,
o narrador que se identifica com determinado personagem. Vejamos agora como
Gancho (2002, p. 28) explica o outro tipo de narrador de acordo com o pronome:

Primeira pessoa ou narrador personagem: é aquele que participa


diretamente do enredo como qualquer personagem, portanto tem seu
campo de visão limitado, isto é, não é onipresente, nem onisciente. No
entanto, dependendo do personagem que narra a história, de quando
o faz e de que relação estabelece com o leitor, podemos ter algumas
variantes de narrador personagem.

Assim, Gancho (2002) define duas variantes do narrador em primeira


pessoa: narrador “testemunha”, ou seja, narrador que narra acontecimentos dos
quais participou, sem ser protagonista. E, finalmente, o narrador “protagonista”,
ou seja, o narrador que atua como personagem principal do enredo que narra.

Jean Pouillon sugere uma classificação dos aspectos da narrativa enquanto


percepção interna que o narrador oferece ao leitor em relação ao personagem.
Pouillon (1974) denomina os diferentes tipos de relação entre o narrador e o
personagem como visões, que podem ser simplificadas como:

1) Visão “por trás”: o narrador sabe mais que as personagens, equivalendo a um


narrador onisciente em terceira pessoa.
2) Visão “com”: o narrador sabe tanto quanto os personagens, podendo narrar
em primeira pessoa, o que justifica o processo, ou em terceira pessoa, a partir
da visão que um mesmo personagem tem dos acontecimentos.

Visão “de fora”: o narrador sabe menos que qualquer um dos personagens,
podendo narrar apenas o que percebe externamente, sem ter acesso ao interior
das personagens.

201
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

NOTA

O conceito de visão proposto por Pouillon se aproxima das concepções de


ponto de vista, foco narrativo ou focalização. Ao propor o conceito de focalização, Genette
distingue quem narra (voz) e quem percebe (modo), separando, definitivamente, a narração
e a focalização. A focalização se refere a uma restrição de perspectiva, ou seja, uma seleção
de informação narrativa que orienta o narrador.

O narrador pode ser ainda caracterizado, conforme a tipologia proposta


por Genette (2008), como heterodiegético, homodiegético ou autodiegético:

1) Narrador heterodiegético: narrador que não integra, como personagem, o


universo diegético da narrativa.
2) Narrador homodiegético: narrador que participa, como personagem, do
universo diegético da narrativa, sem, no entanto, ser o protagonista.
3) Narrador autodiegético: narrador que participa, como personagem principal,
do universo diegético, sendo ao mesmo tempo, portanto, o protagonista.

NOTA

Genette (2008) considera inadequadas as tipologias de narrativa pelo emprego


de pronomes pessoais, como narrativa em primeira ou terceira pessoa, pois colocariam o
acento da variação sobre o elemento invariante da situação narrativa. Para Genette, em vez
de formas gramaticais, o romancista escolhe atitudes narrativas: narrar por um personagem
(narrador homodiegético ou autodiegético ou por um narrador heterodiegético).

Por fim, a determinação da pessoa do narrador implica, em uma situação


de enunciação, a pessoa a quem o narrador se dirige, o destinatário da narrativa,
denominado narratário. O narratário participa como elemento constitutivo da
narração, compreendido, muitas vezes, como a contraparte do narrador, como
comprova Todorov (2008, p. 257):

A imagem do narrador não é uma imagem solitária: desde que


aparece, desde a primeira página, ela é acompanhada do que se pode
chamar “a imagem do leitor”. Evidentemente, esta imagem tem tão
poucas relações com um leitor concreto quanto a imagem do narrador,
com o autor verdadeiro. Os dois encontram-se em dependência um
do outro, e desde que a imagem do narrador começa a sobressair
mais nitidamente, o leitor imaginário encontra-se também desenhado
com mais precisão. Estas duas imagens são próprias a toda obra de

202
TÓPICO 2 | O GÊNERO NARRATIVO

ficção: a consciência de ler um romance e não um documento leva-nos


a fazer o papel deste leitor imaginário e ao mesmo tempo apareceria
o narrador, o que nos relata a narrativa, já que a própria narrativa é
imaginária. Esta dependência confirma a lei semiológica geral segundo
a qual “eu” e “tu”, o emissor e o receptor de um enunciado, aparecem
sempre juntos.

O interesse pelo narratário ou pelo leitor, relativamente recente nos estudos


literários, produziu diferentes conceitos: narratário (Gerard Prince), arquileitor
(Michael Riffaterre), leitor ideal (Cleanth Brooks), leitor implícito (Wolfgang
Iser), leitor modelo (Umberto Eco) etc. Ao constatar que “a história literária não
ignorara tudo da recepção”, Antoine Compagnon (2001, p. 146) observa que, com
a obsessão pelas fontes e influências, considerava-se a recepção, não sob a forma
da leitura, mas sob a forma como uma obra originava outras obras: “Os leitores, na
maioria das vezes, só eram levados em consideração quando se tornavam outros
autores, através da noção de ‘destino de um escritor’” (COMPAGNON, 2001, p.
147). Recentemente, no entanto, os estudos da recepção se comprometeram com a
leitura como reação individual ou coletiva ao texto, com o leitor ao mesmo tempo
ativo e passivo, com o ato de leitura e o sentido como um efeito experimentado
pelo leitor, como demonstram a semiótica da interpretação, de Umberto Eco, a
estética da recepção, de Hans Robert Jauss, a teoria do efeito, de Wolfgang Iser, a
teoria do efeito de leitura, de Stanley Fish etc.

Ao evidenciar a relação do leitor como modelo de recepção com a teoria dos


gêneros literários, ou o gênero como modelo de leitura, Compagnon (2001, p. 157)
afirma que a pertinência teórica do gênero é não classificar as obras, mas “funcionar
como um esquema de recepção, uma competência do leitor”. O gênero, do ponto
de vista da leitura, desempenha, segundo Compagnon (2001, p. 158), “um papel
de mediação entre a obra e o público – incluindo aí o autor –, como o horizonte de
expectativa. Inversamente, o gênero é o horizonte do desequilíbrio, da distância
produzida por toda grande obra”, complementa Compagnon, que conclui: “Assim
revisto, o gênero torna-se realmente uma categoria legítima da recepção”:

A concretização de que toda leitura realizada é, pois, inseparável das


imposições de gênero, isto é, as convenções históricas próprias ao
gênero, ao qual o leitor imagina que o texto pertence, lhe permitem
selecionar e limitar, dentre os recursos oferecidos pelo texto, aqueles
que sua leitura atualizará. O gênero, como código literário, conjunto
de normas, de regras do jogo, informa o leitor sobre a maneira pela
qual ele deverá abordar o texto, assegurando desta forma a sua
compreensão. [...] Assim, a estética da recepção – mas é ainda o que
a torna demasiado convencional aos olhos de seus detratores mais
radicais – não seria outra coisa senão o último avatar de uma reflexão
bem antiga sobre os gêneros literários (COMPAGNON, 2001, p. 158).

Por fim, o leitor, enquanto um elemento de intermediação entre a literatura


e o mundo, e o gênero como modo de leitura, como sugere Compagnon, conduzem
a uma reflexão sobre as relações da literatura com a história e a sociedade, que
desenvolveremos na unidade seguinte.

203
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

DICAS

Assista ao filme “Mais estranho que a ficção” (2006), dirigido por Marc Forster,
para se envolver mais profundamente e de forma divertida no mundo da narração.

204
RESUMO DO TÓPICO 2

Neste tópico, você aprendeu que:

• O gênero narrativo se define como o relato, geralmente em prosa, de


acontecimentos reais ou ficcionais, derivado do gênero épico.

• O relato dos acontecimentos no gênero narrativo se realiza pela intermediação


de um narrador, que representa o discurso dos personagens por meio de
discurso direto, indireto e indireto livre.

• O gênero narrativo se subdivide em tipos de narrativas entre os quais se


destacam o romance, a novela, o conto e a crônica.

• A narrativa se constitui de elementos relacionados entre si, tais como o enredo,


as personagens, o tempo, o espaço, o narrador e o foco narrativo.

205
AUTOATIVIDADE

1 Qual foi a última narrativa que você leu? Foi um romance, uma novela ou
um conto? Retome-a e analise-a a partir dos conhecimentos sobre o gênero
narrativo que você aprendeu neste tópico. Para tanto, divida o enredo,
classifique os personagens, observe o tempo e o espaço, classifique o narrador
e observe o foco narrativo.

2 Leia os dois textos a seguir e depois proceda conforme a instrução.

Texto 1

Esta imensa campina, que se dilata por horizontes infindos, é o sertão de minha
terra natal.
Aí campeia o destemido vaqueiro cearense, que à unha de cavalo acossa o touro
indômito no cerrado mais espesso, e o derriba pela cauda com admirável destreza.
Aí, ao morrer do dia, reboa entre os mugidos das reses, a voz saudosa e
plangente do rapaz que aboia o gado para o recolher aos currais no tempo da ferra.
Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos anos
na aurora serena e feliz da minha infância?
Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas
quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante?
FONTE: ALENCAR, José de. O sertanejo. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.
br/download/texto/bv000140.pdf>. Acesso em: 10 out. 2017.

Texto 2

– NONADA. TIROS QUE O SENHOR ouviu foram de briga de homem não,


Deus esteja. Alvejei mira em árvores no quintal, no baixo do córrego. Por meu
acerto. Todo dia isso faço, gosto; desde mal em minha mocidade. Daí, vieram
me chamar. Causa dum bezerro: um bezerro branco, erroso, os olhos de nem
ser – se viu –; e com máscara de cachorro. Me disseram; eu não quis avistar.
Mesmo que, por defeito como nasceu, arrebitado de beiços, esse figurava rindo
feito pessoa. Cara de gente, cara de cão: determinaram – era o demo. Povo
prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem for. Vieram emprestar minhas
armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas risadas... Olhe: quando é
tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir, instantaneamente – depois,
então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que
não seja: que situado sertão é por os campos-gerais a fora a dentro, eles dizem,
fim de rumo, terras altas, demais do Urucuia. Toleima. Para os de Corinto e do
Curvelo, então, o aqui não é dito sertão? Ah, que tem maior! Lugar sertão se
divulga: é onde os pastos carecem de fechos; onde um pode torar dez, quinze
léguas, sem topar com casa de morador; e onde criminoso vive seu cristo-jesus,
arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia vem dos montões oestes. Mas,
hoje, que na beira dele, tudo dá – fazendões de fazendas, almargem de vargens

206
de bom render, as vazantes; culturas que vão de mata em mata, madeiras de
grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais corre em volta. Esses gerais
são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova, o senhor sabe: pão ou
pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a parte.
FONTE: ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. São Paulo: Nova Aguilar, 1994, p. 3-4.

Considerando os textos 1 e 2, redija um texto dissertativo acerca do seguinte


tema:

O lugar de enunciação na narração

Em seu texto, você deverá traçar um paralelo entre o narrador nos romances de
José de Alencar e de Guimarães Rosa.

207
208
UNIDADE 3
TÓPICO 3

LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A


SOCIEDADE

1 INTRODUÇÃO
No Tópico 1 desta unidade, você estudou a relação da literatura com
outras áreas do conhecimento, e viu que os gêneros narrativos, por apresentarem
uma disposição para a totalidade, pluralidade ou variedade, especialmente
na representação da realidade, favorecem a relação com outras áreas do
conhecimento.

Agora você terá a oportunidade de retomar e aprofundar o estudo


das relações interdisciplinares e pluridisciplinares da literatura e da teoria da
literatura, bem como o estudo da narração, tanto real quanto ficcional.

Neste tópico, você aprofundará o estudo das relações da literatura com


outras áreas do conhecimento, mais especificamente com a história e a sociologia,
e verá que a relação da literatura com a realidade remonta aos debates sobre a
mimese e a verossimilhança na Antiguidade. Ao final deste tópico, você estará
ambientado com as relações da literatura com a história e a sociedade.

Vamos lá?

209
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

2 LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A


SOCIEDADE
As relações da literatura com a história e a sociedade têm longa data, e
constituem uma das discussões mais complexas e duradouras que atormentam
a teoria da literatura. Ainda na antiguidade, Aristóteles, ao propor o conceito de
verossimilhança, estabelece uma oposição entre a poesia e a história:

a função do poeta não é contar o que aconteceu mas aquilo que


poderia acontecer, o que é possível, de acordo com o princípio da
verossimilhança e da necessidade. O historiador e o poeta não diferem
pelo fato de um escrever em prosa e o outro em verso (se tivéssemos
posto em verso a obra de Heródoto, com verso ou sem verso ela não
perderia absolutamente nada do seu carácter de História). Diferem é
pelo fato de um relatar o que aconteceu e outro o que poderia acontecer
(ARISTÓTELES, 2008, p. 54).

Ao introduzir o conceito de verossimilhança, ou seja, “o que poderia


acontecer”, Aristóteles discorda da concepção negativa de poesia de Platão,
que compreendia que, pela representação, a poesia se afasta da realidade e da
filosofia. Platão (2001) reduz a poesia a uma “imitação da imitação”, contraposta
ao discurso ideal da filosofia. Afinal, para ele, a arte de imitar, ao mesmo tempo
que “executa as suas obras longe da verdade”, convive com a parte irracional
da alma humana, concluindo que a cidade deve excluir o poeta imitador para
garantir um bom governo (PLATÃO, 2001, p. 464-469). Aristóteles, por outro
lado, conclui pela superioridade da poesia em relação à história pelo fato de a
verossimilhança a tornar universal, como explica:
Portanto, a poesia é mais filosófica e tem um carácter mais elevado
do que a História. É que a poesia expressa o universal, a História
o particular. O universal é aquilo que certa pessoa dirá ou fará, de
acordo com a verossimilhança ou a necessidade, e é isso que a poesia
procura representar (ARISTÓTELES, 2008, p. 54).

Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976, p. 108) resume o embate entre Platão
e Aristóteles a respeito da mimese, evidenciando a relação entre a literatura e o
mundo real estabelecida tanto pela verossimilhança quanto pela obra literária:
na Poética claramente se afirma que “a Poesia é mais filosófica e mais
elevada do que a História, pois a Poesia conta de preferência o geral
e, a História, o particular”. Por conseguinte, enquanto Platão condena
a mimese poética como meio inadequado de alcançar a verdade,
Aristóteles considera-a como instrumento válido sob o ponto de vista
gnosiológico: o poeta, diferentemente do historiador, não representa
fatos ou situações particulares; o poeta cria um mundo coerente em que
os acontecimentos são representados na sua universalidade, segundo a
lei da probabilidade ou da necessidade, assim esclarecendo a natureza
profunda da ação humana e dos seus móbeis. O conhecimento, assim
proposto pela obra literária, atua depois no real, pois se a obra poética
é “uma construção formal baseada em elementos do mundo real”, o
conhecimento proporcionado por essa obra tem de iluminar aspectos
da realidade que a permitem.

210
TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

Com Aristóteles, então, a imitação se afirmaria “como a representação do


que ‘poderia ser’”, como verossimilhança, o que garantiria a “autonomia da arte”,
como alega Lígia Militz da Costa (1992, p. 6). E com a congenialidade da imitação
dos homens, a imitação se torna um meio natural de conhecimento que permite
ao homem se elevar do particular para o universal (COSTA, 1992, p. 5-6).

Gancho (2002, p. 10), a partir da perspectiva da narrativa e, mais


propriamente, de sua natureza ficcional, explica o conceito de verossimilhança:

É a lógica interna do enredo, que o torna verdadeiro para o leitor; é,


pois, a essência do texto de ficção.
Os fatos de uma história não precisam ser verdadeiros, no sentido de
corresponderem exatamente a fatos ocorridos no universo exterior
ao texto, mas devem ser verossímeis; isto quer dizer que, mesmo
sendo inventados, o leitor deve acreditar no que lê. Esta credibilidade
advém da organização lógica dos fatos dentro do enredo. Cada fato da
história tem uma motivação (causa), nunca é gratuito e sua ocorrência
desencadeia inevitavelmente novos fatos (consequência). A nível
de análise de narrativas, a verossimilhança é verificável na relação
causal do enredo, isto é, cada fato tem uma causa e desencadeia uma
consequência.

Por outro lado, Jonathan Culler (1999, p. 27), ao notar que os historiadores
explicam a história mostrando como uma coisa levou a outra, conclui que “o
modelo para a explicação histórica é, desse modo, a lógica das histórias: a maneira
como uma história mostra como algo veio a acontecer, ligando a situação inicial,
o desenvolvimento e o resultado de um modo que faz sentido”. Assim, Culler
(1999, p. 27) acrescenta: “O modelo para a inteligibilidade histórica, em resumo,
é a narrativa literária”.

A distinção entre a literatura e a história sustentada por Aristóteles se


arrefece, portanto, de modo que dificilmente podemos dissociar seus respectivos
discursos, como demonstram historiadores contemporâneos como Hayden
White ao adaptarem categorias da teoria literária para a análise da historiografia.
White (1994) compreende que a conectividade entre os eventos que constituem
o discurso histórico deriva de procedimentos discursivos provenientes da
narrativa, mas não afirma, com isso, que a literatura e a história sejam a mesma
coisa, preservando, inclusive, um argumento similar ao de Aristóteles:

O discurso literário pode diferir do discurso histórico devido a seus


referentes básicos, concebidos mais como eventos ‘imaginários’ do
que ‘reais’, mas os dois tipos de discurso são mais parecidos do que
diferentes em virtude do fato de que ambos operam a linguagem de tal
maneira que qualquer distinção clara entre sua forma discursiva e seu
conteúdo interpretativo permanece impossível (WHITE, 1994, p. 28).

Ao constatar a centralidade da narrativa nos estudos literários, Culler


(1999, p. 84) explica: “As histórias, diz o argumento, são a principal maneira pela
qual entendemos as coisas, quer ao pensar em nossas vidas como uma progressão
que conduz a algum lugar, quer ao dizer a nós mesmos o que está acontecendo

211
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

no mundo”. A vida, assegura Culler (1999, p. 84), segue “a lógica da história, em


que entender significa conceber como uma coisa leva a outra, como algo poderia
ter acontecido”.

Assim, como sugere Culler (1999, p. 84-85), “entendemos os acontecimentos


através de histórias possíveis”, razão pela qual, como demonstra, “a explicação
histórica segue não a lógica da causalidade científica, mas a lógica da história”, de
modo que “as estruturas narrativas estão em toda parte”. Culler afirma ainda que
ouvir e narrar histórias segue um impulso humano e, ao assinalar uma função
fundamental das histórias, ilumina a razão da centralidade da narrativa que
constata nos estudos literários:
as histórias também têm a função, como enfatizam os teóricos, de
nos ensinar sobre o mundo, nos mostrando como ele funciona, nos
possibilitando – através dos estratagemas da focalização – ver as coisas
de outros pontos de vista e entender as motivações dos outros que, em
geral, são opacas para nós (CULLER, 1999, p. 93).

Analisando a necessidade social de literatura, Antonio Candido (2004, p.


174), em conformidade com o “impulso humano” pela literatura mencionado por
Culler, constata: “Não há povo e não há homem que possa viver sem ela, isto
é, sem a possibilidade de entrar em contato com alguma espécie de fabulação”.
Assim, a criação ficcional “está presente em cada um de nós”, afirma Candido
(2004, p. 174): “Ora, se ninguém pode passar vinte e quatro horas sem mergulhar
no universo da ficção e da poesia, a literatura concebida no sentido amplo a
que me referi parece corresponder a uma necessidade universal, que precisa
ser satisfeita e cuja satisfação constitui um direito”, conclui Candido (2004, p.
175), reivindicando a literatura como “imagem e transfiguração” da vida: “Isto
significa que ela tem papel formador da personalidade, mas não segundo as
convenções; seria antes segundo a força indiscriminada e poderosa da própria
realidade” (CANDIDO, 2004, p. 175-176).

Ao rearmar a relação da literatura com a realidade em seu “papel formador


da personalidade”, Candido (2004, p. 180) afirma que a literatura contribui para
a “humanização” por meio de uma abertura para a alteridade correspondente
com a possibilidade de “ver as coisas de outros pontos de vista e entender as
motivações dos outros” assinalada por Culler. Afinal, para Candido (2004, p. 180):
“A literatura desenvolve em nós a quota de humanidade na medida em que nos
torna mais compreensivos e abertos para a natureza, a sociedade, o semelhante”.

As relações da literatura com a história e a sociedade correspondem, em geral,


como podemos perceber, às relações da literatura com a realidade. Evidentemente,
na literatura existe sempre uma correlação semântica com o mundo real, embora
ela funcione de forma singular, uma vez que a linguagem literária não referencia
diretamente o mundo, como explica Silva (1976, p. 139-140):

212
TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

a mensagem literária é semanticamente autônoma, pois sua verdade e


a sua coerência são de ordem contextual-interna. É conveniente repetir,
todavia, que a linguagem literária não se constitui fora da história
e fora da experiência do real, nem anula os valores semânticos, as
dimensões sociais e simbólicas que fazem parte integrante dos sinais
da langue de que o texto literário é também uma realização particular
e específica. A obra literária constitui, por conseguinte, uma estrutura
verbal que deve ser considerada e estudada na sua organização, na
dinâmica e na funcionalidade dos seus elementos etc., mas essa
estrutura, pelo simples fato de ser verbal, é portadora de significados
que, embora autônomos do ponto de vista técnico-semântico, se
reportam mediatamente à problemática existencial do homem.

Confirmando o fato de que a literatura não referencia diretamente o


mundo, sem deixar, por isso, de se relacionar com ele, Luiz Costa Lima (2011, p.
306), ao analisar a representação literária, conclui que: “Pela prática da mímesis,
a linguagem perde sua identidade habitual – não se diz algo de imediatas
consequências sobre o mundo – assim como o produtor dela se despoja – isto é,
fala ou escreve para animar fantasmas, que não são redutíveis a meras projeções
de seu eu empírico”.

Ao concluir que a mimese supõe um distanciamento de si e,


decorrentemente, uma identificação com a alteridade, Luiz Costa Lima (2011, p.
306-307) analisa a relação da mimese com as representações sociais, ou seja, a
relação entre a literatura e a sociedade:

Pensando-se, pois, em relação às representações sociais, diremos


que ela é um caso particular seu, distinto do das outras modalidades
porque a mímesis opera a representação de representações. Na
fórmula, reencontramos sua propriedade paradoxal. Representação
de representações, a mímesis supõe entre estas e sua cena própria
uma distância que torna aquelas passíveis de serem apreciadas,
conhecidas e/ou questionadas. Essa distância, pois, ao mesmo tempo
que impossibilita a atuação prática sobre o mundo, admite pensar-se
sobre ele e experimentar-se a si próprio.

Com isso, Luiz Costa Lima confirma, portanto, o tipo particular de


correlação que a literatura estabelece com a realidade, ou antes com o real, pois,
“o real não se confunde com a realidade”, como nota Luiz Costa Lima (2011,
p. 295). Se a realidade, “entendida como natureza, é prévia e independente do
homem, sua conversão em real”, conforme Luiz Costa Lima (2011, p. 295), “se
faz através de um processo duplo, paralelo mas distinto: por sua nomeação –
que não se restringe a dar nome a partes da realidade – e pela formulação de
molduras determinadoras da situação decodificante da palavra”. Quer dizer: a
literatura permite pensar sobre o mundo na medida em que o distanciamento
previsto entre a representação literária e as nossas representações do mundo, o
real, possibilita apreciar, conhecer e questionar nossas representações.

213
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Contrariando interpretações do conceito de mimese que “eliminam a


mediação do social”, Luiz Costa Lima reverbera as “reflexões que, autônomas,
intentam repensar a mimesis” e, nesse sentido, observa que:

tampouco é ocasional que a estética da recepção e do efeito tomem como


princípio o abandono da caracterização imanentista do poético. Ou seja,
enquanto tanto Jauss, quanto Iser consideram previamente fadadas ao
fracasso as poéticas que buscam definir a literatidade pela especificação
de sua configuração discursiva e veem a literatura como produto de
dupla ação – a do poeta e a do receptor ou do efeito nele provocado –,
automaticamente jogam uma peça de cal nas interpretações especialistas
e enfatizam a necessidade primária de o estudo do poético trabalhar
com o confronto de duas variáveis: as expectativas sociais – ou elas
que julgam ou não julgam mimético, poético, ficcional – e o esquema
contido da própria obra (LIMA, 2011, p. 301-302).

Assim, se no início do século XX as teorias críticas, as quais


fundamentaram, se não fundaram a disciplina de teoria da literatura, propuseram
uma “caracterização imanentista do poético”, como o formalismo russo, o new
criticism e a estilística, em contraposição aos exageros do historicismo e do
sociologismo que caracterizam a crítica anterior, as relações da literatura com a
história e a sociedade seriam definitivamente restabelecidas a partir de meados
do mesmo século, consolidando interesses identificados antes na abordagem da
literatura e da arte pela teoria crítica da Escola de Frankfurt ou pelos estudos de
Mikhail Bakhtin, por exemplo. De fato, as perspectivas teóricas que consideram a
literatura como parte do conjunto da sociedade se revelam mais apropriadas para
compreender a literatura e a cultura, a exemplo da fenomenologia, do marxismo,
do estruturalismo, do feminismo, do pós-estruturalismo, dos estudos culturais,
do pós-colonialismo, do novo historicismo e assim por diante. As contribuições
da “caracterização imanentista”, no entanto, não seriam abandonadas, como
comprova, por exemplo, o modo como Antonio Candido relaciona literatura
e sociedade, expondo os elementos sociais como constituintes da estrutura do
texto, de modo que o estudo das relações entre a literatura e sociedade deve se
ocupar com a forma, compreendendo como o conteúdo social penetra a estrutura
da narrativa, sem opor forma e conteúdo, portanto.

Por fim, a insistência com que se preservam e, sobretudo, se renovam as


relações da literatura com a história e a sociedade comprovam que a literatura
consiste em um fenômeno plural, multidimensional, como vimos no início desta
unidade. Nesse sentido, ao constatar o perigo em impor soluções parcelares e
exclusivistas no campo da literatura, Vitor Manuel de Aguiar e Silva (1976)
pergunta: “Por que não se admitir uma função plural da literatura?”.

Evasão e crítica social, catarse, libertação e apaziguamento e


comunicação, capaz de permitir que comuniquemos através daquilo
que nos separa. É esta pluralidade de funções que rejeitam quer as
teorias dirigistas, quer as teorias do engajamento, cujos prosélitos
postulam uma falsa unidade total da ação humana colocada sob o
signo de uma ideologia. Todos aqueles que pretendem impor um
determinado objetivo à criação literária (a história determina a literatura;

214
TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

a literatura deve espelhar o real histórico) esbarram num obstáculo


fundamental: a heterogeneidade do modelo estrutural da literatura
em relação à história, consequência da relação de arbitrariedade que
se estabelece entre o signans [significante] e o signatum [significado] no
sistema linguístico (SILVA, 1976, p. 141).

Segundo Silva (1976, p. 142), a literatura deve ser considerada como uma
tensão entre complexos elementos – elementos afetivos, cognitivos, apelativos
etc., constituindo a escrita literária o modo específico de revelação desses valores.
“A escrita confere significado ao real, problematizando-o e revelando-o”, afirma.
Para Silva (1976), o poder da literatura dimana justamente de a capacidade da
escrita literária questionar o real. Deste modo, a autonomia da literatura, ou
seja, sua especificidade, sua especificação como arte e afirmação como atividade
diversa das outras, que confere a si mesma suas regras, não se fundamenta na
separação com a vida, a história e a sociedade.

DICAS

Anatol H. Rosenfeld (1912-1973). Crítico e teórico de origem germânica, Anatol


Rosenfeld (autor do texto da Leitura Complementar a seguir) foi um dos grandes intelectuais
do panorama paulista dos anos 1960 e 1970, legando obras de indiscutível acuidade analítica,
ainda hoje referências para os estudos literários.

FONTE: Disponível em: <https://img.travessa.com.br/livro/Instancias/7a/7a624ce2-329a-


4d46-abb8-e443737660eb.jpg>. Acesso em: 24 out. 2017.

Para saber mais sobre Anatol Rosenfeld, remetemos ao estudo de Roberto Schwarz (1992)
intitulado “Anatol Rosenfeld, um intelectual estrangeiro”, publicado em “O pai de família e
outros estudos”.

215
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

LEITURA COMPLEMENTAR

A TEORIA DOS GÊNEROS

Anatol H. Rosenfeld

1) GÊNEROS E TRAÇOS ESTILÍSTICOS

Observações gerais

A classificação de obras literárias segundo gêneros tem sua raiz na


República de Platão. No 3º livro, Sócrates explica que há três tipos de obras
poéticas: “O primeiro é inteiramente imitação”. O poeta como que desaparece,
deixando falar, em vez dele, personagens. “Isso ocorre na tragédia e na comédia”.
O segundo tipo “é um simples relato do poeta; isso encontramos principalmente
nos ditirambos”. Platão parece referir-se, neste trecho, aproximadamente ao que
hoje se chamaria de gênero lírico, embora a coincidência não seja exata. “O terceiro
tipo, enfim, une ambas as coisas; tu o encontras nas epopeias...”. Neste tipo de
poemas manifesta-se, seja o próprio poeta (nas descrições e na apresentação dos
personagens), seja um ou outro personagem, quando o poeta procura suscitar
a impressão de que não é ele quem fala e sim o próprio personagem; isto é, nos
diálogos que interrompem a narrativa.

A definição aristotélica, no 3º capítulo da Arte Poética, coincide até certo


ponto com o do seu mestre. Há, segundo Aristóteles, várias maneiras literárias de
imitar a natureza: “Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas
situações, numa simples narrativa, ou pela introdução de um terceiro, como faz
Homero, ou insinuando a própria pessoa sem que intervenha outro personagem,
ou ainda, apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos
agirem e executarem eles próprios”. Essencialmente, Aristóteles parece referir-se,
neste trecho, apenas aos gêneros épico (isto é, narrativo) e dramático. No entanto,
diferencia duas maneiras de narrar, uma em que há introdução de um terceiro
(em que os próprios personagens se manifestam) e outro em que se insinua a
própria pessoa (do autor), sem que intervenha outro personagem. Esta última
maneira parece aproximar-se do que hoje chamaríamos de poesia lírica, suposto
que Aristóteles se refira no caso, como Platão, aos ditirambos, cantos dionisíacos
festivos em que se exprimiam ora alegria transbordante, ora tristeza profunda.
Quanto à forma dramática, é definida como aquela em que a imitação ocorre
com a ajuda de personagens que, eles mesmos, agem ou executam ações. Isto é,
a imitação é executada “por personagens em ação diante de nós” (3º capítulo).

Por mais que a teoria dos três gêneros, categorias ou arquiformas literárias,
tenha sido combatida, ela se mantém, em essência, inabalada. Evidentemente ela
é, até certo ponto, artificial como toda a conceituação científica. Estabelece um
esquema a que a realidade literária multiforme, na sua grande variedade histórica,
nem sempre corresponde. Tampouco deve ela ser entendida como um sistema de

216
TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

normas a que os autores teriam de ajustar a sua atividade a fim de produzirem


obras líricas puras, obras épicas puras ou obras dramáticas puras. A pureza em
matéria de literatura não é necessariamente um valor positivo. Ademais, não
existe pureza de gêneros em sentido absoluto.

Ainda assim o uso da classificação de obras literárias por gêneros parece ser
indispensável, simplesmente pela necessidade de toda ciência de introduzir certa
ordem na multiplicidade dos fenômenos. Há, no entanto, razões mais profundas
para a adoção do sistema de gêneros. A maneira pela qual é comunicado o mundo
imaginário pressupõe certa atitude em face deste mundo ou, contrariamente, a
atitude exprime-se em certa maneira de comunicar. Nos gêneros manifestam-se,
sem dúvida, tipos diversos de imaginação e de atitudes em face do mundo.

Significado substantivo dos gêneros

A teoria dos gêneros é complicada pelo fato de os termos “lírico”, “épico”


e “dramático” serem empregados em duas acepções diversas. A primeira acepção
– mais de perto associada à estrutura dos gêneros – poderia ser chamada de
“substantiva”. Para distinguir esta acepção da outra, é útil forçar um pouco a
língua e estabelecer que o gênero lírico coincide com o substantivo “A Lírica”, o
épico com o substantivo “A Épica” e o dramático com o substantivo “A Dramática”.

Não há grandes problemas, na maioria dos casos, em atribuir as obras


literárias individuais a um destes gêneros. Pertencerá à Lírica todo poema de
extensão menor, na medida em que nele não se cristalizarem personagens nítidos
e em que, ao contrário, uma voz central – quase sempre um “Eu” – nele exprimir
seu próprio estado de alma. Fará parte da Épica toda obra – poema ou não –
de extensão maior, em que um narrador apresentar personagens envolvidos em
situações ou eventos, pertencerá à Dramática toda obra dialogada em que atuarem
os próprios personagens sem serem, em geral, apresentados por um narrador.

Não surgem dificuldades acentuadas em tal classificação. Notamos que


se trata de um poema lírico (Lírica) quando uma voz central sente um estado de
alma e o traduz por meio de um discurso mais ou menos rítmico. Espécies deste
gênero seriam, por exemplo, o canto, a ode, o hino, a elegia. Se nos é contada uma
estória (em versos ou prosa), sabemos que se trata de Épica, do gênero narrativo.
Espécies deste gênero seriam, por exemplo, a epopeia, o romance, a novela, o
conto. E se o texto se constituir principalmente de diálogos e se destinar a ser
levado à cena por pessoas disfarçadas que atuam por meio de gestos e discursos
no palco, saberemos que estamos diante de uma obra dramática (pertencente à
Dramática). Neste gênero se integrariam, como espécies, por exemplo, a tragédia,
a comédia, a farsa, a tragicomédia etc.

Evidentemente, surgem dúvidas diante de certos poemas, tais como as


baladas – muitas vezes dialogadas e de cunho narrativo; ou de certos contos
inteiramente dialogados ou de determinadas obras dramáticas em que um
único personagem se manifesta através de um monólogo extenso. Tais exceções,

217
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

contudo, apenas confirmam que todas as classificações são, em certa medida,


artificiais, não diminuem, porém, a necessidade de estabelecê-las para organizar,
em linhas gerais, a multiplicidade dos fenômenos literários e comparar obras
dentro de um contexto de tradição e renovação. É difícil comparar Macbeth com
um soneto de Petrarca ou um romance de Machado de Assis. É mais razoável
comparar aquele drama com uma peça de Ibsen ou Racine.

Significado adjetivo dos gêneros

A segunda acepção dos termos lírico, épico, dramático, de cunho adjetivo,


refere-se a traços estilísticos de que uma obra pode ser imbuída em grau maior
ou menor, qualquer que seja o seu gênero (no sentido substantivo). Assim,
certas peças de Garcia Lorca, pertencentes, como peças, à Dramática, têm cunho
acentuadamente lírico (traço estilístico). Poderíamos falar, no caso, de um drama
(substantivo) lírico (adjetivo). Um epigrama, embora pertença à Lírica, raramente
é “lírico” (traço estilístico), tendo geralmente certo cunho “dramático” ou “épico”
(traço estilístico). Há numerosas narrativas, como tais classificadas na Épica, que
apresentam forte caráter lírico (particularmente da fase romântica) e outras de
forte caráter dramático (por exemplo, as novelas de Kleist).

Costuma haver, sem dúvida, aproximação entre gênero e traço estilístico: o


drama tenderá, em geral, ao dramático, o poema lírico ao lírico e a Épica (epopeia,
novela, romance) ao épico. No fundo, porém, toda obra literária de certo gênero
conterá, além dos traços estilísticos mais adequados ao gênero em questão,
também traços estilísticos mais típicos dos outros gêneros. Não há, porém, lírico
que não apresente ao menos traços narrativos ligeiros e dificilmente se encontrará
uma peça em que não haja alguns momentos épicos e líricos.

Nesta segunda acepção, os termos adquirem grande amplitude, podendo


ser aplicados mesmo a situações extraliterárias. Pode-se falar de uma noite lírica,
de um banquete épico ou de um jogo de futebol dramático. Neste sentido amplo,
esses termos da teoria literária podem tornar-se nomes para possibilidades
fundamentais da existência humana; nomes que caracterizam atitudes marcantes
em face do mundo e da vida. Há uma maneira dramática de ver o mundo, de
concebê-lo como dividido por antagonismos irreconciliáveis; há um modo épico
de contemplá-lo serenamente na sua vastidão imensa e múltipla; pode-se vivê-lo
liricamente, integrado no ritmo universal e na atmosfera impalpável das estações.

Visto que no gênero geralmente se revela pelo menos certa tendência e


preponderância estilística essencial (na Dramática pelo dramático, na Épica pelo
épico e na Lírica pelo lírico), verifica-se que a classificação dos três gêneros implica
um significado maior do que geralmente se tende a admitir.

218
TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

2) OS GÊNEROS ÉPICO E LÍRICO E SEUS TRAÇOS ESTILÍSTICOS


FUNDAMENTAIS

Observações gerais
Descrevendo-se os três gêneros e atribuindo-se-lhes os traços estilísticos
essenciais, isto é, à Dramática os traços dramáticos, à Épica os traços épicos e à
Lírica os traços líricos, chegar-se-á à constituição de tipos ideiais, puros, como
tais inexistentes, visto neste caso não se tomarem em conta as variações empíricas
e a influência de tendências históricas nas obras individuais que nunca são
inteiramente “puras”. Esses tipos ideais de modo nenhum representam critérios de
valor. A pureza dramática de uma peça teatral não determina seu valor, quer como
obra literária, quer como obra destinada à cena. Na dramaturgia de Shakespeare,
um dos maiores autores dramáticos de todos os tempos, são acentuados os traços
épicos e líricos. Ainda assim se tratam de grandes obras teatrais. Uma peça, como
tal pertencente à Dramática, pode ter traços épicos tão salientes que a sua própria
estrutura de drama é atingida, a ponto de a Dramática quase se confundir com a
Épica. Mas, ainda assim tal peça pode ter grande eficácia teatral. Exemplos disso
são o teatro medieval, oriental, o teatro de Claudel, Wilder ou Brecht. Trata-se
de exemplos extremos que em seguida serão abordados, da mesma forma como
exemplos de menor realce nos quais o cunho épico apenas se associa à Dramática,
sem atingi-la a fundo. É evidente que na constituição mais ou menos épica ou
mais ou menos pura da Dramática influem peculiaridades do autor e da sua
visão do mundo, a sua filiação a correntes históricas, tais como o classicismo ou
romantismo, bem como a temática e o estilo geral da época ou do país.

O gênero lírico e seus traços estilísticos fundamentais

O gênero lírico foi mais acima definido como sendo o mais subjetivo: no
poema lírico uma voz central exprime um estado de alma e o traduz por meio de
orações. Trata-se essencialmente da expressão de emoções e disposições psíquicas,
muitas vezes também de concepções, reflexões e visões enquanto intensamente
vividas e experimentadas. A Lírica tende a ser a plasmação imediata das vivências
intensas de um Eu no encontro com o mundo, sem que se interponham eventos
distendidos no tempo (como na Épica e na Dramática). A manifestação verbal
“imediata” de uma emoção ou de um sentimento é o ponto de partida da Lírica.
Daí segue, quase necessariamente, a relativa brevidade do poema lírico. A isso se
liga, como traço estilístico importante, a extrema intensidade expressiva que não
poderia ser mantida através de uma organização literária muito ampla.

Sendo apenas expressão de um estado emocional e não a narração de


um acontecimento, o poema lírico puro não chega a configurar nitidamente o
personagem central (o Eu lírico que se exprime), nem outros personagens, embora
naturalmente possam ser evocados ou recordados deuses ou seres humanos, de
acordo com o tipo do poema. Qualquer configuração mais nítida de personagens
já implicaria certo traço descritivo e narrativo e não corresponderia à pureza ideal
do gênero e dos seus traços; pureza absoluta que nenhum poema real talvez jamais
atinja. Quanto mais os traços líricos se salientarem, tanto menos se constituirá

219
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

um mundo objetivo, independente das intensas emoções da subjetividade que


se exprime. Prevalecerá a fusão da alma que canta com o mundo, não havendo
distância entre sujeito e objeto. Ao contrário, o mundo, a natureza, os deuses, são
apenas evocados e nomeados para, com maior força, exprimir a tristeza, a solidão
ou a alegria da alma que canta. A chuva não será um acontecimento objetivo que
umedeça personagens envolvidos em situações e ações, mas uma metáfora para
exprimir o estado melancólico da alma que se manifesta; a bem-amada, recordada
pelo Eu lírico, não se constituirá em personagem nítida de quem se narrem ações
e enredos; será apenas nomeada para que se manifeste a saudade, a alegria ou a
dor da voz central.

Apavorado acordo, em treva. O luar


É como o espectro do meu sonho em mim
E sem destino, e louco, sou o mar
Patético, sonâmbulo e sem fim.
(VINICIUS DE MORAIS, Livro de Sonetos)

A treva, o luar, o mar se fundem por inteiro com o Eu lírico, não se


constituem em um mundo à parte, não se emanciparam da consciência que se
manifesta. O universo se torna expressão de um estado interior.

À intensidade expressiva, à concentração e ao caráter “imediato” do


poema lírico, associa-se, como traço estilístico importante, o uso do ritmo e da
musicalidade das palavras e dos versos. De tal modo se realça o valor da aura
conotativa do verbo que este muitas vezes chega a ter uma função mais sonora
que lógico-denotativa. A isso se liga a preponderância da voz do presente que
indica a ausência de distância, geralmente associada ao pretérito. Este caráter
do imediato, que se manifesta na voz do presente, não é, porém, o de uma
atualidade que se processa e distende através do tempo (como na Dramática)
mas de um momento “eterno”. “Apavorado acordo, em treva” – isso pode ser
uma recordação de algo; mas este algo permanece, não é passado. O Eu não diz
“apavorado acordei”; isso daria à recordação um cunho narrativo; há certo tempo
acordei e aconteceu-me isto e aquilo. Mas o “eu acordo” e o pavor associado são
arrancados da sucessão temporal, permanecendo à margem e acima do fluir do
tempo, como um momento inalterável, como presença intemporal. “O elefante
é um animal enorme” – esta oração refere-se à espécie, é um enunciado que não
toma em conta as variações dos elefantes individuais, existentes, temporais. “O
elefante era enorme” – esta organização individualiza o animal, situando-o no
tempo e, por isso, também no espaço. Trata-se de uma oração narrativa.

O gênero épico e seus traços estilísticos

O gênero épico é mais objetivo que o lírico. O mundo objetivo (naturalmente


imaginário), com suas paisagens, cidades e personagens (envolvidas em certas
situações), emancipa-se em larga medida da subjetividade do narrador. Este
geralmente não exprime os próprios estados de alma, mas narra os de outros seres.
Participa, contudo, em maior ou menor grau, dos seus destinos e está sempre

220
TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

presente através do ato de narrar. Mesmo quando os próprios personagens


começam a dialogar em voz direta é ainda o narrador que lhes dá a palavra, lhes
descreve as reações e indica quem fala, através de observações como “disse João”,
“exclamou Maria quase aos gritos” etc.

No poema ou canto líricos um ser humano solitário – ou um grupo –


parece exprimir-se. De modo algum é necessário imaginar a presença de ouvintes
ou interlocutores a quem esse canto se dirige. Cantarolamos ou assobiamos assim
melodias. O que é primordial é a expressão monológica, não a comunicação
a outrem. Já no caso da narração é difícil imaginar que o narrador não esteja
narrando a história a alguém. O narrador, muito mais que se exprimir a si mesmo
(o que naturalmente não é excluído) quer comunicar alguma coisa a outros que,
provavelmente, estão sentados em torno dele e lhe pedem que lhes conte um
“caso”. Como não exprime o próprio estado de alma, mas narra estórias que
aconteceram a outrem, falará com certa serenidade e descreverá objetivamente as
circunstâncias objetivas. A estória foi assim. Ela já aconteceu – a voz é do pretérito
– e aconteceu a outrem; o pronome é “ele” (João, Maria) e em geral não “eu”. Isso
cria certa distância entre o narrador e o mundo narrado. Mesmo quando o narrador
usa o pronome “eu” para narrar uma estória que aparentemente aconteceu a ele
mesmo, apresenta-se já afastado dos eventos contados, mercê do pretérito. Isso
lhe permite tomar uma atitude distanciada e objetiva, contrária à do poeta lírico.

A função mais comunicativa que expressiva da linguagem épica dá ao


narrador maior fôlego para desenvolver, com calma e lucidez, um mundo mais
amplo. Aristóteles salientou este traço estilístico, ao dizer: “Entendo por épico um
conteúdo de vasto assunto”. Disso decorrem, em geral, sintaxe e linguagem mais
lógicas, atenuação do uso sonoro e dos recursos rítmicos.

É, sobretudo, fundamental na narração o desdobramento em sujeito


(narrador) e objeto (mundo narrado). O narrador, ademais, já conhece o futuro
dos personagens (pois toda a estória já decorreu) e tem por isso um horizonte mais
vasto que estes; há, geralmente, dois horizontes: o dos personagens, menor, e o
do narrador, maior. Isso não ocorre no poema lírico, em que existe só o horizonte
do Eu lírico que se exprime. Mesmo na narração em que o narrador conta uma
estória acontecida a ele mesmo, o eu que narra tem horizonte maior do que o eu
narrado e ainda envolvido nos eventos, visto já conhecer o desfecho do caso.

Do exposto também segue que o narrador, distanciado do mundo narrado,


não finge estar fundido com os personagens de que narra os destinos. Geralmente,
finge apenas que presenciou os acontecimentos ou que, de qualquer modo, está
perfeitamente a par deles. De um modo assaz misterioso, parece conhecer até o
íntimo dos personagens, todos os seus pensamentos e emoções, como se fosse
um pequeno deus onisciente. Mas não finge estar identificado ou fundido com
eles. Nunca se transforma neles, não se metamorfoseia. Ao narrar a estória deles
imitará, talvez, quando falam, as suas vozes e esboçará alguns dos seus gestos
e expressões fisionômicas. Mas permanecerá, ao mesmo tempo, o narrador que
apenas mostra ou ilustra como esses personagens se comportaram, sem que passe

221
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

a transformar-se neles. Isso, aliás, seria difícil, pois não poderia transformar-se
sucessivamente em todos eles e ao mesmo tempo manter a atitude distanciada
do narrador.

3)
O GÊNERO DRAMÁTICO E SEUS TRAÇOS ESTILÍSTICOS
FUNDAMENTAIS

Observações gerais

Na Lírica, pois, concebida como idealmente pura, não há oposição sujeito-
objeto. O sujeito como que abarca o mundo, a alma cantante ocupa, por assim
dizer, todo o campo. O mundo, surgindo como conteúdo desta consciência
lírica, é completamente subjetivado. Na Épica pura verifica-se a oposição sujeito-
objeto. Ambos não se confundem. Na Dramática, finalmente, desaparece de novo
a oposição sujeito-objeto. Mas agora a situação é inversa à da Lírica. É agora o
mundo que se apresenta como se estivesse autônomo, absoluto (não relativizado
a um sujeito), emancipado do narrador e da interferência de qualquer sujeito,
quer épico, quer lírico. De certo modo é, portanto, o gênero oposto ao lírico. Neste
último o sujeito é tudo, no dramático o objeto é tudo, a ponto de desaparecer
no teatro, por completo, qualquer mediador, mesmo o narrativo que, na Épica,
apresenta e conta o mundo acontecido.

Traços estilísticos fundamentais da obra dramática pura

O simples fato de que o “autor” (narrador ou Eu lírico) parece estar ausente


da obra – ou confundir-se com todos os personagens de modo a não se distinguir
como entidade específica dentro da obra – implica uma série de consequências
que definem o gênero dramático e os seus traços estilísticos em termos bastante
aproximados das regras aristotélicas. Estando o “autor” ausente, exige-se no
drama o desenvolvimento autônomo dos acontecimentos, sem intervenção de
qualquer mediador, já que o “autor” confiou o desenrolar da ação a personagens
colocados em determinada situação. O começo da peça não pode ser arbitrário,
como que recortado de uma parte qualquer do tecido denso dos eventos
universais, todos eles entrelaçados, mas é determinado pelas exigências internas
da ação apresentada. E a peça termina quando esta ação nitidamente definida
chega ao fim. Concomitantemente impõe-se rigoroso encadeamento causal, cada
cena sendo a causa da próxima e esta sendo o efeito da anterior: o mecanismo
dramático move-se sozinho, sem a presença de um mediador que o possa manter
funcionando. Já na obra épica, o narrador, dono do assunto, tem o direito de
intervir, expandindo a narrativa em espaço e tempo, voltando a épocas anteriores
ou antecipando-se aos acontecimentos, visto conhecer o futuro (dos eventos
passados) e o fim da estória. Bem ao contrário, no drama o futuro é desconhecido;
brota do envolver atual da ação que, em cada apresentação, se origina por assim
dizer pela primeira vez. Quanto ao passado, o drama puro não pode retornar a
ele, a não ser através da evocação dialogada dos personagens; o flashback (recurso
antiquíssimo no gênero épico e muito típico do cinema, que é uma arte narrativa),
que implica não só a evocação dialogada e sim o pleno retrocesso cênico ao

222
TÓPICO 3 | LITERATURA E SUAS RELAÇÕES COM A HISTÓRIA E A SOCIEDADE

passado, é impossível no avanço ininterrupto da ação dramática, cujo tempo é


linear e sucessivo como o tempo empírico da realidade; qualquer interrupção
ou retorno cênico a tempos passados revelariam a intervenção de um narrador
manipulando a estória.

A ação dramática acontece agora e não aconteceu no passado, mesmo


quando se trata de um drama histórico. Lessing, na sua Dramaturgia de Hamburgo,
diz com acerto que o dramaturgo não é um historiador; ele não relata o que
se acredita haver acontecido, “mas faz com que aconteça novamente perante
aos nossos olhos”. Mesmo o “novamente” é demais. Pois a ação dramática,
na sua expressão mais pura, se apresenta sempre “pela primeira vez”. Não
é a representação secundária de algo primário. Origina-se, cada vez, em cada
representação, “pela primeira vez”; não acontece “novamente” o que já aconteceu,
mas, o que acontece, acontece agora, tem a sua origem agora; a ação é “original”,
cada réplica nasce agora, não é citação ou variação de algo dito há muito tempo.

O diálogo

Faltando o narrador, cuja função foi absorvida pelos atores transformados


em personagens, a forma natural de estes últimos se envolverem em tramas
variadas, de se relacionarem e de exporem de maneira compreensível uma ação
complexa e profunda, é o diálogo. É com efeito o diálogo que constitui a Dramática
como literatura e como teatro declamado (apartes e monólogos não afetam a
situação essencialmente dialógica). Para que através do diálogo se produza
uma ação é impositivo que ele contraponha vontades, ou seja, manifestações de
atitudes contrárias. O que se chama, em sentido estilístico, de “dramático”, refere-
se particularmente ao entrechoque de vontades e à tensão criada por um diálogo
através do qual se externam concepções e objetivos contrários produzindo o
conflito. A esse traço estilístico da Dramática associa-se uma série de momentos
secundários, como a “curva dramática” com seu nó, peripécia, clímax, desenlace
etc. O diálogo dramático move a ação através da dialética de afirmação e réplica,
através do entrechoque das intenções.

Se o pronome da Lírica é o Eu e da Épica o Ele, o da Dramática será o Tu


(Vós etc.). O tempo dramático não é o presente eterno da Lírica e, muito menos, o
pretérito da Épica; é o presente que passa, que exprime a atualidade do acontecer
e que envolve tensamente para o futuro. Sendo o pronome Tu o do diálogo,
resulta que a função linguística é menos expressiva (Lírica) ou comunicativa
(Épica) que apelativa. Isto é, as vontades que se externam através do diálogo
visam a influenciar-se mutuamente. Sem dúvida, também as funções expressiva
e comunicativa estão presentes – particularmente com relação ao público – mas
com relação aos outros personagens prepondera o apelo, o desejo de influir,
convencer, dissuadir.

223
UNIDADE 3 | OS GÊNEROS LITERÁRIOS: ÉPICO E NARRATIVO

Texto dramático e teatro

Como o texto dramático puro se compõe, em essência, de diálogos,


faltando-lhe a moldura narrativa que situe os personagens no contexto ambiental
ou lhes descreva o comportamento físico, aspecto etc., ele deve ser caracterizado
como extremamente omisso, de certo modo deficiente. Por isso necessita do
palco para completar-se cenicamente. É o palco que o atualiza e o concretiza,
assumindo de certa forma, através dos atores e cenários, as funções que na
Épica são do narrador. Essa função se manifesta no texto dramático através das
rubricas, rudimento narrativo que é inteiramente absorvido pelo palco. Fortes
elementos coreográficos, pantomímicos e musicais, enquanto surgem no teatro
declamado constituído pelo diálogo, afiguram-se por isso em certa medida como
traços épico-líricos, já que a cena se encarrega no caso de funções narrativas ou
líricas, de comentário, acentuação e descrição que não cabem no diálogo e que no
romance ou epopeia iriam ser exercidas pelo narrador. O paradoxo da literatura
dramática é que ela não se contenta em ser literatura, já que, sendo “incompleta”,
exige a complementação cênica.

FONTE: ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: Perspectiva, 2014, p. 15-35.

224
RESUMO DO TÓPICO 3

Neste tópico, você aprendeu que:

• Teoricamente, as relações da literatura com a história e a sociedade remontam


ao embate sobre a mimese entre Platão e Aristóteles.

• O conceito de verossimilhança, ou seja, o que poderia acontecer em vez de


o que aconteceu, fundamenta, para Aristóteles, a diferença entre literatura e
história.

• Teóricos contemporâneos da literatura e da história compreendem ambas como


narração, adaptando categorias da teoria literária para a análise do discurso
histórico.

• A criação ficcional, especialmente a narração, constitui um impulso humano, e


se estende a uma infinidade de dimensões sociais.

• A relação entre a literatura e a realidade, incluindo a história e a sociedade,


funciona de forma singular, uma vez que a literatura não referencia direta e
imediatamente o mundo.

• A literatura permite pensar sobre o mundo na medida em que o distanciamento


previsto entre a representação literária e as nossas representações do mundo
possibilita apreciar, conhecer e questionar nossas representações.

225
AUTOATIVIDADE

1 Leia o conto “O arquivo”, do escritor brasileiro Victor Giudice (1934-1997),


para quem “a ficção parece absurda porque é a realidade despojada de todas
as mentiras”, e reflita sobre as relações entre a literatura e a realidade, a
literatura e a sociedade. O conto é verossímil? É realista? O que e como ele
representa e significa a nossa realidade?

2 “O pirralho não se mexeu, e Fabiano desejou matá-lo. Tinha o coração grosso,


queria responsabilizar alguém pela sua desgraça. A seca aparecia-lhe como
um fato necessário - e a obstinação da criança irritava-o. Certamente esse
obstáculo miúdo não era culpado, mas dificultava a marcha, e o vaqueiro
precisava chegar, não sabia onde”.

FONTE: RAMOS, Graciliano. Vidas Secas. 89. ed. Rio de Janeiro: Record, 2003.

Considerando o texto acima, assinale a opção correta:

a) ( ) O narrador é homodiegético, narrando as agruras da seca no sertão


brasileiro em primeira pessoa.
b) ( ) Na passagem “A seca aparecia-lhe como um fato necessário”, o autor
emprega o discurso indireto livre.
c) ( ) No trecho “tinha o coração grosso”, o “coração grosso” se refere ao
coração do pirralho que Fabiano desejou matar.
d) ( ) O excerto, narrado em terceira pessoa, trata dos sentimentos de Fabiano
em relação a seu filho.
e) ( ) O autor acredita que a seca é um fato necessário.

226
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