O Ator Ao Lado Do Personagem MANOEL DE OLIVEIRA

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O ator ao lado do personagem : os intépretes de Manoel de Oliveira

Pedro Maciel Guimarães

Dos muitos aforismos de Jean-Luc Godard na época da Nouvelle Vague, um relaciona


diretamente o trabalho do ator à impressão de realidade que supostamente deveria brotar de
uma obra cinematográfica de ficção. Para Godard, “um filme é, antes de tudo, um
documentário sobre seus atores”. Em outras palavras, fazer um documentário sobre o ator,
mesmo num filme dito ficcional, significa encarar o corpo e a personalidade do personagem
não como uma realidade material e abstrata já construída mas em construção dentro de uma
situação precisa e codificada (a filmagem). Godard defende assim o filme como um work in
progres onde narrativa, situações dramáticas e personagens se constrõem perante os olhos do
espectador ao mesmo tempo que o diretor assume toda a artificialidade da sua representação.
Ver o filme de ficção como um documentário sobre a sua feitura e os integrantes de sua
equipe é, na verdade, a ponta do iceberg de uma concepção comum entre os diretores de um
certo tipo de cinema que não calca sua representação apenas no conceito de mimésis ou de
representação de uma realidade. Para esses diretores, filmar uma ficção é, antes de tudo, uma
maneira de registrar como se trabalha um ator e o processo de encarnação de um personagem
fictício. Não é por acaso que Pascal Bonitzer qualifica A Paixão de Joana d’Arc (Dreyer,
1928) de um “documentário sobre os rostos dos atores” (1999: 89) e que Robert Bresson
sentencia que “filmes de CINEMA são documentos de historiador para guardar em arquivos :
como representava, em 19..., Senhor X, Senhorita Y” (2005 : 20). Mas foi durante a Nouvelle
Vague de Godard e seus companheiros que a ideia do filme como documentário sobre sua
filmagem esteve mais em voga, não só nos escritos dos críticos-cineastas mas no próprio
processo de criação dos filmes e na apreciaçao estética desses filmes. No final das contas,
encarar o filme de ficção como um documentário que explicita seu processo de fabricação
serve com um corte brutal à identificação total ou cega entre “espectador” e “personagem”, e
sobretudo, entre “personagem” e “ator”, que nos interessa mais diretamente neste artigo.
O cinema de Manoel de Oliveira é bastante influenciado pelo documentário, gênero no
qual ele começou sua carreira de diretor com Douro Faina Fluvial. Até os anos 60, o cineasta
volta constantemente a essa forma de expressão cinematográfica, sobretudo em certos curtas
metragens feitos sob encomenda, dos quais muitos ficaram inacabados. Uma vez iniciada a
fase mais prolífica da carreira do diretor (a partir de Ato de Primavera, em 1963, que Oliveira
chama justamente de “filme de transição”), o documentário desaparece progressivamente da
sua filmografia, com algumas exceções (Nice…à propos de Jean Vigo, 1983; Lisboa Cultural,
1983; e Porto da minha infância, 2003). No entanto, o espectro do cinema documental
continua bem presente na obra de Oliveira, basta constatar a necessidade do diretor de buscar
sempre a realidade histórica precisa no momento de criar seus personagens, sejam eles
baseados em personalidades históricas ou nos totalmente ficcionais – vide o projeto inicial de
Oliveira para Vale Abrãao, onde o diretor procurou, num primeiro momento, adaptar o fato
real que inspirara Flaubert a escrever Madame Bovary.
O filme de Oliveira que bebe mais profundamente na fonte do “documentário sobre o
ator” defendida por Godard é, seguramente, O Dia do Desespero. Nesse ensaio sobre a vida
do escritor Camilo Castelo Branco, os atores Mário Barroso e Teresa Madruga anunciam,
logo no início, que eles são apenas atores que vão interpretar um papel diante dos olhos do
espectador. Godard usou de uma artimanha parecida em diversos filmes. Em Duas ou três
coisas que eu sei dela (1967), o diretor clama, com sua própria voz, que a moça que vemos
logo nos primeiros minutos do filme é “Marina Vlady, ela é atriz, ela usa um suéter azul
escuro ... ela é de origem russa”. Já em Masculino Feminino (1966) e A Chinesa (1967),
Godard força seus atores a se confessar diretamente para a sua câmera, num jogo de perguntas
e respostas “semi-improvisadas que devem mesclar elementos da vida do ator e do
personagem” (Bergala, 2006 : 354).
Tanto para Godard, quanto para Oliveira, fazer um documentário sobre o ator significa
não deixar que personagem e ator se confundam, que se amalgamem num só ou que um anule
o outro. Poder-se-ia suspeitar o cinema de Manoel de Oliveira de exaltar a figura do ator em
detrimento à do personagem, como sugere o testemunho do ator Luis Miguel Cintra – um dos
atores mais presentes na obra do diretor português – de que Oliveira “filma antes de tudo os
atores e não os personagens” (entrevista de Luis Miguel Cintra, 2007). Esta também é a
opinião de Jorge Silva Melo, autor de um artigo sobre os atores oliveirianos, onde ele afirma
que
“no Passado e o Presente, Oliveira coloca seus atores a representar ... mas não para lhes filmar
a representação (o que eles fazem), mas sobretudo para, através da representação, filmar
(escondidas, reveladas) as pessoas (o que eles fazem – ou como eles estavam)” (Silva Melo,
1981 : 64).

No entanto, a separação total entre ator e personagem não passa de uma ilusão pois
essas duas instâncias enunciativas estão mais ligadas do que deixar crer os defensores da
distanciação brechtiana. Levando em consideração a análise de Silva Melo, seria possível
então reformular a fala de Luis Miguel Cintra e dizer que Oliveira filma, na mesma medida,
atores e personagens, os atores ao lado dos personagens, num jogo que pressupõe
complementação e lateralidade ao invés de anulação ou sobreposição. O teoria do ator
oliveiriano atualiza preceitos da teoria teatral : o do ator psicanalisado que revela seu eu
profundo pensado por Grotowski e o conflito entre o “parecer” e o “aparecer”, entre os atores
que buscam imitar uma realidade corporal (a verossimilhança, o parecer) e aqueles que se
limitam a ser ou a estar (o aparecimento). Essa dicotomia, mais atual que nunca no cinema
moderno, é a base da vanguardas americanas dos anos 60 de Jack Smith ou Andy Warhol – o
“aparecer” do ator atinge seu ápice com a série de Warhol Screen Tests (1965-1966), filmes
curtos compostos de um único plano fixo do rosto de um modelo (personalidades ou
ânonimos), muitas vezes em posição estática ou com movimentos ínfimos.
Jorge Silva Melo reconhece que os intérpretes de Oliveira “pertencem a uma outra raça
que a dos atores, eles não interpretam, eles estão” (1981: 63). Se a língua portuguesa nos
ensina que o verbo “ser” denota um estado permanente e o verbo “estar” uma situação
passageira, a afirmação de Silva Melo nos deixaria crer que Oliveira somente filma então seus
atores “estando” (estando lá, diante da câmera) e não sendo. As afirmações do cineasta não
excluem, no entanto, a vontade do diretor em filmar os atores mais que simplesmente estando
diante da câmera, mas reagindo conforme suas intuições e sua bagagem cultural e humana:
“eu peço sempre aos meus atores, não interpretem, reajam”, sentenciou Oliveira (A. De
Baecque, J. Parsi, 1996 : 107). A utilização de atores como Luis Miguel Cintra e Leonor
Silveira é a prova disso, pois o diretor evolui ao lado desses intérpretes modelando suas
“personas cinematográficas” (o termo é de Patrick McGilligan, 1975 : 199) e condicionando
assim a reutilização deles em filmes de outros diretores.
Um outro exemplo do conflito entre “ser” e “parecer” dos atores de Oliveira está no
díptico formado por O Princípio da Incerteza (2002) e sua sequência Espelho Mágico (2005),
roteiros escritos seguindo a organização narrativa dos romances de Agustina Bessa-Luis, nos
quais os filmes se baseiam. A particularidade de Oliveira consiste em utilizar no segundo
filme alguns atores do primeiro interpretando personagens com traços psicologicamente
opostos aos personagens originais. Assim, Leonor Silveira passa da pérfida Vanessa à santa
Alfreda; Luis Miguel Cintra vai do gentleman Daniel Roper ao falsário Filipe; e Leonor
Baldaque transforma-se da aparentemente doce Camila (na verdade, uma manipuladora) na
aparentemente oportunista Abril/Vicenta (que nada mais é do que uma mãe preocupada com o
futuro do filho). O jogo de aparências estabelecido por Oliveira atinge seu ápice quando os
personagens do segundo filme se referem diretamente aos do primeiro, às vezes com um
ponta de ironia e sarcasmo. “Você ainda pensa na Vanessa, não é José Luciano?”, pergunta
maliciosamente Alfreda (Leonor Silveira) sobre a personagem interpretada por ela mesma no
filme anterior; “Este vestido pertenceu a Camila e já que a Vicenta tem o mesmo corpo...”,
sentencia José Luciano, já que Camila e Vicenta são interpretadas por Leonor Baldaque;
“Camila se casou com o advogado, que parecia-se muito com o Touro Azul”, conta Filipe já
que Touro Azul e o advogado são representados por Ricardo Trêpa. Além de jogar com o
corpo e a “persona cinematográfica” dos seus intérpretes, Oliveira acaba nesse filme com toda
possibilidade de uma leitura psicológica dos seus personagens, outro ponto que singulariza o
trabalho de Oliveira com os atores.

Das restrições físicas à imobilidade

Se os atores de Manoel de Oliveira são impedidos de se apoiar numa descrição


psicológica precisa do personagem, nao é só na dimensão abstrata que o diretor restringe as
regras da interpretação convencional. Oliveira faz de uma série de restrições corporais um dos
elementos principais da sua relação com os atores transformando a postura física dos atores
em um dos pontos determinantes da mise en scène do diretor. As restrições corporais impostas
ao ator resultam em um desvirtuamento das técnicas clássicas de interpretação
cinematográfica e se referem sobretudo a recomendações de postura e de posicionamento da
totalidade do corpo do ator ou apenas de um detalhe (o rosto ou o olhar). Elas determinam
também a economia de gestos ou a limitação absoluta deles na hora da composição do
personagem. Essas ordens de postura, conhecidas comumente como “direção de atores”,
tornam-se rapidemente pressões que condicionam a interpretação do ator e determinam o tom
global do filme devido aos efeitos anti-naturalistas que elas acarretam. A atriz Leonor
Baldaque explicou assim as ordens de postura do diretor:
“As indicações físicas tornam-se pressões psicológicas; a psicologia dos personagens é dada por
uma mise en scène bastante concreta que impõe ao corpo do ator posições milimetricamente
precisas no espaço” (entrevista de Leonor Baldaque, 2006).

As ordens de postura de Oliveira a seus atores são de três naturezas. Primeiro, as que
fazem o ator se dirigir diretamente à câmera, através um olhar direto ao espectador do filme.
Mais que um simples olhar para a câmera, astúcia de direção tão velha quanto o cinema, trata-
se do que Mathias Lavin chama interpelações ao espectador “sem efeito de ambiguidade”
(2008: 99) encontrados sobretudo em filmes onde a dimensão teatral é mais presente (O meu
caso, O sapato de cetim, Os canibais). Esse interpelação direta está presente também nos
filmes que não são adaptações de peças de teatro mas dos quais a mise en scène parece
recheada de efeitos próprios ao teatro (frontalidade e estaticidade do plano, sobretudo). É o
caso exemplar de Amor de Perdição e Francisca, dois filmes adaptados de obras literárias
mas que, segundo as palavras de Oliveira, acabam por ser “mais teatro do que as adaptações
de textos escritos para o palco como Benilde” (entrevista de Manoel de Oliveira, 1981).
A segunda ordem de postura é decorrente da primeira e visa a fazer os atores dialogar
sem se olharem diretamente. Trata-se de uma variação da relação de lateralidade que liga ator
e personagem (ator ao lado do personagem), que se torna aqui “o ator ao lado do ator”. No
lugar de olharem para o espaço da câmera ou de estarem frente a frente olhando-se nos olhos
– postura usual dos campo/contracampo – os atores dizem seus textos lado a lado, com o
rosto virado para algum ponto, aleatório, do campo ou do extracampo. Tal ordem de postura
vai ao encontro da prática da declamação e transforma rapidemente diálogos em solilóquios
nos quais a dimensão da palavra trocada é substituída pela palavra somente proferida. Cada
personagem busca assim a valorização do seu texto sem que haja necessariamente um
interesse pelo texto que diz seu colega – apesar disso, existe uma impressão de continuidade
temática em todos esses momentos. Não é por acaso que esses personagens estabelecem
relações que acabam se revelando mais como relações de dominação do que relações
amorosas ou de cumplicidade. É o caso exemplar de Simão e Teresa ( Amor de Perdição, que
passam a maior parte do tempo separados pela decupagem do plano assim como os
personagens literários de Camilo Castelo Branco pouco se encontraram); de José Augusto e
Fanny (Francisca, a personagem feminina nada mais é do que um joguete nas mãos das
personagens masculinas); e de Camila e Vanessa (O Princípio da Incerteza, ora cúmplices,
ora rivais mas sempre dominadoras). Tal ordem de postura perpassa a obra oliveiriana de uma
maneira geral, a ponto de se tornar um dos traços de estilo mais facilmente reconhecíveis do
diretor.
A terceira ordem de postura é mais abstrata e concerne diretamente o texto literário ou
teatral adaptado e o contexto social no qual os personagens estão inseridos. Nesse momento,
intervém-se uma impressão de defasagem ou de deslocamento temporal já que Oliveira decide
respeitar a organização formal e temática de um texto escrito em outro século enquanto que a
ação dos filmes que os adaptam são transpostas para o mundo contemporâneo. É o caso de A
Carta, baseado em texto do século XVII de Madame de Lafayette, e de Singularidades de
uma rapariga loura, de um conto do início do século XX de Eça de Queirós. As histórias da
jovem burguesa parisiense que se furta a viver uma paixão por preceitos morais (A Carta) e
do rapaz que, na Lisboa atual, rompe com sua namorada pelo fato de ela ser cleptomaníaca
(Singularidades) seriam dificilmente engolidas em um cinema calcado na verossimilhança das
situações. No cinema de Oliveira, essas histórias ganham em veracidade e se tornam credíveis
pela mise en scène temporalmente pouco definida (ou abertamente atemporal) que o diretor
escolhe para esses filmes. O Ato do Primavera poderia ser objeto de uma análise similar já
que o texto da representação da paixão de Cristo é, na verdade, baseado em texto escrito por
Francisco Vaz de Guimarães, Acto da muito dolorsa paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo
conforme escrevem os evangelistas, no século XVI.
Esse tipo de restrições a uma interpretação naturalista do ator pode atingir ainda textos
contemporâneos, como os de Agustina Bessa-Luis, a partir do momento em que Oliveira
decide transpor os diálogos dos romances ou dos contos da escritora diretamente em seu
filme. Uma das práticas do processo de adaptação de Manoel de Oliveira consistia em recortar
trechos das páginas dos romances ou peças de teatro adaptados e colá-los diretamente nas
páginas dos seus roteiros. Oliveira procede assim de uma maneira análoga à de Alain Resnais
que incentivava Marguerite Duras a “fazer literário, sem complexos” durante a escrita dos
diálogos do filme Hiroshima mon amour (Pingaud, 1961 : 40). Esta postura de respeito
incondicional ao texto adaptado, uma das características do processo criativo do diretor
português, inflige à mise en scène oliveiriana uma sobriedade única. Os atores são inseridos
no centro não só dos códigos sociais que parecem provenientes de uma outra época (A Carta,
Singularidades...) mais também no meio de uma rigidez abertamente literária dos diálogos
inventados pela escritora (Vale Abraão, Party).
Em A Carta, os diálogos não foram diretamente extraídos do romance original mas
criados num registro de linguagem abertamente aristocrática e literário – numa colaboração
entre Oliveira e o francês Jacques Parsi – que visava a se aproximar ao máximo da polidez
aristocrática do texto de Madame de Lafayette. Nesse filme, Chiara Mastroianni sofreu de
perto a pressão do espectro do texto escrito que paira sobre o trabalho do ator :
“a dificuldade criada por um texto como esse termina por servir à interpretação do ator. É a
mesma coisa que interpretar com um espartilho. O ator se posiciona de uma maneira precisa e a
metade do trabalho já está feito.” (entrevista de Chiara Mastroianni, 1999).

“Interpretar com um espartilho” é sem dúvida a melhor imagem das restrições físicas
impostas ao ator oliveiriano. No entanto, o diretor ultrapassa a metáfora do amarramento do
tronco humano em momentos de submissão do ator ao cenário dignos do Beckett de Dias
felizes. Em O sapato de cetim, por exemplo, Oliveira obriga a atriz Marie-Christine Barrault a
subir por uma escada colocada atrás de um painel no célebre monólogo da Lua. Durante quase
10 minutos, somente o rosto da atriz será visto por um buraco no painel com o desenho do
astro que ela deve representar. Neste plano, que “resume o filme como um todo pela sua
sobriedade e o gosto pelo artificial” (Lavin, 2008 : 161), o corpo do ator, seus movimentos
corporais e sua interpretação são completamente determinados pela posição de imobilidade à
qual o intérprete é submetido. A mesma coisa acontece com Manuela de Freitas (doña Isabel)
e Jacques le Carpentier (don Ramire) transformados em cartas de tarô à maneira dos painéis
circenses espalhados pelas festas populares no velho truque da image com rosto real e corpo
desenhado ou pintado. Nesses momentos, é possível notar a consonância de ideias com
relação ao ator entre a mise en scène de Oliveira e as referências de Paul Claudel uma vez que
as indicações de “aprisionamento corporal” do intérprete foram extraídas diretamente do texto
do dramaturgo francês.
A manipulação do corpo do ator de maneira a extrair dele uma interpretação anti-
naturalista e sem “afetação nos gestos”, como escreveu Kleist (2003: 14) aproxima os
intérpretes oliveirianos de marionetes, moldadas perenemente pela mão rígida e invísivel da
da mise en scène do diretor. Não é por acaso que atrizes pouco experientes que apareceram
nos filmes do diretor revelaram terem a impressão de “nunca ter atuado no cinema” antes de
trabalhar com Oliveira (Chiara Mastroianni, entrevista 1999 : 25) ou de terem “uma
personalidade suficientemente virgem para ser plenamente moldada por ele” (Leonor Silveira,
entrevista 1999 : 73). A mise en scène oliveiriana chega ao cúmulo de “dirigir o ator como
uma coisa”, postura identificada por Jacqueline Nacache na obra de diretores como Godard,
Rosselini ou Bresson (2006 : 27). Na obra de Oliveira, os recursos de montagem e de
enquadramento levam os personagens a “dialogar” com estátuas (Inquietude, O Convento)
sendo que as vantagens da representação são colocadas, às vezes, do lado da coisa (animal,
objeto) e não do ator (o peixe gigante em foco e os atores fora de foco em Party, o plano que
“corta” a cabeça de Ema e mostra o gato que ela acaricia em Vale Abraão). Charles Tesson
escreve que Jean-Marie Straub filma o corpo humano como “uma planta ou uma árvore”
(1990, p. 54), tirando do corpo e do rosto do ator a capacidade em ser o centro de um plano e
o vetor principal da interpretação. Da mesma maneira, Oliveira transforma o “corpo dos seus
atores em paisagem” (Daney, 1981) a partir do momento em que ele renega todas as afetações
faciais da interpretação e prefere uma atitude serena, pausada e neutra do seu intérprete – não
é por acaso que os atores de Benilde, Amor de Perdição e Francisca podem ser vistos como
seres em estado de transe ou atacados por crises de sonambulismo.
Tratar o ator como uma paisagem ou como um objeto insere-se na preocupação de
Manoel de Oliveira em não criar concorrência alguma ao texto que ele adapta, seja através da
utilização exagerada dos recursos específicos do dispositivo cinematográfico (excesso de
cortes, por exemplo) seja através de uma interpretação pseudo-naturalista. Godard já dizia que
a “interpretação é inimiga do texto” (Bergala, 2006 : 82), afirmativa que Oliveira parece fazer
sua ao escolher a imobilidade do ator como a principal marca do seu trabalho com os
interprétes. O cinema de Oliveira transforma-se então na “arte da pose” (Kazanski, 1996 :
117), o que reforça as relações entre seus filmes e a pintura. Durante a tetralogia dos amores
frustrados, por exemplo, os corpos dos atores eram submetidos a verdadeiros quadros-vivos
onde a inércia do corpos do ator privilegiava o aparecimento de momentos onde o “corpo
humano se faz quadro” (Vouilloux, 2002). Com a evolução cronológica da filmografia de
Oliveira, a rigidez dos atores no plano diminui e dá lugar a uma interpretação menos estática
mas ainda assim limitada no que diz respeito à utlização de gestos e a banalização dos
movimentos corporais do ator.

O Dia do Desespero: resumo da postura de Oliveira junto aos atores

O Dia do Desespero é, sem dúvida, o filme onde aparece, de maneira mais insistente, a
ideia de posicionamento lateral dos corpos no plano. É também nesse filme em que a relação
ator/personagem é levada ao paroxismo e a representação da relação entre essas duas
instâncias enunciativas é a mais variada. O filme de 1992 mostra alguns momentos dos
últimos dias de vida do escritor Camilo Castelo Branco e sua relação com sua amante Ana
Plácido. Trata-se de um fime de ficção onde o rigor documentário se faz presente, já que
Oliveira sempre insistiu no respeito às fontes históricas (testemunhos, autos do processo do
suicídio de Camilo) no momento da escrita do roteiro, da filmagem e da montagem. O diretor
confessou até mesmo ter retirado, na hora da montagem, um plano de um revólver
representando aquele com o qual Camilo teria se matado já que a amante do escritor teria dito
não ter visto a arma que matou seu companheiro (entrevista de Manoel de Oliveira, 1992 :
83). Além disso, obedecendo à vontade de mostrar a memória dos lugares, tão importante
para o seu cinema, Oliveira filmou na casa onde morou Camilo, transformada num museu.
Mesmo essa preocupação documental não impediu o diretor de acabar com todo efeito
de reconstituição histórica ordinária e de criar, no final das contas, mais do que um
documentário sobre a vida do escritor, um ensaio sobre o trabalho de encarnação de um
personagem elevando o ator ao estatus de instância enunciativa de igual valor ao personagem.
Como na obra de Godard, a vontade de Oliveira em fazer um documentário sobre o ator
é diretamente ligado ao conceito de distanciação brechtiana – Godard insiste mais
abertamente na sua filiação ao dramaturgo alemão como em Duas ou três coisas que eu sei
dela, que começa com um citação do “pai Brecht” na boca da atriz Marina Vlady : “Fale
através de citações de verdades. É o pai Brecht que dizia isto, que os atores devem citar”. Em
O dia do desespero, a tentação de uma representação teatral clássica é bloqueada por
constantes idas e vindas entre o ator e o personagem e pela postura dos intérpretes em
anunciar abertamente os métodos de encarnação do personagem. “Eu sou Mário Barroso, que
vai interpretar e evocar uma das grandes figuras do romance português do século XX” / “Eu
sou a atriz Teresa Madruga, que vai encarnar momentos da vida de Ana Plácido”, sentenciam
os atores logo no começo do filme. Nos diversos momentos em que ator e personagem se
alternam enquanto narradores do filme, Oliveira livra seus intérpretes das obrigações ligadas à
mimesis – Barroso e Madruga aparecem as vezes vestidos com roupas atuais enquanto
“interpretam” Camilo e Ana Plácido, personagens que viveram no século XIX – e reforça a
coexistência num mesmo corpo dessas duas instâncias enunciativas. René Predal descreveu
assim o momento pendular que domina o filme :
“A passagem do ator ao personagem se opera progressivamente, sempre com as voltas ao ator, o
que bloqueia a identificação de um ao outro ... ao contrário do cinema da transparência, que
sutura personagem e ator, este filme opera um tipo de montagem do personagem ao lado do
ator” (Predal, 2006 : 111).

Em O dia do desespero, a montagem é a grande responsável pela organização formal


que coloca ator e personagem lado a lado. Quando ele prefere a continuidade espacial e
temporal, o diretor desorganiza a separação clara entre as duas instâncias enunciativas ao
filmar um diálogo entre o personagem fílmico Camilo (Mário Barroso representando Camilo)
e Teresa Madruga (a atriz). A cohabitação, por vezes pacífica entre ator e personagem, deixa
de ser a regra na sequência que se inicia com o personagem “encarnado” (Ana Plácido), passa
ao ator sofrendo a “desencarnação” (Teresa retira bruscamente a peruca que caracteriza
fisicamente seu personagem, ao mesmo tempo em que a trilha sonora para bruscamente) e
termina com o ator “desencarnado” de seu personagem se dirigindo ao espectador (Teresa cita
em francês uma frase atribuida a George Sand extraída do primeiro livro de Ana Plácido).
Nesta sequência, Oliveira recorre à decupagem, o que diminui o efeito de
encarnação/desencarnação sem, no entanto, anulá-lo totalmente. Um efeito de batalha pelo
aparecimento se instala então entre personagem e ator, com uma clara supremacia do
segundo, que termina por tomar a palavra de maneira mais insistente.
Em O dia do desepero, o ator dirige por diversas vezes a palavra diretamente ao
espectador, tornando-se assim um pleno personagem-narrador. Teresa Madruga, por exemplo,
ultrapassa seu “contrato” de encarnar Ana Plácido ao assumir a função narrativa de contar o
sofrimento dos últimos dias de Camilo devido à cegueira e de citar textos das cartas do
escritor. Oliveira permite aos seus atores até um rápido diálogo entre colegas de profissão que
se aparenta a um conversa entre amigos quando Madruga e Barroso especulam sobre as atores
picturais encontradas no local das filmagens que daria indícios sobre a personalidade
depressiva de Camilo. A intonação de voz dos dois atores passa então do tom declamatório e
monocórdico, que domina praticamente todo o filme, ao da conversa informal.
Quando Oliveira recorre plenamente à montagem, ele cria sequências em
campo/contracampo entre Teresa Madruga (atriz) e Teresa Madruga (encarnando Ana
Plácido) com um perfeito raccord de olhar entre a intérprete e seu personagem. Até nos
momentos de falso raccord, Oliveira transforma essa deformação narrativa em benefício para
seu filme. É o caso do momento em que Teresa, vestida com roupas de época de Ana Plácido,
começa a subir as escadas e Teresa, vestida com roupas de hoje em dia, termina a subida.
Parafraseando Jacques Rivette, pode-se dizer que Ana Plácido “desapareceu na colagem dos
planos” (1969 : 210) cedendo lugar a Teresa Madruga. A montagem garante, alguns minutos
mais tarde, o retorno da atriz à personagem, no efeito de oscilação que domina todo o filme. O
extracampo torna-se então o espaço da desencarnação e da reencarnação, uma zona de
sombras com poderes mágicos que garante a passagem do ator ao personagem e que define a
forma fílmica.
O jogo de duplicação e desdobramento que atinge o corpo atinge seu paroxismo quando
da imbricação, aparentemente desordenada, entre os atores e personnages de diferentes
narrativas. Em O Dia do Desespero, Teresa Madruga e Mário Barroso encarnam não só o
escritor e sua amante, mas também os personagens do romance de Camilo, Amor de Perdição,
os jovens apaixonados Simão Botelho (tio de Camilo) e Teresa de Albuquerque. Separados
pela decupagem, Barroso e Madruga recitam, cada um no seu quadro, textos das cartas
trocadas pelos dois amantes – também no romance de Camilo, Simão e Teresa passam a
maior parte do tempo separados fisicamente e trocando cartas de amor. A coincidência dos
nomes da atriz e da personagem camiliana gera, durante um curto momento, uma confusão
entre tempo e espaço. No espaço fora de campo, Mário Barroso, recitando Camilo (que citava,
por sua vez, o personagem Simão) chama sua amada pelo seu nome (Teresa, de Albuquerque)
chamamento que Teresa (Madruga, a atriz-personagem) responde com um leve movimento de
cabeça significando atenção. A intromissão dos personagens literários no meio da intriga
fílmica é, no entanto, menos intrusiva que parece. Os atores interpretam esses personagens,
originalmente literários, de maneira ligeiramente distinta do resto do filme. A postura física e
o tratamento da voz aproxima-se de um transe, de uma expressão ainda mais monocórdica e
quase sem movimento algum, como se eles quisessem reforçar a diferença de registro entre
personagens fílmicos e personagens literários. Ao final da representação, Teresa ocupa-se de
fechar, metaforicamente, as cortinas do drama, em realidade as cortinas que separam os
quartos de Camilo e Ana Plácido, ao mesmo tempo que a música é interrompida bruscamente.
Terminou-se o espetáculo teatral, o filme pode então continuar!
Em O Dia do Desespero, existem na verdade apenas duas sequências de reconstituição
histórica ordinária, ou seja, que se baseiam na mimésis e na representação, segundo os moldes
clássicos, de momentos vividos pela figura histórica. Trata-se da cena onde Camilo dita a Ana
Plácido uma carta endereçada ao seu médico e a última sequência, mais longa, do suicídio do
personagem principal e da deposição oficial da companheira do escritor. A supremacia do ator
sobre o personagem, cinematográfico ou literário, torna-se nesse filme incontestável. É ele,
em sua consciência de ator e não sob alguma máscara de personagem, que faz a história
avançar ao anunciar os episódios dos últimos dias de Camilo. Os trechos em mimésis
espalhados pelo filme servem apenas como uma maneira de variar o registro da imagem –
afinal de contas, trata-se de um filme de ficção e não de um documentário – ou de representar
algumas das passagens descritas nas cartas de Camilo ou na sua prosa. O ator torna-se então o
vetor da verdade histórica, verdade essa perseguida obsessivamente por Oliveira nos seus
filmes. Nesse sentido, O Dia do Desespero se iguala a NON ou a vã glória de mandar no que
diz respeito ao investimento do corpo e da voz do ator como elemento de transmissão de uma
verdade histórica (no caso de NON) ou biográfica (no caso do filme sobre Camilo). O Dia do
Desespero aparece, sobretudo, como um resumo do pensamento oliveiriano sobre o ator. Ao
explicitar o movimento pendular entre ator e personagem, Oliveira reforça a possibilidade de
um se substituir à outro e a constante reversibilidade que marca o processo de interpretação
do ator no cinema moderno. No final das contas, o diretor afirma a coexistência, num mesmo
corpo, dessas duas instâncias enunciativas e defende que sua aparição lado a lado em nada
prejudica a interpretação dando ao ator novas possibilidades na figuração de um personage.
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Publicado em
“O ator ao lado do personagem : os intérpretes de Manoel de Oliveira”. In: Carolin
Overhoff Ferreira. (Org.). Manoel de Oliveira : novas perspectivas sobre a sua obra. 1ed.São
Paulo: FAP Unifesp, 2013, v. 1, p. 165-181.

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