Análise de Campo Geral de Guimarães Rosa
Análise de Campo Geral de Guimarães Rosa
Análise de Campo Geral de Guimarães Rosa
DA INFÂNCIA:
uma leitura de Campo geral, de Guimarães Rosa
O AUTOR
João Guimarães Rosa nasceu em 1908, na pequena cidade de Cordisburgo, interior
de Minas Gerais. Nunca mais o sertão de Minas abandonaria sua vida. Mesmo
quando distante dele, o escritor povoaria sua literatura desse ambiente de que se
impregnou desde a infância. Ali mesmo iniciou-se nas letras.
Com dez anos, mudou-se com o avô para Belo Horizonte, onde fez o ginásio. Em
1925, ingressou na Faculdade de Medicina, de onde saiu cinco anos depois, para
exercer a profissão no interior de Minas Gerais. Travou contato ali com muitas das
histórias e dos personagens que mais tarde habitariam suas narrativas. Durante a
Revolução Constitucionalista de 1932, serviu voluntariamente na Força Pública na
capital mineira.
O interesse pelo estudo de línguas estrangeiras levou-o a prestar concurso para o
Itamarati, iniciando a carreira diplomática em 1934.
Serviu em Hamburgo em 1938 e estava em Baden-Baden, na Alemanha, em 1942,
quando o Brasil rompeu relações com aquele país. Ficou preso na Embaixada com
outros membros do corpo diplomático brasileiro, tendo sido trocado por diplomatas
alemães, voltando para o Brasil em 1944.
Foi nomeado chefe de gabinete de um ministério em 1946, mesmo ano em que
publica, depois de sucessivas recomposições, seu livro de contos Sagarana. Rosa já
aparecera outras vezes antes pela imprensa nacional, com alguns contos que, no
entanto, ainda não faziam prever o extraordinário manipulador das palavras em que
ele se transformaria.
Continuou a carreira diplomática, e voltou a residir no Brasil a partir de 1951,
quando foi novamente nomeado chefe de gabinete ministerial. No ano seguinte,
viaja pelo interior de Minas Gerais com um grupo de vaqueiros, entre os quais estava
Manuel Nerde, o Manuelzão que Rosa imortalizaria em uma de suas novelas, e que
lhe presentearia com muitas outras histórias sertanejas.
Essas histórias apareceriam em obras seguidas, publicadas enquanto o autor
prosseguia nos serviços diplomáticos, mas em território nacional. Em 1963 foi eleito
para a Academia Brasileira de Letras. Mas adiou a cerimônia de entrada por quatro
anos. Em novembro de 1967, três dias depois de tomar posse na cadeira acadêmica,
morreu de enfarte
O ENREDO
Em Campo geral, como nas demais histórias criadas por João Guimarães Rosa,
prevalece o tema da travessia, a viagem real e/ou metafórica, e do aprendizado por
ela proporcionado. Neste caso específico, trata-se da travessia da infância para a
maturidade, através da dor de crescer, de aprender as coisas do mundo.
Miguilim, garoto sensível da região de Minas Gerais, começamos a vê-lo aos oito
anos, com uma menção aos seus sete anos, quando esteve mergulhado numa
preocupação em respeito ao local de sua residência, o Mutum – essa palavra
constitui um palíndromo, ou seja, pode tanto ser lida da direita para a esquerda com
da esquerda para a direita, sem alterar-se. E o mais interessante é que sua grafia,
MUTUM, acaba concretizando o próprio local, já que este ficava junto a um covão
(U), entre morro e morro (M e M).
Durante uma viagem para ser crismado, ouvira alguém falar que aquele era um lugar
muito bonito. Tão feliz fica com a novidade que se torna ansioso em contá-la para a
mãe, Nhãnina, crendo que assim faria com que ela deixasse de ser triste por morar
ali.
Seu jeito estabanado, no entanto, faz com que corra desesperado em direção da
mãe, passando direto pelo pai, Nhô Bero, irritando-o. É a primeira informação que o
leitor recebe de que existe na narrativa uma transfiguração do complexo de Édipo, já
que Miguilim tem uma forte identificação afetiva com a mãe e problemas graves de
relacionamento com o pai, a ponto de, mais para frente, os dois se estranharem
como se fossem inimigos.
Há também outras pessoas com quem o protagonista mantém relação. Podem ser
citados os irmãos Chica, Drelina e Tomezinho, os dois últimos de gênio difícil, até
maligno. A Rosa, que trabalha em sua casa e com quem tem uma tranqüila relação,
muitas vezes acompanhando-o em seus sentimentos e fantasias. Vó Izidra, na
realidade tia-avó por parte de mãe dele. Era uma mulher dotada de uma moral
extremamente rígida, baseada num catolicismo um tanto tradicional, apegado a
santos e rezas. É a religiosidade oficial, bem diferente de Mãitina, velhíssima
remanescente da escravidão, já sem juízo e com fama de feiticeira. Seu misticismo é
muito mais primitivo, pois que baseado em magia (compare essas duas idosas.
Ambas estão vinculadas ao misticismo, à religiosidade. A ligação com o aspecto
oculto de nossa existência está até simbolizada no cômodo em que cada uma fica:
ambos são escuros e isolados. Além disso, gostam de Miguilim. A diferença é que Vó
Izidra é mais enrustida. Há também diferenças na qualidade da religiosidade de cada
uma. Mãitina é mais primitiva enquanto a outra segue um padrão mais oficial).
Mas duas personagens são as mais importantes no círculo de relacionamento de
Miguilim. A primeira é o seu irmão Dito, que, apesar de mais novo, é mais sábio, na
medida em que está mais preparado para o lado prático da vida. Torna-se a âncora
do protagonista, já que este é extremamente aluado. Por isso é constantemente
consultado pelo personagem principal.
A outra figura importante é o Tio Terêz (dentro da elaboração poética de sua prosa,
Guimarães estabelece uma ortografia própria, muitas vezes afastando-se do padrão
gramatical. É o caso do “Terêz”, já que oxítonas terminadas em “z” não devem ser
acentuadas). Irmão de Béro, é o amigo grande de Miguilim (há quem extrapole na
interpretação e enxergue na relação entre Miguilim e Terêz, tendo também em vista
o caso entre este e Nina, além dos conflitos entre o protagonista e seu pai, a
possibilidade de que o menino seria filho não de Béro, mas de Terêz. Mas é um
aspecto que de forma alguma deve ser colocado em uma prova, pois que baseado
em suspeitas muito leves). E sabemos, pelo olhar lacunoso de uma criança, que
mantém uma relação no mínimo perigosa com Nina. Intuímos isso pela briga que há
entre pai e mãe em que esta quase apanha; só não sofreu porque Miguilim se
interpôs no meio do casal, acabando por sofrer a fúria de Béro no lugar da mãe.
Comenta-se a todo instante que o tio não ia poder mais aparecer no Mutum. Além
disso, surge uma tempestade terrível, que é atribuída por Vó Izidra como castigo
infligido às ações pecaminosas que andavam grassando.
O temporal se vai, Tio Terêz some e o Mutum mergulha numa tranqüilidade
momentânea. É quando Miguilim põe na mente a idéia obsessiva de que iria morrer
em dez dias. Passa a desenvolver um apego pela vida durante o decorrer desse
período e principalmente após ele, ao descobrir que sobrevivera a ele.
Nhô Bero, pouco depois, faz com que Miguilim lhe leve o almoço. É uma maneira
que entende de arranjar utilidade para o garoto, que realiza sua tarefa com orgulho.
No entanto, em uma das viagens, é surpreendido por Tio Terêz, que lhe entrega uma
carta para ser entregue à Nina e diz que estaria esperando resposta no dia seguinte.
Começa então um dilema na mente do menino. Adora o tio e, portanto, deve fazer o
que este lhe pediu. No entanto, mesmo não tendo consciência do que acontecia,
intui que o que era pedido era errado. Depois de muito tempo de conflito interior,
decide não entregar a missiva, confessando, entre choros, ao tio, que facilmente
entende. É um grande passo no crescimento da personagem.
Introduzido por outra tempestade, chega mais um período de crise. É, como diz o
narrador, o momento em que virou o tempo do ruim. Começa com o assassinato de
Patori, garoto imbuído de malignidade e que maltratava muito Miguilim. Seguem-se
outros fatos. O cachorro Julim foi mortalmente ferido por um tamanduá. Tomezinho
sofre com a picada de um marimbondo. O touro Rio Negro machuca Miguilim, que
acaba descontando a raiva em Dito. Luisaltino surge e começa a se engraçar com
Nina (a mãe de Miguilim parece revelar um caráter no mínimo leviano, volúvel.
Pode-se desconfiar de um certo determinismo, na medida em que sua personalidade
seria um reflexo das atividades exercidas pela mãe dela, que fora prostituta). O
ponto crítico ocorre quando Dito vai espiar o ninho de uma coruja. A ave acaba
dizendo o nome dele, o que é visto por Miguilim como mau agouro (note que, para
angústia de Miguilim, o papagaio não conseguia falar o nome de Dito, ao contrário
da coruja. Drama temporário. No final, muito tempo depois, consegue-o).
Tudo é preparação de clima para o grande desastre. Durante a perseguição que as
crianças fazem a um mico que havia escapado, Dito acaba tendo o pé cortado por
um caco que estava no terreiro. O machucado piora, colocando o menino de cama.
Coincidência ou não, é época dos festejos de Natal, Vó Izidra até se dedicando a
montar seu famoso presépio.
Dito não resiste ao mal que lhe acometeu, vindo por falecer. É uma experiência
extremamente dolorosa para Miguilim, mas que pode ser vista como um passo
importante no seu amadurecimento. Se antes o protagonista era guiado pelo irmão,
nos momentos de convalescença deste o jogo começa a se inverter. É Miguilim que
conta ao acamado o que está ocorrendo no mundo ao redor deles. Passa a ser, pois,
os olhos fraternos. Com a morte, a personagem principal passa um longo período
curtindo a dor, o sofrimento, até que assume um movimento com que de introjeção
do falecido, já que antes de tomar uma decisão sempre se pergunta o que seu irmão
faria. Ao assumir a mesma atitude que presume ser de Dito, praticamente absorve-o
em seu ser.
Tanto essa evolução é verdade que Miguilim agüenta firme o sufoco a que seu pai o
submete, fazendo-o trabalhar no roçado, debaixo de um sol desumano. Mas o mais
importante é lembrar da sua participação no conflito que houve entre Liovaldo e
Grivo.
Grivo era um rapaz muito pobre, a ponto de os animais de criação, como galinhas,
morarem na mesma casa dele. Certa vez aparecera no Mutum com dois patos para
serem vendidos, parca fonte de sustento para si e para mãe. No entanto, Liovaldo,
irmão de Miguilim que morava na cidade e que estava de visita, dominado por um
espírito maléfico, começa a maltratar e até a machucar o pobre. Miguilim acha
injusto e toma partido, batendo no agressor. Seu pai fica indignado pelo fato de o
menino não respeitar o sangue familiar e, incoerentemente, dá uma surra nele que
chega a espancamento. O protagonista, no entanto, não se sente mal, pelo
contrário, tem raiva, pois sabe que está certo e que o pai está imensamente errado.
Por isso pensa em vingança, imaginando até a morte do pai. É quando ri, em meio a
surra, o que faz todos, até o agressor, pensarem que o menino endoidara, talvez até
com os golpes.
O conflito instaura a conquista, por Miguilim, de espaço e até respeito no ambiente
familiar. Após três dias que passa na casa de um vaqueiro, para protegê-lo da fúria
do pai, retorna, mas não se mostra submisso. Como provocação, Béro quebra os
brinquedos e gaiolas do filho. Este solta os passarinhos que tinha presos e quebra os
brinquedos que sobraram. É um sinal de que havia crescido e que, portanto, não
precisava mais daquelas diversões.
Delimitadas as fronteiras, Miguilim pouco depois cai doente e de forma tão grave
que alterna momentos de inconsciência a de consciência (a doença e os mergulhos
de desligamento que provoca podem ser entendidos como um momento de
incubação, como se Miguilim, dentro de um casulo, estivesse em uma fase no final
da qual se transformaria em outra pessoa). Nos instantes em que vem à tona
percebe picotes de realidade, mas que nos faz entender vários acontecimentos. O
primeiro é o desespero do pai, que se sente injustiçado pela providência divina, que
parecia querer tomar mais um filho dele (Béro é, portanto, uma personagem
complexa, pois, ao mesmo tempo em que maltrata seu filho, demonstra amor por
ele. Sua agressividade pode ser fruto de uma vida de dificuldades financeiras, pois
não é dono de suas próprias terras, cuidando do que era alheio. Nas entrelinhas fica
o traçado de um caráter rico psicologicamente). Tenta ao máximo fazer suas
vontades. Em vários outros despertares Miguilim toma conhecimento que Béro
havia matado Luisaltino, provavelmente por causa de Nhãnina. Por ter caminhado
pelas trilhas da criminalidade, acaba por se suicidar.
Quando começa a melhorar, o protagonista toma conhecimento de que Tio Terêz
tinha voltado e ia passar a morar no Mutum. Era a união, finalmente, dele com Nina.
Por causa disso, Vó Izidra parte de lá, indignada.
No final, a chegada de um certo Dr. José Lourenço traz uma revelação
surpreendente. É essa figura nova que descobre que Miguilim era míope. Ao
emprestar ao menino seus óculos, permite à criança uma descoberta. Seu velho
mundinho acaba ganhando uma visão completamente nova, mais nítida. É a
simbologia do crescimento, o que constitui um ritual de passagem. Enxergar mais
nitidamente o mundo significa entrar para a fase adulta, sair da infância.
Na companhia de tão importante mudança, Miguilim parte para a cidade. Sua
viagem, somada à simbologia dos óculos, pode significar a entrada em um novo
universo. Miguilim pode tanto ter abandonado a visão primitiva, pré-lógica, que o
caracterizara, como continuar, em meio ao universo adulto, preservando seu lado
infantil. É, pois, um final aberto, a permitir mais de interpretação.
NARRADOR
Campo Geral foi publicado inicialmente em 1956, como uma das histórias de Corpo
de Baile. Em 1960, esta obra desdobrou-se em três volumes: Manuelzão e Miguilim,
No Urubuquaquá, no Pinhém e Noites do Sertão, passando Campo Geral a
pertencer ao primeiro deles, Manuelzão e Miguilim.
Com foco narrativo em terceira pessoa, Campo Geral caracteriza-se por um narrador
que não participa diretamente dos acontecimentos narrados, o que o coloca como
testemunha daquilo que conta. Não se trata, entretanto, de uma testemunha que
apenas observa os fatos: o narrador desvenda a interioridade dos personagens,
assumindo uma onisciência não-absoluta (o saber tudo sobre eles), mas provocada
pela adesão, pela cumplicidade com o protagonista da história, um menino de oito
anos, Miguilim.
Para penetrar o imaginário do menino, para acompanhá-lo psicologicamente em
suas descobertas, uma das técnicas utilizadas no texto é o discurso indireto livre, que
indelimita as fronteiras entre a voz do narrador e o fluxo de consciência do
personagem, tornando indelimitadas, ao mesmo tempo, as fronteiras entre fantasia
e realidade – uma vez que adere ao universo alógico, encantado, da criança, um
certo Miguilim, (que) morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe
daqui, muito depois da Vereda-do-Frango-d'Água e de outras veredas, sem nome ou
pouco conhecidas, no Mutum.
Trata-se então de um texto que privilegia a ótica infantil, repleta de lirismo e magia,
ambientada num universo revelado no que tem de mítico e poético: o sertão. A
história de Miguilim nos mostra certos detalhes sutis a respeito da descoberta da
vida nos pequenos fatos, na significação lúdica dos brinquedos, na humanização dos
seres da natureza. Ao mesmo tempo, temas como a crueldade do mundo "adulto", o
medo da morte e a religiosidade, vão sendo desvendados, sempre na perspectiva do
menino, cuja travessia acompanhamos, ao longo da história.
Veja um exemplo da proximidade entre o narrador e Miguilim, num pequeno trecho
de Campo Geral:
Mas, para o sentir de Miguilim, mais primeiro havia a Pingo-de-Ouro,
uma cachorra bondosa e pertencida de ninguém, mas que gostava mais
era dele mesmo. Quando ele se escondia no fundo da horta, para brincar
sozinho, ela aparecia, sem atrapalhar, sem latir, ficava perto, parece que
compreendia. Estava toda sempre magra, doente da saúde, diziam que ia
ficando cega. Mas teve cachorrinhos. Todos morreram, menos um, que
era tão lindo (...).
LINGUAGEM
A adesão do narrador ao universo mágico dos personagens, a humanização de
bichos, de plantas, de elementos da natureza, a presença de metalinguagem, a
utilização de recursos da oralidade – como rimas e onomatopéias – a fusão da
linguagem popular regionalista com a linguagem culta, os neologismos, os
arcaísmos, o ritmo, dentre outros elementos, dão grande beleza, grande
poeticidade, ao texto lido.
Na opinião de Antônio Cândido, Guimarães Rosa, ao reinventar o mundo,
reinventando a linguagem que o expressa, cria um universo autônomo "composto de
realidades expressionais que se articulam com harmonia, superando por milagre o
poderoso lastro de realidade tenazmente observada, que é a sua plataforma".
Vamos exemplificar alguns aspectos da linguagem de Campo Geral, transcrevendo
passagens significativas para a sua compreensão:
. a atmosfera de sonho e afetividade, na recriação do universo infantil, animizando
seres da natureza e explorando a expressividade dos diminutivos.
Depois, a gente cavocava para tirar minhocas, dar para as perdizinhas.
Mas o mico-estrela pegou as três, matou, foi uma pena, ele abriu as
barriguinhas delas. Miguilim não contou ao Dito, por não entristecer. –
"As perdizinhas estão assustadinhas, estão crescendo por demais...
Amanhã é o dia de Natal, Dito!" – "Escuta, Miguilim, uma coisa você me
perdoa? Eu tive inveja de você, porque o Papaco-o-Paco fala Miguilim me
dá um beijim... e não aprendeu a falar meu nome...
. a intensidade emotiva dos sentimentos de criança, numa experiência com o
sagrado, que vai evocando o cotidiano da família pela visão e pela lembrança do
menino doente, em situação de expectativa e medo da morte:
Agora era o dia derradeiro. Hoje, ele devia de morrer ou não morrer.
Nem ia levantar da cama. De manhã, ele já chuviscara um chorozinho, o
travesseiro estava molhado. Morria, ninguém não sentia que não tinha
mais o Miguilim. Morria, como arteirice de menino mau? – "Dito,
pergunta à Rosa se de noite um pássaro riu em cima do paiol, em cima
da casa?" O dia era grande, será que ele ia agüentar de ficar o tempo
todo deitado? – "Miguilim, Mãe está chamando todos! É p'ra catar
piolho..." Miguilim não ia, não queria se levantar da cama. – "Que é que
está sentindo, Miguilim? Está doente, então tem de tomar purgante..." A
mãe já estaria lá, passando o pente-fino na cabeça dos outros, botava
óleo de babosa nos cabelos de Drelina e da Chica, suas duas muito
irmãzinhas, delas gostava tanto. Tomezinho chorava, ninguém não podia
com Tomezinho. – "Miguilim está mesmo doente? Que é agora que ele
tem?" Era Vovó Isidra, moendo pó em seu fornilho, que era o moinho-
de-mão, de pedra-sabão, com o pião no meio, mexia com o moente, que
era um pau cheiroso de sassafrás. Miguilim agora em tudo queria reparar
demais, lembrado.
. a fusão entre poesia e prosa, numa narrativa atravessada por ritmos e
sonoridades poéticas:
Lua era o lugar mais distanciado que havia, claro impossível de tudo.
Mas o buriti era tão exato de bonito.
O ruim tem raiva do bom e do ruim. O bom tem pena do ruim e do
bom... Assim está certo.
O mole judiado vai ficando forte, mas muito mais forte! Trastempo, o
bruto vai ficando mole, mole...
Só a Rosa parecia capaz de compreender no meio do sentir, mas um
sentimento sabido e um compreendido adivinhado. Porque o miguilim
queria era algum sinal do Dito morto ainda no Dito vivo, ou do Dito vivo
mesmo no Dito morto.
PERSONAGENS
A propósito de Primeiras Estórias, também de João Guimarães Rosa, Alfredo Bosi
discute sobre o fascínio do alógico, presente em seu trabalho. "São contos povoados
de crianças, loucos e seres rústicos que cedem ao encanto de uma iluminação junto
à qual os conflitos perdem todo o relevo e todo o sentido" (História Concisa da
Literatura Brasileira).
Tanto o protagonista de Campo Geral – Miguilim – quanto o Dito, os outros irmãos,
a vó Isidra, o vaqueiro Salúz, o tio Terêz, a mãe Nhanina, a cachorrinha Pingo-de-
Ouro, o papagaio e grande parte dos demais personagens, incluindo bichos e
paisagem, são atravessados pelo fascínio do alógico.
Por constituírem "seres em disponibilidade" – nas palavras de Walnice Nogueira
Galvão – isto é, por estarem à margem do processo produtivo, os personagens de
Guimarães Rosa, como ocorre com Miguilim, em Campo Geral, cedem "ao encanto
de uma iluminação" que transcende os conflitos que vivenciam.
Esta iluminação vem primeiro da magia do mundo que povoam, mas vem também
do acaso, que revela a miopia de Miguilim, e também metaforicamente lhe permite
crescer, superar o universo infantil.
Participantes desta iluminação que transforma a existência de Miguilim, os
personagens podem ser pensados como forças simbólicas que agem em sua mente,
ao longo deste percurso, já que os conhecemos pela ótica do menino. Vó Isidra, por
exemplo, está ligada à religiosidade ancestral, com todas as imagens de morte e
temor ao desconhecido que evoca. Dito revela, ao mesmo tempo, a fragilidade, a
pureza da criança e o poder de sua sabedoria instintiva, hieroglífica.
O pai – a força bruta e selvagem que se autodestrói –, e a mãe – a beleza fraca,
passiva, insatisfeita – estão claramente presentes na travessia de Miguilim, que se
debate entre estes valores antagônicos procurando entender o bem e o mal, perde a
ingenuidade (o que é deflagrado pela morte do Dito), recupera o afeto que provou
ser verdadeiro (com a volta do tio Terêz) e, finalmente, transforma-se em
personagem e testemunha do bem vencendo o mal (o casamento da mãe com o tio
Terêz), dos fracos se fortalecendo (a cura da miopia e a oportunidade de estudar).
Simultaneamente – e aí nos parece estar a beleza maior desta história – é ambígua a
iluminação de Miguilim: embora parta para uma nova vida, não pode abandonar o
sonho de pureza representado pelo Dito, a fragilidade representada pela mãe, o
medo da força bruta representada pelo pai... Assim, ele leva dentro de si o mistério e
os símbolos mágicos de seu universo, símbolos com os quais poderá dialogar para
sempre, como acontece aos homens em relação à sua infância.
Entre a maldade de Liovaldo e a pureza do Dito, entre a fragilidade da mãe e a força
bruta do pai, numa palavra, entre o bem e o mal este menino cresceu até se deslocar
para outro lugar. Se lá abandonará ou não o Mutum e/ou os valores de sua infância,
se preservará a pureza do universo onde estão suas raízes, não ficamos sabendo.
Mas podemos pressentir, atentando para o sentido profundo do reino mitopoético
criado por Guimarães Rosa:
O sertão é sem lugar. O senhor empurra para trás, mas, de repente, ele volta a
rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera. Sertão – se diz – o
senhor querendo procurar nunca não encontra. De repente, por si, quando a gente
não espera, o sertão vem. Viver é muito perigoso... O diabo não há! É o que digo, se
for... Existe é homem humano. Travessia (Grande sertão: veredas).
QUESTÕES ABERTAS SOBRE CAMPO GERAL
01) Embora conheça com profundidade os personagens da história que conta sem
participar dela, o narrador de Campo Geral escolhe a ótica de um personagem para
narrar. Que personagem é este e como percebemos a identificação que há entre ele
o narrador?
02) (UNICAMP) No processo de crescimento de Miguilim, protagonista de Campo
Geral, de João Guimarães Rosa, há vários episódios significativos. Escolha um deles e
mostre o seu sentido no contexto geral da obra.
03) (UNICAMP) Em que aspectos, em Campo Geral, de Guimarães Rosa, a trajetória
de Dito e de Miguilim ora se afastam, ora se aproximam uma da outra?
04) (UNICAMP) Em Campo Geral, de João Guimarães Rosa, um certo Miguilim
morava com sua mãe, seu pai e seus irmãos, longe, longe daqui, muito depois da
Vereda-do-Frango-d'Água e de outras veredas sem nome ou pouco conhecidas, em
ponto remoto, no Mutum. No final da narrativa, depois de tudo o que ocorre com a
personagem, Miguilim prepara-se para uma viagem decisiva na sua vida. Leia com
atenção o trecho transcrito acima, que indica características importantes do espaço
em que a personagem vivia, e aponte diferenças entre este espaço e o espaço para
onde Miguilim se dirige com o doutor José Lourenço.
RESPOSTAS DAS QUESTÕES ABERTAS SOBRE CAMPO GERAL
01. O personagem através de cuja ótica o narrador conta a história de Campo Geral
é o menino Miguilim, como podemos perceber pela pureza e ingenuidade, pela visão
ao mesmo tempo mágica e primitiva, predominante ao longo da obra.
02. No final da narrativa, o Dr. Lourenço empresta os óculos a Miguilim. Assim o
garoto percebe que não enxergava direito. Essa deficiência visual, percebemos no
fim, também era a causa da interiorização de Miguilim, que vivia dentro de um
mundo de imaginação infantil, de onde é tirado brutalmente pelos sofrimentos que
a vida lhe traz.
03. Dito é o irmão mais próximo de Miguilim. Ambos seguem a mesma trajetória na
convivência infantil, nas brincadeiras, nos segredos, nas conversas de dormir,
destacando-se a proteção de Dito a Miguilim. Há uma diferença, entretanto: Dito é
mais intuitivo, mais religioso e mais sábio na relação com os adultos (com o pai, por
exemplo) que Miguilim. Eles se afastam definitivamente quando Dito morre. A
caminhada de Miguilim em direção à maturidade não é acompanhada pelo irmão,
que se transforma assim em símbolo de pureza e de sabedoria para Miguilim.
04. O espaço de Mutum (o sertão, a zona rural) é isolado, apartado do mundo.
Metaforicamente pode ser entendido como o mundo interno da infância, que se
perde com o crescimento. Miguilim vai para a cidade (espaço urbano), que por sua
vez pode significar a maturidade.
Enquanto o espaço do Mutum é primitivo, mágico, cheio de lendas e neste conto
associado à infância, no espaço urbano, para onde vai Miguilim, há a possibilidade
de crescer intelectualmente, de amadurecer.
QUESTÕES FECHADAS SOBRE CAMPO GERAL
01) Assinale a alternativa INCORRETA, referente à novela “Campo geral”, de
Guimarães Rosa:
a) A personagem Dito apresenta uma serenidade e uma sabedoria extraordinárias
para a sua meninice.
b) Nhanina, a mãe de Miguilim, tem um comportamento sexual e afetivo submisso e
inexpressivo.
c) Miguilim encena uma história de amadurecimento e aprendizado, na qual
descobre o sentido da morte.
d) Os animais da história têm nome e relacionam-se simbolicamente aos seres
humanos com quem convivem.
02) Marque a alternativa que apresenta personagens ligadas à religiosidade na
novela rosiana “Campo Geral”:
a) Drelina e Tomé Cássio
b) Vovó Izidra e Mãitina
c) Miguilim e Dito
d) Nhanina e Luizaltino
03) Assinale a opção que apresente um comentário INCORRETO acerca da novela
“Campo geral”, de Guimarães Rosa:
a) Grande relevância do espaço físico.
b) Narrador onisciente neutro.
c) Presença do tempo cronológico.
d) Uso do discurso indireto livre.
04) Todas as temáticas abaixo estão presentes em”Campo geral”, EXCETO:
a) morte
b) aprendizagem
c) urbanização
d) religiosidade
05) Qual personagem NÃO foi devidamente caracterizada:
a) Miguilim: tem o cabelo preto como o do mãe, parece-se mais com ela. Dotado de
grande sensibilidade, Miguilim demonstra ter alma de poeta. Parte de suas
dificuldade revela-se mais tarde como causada por uma irritação visual.
b) Tomezinho: irmão mais velho de Miguilim, mas não morava com a família no
Mutum.
c) Nhanina: mãe de Miguilim, era muito bonita, não gostava do Mutum, sentia muita
tristeza em ter que viver ali. Não dava muita importância para a fidelidade conjugal
pois traiu o marido com o próprio irmão e depois com Luisaltino.
d) Nhô Bero (Bernardo Caz): pai de Miguilim, homem rude que parece ter
implicância com Miguilim, mas de quem gosta, embora não saiba expressar isso com
facilidade.
06) (UNIMONTES) Assinale a alternativa INCORRETA, referente à novela "Campo
geral".
a) A personagem Dito apresenta uma serenidade e uma sabedoria extraordinárias
para a sua meninice.
b) Francisca, mãe de Miguilim, tem um comportamento sexual e afetivo submisso e
inexpressivo.
c) Miguilim encena uma história de amadurecimento e aprendizado, na qual
descobre o sentido da morte.
d) Os animais da história têm nome e relacionam-se simbolicamente aos seres
humanos com quem convivem.
06) (PUC-Campinas) Einstein suspeitava, desde menino, que devia haver algo
escondido nas profundezas das coisas. Essa sensação precoce, na infância, de que há
uma dimensão oculta da vida, de que há uma sabedoria profunda em cada
experiência vivida está personificada na personagem Dito, da novela “Campo geral”,
de Guimarães Rosa. A respeito de Dito se lê:
a) Quando [...] falou, aquilo devagar podia parecer justo, [...] sabia tanta coisa tirada
de idéia, Miguilim se espantava.
b) [...] caminhava para a cozinha, devagaroso, cabeçudo, ele tinha sempre a cara
fechada, era todo grosso.
c) Com a colher de pau mexia a goiabada, horas completas, resmungava, o resmungo
passava da linguagem de gente para aquela linguagem (...), que pouco fazia.
d) Diante do pai, que se irava feito um fero, não pôde falar nada, [...] tremia e
soluçava; e correu para a mãe, que estava ajoelhada encostada na mesa, as mãos
tapando o rosto.
e) O senhor tinha retirado dele os óculos, e [...] ainda apontava, falava, contava tudo
como era, como tinha visto.
07) Só NÃO se pode afirmar, sobre o conto “Campo geral”, de Guimarães Rosa:
a) Apresenta elevado nível de elaboração lingüística, o que se constata por
intermédio da alteração da sintaxe tradicional, pelo intenso uso de figuras de
linguagem e pelo uso poético da linguagem.
b) Problematiza o fato de que a infância é uma época de aprendizagens, tanto de
coisas boas, como de coisas ruins.
c) Apresenta um narrador de terceira pessoa, que narra como se estivesse ao lado
do protagonista, Miguilim, uma criança de oito anos, o que confere ao seu relato um
aspecto lírico, inaugural, poético.
d) Apresenta um retrato idealizado da infância, baseado na vida do autor, Guimarães
Rosa.
08) Qual dentre as personagens abaixo representa a sabedoria infantil em “Campo
geral”, de Guimarães Rosa:
a) Tomezinho
b) Miguilim
c) Dito
d) Liovaldo
GABARITO DAS QUESTÕES FECHADAS SOBRE CAMPO GERAL
01) B
02) B
03) A
04) C
05) B
06) A
07) D
08) C