Afeto Na Pesquisa Acadêmica
Afeto Na Pesquisa Acadêmica
Afeto Na Pesquisa Acadêmica
PESQUISA
ACADÊMICA
Jean-Luc Moriceau
AFETOS NA
PESQUISA
ACADÊMICA
Jean-Luc Moriceau
“
ensaios
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Reitora: Sandra Regina Goulart Almeida
Vice-Reitor: Alessandro Fernandes Moreira
CONSELHO CIENTÍFICO
Ana Carolina Escosteguy (PUC-RS) Kati Caetano (UTP)
Benjamim Picado (UFF) Luis Mauro Sá Martino (Casper Líbero)
Cezar Migliorin (UFF) Marcel Vieira (UFPB)
Elizabeth Duarte (UFSM) Mariana Baltar (UFF)
Eneus Trindade (USP) Mônica Ferrari Nunes (ESPM)
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Itania Gomes (UFBA) Rudimar Baldissera (UFRGS)
Jorge Cardoso (UFRB | UFBA)
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(eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)
Moriceau, Jean-Luc
Afetos na pesquisa acadêmica [recurso eletrônico] / Jean-
M854a -Luc Moriceau. – Belo Horizonte, MG: Fafich/Selo PPGCOM/
UFMG, 2020.
Formato: PDF
Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: World Wide Web
Inclui bibliografia
ISBN 978-65-86963-10-6
COORDENAÇÃO DE PRODUÇÃO
Daniel Melo Ribeiro
DIAGRAMAÇÃO
Rafael de Amorim Alburquerque
e Mello
Agradecimentos 9
Apresentação 11
Ângela Cristina Salgueiro Marques
Carlos Magno Camargos Mendonça
Sônia Caldas Pessoa
Encontro 1 23
Afetos e modos de pensar a Comunicação
Encontro 2 59
Diferenças e vulnerabilidades:
hospitalidade e acolhimento
Encontro 3 91
Dos afetos ao pensamento: mantendo o movimento
Encontro 4 137
Reflexividade e escrita
Agradecimentos
essas páginas são devedoras dessas reuniões e das trocas que realizamos.
Sou imensamente grato à Isabela Paes, que me acompanha e me enri-
quece, que me desafia e que iniciou muitas das ideias aqui registradas.
Jean-Luc Moriceau
11
Apresentação
Ângela Cristina Salgueiro Marques
Carlos Magno Camargos Mendonça
Sônia Caldas Pessoa
afetar por ela. Nesse sentido, uma abordagem afetiva tem que considerar
o corpo, as impressões, sensações, efeitos de prazer e de incômodo, estra-
nhamento e familiaridade, os espaços e relações de poder que envolvem
sua emergência, as capacidades de expressão que ela nos fornece e os
movimentos aos quais ela dá origem.
Segundo Moriceau (2016, 2019), na pesquisa acadêmica com sujeitos
é preciso pensar em outras formas de deixar o outro falar e de ser
afetado por ele que não podem ser contidas nos modos tradicionais da
representação do conhecimento e dos resultados de pesquisa. Podemos,
por exemplo, alternar entre a descrição dos afetos desencadeados pelo
trabalho de campo e momentos de reflexividade, sem procurar repre-
sentar a cultura estudada ou os sujeitos estudados por meio de seus
enunciados. Para Moriceau (2014), a representação apresenta-se como
distanciada da experiência, paralisa as dinâmicas, fixa os lugares, as
posições, impõe uma perspectiva ou narrativa e atribui papel central ao
autor/pesquisador. Nesse caso, há uma reflexão ética por trás da pesquisa
que questiona o falar por ou em nome de, tentando construir uma possi-
bilidade de o pesquisador falar com os seus pesquisados. Assim, pode-se
construir o sentido de forma partilhada, não hierarquizada. Desloca-
-se o pesquisado do seu lugar de “objeto” de análise e constitui para ele
um lugar de interlocutor, parceiro simétrico na construção da pesquisa
(BENCHERKI, 2015; GOLDMAN, 2006; D’ALMEIDA; CARAYOL,
2014).
Nesse deslocamento, o pesquisador e a pesquisa se deixam afetar,
transportar e transformar pelo que estudam (STEWART, 2007;
FAVRET-SAADA, 1990). Se deixar afetar é deixar entrar em nós aquilo
que estudamos e afetá-lo em troca. É provável que não sejamos mais os
mesmos depois da pesquisa, pois não podemos nos isolar para examinar
à distância os dados coletados. Ter uma experiência como essa não
significa indolência do pesquisador, mas um contato autêntico, marcado
pela vulnerabilidade e pelo encontro transformador com a alteridade
(MACÉ, 2016).
Uma pesquisa que privilegia os afetos permite vários níveis de leitura
e aponta a complexidade e riqueza da empiria. É preciso conferir aos
atores pesquisados a maior parte da responsabilidade de confeccionar
APRESENTAÇÃO 15
humanos e não humanos. Sob esse aspecto, pesquisar é agir sem recortar
tudo o que se pode observar em objetos distintos, tentando articulá-los
em relações, ressonâncias, revelando com isso a maneira como as coisas
e acontecimentos possuem a capacidade de se afetarem, de se ligarem e
de produzirem algo inédito.
A noção de performatividade (MORICEAU, 2016), configura-se a
partir de uma procupação com o desenho democrático dos agencia-
mentos que conduzem as ações políticas dos atores. Um agenciamento,
segundo ele, relaciona-se com a produção de novos enunciados em
cenas de enunciação geralmente definidas como assimétricas e perpas-
sadas por profundas desigualdades de poder. Ao mesmo tempo em que
podemos definir os agenciamentos dos atores (motivações e ações que
definem suas escolhas, decisões e práticas), podemos também identificar
os agenciamentos dos discursos por eles proferidos. Assim, Moriceau
aponta que a performatividade possui uma dimensão crítica quando
nos leva a interrogar se esses discursos e proferimentos que constróem,
simultaneamente, normas e públicos reproduzem e fortalecem, ou não,
posições de autoridade existentes, formas injustas de privilégios e assi-
metrias.
A pesquisa perpassada pelos afetos atua como comunicação e indivi-
duação a partir do convite à elaboração de um percurso teórico-meto-
dológico que deriva não só da vontade de aprender, de compreender e de
investigar, mas também do desenvolvimento de uma autopercepção do
pesquisador como sujeito que existe em pesquisa. A investigação pode
individuar aquele que a concebe e também o próprio campo epistemo-
lógico mobilizado. Nesse sentido criar uma metodologia de pesquisa é
uma arte e, segundo Moriceau, requer três gestos (comunicacionais, polí-
ticos e éticos) interligados: a) Expor-se: permitir o contato e a surpresa,
deixar os sentidos abertos para as experiências realizadas, diatanciando-
-se da necessidade de provar hipóteses e controlar os desdobramentos.
Arriscar-se sem deixar de considerar os constragimentos existentes na
academia; b) Caminhar: zelar por uma abertura constante a mudanças
derivadas do questionamento dos métodos e teorias acionadas na
pesquisa; c) Pensar e refletir: não apenas seguir etapas previstas, perse-
APRESENTAÇÃO 17
Referências
BENCHERKI, Nicolas. Pour une communication organisationnelle
affective: une perspective préindividuelle de l’action et de la constitution
des organisations. Communiquer [En ligne], n°15, 2015.
D’ALMEIDA, Nicole; CARAYOL, Valérie. La communication
organisationnelle, une question de communauté. Revue Française des
Sciences de l’information et de la communication, n.4, 2014.
FAVRET-SAADA, Jeanne. Être Affecté. In: Gradhiva: Revue d’Histoire et
d’Archives de l’Anthropologie, n.8. 1990, p. 3-9.
GOLDMAN, Marcio. Alteridade e experiência: Antropologia e teoria
etnográfica. Etnográfica [online]. vol.10, n.1, 2006, p.161-173.
LETICHE, H.; LIGHTFOOT, G, The Relevant PhD, Rotterdam, Sense,
2014.
MACÉ, Marielle. Styles: Critiques de nos formes de vie. Paris, Gallimard,
2016.
MARQUES, A.C.S.; OLIVEIRA, A. K. C. ; MORICEAU, J. A política da
escrita e a performatividade da palavra do homem ordinário no método
da igualdade de Jacques Rancière. Questões Transversais - Revista de
Epistemologias da Comunicação, v. 6 n.12, 2018, p. 92-103.
MARQUES, A. C. S.; MORICEAU, J. Cadrage biopolitique des personnes
appauvries par l’image photographique: entre gouvernement des corps et
biopuissance des modes de vie. In: AYOUB, Chafik (ed.). (Org.). Monde
arabe et Amérique latine : confluence des dynamiques sociales. 1ed.
Paris: L’Harmattan, v. 1, 2018, p. 22-39.
MARQUES, A. C. S.;OLIVEIRA, A. K. C.. L’écriture subversive: la
performativité de la parole de l’homme ordinaire dans la méthode de
l’égalité de Jacques Rancière. Revue internationale de psychosociologie et
de gestion des comportements organisationnels, v. 24, 2018, p. 113-132.
20 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
Encontro 1
Afetos
Eu não vou começar minha apresentação com uma definição dos
afetos, porque definir é finalizar, definir é fechar sentidos, e o desafio com
os afetos é de adiar a chegada dos conceitos, é de manter os afetos vivos,
em vida. E se nós começarmos por definir, os afetos vão morrer imedia-
tamente. Os afetos, vocês sabem, vou mencionar rapidamente aqui, os
afetos são diferentes de emoções. A emoção é algo que eu conheço, eu
reconheço, eu posso nomear, eu posso dizer que tem uma significação,
é familiar. Por exemplo, eu estou vendo uma criança chorando, porque
o brinquedo está quebrado, eu a entendo, eu vou ficar triste, mas eu sei
o que é. Essa situação está comunicando uma lembrança em mim, é
familiar, eu a conheço.
O afeto é algo que é mais estranho, ou estrangeiro, que não sei o que
significa imediatamente. É algo que é de fora, não é de dentro de mim,
ele vai me obrigar a pensar, a mudar. Muitas vezes o afeto está misturado,
atua desfamiliarizando o já conhecido, fazendo com que ele se abra ao
devir. O afeto é muitas vezes singular, mas ao mesmo tempo singular e
plural (retomando a expressão de Nancy). É singular porque ele acon-
tece numa situação específica, cuja singularidade não queremos apagar.
Não é uma situação geral, é um afeto específico numa situação específica
sobre o qual vamos tentar pensar. Ao mesmo tempo, o afeto não tem
uma dimensão apenas, um sentido certo, ele toma forma, todas às vezes,
numa dinâmica plural. Nós não sabemos qual é a significação, pois o
afeto escapa à captura por uma palavra, não se pode dizer “os afetos são
isso”, senão, vamos perder o poder de mudar, a potência de transformar.
Se tem uma definição possível, uma definição muito velha, é aquela
oferecida por Spinosa: “o poder de ser afetado e de afetar”. O poder de
ser afetado é uma sensibilidade e o poder de afetar é uma responsabi-
lidade. E a questão da performatividade vai estar nas interfaces que se
estabelecem entre a sensibilidade e a responsabilidade. Assim, nós não
sabemos o que é o afeto, mas ele vai se manifestar por intensidades, velo-
cidades, desejos, abatimentos, de muitas variadas maneiras.
26 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
pesquisador vai afetá-la e, por sua vez, vai se expor, mudar e ser afetado
por ela. É importante ressaltar que esse processo promove uma reflexi-
vidade e requer uma recusa ao excesso de distanciamento, pois é preciso
viver a experiência e deixá-la trabalhar, ou seja, “experimentar a experi-
ência” (MASSUMI, 2015). O sentido dessa experimentação é o de fazer
nascer, algo bem distinto de coletar dados, pois o argumento é o de que
os afetos vão nos forçar a pensar, a criar novos conceitos, a produzir uma
oportunidade de “tornar-se”.
Esse trecho foi escrito depois da primeira vez que fomos a um duelo.
No extrato destacado acima, é evidente que não é só uma questão de
lugar, uma questão da ocupação do espaço pelos jovens, pois podemos
sentir a excitação, o desejo, a cólera, a onda de raiva, a frustração mistu-
rada com tantos desejos e necessidade de expressão, podemos sentir
os fantasmas de batalhas passadas e os ciclos de modelos estéticos ou
práticas, como nos estádios americanos ou originalmente nos Estados
Unidos nos anos 70.
É possível percebermos, na narrativa dessa cena, a vontade de
romper, de existir, de seduzir. Um tipo de comunhão, de ritual, de drama
social, de criatividade, tudo isso é produzido em um momento especí-
fico. Optamos por descrever o momento e, assim, temos material pensar
e fazer reviver os afetos que nos tomaram. Certamente, podemos fazer
entrevistas, passar mais tempo com esses jovens, ou seja, desenhar uma
proposta de pesquisa habitual, mas esses suplementos não devem nos
fazer perder aquela bola de sentido, aquela experiência que tem tanto
em que pensar. No nosso caso, o recorte metodológico foi pensado para
destacar alguns episódios que consideramos importantes pelo modo
como nos afetaram. Tentamos pensar esses acontecimentos e partir do
pressuposto de que se trata de um contato com o estranho, com aquilo
que não é familiar e que não podíamos ter imaginado antes. O obje-
tivo não é repetir o que sabíamos previamente, mas nos expor ao desco-
nhecido e, se tivermos sorte, vamos sentir algo que vai nos empurrar a
pensar novamente.
O que acontece nos duelos de MCs é bem diferente do enquadra-
mento conferido por algumas mídias. Se você não se vibrou neste lugar, e
se não fez ressoar estas vibrações com outros acontecimentos na cidade,
é difícil entender as reivindicações, este engajamento com o lugar, os
movimentos de ocupação e as lutas, os reforços vindos de outros movi-
mentos. A experiência foi muito tocante. De alguma forma isso nos
obrigou a escrever. Encaixar esta experiência numa teoria distante do
que vivenciamos, com a pretensão de explicá-la, seria de alguma forma
algo desrespeitoso. Por outro lado, fazer a experiência vibrar e ressoar
com uma ou mais teorias para testemunhar e transmitir o que está acon-
tecendo, para realçar a primeira impressão e refletir sobre um signifi-
AFETOS E MODOS DE PENSAR A COMUNICAÇÃO 33
em pequenos passos, houve a sensação de que havia algo que não corres-
pondia, entre essa impressão de calma, sem luta, tudo em seu lugar e o
que os Jogos estavam celebrando. Na fantasia que cerca os atletas, tudo
nos faz crer na fábula em que, em um minuto, pode surgir um herói
que deixa para trás o sofrimento, a dor e o ostracismo. Nos chamou a
atenção o fato de que muitas pessoas trabalhavam no Boulevard Olím-
pico, mas a maioria delas não teria condições de entrar nos estádios para
ver os jogos por causa do preço dos ingressos. Ele era mais um espaço
aberto todo tomado pelos estandes e anúncios de empresas, onde não
se tinha nenhum contato com o que seria de fato uma Olimpíada: não
havia no Boulevard uma quadra, uma bola, meninos brincando, atletas
se exercitando. O que estava a ser celebrado era mais negócio do que
desporto.
É possível argumentar que essa experiência no Boulevard Olímpico
nos apresentou uma forma de estetização do mundo (LIPOVETSKI;
SERROY, 2013) que torna um espaço em um não-lugar (AUGÉ, 1992),
ou seja, uma lugar em que todos mantêm sua posição, seus privilégios e
sua participação no consumo. Um lugar em que tudo é feito para apagar
as feridas, ameaçãs e causas do terrorismo, produzindo um duplo efeito
sobre a subjetividade: a excitação e a retração. Essa mistura complexa
e o desafio de olharmos para as interseções dessas dimensões da expe-
riência nos aponta pistas dos contextos, efeitos e desafios da Comuni-
cação Organizacional. Ao mesmo tempo, temos a chance de aproveitar a
inquietação provocada por ela e assumirmos nosso quinhão de trabalho
reflexivo sobre as realidades que observamos e, nesse gesto, recortamos
uma situação singular. Podemos dizer que essa experiência nos inquietou,
gerou em nós um estranhamento, um desassossego (para lembrar de um
livro do Fernando Pessoa), algo que nos posiciona contra a estetização
do mundo, que nos faz acionar conceitos para pensar como, no caso dos
Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, podemos construir uma reflexivi-
dade ética capaz de questionar o modo como a cena projetada camuflava
várias linhas de força e assimetria. No Boulevard Olímpico tudo é feito
para manter todos em seu lugar, celebrando o momento por excelência
em que todos os lugares (esportivos) são recolocados em jogo.
AFETOS E MODOS DE PENSAR A COMUNICAÇÃO 35
1 Na célebre definição de Lévinas, “o rosto fala e me olha, chama por mim, me demanda”
(LÉVINAS, 1999, p.163). Assim, o rosto não se reduz à sua manifestação física (a face
humana), mas remete à transcendência, ao infinito, contrariando a totalidade presente na
tentativa de sua apreensão pelo conceito.O rosto nos lança um apelo que se distancia da
hostilidade e se aproxima da hospitalidade que acolhe e, ao mesmo tempo, interroga e
demanda uma resposta. Assim, experienciar a face do outro é experienciar um sentido de
38 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
Afetos e performances
Outro elemento que gostaria de destacar neste primeiro encontro é
que, se o papel da representação é reduzido, o contrário acontece para
a noção de performance. Na virada afetiva, encontramos performances
em vários lugares. Pode ser, inclusive, que uma pesquisa seja uma
performance. Poderia citar aqui dois exemplos. Um primeiro exemplo
se relaciona com a Comunicação Organizacional. Citarei aqui o caso de
um teatro parisiense muito famoso que se chama Lucernaire, localizado
no centro de Paris (MORICEAU et al., 2018). Há mais de dez anos atrás,
o diretor, que foi o fundador do Lucernaire, reclamou publicamente que
os patrocínios que garantiam o funcionamento do teatro haviam sido
cortados. Para tornar suas reclamações e demandas mais capazes de
circularem amplamente e sensibilizarem um maior número de pessoas,
ele usou um tipo específico de Comunicação Organizacional: ele criou
com um colega e interpretou uma peça de teatro para performar uma
situação em que um diretor do teatro faz uma greve de fome para chamar
a atenção pública para o estado de precariedade do teatro.
40 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
A escrita performativa
Pode parecer estranho dizer que um texto, especialmente se for
escrito e por isso fixo, pode comunicar movimento, performar, agir.
Stephen Linstead (2017) afirma que em vez de representar a experiência
do outro, ou expressar o sentimento do encontro com o outro, o que
pode ser caracterizado como uma etnografia muito usual, um texto pode
procurar envolver o leitor evocando elementos afetivos dessas experiên-
cias ou encontros, imergindo-os na abertura do texto, ampliando a ideia
de “scriptibility”, de Barthes. Segundo ele, na escrita performativa não há
representação: a relação com o leitor não é uma relação de explicação,
mas sim de imersão, na qual se busca fazer algo ao leitor. Voltaremos nos
próximos encontros à sua proposta de escrever “textos-performances
críticos afetivos”, porque a escrita é essencial e não possui a mesma
função do relato.
De modo muito breve, pode ser uma escrita crítica e clínica. Vou
dar um passo adiante no estranhamento, falando sobre a clínica aqui,
palavra que tomei emprestada de Deleuze. Há muitos textos que
podemos chamar de clínicos, nos quais o outro ou o autor vai explicar os
afetos considerados muito importantes em sua vida: vinculados à perda
de uma criança, o acontecimento de um acidente, uma doença grave,
enfim, algo muito pessoal e muito importante. Nesse sentido, o texto
não vai buscar dizer “oh, é muito difícil”, mas tentar permitir que as
pessoas, que os leitores compreendam a situação, os milhões de afetos,
de sentimentos, e angústias que permeiam essa e sua existência naquele
momento. Também pode ser clínico no sentido de mostrar desvios em
relação ao normal, ao maioritário. Mostrar os lados obscuros e ocultos,
44 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
*******
Debate
Sônia Pessoa: Gostaria que você falasse um pouco mais a respeito
de como a representação afeta nossa experiência de apreensão dos fenô-
menos e acontecimentos com os quais temos contato na pesquisa.
presente. Ela nem é passado, nem é futuro, ela se inscreve como ação
presente. Ela é inapreensível, mas ela pode se presentificar na perfor-
mance. Entende? Porque fica parecendo um pouco que essa ideia de uma
escrita afetiva se torna impossível diante do trabalho institucional de ter
que fazer uma tese. Mas a performance não vai ser colocada por mim,
ela vem do outro. Qual é a minha capacidade de ouvir o outro? A gente
está falando da escrita como produto, e ela não é. A escrita não é resul-
tado, a escrita é ação performática, feita no momento em que aquilo que
eu sei conversa com o que o outro me diz e essa fricção produz o texto.
É nesse lugar que o texto se faz. Senão a única coisa que eu vou fazer é
saltar de um lugar para o outro. Saltar de um conjunto de técnicas para
outro. Então eu teria que ser alguém muito envolvido naquele lugar para
pesquisar isso, porque eu começo a produzir cerceamentos na pesquisa,
em que apenas sujeitos iguais falarão de temas iguais. Não é essa a ideia.
Então me parece que a gente tem que, neste momento, inclusive para
saber o quanto a gente pode se movimentar, tentar entender quem são
os sujeitos do texto e qual é a noção de escritura que eu posso trabalhar
para dar conta disso.
Isabela Paes: Mas então seria preciso pensar, talvez, sobre o lugar que
a gente coloca a representação. Porque eu acho que quando o Jean-Luc
traz essa proposta de “se colocar em pesquisa”, mais do que pesquisar, é
preciso tentar não assumir o lugar do pesquisador que tem a verdade em
seu poder… Se eu estou “em pesquisa”, eu também estou aprendendo,
então tem um meu lugar que aí vai chegar em uma representação em
algum momento, tem que chegar para eu entregar isso de alguma forma,
vai ganhar uma materialidade de alguma forma, seja em uma revista,
seja uma apresentação, seja em uma sala de aula, seja mesmo em um
bate-papo, se eu estou usando palavras, está ganhando vida, apesar de eu
estar reduzindo isso de alguma forma. Mas, pelo menos, você se coloca
humanamente também nessa pesquisa e não como um conhecimento
que reproduz uma verdade já dada. E o outro, quando você se coloca,
quando você está dentro da pesquisa, então o outro vem não como “o
outro”, ameaçador, pois você está assumindo contar qual foi e como foi
o contato com o outro, dizendo quem ele é e como ele é em situação, no
encontro, em temporalidades e espacialidades marcadas.
Sônia Pessoa: Acho que tem uma fronteira também que é preciso
a gente estar atento, para que a pesquisa não seja um mero relato de
56 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
Encontro 2
Diferenças e vulnerabilidades:
hospitalidade e acolhimento
Ela tira a bata do hospital; por baixo, ela usava outra bata de hos-
pital, mas decorada com fitas e camadas de tule vermelhas, como
uma saia de dançarina francesa de Cancan. Ela diz, arrepiada:
“Tive a primeira cicatriz e perdi o cabelo, perdi o seio esquerdo.
O seio direito também se foi. Meus ovários são os próximos da
lista. Foi assim que esqueci como ser uma mulher”. Ela faz uma
dança provocante com as anáguas vermelhas, peruca e maquia-
gem. Ela dança com uma foto de Patrick Swayze representando a
personagem Johnny Castle no filme Dirty Dancing, imbuída da
força de trazê-lo à vida. Ela sai, depois volta, agora sem a fantasia,
senta-se conosco para nos ouvir. Para responder uma pergunta,
ela conta que, quando estava grávida do primeiro filho, desco-
briu um nódulo no seio esquerdo. Ela não fez uma mastectomia
completa, pois o anestésico seria muito forte para o bebê, mas
um ano depois ela teve uma recorrência e a mastectomia teve que
ser realizada. Um ano depois, eles descobriram que ela possuía
uma variante do gene “bracha 1” que exigia a segunda mastecto-
mia e uma ooforectomia, a fim de prevenir o câncer de ovário ou
outro câncer de mama. “Quem sou eu?” ela se perguntava. “Meu
corpo não é mais o de uma mulher”, ela dizia. “Eu não sou mais
mulher”. Ela mencionou que nunca considerou uma reconstru-
ção mamária, pois não deseja tornar seu câncer invisível ou so-
frer mais cirurgias. Ela afirmou que acha suas cicatrizes muito
bonitas.
implica deixar esta experiência atuar em ele, deixar este texto atuar em
nós. Aceitar os efeitos que então nascem. E, justamente, o que afeta tão
intensamente esta vida não pode ser totalmente compreendido do ponto
de vista das causas médicas: isto também vai além de qualquer decisão,
de qualquer orientação voluntária. Lingis conclui o texto dizendo que
estamos acostumados a ver a vida em termos de causas ou escolhas, mas
quando você está realizando a probabilidade de nascer, de vencer difi-
culdades e de construir maneiras de existir, passamos a acolher a vida
como sorte, como chance de florescer, de produzir alternativas, cami-
nhos outros do que aqueles apontados como determinados ou únicos. A
apresentação de Lingis terminou com um belíssimo agradecimento pela
existência. Acho que prefiro não adicionar nada a essa reflexão, exceto
que é uma das mais belas hospitalidades à vida.
Quero terminar lembrando novamente do livro de Marielle Macé:
ela afirma que os movimentos de resistência e insurgência atuais, como
o Occupy Wall Street, o Indiginados (na Espanha), o Nuits Debouts
(na França) configuram formas de vida que unificam muitas das nossas
expectativas, das nossas demandas, e especialmente dos nossos julga-
mentos. É sempre com essas demandas e expectativas que vamos para
o debate, que produzimos ideias complexas da vida que defendemos
como digna ou como desprezável. O estilo nesse caso é estético, político,
ético; é estilo como afirmação em grande parte de uma forma de vida.
Acredito que a correspondência com o que acabamos de ver é grande:
quando o pesquisador é atravessado pelos afetos, isso pode significar
entrar em outro estilo de vida, certamente bem mais difícil. Os afetos
podem ser uma estratégia de individuação, mas pesquisar é um estilo de
vida que merece ser defendido. Sobretudo porque o estilo de pesquisa
no qual as universidades são empurradas para trabalhos sem afetos, sem
reflexão, com uma crítica restrita a certos pontos de vista, é um estilo
que causa infelicidade.
É importante defender uma variedade de estilos e formas de indivi-
duação, de transformações profundas pelos afetos, de crescimento indi-
vidual e coletivo através da ampliação das possibilidades que um pesqui-
sador tem de compreender e de acolher o outro com o qual trabalha
e fabula. Eu gostaria de encerrar com uma convicção: a pesquisa com
78 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
*******
Debate
Isabella Paes: Gostaria aqui de retomar uma questão que você
abordou quando mencionou o exemplo da tese da Kim Tsai. Ela tentou
ajudar os refugiados, mesmo se sentindo incapaz de solucionar comple-
tamente o drama por eles vivido. Mesmo quando o pesquisador vai
ajudar, ele acaba por ensinar ao outro como ele “deveria agir” e acaba
passando por cima da experiência do próprio sujeito vulnerável. Não
porque o projeto ou a intenção não fosse boa, mas porque muitas vezes
o pesquisador não consegue dialogar...
em você. Mas o perigo é não entender mais o outro, porque você pode
correr o risco de estar falando de modo distanciado ou autocentrado,
sem alcançar uma justa posição, esquecendo-se de ouvir o rosto do outro.
Há certo equilíbrio a ser encontrado na posição, na voz, na escrita. De
alguma forma, a escolha pela perspectiva dos afetos te permite mudar
e alcançar, cientificamente, outra perspectiva: se você considerar os
sujeitos importantes, será preciso construir o texto de um ponto de vista
ético, porque você vai sentir que está se reconstruindo como pessoa.
Como tornar isso científico? Eu uso de propósito a palavra ciência
aqui, o que costumo evitar, mas que dá confiança para escrever a tese.
Ciência não é só racionalidade, mas envolve a capacidade de justificar
suas escolhas e opções que te conduziram ao lugar aonde chegou. É vital
descrever esse caminho, essas escolhas e todos os elementos sutis que
te levaram a mudar seu caminho, a acolher outras formas de palavras,
de encontro, porque o que estava acontecendo então te pareceu mais
fiel à experiência de ser mulher no Sertão, finalmente mostrar um espí-
rito mais científico do que seguir um método padronizado no qual você
sente faltar elementos essenciais. É preciso adequar o que você sente ao
que vai dizer, senão corre o risco de não proporcionar aos leitores de seu
trabalho uma chance de também mudarem com você. Entendo quando
você fica preocupada em como trazer isso para o texto acadêmico... não
há fórmula correta para isso.
mações, mas não narrar na tese, vai descartar uma parte que é riquíssima
e que foi única. Outro trabalho pode não ter, e se tiver vai ser diferente.
Encontro 3
pesquisador) que expõe conclusões sem permitir que o leitor, por sua
vez, tenha a chance de elaborar reflexivamente suas interpretações. A
escrita performativa tenta preservar o movimento e a variação conquis-
tados na segunda etapa do percurso, convidando o leitor a participar do
processo da pesquisa e perpetuando sua potencialidade ética e política.
Essas três etapas intimamente interligadas do processo da pesquisa
(do percurso que requer muitas vezes o abandono de certos pontos de
referência e da determinação requerida pelo investimento de “estar
em pesquisa”) nos revelam como os afetos são importantes para que
os pesquisadores sejam afetados, para que possibilitem uma abertura
para a autotransformação e para a transformação de todos aqueles que
entrarem em contato com as múltiplas fases de elaboração do trabalho.
O afeto é acima de tudo aquilo que nos é estrangeiro, misto, indeter-
minado, irredutível a um sentimento ou um conceito já identificado e
catalogado, e que nos invade, nos inquieta, nos move. Sob esse aspecto,
como mencionamos, o pesquisador não deve alimentar o objetivo de
procurar reencontrar o conhecimento já estabelecido e sedimentado,
negando ou desprezando os mistérios, paradoxos, controvérsias e expe-
riências criativas que emergem em cada fase do trabalho de desenho
de sua pesquisa. Uma atenção ao universal é importante, mas não se
pode deixar de lado as singularidades. Ao mesmo tempo, o pesquisador
deve procurar posicionar-se no limiar, na soleira da porta que separa o
que é claro para ele, do que ainda é obscuro, intuitivo, potencial, emer-
gente, contingente, misturado, flutuante, transitório. Para posicionar-se
no limiar, ele deve, ao mesmo tempo, preservar distâncias e investir na
proximidade, no acolhimento, na escuta, fortalecendo uma responsabi-
lidade ética como base do engajamento na pesquisa.
A questão de hoje está ligada ao segundo movimento, e ele é essen-
cial: como manter vivo, presente, afetando, efetivo o movimento do
estranhamento, esse surgimento de um singular toquante e desconcer-
tante, seu potencial transformador do já conhecido, seu mistério desa-
fiando o pensamento, desafiando nossas concepções éticas e políticas?
E de uma forma que pode parecer surpreendente - já que o movimento
é chave e seu impacto é, a cada vez, singular e sempre um novo desafio
próprio – vamos falar do seu oposto: dos bloqueios, freios, encerra-
DOS AFETOS AO PENSAMENTO: MANTENDO O MOVIMENTO 93
A crise da representação
Mas antes disso, e diretamente relacionado com essa questão,
gostaria de voltar a um ponto relacionado com as nossas discussões
sobre a representação. Já mencionamos anteriormente que a escrita
performativa tenta adiar ao máximo o encontro com a representação.
Isso deriva em particular de uma origem importante quando a represen-
tação, sobretudo na década de 1980, representou um perigo para aqueles
que se dedicavam à etnografia: pesquisar a alteridade poderia ser enten-
dido como descrever os hábitos e a cultura de outros povos e comuni-
dades, resultando em uma investigação que “fala em nome de” outros
que, supostamente, não podem falar por si mesmos. Tinha ficado muito
claro para os etnógrafos que criticam a representação, inspirados pelo
pós-estruturalismo, que a representação é elaborada em um contexto
cultural, histórico, social e político específico, e que há outras dimensões
que atravessam sua produção, como questões de gênero, raça, classe e
94 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
nada disso, porque essa era a minha sensação e eu não sei se era
a dele. É como, talvez, assim... o modo como eu fui afetada por
esse movimentos que não eram meus, mas tampouco eram só do
outro. Nesse percurso de mãe de criança com deficiência, de blo-
gueira, de professora, caminhei para uma tese que tinha como
foco os discursos das pessoas com deficiência em redes sociais.
Eu não tinha leitura sobre o tema dos afetos e suas configurações
teóricas, mas, de algum modo, algumas inquietações me diziam
o tempo todo que eu precisava trazer os afetos para a tese, eu
precisava trazer as minhas narrativas de vida para a tese e, ao
mesmo tempo, eu precisava problematizar, como epistemologia,
tudo isso. Mas eu não tinha certeza de nada. Na verdade, eu tinha
muitas dúvidas, muitas inquietações. A única certeza que eu ti-
nha era a de que pessoas com deficiência precisavam estar na
tese, não como sujeitos recortados, não como sujeitos retirados
de seus ambientes, seja digitais ou físicos. Mas precisavam estar
ali numa parte que chamei de colaborativa, em que essas pessoas
com deficiência se fotografaram, e escreveram sobre seus pró-
prios imaginários sobre a deficiência. Era uma tentativa mínima
de respeitar o lema das pessoas com deficiência que é: “nada so-
bre nós, sem nós”. Em 2017, a professora Camila Alves Mantova-
ni, eu e a nossa colega Regiane Lucas Garcês, fundamos o Afetos,
grupo de pesquisa em Comunicação, Acessibilidade e Mobilida-
de. Esse foi um movimento de engajamento acadêmico, mas
também político, certamente. Mas um movimento também para
que a presença das pessoas com deficiência seja voz, rosto corpo.
Seja tudo isso. Mais do que isso, seja o que a gente não consegue
definir e categorizar nas nossas pesquisas. Nós não desejamos
apenas sujeitos a serem pesquisados, recortados, analisados. De-
sejamos que nos ajudem, construam junto conosco pensamentos
que nos sacudam, e que tragam visadas que nos provoquem. E os
afetos se movem rapidamente, não é? Espalham-se, estão entre
nós, enchem essa sala, encheram o auditório outro dia, trouxe-
ram o Jean-Luc lá da França, e a gente, junto, caminha com dis-
cussões diversas. E, nesse caminhar, a Camila trouxe estudos de
mobilidade para as reuniões do Afetos, onde as pessoas com de-
ficiência participam das discussões, são parte efetiva do proces-
so. Em um desses encontros, um participante com deficiência
visual nos provocou. Ele disse assim: “Mas, afinal, essas reflexões
estão muito centradas no discurso. Quando é que elas vão dar
DOS AFETOS AO PENSAMENTO: MANTENDO O MOVIMENTO 97
Obrigada!
Jean-Luc Moriceau: Não sei bem o que dizer depois dessa apresen-
tação. Não posso comentar, porque não posso reduzir o que foi perfor-
mado com tanta intensidade. Como traduzir em linguagem teórica o
que acabamos de presenciar? Esse é o problema sobre o qual discuti-
remos depois. Não posso deixar de mencionar, contudo, que o que expe-
rimentamos aqui se refere à reflexão de Derrida acerca da tradução. A
tradução, segundo ele, não se resume a trazer o sentido de uma língua
até outra língua, mas de elaborar um jogo de palavras que funciona como
DOS AFETOS AO PENSAMENTO: MANTENDO O MOVIMENTO 99
“Parei na INQUIETAÇÃO
Fui AFETADO
O NOVO e o VELHO
Movendo OLHARES
Na mesma jangada
Não encontrei ‘peri’ na estrada
e voltei para buscá-lo
não se vence a guerra isolado”
(Lucas Oliver – Nossa Sarau)
afetos. Eu diria que existem quatro elementos que podem ser identi-
ficados como forças contrárias à ação dos afetos: a) uma determinada
visão da pesquisa, ou seja, um formato a ser alcançado para cumprir
requisitos; b) uma ênfase nas representações, ou o fato de nós buscarmos
e querermos produzir representações; c) uma visão dos papéis e dos
lugares a serem elaborados para os sujeitos de pesquisa (podemos nos
lembrar aqui da noção de partilha do sensível, de Jacques Rancière); e d)
a ausência de um pensamento da individuação.
Gostaria de lembrar que, com relação a esse quarto elemento, a indi-
viduação não se refere somente à singularidade que distingue um sujeito
do outro. Ela é um processo comunicacional que nos mostra como os
indivíduos não são entidades fixas, mas estão em constante transfor-
mação e devir dentro de relações intersubjetivas situadas. Uma indi-
viduação deriva do gesto de elaborar, de criar uma nova subjetividade
(singular e coletiva) a partir das transformações em curso. Dito de outro
modo, o processo de individuação resulta das tensões e conflitos eviden-
ciados pelos hiatos entre o “aparecer” do sujeito autônomo e o lugar
imposto à ele por narrativas e expectativas consensuais e hierárquicas.
No caso do pesquisador, a construção da individuação se dá junto aos
colaboradores da investigação: que se esclarecem reciprocamente sobre
dúvidas, exploram as várias ambivalências de suas percepções, identi-
ficam tensões e poderes, sempre negociando respostas, articulações e
possibilidades. A presença dos afetos em processos de individuação que
transformam a pesquisa se relaciona majoritariamente com o trabalho
realizado junto com os sujeitos, e não apenas sobre eles. É importante
responder eticamente às suas demandas e presenças, sair de si mesmo
para abrir-se ao outro e à sua história, pois esse é o caminho – ainda
que mais complicado – para a autotransformação e para uma quebra de
expectativas com relação aos passos iniciais da pesquisa.
por algo... ela Não estava olhando para mim, eu podia ver isso,
e eu estava absolutamente aterrorizada. Ela continuou alcançan-
do, agarrando... até que finalmente conseguiu recuperar o fôlego
para a qual estava trabalhando – um último suspiro, a respiração
mais alta que eu já tinha ouvido ... e imediatamente o cheiro da
morte estava sobre nós. Eu nunca soube até aquele momento que
a morte tinha um cheiro. (BILINDA STRAIGHT, Miracles and
Extraordinary Experience in Northern Kenya, 2007, citado por
LETICHE e LIGHTFOOT, 2014).2
2Do original: “The nurse at the little Swari clinic stopped our vehicle emphatically, asking
me to come and see this patient of his, although maybe it was too late. I went inside, past
the waiting room, into the simple interior with its plain table. She was there, a tiny girl,
maybe eight years old, struggling for breath while her father squeezed a bellows furiously
to pump more air into her fragile throat. No oxygen, just a bellows… now I was staring
helplessly at this little father’s darling… No I said it can’t be too late… we seated the father
in the rear driver’s side seat with his little girl on his lap… we needed to get away… the
moment was loud, terrible, insane, and I wanted to drive away… at last we drove away. We
managed a thousand feet, I guess and then someone told me to stop the car. As soon as
the car stopped I could hear the screams and ululation of the little girl’s mother… (who)
new what stopping meant before I did. I turned in my seat to look. The little girl… was
struggling for her breath like some animal was chasing her, and then she began to reach
towards me… she stretched her arms and squeezed her palms, her eyes asking for some-
thing… she wasn’t looking at me, I could see that, and I was absolutely terrified. She kept
reaching, grabbing… until finally she got the breath she was working for – one last breath,
the loudest breath I had ever heard… and immediately the smell of death was upon us. I
never knew until that moment that death had a smell.”
DOS AFETOS AO PENSAMENTO: MANTENDO O MOVIMENTO 113
Essa citação reforça a oposição entre os dois termos, mas temos que
considerar que o teatro pós-dramático tem muitos segmentos da perfor-
mance no teatro e a performance, muitas vezes, assume traços do teatro.
O que essa citação ressalta é que a performance quer se distanciar ao
máximo possível da representação, ficar mais perto do real, alcançar
outro contato, outras formas de afeto. O fato de fazer uma performance
política não somente implica dar uma voz, mas requer um ser, um fazer,
DOS AFETOS AO PENSAMENTO: MANTENDO O MOVIMENTO 115
3Do original : “For its not by describing that words acquire their power: it is by naming,
ny calling, by commanding, by intriguing, by seducing that they slice into the naturalness
of existences, set humans on their path, separate them and unite them into communities.
The word have many other things to imitate besides its meaning or tis referent: the power
of speech that brings it into existence, the movement of life, the gesture of an oration, the
effect it anticipates, the addressee whose listening or reading it mimcs beforehand.”
DOS AFETOS AO PENSAMENTO: MANTENDO O MOVIMENTO 119
Rancière descreve como Agee não queria falar em nome dos povos
empobrecidos, e recusa qualquer hierarquia. Ele não quis definir em sua
escrita o que considerava importante. Há um repúdio a qualquer eleição
de enquadramentos ou objetos. Ele opta, então, por fazer descrições
longas, com igual dignidade para cada sujeito ou objeto. Ele decide
apenas escrever e registrar meticulosamente o inventário de coisas
encontradas no interior das casas mais modestas. E o texto magnifico
descreve tudo, tal como se o leitor pudesse ser transportado para esses
cenários da vida real. A descrição de todo e qualquer detalhe é inserida
no texto sem hierarquia, nos convidando a pensar e entender de outra
maneira. Tudo o que é capturado pelo olhar de Agee entra, porque ele
não faz um julgamento ou seleção do que é importante, segundo sua
própria visão estética e moral do mundo vivido daquelas pessoas empo-
brecidas. São descrições que nos afetam e nos convidam à reflexividade,
e que não terminam com a construção de uma representação, uma
espécie de guia que determina o que você precisa pensar ou entender,
oferecendo explicações que limitam a interpretação.
Como o texto de Agee, as fotos de Ewans mostram o “reflexo cruel
daquilo que é”, tentando não enquadrá-las em uma narrativa ou um
clichê (ao qual se acrescenta a fratura entre New York/interior e, talvez,
brancos/descendentes de escravos...). Assim como o texto, as imagens
podem congelar, bloquear, ou podem colocar em movimento ou, mais
que isso, exigir do leitor um trabalho de inteligência, para se indagar o
que essas imagens podem dizer a ele. Tornar estranho, não imediata-
mente inteligível, ao invés de mostrar. Esse gesto tem a ver com a ideia
de igualdade de inteligência, apresentada por Rancière, que pressuposta
que todos possuem habilidades e capacidades para entender e refletir
sobre as coisas do mundo. Para tanto, os espectadores e leitores são
“emancipados”: não seguem um roteiro prévio de apreciação e fruição,
mas recebem todas as pistas, todos os elementos, e têm que realizar um
trabalho reflexivo, porque todos possuem igual inteligência.
É bem interessante notarmos que o livro Kathleen Stewart, A space in
the side of the street (1996), seguiu os passos de Agee, ela foi para a mesma
região aproximadamente 60 anos depois. Entre os dois períodos houve
uma crise bem grave na região do leste da Virgínia e a cidade perdeu
120 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
60 por cento de sua população, o trabalho nas minas nas áreas rurais
sofreu drástica diminuição, e a cultura descrita por Agee e Ewans havia
sido abalada. Com as pessoas vivendo com pouco dinheiro, temos um
cenário de enorme vulnerabilidade. Assim como nas áreas rurais obser-
vadas pela FSA. Assim, de novo, cenas simples nos tocam e demandam
maior reflexividade no gesto de descrever. Essa escritura dos afetos não
é uma representação, uma mímese, mas uma performance, pois há uma
inevitável falha da representação em captar o real: por isso mesmo,
para Stewart, a performance tem um compromisso com o ato político
da poiesis. Para Agee e Stewart, não se pode representar a vida dessas
pessoas em situação de vulnerabilidade. Seria um ato de autoritarismo
daquele que vai representar. Mas é possível fazer um trabalho de poiesis,
de criação, porque o espectador/leitor é transportado para a cena, ele
pode estar lá e vivenciá-la “como se” estivesse junto do narrador: ele vai
conhecer, sentir e vai ser afectado da mesma maneira que o narrador foi
tocado. Deste modo, quem performa a escrita e quem lê o texto traba-
lham e refletem juntos. Mas não fazem isso a partir de uma represen-
tação, porque, como dissemos, não há uma representação que possa
dar conta da vida dessas pessoas. Agee e Stewart nos convidam a viver
com as pessoas pobres do leste dos EUA e temos a oportunidade de
entender como elas vivem no momento da crise, a cultura de um lugar
de trabalho nas minas que de repente se vê sem essa fonte de trabalho.
Qual tipo de vivência é essa? O capitalismo mostra aqui sua face mais
brutal: as vidas precárias que não importam são deixadas à sua sorte:
quando um tipo de pessoas não é mais necessário, “we don´t care for
them anymore”. Quando representamos tais pessoas com nossos pressu-
postos, nossas dialéticas e lutas, nossas imagens e nossas armas concei-
tuais dadas a priori, usamos e fixamos essas pessoas em uma identidade
de vítimas sem capacidades. Arriscamos a perder sua singularidade, ou
o movimento de suas vidas, ou a complexidade de suas experiências e
pensamos em abraçar tudo em uma imagem, um conceito, uma repre-
sentação.
Em O espectador emancipado, Rancière propõe que o espectador não
é aquele que vai simplesmente acolher a autoridade do artista em impor-
-lhe um sentido de orientação e interpretação de uma obra. O que ele
DOS AFETOS AO PENSAMENTO: MANTENDO O MOVIMENTO 121
Ele observa, ele seleciona, ele compara, ele interpreta. Ele conec-
ta o que observa com muitas outras coisas que observou em ou-
tros palcos, em outros tipos de espaços. Ele faz seu poema com
um poema que é feito diante dele. Ele participa do espetáculo se
for capaz de contar a sua própria história a respeito da história
que está diante dele...os espectadores vêem, sentem, e entendem
algo na medida em que fazem os seus poemas como o poeta o
fez, como os atores, dançarinos ou performes o fizeram.
*****
Debate
Sônia Pessoa: Jean-Luc, eu gostaria que você retomasse a questão
da escritura de um trabalho acadêmico e de como seria possível encon-
DOS AFETOS AO PENSAMENTO: MANTENDO O MOVIMENTO 129
Jean-Luc Moriceau: Sim, você tem toda razão. Por isso tentei
mostrar possibilidades de escrita que desconstróem o lugar autoritário
do pesquisador na composição de seu relato, pautado geralmente em
uma escrita muito segura e guiada por conceitos pouco desafiados pela
empiria. É sempre bom procurar trazer para o texto acadêmico as cita-
ções literais das narrativas dos sujeitos pesquisados, acrescentar foto-
grafias, descrições de campo, procurando reencontrar as experiências,
as emoções que despertaram os dizeres ou as performances presentes
nos contatos iniciais. Isso permite recriar ou restituir uma presença
mais originária, mais próxima daquilo que o pesquisador vivencia na
pesquisa empírica, sem esconder os paradoxos ou contradições nas
falas, compartilhando com os leitores o trabalho de compreensão e
de fabricação de seus próprios textos. Trata-se de confrontar o leitor
com os efeitos que nascem do encontro com o pedaço de mundo em
estudo, mas nenhum desses elementos “brutos” vem sem problemas e
perguntas. Você sabe melhor do que eu os problemas relacionados, por
exemplo, a testemunhos ou imagens. Eles são construídos no encontro.
Só podemos conhecer o encontro, e isso levanta não só questões episte-
mológicas, mas também éticas e políticas.
Jean-Luc Moriceau: A meu ver, o autor tem que confiar ao leitor seus
desejos, hesitações, frustrações, certezas e alegrias. O lugar habitual de
narrador autoritário pode transformar o pesquisador em juiz. O leitor
por sua vez precisa experimentar os afetos e trabalhar para chegar a uma
interpretação, ele vai seguindo as pistas. O autor não pode começar pela
resposta: ele oferece todos os elementos que possui em mãos, sobretudo
132 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
aqueles que resultam de sua experiência vivida. Ele não assume uma
postura autoritária e diz: “de acordo com o saber que acumulei, é assim
que devemos refletir acerca de tal tema”. Pelo contrário, ele constrói seu
texto sabendo que os leitores são, como afirma Rancière, espectadores
emancipados, de igual inteligência e livres para construir sentidos sem
se aterem a uma prescrição. Talvez a melhor forma de tornar o leitor
co-participante da elaboração do texto da pesquisa seja apresentar-lhe
os detalhes de um contexto, as relações de poder que aí se desenham, as
temporalidades, alianças e dificuldades que se apresentam no contexto
em estudo, mas também que se associam aos dilemas e hesitações do
próprio fazer científico. Descrever as tentativas, fracassos e influências
sob as quais a pesquisa ganha seus contornos é uma chave importante
desse processo de criar uma escritura que se distancia da representação.
Essa resistência à representação não somente faz justiça à pesquisa,
mas também cria as lacunas através das quais o leitor pode inserir suas
próprias reflexões e referências. Vejo a escritura como pesquisa, como
exploração das possibilidades de fazer reviver, pelos afetos e afecções,
experiências únicas e transformadoras. Para isso, a escrita lida com as
conexões entre várias temporalidades, acelerando ou desacelerando o
ritmo conforme a necessidade de evidenciar, na teia, as linhas de fuga
essenciais à dúvida, ao estranhamento, à reflexividade.
Encontro 4:
Reflexividade e escrita
1Do original: “Justice is a value and a virtue that each of us recognizes. Justice! We indi-
vidually and collectively demand. Yet as soon as we begin to think about the notion of
justice, the more confused and nebulous it becomes… And then, one day, you see justice,
it materializes in front of your eyes”.
140 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
2Do original: “Keeping my eyes fixed on the phallic knife at my throat, they, reduced ero-
tically to gleaming eyes and blankets, had taken my watch and wallet with fingers light as
caresses”.
142 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
3Do original: “The cops made each of the three kids stand up, turn around, take off his clo-
thes, so that I could see all there was to them as they insisted it was these three”
144 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
mas que deixa de fora certoa rostos, rostos minoritários, rostos vulnerá-
veis. Os rostos dos três jovens funcionam como uma rachadura.
Aqui é preciso esclarecer que o processo de escrita e reflexão de
Lingis não é convencional, não segue o roteiro acadêmico do qual
partimos de um autor ou conceito e depois tecemos críticas e apontamos
contradições. Lingis não escolhe a teoria kantiana de justiça para
desconstruí-la e provar que estava equivocada. Longe disso: ele parte de
um acontecimento para então elaborar toda uma enunciação que não
tem como objetivo desafiar autores e teorias, mas produzir e ressaltar
a singularidade de momentos únicos e fugazes. Ele se posiciona contra
uma razão universal, pois deseja a particularidade, o encontro com a
alteridade radical. Não se trata de rejeitar nossa concepção majoritária
de justiça, mas de mostrar que ela pode nos tornar insensíveis ao rosto
do outro. Lingis busca uma ética não maioritária. Lingis dialoga com
Lévinas uma vez que ele pretende fazer valer uma ética da responsabi-
lidade pelo outro que aparece diante de mim e a quem não posso negar
uma resposta. A justiça kantiana é baseada na letra da lei e não na singu-
laridade do encontro com a alteridade radical. Assim, o rosto do outro
vem antes de minha ontologia, de todas as formas de conhecimento, pois
não se pode apreender um rosto pelo conhecimento: somente podemos
responder a ele, nos responsabilizarmos por ele. O evento, a situação,
ou o outro podem vir antes do projeto do conhecimento. Nós geral-
mente fazemos o contrário: elaboramos o projeto de pesquisa e depois
nós aplicamos conceitos, nós vamos apagando os vestígios da alteridade
e, como dissemos ontem, o que essa reflexão nos indica é que nossa
autoridade acaba prevalecendo e, como discutimos, há muitas questões
éticas implicadas nessa maneira de fazer pesquisa.
É importante ter em mente aqui que esse texto de Lingis não é um
modelo, não é uma tentativa dele em apontar a boa maneira de fazer
pesquisa, ou mesmo a maneira “certa”. É uma maneira apenas, uma
forma de enfrentar as dificuldades de se responder ao rosto do outro
que nos interpela e nos implica eticamente em uma relação que nem
sempre está baseada em diálogos, conversações e acordos. Não se
trata de encontrar receitas, mas de formular questões e dilemas sobre
os quais nós precisamos pensar, refletir, encontrar uma forma de agir,
REFLEXIVIDADE E ESCRITA 145
todos esses momentos que dão origem aos movimentos que o texto vai
tentar produzir. Movimentos, forças que afetam, que não deixam um
sujeito indiferente, que obrigam a pensar e a se posicionar: nenhuma
semelhança com a fria e distante característica da representação, que
vai guardar tranquilamente os gestos da pesquisa em uma caixa bem
ordenada.
Escrita e performance
Aquela que me parece estar indo mais longe das conexões entre afetos,
pensamentos e performances em nosso mundo acadêmico é Alphonso
Lingis. Quando ele apresenta um texto dele é sempre através de perfor-
mances desconcertantes. A cada vez, a apresentação começa com uma
música (cinco minutos de Bach, por exemplo) para apagar os afetos e
os pensamentos com os quais nos deparamos e mudar a recepção do
texto. Lingis vai discutir com a teoria, afetos vão se misturar com a
história que ele conta, imagens vão nos atingir, nos tocar, nos envolver, a
música vai variar nosso humor e acima de tudo a voz de Lingis vai tornar
presentes as cenas, seus sorrisos ou mágoas vão repetir a experiência,
causando uma implicação que é bem mais que a simples relatos. E, ao
final, novamente um momento no escuro apenas com música promove
quatro ou cinco minutos de reflexão. Antes de passar para as perguntas,
precisamos de um momento para que os afetos possam trabalhar dentro
de nós, pois eles não são uma reação a algo preciso, mas um convite para
fazer um trabalho, um trabalho bem importante.
Para finalizar, gostaria apenas de deixar claro que todas essas ques-
tões e gestos metodológicos e interpretativos possuem consequências
sobre a pesquisa e seus resultados: desenham uma maneira de contar o
que é estudado, de se expor e ser atento às suas respostas. A reflexividade
consiste em questionar a validade das fontes utilizadas, a oportunidade
de certas ferramentas, as implicações de nossas escolhas. Sempre nos
perguntarmos sobre como conduzir o trabalho interpretativo, os limites
do que podemos afirmar e pensar, pensar o sentido da pesquisa e sua
individuação (o assumir uma forma específica e singular). Método,
pesquisa e pesquisador evoluem juntos. Fazer uma pesquisa, estar em
162 AFETOS NA PESQUISA ACADÊMICA
*******
Debate
Jean-Luc Moriceau: Carlos, você quer dizer mais alguma coisa sobre
a guerrilha do sensível?
tindo que, por sua vez, o leitor também trabalhasse e refletisse junto
com a pesquisa, endereçando-lhe não um relato, uma representação
pronta, finalizada, imposta com a autoridade do discurso acadêmico,
mas uma intriga ainda à espera da contribuição do leitor, diante do que
lhe é endereçado.
Sônia Pessoa: Jean-Luc, estou aqui aflita para falar de uma coisa,
porque hoje encerrei a disciplina de rádio e tivemos duas experiências ao
longo do semestre que sempre me fazem pensar. Nós não trabalhamos
com a noção de texto performativo, mas trabalhamos com as noções de
“dar voz” e “dar presença” às pessoas que estavam envolvidas naquelas
temáticas. Então, uma foi sobre a liminar da “cura gay”, em que nós não
quisemos ouvir especialistas, mas apenas pessoas que foram afetadas,
que eram da comunidade LGBT e foram afetadas por aquela decisão.
Então, foram buscados depoimentos para que as narrativas fossem cons-
tituídas daquele modo. E uma outra, foi uma experiência que fizemos
pelo campus, de circular com pessoas com deficiência, sendo que nós
não construiríamos as narrativas, elas próprias as elaborariam. E hoje,
no encerramento das disciplinas, vários alunos falaram exatamente isso,
de como era diferente lidar com essas falas que eram muito mais fortes
no sentido do impacto e do que estava afetando aquelas pessoas, e no que
era inquietante e estranho para os próprios estudantes. Então, quando
você traz o exemplo do rádio e está trabalhando essa questão da perfor-
matividade, eu acho que estávamos fazendo a mesma coisa sem perceber
ou sem ter trabalhado conceitualmente essa noção. E ficou muito forte
na fala deles hoje como que isso impactou e como eles mudaram o modo
de circular e dese movimentarem a partir dessas experiências.
mentos dos alunos revelam que o curso trouxe para eles outra perspec-
tiva, outra forma de relação consigo mesmos e com os modos possí-
veis de habitar o campus. Esse desenho de pesquisa permite acolher o
inesperado: ainda que tudo nos impulsione a seguir o que está previsto,
a conservar a distância, filtrar, reduzir e representar, nos parece que a
pesquisa ganha ao se expor diante do que se estuda, ao diversificar as
zonas de contato e a encontrar, mais do que perscrutar. Vocês valorizou
o momento de mover-se, de caminhar, de deslocar-se explorando essa
experiência de exposição para que ela movimente o pensamento, nos
forçando a criar uma reflexão adaptada, que nos auxilie a conhecer o que
não sabíamos de antemão. O que eu acho mais importante não é ter uma
justificativa para esse tipo de pesquisa, mas tentar refletir juntos sobre
como as zonas de contato são preparadas.
mas também para Marielle Macé, para quem o pesquisador deve sempre
se manter sensível aos detalhes das vidas dos sujeitos, ao trabalho de
manutenção contínua das teias do cotidiano, de seus gestos e aconteci-
mentos minúsculos. Para ela, a abertura da pesquisa aos afetos possibi-
lita observarmos a perseverança de um “COMO”: a maneira pela qual
cada um encontra e experimenta um jeito de habitar o mundo e tornar
um mundo específico habitável, apesar da ameaça da violência, do ódio,
da perda. Afinal, é pela via dos afetos e dos agenciamentos políticos que
os acompanham, que elaboramos demandas por dignidade, respeito,
reconhecimento e redefinição das condições humanas de existência.
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Referências bibliográficas
Bibliografia relacionada