O Espírito Zen - Alan Watts PDF

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O “Vazio e Maravilhoso” na obra O Bud is m o Ze n de

Alan W. Watts

Carlos Sacramento
Curso de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

“A sabedoria existe, o princípio existe, o caminho existe, o espírito é vazio.”


Shinmen Musashi

Este pequeno trabalho é baseado no livro O Budismo Zen de Alan W. Watts e


centra-se essencialmente no capítulo “Vazio e Maravilhoso” que consiste numa
tentativa de abordar os princípios e a prática do Zen. Muito embora o livro de Watts seja
magnífico na maneira humilde com que aborda o Zen, ele ainda poderá ser inacessível
aos leitores que desconhecem qualquer tipo de Filosofia oriental. Deste modo, é
objectivo deste trabalho, sem descurar os aspectos filosóficos, apresentar com uma
linguagem simples e acessível a qualquer leitor o fascínio do Zen e porque motivo
continua a encantar e a suscitar curiosidade e mistério um pouco por todo o Mundo.
Ainda
bastanteassim é necessário
elucidativo que se
na maneira diga,explora
como em abono da verdade,
o terreno do Zen, que o livro
não só de Watts é
por desmistificar
muitas opiniões ou visões idílicas e falsas mas também devido à própria complexidade
do Zen que torna a sua explicação bastante difícil. Ora, Watts soube extrair e explicar o
que mais interessava apresentar ao leitor (que a leitura do seu livro possa ser difícil, a
culpa não lhe pode ser atribuída pois Watts, ainda assim, simplificou o conteúdo do
Zen). O Zen está mais relacionado com uma prática do que propriamente com uma
doutrina (caso da maioria das Religiões do Mundo) e é difícil de explicá-lo por palavras
pois trata-se de uma prática que cada pessoa deve descobrir por si. O melhor que se
pode fazer, tal como o próprio Alan Watts mencionou na excelente introdução do seu
livro, é um estudo aproximado.
“Se existe alguma coisa neste mundo que transcenda as relatividades do
condicionamento cultural, ela é o Zen – seja qual for o nome com que o designem” 1 .
O Zen é mais uma escola, poderemos até dizer um desenvolvimento, do
Budismo mas que nasceu no Japão. Trata-se de um caminho de meditação que conduz à
salvação por força própria na qual o valor do silêncio, do sacrifício, do recolhimento e
da concentração, e do domínio de todas as paixões é, especialmente, necessário. Esta
doutrina “foi desenvolvida, principalmente, pelos mestres Zen Eisai (1141-1215) e
Dogen (1200-1253) que consideravam Zen uma aspiração à iluminação directa baseada
na (auto) disciplina, sob a instrução de um mestre” 2 . Convém ainda realçar que a
palavra Zen é um sinónimo da palavra meditação e que zazen é o nome atribuído aos
exercícios de meditação com o objectivo de alcançar a iluminação imediata (satori).
Alan Watts começa por abordar o Zen, talvez da melhor maneira, ao explicar o
seu oposto, isto é, os nossos apegos dos quais resultam conflitos que nos trazem
sofrimento. É devido aos apegos que temos uma visão dualista do Mundo e somos

levados a fazer
procurarmos umaescolhas
vida felizemé muito
termoscomum
do quefazermos
é bom edodo que ée do
“bem” mau. Em um
“bom” função
idealdea
1
Watts, Alan W., O Budismo Zen, Tradução de Carlos Grifo Babo, 5ª edição, Lisboa, Ed. Presença,
2OOO, p.15-16.
2
Hattstein, Markus, Religiões do Mundo, Tradução de Paula da Silva, Alemanha, Köneman
Verlagsgesellschaft mbH, 2000, p.55.
perseguir pois este caminho é o único que parece fazer algum tipo de sentido para a
nossa vida (ou pelo menos segundo a opinião geral). Para o Zen, esta é sem dúvida “a
ilusão mais cara à mente humana, a de que, com o decorrer do tempo, tudo se irá
tornando cada vez melhor” 3 . É fácil de perceber que neste padrão dualista não há bom
sem mau, o bom que escolhemos é sempre temporário e passado algum tempo cede o
seu lugar ao mau e vice-versa infinitamente, e assim é porque apenas só temos que fazer
escolhas quando obedecemos aos nossos desejos. Consequentemente, daí resulta uma
dualidade pois se fazemos uma escolha é porque temos de decidir entre duas ou mais
coisas, e se assim não fosse não necessitaríamos fazer uma escolha pois estaríamos
perante uma unidade sem possibilidade para escolher.
O Zen procura abolir a visão dualista do Mundo, ou melhor, o pensamento de que a
felicidade vai resultar do triunfo da escolha do bem sobre o mal. Takuan Soho, um
monge japonês, afirmava que: “Quando um único pensamento surge, tanto o bem como
o mal existem” 4 . Mas o facto é que não nos apercebemos disto e continuamos a busca
incessante em aumentar aquilo que nos parece ser o que é “bom”. O que mais
procuramos na vida é alcançar êxitos. Mas o que é alcançar êxitos? É claro que aquilo a
que cada pessoa chama de êxitos varia mas normalmente está associado à obtenção de
melhores condições de vida tais como: ter uma casa grande (e já agora com uma
piscina), ter um emprego com um salário gordo; a obtenção destes “êxitos” ou outros
semelhantes estão sempre, erroneamente, associados à felicidade. Mas, mais uma vez,
esquecemo-nos de que a satisfação da obtenção de um êxito é temporária e quantos mais
êxitos alcançarmos mais vamos querer, tornamo-nos numas “bestas insaciáveis”.
“Alcançar o êxito é sempre falhar - no sentido de que quanto maior é o êxito que se
alcança num determinado caminho, tanto maior é também a necessidade de continuar a
alcançá-lo”5 .
Quando satisfazemos um desejo cessa a procura e vem a estabilização mas esta é de
pouca dura pois brevemente irá surgir outro desejo para nos destabilizar (isto certamente
fará lembrar Schopenhauer, para quem conhece a sua filosofia é claro). Alan Watts
captou bem este aspecto não só pelos poemas Zen que escolheu para o demonstrar mas
também através de uma analogia bastante clara ao explicar que quando temos uma cama
dura e desconfortável, a nossa opção é comprar uma cama nova mais confortável e
assim dormimos em paz durante algum tempo mas em breve surge de novo uma
sensação de desconforto
relação à sensação e isto porque
de desconforto (…)”“a
6 sensação de conforto só pode ser mantida em
.
É claro que daqui não devemos tirar a conclusão de que o Zen nega a vida ou que
promove actos de auto-sofrimento ou até mesmo o suicídio. Tal como Watts explica,
não devemos deixar de comer quando temos fome, até porque existem aspectos dos
quais não existe desapego, que são necessários para a nossa sobrevivência tais como as
razões de ordem biológica. “No Verão suamos; no Inverno trememos” 7 . Não se pode
contrariar aquilo que não é susceptível de ser contrariado.
O desapego pode significar libertarmo-nos daquilo que é fútil, por exemplo:
quando compramos roupas não precisamos de comprar as mais caras que existem no
mercado apenas porque estão na moda mas sim o necessário para não termos frio; ou
quando queremos saciar a fome basta ingerirmos o suficiente para sobreviver (tal foi o
caso do Buda), não é preciso deixarmo-nos levar pela gula e pelo desperdício. Pode-se

3
O Budismo Zen, op.cit., p.122.
4
Soho, Takuan, Espírito Indomável, Queluz, Coisas de Ler Edições Lda, 2003, p.35.
5
O Budismo Zen, op.cit., p.122.
6
Ibidem.
7
Zenrin Ruishu.

2
até falar na procura de um equilíbrio em relação ao modo de viver 8 . Ficou bem claro
que, segundo o Zen, os apegos sejam quais forem (bens ou ideais) não têm nenhum
outro objectivo ou propósito senão o seu aumento, é um ciclo vicioso em que se salta de
desejo para desejo tal como um macaco salta de ramo para ramo 9 . Este não é o caminho
para a felicidade mas sim o caminho para a perdição, pois quando nos agarramos com
muita força aos bens materiais e depois temos que abdicar deles perdemo-nos em choros
e lamentações Além disso devemo-nos lembrar que os bens (usando uma expressão
macabra) não vão connosco para debaixo da terra.
Na visão do Zen, não há dualidade pois não há verdadeiramente uma separação
entre sujeito e objecto, conhecedor e conhecido. “Não suamos porque faz calor; o suar é
o calor” 10 . O Zen apela a que nos encontremos a nós próprios e explica-nos que o nosso
falso “eu” resulta do condicionamento que a nossa própria mente nos impõe.
Encontramo-nos confusos e frequentemente iludimo-nos quando não compreendemos
verdadeiramente a relação mente-corpo. Todos os dias criamos ideias que nos são
estranhas a nós próprios porque sentimos que estamos neste Mundo sem escolha e que
tudo aquilo que nos acontece foi imposto por “algo”. Tomemos, por exemplo, a
concepção de Deus: concebemos a existência de um Deus como sendo a causa da nossa
existência e de tudo o que existe mas no entanto esta ideia não deixa de ser estranha a
nós próprios e acreditamos veemente nela como algo de verdadeiro e ao qual estamos
completamente subjugados 11 . A concepção de um Deus criador do Mundo, segundo o
Zen, não passa de mais uma ideia abstracta, uma construção da mente que procura
desesperadamente justificar as existências humanas, mais uma construção artificial
completamente desligada do “real”. “O nosso problema está em que o poder do
pensamento nos dá a capacidade de construir símbolos de coisas, estranhos às próprias
coisas, incluindo a de criar um símbolo, uma ideia de nós próprios, estranha a nós
próprios”12 . Daqui vai surgir a ideia de que temos um “ego”, algo que nos é
intrinsecamente próprio e que é aquilo que nos individualiza ou caracteriza e que vai
alimentando ideias atrás de ideias. Mas, de acordo com o Zen, esta não é a nossa
verdadeira natureza mas sim uma matriz ilusória. Apenas quando abolimos esta ideia
que temos de nós próprios (o “ego”) é que estamos realmente livres para apreender a
nossa verdadeira natureza e a realidade que nos envolve, deixamos de viver numa
multiplicidade e passamos a viver numa unidade.
“A vida do
realmente – oZen
bemcomeça, pois,
sem o mal desiludindo
, a satisfação a persecução
de um ego que nãodeé mais
fins do
queque
não existem
uma ideia,
13
e o amanhã que nunca chega” .
Mas, tal como Alan Watts explicitou bastante bem, o Zen não deve ser encarado como
um sistema de aperfeiçoamento pessoal pois todas as ideias de aperfeiçoamento pessoal
fazem parte do “ego”, estão ligadas a um desejo. Outro aspecto muito importante na
8
Falar no estado de espírito que o Zen pretende atingir é impossível, o caro leitor que me perdoe mas
daqui podem resultar más interpretações em relação ao Zen e optei por utilizar a palavra “equilíbrio” mas
tal não deve ser tomada à letra. É importante que o leitor tenha em consideração que, tal como os budistas
utilizam a palavra Nirvana, fiz questão de neste caso utilizar a palavra “equilíbrio” única e
exclusivamente para ter algo a que me referir uma vez que eu próprio não tenho a experiência da
“iluminação”.
9
Cf. Yamahata, Hôgen, Folhas caem, um novo rebento, Lisboa, Assírio e Alvim, 2002. pp.77-83.
Neste livro sobre
acercaodoZen,
Zenee em
particular
sobre nas
o malpáginas
mencionadas,
dos nossoso apegos
leitor pode encontrar
informações também que resulta (questão do ego).preciosas
10
O Budismo Zen, op.cit., p.124.
11
Talvez este exemplo explique um pouco o ateísmo do Budismo mas também é necessário ter em conta
que o Budismo é bastante tolerante e respeita quem acredita ou presta culto a divindades.
12
Op.cit., p.125.
13
O Budismo Zen, op.cit., p.130.

3
prática do Zen é exigir a eliminação de qualquer pensamento, esforço ou desejo de obter
algo e isto porque as nossas acções devem ser naturalmente espontâneas, devem brotar
de dentro de nós sem qualquer esforço. Segundo as palavras de Te-Shan:

“Só quando já não tiveres coisas na tua mente, nem a mente nas coisas, estarás
vago e espiritual, vazio e maravilhoso”.

Em suma, o Mundo para o Zen pode ser descrito como “o vazio” (não no sentido
em que não existe nada) porque é um Mundo liberto dos condicionamentos da mente,
ou por palavras mais expressivas, liberto das convenções sociais. Não é uma fuga à
realidade mas sim um encontro com ela.
O que o Zen nos propõe é um retiro espiritual, um auto-despertar para a verdadeira
realidade da vida, uma união entre o homem e tudo o que lhe rodeia. O caminho do Zen
passa pela supressão do indivíduo enquanto Ser que procura satisfazer os seus desejos e
encontrar um Ser em plena harmonia na vida cósmica, é um Ser que se vê a si mesmo
no “vazio” tal como ele é. É claro que isto pode parecer uma utopia, algo de impossível
de concretizar e completamente idílico, em especial nos nossos dias, pois encontramo-
nos cada vez mais condicionados pelos avanços tecnológicos (que supostamente
deveriam fazer com que pudéssemos usufruir de mais tempo livre mas de facto acontece
o inverso. Grande ironia!). E também porque estamos cada vez mais agarrados aos
nossos preconceitos, à ideia de que o dinheiro e a beleza fisíca são o sinónimo de
felicidade. Também é verdade que nunca mudamos em relação a este aspecto porque
interiorizamos constantemente a ideia de que é impossível que outros valores tragam-
nos tanta felicidade ou até mais, mas, é claro, não podemos desejar a mudança pois isso
contraria o Zen. Talvez duas palavras sejam o suficiente para melhor caracterizar o Zen:
simplicidade e espontaneidade. Este é o verdadeiro caminho para a liberdade (no seu
verdadeiro sentido).
Mas poderemos nós acreditar na mudança? E porque não? Afinal de contas o Mundo
não é aquilo que nós fazemos dele?
Uma grande mensagem do Zen 14 , a meu ver, é que continuamos, cada vez mais,
a ignorar uma parte da nossa vida sem a qual não podemos viver, isto é, a parte
espiritual. Ao ignorarmos a nossa parte espiritual negamos e afastamo-nos da nossa
identidade cósmica,
guiar e ajudar ficamos
a descobrir qualperdidos a vaguear
o “verdadeiro no Mundo
caminho” sem uma
a percorrer bússola
na nossa para nos
existência.
O leitor que me desculpe se acha que fiz uma interpretação errada ou demasiado pessoal
do Zen mas a mensagem mais importante do Zen é mesmo esta: procurarmos por nós
próprios a nossa prática Zen e consequentemente o caminho para a “iluminação”.
Agora, o caro leitor pode esquecer tudo o que acabei de dizer e procurar a sua
prática Zen e quem sabe se não atingirá a “iluminação”.
Como já dizia uma canção:

“É a própria mente
Que torna a mente extraviada
Tem cuidado
Para que não seja descuidada” 15.

14
Aproveito esta oportunidade para enviar uma mensagem Zen aos meus caros colegas filósofos que se
encontram dominados pelo stress devido aos exames: “Aquele que estuda não tem motivos para se
preocupar”.
15
Soho, Takuan, Espírito Indomável, op.cit., p.37.

4
Bibliografia:

WATTS, Alan W., O Budismo Zen, Tradução de Carlos Grilo Babo, 5ªedição, Lisboa,
Editorial Presença, 2000.

YAMAHATA, Hôgen, Folhas caem, um novo rebento, Lisboa, Assírio e Alvim, 2002.

SOHO, Takuan, Espírito Indomável, Queluz, Coisas de Ler Edições Lda., 2003.
HATTSTEIN, Markus, Religiões do Mundo, Tradução de Paula da Silva, Alemanha,
Könemann Verlagsgesellschaft mbH, 2000.

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